16
UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista de Letras. http://www.jstor.org Poesia e tradução: Sobre 'Presença' / Poetry and Translation: About 'Presence' Author(s): Beatriz Cabral Bastos Source: Revista de Letras, Vol. 49, No. 1 (Jan. - Jun., 2009), pp. 101-115 Published by: UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Stable URL: http://www.jstor.org/stable/40284694 Accessed: 01-06-2015 23:38 UTC Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at http://www.jstor.org/page/ info/about/policies/terms.jsp JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTC All use subject to JSTOR Terms and Conditions

Poesia e Traducao

Embed Size (px)

DESCRIPTION

texto sobre poesia e traduçãojstor

Citation preview

  • UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Revista de Letras.

    http://www.jstor.org

    Poesia e traduo: Sobre 'Presena' / Poetry and Translation: About 'Presence' Author(s): Beatriz Cabral Bastos Source: Revista de Letras, Vol. 49, No. 1 (Jan. - Jun., 2009), pp. 101-115Published by: UNESP Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita FilhoStable URL: http://www.jstor.org/stable/40284694Accessed: 01-06-2015 23:38 UTC

    Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at http://www.jstor.org/page/ info/about/policies/terms.jsp

    JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected].

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • POESIA E TRADUO: SOBRE 'PRESENA'

    Beatriz Cabrai BASTOS1

    Os livros sao objetos transcendentes, maspodemos ama-los do amor tactil,

    que votamos aos maos de garro. (Caetano Vloso, na canao Uvros2)

    RESUMO: A primeira parte deste trabalho dedicada noo de presena de Hans Ulrich Gumbrecht. A presena esta relacionada ao aspecto material e corpreo de um objeto esttico. Procuramos trazer este conceito para uma discusso sobre poesia e traduo, fazendo uma crtica de leituras que querem apenas encontrar sentidos e interpretar os poemas. Partindo do prindpio de que ha na poesia algo da ordem da presena, preciso, portante, traduzir nao apenas seu significado, mas tambm se ater ao ritmo, musica, as rimas, ou seja: tudo que fa% o poema. Fazemos tambm uma leitura de Paul Zumthor, para elaborar melhor a questo da performance na poesia. Depois, aprofundando um pouco mais a relaao entre som e sentido, abordamos o pensamento de Roman Jakobson sobre a runo potica. Ao final, trazemos o pensamento de Haroldo de Campos sobre traduo, numa perspectiva que, novamente, enfatiza o aspecto material do poema.

    PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Traduo. Presena. Efeitos de presena. Efeitos de sentido.

    Introduo Este trabalho encontra inspirao em Hans Ulrich Gumbrecht e seu livro

    Productions of Presence. Tanto suas noes de no-hermenutico como de presena mostram-se intressantes para tratar o objeto de estudo do meu mestrado: a traduo de poesia.

    1 Mestranda em Estudos da Literature. PUC -RIO - Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Programa de Ps-graduao em Letras. Rio de Janeiro - RJ - Brasil. 22453-900 - [email protected] Artigo recebido em 27.02.2009 e aprovado em 02.05.2009. 2 Cf. VELOSO, 1997.

    Rev. Let., So Paulo, v.49, n. 1 , p. 1 01 -1 1 5, jan./jun. 2009. 1 Q 1

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • Podemos aproximar o nao-hermenutico de um certo mtodo de traduo, quando a traduo se preocupa no apenas com o campo do sentido (ou seja, do significado), mas tambm com algo de outra ordem que acontece no campo material, nos sons e na musica do texto, ou "na presena" do texto, que a hiptese que quero discutir aqui. De algum modo, percebi que a proposta de Gumbrecht de criar um campo nao-hermenutico na tradiao das "cincias do esprito" aproxima-se de uma preocupaao que pode - ou no - estar prsente no processo de traduo: a de se ater ao ritmo, musica, as rimas de um poema. Ou seja, algo que no se d unicamente no significado das palavras, que nos pede uma outra forma de nos aproximar do texto, nao s a interpretativa. Estamos pensando numa forma de traduo potica que tenta capturar poesia "enquanto presena". Para isso, claro, suponho que ha na poesia algo da ordem da presena.

    Em certa medida, este trabalho vai tentar desenvolver o que Gumbrecht (2004, p. 18) diz na seguinte passagem: "Poetry is perhaps the most powerful example of the

    simultaneity of presence effects and meaning effects -for even the most overpowering institutional dominance of the hermeneutic dimension could never fully repress the presence effects of rhyme and alliteration, of verse and stanza"

    Assim, aprofundaremos as noes de meaning effects e presence effects. Gumbrecht (2004) diz que a poesia se d numa oscilao tensionada de efeitos de presena e efeitos de sentido. Ele diz tambm que a critica literria nunca conseguiu responder nfase que a poesia d aos aspectos formais. Para ele, a intuio de que formas poticas no estao subordinadas ao sentido se revelaram um ponto de partida promissor para um reconceitualizao da relao entre efeitos de sentido e efeitos de presena.

    A primeira parte deste trabalho sera dedicada as noes de no-hermenutico e de presena. Em seguida, leremos Paul Zumthor, para elaborar melhor a questo da performance na poesia. Depois, aprofandando um pouco mais a questo da relao entre som e sentido, abordaremos o pensamento de Roman Jakobson sobre a funo potica. No final, mostramos o conceito de traduo como transcriao de Haroldo de Campos, numa perspectiva que enfatiza o aspecto material do poema.

    Alm do sentido

    Martin Heidegger parece ser a grande inspirao de Gumbrecht em sua elaborao. Heidegger teria ido mais longe do que qualquer outro na reviso do ponto de vista metafisico do mundo. Contra o paradigma cartesiano, que, segundo ele, instaurou no mundo ocidental a prioridade do tempo sobre o espao, um mundo dominado pelo cogito, Heidegger reafirmou a substncia corprea e as

    102 Rev. Let., So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, janVjun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • dimenses espaciais da existncia humana, e comeou a desenvolver a ideia de um "desvelamento do ser" como um substituto ao conceito metafsico de verdade que aponta para um significado ou uma ideia. Gumbrecht deixa bem claro que este "fim da metafisica" no implica no abandono dos significados, mas em fazer algo "in addition to interpretation99.

    A dificuldade des te esforo se d porque, segundo Gumbrecht, vivemos num mundo dominantemente cartesiano, e por isso parece ser muito dificil desenvolver conceitos que pratiquem e sustentem algo que no seja interpretativo. No capitulo "Beyond Meaning', central em seu livro, o autor vai estabelecendo pontos de contato e afinidades com diversos crticos contemporneos. Iremos destacar alguns trechos deste livro, os quais parecem focar mais diretamente sobre o nosso objeto de estudo, a poesia.

    Ir alm da metafisica, como explica Gumbrecht, quer dizer fazer algo que va alm da interpretao, mesmo que "dar sentidos" permanea como elementar dentro das atividades das cincias humanas. O autor prope um fim "era do signo", o que para ele quer dizer "sujar as mos" e usar conceitos que podem ser tachados de "substancialistas" ou reflexos de um mau gosto intelectual. acusado de "substancialista", diz Gumbrecht, qualquer um que tente argumentar a favor de uma relao que nao seja exclusivamente baseada em sentidos, ou mesmo quem tenta argumentar a favor da possibilidade de alguma estabilidade de sentidos.

    Criticando Gianni Vattimo no livro Beyond Interpretation, Gumbrecht diz que quer usar a substancialidade do Ser contra a "alegao" universal de uma interpretao sem fim. Um dos autores com quem Gumbrecht parece ter mais afinidade Jean- Luc Nancy. Nancy, segundo Gumbretch, fala de um conceito de presena que dificilmente conciliado com a epistemologia ocidental moderna, porque ele traz de volta a dimenso de proximidade fisica e tangibilidade. A presena, para Nancy, no existe sem que a presena que a representao deseja designar seja apagada. E ainda, sria algo que nunca pode ser permanente, na quai nao podemos nos apoiar. Gumbrecht deixa para o final de sua argumentao a meno a Hans-Georg Gadamer. Segundo ele, Gadamer, um filsofo profundamente associado hermenutica, numa entrevista, quando perguntado sobre a funo de elementos no-semnticos de um poema, aponta para a musicalidade do poema. O poema nos confronta com algo para alm da inteno de significar, algo ligado a sua. performance. Cito:

    But - can we really assume that the reading of such texts is a reading exclusively concentrated on meaning! Do we not sing these texts [. . .]? Should the process in which a poem speaks only be carried by a meaning intention? Is there not, at the same time, a truth that lies in its performance [...]? This, I think, is the task which the poem confronts us. (GUMBRECHT, 2004, p.64).

    Rev. Let., So Paulo, v.49, n.l, p.101-1 15, jan./jun. 2009. 103

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • Gadamer, segundo Gumbrecht, chama a dimenso no-hermenutica de urn texto literrio de seu volume^ ideia que nos intressa porque aproxima o texto literrio de uma presena, de uma materialidade cujo volume pode bloquear um caminho, digamos, como uma "pedra no meio do caminho".

    Embora o principal terico no qual Gumbrecht se ancora para desenvolver seu conceito de presena seja Martin Heidegger, no iremos nos dedicar a este desenvolvimento no prsente trabalho. Parece mais produtivo tentar destrinchar as distines que Gumbrecht faz entre uma "cultura do seno/ meaning culture* e uma "cultura da present/presence culture". Mesmo que sejam apresentadas de forma um tanto idealizada - Gumbrecht reconhece que estes traos culturais nunca aparecem de forma pura - estas distines nos oferecem um modo intressante de pensar efeitos de sentido e efeitos de presena. Numa cultura do sentido a mente a principal autorreferncia do homem, enquanto numa cultura da presena o corpo ocupa esta funao. Assim, numa cultura do sentido os homens se veem como algo excntrico ao mundo, e no como parte de uma cosmologia maior da quai seus corpos fazem parte. Numa cultura da presena, as coisas do mundo, alm da sua materialidade, tm um significado inerente. Um terceiro trao de distino estaria nas formas de conhecimento. Numa cultura dos sentidos, o conhecimento legtimo produzido pelo sujeito ao interpretar o mundo, enquanto, em uma cultura da presena, o conhecimento revelado, seja por deuses, ou por diferentes variedades de "eventos de desvelamento do mundo". Este conhecimento no pode ser programado, ele acontece, e os efeitos deste acontecer no podem ser desfeitos.

    Gumbrecht chega ento as diferentes concepes de signo de cada cultura. Numa cultura dos sentidos, o signo teria a estrutura do signo saussuriano, um significante material ligado a um significado puramente espiritual. Na cultura da presena, haveria o signo aristotlico, onde a substncia, que requer espao, se juntaria a uma forma, o que possibilitaria que a forma fosse percebida. Gumbrecht enfatiza que, enquanto no signo saussuriano o lado material perde sua importncia uma vez que o sentido apreendido, o mesmo no acontece com o signo aristotlico. O exemplo deste dado por ele o de um guia turistico japons, que ao afirmar o significado de diferentes pedras, diz: "[...] but these stones are also beautiful because they keep on coming closer to our bodies without ever pressing us." (GUMBRECHT, 2004, p.82).

    Ou seja, explica o autor, este mundo no qual as pedras aproximam-se dos corpos um mundo da substncia, onde o corpo humano se inscreve dentro do ritmo da cosmologia que o cerca; onde, a principio, o homem no quer alterar este ritmo. Na cultura dos sentidos, o homem deseja transformar, ou melhorar, ou embelezar o mundo sua volta. Consequentemente, enquanto o espao a principal dimenso de relaes entre homens e coisas do mundo em uma cultura da presena, o tempo o elemento primordial para uma cultura dos sentidos, pois atravs do tempo que

    104 Rev. Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-1 15, jan./jun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • podem ser percebidas as transfer maes no mundo que o homem faz. Por enfatizar uma relao espacial entre homens e coisas do mundo, a cultura da presena pode constantemente tornar-se violenta, pois um corpo ocupa espao e assim bloqueia o espao de outros corpos. Para uma cultura dos sentidos, o momento de violncia infinitamente deferido, e a violncia trans forma-se em poder, que sria um potencial de ocupao ou bloqueio de espao com o corpo.

    Prosseguindo, para pensarmos um mundo da presena devemos conceber uma ideia de eventness que esta desligada de noes de inovao e surpresa. O exemplo de Gumbrecht a descontinuidade que marca o inicio da apresentao de uma orquestra. Sabemos que o concerto esta marcado para as oito horas, e embora nao ocorra surpresa ou inovao, os primeiros acordes nos atingem produzindo um efeito de eventness. Ento, o autor prossegue para a distino das ideias de brincadeira/jogo e fico. Para uma cultura do sentido, ao brincar, o homem comandado por regras, que podem ser pr-existentes ou elaboradas enquanto o jogo acontece. As brincadeiras, os jogos e a fico se opem as aes comuns porque no ha conscincia das motivaes que levam ao. Como numa cultura da presena no ha, justamente, esta ideia de motivaes conscientes que moldam a ao, no pode existir o contraste que fazemos entre a seriedade das interaes cotidianas e a brincadeira/fico.

    O autor fala sobre momentos de intensidade desencadeados pela experincia esttica. Por se interessar pela "presena", ele no liga experincia esttica nenhum outro valor alm desta intensidade. Importante, tambm, que no h nada de edificante nestes momentos, ao mesmo tempo que no h garantias de que a intensidade seja produzida (ao ouvir sua aria favori ta de Mozart, diz Gumbrecht, no certo que seja sempre possudo por uma "doura exubrante") Is to tern a ver com a ideia de Nancy, sobre presena, da quai falamos acima. O autor pergunta por que desejamos tanto estes momentos de intensidade, mesmo que eles no nos deem nada, no nos ensinem nada. A resposta sria porque eles oferecem algo que o nosso mundo cotidiano no nos da.

    Os objetos de experincia esttica nos fascinariam tanto pelo fato de contrastarem como um mundo j saturado de sentidos. Assim, o nosso principal objeto de desejo seriam justamente os fenmenos e efeitos de presena. Num mundo cartesiano - o nosso - a dimenso do sentido prdominante e constitui o ncleo de nossa autorreferncia. Por vivermos neste mundo centrado na conscincia, desejamos precisamente esta presena, algo tangvel, ou seja, no queremos apenas nos perguntar o que mais pode existir, mas, as vezes, "We seem to connect with a layer in our existence that simply wants the things of the world close to our ^///."(GUMBRECHT, 2004,p.l06).

    Rev. Let., So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, janVjun. 2009. 105

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • Podemos falar de efeitos de presena apenas porque estamos dentro de uma cultura do sentido. Quer dizer, estes efeitos estao sempre embalados ou mediados por "nuvens e acolchoados de sentido" (GUMBRECHT, 2004, p.106, traduo nossa). Para nos, praticamente impossivel no tentar 1er ou atribuir significado a esses efeitos e, assim, os objetos de experincia esttica so caracterizados por uma oscilao entre efeitos de presena e efeitos de sentido. Isto estaria proximo do que Gadamer chamou de "volume" do poema, que, alm de pedir a nossa interpretaao, a nossa leitura, pede tambm para ser "cantado". No devemos pensar os efeitos de presena ou de significado como foras complementares que do estabilidade ao objeto esttico. Ao contrario, a tensao e a oscilao entre efeitos de presena e efeitos de significado do ao objeto de experincia esttica uma certa instabilidade e inquietao.

    Se pensarmos que todo contato humano com as coisas do mundo contm um componente de sentido e outro de presena, e que a experincia esttica especifica no que nos permite viver estes componentes de forma tensionada, o peso, a fora, de um ou outro aspecto depender da materialidade do objeto. Por exemplo, diz Gumbrecht, a dimenso de sentido sera sempre dominante na leitura de um texto, mas estes mesmos textos podem trazer a presena na tipografia, no ritmo da linguagem, ou at mesmo no cheiro do papel. A msica, por outro lado, estaria mais prxima da dimenso da presena.

    Os desdobramentos do conceito de presena so muitos. Uma das principais preocupaes de Gumbrecht sua possvel assimilao por um fazer acadmico, tanto em termos de produo terica como de ensino. O carter instvel dos efeitos de presena torna esta assimilao dificil. No final do livro, o autor diz, referindo-se ao teatro No japons: "Perhaps you even begin to feel the composure that allows you to let things come, and perhaps you cease to ask what these things mean - because they just seem present and

    meaningful Perhaps you even observe how, while you ever so slowly begin to let things emerge, you become part of them." (GUMBRECHT, 2004, p.151).

    Temos aqui uma proposta que, dificilmente, poder ser assimilada pela universidade de forma ampla. Se nos tornarmos "parte das coisas", como diz o pargrafo acima, dificilmente continuaremos a produzir textos acadmicos dentro dos moldes habituais. Ou, como o autor argumenta, ele "suja suas mos" ao tentar teorizar assuntos, aparentemente, de mau gosto. Por outro lado, em defesa da educao, ele diz que, de algum modo, ensinar sempre foi sobre presena real.

    106 Rev. Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, jan./jun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • Apoesiaeocorpo

    Paul Zumthor, em artigo intitulado "Body and Performance' \ diferencia text e work. O texto o que legvel, uma unidade lingustica cujos efeitos no podem ser reduzidos soma de efeitos produzidos por diferentes partes de sua sequncia. O trabalho o que comunicvel poeticamente, e inclui a totalidade das caracteristicas da performance. A performance utiliza todos os elementos que servem para: "[...] carry and strengthen the works character and that are suited to validate its authority and its persuasive power." (ZUMTHOR, 1994, p.219).

    Zumthor diz que o espectro de possibilidades de uma performance varia de acordo com o grau de "physical energies" que estao sendo usadas. O texto escrito implica num efeito de "displaced communication", produzido pela distncia de tempo e de contexte de sua produo no momento de recepo. O poema recitado, ao contrario, "rests on the fiction of immediacf* (ZUMTHOR, 1994, p.221). Ou seja, mesmo que seja ouvido muito tempo depois de ter sido escrito, ele ganha uma existncia imediata atravs da escuta. Enquanto o texto escrito descreve, diz Zumthor (1994, p.221), o texto recitado "proves by showing'. E, ainda, apenas o som e a presena fisica podem realizar o que foi escrito. Ao ser recitado, o texto desloca- se do autor e ganha uma autonomia. Quem ouve, no pode voltar atrs, e portanto a linguagem ganha um carter imediato, mais ainda: "it gains a transparency of its own linguistic existence" (ZUMTHOR, 1994, p.221). Para alm dos objetos e significados ao qual o texto se rfre, a palavra falada aponta para o indescritivel. A palavra falada simultaneamente narrao e comentario. Isto se da dentro de um contexto similar a um jogo, e, segundo Zumthor, fica manifesto um desejo de se liberar dos limites do sistema da lingua para se perder em sua pura imediatez.

    Estudioso da Idade Mdia, Zumthor nos mostra como os efeitos de repetio da poesia oral estavam no contexto de um mundo onde o sagrado esta ligado msica de ciclos csmicos. Ou seja, o ritmo criado nestes recitais de poesia estaria em harmonia com este contexto maior, e teriam como principal preocupaao no a representaao, mas a produo de uma presena. Isto, sem dvida, nos remete cultura da presena tal como esboada por Gumbrecht. importante ressaltar que esta harmonia produzida por ritmos criados pelo homem, para Zumthor (1994, p.224), uma harmonia concreta.

    This harmony is concrete. It arises from the movement of visible things, from the body of mankind itself whose rhythms and oscillations are the measure of all things [...] and from the "consonance" of sounds, movement, and modulations.

    Nos momentos da performance desta poesia oral, a realidade estaria temporariamente suspensa. A voz sria o instrumento mais importante deste jogo

    Re* Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, janVjun. 2009. 107

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • potico, pois, com a voz, a declamao se torna msica, diferenciando-se do fluxo de sons e palavras, tornando-se um evento. Mas a voz esta funcionalmente ligada ao gesto, que projeta o corpo no espao da performance. A voz falada no existe num contexto simplesmente verbal, como a escrita, e necessariamente pertence a uma situao existencial, cuja totalidade colocada em jogo atravs dos corpos dos participantes. O gesto teria um certo poder de expandir a palavra, e a linguagem do gesto sria tambm a linguagem da respirao, como se fosse uma rserva pr- lingustica. Para Zumthor (1994, p.226), o gesto de certa forma determinava a natureza dos textos, e mais: "Along nnth the voice, gesture helps to fix the meaning of the text. It might be what makes it possible to begin with?

    Este texto de Zumthor nos abre toda uma perspectiva da poesia que possibilita que nos guiemos por sua concretude, no nos restringindo a uma leitura semntica dos textos. Porm, sua leitura parte da poesia oral, e conta com a voz e o gesto como elementos fundamentais na composiao deste volume potico. De alguma forma, penso que mesmo na poesia escrita, mesmo no momento de uma leitura solitria e silenciosa, a poesia e, provavelmente, toda a literatura, capaz de produzir efeitos similares de presena. Ao contrario do que afirma Zumthor em certo momento, que a palavra escrita existe simplesmente no contexto verbal, possivel que ela crie ritmos, msica, mesmo que esta s seja "ouvida" silenciosamente. Mesmo escrita, a palavra tambm esta ligada "msica dos ciclos csmicos".

    Som e sentido, sentido e som: o pndulo No texto "Cruz e Sousa e sua orquestra", Paulo Leminski (1990, p.55), de forma

    bem particular, faz uma brve histria da poesia. Ele coloca em foco a relao entre msica e poesia. Cito o trecho inicial do texto, que de alguma forma o resume:

    Bernois e sustenidos tm sido as relaes entre a poesia escrita e a msica. Ora meio torn baixo, no tema do sentido. As vezes, meio torn acima. A lrica do Ocidente (a partir dos trovadores provenais da Idade Mdia) um progressivo afastamento do texto e da msica que o acompanhava. Com a imprensa, a letra de msica emudeceu na pagina branca. E virou poema. Que sempre foi lido, como sentido. E nao enquanto forma. Enquanto lindo. A beleza foi recuperada, na modernidade das vanguardas do sculo XX, com a conscientizao da materialidade da linguagem escrita. Descobriu-se a letra: enquanto corpo, enquanto carne, enquanto X.

    Sera que a "materialidade" da poesia a favor da quai venho argumentando sria exclusiva das "vanguardas poticas", como diz Leminski? Sera que o que estamos

    108 Rev. Let., So Paulo, v.49, n.l, p.101-1 15, jan./jun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • tentando pensar como "produo de presena" da poesia sria uma caracteristica sua restrita a certa produo moderna de poesia, ligada ao surgimento da imprensa? Embora ainda nao nos seja possivel responder a esta pergunta, percebo uma

    aproximao entre a letra enquanto corpo, ou carne, por Leminski, e a necessidade de coisas que estejam "close to our skitf\ como di2 Gumbrecht, sobre o desejo por presena. Leminski (1990, p.57) diz tambm que "Nunca foi to funda a saudade da

    poesia pela msica perdida quanto no simbolismo", ou seja, mesmo o poema escrito, no declamado, pode ser musical, e suscitar em nos efeitos que vo alm do verbal. Cito Leminsky (1990, p.57): "A mtrica, em poemas escritos para serem lidos no

    papel, um absurdo: o olho no ouve msica. Ou ouve? Os simbolistas (a partir de

    Baudelaire) achavam que sim."

    As reflexes de Roman Jakobson acerca da funo potica podem nos ajudar a destrinchar mais a relao entre som e sentido, forma e contedo. Quando Jakobson diz que a funo potica promove o carater palpvel do signo, podemos dizer tambm que ela cria um "volume". Segundo Jakobson, no produtivo tentar encontrar uma mensagem verbal que preencha uma nica funo de linguagem; as diferentes mensagens seriam definidas pelo peso dado a uma ou outra funo.

    possivel estabelecer um paralelo entre esta noo e a ideia de Gumbrecht de que no possivel, por exemplo, encontrar uma cultura que seja unicamente de presena, ou uma obra de arte que produza apenas efeitos sensoriais.

    A funo potica aquela em que o que mais pesa o enfoque dado mensagem enquanto tal. A poesia o dominio onde "[...] o nexo interno entre som e significado se converte de latente em patente e se manifesta de forma a mais palpvel e intensa."

    QAKOBSON, 1970, p.153). Diriamos que este "nexo interno" tem uma relao com a tenso/oscilao entre efeitos de sentido e efeitos de presena no acontecimento esttico grumbrechtiano. Em outro momento, Jakobson (1970, p. 144) cita Paul

    Valry quando este diz: "poesia hesitao entre som e sentido", que outro modo de falar da oscilao.

    Se formos ao texto de Paul Valry (2007, p.205) chamado "Poesia e pensamento abstrato" encontramos uma imagem que vale a pena ser citada, pois reprsenta bem este movimento entre sons e sentidos:

    Gostaria de lhes dar uma imagem simples. Pensem em um pndulo oscilando entre dois pontos simtricos. Suponham que uma dessas posies extremas reprsenta a forma, as caracteristicas sensiveis da linguagem, o som, o ritmo, as entonaes, o timbre, o movimento - em uma palavra, a Vo% em ao. Associem, por outro lado, ao outro ponto, ao ponto conjugado do primeiro, todos os valores significativos, as imagens, as idias; as excitaes do sentimento e da memria, os impulsos virtuais e as formaes de compreenso - em uma palavra, tudo que constitui o contedo, o sentido de um

    Rev. Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-1 15, jan./jun. 2009. 109

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • discurso. Observem ento os efeitos da poesia em voces mesmos. Acharo que, em cada verso, o significado produzido em voces, longe de destruir a forma musical comunicada, reclama esta forma. O pndulo vivo que desceu do som em direo ao sentido tende a subir de novo para o seu ponto de partida sensivel, como se o prprio sentido proposto nao encontrasse outra saida, outra expresso, outra resposta alem da prpria msica que o originou.

    Embora seja dificil imaginar a simetria total entre som e sentido, temos bem representada a noo de um movimento entre diferentes polos, e este ir e vir como produtor de efeitos. No texto La nouvelle posie russe, Jakobson (1973a, p. 14) diz que as linguagens emocionais e poticas jogam sobre elas mesmas uma maior ateno, e por isso, "[...] le language devient plus rvolutionnaire, puisque les associations habituelles de contigut passent l'arrire-plan" A poesia a linguagem em sua funao esttica, diz o au tor no mesmo texto. Na poesia, a funao comunicativa da linguagem se v reduzida ao minimo. O autor aponta para diversos procedimentos da poesia que tornam a linguagem uma linguagem potica. Estes processos podem tanto ser semnticos como fonticos. Semnticos so o paralelismo, a comparao, a metamorfose (paralelismo projetado no tempo) e a metfora (paralelismo reduzido a um ponto). Fonticos so os efeitos de rima, assonncia, aliterao (ou repetio). A acumulao de certos fonemas, ou "[...] a reunio contrastante de duas classes opostas na textura sonora de um verso [...] funciona como uma corrente subjacente de significado." (JAKOBSON, 1970, p. 153). Jakobson nos mostra, por uma srie de exemplos retirados de diversos poemas, como que o nexo entre significante e significado no parece arbitrrio na poesia (sua anlise de The Raven, de Edgar Allan Poe, exemplar ns te sentido). E conclui:

    Em poesia, qualquer similaridade notavel no som avaliada em funao de sua similaridade e/ou dessemelhana no significado. Mas o preceito aliterativo de Poe aos poetas - "o som deve ser um Eco do sentido" - tem aplicao mais ampla. [...] O simbolismo sonoro constitui uma relao inegvelmente objetiva, fundada numa conexo fenomenal entre diferentes modos sensoriais, em particular entre a experincia visual e auditiva. (JAKOBSON, 1970, p.153).

    Na linguagem cotidiana, a forma da palavra esta morta, pois nela a associaao entre som e sentido por demais habituai, corriqueira. Na poesia, esta associaao mecnica entre um e outro esta reduzida ao minimo. A criao de neologismos, por exemplo, reanimaria afixos mortos, nos obrigaria a perceber a forma. As palavras na linguagem potica, tanto fontica quanto semanticamente, estariam deformadas a tal ponto em relaao linguagem cotidiana que seus neologismos no podem designar nenhum objeto conhecido. Arrisco-me a pensar que esta ateno renovada forma

    110 Rev. Let., So Paulo, v.49, n.l, p. 101-1 15, janVjun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • que a poesia proporciona sria, talvez, a criao de uma materialidade, de uma proximidade entre homem e mundo que estaria perdida no mundo demasiadamente da conscincia em que vivemos. Como se as palavras, normalmente associadas ao reino dos sentidos e das ideias, exigissem para si novamente fazer parte de um ritmo csmico, mais prximas da msica do que de conceitos. Jakobson (1973a, p.23) observa como na poesia de Khlebnovov (um poeta russo) ocorre um procedimento de "mise en sourdine de la signification et la valeur autonome de la construction euphonique" E, mais adiante, ele fala de como na histria da poesia de todos os tempos e de todos os paises pode- se observar poetas para quem "seul importe le son". A linguagem potica tenderia, no seu limite, em direo eufonia3.

    Outro efeito do potico sria a violncia. No artigo Principes de versification, (JAKOBSON, 1973b) lemos que de nada vale uma teoria do verso pela quai o verso se adqua perfeitamente ao espirito da lingua - onde no haveria resistncia da forma ao material. Ele se diz a favor de uma teoria na quai a forma potica exerce uma violncia organizada sobre a lingua. E, mais adiante, no mesmo texto, o autor fala de ondas respiratrias, observando que a poesia interfere no processo automtico de expiraao, durante o discurso. O ritmo potico um meio de tirar a fala para fora de seu estado automtico; ele impe um outro tempo ao discurso, e o transforma subjetivamente. Para Jakobson, a poesia simplifica as relaes entre quantidades de silabas, ela ralenta o ritmo para dar mais fora aos efeitos ritmicos, e alonga s sflabas, e ainda mais as vogais, valorizando o timbre. A poesia simplifica e torna regular a entonaao.

    Jakobson pensa que a versificao nunca pode ser inteiramente deduzida da lingua em questo. A versificao o "unconnue^\ A escolha histrica des ta ou daquela soluo, dentro das sries de solues imaginveis, se da por conta de fenmenos situados fora dos limites da fontica, ou seja, esta relacionada com uma tradio esttica, a atitude de uma corrente potica em relaao tradio e influncias culturais. Porm, diz o autor, ha limites para a violncia exercida pela forma ao material, pois alm de certo ponto a violncia se torna intolervel. E ainda, acrescenta, "[...] ilj a plusiers solutions et non pas ncessairement une seule" (JAKOBSON, 1 973b, p.54), e entre as diversas solues, algumas so mais violentas com a linguagem do que outras.

    Pensando nesta resistncia da forma ao material, podemos retornar ao ponto em que Gumbrecht fala sobre experincia esttica e epifania. Na epifania haveria o

    3 Em artigo posterior, Jakobson abandona o termo "eufonia": "Dans mon article sur 'La nouvelle posie russe', j'entendais souligner cette diffrence fondamentale entre la phontique de la langue pratique et celle de la langue potique en utilisant deux termes diffrents: phontique et euphonie. Mais puisque ce dernier terme entrane des malentendus, en provoquant des association incorrectes (par exemple, Kroutchenykh dans son livre Les Transmentalistes, Moscou, 1922, met dans ce terme l'ide d'agrment sonore) je prfre n 'en plus faire du tout usage" (JAKOBSON, 1973b, p.41).

    Rev. Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, jan./jun. 2009. 1 1 1

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • evento de uma substncia ocupando espao, e este evento sria violento na medida em que ocupa e bloqueia nossos corpos. Com a funo potica, pensamos, a lingua tambm pode ganhar este carter violento, no sentido que transgride a sua substncia habitual, produzindo uma nova forma de ocupar o espao, uma nova presena.

    Traduo ou Transluciferao Mefistofustica

    As teorias de traduo apresentadas por Haroldo de Campos, na medida em

    que levam em considerao o carter material da lingua, nos possibilitam aproximar a ideia da presena de Gumbrecht de um pensamento sobre a traduo de poesia. Parece-nos que, em certa medida, o tradutor consegue responder ao autor alemo

    quando este diz que a critica literria nunca foi capaz de reagir nfase que a poesia d aos aspectos formais. Como veremos, Campos, ao traduzir, nunca deixa de lado a msica, e suas tradues esto sempre preocupadas com um certo andamento musical da poesia. Ao mesmo tempo, ha na tarefa de traduzir um olhar atento

    para "efeitos de sentido", e, ao menos nas tradues de Goethe que Haroldo de

    Campos apresenta, ha uma preocupao com a tradio, e com a srie de camadas

    interpretativas do texto. A traduo de poesia nos coloca face a face - ou num corpo a corpo - direto com a tenso entre presena e sentido. Talvez por ter como meta a produo de um outro "volume" potico, a traduo, mais do que outras prticas, leituras ou teorizaes sobre poesia, se dpare, sem escapatria, com a questo da presena. Vejamos agora, com um pouco mais de detalhe, quai a "tarefa do tradutor" para Haroldo de Campos (1967, p.24):

    Entao, para nos, traduo de textos criativos sera sempre recriao, ou criao paralela, autnoma porm redproca. Quanto mais inado de dificuldades esse texto, mais recrivel, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriao. Numa traduo dessa natureza no se traduz apenas o signifcado, traduz-se o prprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma [...]. O significado, o parmetro semntico, sera apenas e to-somente a baliza demarcatria do lugar da empresa recriadora.

    Alm desta tarefa de traduzir "o prprio signo, sua fisicalidade", o tradutor

    quer o torn, o tonus do original. Por exemplo, Campos cita Boris Pasternak, dizendo

    que Rilke desconhecido em portugus porque suas tradues no foram felizes, pois os tradutores "[...] esto habituados a traduzir o significado e no o torn do que dito." (CAMPOS, 1967, p.26). De outro modo, pode-se dizer que para Campos os tradutores esto muito preocupados com os efeitos de sentido, esquecendo os efeitos de presena do poema. Como traduzir o torn? Como traduzir a presena?

    112 Rev. Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, jan./jun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • Para Campos, trata-se de uma leitura "verdadeiramente critica". Traduzir 1er com uma ateno especial. No apenas leitura, mas "[...] antes de tudo uma vivncia interior do mundo e da tcnica do traduzido." (CAMPOS, 1967, p.31). Trata-se de fazer uma "vivisseco implacvel", de revolver as entranhas do poema. No texto "Da traduo como criao e critica", de 1967, alm de revelar sua linhagem poundiana, Campos (1967, p.24) afirma que a traduo potica deve transcender a preocupao de fidelidade ao significado, para conquistar uma fidelidade ao signo esttico "como entidade total, indivisa, na sua realidade material". E, ainda, o autor enfatiza que o a preocupao com o suporte fisico deve "tomar as dianteiras nas preocupaes do tradutor", o que, ao meu ver, lembra bastante quando Gumbrecht diz que no se trata de abandonar a interpretao dos sentidos, apenas no deixar que este aspecto fique sempre a frente ao lidarmos com textos.

    No texto "Transluciferao mefistofustica", bem mais rcente, de 1980, Haroldo de Campos labora com mais detalhes uma teoria da traduo como transcriao. Ele critica as tradues comuns, tanto as mediadoras, "que outra coisa no visam seno util tarefa de auxiliar a leitura do original", quanto as medianas, "que guardam da aspirao esttica apenas as marcas externas de um dado esforo de versificao [...] e de um deliberado empenho rmico." (CAMPOS, 1980, p.184). O que ele quer a "leitura partitural". Esta traduo vai buscar o que configura a funo potica no texto de partida para reinscrev-lo, como poema transcriado, como "re-projeto isomrfico do poema originrio".

    No desejamos, aqui, nos estender tanto no projeto esttico de Campos, tampouco mostrar em detalhes as nuances e justificativas para cada proposta de transcriao de trechos do Fausto de Goethe. Apenas gostariamos de salientar que as escolhas de Campos, em oposio ao que ele chama de traduo convencional, esto sempre pautadas por uma visada do poema enquanto som e sentido. Is so define o modo pelo quai ele se insre na tradio. Trata-se de um trabalho microscpico e exaustivo, que por vezes requer uma grande erudio. O poema traduzido vai buscar correspondncias visuais, sonoras, fonticas e semnticas. E claro, este processo envolve perdas e, consequentemente, compensaes por estas perdas. Em todo caso, uma traduo que no quer se afundar no "cerimonial museolgico do versejar acadmico" (CAMPOS, 1980, p. 190), ou seja, no quer ficar soterrada por camadas interpretativas, embora seja tambm um dilogo com o original, um canto paralelo. Profundamente ligada tradio, a traduo "labora em palimpsesto" (CAMPOS, 1980, p. 192), mas no "piedosa nem memorial" com o original.

    Transcriao, mistranslation^ traduo criativa, coreografia da dana das linguas, transluciferao: diferentes nomes para uma mesma prtica de traduo que no perde de vista que "palavras ligadas por som e sentido manifestam 'afinidades

    Rev. Let, So Paulo, v.49, n.l, p.101-1 15, janVjun. 2009. 1 1 3

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • eletivas', capazes de modificar a conformao e o conteudo das palavras envolvidas." (CAMPOS, 1980, p.181).

    Consideraes finais

    Meu desejo era tentar aprofundar o que Hans Gumbrecht diz sobre efeitos de sentido e efeitos de presena em relaao poesia. Depois, tentei ver como a proposta de transcriaao de Haroldo de Campos poderia dialogar com estes efeitos.

    Acho que ambas as leituras tm um forte trao em comum: uma ateno especial ao carter musical, materialidade da poesia. Porm, talvez, por tratar da criao de um outro texto (o texto traduzido), diferente da quietude, ou do close to our skin, que a produo de presena gumbrechtiana deseja, traduzir talvez passe por este momento de silncio, mas no pode parar nele. Ou seja, traduzir envolve uma atenao tanto aos efeitos de presena quanto aos efeitos de sentido de um texto.

    Gumbrecht valoriza um certo "tornar-se parte das coisas" e, talvez, o tradutor tambm tenha que tornar-se, ou se deixar tornar, parte da poesia. Como diz Campos (1967, p.35), a traduo exige uma "dedicao amorosa e pertinaz", mas , ao mesmo tempo, "labor altamente especializado". Inserida na tradio, embora de forma no- servil, a traduo de poesia movimenta-se num terreno complicado, pois vai tentar reproduzir efeitos de presena, intensidades, que, a principio, como diz Gumbrecht, nao ensinam nada, no servem como um apoio. Por isso, sera preciso trabalhar com as "entranhas" do poema, esmiuar sua mquina potica, e as diferentes peas que formam esta mquina. Porm, neste processo, o tradutor no pode se deixar afogar por camadas interpretativas, aspectos semnticos do texto; ele prcisa tambm man ter o texto proximo sua pel. Talvez possamos retomar a imagem do pndulo de Paul Valry, pois me parece que o tradutor de poesia prcisa tomar o lugar do pndulo, movendo-se, com agilidade e sabedoria, entre som e sentido, sentido e som.

    BASTOS, B. C. Poetry and Translation: about 'Presence'. Revista de Letras, So Paulo, v.49, n.l, p.101-115, Jan./ June 2009.

    ABSTRACT: The first part of this work is dedicated to Hans Ulrich Gumbrecht 's notion

    of presence. Presence is related to the material and bodily aspect of an aesthetic object. We have tried to bring this concept into a discussion about poetry and translation by means of a criticism of readings aimed only at finding meanings and interpreting the poems. Taking as a

    startingpoint the assumption that in poetry there is somewhat presence, it is necessary therefore to translate not only its meaning, but also its rhythm, its music, its rhymes, in other words,

    114 Rev. Let., So Paulo, v.49, n.l, p.101-1 15, janVjun. 2009.

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

  • everything that constitutes a poem. We have also brought into this discussion a reading of Paul Zumthor with the aim of better elaborating the question of performance in poetry. After that t in a deeper elaboration of the relations between sound and meaning, Roman Jakobson 's

    thought on the poetic function is also discussed. As a conclusion we have brought Haroldo de

    Campos ' thought on translation in a perspective that, once more, emphasises the material

    aspect of the poem.

    KEYWORDS: Poetry. Translation. Presence. Effects of presence. Effects of meaning.

    REFERNCIAS

    CAMPOS, H. de. Transluciferao mefistofustica. In: .Deus e o Diabo no Fausto de Goethe: marginalia fustica. So Paulo: Perspectiva, 1980. p. 179-209.

    . Da traduao como criao e como critica. In: . Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e critica literria. Petrpolis: Vozes, 1967. p.21-38.

    GUMBRECHT, H. U. Productions of presence what meaning cannot convey. Stanford, Stanford University Press, 2004.

    JAKOBSON, R. Fragments de cla nouvelle posie russe. In: . Questions de Potique. Paris: Editions du Seuil, 1973a. p.11-24.

    . Principes de versification. In: . Questions de Potique. Paris: Editions du Seuil, 1973b. p.40-55.

    . Lingistica e comunicao. Traduao de Isidoro Blikstein e Jose Paulo Paes So Paulo: Cultrix, 1970.

    LEMINSKI, P. Cruz e Sousa e sua orquestra. In: . Vida: Cruz e Sousa, Bash, Jesus e Trotski. Porto Alegre: Sulina, 1990. p.55-57.

    VALRY, P. Poesia e pensamento abstrato. In: . Variedades. So Paulo: Iluminuras, 2007. p. 193-210

    VELOSO, C. Livros. In: . Livro. Rio de Janeiro: Polygram, 1997. 1 CD. Faixa 2.

    ZUMTHOR, P. Body and Performance. In: GUMBRECHT, H. U; PFEIFFER, K. L. (Org.). Materialities of communication. Stanford: Stanford University Press, 1994. p.21 7-226.

    Rev. Let., So Paulo, v.49, n. 1 , p. 1 0 1 - 1 1 5, jan./jun. 2009. 1 1 5

    This content downloaded from 200.145.114.22 on Mon, 01 Jun 2015 23:38:44 UTCAll use subject to JSTOR Terms and Conditions

    Article Contentsp. 101p. 102p. 103p. 104p. 105p. 106p. 107p. 108p. 109p. 110p. 111p. 112p. 113p. 114p. 115

    Issue Table of ContentsRevista de Letras, Vol. 49, No. 1 (Jan. - Jun., 2009) pp. 1-160Volume InformationFront MatterApresentao [pp. 7-8]A (re)criao do idioleto manoels / The Re-creation of the Manoels Idiolect [pp. 9-27]Traduzindo La Corona, de John Donne / Translating La Corona, by John Donne [pp. 29-46]Grimorio: a traduo nos limites de "Prosa" / Grimorio: Translation on the Boundaries of 'Prose' [pp. 47-54]Um tradutor italiano no Brasil do sculo XIX e suas consideraes sobre o ato de traduzir / An Italian Translator in XIXth century Brazil and His Reflections on the Act of Translating [pp. 55-70]O paradoxo do passarinho peralta / The Paradox of the Prankish Little Birdie [pp. 71-78]O pintor e o Poeta Olavo Bilac Como Tradutor De Histrias Ilustradas Infantis / The Painter and the Poet: Olavo Bilac as a Translator of Children's Illustrated Stories [pp. 79-99]Poesia e traduo: Sobre 'Presena' / Poetry and Translation: About 'Presence' [pp. 101-115]Traduo e tradio Maxakali / Translation and the Maxakali Tradition [pp. 117-135]Do catalo ao Portugus: Joo Cabral tradutor / From Catalan to Portuguese: Joo Cabral Translator [pp. 137-149]Back Matter