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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
SHEILA PAULINO E SILVA
Phronesis e Noesis em Platatildeo
A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico
Versatildeo Corrigida
Satildeo Paulo
2016
Prof Dr Roberto Bolzani Filho
SHEILA PAULINO E SILVA
Phronesis e Noesis em Platatildeo
A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico
Versatildeo Corrigida
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Filosofia do
Departamento de Filosofia da Faculdade
de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
da Universidade de Satildeo Paulo para a
obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutora em
Filosofia sob orientaccedilatildeo do Prof Dr
Roberto Bolzani Filho
2016
Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte
Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
Silva Sheila Paulino e Silva
Phronesis e Noesis em Platatildeo A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico Sheila Paulino e Silva Silva orientador Roberto Bolzani Filho Bolzani - Satildeo Paulo 2015
245 f
Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia Letras
e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia
1 PLATONISMO 2 FILOSOFIA GREGA 3 RACIOCIacuteNIO
(PENSAMENTO) 4 DIAgraveLOGOS 5 586 I Bolzani Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo
1
Para os meus pais
Dona Claudineacuteia e Sr Valter os quais
sem saberem ensinaram-me a
importacircncia de questionar sempre
2
Agradecimentos
Meus francos agradecimentos ao meu orientador Prof Dr Roberto Bolzani Filho
pela oportunidade
Aos Professores Francis Wolff da Eacutecole Normale Superieacuteure- Paris pela preciosa
orientaccedilatildeo e Dimitri El Murr da Universiteacute de Paris I pela generosa acolhida
Pela gentil e orientadora arguiccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo meus
agradecimentos agrave Professora Eliane Christina de Souza (UFSCAR) e Marco Antocircnio
Zingano (USP)
Aos professores Prof Dr Daniel Rossi Nunes Lopes e Prof Adriano Machado
Ribeiro pelo diaacutelogo em aulas e corredores
Aos colegas e professores dos estudos claacutessicos com os quais muito pude
aprender nos grupos de estudos Maria Eduarda Oliveira Prof Dr Andreacute Malta
Vicente de Arruda Sampaio e especialmente ao colega e professor de liacutengua grega
Maacutercio Mauaacute Chaves Ferreira por emprestar inteligecircncia e entusiasmo
Ao pessoal da secretaria Maria Helena Mariecirc Luciana Geni e Susan
Meu muito obrigado aos amigos Deborah Akemi Leila Andreacute Mayra Marina
Rineu Quinaglia e Prof Dr Thomaz Kawauche Agrave minha matildee irmatildeos e agrave Nina
A realizaccedilatildeo desta pesquisa natildeo seria possiacutevel sem as bolsas de estudos que me
foram concedidas a bolsa de doutorado do Conselho Nacional de Pesquisa ndash CNPQ a
qual garantiu que eu pudesse me dedicar exclusivamente a esta pesquisa e a ldquobolsa-
sanduiacutecherdquo concedida pela Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel
Superior ndash CAPES imprescindiacutevel para a realizaccedilatildeo dos estudos em Paris
3
RESUMO
SILVA S P Phronesis e Noesis em Platatildeo - A Excelecircncia do Pensamento Filosoacutefico
2015 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015
Pretende-se averiguar neste trabalho a concepccedilatildeo de pensamento ou
inteligecircncia que os diaacutelogos A Repuacuteblica VI e VII e Feacutedon apresentam Trata-se de
pontuar a partir da anaacutelise das questotildees que envolvem o trabalho cognitivo da alma
mais precisamente os temas sobre o conhecimento a reminiscecircncia o meacutetodo dialeacutetico
e a apreensatildeo das ideias a concepccedilatildeo de excelecircncia da racionalidade que o pensamento
filosoacutefico sugere Dada a hipoacutetese de que os diaacutelogos oferecem uma visatildeo de aquisiccedilatildeo
de superioridade da alma visatildeo coincidente em muitos aspectos tem-se a sugestatildeo do
pensar nos termos de atividade e de estado igualmente superiores ou excelentes no
qual se tem a plena realizaccedilatildeo das capacidades racionais O cerne da pesquisa consiste
em verificar na descriccedilatildeo da atividade filosoacutefica o que caracteriza a inteligecircncia e obter
uma compreensatildeo acerca desse trabalho do pensamento em sua maacutexima capacidade o
qual se desenvolve na busca do conhecimento que possa dizer acerca das questotildees mais
importantes como o Bem e a imortalidade
Palavras-chave inteligecircncia excelecircncia superaccedilatildeo filoacutesofo
4
ABSTRACT
SILVA S P θξόλεζηϛ and Nόεζηϛ in Plato ndash The Excelence of Philosophic Thought
2015 Thesis (Doctoral) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas
Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2015
It is intended to investigate in this paper the concept of thought or intelligence
that is presented in the dialogues Republic VI and VII and Phaedo It concerns to point
out from the analysis of the issues surrounding the cognitive work of the soul more
precisely the themes about knowledge the reminiscence the dialectical method and the
apprehension of ideas the concept of the excellence of rationality that the philosophical
thought suggests Given the hypothesis that the dialogues offer a view on acquisition of
superiority of the soul coinciding view in many aspects there is the suggestion of
thinking in terms of activity and state equally superior or excellent in which one has the
full accomplishment of the rational capacities The research core consists in verifying
the description of philosophical activity which characterizes the intelligence and
acquiring an understanding of this work of the thought in its full capacity which
develops in the pursuit of the knowledge that can tell about the most important issues
such as Good and immortality
Key-Words intelligence excellence resilience philosopher
5
Lista de abreviaturas
A Repuacuteblica = Rep
Feacutedon = Fed
Meacutenon = Men
Teeteto = Teet
Fedro = Fedr
Livro ou livros = Liv
6
Sumaacuterio
Parte I A Repuacuteblica
Introduccedilatildeo 8
I A Excelecircncia do Filoacutesofo 15
11 O filoacutesofo governante 16
12 A melhor parte da alma 19
13 O Conhecimento dos valores 23
14 O objeto de desejo do filoacutesofo 30
15 A postura intelectual 33
II A Cogniccedilatildeo 37
21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem 37
22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento 41
23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios 51
24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel 56
III Atividade Inteligente 63
31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα 65
32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ 76
33 A funccedilatildeo da dialeacutetica 83
34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo 89
IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento 93
41 Operaccedilotildees e regras do pensamento 93
42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma 101
43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο 105
44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ 110
45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel 117
V A perspectiva da inteligecircncia 125
Conclusotildees sobre a λόεζηϛ 133
Parte II Feacutedon
7
I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel 139
11 O filoacutesofo agrave beira da morte 139
12 O pensar e o estado de morte 142
13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro 146
14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva 157
II A natureza inteligiacutevel 161
21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva 161
22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο 173
23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia 176
24 Distinccedilotildees entre alma e corpo 181
25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο 183
III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico 190
31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο 193
32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο 198
33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico 204
IV Atividade do puro pensamento 208
41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa 209
42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese 211
43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento 214
Conclusotildees sobre a θξόλεζηο 219
Conclusatildeo geral 222
Bibliografia 224
8
Introduccedilatildeo
O que eacute o pensamento Antes de se embrenhar na questatildeo que motivou esta
pesquisa eacute necessaacuterio se dispor a seguir os caminhos ora tortuosos que os textos
colocam para o seu leitor Deve-se dizer que essa natildeo eacute uma questatildeo formulada nesses
termos com este enquadramento aparentemente direto mas erige e tem suas resoluccedilotildees
na medida do que pede o tratamento do assunto tema de cada diaacutelogo Talvez agrave exceccedilatildeo
do Teeteto diaacutelogo o qual apresenta a necessidade de discernir acerca do trabalho
intelectual em oposiccedilatildeo agraves sensaccedilotildees para defender a razatildeo como faculdade cognitiva1 e
do Sofista onde Platatildeo se obriga a responder acerca da possibilidade do falso e desse
modo mostrar a saiacuteda para um loacutegos verdadeiro2 as indagaccedilotildees sobre a atividade do
pensamento eacute dada na maioria das vezes como um questionamento sobre o proacuteprio
exerciacutecio intelectual No desenrolar do exerciacutecio dialoacutegico incontornavelmente os
dialogantes se deparam e precisam em alguma medida pontuar algo acerca do
exerciacutecio racional para dar prosseguimento agrave investigaccedilatildeo
Embora postas nesses termos natildeo se deve concluir que sua importacircncia eacute
deixada em segundo plano Ao contraacuterio trata-se de uma questatildeo pela qual todas as
outras em anaacutelise ganharatildeo legitimidade e revelaratildeo seu fundamento filosoacutefico Sem a
certeza de o diaacutelogo ou no sentido mais teacutecnico o meacutetodo dialeacutetico constituir de fato
uma atividade cognitiva de onde se pode apreender algum conhecimento ou sem a
seguranccedila de seus resultados como conclusotildees vaacutelidas a inquiriccedilatildeo do filoacutesofo natildeo
alcanccedilaria seus objetivos e a investigaccedilatildeo filosoacutefica seria inoacutecua
Os aspectos da atividade do pensar tal como as vaacuterias concepccedilotildees que se pode
ter acerca dele satildeo dadas concomitantemente agraves indagaccedilotildees e respostas que compotildeem o
diaacutelogo filosoacutefico Parece natildeo fazer sentido mostrar o pensar senatildeo em sua atuaccedilatildeo De
fato natildeo parece apropriado tomar o pensamento como uma entidade ou instacircncia
1 Teeteto 189e ldquoMas por pensar entendes a mesma coisa que eurdquo Teeteto trad Carlos Alberto Nunes
Ed UFPA 2001 3a ediccedilatildeo
2 Sofista 263d9-e1 ldquo- E entatildeo natildeo eacute evidente desde jaacute que o pensamento a opiniatildeo a imaginaccedilatildeo satildeo
gecircneros suscetiacuteveis em nossas almas tanto de falsidade como de verdade () Compreenderaacutes mais
facilmente a razatildeo se me deixares explicar em que eles consistem e em que diferem um dos outrosrdquo
Sofista Trad Jorge Poleikat e Joatildeo Cruz Costa Ed Abril Cultural 1972
9
independente ainda que muitas vezes seja inferido e analisado de modo destacado tal
como sugerem as divisotildees e classificaccedilotildees da linha no Livro VI d‟A Repuacuteblica3 e a
formulaccedilatildeo de pensamento puro no Feacutedon4 Tais ocorrecircncias se datildeo a meu ver segundo
o foco narrativo e o contexto em que se daacute ecircnfase agrave atividade mais nobre da alma
Parece plausiacutevel supor que Platatildeo talvez adote como estrateacutegia natildeo perguntar acerca da
racionalidade nesses termos por preferir chamar toda a atenccedilatildeo evidentemente para o
tema eleito Ou ainda eacute possiacutevel conjecturar que a opccedilatildeo de dedicar um diaacutelogo para
responder exclusivamente a esta questatildeo obrigaria o filoacutesofo a acomodar ou a encaixar
subordinadamente os demais temas agraves definiccedilotildees ali atribuiacutedas como uma peccedila nuclear
que faz funcionar as outras que integram um sistema perfeito - concepccedilatildeo de conjunto
que diga-se de passagem parece estar longe de ser aquela que se pode encontrar nos
diaacutelogos O tema do pensamento mais precisamente da racionalidade em seu modo
mais alto mostra assim suas caracteriacutesticas de acordo com o que pede a questatildeo pois
sua realizaccedilatildeo enquanto capacidade se daacute com o desenrolar da investigaccedilatildeo
A polissemia que se atribui aos termos λόεζηϛ e θξόλεζηο demonstram tal
complexidade Ambos assumem ao longo das explanaccedilotildees vaacuterios sentidos ganhando
assim diversas traduccedilotildees tais como saber razatildeo bom senso de acordo com a tocircnica e
com o argumento em que se analisam as questotildees propostas De maneira parecida a
traduccedilatildeo por conhecimento parece seguir a coerecircncia do contexto expondo junto com as
questotildees acerca do pensar em seu grau de excelecircncia a tese sobre o verdadeiro
conhecimento Tais nuanccedilas de sentido quando consideradas propotildeem uma
interpretaccedilatildeo sobre a passagem e sobre o proacuteprio pensamento que muitas vezes vai aleacutem
da reafirmaccedilatildeo da concepccedilatildeo de conhecimento e de inteligecircncia Natildeo se trata
evidentemente de tentar fixar um sentido para cada termo que designa uma atividade
intelectual tampouco considerar as distinccedilotildees que os textos oferecem sobre o pensar um
exerciacutecio a fim de precisar uma nomenclatura Vale a pena verificar o sentido que
Platatildeo parece atribuir ao termo e ao mesmo tempo o que se pode apreender da questatildeo
com essa atribuiccedilatildeo5 Desse modo natildeo se deve admirar as vaacuterias perspectivas em que
ele eacute dado e a evoluccedilatildeo de seu refinamento no interior dos diaacutelogos e na aproximaccedilatildeo
3 As citaccedilotildees do texto seratildeo realizadas a partir da ediccedilatildeo brasileira Platatildeo A Repuacuteblica tradduccedilatildeo Anna
Lia Amaral de Almeida Prado Martins Fontes Satildeo Paulo 2006
4 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizar-se aacute Platatildeo Feacutedon traduccedilatildeo Maria Teresa Schiappa de Azevedo
Imprensa Oficial UNB 2000 5 Platatildeo esclarece ao fim do Livro VII a verdadeira intenccedilatildeo ao realizar as distinccedilotildees e as designaccedilotildees
acerca dos meacutetodos e da atividade racional neles envolvido Longe de ser uma discussatildeo sobre o nome
com o qual se deve referi-los diz pretender examinar as questotildees que suscitam (Rep 533d3)
10
possiacutevel entre as obras Parece ser mais eficiente mostrar as caracteriacutesticas da razatildeo em
seu exerciacutecio por ser a sua atividade o meio mais fiel de dizer a capacidade da alma
buscar a sua excelecircncia
Conveacutem adiantar que embora se pressuponha uma identidade entre o
pensamento nos dois diaacutelogos natildeo se pretende ler um diaacutelogo agrave luz de outro Mais
proveitoso do que tentar responder questotildees e dificuldades da formulaccedilatildeo que um
diaacutelogo apresenta sobre o tema a partir de outro eacute verificar em detalhes o problema em
cada texto e a partir de entatildeo refletir acerca de uma concepccedilatildeo de razatildeo e de atividade
racional no seu modo mais elevado Apesar das diferenccedilas que se pode encontrar em
uma comparaccedilatildeo entre os textos acerca do meacutetodo dialeacutetico das teorias e das visotildees
acerca da alma as quais seratildeo devidamente notadas quando parecer necessaacuterio cabe
assinalar que o emprego desses para o tratamento das questotildees que preocupam o
filoacutesofo parecem ter o mesmo objetivo e oferecem assim uma visatildeo do pensamento
Os aspectos acerca do tema da racionalidade nos diaacutelogos levam inevitavelmente
a diferentes abordagens Em geral os autores que optaram por enfrentar o problema
diretamente valeram-se de uma abordagem loacutegica na qual veem o trabalho intelectual
da filosofia em uacuteltima instacircncia com um propoacutesito de obter definiccedilotildees O caminho para
investigar acerca do pensamento surge nesse segmento da anaacutelise da conceituaccedilatildeo e do
aparato metodoloacutegico especiacutefico sendo o pensar filosoacutefico considerado detidamente
nesta atividade compreendida nos termos de um saber proposicional Outra perspectiva
em que se coloca a questatildeo do pensamento vai na direccedilatildeo oposta na qual se pretende
explicar o conhecimento filosoacutefico como um saber intuitivo uma apreensatildeo ou visatildeo
o qual se obteacutem ao fim de um processo de cogniccedilatildeo Nessa abordagem natildeo raro se
considera a metodologia limitada a qual embora importante parece natildeo ter peso
decisivo na aquisiccedilatildeo dos objetos especiacuteficos da filosofia O pensamento mais
precisamente a inteligecircncia constitui nesse enfoque o movimento que culmina nessa
intuiccedilatildeo
Natildeo se pretende neste trabalho travar uma discussatildeo acerca das visotildees que as
duas correntes pretendem defender Da mesma forma natildeo se tem o objetivo de se situar
em uma delas O que proponho para discussatildeo diz respeito ao modo de interpretar
passagens que permitam sugerir uma compreensatildeo sobre a racionalidade a partir do
estudo destes dois diaacutelogos Suponho que o pensar em seu modo excelente consista
sobretudo na superaccedilatildeo do intelecto em direccedilatildeo aos objetos e domiacutenios superiores
sendo assim a capacidade de alta cogniccedilatildeo e o movimento ascendente que tem em vista
11
as questotildees e as aquisiccedilotildees mais importantes o bem a imortalidade e a felicidade O
pensar compreende desse modo todo o movimento no qual o intelecto atua para sair do
plano das percepccedilotildees e lidar com os objetos que lhe satildeo proacuteprios
Desse modo natildeo se abordaraacute os diaacutelogos a partir de uma perspectiva
cronoloacutegica Pretende-se levantar e analisar as mesmas questotildees independentemente do
que suporia o intervalo entre a feitura e a anterioridade de um ou de outro Deu-se
atenccedilatildeo aos temas que permitem uma anaacutelise detida do assunto sendo considerado
importante para isso destacar os passos na construccedilatildeo do perfil da racionalidade Assim
o contexto em que se coloca e se desenvolve a questatildeo o meacutetodo os objetos a
distinccedilatildeo de planos e a cogniccedilatildeo satildeo temas que pontuam tal construccedilatildeo
O tema nos diaacutelogos
De maneira preacutevia parece pertinente apontar alguns temas e questotildees que
mostram a conveniecircncia de ter os dois diaacutelogos como fonte para o estudo que se propotildee
Cabe alguns comentaacuterios primeiramente acerca da necessidade comum agraves duas obras
de empreender uma investigaccedilatildeo sobre a cogniccedilatildeo e verificar desse modo seu alcance
seus limites procedimentos proacuteprios e validade do pensamento para levar a cabo o
exame da questatildeo tema do diaacutelogo Agrave sua maneira tanto os livros centrais d‟A
Repuacuteblica sobretudo o sexto e seacutetimo livro quanto o Feacutedon mostram que a resposta
acerca do que investigam natildeo dispensa paracircmetros teoacutericos e de meacutetodo adequado que
garantam um exame de acordo com a proposta da filosofia de conhecer
verdadeiramente Sendo assim ambos apresentam as caracteriacutesticas do trabalho racional
segundo a filosofia de modo a oferecer o procedimento e o significado conferido por
ela ao pensamento
Nesse sentido tem-se a importacircncia do estudo acerca de uma noccedilatildeo de um bem
metafiacutesico e compreensiacutevel pelo intelecto para averiguar os fundamentos da cidade
justa tal como mostra o livro VI A conveniecircncia de investigar a ideia do bem surge da
necessidade ter definiccedilotildees e certa clareza acerca do conhecimento ao modo filosoacutefico
uacutenico capaz de apreender tais alicerces Desse modo a cogniccedilatildeo sobretudo torna-se
objeto de investigaccedilatildeo por ser ela a atividade pela qual deve se dar tais apreensotildees e
12
pela qual o filoacutesofo governante deve ter as suas orientaccedilotildees para o comando da cidade
Ao ter a filosofia entre os temas da poliacutetica e uma vez traccedilado o perfil do futuro
governante de acordo com o Livro V faz parte da investigaccedilatildeo distinguir os elementos
que compotildeem o caraacuteter intelectual do filoacutesofo governante e que contribuem por meio
dele para a constituiccedilatildeo da cidade perfeita6 De modo sucinto dado o caraacuteter do
governo e da cidade a saber justo bom virtuoso e saacutebio conveacutem averiguar o que os
torna enquanto tais a saber o uso da racionalidade agrave maneira filosoacutefica Os Livros VI e
VII consistem desse modo nas seccedilotildees onde o filoacutesofo que investiga acerca da justiccedila
tem de se debruccedilar sobre as questotildees especiacuteficas ao tema do pensamento para mostrar a
relevacircncia e magnitude do estudo mais importante
As consideraccedilotildees sobre a alma e sobre o exerciacutecio filosoacutefico no Feacutedon tambeacutem
apontam para a necessidade de discernir acerca dos elementos que compotildeem o trabalho
racional Dada identificaccedilatildeo da alma quase exclusivamente agrave faculdade racional a
cogniccedilatildeo seraacute a atividade que restaura a sua natureza e desse modo que permite
encontrar os meios atraveacutes dos quais eacute possiacutevel dar a ela o tratamento adequado que
garantiraacute as qualidades necessaacuterias a saber virtude e inteligecircncia no mais alto grau
possiacutevel (Fed107c8-d2) Desse modo a filosofia como preparaccedilatildeo para a morte sugere
o percurso desse cuidado que consiste em linhas gerais em uma depuraccedilatildeo racional Eacute
necessaacuterio a partir desse contexto distinguir testar e validar o uso da razatildeo nesse
empreendimento filosoacutefico que tem como fim o bom destino e como objetivo imediato
no episoacutedio em que se passa o diaacutelogo o sucesso de uma investigaccedilatildeo sobre a
imortalidade Tanto a depuraccedilatildeo racional do Feacutedon quanto a elevaccedilatildeo cognitiva do
aprendiz d‟A Repuacuteblica VII datildeo mostras da atuaccedilatildeo do pensamento em busca de atingir
seu niacutevel mais superior
A especificaccedilatildeo da filosofia sobre o pensamento surge nos dois diaacutelogos da
necessidade de investigar e propor no que consiste a sua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave esfera
que contempla os oacutergatildeos e os dados da sensibilidade Este seraacute provavelmente o grande
alvo a ser atacado isto eacute o qual deveraacute ser analisado para uma vez expostas as suas
fragilidades elucidar atraveacutes das suas contrastantes diferenccedilas com o inteligiacutevel o
trabalho organizado e preciso da racionalidade Quer no contexto da separaccedilatildeo da alma
6 Rep504e ldquoNatildeo seria ridiacuteculo que nos esforcemos e que tudo faccedilamos para que coisas insignificantes
fiquem tanto quanto possiacutevel mais exatas e niacutetidas mas natildeo consideremos que as mais importantes
mereccedilam tambeacutem maior exatidatildeo ndash Seraacute muito ridiacuteculo [Boa a tua ideacuteia] Mas qual eacute o estudo mais
importante Que objeto atribuis a elerdquo Platatildeo A Repuacuteblica traduccedilatildeo Anna Lia Amaral de Almeida Prado
Satildeo Paulo Martins Fontes 2006
13
em relaccedilatildeo ao corpo quer no contexto da escolha do futuro governante o qual deve ser
educado para superar a ignoracircncia elevando-se da crenccedila nas imagens a anaacutelise da
atividade intelectual deveraacute contar com as objeccedilotildees lanccediladas ao domiacutenio do sensiacutevel
para propor a positividade do empreendimento racional em relaccedilatildeo aos objetos
metafiacutesicos proacuteprios do intelecto As indagaccedilotildees em torno do pensamento e de sua
legitimidade apontam para elementos afins como as ideias e o meacutetodo dialeacutetico os
quais obtecircm suas determinaccedilotildees junto com os desdobramentos do atividade racional em
oposiccedilatildeo ao que eacute proacuteprio agraves sensaccedilotildees Tal assunto apesar dos diferentes enfoques que
recebe nos diaacutelogos e mesmo apesar das distinccedilotildees que os textos apresentam sobre as
mesmas teorias demonstra o esforccedilo do filoacutesofo em apontar o exerciacutecio filosoacutefico como
a saiacuteda para as questotildees que afligem o homem como a morte e a convivecircncia na cidade
e ao mesmo tempo indicar o exerciacutecio do pensamento como o meio mais adequado para
buscar as possiacuteveis resoluccedilotildees Em outros termos ao eleger a distinccedilatildeo sensiacutevel-
inteligiacutevel como o mote para privilegiar a faculdade cognitiva da alma para o trato
destas questotildees os textos atribuem ao pensar a funccedilatildeo de condicionar a alma ao seu
melhor estado
Outro dado que tornam proacuteximos os diaacutelogos diz respeito agrave figura do filoacutesofo
Ao ocupar o foco das atenccedilotildees seja como aprendiz e governante da cidade ideal seja
como o filoacutesofo nos seus instantes finais o filoacutesofo eacute a personagem que representa o
pensamento filosoacutefico e a sua excelecircncia Como modelo de conduta e de capacidade
cognitiva o filoacutesofo exibe o que deve ser entedido por excelecircncia moral e intelectual
Nesse sentido o que se tem a partir da figura do filoacutesofo que os livros VI e VII d‟ A
Repuacuteblica eacute uma narrativa acerca do processo de aquisiccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de
cogniccedilatildeo privilegiada definida como inteligecircncia (λόεζηϛ) a qual pode por isso
especular acerca do bem No Feacutedon tal figura sugere a imagem do processo acabado e
seus resultados e portanto o pensar plenamente desenvolvido (θξόλεζηο) capaz de
conjecturar sobre a imortalidade
Ambas as figuras mostram um modelo de excelecircncia moral e cognitiva que se
realiza concomitantemente agrave aquisiccedilatildeo de uma superioridade intelectual que se
especifica como tal sobretudo pela sua capacidade de apreender seres superiores Tais
seres servem de modelos e paradigmas para a conduta reta e justa e para o proacuteprio uso
da razatildeo que a partir deles pode conjecturar com plausibilidade uma dimensatildeo sempre
superior um domiacutenio que ultrapassa a sua proacutepria capacidade de apreensatildeo do qual
fazem parte o bem e a imortalidade inapreensiacuteveis em sua totalidade
14
A presenccedila de um horizonte amplo e que embora inapreensiacutevel totalmente pelo
pensamento devido agrave sua grandeza tambeacutem eacute um ponto incomum e importante para a
questatildeo a ser investigada nesse estudo A magnanimidade do bem e a
incomensurabilidade do domiacutenio da imortalidade ou estado de morte constitui um
contraponto para o que se refere agrave distinccedilatildeo do pensar ao modo filosoacutefico pois coloca
em questatildeo seu alcance e limite Ao constituir o bem o estudo mais importante
entretanto impossiacutevel de ser conhecido plenamente a investigaccedilatildeo acerca dele deve ser
questionada Do mesmo modo ao ser a morte e a imortalidade o tema sobre o qual vale
a pena arriscar uma explicaccedilatildeo mas que no entanto sobre ele natildeo se pode ter certezas
apenas convicccedilotildees conveacutem perguntar acerca da pertinecircncia desse empreendimento As
questotildees que decorrem desse problema e que conduzem ao tema da pesquisa buscam
saber o que pode a racionalidade conhecer sobre esta dimensatildeo a qual compreende o
bem e a imortalidade Tal propoacutesito obriga a averiguaccedilatildeo dos problemas e das possiacuteveis
respostas que surgem a partir da formulaccedilatildeo do pensamento em seu niacutevel mais alto de
cogniccedilatildeo em sua condiccedilatildeo de excelecircncia considerado o mais indicado para tecer
explicaccedilotildees sobre eles
15
I A Excelecircncia do Filoacutesofo
Diante desta perspectiva na qual um discurso sobre o pensar eacute possiacutevel a partir
de seu exerciacutecio Platatildeo se ocupa em pocircr em relevo nos diaacutelogos A Repuacuteblica e Feacutedon o
pensamento filosoacutefico ou seja o pensamento em seu niacutevel mais alto e portanto
exemplar de modo a constituir um modelo de excelecircncia do pensar anaacutelogo agrave figura do
filoacutesofo O que se apresenta a partir desta figura consiste no modelo de uso da
capacidade maacutexima do intelecto de modo a conquistar seu estado mais distinto e com
isso todos os benefiacutecios que se pode adquirir atraveacutes dele as virtudes a competecircncia
poliacutetica o conhecimento autecircntico a purificaccedilatildeo e o bom destino apoacutes a morte Como
modelo ideal de vida motivada pela busca da sabedoria e pautada no governo da razatildeo
o filoacutesofo e o desenvolvimento de seu intelecto descrito no processo de formaccedilatildeo do
seu caraacuteter no livro VII apresenta um exemplo e uma concepccedilatildeo de magnanimidade
realizaacutevel por meio da busca deste conhecimento superior Distinto de outras
experiecircncias psiacutequicas incluindo as emoccedilotildees e outras atividades mentais as quais
deveratildeo ganhar no Livro VI tratamento para contrastar com o intelecto a razatildeo deve
responder agraves possibilidades de relaccedilatildeo entre uma benignidade identificaacutevel ao divino
com a esfera da vida humana no seu aspecto praacutetico Dito de outro modo a inteligecircncia
tal como se quer formular ganha seu papel a partir da proposta de estabelecer os meios
adequados para que uma vida digna como tem o filoacutesofo do Feacutedon e um governo justo
como pretende o filoacutesofo governante d‟A Repuacuteblica tornem-se realizaacuteveis Desse modo
as accedilotildees do intelecto seus procedimentos e respostas satildeo dadas em busca de
estabelecer esta relaccedilatildeo
Diante de tais objetivos o pensar deve reconhecer a si mesmo ou seja refletir
sobre a sua atividade e sobre as coisas com as quais tem de lidar Essa autorreflexatildeo
sugerida pelo criticismo do filoacutesofo sempre atento aos rumos e procedimentos do
diaacutelogo mostra o exerciacutecio dialeacutetico do ιόγνο filosoacutefico como instrumento da
racionalidade e portanto afim com os propoacutesitos poliacuteticos morais e epistemoloacutegicos
O caraacuteter desta figura se constitui ao mesmo tempo em que esta maneira distinta de uso
da razatildeo apresenta suas especificidades
Assim partindo-se do jaacute enunciado pressuposto de haver uma simeacutetrica
correspondecircncia entre filoacutesofo alma e razatildeo nos diaacutelogos pretende-se tratar em uma
16
primeira parte a questatildeo n‟ A Repuacuteblica e em uma segunda do diaacutelogo Feacutedon Deve-se
ressaltar e analisar os elementos que compotildeem a distinccedilatildeo do filoacutesofo destacando as
questotildees que ganharatildeo tratamento e conceituaccedilatildeo filosoacutefica e que por isso deveratildeo
auxiliar a formar o perfil do pensamento mais alto Desse modo caracteriacutesticas como
qualidades perspectivas objetos seratildeo postos na primeira seccedilatildeo do primeiro capiacutetulo
correspondente a cada parte de modo a contextualizar a questatildeo
11 O filoacutesofo governante
Ao se depararem com a necessidade de perseguir a verdadeira natureza da justiccedila
(Rep 472a-c) e de definir o lugar do filoacutesofo na poacutelis (Rep 474b-c) Soacutecrates e Glaacuteucon
observam a mudanccedila de direccedilatildeo que a investigaccedilatildeo deve tomar no que diz respeito agrave
administraccedilatildeo da cidade (ηῶλ εἰξεκέλσλ πόιηο νἰθήζεηελ Rep 473a8) pondo em foco
assim a questatildeo preliminar mas natildeo menos importante ao tema do pensamento o que
estaacute na base das boas accedilotildees poliacuteticas Com esta questatildeo o diaacutelogo se lanccedila na direccedilatildeo
da causa e do modo justo de agir que ao ser investigada em profundidade conduziraacute
agravequela que parece constituir a verdadeira causa das accedilotildees humanas boas e justas Longe
de se tratar de um mero exerciacutecio abstracionista a investigaccedilatildeo do conceito de justiccedila
aparece indissociaacutevel da anaacutelise da formaccedilatildeo e da atuaccedilatildeo poliacutetica exigindo nesta
perspectiva identificar e averiguar os elementos responsaacuteveis por uma praacutetica do
governante conforme o ideal de governo verdadeiramente justo a natureza filosoacutefica e a
formaccedilatildeo adequada Este governante justo e bom que deve comandar a kaliacutepolis uma
vez guardiatildeo das leis e das instituiccedilotildees (Rep 484b-c) representa cabe adiantar por via
do caraacuteter filosoacutefico exposto nos livros centrais o comando e a soberania da razatildeo
Modelo de um ἔζνο superior o filoacutesofo abriga todas as virtudes e conhecimentos
igualmente superiores servindo portanto de paradigma para uma reflexatildeo acerca dos
valores e seus fundamentos
A natureza distinta do filoacutesofo exibido no Livro V oferece um tipo de
personalidade intelectualista sobre a qual se teraacute nos proacuteximos livros explicaccedilotildees sobre
este traccedilo que o caracteriza o intelectualismo Aqui apresentado como aquele que ama
verdade (Rep 474d θηινζε κνλεο 476b) cujo pensamento (δηάλνηα) eacute capaz de ver
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(eideicircn) a natureza do belo e se apegar a ele ( ἀζπάδνκαη Rep 476b8) capaz de buscar
o proacuteprio belo e de contemplaacute-lo em sua essecircncia (kath‟auto) (Rep 476d) discernindo a
essecircncia das coisas que dela participam (Rep 476d) mostra a distinccedilatildeo do filoacutesofo em
termos morais e poliacuteticos e cognitivos
Por ter o verdadeiro conhecimento o filoacutesofo deve ser o chefe da cidade pois pode
assim salvaguardar as leis e as suas instituiccedilotildees e se necessaacuterio estabelecer as leis do
belo do justo e do bom e mantendo sob guarda as que jaacute existem (Rep 484b-c) O
conhecimento das ideias que fundamentam os valores importantes para uma vida
harmocircnica na cidade deve garantir a manutenccedilatildeo da ordem e da convivecircncia A
sabedoria que o governante deve ter encontra seu fim na conservaccedilatildeo da poacutelis sendo
importante a conduccedilatildeo orientada da maneira correta ou seja orientada na justiccedila e no
verdadeiro bem Assim aquele que naturalmente pode governar ou seja que tem
inclinaccedilatildeo para buscar este saber indispensaacutevel para bem conduzir a cidade deve
apresentar desde a infacircncia caracteriacutesticas que indicam predisposiccedilatildeo para o
conhecimento Tem-se como condiccedilatildeo que a alma do verdadeiro filoacutesofo daquele que
possui alma filosoacutefica e que portanto deve ser treinado de modo a desenvolvecirc-la seja
dotada das seguintes qualidades ama a ciecircncia por inteiro (Rep 485b) natildeo sofre as
vicissitudes da geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (Rep 485b) recusa por natureza toda a mentira
e tem afeiccedilatildeo pela verdade e por tudo o que eacute afim com o bem (Rep485c) tem gosto
pelo aprendizado deve se exercitar na busca da verdade (Rep 485d) e ter boa memoacuteria
(Rep 486d1)
O conjunto destas qualidades referentes agrave verdade e ao conhecimento denota a sua
inclinaccedilatildeo para adquirir a virtude da sabedoria Para o filoacutesofo o prazer eacute o prazer da
proacutepria alma fluindo na direccedilatildeo do conhecimento desprezando desse modo os prazeres
e os impulsos do corpo (Rep 485d10-e1) Por via de tal comportamento apresenta
desse modo a virtude da temperanccedila (Rep 485e) Dono de uma natureza incomum
aquele que tem aptidatildeo para a filosofia demonstra possuir grandeza magnanimidade por
ambicionar alcanccedilar o divino e o humano em sua inteireza (Rep 486a) e natildeo teme
desse modo a morte (Rep 486b1) Do mesmo modo dada a sua inteligecircncia considera
mais importante as coisas divinas em oposiccedilatildeo agraves humanas
As virtudes que o acompanham sabedoria justiccedila temperanccedila e coragem advindas
da educaccedilatildeo filosoacutefica atestam o seu lugar de comando na vida puacuteblica e aponta ser o
exerciacutecio filosoacutefico o meio de aquisiccedilatildeo de todas as virtudes Este perfil torna-se
completo com a explicaccedilatildeo em termos epistemoloacutegicos dos traccedilos de sua atividade no
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livro VI e seu processo de formaccedilatildeo no livro VII Por enquanto tais caracteriacutesticas
expotildeem o caraacuteter cientiacutefico que Platatildeo pretende associar agrave elaboraccedilatildeo de um novo
modelo (παξάδεηγκα) poliacutetico A argumentaccedilatildeo acerca da importacircncia da formaccedilatildeo
intelectual do filoacutesofo desloca para o plano filosoacutefico as questotildees sobre a poacutelis
introduzindo assim um registro de inteligecircncia distinto daquele em que aparentemente
tais questotildees costumam ser consideradas Importa a partir de entatildeo verificar e propor
os elementos estruturantes desta racionalidade que confere todas as virtudes a este que
se mostra um exemplo de maioridade moral e intelectual capaz de realizar do melhor
modo possiacutevel a comunhatildeo entre εἶδνο e πξάμηο ou seja entre o saber intelectual dado pelo
conhecimento das ideias e praacutetica atraveacutes da participaccedilatildeo na vida poliacutetica
Para isso a proposta de uma nova noccedilatildeo de conhecimento (ἐπηζηήκε) e de
inteligecircncia (λόεζηϛ) ganham atenccedilatildeo ao assumir a funccedilatildeo de meio para a aquisiccedilatildeo
daquele que permite intuir sobre o bem a saber a ideia do bem a qual deve constituir
um paradigma para uma boa πξάμηο poliacutetica Parece conveniente dar atenccedilatildeo agrave figura do
guardiatildeo no livro V tal como a do aprendiz no livro VII por ser atraveacutes delas que se
revelam a finalidade e o processo de aquisiccedilatildeo deste tipo de conhecimento Somente no
caso do filoacutesofo natureza e poder poliacutetico coincidem e o processo de treinamento
intelectual do filoacutesofo aprendiz mostra a coerecircncia entre a capacidade cognitiva e
verdadeiro conhecimento habilidade natural e conhecimento especiacutefico caracteriacutesticas
que ao serem desenvolvidas pela filosofia resultam nas qualidades personalizadas na
figura do filoacutesofo
Junto com os desdobramentos epistemoloacutegicos que a discussatildeo ganha ao conduzir a
questatildeo da justiccedila na direccedilatildeo do que seria o governo justo e qual a sua verdadeira causa
surge o tema do pensamento Para que a inteligecircncia que tipifica o filoacutesofo como figura
excelente e portanto mais indicada para o governo tenha fundamento eacute necessaacuterio fazer
consideraccedilotildees acerca daquele que parece constituir o oacutergatildeo proacuteprio a capacidade
proacutepria para o conhecimento e que portanto torna possiacutevel a sua realizaccedilatildeo Na
perspectiva que analogamente toma a cidade como a alma tem-se o pensar se referindo
agrave melhor parte da alma agrave sua parte racional (o logistikon) e ao governante da cidade
Uma explanaccedilatildeo acerca da atuaccedilatildeo do pensamento e a conquista do estado mais alto se
torna o tema central das questotildees poliacuteticas e epistemoloacutegicas que a figura da excelecircncia
do filoacutesofo suscita As bases cientiacuteficas pedidas para nortear as reflexotildees acerca de um
modelo de cidade ideal ilumina o tema da inteligecircncia no conjunto de questotildees
19
relevantes por ser esta a atividade e estado (patheacutemata) crucial para a possibilidade de
uma vida feliz na poacutelis
12 A melhor parte da alma
Para que se chegue agrave cidade perfeita (πόιηο ηειέσο ἀγαζή Rep 427e7) eacute preciso
o arranjo harmocircnico entre as partes que a constituem A organizaccedilatildeo entre os cidadatildeos e
entre as outras cidades depende desse modo de um governante cujo conhecimento
(ἐπηζηήκε) compreenda a cidade como um todo (ὑπὲξ αὑηο ὅιεο) e seja por isso
capaz de estabelecer a melhor relaccedilatildeo entre as partes (Rep 428c11-d3) Adveacutem dos
conhecimentos desse distinto governante a sabedoria que conduziraacute a cidade tornando-a
saacutebia por natureza (Rep 428e8-429a3) Esta forte afirmaccedilatildeo prenuncia a investigaccedilatildeo
dos Livros VI e VII acerca daquela que se mostraraacute a atividade que pode
verdadeiramente realizar tal governo o pensamento em sua excelecircncia realizaacutevel ao
modo da filosofia O domiacutenio da melhor parte da alma dita no Livro IV expressa por
analogia a proposiccedilatildeo de um governo cientificista baseado no conhecimento exercido
pelo filoacutesofo cujo treinamento intelectual lhe permite desenvolver as quatro virtudes na
cidade sabedoria coragem temperanccedila e justiccedila A especificidade do treino dado ao
filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo propotildee deixaacute-lo apto a ocupar a posiccedilatildeo de
governante ao desenvolver sua natural disposiccedilatildeo para o comando Tal
desenvolvimento entretanto natildeo se daria sem um metoacutedico e especiacutefico exerciacutecio que
constitui a experiecircncia intelectual da filosofia Dito de outro modo a experiecircncia do
pensamento nos termos da educaccedilatildeo filosoacutefica confere ao filoacutesofo uma condiccedilatildeo tal que
permite realizar o melhor governo
A conveniecircncia da analogia entre a cidade e a alma mais precisamente sua parte
racional apresentada no livro IV e aparentemente concluiacuteda no Livro VII mostra-se
nesse sentido na possibilidade de investigar com maior profundidade a parte da alma
que deve governar e sobretudo o processo de aquisiccedilatildeo e o significado da excelecircncia
deste que deve ser o elemento dominante ndash ldquo-Ah E um homem justo em nada diferiraacute
de uma cidade justa em relaccedilatildeo ao proacuteprio gecircnero da justiccedila mas seraacute semelhante
(ὅκνηνο)rdquo (Rep 435b1-2) Empregada como um procedimento para a investigaccedilatildeo a
comparaccedilatildeo entre cidade e alma individual permite desse modo a anaacutelise de uma
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atividade que como modelo deve ser transposta para pensar a cidade como um
organismo harmocircnico e assim justo7 A comparaccedilatildeo serve igualmente aos propoacutesitos
de investigar o pensamento nos termos que concernem agrave aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε a qual
em uacuteltima instacircncia traduz-se no processo de conversatildeo da alma ao bem e agrave ideia do
bem realizada pelo pensar ateacute o seu grau excelente
A elevaccedilatildeo da melhor caracteriacutestica da alma tal como apresentaraacute o Livro VII
(νῦ βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ Rep 532c3-6) realiza-se pelo correto e adequado exerciacutecio por
meio do qual se mostraratildeo as potencialidades e o caraacuteter especiacutefico da racionalidade nos
seus diferentes graus O que no Livro IV eacute sugerido como a cidade justa ou seja o
cumprimento do que determina a natureza de cada classe de acordo com as condiccedilotildees e
disposiccedilotildees de cada uma (πάζε ηε θαὶ ἕμεηο Rep 435b7435b4-5) os livros VI e VII
mostraratildeo como resultado de um processo de desenvolvimento desta natureza dentre as
quais a natureza filosoacutefica se mostra exemplar O desenvolvimento da natureza da alma
filosoacutefica consiste no treino e na busca intelectual do objeto de desejo da alma o bem
que pertence a determinado gecircnero e para isso requer uma atividade caracteriacutestica A
investigaccedilatildeo sobre a justiccedila versa nesses livros especialmente sobre o que deve
cumprir a alma de natureza filosoacutefica a partir da qual se faz uma diferenciaccedilatildeo nos
termos de condiccedilotildees e disposiccedilotildees intelectuais Assim o governo que naturalmente o
filoacutesofo deve exercer encontra nas inquiriccedilotildees sobre a inteligecircncia e seus objetos
especiacuteficos o fundamento racional que justifica tal domiacutenio8 Da mesma forma o objeto
7 Em 368e-369a a analogia aparece justificada como procedimento de maneira mais evidente ldquo() A
justiccedila eacute proacutepria de um indiviacuteduo Eacute tambeacutem proacutepria da cidade toda ndash Sem duacutevida disse ele ndash E a
cidade eacute maior que o indiviacuteduo ndash Maior disse ndash Ora num espaccedilo maior talvez haja mais justiccedila e seja
mais faacutecil entendecirc-la Se quiserdes portanto primeiro examinemos como ela eacute nas cidades depois a
examinemos no indiviacuteduo procurando na forma do menor a semelhanccedila com a da maiorrdquo
8 Anaacutelogo aos conflitos na cidade o conflito que a triparticcedilatildeo ou biparticcedilatildeo apresenta propotildee ao mesmo
tempo os princiacutepios que fundamentam as accedilotildees Desse modo uma accedilatildeo justa tem como base a relaccedilatildeo
equilibrada entre as partes equiliacutebrio alcanccedilaacutevel somente pelo domiacutenio da parte racional Robinson
explica melhor que se pretende argumentar ldquo() Mesmo na alma bipartite do iniacutecio da Repuacuteblica o
conflito era visto como interno as duas bdquonaturezas‟ eram bdquoopostas‟ e precisavam ser bdquoafinadas‟ (375c7-
8 410e) Isso natildeo eacute menos verdade quando o bdquoelemento filosoacutefico‟ eacute considerado realmente o bdquoelemento
raciocinativo‟ e quando o bdquoelemento irasciacutevel‟ longe de ser algo desiderativo eacute visto como bastante
distinto daquilo que eacute genuinamente desiderativo A justiccedila no indiviacuteduo e no Estado acaba sendo o
bdquofazer o proacuteprio trabalho‟ por parte de cada um dos elementos constituintes em um ou outro e a
injusticcedila o oposto (443c-e) Do mesmo modo define-se bdquosobriedade‟ ou bdquoequiliacutebrio‟ em termos que se
encaixam bem com a analogia de uma cidade ou Estado compartimentalizado um homem eacute bdquosoacutebrio‟
bdquodevido agrave amizade e agrave concoacuterdia dessas mesmas partes quando explicitamente o princiacutepio que governa
e seus dois suacuteditos unem-se na crenccedila de que a razatildeo deve governar e natildeo se rebelam contra elerdquo
Robinson T M A Psicologia de Platatildeo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2007 pg 85 Como se daacute o domiacutenio da
razatildeo sobre o desejo e sobre o iacutempeto eacute algo que natildeo parece ser explicado no Livro IV e tampouco nos
Livros VI e VII A razatildeo convenceria as outras partes da alma a cada uma cumprir devidamente sua
funccedilatildeo ou seria uma dominaccedilatildeo feita com reacutedeas curtas como parece ser a atitude da parte racional em
relaccedilatildeo agrave irasciacutevel no Fedro 256b1-3ldquo() senhores de si e disciplinados subjugam o que faz nascer a
21
que deve servir de modelo para as questotildees morais e o procedimento racional descrito
na atividade do dialeacutetico constituem os paracircmetros racionais para a atividade do bom
governo
Por ora natildeo se realizaraacute uma anaacutelise mais profunda sobre as questotildees que
envolvem a triparticcedilatildeo da alma no Livro IV Interessa abordar tal questatildeo na medida em
que se questiona acerca daquilo que eacute indicado como a parte racional da alma que deve
dominar as demais Parece inquestionaacutevel que a parte capaz de realizar as operaccedilotildees
racionais tal como descreveraacute os Livros VI e VII eacute a parte raciocinante por outro lado
vale ressaltar que os aspectos trabalhados nos livros citados mostram justamente como o
domiacutenio da razatildeo se mostra possiacutevel As influecircncias da parte irasciacutevel da alma natildeo
parecem estar em questatildeo Ao contraacuterio como a experiecircncia da conduccedilatildeo da alma feita
pelo pedagogo mostraraacute ao ser bem treinada a alma desenvolve as habilidades que
permitiratildeo no caso do dialeacutetico ter o conhecimento sobre as questotildees que se
relacionam ao bem e ter o discernimento necessaacuterio sobre sua proacutepria arte requisitos
necessaacuterios para o governo Se o dialeacutetico representa a parte racional da alma e em
contrapartida as outras classes de cidadatildeos estatildeo analogamente inferidos pelas demais
em seu uso correto o pensar domina ateacute mesmo a parte irasciacutevel a qual pode ter como
aliada
Todavia uma anaacutelise dos argumentos acerca da relaccedilatildeo entre alma e objeto no
Livro VI e do tratamento das disciplinas matemaacuteticas sobre as sensaccedilotildees ao final do
Livro VII mostram o que verdadeiramente constitui um estiacutemulo para o pensar Ainda
que a alma possua uma parte impetuosa que pode colaborar com sua racionalidade (Rep
440e-441a) no que diz respeito agraves operaccedilotildees e alcance racionais a interaccedilatildeo com os
seres inteligiacuteveis e a provocaccedilatildeo do sensiacutevel sobre a alma se revelam estiacutemulos proacuteprios
para a atividade do pensar Ao que parece o iacutempeto constituinte da alma tal como traz
a triparticcedilatildeo no Livro IV representa muito mais ao que tange o poder e a forccedila de um
dado governo na cidade do que ao tipo de estiacutemulo que trazem as anaacutelises acerca do
pensamento Diferentemente deste iacutempeto irasciacutevel o qual pode associar-se tanto agrave
razatildeo quanto aos desejos (Rep 440b) tais estiacutemulos se datildeo por meio do exerciacutecio
intelectual e assim estatildeo necessariamente em colaboraccedilatildeo com a razatildeo
maldade na alma e deixam em liberdade as forccedilas pelas quais se gera a virtuderdquo Os livros VI e VII
mostram a parte racional em sua operacionalidade sem entrar diretamente ao que parece em questotildees
acerca das demais motivaccedilotildees Pode-se supor somente a possibilidade e como se daacute esse apaziguamento a
exemplo dos resultados que se tem com a educaccedilatildeo do pedagogo no Livro VII Por enquanto vale
acompanhar a descriccedilatildeo das partes para verificar como e em que medida eacute possiacutevel o domiacutenio da razatildeo
22
Um dos pontos que a proposta do filoacutesofo governante com a sua arte dialeacutetica
parece querer mostrar se refere ao que seria um governo inteiramente baseado no
conhecimento e assim sem o risco de sucumbir a uma classe que demonstre
desobediecircncia Do mesmo modo argumentar a favor da racionalidade como ordenadora
das relaccedilotildees entre partes distintas demonstra o interesse em defender o pensamento sua
atividade e resultados Trata-se de propor a organizaccedilatildeo segundo os ditames e
procedimentos inteligentes em oposiccedilatildeo ao que se pode obter a partir do desejo e do
impulso Nesse sentido o pensamento como quer mostrar os Livros VI e VII e como se
propotildee este estudo refere-se exclusivamente ao pensar nos termos da parte racional da
alma a qual em resumo revela-se nas operaccedilotildees que envolvem a percepccedilatildeo nos termos
da opiniatildeo e da aquisiccedilatildeo do conhecimento A justiccedila e o bom governo tecircm como base
diante do que se analisa a formulaccedilatildeo de uma epistemologia baseada na excelecircncia do
exerciacutecio do pensamento tema que ganha ecircnfase nos livros centrais d‟A Repuacuteblica
sobretudo nos Livros VI e VII e a partir do qual se torna possiacutevel dar tratamento
racional agraves questotildees acerca do bem comum e da conduta moral centro das preocupaccedilotildees
e do filoacutesofo
Apoacutes essa explanaccedilatildeo introdutoacuteria sobre o filoacutesofo e sua alma filosoacutefica cabe
comentar alguns dados antes de prosseguir Deve-se natildeo perder de vista o horizonte da
investigaccedilatildeo filosoacutefica que se apresentou na anaacutelise a saber o conhecimento o bem e a
morte Estes satildeo os alvos finais da inquiriccedilatildeo filosoacutefica e devem receber atenccedilatildeo dado
que somente a razatildeo em sua potecircncia maacutexima pode arriscar como se veraacute qualquer
conjectura sustentaacutevel acerca deles Dito de outra perspectiva uma especulaccedilatildeo de
objetos tatildeo grandes e portanto exigentes do ponto de vista cognitivo podem oferecer
informaccedilotildees sobre a inteligecircncia e sobre a concepccedilatildeo de conhecimento que estaacute em
jogo Os dois temas acabam assim por colaborar para mostrar o empreendimento da
cogniccedilatildeo na exploraccedilatildeo de um plano que se distingue da vida prosaica e da mesma
forma para apresentar as minuacutecias de um aparato teoacuterico e metodoloacutegico proacuteprio da
filosofia para superar as dificuldades da investigaccedilatildeo a saber as teorias das ideias e da
23
reminiscecircncia e a dialeacutetica Seraacute por isso que Platatildeo pretendeu nos dois diaacutelogos colocar
alvos tatildeo magnacircnimos O primeiro dado que se verifica eacute que estes temas bem e morte
fazem parte das preocupaccedilotildees daquilo que provavelmente o filoacutesofo considera serem
estas as questotildees de maior importacircncia e que portanto devem ser investigados mesmo
que seja impossiacutevel compreendecirc-los totalmente sendo o bem desse modo considerado
o estudo mais importante e morte-vida a questatildeo sobre qual vale a pena se ocupar
O outro ponto para o qual se deve chamar atenccedilatildeo o qual interessa muito aos
propoacutesitos deste estudo diz respeito ao dado de que ambos apresentam uma perspectiva
a qual ganha conceituaccedilatildeo e participa portanto deste aparato teoacuterico de que se vale a
filosofia a suposiccedilatildeo de um outro plano uma dimensatildeo diferente que de algum modo
orienta a atividade filosoacutefica por abrigar as coisas de mais alto valor anaacutelogo portanto
ao domiacutenio inteligiacutevel A investigaccedilatildeo do filoacutesofo pretende em uacuteltima instacircncia
apreender esses altos valores de modo a compreendecirc-lo o quanto lhe for possiacutevel A
magnanimidade moral que distingue o filoacutesofo dos demais cidadatildeos refere-se agrave tentativa
de apreender no que consiste a maioridade de valores como bondade e justiccedila as quais
ele julga comparaacuteveis agraves coisas divinas Conveacutem assim averiguar a atividade do
pensamento filosoacutefico no que se refere a apreensatildeo dos maiores valores
13 O Conhecimento dos valores
Para tentar compreender como se constituem as qualidades do filoacutesofo e assim
a importacircncia e o significado da superioridade do pensamento ao modo da filosofia
cabe averiguar a concepccedilatildeo do bem que esta a ser construiacuteda Natildeo se pode entender a
excelecircncia do filoacutesofo sem se perguntar o que significa ser bom Assim vale comeccedilar
pelo conhecimento mais importante para o filoacutesofo governante o conhecimento do bem
Tema presente na voz do senso comum o bem seraacute averiguado em um primeiro
momento naquilo que se mostra como qualidade de outras noccedilotildees igualmente
importantes para a cidade O questionamento acerca da justiccedila e de outras virtudes
indicam a inquiriccedilatildeo da noccedilatildeo de ἀγαζόο como a mais urgente por ser a caracteriacutestica
presente em tudo o que eacute concebido como algo considerado positivo Em outros termos
as qualidades que apresentam a justiccedila e as coisas consideradas belas mostram a noccedilatildeo
do bem entre os atributos que aparentemente as constituem e as qualificam
24
positivamente Desse modo o objeto mais especulado e como natildeo poderia deixar de
ser o mais incompreendido segundo a concepccedilatildeo do filoacutesofo recebe a partir de entatildeo
um tratamento agrave luz do que se revelaraacute ser o verdadeiro conhecimento
ldquo- () Mas qual eacute o estudo mais importante Que objeto
atribuis a ele Acreditas que algueacutem te deixaria ir embora sem que te
fizesse essas perguntas (νἴεη ηηλ ἄλ ζε ἔθε ἀθεῖλαη κὴ ἐξσηήζαληα ηί
ἐζηηλ)
- De forma alguma disse eu Vamos Pergunta Em todo caso
natildeo poucas vezes ouviste isso e neste momento ou natildeo pensas nisso
ou tens em mente criar-me dificuldades com tuas objeccedilotildees Acredito
que mais seja isso que pretendes Eacute que jaacute me ouviste dizer muitas
vezes que o estudo mais importante eacute a ideia do bem e que eacute atraveacutes
dela que as accedilotildees justas e outras accedilotildees se tornam uacuteteis e proveitosas
(ἐπεὶ ὅηη γε ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα κέγηζηνλ κάζεκα πνιιάθηο ἀθήθναο ᾗ
δὴ θαὶ δίθαηα θαὶ ηἆιια πξνζρξεζάκελα ρξήζηκα θαὶ ὠθέιηκα
γίγλεηαη) E agora jaacute sabes que eacute isso que vou dizer e aleacutem disso que
natildeo temos conhecimento suficiente dessa ideia Se poreacutem natildeo a
conhecemos ainda que conheccedilamos as outras isso de nada nos
serviraacute como quando possuiacutemos algo sem ter o bem (ὥζπεξ νὐδ εἰ
θεθηῄκεζά ηη ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ) Ou crecircs que haveraacute vantagem na
posse de qualquer coisa que seja se ela natildeo for uma coisa boa Ou
em compreender tudo o mais mas natildeo o bem e nada de belo e bom
(ἢ νἴεη ηη πιένλ εἶλαη πᾶζαλ θηζηλ ἐθηζζαη κὴ κέληνη ἀγαζήλ ἢ
πάληα ηἆιια θξνλεῖλ ἄλεπ ηνῦ ἀγαζνῦ θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ κεδὲλ
θξνλεῖλ)9
- Por Zeus eu natildeo disserdquo (Rep 504e6-505b4)
Deve-se acompanhar a progressatildeo daquilo que se apreende como qualidade para
a noccedilatildeo de ideia A beleza e a justiccedila qualidades das coisas justas e belas satildeo
consideradas boas e dessa forma parecem expressar uma positividade nos termos de
um valor O que eacute tido como belo justo uacutetil e proveitoso eacute inegavelmente bom e por
isso satildeo atributos que demonstram um valor positivo apreciaacutevel ldquoO bomrdquo confere aos
demais atributos tal positividade que potildee a ideia do bem (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα) como a
caracteriacutestica fundamental de todo o conjunto de coisas que apresentam tais qualidades
Ela torna bom tais atributos e se mostra por isso a origem de tudo o que parece ser
considerado positivo
9 A ediccedilatildeo inglesa utiliza ldquothinkrdquo e ldquoin high regardrdquo para natildeo perder as variaccedilotildees de sentido do termo φρονεῖν que muito enriquecem o trecho - Plato Republic Loeb Harvard University Press 2013 (Classical Library) traduccedilatildeo Chris Emlyn-Jones and William Preddy Vale notar que a utilizaccedilatildeo da palavra neste instante sugere um conhecimento intelectual ao modo filosoacutefico e portanto uma atividade inteligente como se desenvolveraacute mais adiante Observe-se que se atribui a esta atividade um valor uma certa superioridade
25
Cabe notar as perspectivas que levaram agrave funccedilatildeo de origem da ideia do bem para
que se possa assim compreender melhor o sentido em que se pode apreendecirc-la
Embora apareccedila em um plano menos evidente nessa ultima passagem note-se que a
conjugaccedilatildeo bem-positividade sugere tal como se observa ser uma caracteriacutestica da
ideia do bem conferir uma noccedilatildeo de valor Do mesmo modo ao mesmo tempo em que a
noccedilatildeo de ldquobomrdquo aparece quase como um componente das coisas com qualidades
apreciadas ndash afinal ningueacutem diria que as coisas uacuteteis natildeo satildeo boas - o bem se mostra
tambeacutem uma referecircncia a partir da qual se lanccedila um julgamento acerca de algo Este
parece ser o criteacuterio impliacutecito na concepccedilatildeo da maioria que elege algo como apreciaacutevel
Assim tido como um paracircmetro o bem eacute apreendido ele mesmo nos termos de um
valor o que provavelmente justifica a sua apariccedilatildeo apoacutes a tentativa de falar sobre as
virtudes10
Observe-se que esta abordagem valorativa do bem evolui para outros planos As
perspectivas que introduzem a investigaccedilatildeo sobre a ideia do bem satildeo dadas
indistintamente tal como uma abordagem comum Soacutecrates e Glaacuteucon parecem ter
neste momento a consciecircncia desta confusatildeo e da insuficiecircncia de conhecimento acerca
da noccedilatildeo que agora se mostra como a mais importante Dito de outro modo visto como
um valor como um atributo de um conjunto de coisas e por uacuteltimo como a origem das
mesmas o bem exige um estudo que permita dizecirc-lo distintamente de modo que torne
possiacutevel a partir daiacute verificar as virtudes e outras noccedilotildees Desse modo o bem visto
inicialmente como a qualidade comum em um conjunto de coisas apreciaacuteveis tem
destacado a sua posiccedilatildeo de condiccedilatildeo essencial sem a qual tais coisas natildeo existiriam natildeo
seriam como tais isto eacute natildeo apresentariam tal positividade e sobre as quais natildeo seria
possiacutevel saber nada A passagem mostra desse modo a transposiccedilatildeo da perspectiva
comum para a filosoacutefica onde se apresenta a evoluccedilatildeo da anaacutelise das coisas
consideradas justas e belas (δίθαηα κὲλ θαὶ θαιὰ Rep 505d5) e portanto boas ao modo
da apreensatildeo da generalidade de objetos particulares para uma ideia como a ideia do
10 Penner natildeo ignora que mesmo com a investigaccedilatildeo ontoloacutegica a ideia do bem apresente as qualidades no sentido do que eacute beneacutefico e uacutetil ldquoQuanto ao que eacute a Forma do Bem isso seraacute obviamente tatildeo difiacutecil de vir a conhecer (R 506b-507a Phd 97b-100c) quanto eacute difiacutecil em Soacutecrates saber o que satildeo a virtude ou o bem Contudo uma interpretaccedilatildeo do caminho mais longo torna de fato claro que a Forma do Bem eacute a Forma do Vantajoso ou Beneacutefico natildeo eacute como eacute nas interpretaccedilotildees mais influentes desde cerca de 1920 () a forma de um bem impessoal ou quase moralrdquo Penner T ldquoAs Formas e as Ciecircncias em Soacutecrates e em Platatildeordquo in Benson H (Org) Platatildeo Porto Alegre Artmed 2011 p 171 Longe de argumentar a favor da existecircncia de uma ldquoforma do Vantajosordquo como sugere o comentador importa trazer esse dado porque atraveacutes dele se volta atenccedilatildeo para a presenccedila da benignidade da ideia do bem na esfera da vida comum importante para as questotildees poliacuteticas como se veraacute mais adiante
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bem e da beleza (ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα θαιὸλ δὲ θαὶ ἀγαζὸλ) Esse novo objeto de
investigaccedilatildeo a ideia exige uma abordagem e uma anaacutelise especiacutefica a partir da qual a
ideia do bem seraacute visto na sua condiccedilatildeo de origem e atributo essencial Analisar a
justiccedila e as virtudes natildeo satildeo suficientes sem o conhecimento disto que parece ser o
fundamento delas11
A constataccedilatildeo do verdadeiro objeto a ser investigado note-se exige da mesma
forma uma investigaccedilatildeo acerca de sua apreensatildeo Desse modo o outro ponto importante
a ser avaliado para que se possa investigar o bem como fundamento passa a ser a
aquisiccedilatildeo do bem e a noccedilatildeo de conhecimento Note-se que adquirir o conhecimento
supotildee como quer a filosofia uma noccedilatildeo de saber que aparece nesta atividade Por se
tratar de um novo tipo de investigaccedilatildeo na qual o objeto eacute visto de um acircngulo distinto
exige-se uma capacidade e um modo de investigar igualmente distintos que por
apreender um objeto tal como a ideia do bem consiste em um modo de aquisiccedilatildeo com
suposta superioridade com um valor mais elevado em comparaccedilatildeo ao modo de
investigaccedilatildeo feito ateacute entatildeo Empreende-se uma κέγηζηνλ κάζεκα e portanto uma
aquisiccedilatildeo (θηζηο) que constituiraacute ao que tudo indica o conhecimento nos termos de
uma apreensatildeo em um grau maior
Tal suposiccedilatildeo parece ser confirmada no trecho seguinte Deve-se observar as
distinccedilotildees que passam a ser traccediladas natildeo somente em relaccedilatildeo ao objeto analisado mas
tambeacutem no que se refere a sua abordagem e apreensatildeo Vale ter em vista essa
superaccedilatildeo da particularidade para a universalidade da ideia que sugere a ideia do bem
e ao mesmo tempo a noccedilatildeo de conhecer que o trecho propotildee para acompanhar passo a
passo a relaccedilatildeo entre os propoacutesitos poliacuteticos apresentados anteriormente e a
epistemologia do livro VI Nesse sentido satildeo postas as questotildees que concernem ao
pensamento nos termos de uma apreensatildeo que se daraacute ao modo da filosofia como uma
11 Como natildeo seraacute um tema que o Livros VI e VII levaratildeo adiante conveacutem adiantar as consequecircncias da
inversatildeo intelectualista que Platatildeo propotildee no que se refere ao que se considera ldquobomrdquo Em oposiccedilatildeo ao
prazer as qualidades do Bem que seraacute tratado com mais detalhes nos livros seguintes satildeo dadas como
aquelas caracteriacutesticas que provocam o intelecto e oferecem a ele subsiacutedios para a atividade intelectual
tal como as noccedilotildees geomeacutetricas que satildeo inteligiacuteveis Schuhl indica esse limite nos seguintes termos ldquoSoacute
se poderia pois corretamente julgar pelo prazer o que natildeo apresenta nem utilidade nem verdade nem
semelhanccedila nem sem duacutevida nada prejudicial mas tem como uacutenica razatildeo de ser o encanto () Platatildeo
sublinha que natildeo se pode mais se referir ao prazer quando intervecircm a semelhanccedila e a igualdade sob
qualquer forma que seja pois o que faz o igual ser igual e simeacutetrico o simeacutetrico natildeo eacute a opiniatildeo do
primeiro que se encontra nem o encanto que ele possa encontrar nisso eacute antes de tudo a verdade o
resto praticamente natildeo contardquo Schuhl P M Platatildeo e a Arte de Seu Tempo Discurso Editorial
Barcarolla Satildeo Paulo 2010 p 80-81
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aquisiccedilatildeo da ideia ou ao modo do senso comum como uma apreensatildeo da aparecircncia
daquilo que se supotildee ser o bem
ldquo- Eis algo que sabes Para a maioria das pessoas o bem eacute o
prazer mas para os mais requintados eacute a inteligecircncia (ηνῖο δὲ
θνκςνηέξνηο θξόλεζηο)
- Sem duacutevida disse
- E sabes meu amigo que os que pensam assim natildeo conseguem
dizer o que eacute a inteligecircncia mas acabam por ser forccedilados a
mencionar a inteligecircncia do bem (νἱ ηνῦην ἡγνύκελνη νὐθ ἔρνπζη
δεῖμαη ἥηηο θξόλεζηο ἀιι ἀλαγθάδνληαη ηειεπηῶληεο ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ
θάλαη)
- E isso eacute muito ridiacuteculo disse
- E como deixaria de ser disse eu se apesar de censurar-nos por
natildeo conhecermos o bem de novo falam como se conhececircssemos Eacute
que dizem que eacute a inteligecircncia do bem como se de nossa parte
estiveacutessemos entendendo o que estatildeo dizendo uma vez que
pronunciam a palavra bem (ἐπεηδὰλ ηὸ ηνῦ ἀγαζνῦ θζέγμσληαη
ὄλνκα)rdquo(Rep 505b8-c4)
Um dos primeiros indiacutecios da mudanccedila de abordagem do bem consiste na
diferenciaccedilatildeo agora anunciada entre o nome e o proacuteprio objeto Haacute uma diferenccedila entre
o bem tal como eacute geralmente dito concebido no senso vulgar e o sentido que se tem em
vista a partir de agora O nome bem proferido comumente ganharaacute um sentido
especiacutefico caracteriacutestico que soacute pode ser desvelado nesta pesquisa que procura
apreendecirc-lo segundo o que eacute (ηί ἐζηηλ) Aqueles que se engajam nesse tipo de
investigaccedilatildeo compreendem as distinccedilotildees do bem O primeiro passo para a averiguaccedilatildeo
da ideia do bem consiste em desassociaacute-la daquilo que ela qualifica Da mesma forma
compreende-se que ele consiste em algo ainda natildeo conhecido mas que estaacute aleacutem
daquilo que se designa como ldquobemrdquo Note-se que tal distinccedilatildeo eacute intriacutenseca agraves questotildees
que envolvem o pensamento O processo de conhecimento que se propotildee nesse instante
natildeo pode ser realizado sem que se tenha uma concepccedilatildeo clara ou ao menos que se
propotildee elucidar sobre os processos que envolvem tal aquisiccedilatildeo Com a passagem de um
registro a outro do comum para o filosoacutefico justifica-se cada vez mais a anaacutelise acerca
da atividade intelectual que efetiva o conhecimento de acordo com o que se propotildee a
partir de agora
Nesse contexto em que se atribui agrave ideia do bem a posiccedilatildeo de origem e a
considera por isso como a mais importante entre todas as noccedilotildees o pensar eacute dito nos
termos do θξνλεῖλ e o conhecimento nos temos de uma apreensatildeo realizada pelo
28
pensamento acerca da ideia do bem Compreender no que consiste esta mais alta
apreensatildeo constitui a proposta epistemoloacutegica do filoacutesofo que seraacute investigada em todo
o livro VI e se tornaraacute no Livro VII o centro das investigaccedilotildees por fundamentar a
pedagogia que se ocuparaacute de mostrar como tornar esta alta intelecccedilatildeo realizaacutevel Parece
inevitaacutevel uma verificaccedilatildeo acerca do pensar em suas variadas maneiras de ocorrer e
principalmente no seu niacutevel mais elevado ao se pretender falar sobre o conhecimento de
qualquer virtude e sobre aquilo que se mostra um objeto de desejo comum a todos
filoacutesofos ou natildeo o bem
Apesar da polissemia12
do termo θξνλεῖλ o que o texto mostra eacute a necessidade
de uma atividade dada ao modo intelectual cujo estatuto cognitivo se distingue de
outras atividades intelectivas Entretanto vale salientar a diferenciaccedilatildeo que
concomitantemente se faz entre o filoacutesofo e o natildeo filoacutesofo Aqueles que compreendem
as distinccedilotildees do bem satildeo considerados por isso mais refinados (θνκςνηέξνηο) em
oposiccedilatildeo agravequeles que possuem uma acepccedilatildeo vulgar sobre ele e buscam somente o
prazer considerando equivocadamente o que eacute prazeroso como bom Observe-se que a
diferenciaccedilatildeo feita sob um criteacuterio epistemoloacutegico tambeacutem apresenta um parecer moral
Aleacutem de exprimir a capacidade superior de cogniccedilatildeo sugerida pelo θξνλεῖλ essa
maneira de se referir aos que conhecem verdadeiramente o bem propotildee uma
qualificaccedilatildeo que ultrapassa o senso vulgar O refinamento dito nesse contexto
certamente parte desta nova abordagem que supotildee o conhecimento do bem tambeacutem
como criteacuterio para a distinccedilatildeo do filoacutesofo e de suas qualidades Conhecer o bem nesse
sentido tornou-se criteacuterio para o julgamento da postura de quem se propotildee a se
pronunciar sobre o bem ou sobre qualquer outra noccedilatildeo
O texto ainda natildeo oferece maiores esclarecimentos sobre o bem como uma
referecircncia nos termos da moralidade Antes eacute necessaacuterio investigaacute-lo de modo a abordar
aquilo que ele eacute essencialmente e elucidar o meacutetodo adequado para conhececirc-lo Apoacutes o
que se analisou das passagens vale ter em vista a progressatildeo de uma perspectiva a outra
e os elementos que vatildeo aos poucos sendo iluminados pela necessidade de investigar a
12 Neste trecho θξόλεζηο recebe vaacuterias traduccedilotildees ldquointelligencerdquo ediccedilatildeo francesa ED Les Belles Lettres
1996 ldquoknowledgerdquo segundo a ediccedilatildeo inglesa Loeb Classical Library Harvard University Press 2013 A
ediccedilatildeo brasileira como a francesa opta por utilizar um termo ldquointeligecircnciardquo que tambeacutem traduz a palavra
λνήζηϛ o que eacute evidentemente autorizado dado que na analogia da linha dividida o texto apresenta uma
explicaccedilatildeo dessa apreensatildeo cognitiva no niacutevel mais alto Desse modo entende-se λνήζηϛ e θξόλεζηο
como designando tal apreensatildeo A mesma conotaccedilatildeo do termo a saber de apreensatildeo e de elevaccedilatildeo
intelectual apresenta-se no Feacutedon
29
ideia do bem como a posiccedilatildeo que o bem passa a ocupar a noccedilatildeo de conhecimento e as
exigecircncias da ordem cognitivas
ldquo- E os que definem o prazer como um bem Seraacute que estatildeo menos
errados que os outros Esses tambeacutem natildeo seratildeo forccedilados a
reconhecer que haacute prazeres maus (Τί δὲ νἱ ηὴλ ἡδνλὴλ ἀγαζὸλ
ὁξηδόκελνη κῶλ κή ηη ἐιάηηνλνο πιάλεο ἔκπιεῳ ηῶλ ἑηέξσλ ἢ νὐ θαὶ
νὗηνη ἀλαγθάδνληαη ὁκνινγεῖλ ἡδνλὰο εἶλαη θαθάο)
- Natildeo teratildeo outra saiacuteda
- E o que acontece eacute que creio eu eles reconhecem que as mesmas
coisas satildeo boas e maacutes Natildeo eacute
- Entatildeo estaacute evidente que sobre essa questatildeo as divergecircncias
(ἀκθηζβεηήζεηο) satildeo grandes e numerosas
- Como deixariam de serrdquo (Rep 505c6-d1)
A conduccedilatildeo da questatildeo do bem para o plano que se contrapotildee agrave percepccedilatildeo do
sensiacutevel na qual se encontram o prazer e as aparecircncias O pensar a ideia do bem e as
coisas que satildeo que ganham foco na pesquisa compotildeem o polo oposto ainda indefinido
Tal dicotomia marca natildeo soacute o que se mostraraacute uma distinccedilatildeo de gecircnero e domiacutenio de
objetos e de atividades intelectivas como uma distinccedilatildeo de conduta aqui dita na
dicotomia entre a maioria que escolhe as aparecircncias (πνιινὶ ἂλ ἕινηλην ηὰ δνθνῦληα) e
os que investigam os que buscam as coisas que satildeo a realidade (ηὰ ὄληα δεηνῦζηλ) Na
mesma direccedilatildeo cabe reparar a maioria opta pelas aparecircncias enquanto os que buscam a
realidade e portanto dispotildeem do pensamento para conhecer satildeo forccedilados
(ἀλαγθάδνληαη) a reconhecer a ideia do bem Os que se apegam agraves aparecircncias o fazem
ao que parece a partir de uma escolha natildeo havendo imposiccedilatildeo de nenhum tipo para tal
enquanto os que investigam estatildeo submetidos ao que mostra a investigaccedilatildeo
Pode-se dizer que por via dessa distinccedilatildeo e contraposiccedilatildeo entre planos surgem a
noccedilatildeo de conhecimento e a perspectiva filosoacutefica tatildeo preciosa ao tipo de governo que
se almeja Ao mesmo tempo deve-se analisar que tal divisatildeo mostra a tensatildeo entre esses
polos que em algum momento teratildeo definidos o seu caraacuteter e o seu lugar segundo a
noccedilatildeo de organizaccedilatildeo que se tem em vista para a cidade Ao lanccedilar luz sobre a conduta e
ao avaliaacute-la segundo pressupostos epistemoloacutegicos que envolvem o conhecimento do
bem o texto deixa no horizonte a ligaccedilatildeo entre a esfera moral neste instante dada como
postura ante o conhecimento e a esfera cientiacutefica que deve ser a base para as questotildees
morais e poliacuteticas relaccedilatildeo que somente o filoacutesofo pode dar conta As questotildees que
envolvem o conhecimento a saber objeto e meacutetodo ofereceratildeo o teor das diferenccedilas
aqui anunciadas mas para isso uma detalhada explanaccedilatildeo acerca do pensamento ganha
30
destaque jaacute que seu caraacuteter e operacionalidade revelaratildeo os elementos fundamentais
para a realizaccedilatildeo do governo do filoacutesofo
14 O objeto de desejo do filoacutesofo
A formulaccedilatildeo filosoacutefica do bem introduz sob um novo prisma as questotildees acerca
da alma e as suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel O que se viu sugerido como um valor
cientiacutefico acessiacutevel portanto pelo pensamento e que consiste ao mesmo tempo em uma
referecircncia para um julgamento da conduta passa a ser esclarecido assim como as
peculiaridades desta atividade de conhecer tiacutepica dos que buscam apreendecirc-lo Ao
reconhecer as distinccedilotildees dos que se lanccedilam a tal apreensatildeo e portanto ao pensamento
no niacutevel mais elevado Soacutecrates e Glaacuteucon se empenham em detalhar este objeto e este
tipo de investigaccedilatildeo que inevitavelmente traratildeo consequecircncias para o entendimento
sobre a alma e sobre aquela que parece ser a sua atividade excelente Do mesmo modo
esclareceratildeo acerca da possiacutevel apreensatildeo que o natildeo filoacutesofo dado na figura do
guardiatildeo pode ter deste objeto tatildeo valioso para a vigilacircncia da cidade
ldquo- E aquilo que toda alma busca e eacute objeto de todas as suas
accedilotildees (Ὃ δὴ δηώθεη κὲλ ἅπαζα ςπρὴ θαὶ ηνύηνπ ἕλεθα πάληα
πξάηηεη) Embora suspeite que seja algo de valor ela natildeo tem como
apreender suficientemente o que ele eacute nem sentir-se confiante e
segura como a respeito de outras coisas (ἀπνκαληεπνκέλε ηη εἶλαη
ἀπνξνῦζα δὲ θαὶ νὐθ ἔρνπζα ιαβεῖλ ἱθαλῶο ηί πνη ἐζηὶλ νὐδὲ πίζηεη
ρξήζαζζαη κνλίκῳ νἵᾳ θαὶ πεξὶ ηἆιια) e por isso natildeo consegue o
que lhe seria uma ajuda A respeito de algo tatildeo grande como isso
afirmaremos que devem ficar na escuridatildeo tambeacutem os que satildeo os
melhores da cidade em cujas matildeos vamos entregar tudo
- De forma alguma disse
- Em todo caso falei creio que quando se ignora em que o
belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha um
guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes
disso conheceraacute o justo e o belo de maneira suficiente
- E teu prognoacutestico eacute acertado disse
31
- Entatildeo nossa constituiccedilatildeo estaraacute perfeitamente em ordem se
um tal guardiatildeo aquele que sabe disso mantiver vigilacircncia sobre ela
(ἐὰλ ὁηνηνῦηνο αὐηὴλ ἐπηζθνπῆ θύιαμ ὁ ηνύησλ ἐπηζηήκσλ)rdquo (Rep
505e-506b2)
Ao se questionarem sobre o verdadeiro objeto de busca da alma e o que pode ser
a causa de suas atividades aparece o bem No fundo desse questionamento estatildeo as
relaccedilotildees da alma com esta que se mostra ser a ideia com qualidades e com estatuto
ontoloacutegico privilegiado como se analisaraacute reconhecida portanto como a ideia para o
fundamento epistemoloacutegico e moral que o filoacutesofo governante tem em vista A busca de
tal fundamento deve-se atentar inicia com uma advertecircncia que prenuncia a natureza
distinta deste objeto comparaacutevel ao divino (ἀπνκαληεύνκαη) cuja apreensatildeo por
conseguinte natildeo deve ser precipitadamente tomada como suficiente ou como uma
convicccedilatildeo inabalaacutevel A compreensatildeo acerca de tal ideia e portanto acerca do alcance e
das tratativas que a alma possui com o bem note-se que isso se estende agraves almas dos
cidadatildeos (ἅπαζα ςπρὴ) deve se realizar de maneira distinta pois ilumina um ponto
crucial para a conduccedilatildeo e para a organizaccedilatildeo da cidade a causa e o modo de agir da
alma Embora o texto natildeo apresente ainda o meacutetodo especiacutefico para a anaacutelise de um
objeto como a ideia do bem como se daraacute nas proacuteximas passagens importa averiguar
na noccedilatildeo de bem o caraacuteter e as consequecircncias desse fundamento
Natildeo se deve ao que parece entregar a cidade nas matildeos de quem desconhece o
bem e a justiccedila pois disso depende a harmonia da cidade ndash ldquo-Em todo caso falei creio
que quando se ignora o belo e o bom constituem um bem natildeo vale a pena que se tenha
um guardiatildeo que ignore isso Meu prognoacutestico eacute que ningueacutem antes disso conheceraacute o
justo e o belo de maneira suficienterdquo (Rep 506a4-7) O objeto almejado por todas as
almas eacute o bem e ao que tudo indica tanto o filoacutesofo quanto o guardiatildeo podem de
algum modo acessaacute-lo Entretanto ele natildeo eacute apreensiacutevel por todas elas como mostraraacute
o livro VII e eacute preciso saber em que medida e em que condiccedilotildees tal acesso eacute possiacutevel e
o que os diferencia aleacutem das determinaccedilotildees dadas pela natureza da alma de cada um A
primeira diferenccedila que surge neste registro parece consistir em uma certa postura que
pode ser cientiacutefica ou permanecer no niacutevel das acepccedilotildees vulgares ou seja natildeo
cientiacuteficas
O filoacutesofo se dispotildee a buscar o bem e portanto demonstra ter conhecimento e
inteligecircncia diferentemente da maioria que natildeo se daacute conta da possibilidade de realizar
tal busca e prefere se fiar nas aparecircncias A figura do guardiatildeo diferente da maioria
32
sugere que eacute possiacutevel para o natildeo filoacutesofo apreender o bem e nesse caso
especificamente tal possibilidade parece se realizar de alguma forma o que eacute
necessaacuterio acontecer para o bem da cidade Cabe chamar atenccedilatildeo para o dado de que a
postura de natildeo se dar conta da importacircncia de tal busca e portanto das relaccedilotildees que o
bem manteacutem com o que eacute belo e justo retrata a ignoracircncia (ἄγλνηα) e a sua funccedilatildeo
peculiar no desenvolvimento da tese moral Ao que parece trata-se justamente de uma
condiccedilatildeo na qual a alma natildeo estaacute submetida agraves condiccedilotildees da busca e por isso natildeo chega
agrave ideia do bem mas que por outro lado apresenta a possibilidade de reconhecer de
algum modo as relaccedilotildees com ele
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar inteiramente o perfil do filoacutesofo do guardiatildeo e da maioria
sem antes verificar a especificidade da relaccedilatildeo que estes mantecircm com o bem
Entretanto eacute bom natildeo perder de vista essas trecircs categorias que apresentam em algum
grau uma relaccedilatildeo com ele seja na apreensatildeo no niacutevel mais alto seja em uma eventual
apreensatildeo de suas relaccedilotildees ou na completa falta de percepccedilatildeo de qualquer ligaccedilatildeo das
coisas com a ideia do bem O objeto legiacutetimo da alma cujos termos da uacuteltima passagem
permitem tomaacute-la como um gecircnero natildeo como um ἅπαζα ςπρὴ eacute o bem e o desafio do
governo do filoacutesofo consiste justamente em empreender o modo de governo explorando
as potencialidades de cada perfil de cidadatildeo
A necessidade de analisar a cogniccedilatildeo o que particularmente objetiva este estudo
surge nos textos a preocupaccedilatildeo em estabelecer um paradigma para os valores morais
Especialmente no livro VI como se viu importa construir uma noccedilatildeo de bem estaacutevel e
universal a qual escape agrave vulnerabilidade do senso comum e que sirva portanto de
modelo para as accedilotildees Nesse sentido se torna elucidado o papel da cogniccedilatildeo como
atividade de conhecer os valores em seu fundamento Assim o exerciacutecio racional
descrito a partir daqui deve ser tomado como o pensamento que conhece os valores
autecircnticos uma vez que apreende o que os fundamenta13
A associaccedilatildeo entre
13 Tal compreensatildeo acerca dos valores e padrotildees eacute na verdade bastante proacutexima da interpretaccedilatildeo de
Brisson e Meyerstein sobre a relaccedilatildeo da Teoria das Formas com as questotildees eacuteticas ldquoOra esta eacutetica
normativa que implica o estabelecimento de valores eacuteticos absolutos Platatildeo a funda a partir do Feacutedon
sobre a existecircncia de realidades natildeo-sensiacuteveis que escapam ao devir que representam a realidade
verdadeira e que ele chamaraacute ldquoFormasrdquo (eidos ou idea) A coragem eacute uma Forma imutaacutevel que para um
ou outro homem representa um padratildeo de medida dessa virtudePor consequecircncia o grau de perfeiccedilatildeo
ao qual o homem atinge este domiacutenio se mede pela distacircncia em relaccedilatildeo agrave este padratildeo idealrdquo Brisson
33
conhecimento e eacutetica ligaccedilatildeo a qual somente o filoacutesofo pode assimilar apoia-se de um
lado na existecircncia destes modelos que natildeo resultam de convenccedilotildees ou seja que natildeo se
estabelecem pelo haacutebito ou por interesses particulares e por outro pelo tipo de atitude
intelectual que se deve empreender A concepccedilatildeo de racionalidade estaacute submetida agraves
necessidades eacuteticas e poliacuteticas e deve ter em vista a cogniccedilatildeo deste tipo de objeto a
saber a ideia do bem e agraves demais noccedilotildees que possuem relaccedilatildeo com ela como a justiccedila
A postura filosoacutefica tem deste modo um comprometimento moral sendo o
conhecimento apreendido no exerciacutecio da filosofia o meio de executaacute-lo e desempenhar
o papel de governante Dado assim vale adiantar o proacuteprio pensamento nesta condiccedilatildeo
constitui algo de grande valor sendo o proacuteprio empreendimento racional uma
demonstraccedilatildeo de virtude Esta conclusatildeo eacute dada mais objetivamente no Feacutedon onde a
θξόλεζηο a qual tambeacutem recebe a conotaccedilatildeo de sabedoria eacute analogamente dita ser a
moeda mais valorosa (Fed 69a7-c3) A anaacutelise da atribuiccedilatildeo de sentido agrave razatildeo no
Feacutedon seraacute realizada posteriormente pois apesar de mostrar semelhanccedilas com o que se
tem visto neste toacutepico merece ser examinada com exclusividade na seccedilatildeo dedicada ao
diaacutelogo Por enquanto deve-se acompanhar as minuacutecias que mostram o caraacuteter
intelectualista fundamental na constituiccedilatildeo moral do filoacutesofo para compreender no que
consiste o intelectualismo filosoacutefico
15 A postura intelectual
As indagaccedilotildees sobre o bem recebem agora delimitaccedilotildees que mostram o registro
em que deve se dar a investigaccedilatildeo ldquo() afirmarias que o bem eacute ciecircncia ou prazer ou
algo outro (πόηεξνλ ἐπηζηήκελ ηὸ ἀγαζὸλ θῂο εἶλαη ἢ ἡδνλήλ ἢ ἄιιν ηη παξὰ ηαῦηα)rdquo
(Rep 506b2-4) O foco de anaacutelise se dirige de maneira digna de nota ao campo que
deve oferecer o bem anaacutelogo ao modo de conhececirc-lo O modo de perguntar por ele natildeo
seria como feito anteriormente ldquoo que eacute o bemrdquo A suspeita que se pode ter acerca
desta comparaccedilatildeo diz respeito agrave relaccedilatildeo que pode haver entre ele e a alma Dado que o
L Meyerstein F W Puissance et Limites de la Raison ndash Le Problegraveme des Valeurs Paris Les Belles
Lettres 2014 p 33
34
bem eacute o objeto que a alma busca e o conhecimento o modo de adquiri-lo faz sentido
assim perguntar se o bem eacute a ἐπηζηήκε ou a ἡδνλή se as considerarmos maneiras de
conceber a bondade do bem ou ao modo do conhecimento filosoacutefico ou ao modo
vulgar respectivamente O que eacute sugerido neste novo acircngulo de anaacutelise eacute novamente a
apreensatildeo mas agora verificando se o bem corresponde ao conhecimento
De acordo com as delimitaccedilotildees para investigaacute-lo natildeo eacute justo dizer o bem sem
conhececirc-lo nem parece uma boa estrateacutegia considerar as opiniotildees dos outros sobre ele
como um conhecimento sem ter ao menos uma opiniatildeo proacutepria Do mesmo modo
fingir saber o que ele eacute natildeo corresponde a uma postura cientiacutefica e justa (Rep 506b)
Tais exemplos traccedilam um perfil que seraacute associado ao natildeo filoacutesofo O que tem sido
considerado pela maioria eacute identificado como as ηὰ δόγκαηα (Rep 506b9) uma visatildeo
comum ou mesmo um percepccedilatildeo individual sobre o assunto mas motivada por uma
aparecircncia de sabedoria
ldquo- O quecirc disse eu Na tua opiniatildeo eacute justo que algueacutem fale do que
natildeo sabe como se soubesse
- Como se soubesse De forma alguma Mas como algueacutem que
quer dizer o que pensa (Τί δέ ἦλ δ ἐγώ δνθεῖ ζνη δίθαηνλ εἶλαη πεξὶ
ὧλ ηηο κὴ νἶδελ ιέγεηλ ὡο εἰδόηα Οὐδακῶο γ ἔθε ὡο εἰδόηα ὡο
κέληνη νἰόκελνλ ηαῦζ ἃ νἴεηαη ἐζέιεηλ ιέγεηλ)rdquo ( Rep 506c2-5)
Eacute importante notar que haacute nessa passagem a distinccedilatildeo de postura intelectual que
seraacute definitiva para a formulaccedilatildeo da noccedilatildeo de conhecimento e para a compreensatildeo do
pensamento Antes de iniciar a investigaccedilatildeo acerca da definiccedilatildeo da ideia do bem parece
importante verificar o que a ela se relaciona tal como a maneira mais adequada de
conhececirc-la Assim uma criacutetica acerca de sua abordagem deve ser dada nos termos dessa
postura uma vez que a alma tem o bem como objetivo Uma opiniatildeo sem conhecimento
eacute considerada uma postura vergonhosa e aquelas consideradas melhores para natildeo dizer
menos comprometedoras do ponto de vista moral carecem de esclarecimento e podem
ser comparadas a uma cegueira (Rep 506c) O que vem a seguir explica esse peso
moral do conhecimento que se pretende dar
ldquo() Ou para ti haacute alguma diferenccedila entre cegos que percorrem
seu caminho no sentido correto e os que tecircm uma opiniatildeo verdadeira
embora natildeo tenham inteligecircncia (ἢ δνθνῦζί ηί ζνη ηπθιῶλ δηαθέξεηλ
ὁδὸλ ὀξζῶο πνξεπνκέλσλ νἱ ἄλεπ λνῦ ἀιεζέο ηη δνμάδνληεο Rep
506c7-9)rdquo
35
Os que opinam sem conhecimento satildeo considerados cegos e no pior dos casos
insolentes Mesmo quando vatildeo pelo caminho correto e entatildeo incorram em um acerto
afirmando algo verdadeiro aqueles que opinam natildeo possuem inteligecircncia (λνῦο)
Chama atenccedilatildeo o dado a mais que parece ser colocado nessa passagem Entre os
que opinam se distinguem aqueles que podem ir pelo caminho correto e opinar algo
verdadeiro Esses satildeo melhores que aqueles que simplesmente proferem opiniotildees
somente por querer dizer (ἐζέιεηλ ιέγεηλ) De todo modo opiniotildees satildeo desprovidas de
inteligecircncia no entanto haacute a possibilidade do acerto Como um cego que tateia para
encontrar o caminho correto e o encontra natildeo se sabe por qual razatildeo o δνμάδνληεο natildeo
parece orientado por um discernimento acerca do que opina Tal comportamento sugere
ser a opiniatildeo verdadeira um juiacutezo correto acertado mas natildeo resulta do trabalho da
inteligecircncia O primeiro questionamento que adveacutem dessa afirmaccedilatildeo consiste em pensar
o que torna possiacutevel e como se daacute o acerto sem conhecimento No entanto antes de
tentar responder a tais perguntas vale reparar que tal acerto se daacute sem haver base
princiacutepio do qual se tenha partido e que servisse de paracircmetro para chegar a algo
verdadeiro Diferentemente do que conhece e tem inteligecircncia os que opinam com
acerto natildeo deixam de ter uma postura errante justamente por natildeo conhecerem a verdade
e seu fundamento inteligiacutevel - que consiste na ideia do bem como se veraacute adiante14
Esse talvez seja um dado a ser investigado no avanccedilar da pesquisa em
comparaccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo uma vez que provavelmente indica a possibilidade do natildeo
filoacutesofo ser governado pelo filoacutesofo e com isso se relacionar com a ideia do bem ainda
que indiretamente Todavia no momento natildeo parece haver elementos suficientes para
compreender no que pode consistir a opiniatildeo verdadeira sem uma investigaccedilatildeo acerca
da relaccedilatildeo entre a alma e o bem Por enquanto o estudo mais importante prossegue
investigando o bem a partir daquilo que se relaciona a ele tendo em vista justamente as
ligaccedilotildees que se podem apreender e que de algum modo o denunciam15
A noccedilatildeo de
acerto e as ligaccedilotildees entre o bem e o que dele deriva dito ldquofilho do bemrdquo sugerem a
complexidade das relaccedilotildees que envolvem essa ideia e portanto da noccedilatildeo do
14 Vale trazer o comentaacuterio de Julia Annas sobre a diferenccedila entre opiniatildeo verdadeira e conhecimento de
acordo com o Livro X dado que o argumento em anaacutelise apresenta a distinccedilatildeo entre um e outro embora
natildeo resolva ldquoO conhecimento envolve do mesmo modo a possibilidade de formular claramente o que eacute
o objeto conhecido e as razotildees pelas quais ele eacute como eacute ora isto implica que se saiba o que permite dar
conta de seu aspecto bom ou mal A opiniatildeo verdadeira natildeo necessita de nada dissordquo Julia ANNAS
Introdution agrave la Reacutepublique de Platon Presses Universitaires de France Paris 1a Ed 1994 pag 243-244
15 Rep 506e3-4 ldquoo que me parece ser o filho do bem e o que eacute muito semelhante a ele (ὃο δὲ ἔθγνλόο ηε
ηνῦ ἀγαζνῦ θαίλεηαη θαὶ ὁκνηόηαηνο ἐθείλῳ)rdquo
36
pensamento como sede e atividade de aquisiccedilatildeo do conhecimento tema que estaacute em
questatildeo Diante da possibilidade do acerto e da verdade na opiniatildeo eacute provaacutevel que a
oposiccedilatildeo opiniatildeo-conhecimento esboce um ponto de contato No entanto seja qual for
esta ligaccedilatildeo mostraraacute a superioridade da inteligecircncia
Vale observar que a oposiccedilatildeo entre conhecimento e opiniatildeo marcam duas
questotildees muito importantes para o prosseguimento da anaacutelise Em primeiro lugar
reforccedila a postura do filoacutesofo como uma questatildeo moral tornando possiacutevel a relaccedilatildeo
conhecimento e praacutetica isto eacute filosofia e governo Dito de maneira mais direta o
intelectualismo do filoacutesofo natildeo pode ser visto como um distanciamento da vida poliacutetica
ao contraacuterio tem seu papel assegurado nela agrave medida que a filosofia se revela
imprescindiacutevel para o bom governo Por extensatildeo a ἐπηζηήκε tem funccedilatildeo poliacutetica
definida e dessa maneira demonstra ter o trabalho racional um aspecto pragmaacutetico no
sentido fraco
Tal eacute o segundo ponto a ser observado no intelectualismo do filoacutesofo O uso da
razatildeo diante das questotildees poliacuteticas tem em vista tambeacutem o lado praacutetico do pensar o
qual se realiza no governo O pensamento que ateacute este ponto se mostra como a
inteligecircncia que conhece as ideais que fundamentam os valores morais como a ideia do
bem deve ter assim seus procedimentos objetos e alcance cognitivo explicados para
mais tarde no livro VII narrar a aplicaccedilatildeo deste conhecimento Desta forma as relaccedilotildees
e classificaccedilotildees que aparecem no livro VI constituem um rico argumento para analisar o
que talvez possa ser considerado o pensar em seu niacutevel mais alto em contraste com
outras atividades mentais Evidentemente que natildeo se exploraraacute as outras atividades aleacutem
deste propoacutesito ou seja fazer um contraponto com a inteligecircncia A busca do filoacutesofo
governante por padrotildees eacuteticos passa agora a ser analisada sob o prisma epistemoloacutegico
O dialeacutetico do livro VI mostra o caraacuteter teacutecnico da filosofia vista de agora em diante
como um exerciacutecio de aquisiccedilatildeo onde aparece com maior ecircnfase o filoacutesofo cientista ou
37
da perspectiva que mais interessa o pensamento nos termos da cogniccedilatildeo a qual a partir
de entatildeo se define como a atividade de buscar as ideias
II A Cogniccedilatildeo
21 Aquisiccedilatildeo da ideia do Bem
A pesquisa sobre o que eacute o bem eacute posta de lado sem mais nenhuma explicaccedilatildeo
aleacutem da previsatildeo de se tratar de um objeto cujas exigecircncias demandam um esforccedilo que
vai aleacutem do acircnimo (ηὴλ παξνῦζαλ ὁξκὴλ Rep 506e2)16
de Soacutecrates Dada magnitude
do bem a questatildeo passaraacute a ser investigada a partir do ldquofilho do bemrdquo recurso definido
como o que parece ser mais semelhante a ele (Rep 506d8-e5) O cuidado versaraacute sobre
realizar uma inquiriccedilatildeo de modo a oferecer uma explicaccedilatildeo um caacutelculo verossiacutemil
como o proacuteprio texto diz disto que se revelaraacute herdeiro das caracteriacutesticas do bem ndash ldquo
Recebei portanto os juros e o proacuteprio filho do bem (Rep 507a 4-5) segundo a
16 A ediccedilatildeo inglesa apresenta uma traduccedilatildeo interpretativa mas sem duacutevida bastante coerente para ηὴλ
παξνῦζαλ ὁξκὴλ ldquopresent state of thinkingrdquo Emlyn-Jones C Preddy W op cit p 85 O texto sugere a
incapacidade de apreensatildeo do pensamento diante magnanimidade da ideia do bem mas ao mesmo tempo
a pesquisa intelectual dado por uma acircnimo e por isso um vinculada a uma instacircncia desiderativa Uma
das caracteriacutesticas que distingue o filoacutesofo dos demais se refere a esta postura de busca do conhecimento
que nessa passagem aparece nos termos da ὁξκὴ Vale atentar para a noccedilatildeo de acircnimo intelectual que a
investigaccedilatildeo supotildee o qual agora eacute dita por Soacutecrates como um impulso um esforccedilo Esse seraacute um tema
tratado no livro VII durante a explicaccedilatildeo da proposta propedecircutica na qual se verificaraacute qual a disciplina
apresenta o impulso uacutetil e necessaacuterio para o trabalho intelectual
38
capacidade de apreendecirc-lo ndash ldquoTeremos o maior cuidado que pudermos disserdquo
(Εὐιαβεζόκεζα ἔθε θαηὰ δύλακηλ) (Rep 507a6) As questotildees jaacute levantadas e
definidas em discussotildees anteriores sobre as coisas boas e belas (Πνιιὰ θαιά θαὶ πνιιὰ
ἀγαζὰ) seratildeo revistas a partir desta proposta que comeccedila por distinguir a generalidade
das muacuteltiplas coisas belas e boas da essencialidade da ideia que pressupotildee o novo foco
de investigaccedilatildeo Assim o que era pensado como uma pluralidade de coisas que
apresentavam a benignidade e a beleza como caracteriacutesticas agora abre ocasiatildeo ao que eacute
essencialmente bom e belo que natildeo pode ser outra coisa que a ideia do bem e a ideia do
belo
ldquo- E o proacuteprio belo e o proacuteprio bem e da mesma forma todas
as coisas que naquele momento tiacutenhamos como muacuteltiplas (Καὶ αὐηὸ
δὴ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ θαὶ νὕησ πεξὶ πάλησλ) noacutes agora num
movimento contraacuterio consideramos cada uma em relaccedilatildeo a uma ideia
uacutenica agrave qual damos o nome de essecircncia ndash (ἃ ηόηε ὡο πνιιὰ ἐηίζεκελ
πάιηλ αὖ θαη ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο ldquoὃ ἔζηηλrdquo
ἕθαζηνλ πξνζαγνξεύνκελ)
- Eacute assim
- E das coisas muacuteltiplas afirmamos que satildeo vistas mas natildeo
pensadas enquanto as ideias satildeo pensadas mas natildeo vistas (Καὶ ηὰ
κὲλ δὴ ὁξᾶζζαί θακελ λνεῖζζαη δ νὔ ηὰο δ αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ
ὁξᾶζζαη δ νὔ)rdquo (Rep 507b5-c10)
Este constitui um importante movimento da investigaccedilatildeo ao descrever uma
postura e um foco inteiramente intelectual A perspectiva a partir da qual se pretende
apreender o bem apresenta um elemento que mostra o que haacute de essencial nele a ἰδέα
Deve-se observar a construccedilatildeo deste foco trata-se agora do proacuteprio belo e do proacuteprio
bem (αὐηὸ θαιὸλ θαὶ αὐηὸ ἀγαζόλ) O que era dito ldquoo bemrdquo e ldquoideia do bemrdquo recebe
agora especificaccedilotildees nos termos de sua identidade A questatildeo parece superar as
caracteriacutesticas e benesses do bem e da beleza para enfatizar aquilo em que mostram ser
autecircnticos ldquoele mesmordquo (ηὸ αὐηό) literalmente o bem ele mesmo o belo ele mesmo
exprimindo dessa forma a sua identidade Tal deve ser o modo a se considerar o bem o
belo e qualquer objeto que estiver sob investigaccedilatildeo O acircngulo que exprime o ηὸ αὐηό eacute
dado conforme uma ideia uacutenica (θαη ἰδέαλ κίαλ) na qual estaacute posto o que eacute essencial
oferecendo por isso o que ele eacute (ὃ ἔζηηλ) A ideia uacutenica consiste portanto no objeto
que exprime o que eacute essencial ao bem ao belo ou ao que se investiga e eacute partir dela
que se daraacute o conhecimento Os termos utilizados para questionar o bem anteriormente
39
recebem nessa passagem uma formulaccedilatildeo especiacutefica Eacute necessaacuterio ter em vista tais
especificaccedilotildees ao se referir a ἡ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέα ou para fazer qualquer investigaccedilatildeo da
ordem do conhecimento O termo ὃ ἔζηηλ antes proferido sem maiores especificaccedilotildees
(Rep 506a-b) tem determinado o seu conteuacutedo cognitivo Perguntar-se sobre o bem
consiste em saber o que ele eacute e desse modo eacute perguntar-se sobre a sua essecircncia
manifesta pela ideia Tal relaccedilatildeo entre o bem a ideia e o chamado ldquoo que eacuterdquo mostra
assim aquilo que Soacutecrates considera possiacutevel de apreender17
As especificaccedilotildees sobre a ideia e o ser ganharatildeo explicaccedilotildees O proacuteximo passo
como jaacute previsto diz respeito agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja agrave apreensatildeo da
ideia Assim o pensamento nos termos do λνῦο aparece como a atividade intelectual
adequada para apreendecirc-las em contraposiccedilatildeo a uma percepccedilatildeo sensiacutevel A dicotomia
enunciada em passagens anteriores como filoacutesofo e natildeo filoacutesofo opiniatildeo e
conhecimento tem uma versatildeo epistecircmica que deve integrar as distinccedilotildees necessaacuterias
para apurar a formulaccedilatildeo dessa perspectiva cientiacutefica o que eacute visiacutevel e o que eacute pensado
Em termos literais as ideias satildeo pensadas enquanto as coisas muacuteltiplas satildeo vistas (ηὰο δ
αὖ ἰδέαο λνεῖζζαη κέλ ὁξᾶζζαη δ νὔ) O pensamento consiste assim na faculdade para
a apreensatildeo das ideias contraposto agraves sensaccedilotildees que apreende somente o que eacute sensiacutevel
(Rep 507c3-4)
Para traccedilar um perfil mais preciso do pensamento e da postura intelectual que o
conhecimento do bem exige vale analisar primeiro o caraacuteter das sensaccedilotildees e das coisas
sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo ao que se refere ao inteligiacutevel Note-se que o que estaacute em
jogo nesse momento eacute muito mais uma definiccedilatildeo de apreensatildeo e que para isso vale
elucidar o que se refere a cada tipo quer da sensibilidade quer do pensamento No caso
das coisas sensiacuteveis antes abordadas nos termos da aparecircncia (ηὰ δνθνῦληα Rep
505d9) o texto mostra os oacutergatildeos da sensibilidade como o que traz a capacidade de
sentir Esses satildeo todavia insuficientes para oferecer qualquer elemento da ordem do
inteligiacutevel Interessa notar o elemento que estaacute para aleacutem da insuficiecircncia dos sentidos e
desse modo delimitar as diferenccedilas entre sensaccedilatildeo e pensamento que se tornam cada
vez mais precisas Importa averiguar aquilo que possibilita a apreensatildeo meio sem o
17 Adam entende que o que eacute tomado como πνιιὰ cada coisa a que se referem diz respeito a uma uacutenica
ideia mas adverte acerca das dificuldades de uma traduccedilatildeo que ofereccedila um sentido claro e simples acerca
de πνιιὰ e ἰδέαλ κίαλ O que lhe parece claro eacute que estes formam uma antiacutetese a qual denota a
contraposiccedilatildeo entre a proacutepria ideia e os πνιιὰ Adam entende que ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ consiste na forma
generalizada de o proacuteprio belo o proacuteprio bem e que o ldquobalanccedilo mais preciso entre ἰδέαλ κίαλ ἑθάζηνπ e
ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ eacute ldquouma ideia de cada umrdquo chamada ldquoo que eacuterdquo Adam J The Republic of Plato vol II
Cambridge University Press 2009 Pg 81-82
40
qual nenhuma capacidade (δύλακηο Rep 507c8) sensiacutevel e intelectual como se veraacute
poderia exercer a sua funccedilatildeo Entre o ato de ver e o objeto visto se supotildee um terceiro
elemento que torna possiacutevel esse fenocircmeno da visatildeo a luz Sem ela as cores e outras
caracteriacutesticas sensiacuteveis nos objetos seriam invisiacuteveis Natildeo seria possiacutevel utilizar o
oacutergatildeo da visatildeo uma vez que faltaria algo externo a ele que o permitisse ver (Rep
507d11-508a3) A luz eacute descrita como o viacutenculo (ζύδεπμηο Rep 508a1) entre a
sensaccedilatildeo da visatildeo e a capacidade de ser visto Ela consiste portanto naquilo que faz a
ligaccedilatildeo entre percepiente e objeto perceptiacutevel de modo a tornar possiacutevel o
desenvolvimento da capacidade da percepccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de uma
imagem e de tornar o objeto sensorial passiacutevel de ser apreendido mecanismo que
caracteriza o do fenocircmeno da visatildeo
De modo anaacutelogo e paralelo tem-se em foco delinear a capacidade de apreensatildeo
do pensamento e o que o permite atuar Eleito o oacutergatildeo de aquisiccedilatildeo das ideias parece
necessaacuterio investigar a sua relaccedilatildeo com o objeto tiacutepico de uma busca intelectual de
modo a verificar as suas potencialidades Para melhor dizer a respeito do bem faz-se
necessaacuterio especificar natildeo somente as ideias mas ter uma compreensatildeo acerca da
faculdade capaz de estabelecer relaccedilotildees com elas Nesse sentido a pesquisa do bem tal
como eacute feita nas uacuteltimas passagens lanccedila luz agraves questotildees do intelectualismo no que se
refere a sua atuaccedilatildeo como um fenocircmeno da capacidade intelectiva e seu alcance
Representado na figura do filoacutesofo ao longo dos Livros V e VI a intelectualidade
comeccedila a exibir determinaccedilotildees natildeo somente no campo da moralidade mas tambeacutem do
seu exerciacutecio cientiacutefico especiacutefico O que era analisado sob o crivo de um valor moral
como se notou nas abordagens iniciais do bem passa a ser investigado segundo a
formulaccedilatildeo da ciecircncia Da mesma maneira todos os elementos que acompanham a
questatildeo do conhecimento como a ideia e o pensamento satildeo alvo de explicaccedilotildees
Assim as proacuteximas passagens mostraratildeo as operaccedilotildees intelectivas no desenrolar da
explicaccedilatildeo sobre o bem onde seraacute possiacutevel acompanhar as formulaccedilotildees acerca de uma
tiacutepica aquisiccedilatildeo inteligente
41
22 A relaccedilatildeo entre a ideia do bem e o pensamento
A relaccedilatildeo entre faculdade de apreensatildeo e objeto apreensiacutevel depende de algo
exterior que promove a ligaccedilatildeo entre eles A luz aparece assim como um importante
elemento (ἄηηκνλ Rep 508a3) que promove uma relaccedilatildeo entre capacidades ndash de ver e
de ser visto segundo o texto Ela constitui o viacutenculo de descendecircncia entre a causa e
suas derivaccedilotildees entre o sol e o que eacute iluminado por ele possibilitando o conhecimento
acerca dos mesmos O que vem a seguir mostraraacute contudo que mais importante que
este viacutenculo entre δύλακηο como a luz eacute o que a origina a exemplo do sol (Rep
508a8) A analogia propotildee desse modo uma explicaccedilatildeo para a noccedilatildeo de viacutenculo nos
termos de uma relaccedilatildeo natural (θύσ Rep 508a9) ou seja uma relaccedilatildeo que se justifica
dada a sua origem na qual o ser originaacuterio da onde derivam os outros seres assume
maior importacircncia
ldquo- Seraacute assim a relaccedilatildeo natural da visatildeo com esse deus ( Ἆξ νὖλ
ὧδε πέθπθελ ὄςηο πξὸο ηνῦηνλ ηὸλ ζεόλ)
- Como
- A visatildeo natildeo eacute o sol nem a proacutepria visatildeo em si nem o lugar onde
dizemos que ela se daacute isto eacute os olhos
- Natildeo eacute
- Mas eacute creio eu entre os oacutergatildeos dos sentidos o olho eacute mais
semelhante ao sol (Ἀιι ἡιηνεηδέζηαηόλ γε νἶκαη ηῶλ πεξὶ ηὰο
αἰζζήζεηο ὀξγάλσλ)
- De longe o mais semelhante
- Entatildeo tambeacutem o poder que o olho tem ele natildeo o possui com algo
que como um fluxo procede do sol (Οὐθνῦλ θαὶ ηὴλ δύλακηλ ἣλ ἔρεη
ἐθ ηνύηνπ ηακηεπνκέλελ ὥζπεξ ἐπίξξπηνλ θέθηεηαη)
- Eacute bem assim
- Seraacute entatildeo que tambeacutem o sol natildeo eacute a visatildeo mas sendo a causa
dela eacute visto por meio da proacutepria visatildeo (Ἆξ νὖλ νὐ θαὶ ὁ ἥιηνο ὄςηο
κὲλ νὐθ ἔζηηλ αἴηηνο δ ὢλ αὐηο ὁξᾶηαη ὑπ αὐηο ηαύηεο)rdquo (Rep
508a9-b10)
O sol natildeo eacute o fenocircmeno da visatildeo tampouco os olhos oacutergatildeo da visatildeo
(ἡιηνεηδέζηαηόλ Rep 508a9-11) embora os olhos constituam o oacutergatildeo mais semelhante
e portanto mais afim com o sol A capacidade de visatildeo que tecircm os olhos adveacutem do sol
ou seja eacute posta em atividade por ele que no seu papel de fonte originaacuteria transmite tal
habilidade como um fluiacutedo funccedilatildeo desempenhada pela luz A explicaccedilatildeo dada por esta
analogia descreve a relaccedilatildeo de causa e explicita o que se deve entender por uma relaccedilatildeo
42
a ligaccedilatildeo que promove um fenocircmeno a partir do desenvolvimento das capacidades do
objeto apreensiacutevel e do oacutergatildeo que o apreende Trata-se da atribuiccedilatildeo de capacidades e o
que permite o desenvolvimento delas que se explica a partir de uma figura originaacuteria e
superior como o sol Ao que tudo indica a importacircncia de pocircr em foco os elementos
que participam dessa relaccedilatildeo de modo a elencaacute-los e distingui-los estaacute em pocircr em
questatildeo a natureza do que causa o desdobramento da percepccedilatildeo a partir do mecanismo
que constitui o fenocircmeno da visatildeo Natildeo seria correto para a investigaccedilatildeo reconhecer a
causa errada de uma apreensatildeo tampouco superestimar a superioridade do que assume
tal funccedilatildeo
De modo anaacutelogo a natureza inteligiacutevel da ideia do bem natildeo deve ser
confundida nem ter a sua superioridade mitigada reconhecendo-se assim a
superioridade disto que se mostraraacute mais adiante ser o gecircnero inteligiacutevel Da mesma
forma admite-se a superioridade da alta intelecccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees que se tem
na opiniatildeo uma vez que somente nesse niacutevel se pode conhecer algo sobre a verdadeira
causa O estudo do bem como αἴηηνο se revela como um ganho ao mostrar a cadeia de
relaccedilatildeo que eacute possiacutevel inferir a partir da relaccedilatildeo que se mostra entre causa e o que eacute
causado Como sugere a analogia o sol ao emanar seus fluiacutedos permite o conhecimento
do que eacute iluminado e a inferecircncia acerca dele proacuteprio Natildeo eacute conveniente para o
momento discutir a relaccedilatildeo de causalidade que sugestivamente eacute dada na analogia antes
das uacuteltimas informaccedilotildees que o texto iraacute apresentar sobre o bem e a ideia do bem
Interessa observar na analogia a proposiccedilatildeo da relaccedilatildeo entre pensamento e objeto que o
desdobramento da δύλακηο promove a partir da descriccedilatildeo desse ser causador e superior
Tal desdobramento que por ora aparece nos termos do fenocircmeno da percepccedilatildeo sensiacutevel
e da aquisiccedilatildeo inteligiacutevel indicaraacute a origem do comportamento do filoacutesofo do guardiatildeo
e dos outros cidadatildeos quando observado como estados (παζήκαηα) da alma
oferecendo assim uma explicaccedilatildeo mais objetiva sobre as operaccedilotildees do pensamento
Outro dado ao qual se deve dar atenccedilatildeo diz respeito agrave natureza do oacutergatildeo de
apreensatildeo semelhante ao ser originaacuterio Essa consiste em uma importante informaccedilatildeo
para compor a caracterizaccedilatildeo do pensamento como faculdade do conhecimento e
portanto afim com a ideia e com o bem A exemplo dos olhos o oacutergatildeo dos sentidos
mais semelhante com o sol e que sugere portanto uma afinidade natural com ele
descreve a relaccedilatildeo que o pensamento como oacutergatildeo do conhecimento e da inteligecircncia
deve estabelecer com as ideias inteligiacuteveis as quais oferecem de algum modo o bem
A natureza do pensamento eacute semelhante agrave natureza do bem e das ideias e portanto deve
43
ser o meio para reconhecer a relaccedilatildeo que haacute entre o ἀγαζόο e as outras coisas que dele
derivam Deve-se observar que posto nos termos de uma relaccedilatildeo natural de filiaccedilatildeo o
pensamento deve apresentar as caracteriacutesticas afins com o bem Entretanto o texto
ainda natildeo oferece tais elementos antes de propor uma anaacutelise das complexidades do
pensar como uma atividade na alma Por enquanto a distinccedilatildeo entre apreensatildeo
capacidades e fonte de origem parece importante para que se possa mais adiante
empreender uma anaacutelise das operaccedilotildees intelectuais ateacute aqui sugeridas Do mesmo modo
tais diferenciaccedilotildees parecem fundamentais para caracterizar e qualificar o pensar e o
conhecimento de modo a compreender uma certa hierarquia que se constroacutei a partir da
noccedilatildeo de valor a saber a magnanimidade do bem e a importacircncia da ideia do bem
analogamente descrita na superioridade do sol como paracircmetro como referecircncia Como
um paracircmetro tal superioridade permite qualificar algo como niacutetido ou verdadeiro
quando posto em relaccedilatildeo ao bem18
O jogo de oposiccedilotildees que se tem observado ao longo desta pesquisa mostra na
oposiccedilatildeo visiacutevel-inteligiacutevel dita diretamente na analogia do sol as relaccedilotildees que se pode
estabelecer entre os diferentes domiacutenios Vale examinar este tracircmite na figura da luz e
na descriccedilatildeo da relaccedilatildeo de descendecircncia entre o sol e seus filhos onde satildeo sugeridas as
noccedilotildees de causalidade e semelhanccedila como elementos importantes para a atividade
intelectual
ldquo- Pois bem disse eu Deves pensar que eu afirmo que o sol eacute o
filho do bem aquele que o bem engendrou como anaacutelogo a si mesmo
(ηὸλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἔθγνλνλ ὃλ ηἀγαζὸλ ἐγέλλεζελ ἀλάινγνλ ἑαπηῷ)
cuja relaccedilatildeo no mundo inteligiacutevel com a inteligecircncia e as coisas
inteligiacuteveis eacute a mesma que o sol tem no mundo visiacutevel com a vista e
as coisas visiacuteveis (ὅηηπεξ αὐηὸ ἐλ ηῷ λνεηῷ ηόπῳ πξόο ηε λνῦλ θαὶ ηὰ
λννύκελα ηνῦην ηνῦηνλ ἐλ ηῷ ὁξαηῷ πξόο ηε ὄςηλ θαὶ ηὰ ὁξώκελα)rdquo
(Rep 508b12-c2)
18 As palavras de Giovanni Casertano trazem este raciociacutenio de maneira melhor resumida ldquoParece-me
claro que aqui a ideia do bem eacute o que transforma conhecimentos nun sistema fortemente organizado a
que podemos chamar ciecircncia ἐπηζηήκε e ao mesmo tempo valida a niacutevel superior os mesmos
conhecimentos eacute o que daacute um valor maior aos mesmos conhecimentos Neste sentido deve-se entender
que ela eacute a causa tambeacutem da verdade e esta ideia do valor maior conferido da ideia do bem aos
conhecimentos seraacute reafirmado logo depois realccedilando ainda que o sentido do que se quer dizer eacute iacutensito
na imagem que se estaacute usandordquo Casertano G ldquoO Bem e a Linhardquo in Xavier D Cornelli G (orgs) A
Repuacuteblica de Platatildeo ndash Outros Olhares Satildeo Paulo Loyola 2011 p 291 A perspectiva cientiacutefica tal como
aqui se pretende delinear coloca o bem como mostra claramente o comentaacuterio em uma posiccedilatildeo de
superioridade em uma hierarquia que deve ser entendida nos termos de uma divisatildeo na qual os elementos
se organizam em relaccedilatildeo a ele Sendo assim a valoraccedilatildeo que se atribui aos termos diz respeito ao grau de
cognoscibilidade que oferecem nessa relaccedilatildeo
44
O texto se encaminha de modo a pontuar conclusotildees sobre as questotildees postas
aqui O sol eacute a causa (αἴηηνο) da visatildeo uma vez que oferece a luminosidade para que se
realize o fenocircmeno da percepccedilatildeo De modo anaacutelogo conclui-se que o sol eacute a ideia do
bem o filho do bem e que por ser seu descendente eacute semelhante a ele O conhecimento
por sua vez eacute representado nos termos da acuidade da visatildeo do ver nitidamente o que
se observa (Rep 508c4-d2) exibindo assim uma condiccedilatildeo desta formulaccedilatildeo de
conhecimento que vem sendo construiacuteda a condiccedilatildeo de clareza que seraacute explorada mais
adiante Agora dito explicitamente o texto confirma a equiparaccedilatildeo do sol ao filho do
bem Toda a narrativa acerca do fenocircmeno da visatildeo serve para introduzir e estabelecer
os temas considerados importantes no que se refere agrave inteligecircncia Comparado ao sol no
mundo sensiacutevel o bem eacute a causa e o pensamento e as coisas pensadas apresentam com
ele a mesma relaccedilatildeo que a haacute entre o sol a vista e as coisas visiacuteveis A figura da
descendecircncia que aos poucos eacute dita em termos cada vez mais precisos apresenta aquela
que seraacute uma importante noccedilatildeo para a apreensatildeo inteligiacutevel a semelhanccedila que pode
haver em uma analogia Dada como uma caracteriacutestica herdeira do bem ela mostra a
potencialidade de oferececirc-lo ainda que natildeo de modo fidedigno como se veraacute Ela
consiste desse modo em um dos meios pelo qual o pensamento pode se lanccedilar em
busca de uma apreensatildeo pois eacute possiacutevel inferir que o exprime da maneira mais
proacutexima Note-se que ao afirmar que o sol eacute semelhante ao bem o texto valida as
relaccedilotildees feitas na analogia e as consequecircncias que se pode tirar delas Ao mesmo tempo
pontua os graus de descendecircncia e portanto em que grau os objetos em questatildeo se
relacionam com ele
Tais comparaccedilotildees tecircm seus propoacutesitos melhor compreendidos e averiguados
quando analisados em relaccedilatildeo agrave alma A pesquisa do filoacutesofo mostra a sua importacircncia agrave
medida que compreende o quanto que lhe for possiacutevel o valor do bem como fonte
originaacuteria O que antes era sugerido como objeto altamente valoroso (ἀπνκαληεπνκέλε
Rep 505e1) e que por isso qualificava aqueles que empreendiam a sua busca
(θνκςνηέξνηο Rep 505b6) tem explicita a sua importacircncia e distinccedilatildeo nas conclusotildees
da analogia
ldquo- () Pensa assim tambeacutem a respeito da alma Quando ela se
apoacuteia no que a verdade e o ser iluminam ela o concebe e parece ter
inteligecircncia (Οὕησ ηνίλπλ θαὶ ηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη19
ὅηαλ κὲλ νὗ
19 Para compreender melhor a passagem e a proacutepria analogia vale trazer a versatildeo do texto grego
estabelecido por Proclus que Eacutemile Chambry apresenta em seu aparato criacutetico ldquoηὸ ηο ςπρο ὧδε λόεη ηὸ
45
θαηαιάκπεη ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ εἰο ηνῦην ἀπεξείζεηαη ἐλόεζέλ ηε
θαὶ ἔγλσ αὐηὸ θαὶ λνῦλ ἔρεηλ θαίλεηαη) Quando poreacutem se apoacuteia em
algo em que se mistura com a escuridatildeo aquilo que vem a ser e
perece ela emite opiniotildees e a visatildeo turva porque vai mudando suas
opiniotildees numa e noutra direccedilatildeo e entatildeo se assemelha a algueacutem que
natildeo tem inteligecircncia (δνμάδεη ηε θαὶ ἀκβιπώηηεη ἄλσ θαὶ θάησ ηὰο
δόμαο κεηαβάιινλ θαὶ ἔνηθελ αὖ λνῦλ νὐθ ἔρνληη)rdquo (Rep 508d4-9)
Ao reconhecer superioridade do bem a pesquisa pontua os objetos herdeiros
dele ao mesmo tempo em que confere agrave inteligecircncia a superioridade de sua capacidade
cognitiva Dito de outro modo o λνῦο mostra sua aptidatildeo inteligiacutevel ao se revelar o
meio adequado para investigar tais objetos adquirindo deles aquilo que eacute apreensiacutevel
intelectualmente como a ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Nessa atividade reside o alto valor da
intelecccedilatildeo em comparaccedilatildeo ao tipo de apreensatildeo que se tem na opiniatildeo a percepccedilatildeo A
nitidez necessaacuteria para o conhecimento mostra a verdade e o ser caracteriacutesticas do bem
as quais a alma se fixa (ἀπεξείδσ Rep 508d5) ou se apoia como prefere a traduccedilatildeo
para ter aquela que parece ser a sua melhor condiccedilatildeo o seu melhor estado a λόεζηο Ter
inteligecircncia supotildee este processo de aquisiccedilatildeo que culmina na apreensatildeo de tais atributos
ao mesmo tempo iluminados (θαηαιάκπεη) dados pelo bem
Conveacutem notar assim o sentido em que o texto oferece a verdade que
acompanha o ser nessa passagem como um atributo do bem apreensiacutevel pela alta
intelecccedilatildeo Diferentemente de como foi referido anteriormente (Rep 506c) a verdade
natildeo aparece nos termos de um acerto que pode eventualmente se dar mas como uma
caracteriacutestica do bem que oferece condiccedilotildees para reconhecer o que eacute inteligiacutevel
comparaacutevel agrave luz do sol A passagem mostra os elementos a partir dos quais se daacute a
aquisiccedilatildeo do bem e o proveito que a alma tem desse conhecimento sendo a verdade e o
ser o que deve ser conhecido Cabe considerar assim que este ldquofixar-serdquo da alma diz
respeito agrave apreensatildeo entretanto vale questionar o sentido em que se pode compreendecirc-
lo como uma aquisiccedilatildeo No registro do conhecimento como se tem visto refere-se a um
ὄκκα ηο ςπρο ᾧ δε λόεη ndash Chambry La Republic ed Belles Lettres p 138 As ediccedilotildees biliacutengues no
geral natildeo optam pela versatildeo de Proclus mas cabe comentar as opccedilotildees dado que a passagem sugere o
pensamento anaacutelogo aos olhos e a aquisiccedilatildeo da ideia comparaacutevel ao fenocircmeno da visatildeo Considerar a
inteligecircncia como ldquoos olhos da almardquo parece uma analogia plenamente possiacutevel nessa oraccedilatildeo uma vez
que tal expressatildeo aparece em 533d2 Deve-se entender a inteligecircncia como ldquoolhos da almardquo no sentido de
autecircntico oacutergatildeo do conhecimento e acompanhar o seu desempenho no contexto do estabelecimento de
papeacuteis na relaccedilatildeo cognoscente-cognosciacutevel Seguindo a simetria que a analogia apresenta ao longo da
argumentaccedilatildeo a λνήζηϛ corresponde agrave visatildeo (ὄςηο ὁξάσ) os olhos (ὀθζαικόο ὄκκα) oacutergatildeos da visatildeo ao
λνῦο faculdade da cogniccedilatildeo as vistas o exerciacutecio da visatildeo se refere ao exerciacutecio do intelecto e ao
conhecimento Da mesma forma o sol eacute anaacutelogo agrave ideia do Bem a luz eacute anaacuteloga agrave verdade e as cores
assim como o que se apreende como fenocircmeno visual corresponde agraves ideias
46
tomar posse adquirir caracteriacutesticas inteligiacuteveis do bem verdade e ser Em um outro
sentido bastante possiacutevel mas que natildeo parece conveniente nesse contexto diz respeito
ao fitar ter em mira bastante afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo da ideia inteligiacutevel
aparentemente ainda natildeo sugerida aqui De qualquer modo ter inteligecircncia (λνῦλ ἔρεηλ)
compreende um contato com o inteligiacutevel conduzido pela verdade que promoveraacute um
efeito dito conhecimento O modo e as razotildees para a alma se manter presa a esses
aspectos se daraacute em parte ao longo da explanaccedilatildeo sobre o meacutetodo Por enquanto tem-
se enunciado a importacircncia desta aquisiccedilatildeo e a descriccedilatildeo da postura daquele que pode
adquirir o conhecimento por se lanccedilar a esse exerciacutecio o qual se pode denominar
intelecccedilatildeo no maior grau
Deve-se chamar atenccedilatildeo para o desenlace da sugestatildeo de inteligecircncia como alta
capacidade de aquisiccedilatildeo que o texto apresentou anteriormente (Rep 505b4) nos termos
do θξνλεῖλ e do λνῦο Os desdobramentos desta noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo que vem sendo
construiacuteda qualifica a divisatildeo dos dois tipos de apreensatildeo Segundo o que sugere a
ultima analogia a aquisiccedilatildeo inteligente eacute considerada a mais alta dado o valor dos
abjetos que adquirem enquanto as percepccedilotildees do sensiacutevel ao modo da opiniatildeo eacute posto
em um niacutevel inferior A partir da argumentaccedilatildeo acerca dos aspectos do bem que devem
ser conhecidos e portanto o alvo cognosciacutevel da alma justifica-se a valorizaccedilatildeo pela
busca do bem e o desprezo pela aparecircncia agora nos termos epistemoloacutegicos como quer
a formulaccedilatildeo de conhecimento para a filosofia Tecircm-se os elementos que estatildeo em vista
no verdadeiro conhecimento e com isso uma descriccedilatildeo da conduta da alma nessa
atividade de alta intelecccedilatildeo A retidatildeo da alma do que foi pensado e conhecido
demonstra a relaccedilatildeo natural entre o bem e o resultado dessa relaccedilatildeo ter a verdade e o
ser permanecer de algum modo vinculados a eles o que descreve a θξόλεζηο e a
λόεζηϛ20
Este parece ser um tema crucial de acordo com as intenccedilotildees poliacuteticas do filoacutesofo
Pode-se depreender que o conhecimento como posse da verdade e do ser dado nesta
vinculaccedilatildeo da alma eacute o que garante o bom governo e a organizaccedilatildeo da cidade A
importacircncia de investigar acerca do pensar e evidentemente os seus modos de
apreensatildeo estaacute justamente em tornar expliacutecito o exerciacutecio intelectual que acontece na
20 Descrita assim a noccedilatildeo de aquisiccedilatildeo eacute bastante parecida com a que se encontra no Feacutedon 79d uma
relaccedilatildeo do pensamento com os seres do domiacutenio inteligiacutevel na qual se tem concomitantemente agrave
aquisiccedilatildeo da ideia a atividade desta apreensatildeo sendo ela proacutepria o resultado da interaccedilatildeo entre a alma e a
ideia Esta talvez constitua a visatildeo mais patente do pensamento nos termos de uma faculdade no qual o
intelecto eacute agente do conhecimento e paciente ao receber do inteligiacutevel estiacutemulo para continuar em
atividade
47
mais alta intelecccedilatildeo e que vai garantir ao filoacutesofo governar com justiccedila Do mesmo
modo iraacute permitir ao filosoacutefo conhecer o alcance e o comportamento intelectual do natildeo
filoacutesofo conhecimento bastante uacutetil para organizar harmonicamente as categorias que
compotildeem a cidade Tal vinculaccedilatildeo entretanto parece ganhar maiores detalhamentos na
analogia da linha Ateacute aqui o que se tem constitui uma caracterizaccedilatildeo ainda pouco
teacutecnica do pensar mas suficiente para oferececirc-lo no sentido restrito aos interesses da
filosofia Deve-se ter em vista que os passos dados pontuam as questotildees que unem o
objetivo poliacutetico e epistecircmico ao lanccedilar para a alma os temas analisados No entanto o
teor desta ligaccedilatildeo entre conhecimento e organizaccedilatildeo poliacutetica seraacute elucidado somente
apoacutes uma anaacutelise da atividade da alma que aparece como se examinaraacute nos termos da
percepccedilatildeo sensiacutevel e da cogniccedilatildeo A aquisiccedilatildeo do conhecimento teraacute a sua explicaccedilatildeo
como fenocircmeno psiacutequico permitindo propor ao mesmo tempo a atividade inteligente de
modo autecircntico e as consequecircncias eacuteticas desta aquisiccedilatildeo temas indiretamente
enunciados nessa vinculaccedilatildeo da alma que pressupotildee a θξόλεζηο e a λόεζηϛ A
formulaccedilatildeo da ideia do bem tem junto com a explicaccedilatildeo do conjunto de atividades
mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo sua posiccedilatildeo definida da onde teraacute explicitado seu papel
de paracircmetro modelo e causa
Antes de um exame minucioso sobre as operaccedilotildees intelectivas cabe ainda
analisar com detalhes o que o texto conclui sobre o bem apoacutes a exposiccedilatildeo da sua relaccedilatildeo
com as ideias e com o pensamento tal como se viu Deve-se observar a transposiccedilatildeo
dos elementos da analogia para a teoria do conhecimento e da ideia do bem que se
propotildee Nesta transposiccedilatildeo estatildeo os dados epistemoloacutegicos que passam a ser utilizados
na investigaccedilatildeo os quais constituem a perspectiva cientiacutefica que Soacutecrates pretende dar
aos objetos em questatildeo
ldquo- Pois bem Eis o que deves afirmar Eacute a ideia do bem que
confere verdade ao que estaacute sendo conhecido e capacidade ao que
conhece (ηὸ ηὴλ ἀιήζεηαλ παξέρνλ ηνῖο γηγλσζθνκέλνηο θαὶ ηῷ
γηγλώζθνληη ηὴλ δύλακηλ ἀπνδηδὸλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἰδέαλ θάζη εἶλαη)
Deves pensaacute-la como causa da ciecircncia e da verdade na medida em
que esta eacute conhecida (αἰηίαλ δ ἐπηζηήκεο νὖζαλ θαὶ ἀιεζείαο ὡο
γηγλσζθνκέλεο κὲλ δηαλννῦ) mas embora a ciecircncia e a verdade
sejam belas pensaraacutes com acerto se pensares que a ideia do bem natildeo
se confunde com elas e as supera em beleza (ἄιιν θαὶ θάιιηνλ ἔηη
ηνύησλ ἡγνύκελνο αὐηὸ ὀξζῶο ἡγήζῃ ἐπηζηήκελ δὲ θαὶ ἀιήζεηαλ)
Como aqui eacute correto considerar que a luz e a visatildeo satildeo semelhantes
ao sol (ἡιηνεηδ) mas natildeo eacute correto tecirc-las como o sol assim tambeacutem
eacute correto considerar que laacute sejam semelhantes ao bem (ἀγαζνεηδ)
mas natildeo eacute correto considerar que uma ou outra seja um bem Ao
48
contraacuterio deve-se atribuir um valor ainda maior agrave natureza do bem
(ἀιι ἔηη κεηδόλσο ηηκεηένλ ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ)
- A beleza de que falas eacute extraordinaacuteria disse se ela potildee agrave nossa disposiccedilatildeo a ciecircncia e
a verdade mas as supera em beleza (εἰ ἐπηζηήκελ κὲλ θαὶ ἀιήζεηαλ παξέρεη αὐηὸ δ ὑπὲξ ηαῦηα
θάιιεη ἐζηίλ) E tu natildeo deves estar falando que o belo eacute o prazerrdquo (Rep 508e-509 a)
A ideia do bem eacute a causa do conhecimento e da verdade mas natildeo eacute nem a
proacuteprio conhecimento nem a verdade Como causador natildeo pode ser confundida com os
seus derivados dado que esses apresentam algumas de suas caracteriacutesticas como a
verdade e a ciecircncia que satildeo belos Apesar de compartilharem caracteriacutesticas o causador
excede (ὑπέξ) em grau as qualidades atribuiacutedas por ele ao seu derivado Tais qualidades
satildeo suficientes para conferir a benignidade do bem ao que dele deriva entretanto
permitem apenas inferir a partir deles uma dimensatildeo do bem sugestivamente inatingiacutevel
O pensamento como a capacidade de atingi-lo pode no seu exerciacutecio inferir acerca
dele mesmo que natildeo possa apreendecirc-lo totalmente Tal limitaccedilatildeo do pensamento natildeo
representa apesar disso um impedimento para o conhecimento de sua natureza
inteligiacutevel Saber o que eacute o bem nesse sentido constitui um empreendimento para aleacutem
das possibilidades de uma intelecccedilatildeo elevada O que eacute cognosciacutevel acerca dele natildeo deve
ser confundido com ele proacuteprio e este parece consistir em um dos primeiros
discernimentos para a sua apreensatildeo
Para melhor definir e compreender no que consiste uma atuaccedilatildeo inteligente
deve-se analisar as uacuteltimas conclusotildees da analogia sobre o bem segundo a analogia do
sol Como se viu tem-se por objetivo avaliar a sua condiccedilatildeo (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ ἕμηλ Rep
509a5) de modo a verificar o seu papel de fundamento da justiccedila e das virtudes
conforme enunciado no iniacutecio da investigaccedilatildeo As uacuteltimas palavras da analogia do sol
coloca finalmente a questatildeo na perspectiva ontoloacutegica que eacute introduzida a partir de
outra analogia uma imagem do bem (ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ Rep 509a9)
ldquo- Creio que diraacutes que o sol natildeo soacute proporciona aos objetos
visiacuteveis a capacidade de serem vistos mas tambeacutem a gecircnese o
crescimento e a nutriccedilatildeo embora ele proacuteprio natildeo seja a gecircnese (ηὴλ
ηνῦ ὁξᾶζζαη δύλακηλ παξέρεηλ θήζεηο ἀιιὰ θαὶ ηὴλ γέλεζηλ θαὶ
αὔμελ θαὶ ηξνθήλ νὐ γέλεζηλ αὐηὸλ ὄληα)
- Como poderia
- Pois bem Deves dizer tambeacutem que natildeo soacute eacute sob a accedilatildeo do bem
que a faculdade de serem conhecidos estaacute presente nos objetos (ηνῖο
γηγλσζθνκέλνηο ηνίλπλ κὴ κόλνλ ηὸ γηγλώζθεζζαη θάλαη ὑπὸ ηνῦ
ἀγαζνῦ παξεῖλαη) mas tambeacutem que eacute sob a accedilatildeo dele que eles ainda
49
vecircm a ter a existecircncia e o ser (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ ὑπ
ἐθείλνπ)21
muito embora o bem natildeo seja essecircncia mas esteja muito
aleacutem da essecircncia em majestade e poder (πξεζβείᾳ θαὶ δπλάκεη )rdquo
(Rep 509b)
O sol proporciona a geraccedilatildeo o crescimento e a nutriccedilatildeo mas ele proacuteprio natildeo eacute a
geraccedilatildeo Condiccedilatildeo anaacuteloga ao bem que proporciona ao objeto a possibilidade de ser
conhecido ser e essecircncia a qual como se veraacute seraacute apreendida nos termos da
realidade Ele proacuteprio natildeo eacute uma essecircncia ele age sobre o que a ele se relaciona O bem
nessa condiccedilatildeo distingue-se de tais objetos do ser e da essecircncia denotando assim a
superioridade de sua posiccedilatildeo e de sua potecircncia Note-se que a ultima passagem
apresenta definiccedilotildees importantes A primeira se refere agraves caracteriacutesticas do bem que os
objetos recebem o ser e a realidade (ηὸ εἶλαί ηε θαὶ ηὴλ νὐζίαλ) e a cognoscibilidade
Disso decorre principalmente a definiccedilatildeo em termos ontoloacutegicos do conhecimento a
aquisiccedilatildeo dessas caracteriacutesticas dadas aos objetos na relaccedilatildeo com o bem ou seja a
apreensatildeo da realidade e do ser que neles se apresentam O bem consiste portanto na
causa do ser e da realidade que traz a essecircncia apreensiacuteveis pelo intelecto mas natildeo
pode ser conhecido em sua integridade apenas inferido por aquela que consiste na ideia
mais proacutexima mais semelhante a ele a ideia do bem (Rep 508e-509a4)22
A abordagem ontoloacutegica do bem oferece a perspectiva cientiacutefica como quer a
filosofia Ao apresentar os verdadeiros objetos cognosciacuteveis nesses termos tem-se a
especificidade dos objetos da intelecccedilatildeo da cogniccedilatildeo (γλῶζηο) e da ἐπηζηήκε que
exigiraacute uma explicaccedilatildeo acerca deste gecircnero filiado agrave ideia do bem e desse tipo de
apreensatildeo Vale por enquanto pontuar o que a analogia pretendeu esclarecer o bem eacute
21 Na ediccedilatildeo inglesa temos ldquobeing and realityrdquo opccedilatildeo que parece conveniente ao contexto uma vez que
a questatildeo ontoloacutegica natildeo parece abordar nesta e nas proacuteximas argumentaccedilotildees a questatildeo da existecircncia mas
da realidade dos objetos promovida por esta participaccedilatildeo na ideia do bem Emly-Jones Preddy op cit p
95
22 Para elucidar o que aqui se explica vale citar o que diz Gosling sobre no que consiste a definiccedilatildeo a
partir da noccedilatildeo de conhecimento n‟A Repuacuteblica ldquoPara Platatildeo tambeacutem se concebe o conhecimento como
satisfazer a pergunta bdquoo que eacute X‟ Expresso nos termos de bdquoX eacute F e G‟ isso natildeo parece ser um defeito na
linguagem mas reflete o fato necessaacuterio de que vaacuterias formas satildeo inextrincavelmente inter-relacionadas
Gosling JCB The Argument of the Philosophers Routledge London and New York 3a ed 2001 pg 120
Este seria o caso dos bdquofilhos do bem‟ como se veraacute em seguida no qual todos apresentam o Bem como
causa e por isso se relacionam a ele necessariamente em termos loacutegicos B bsup1 bsup2 bn Desse modo o Bem
pode ser visto a partir da perspectiva inversa ou seja a partir do que dele se origina como acontece com
a verdade com a realidade e com o justo por exemplo Nesse sentido parece compreensiacutevel e pertinente
a questatildeo e a resposta de Gosling as quais antecipam a questatildeo ontoloacutegica e a noccedilatildeo de conhecimento
que seraacute trabalhada no Livro VI e especialmente no Livro VII ao se averiguar as operaccedilotildees especiacuteficas da
matemaacutetica e da dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar a proposta e as distinccedilotildees entre bem e ideia
introduzidas neste argumento cujas diferenciaccedilotildees se apresentaratildeo ao longo da formulaccedilatildeo de
conhecimento (γλῶζηο e ἐπηζηήκε)
50
superior e inapreensiacutevel A ideia do bem o ser a essecircncia a verdade e o conhecimento
satildeo originados pelo Bem Dentre esses a ideia do bem eacute a ideia semelhante a ele sendo
possiacutevel supor portanto uma distinccedilatildeo entre a ideia do bem e as outras ideias Todo
objeto cognosciacutevel tem ser essecircncia e verdade caracteriacutesticas que o torna cognosciacutevel
O pensamento (θξόλεζηο e λόεζηϛ) como oacutergatildeo do conhecimento mostra-se afim desse
tipo de objeto e por consequecircncia afim com a ideia do bem (ἀγαζνεηδ Rep 509a3)
Assim o pensamento como faculdade da cogniccedilatildeo e capacidade cognitiva eacute da mesma
maneira afetado pela accedilatildeo do bem cujo efeito seraacute o desdobramento da capacidade de
intelecccedilatildeo
Eacute importante atentar para as consequecircncias da teoria do bem e da ideia do bem
para que se possa precisar com mais detalhes o pensamento especialmente no que diz
respeito agrave cogniccedilatildeo Parece imprescindiacutevel para compreender as perspectivas em que o
texto o evoca a saber como faculdade e atividade do conhecimento as diferenciaccedilotildees
que esta hierarquia entre bem ideia do bem e outros objetos que possam ser alvo de
uma atividade de cogniccedilatildeo supotildeem Diante do que se tem examinado as caracteriacutesticas
do objeto satildeo condiccedilotildees para a cogniccedilatildeo tanto quanto a faculdade de conhecer Ambos
faculdade do conhecimento e o objeto tecircm de possuir o caraacuteter inteligiacutevel dado pelo
bem como mostrou a analogia do sol ao enfatizar a capacidade do objeto de ser
percebido e a capacidade do percepiente de perceber Desse acircngulo o estudo sobre o
bem serviu para pontuar a condiccedilatildeo de cada elemento de modo a estabelecer e a elucidar
a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo entre eles Nesta ligaccedilatildeo parece clara a ideia do bem como
fundamento a partir do qual se tem um elemento ativo o intelecto e um passivo o
objeto inteligiacutevel Assim tatildeo importante quanto delimitar e elucidar no que consiste
uma atividade inteligente eacute discernir e definir qual eacute o objeto proacuteprio da inteligibilidade
No desenrolar da investigaccedilatildeo sobre o conhecimento e sobre o conhecimento da justiccedila
e das virtudes por consequecircncia faz-se necessaacuterio averiguar na mesma medida a postura
intelectual o procedimento intelectual e as condiccedilotildees de cogniccedilatildeo que objeto em
questatildeo oferece
51
As explicaccedilotildees acerca da ideia do bem fazem parte da enunciaccedilatildeo e da divisatildeo
que o discurso tiacutepico da filosofia realiza (θακέλ ηε θαὶ δηνξίδνκελ ηῷ ιόγῳ Rep
507b3) De outro acircngulo pode-se verificar assim no que consiste o caraacuteter racionalista
de uma investigaccedilatildeo filosoacutefica e as suas bases teoacutericas Dados os esclarecimentos sobre
seu objeto especiacutefico ao mesmo tempo se observa a formulaccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo
entre pensamento e sensaccedilotildees a qual recebe uma diferenciaccedilatildeo no registro ontoloacutegico
Com a uacuteltima explicaccedilatildeo sobre a essecircncia antes definida como ldquoideia uacutenicardquo temndashse a
explicaccedilatildeo da origem dos objetos especiacuteficos do pensamento e do que os constituem
enquanto objetos da cogniccedilatildeo (507b) No entanto natildeo parece haver uma completa
compreensatildeo das dificuldades que envolvem o estudo do bem sem antes verificar a
atuaccedilatildeo do intelecto nessa empresa de compreender o que dele se pode conhecer A
busca racionalista do bem parece demandar ainda um maior entendimento sobre sua
inteligibilidade que consequentemente estaacute envolvida na cogniccedilatildeo Ao mesmo tempo
o procedimento adequado para um conhecimento dessa natureza seraacute um ponto
decisivo uma vez que deve se mostrar afim como se analisaraacute com o gecircnero
intelectualista do bem Nesse sentido parece importante antes averiguar o que a
analogia da linha apresenta acerca do gecircnero e dos procedimentos inteligiacuteveis a fim de
obter uma maior compreensatildeo sobre as ideias sobre a suposta hierarquia que haacute entre
elas e sobre as distinccedilotildees e procedimentos da atividade do pensamento nessa aquisiccedilatildeo
23 Distinccedilotildees entre os domiacutenios
O que se pode considerar ser o ldquopensamentordquo a partir da analogia da linha no livro
VI d‟A Repuacuteblica diz respeito ao conjunto de operaccedilotildees que constituem a percepccedilatildeo
sensiacutevel e a apreensatildeo das ideias a uacuteltima dita conhecimento (ηὸ γλσζηόλ Rep
510a11) Nela se pode depreender um detalhamento da atividade perceptiva e cognitiva
em suas diferentes etapas concomitantemente agrave especificaccedilatildeo dos seus respectivos
52
fenocircmenos de apreensatildeo Desse modo o conhecimento ou de modo mais fiel ao texto
o que eacute da ordem do conhecimento e por isso o que eacute de fato cognosciacutevel ganha
explicaccedilatildeo mais detalhada nas divisotildees que a analogia propotildee O tipo de apreensatildeo mais
importante para os propoacutesitos do filoacutesofo portanto a atividade noeacutetica eacute dada de
acordo com os seus diferentes modos de atuar ou seja segundo o que cada teacutecnica
emprega nos seus diferentes meacutetodos matemaacutetico e dialeacutetico (Rep 510b-c) Para
realccedilar o contraste desta seccedilatildeo que diz respeito agrave inteligecircncia a divisatildeo que pretende
analogamente propor a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel nos termos de gecircnero e lugar
supondo assim um plano sensiacutevel e um plano inteligiacutevel oferece a perspectiva de cada
domiacutenio que daacute base para a explicaccedilatildeo acerca da aquisiccedilatildeo de conhecimento
ldquo() - Pois bem disse eu Pensa que como diziacuteamos eles satildeo dois
e reinam um sobre o gecircnero e mundo inteligiacuteveis e o outro em
compensaccedilatildeo sobre o mundo visiacutevel (βαζηιεύεηλ ηὸ κὲλ λνεηνῦ
γέλνπο ηε θαὶ ηόπνπ ηὸ δ αὖ ὁξαηνῦ) Natildeo falo que reina sobre o ceacuteu
para que natildeo penses que estou fazendo sutil jogo de palavras Mas tu
estaacutes entendendo bem esses dois gecircneros o visiacutevel e o inteligiacutevel
- Eu aceitaria disse e muito bemrdquo (Rep 509c3-d6)
Vale observar as distinccedilotildees tal como a analogia propotildee γέλνs e ηόπνs A
distinccedilatildeo entre gecircnero e lugar marca o plano em que seraacute discutida a questatildeo do
verdadeiro conhecimento e consequentemente do seu modo correto de apreensatildeo A
proposta ao que tudo indica eacute determinar o domiacutenio em que se situa o saber filosoacutefico
o que dito de outro modo consiste em determinar a sua posiccedilatildeo e a sua especificidade
em relaccedilatildeo aos outros conhecimentos Ao mesmo tempo marcar as distinccedilotildees do que se
refere ao conhecimento filosoacutefico ao inteligiacutevel portanto em comparaccedilatildeo ao que
concerne agrave opiniatildeo A noccedilatildeo de lugar ou mundo como prefere a maioria das traduccedilotildees
oferece a posiccedilatildeo para as coisas dos diferentes gecircneros e permite conforme sugere o
texto estabelecer as diferenccedilas e as semelhanccedilas entre eles A dupla forma que a linha
mostra (δηηηὰ εἴδε ὁξαηόλ λνεηόλ Rep 509d4) parece ser uma estrateacutegia para poder
mais tarde argumentar novamente a favor da ideia do bem como paradigma Em outros
termos ao pontuar uma posiccedilatildeo para traccedilar esta distinccedilatildeo o texto categoriza os objetos
e ao mesmo tempo posiciona-os em relaccedilatildeo a uma referecircncia Tal divisatildeo permite
abordar desse modo algumas das noccedilotildees como semelhanccedila e modelo (ηὸ ὁκνησζὲλ
53
πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε Rep 510a11) imitaccedilatildeo (κηκήζηο Rep 510b4) e a noccedilatildeo de
participaccedilatildeo (κεηέρεηλ Rep 511e5)
Do mesmo modo a distinccedilatildeo de gecircnero colabora para a introduccedilatildeo de tais
noccedilotildees agora no que concerne agrave questatildeo do estatuto ontoloacutegico dos objetos de cada
domiacutenio anteriormente sugerido como uma hierarquia Classificar os objetos em
determinados gecircneros torna possiacutevel qualificaacute-los em relaccedilatildeo a um modelo em um
primeiro momento sugerido pela verdade que parece constituir um dos atributos das
ideias inteligiacuteveis As coisas verdadeiras ou as coisas que apresentam a verdade dada
pela ideia do bem mostram as qualificaccedilotildees do inteligiacutevel e satildeo por isso importantes
para compreender o grau de cognoscibilidade que se pode ter em cada domiacutenio quando
postas em contraste agrave carecircncia do sensiacutevel Segundo o contexto comparativo da analogia
da linha dividida ldquoquanto mais os objetos participarem da verdade tanto mais clareza
teratildeordquo (Rep 511e3-4) o que sugere que uma maior cogniccedilatildeo acerca dos objetos
investigados depende de sua participaccedilatildeo no inteligiacutevel e que a clareza pode ser um
criteacuterio para distinguir um objeto inteligiacutevel de um objeto sensiacutevel Esta eacute uma relaccedilatildeo
uacutetil para verificar a questatildeo da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo pois mostra em
que medida os atributos inteligiacuteveis consistem em princiacutepios condutores da
racionalidade
A divisatildeo propotildee desta forma as relaccedilotildees e os criteacuterios que Platatildeo julga
importantes para mostrar a natureza do conhecimento e do conhecer ao modo filosoacutefico
Ela situa e qualifica os objetos postos em questatildeo mostrando a relaccedilatildeo entre os
domiacutenios e o trabalho do pensamento nesta ligaccedilatildeo Note-se que a atividade intelectual
capaz de apreender as ideias e a ideia do bem satildeo as que Platatildeo parece ter em vista para
diferenciar o pensamento caracteriacutestico daquele que filosofa Desse modo a analogia da
linha para a defesa do governo do filoacutesofo se mostra estrateacutegica ao apresentar as
operaccedilotildees envolvidas na apreensatildeo dos objetos inteligiacuteveis e portanto no conhecimento
ao modo filosoacutefico de modo a elucidar o processo intelectual e o meacutetodo especiacutefico que
culmina nesta apreensatildeo Igualmente importantes embora natildeo enfatizado na analogia
satildeo as compreensotildees acerca da percepccedilatildeo e do juiacutezo dado que consiste no modo de
pensar da maioria que deve ser governada pelo filoacutesofo
Antes de analisarmos os domiacutenios e o trabalho de cogniccedilatildeo envolvido em cada
um deve-se ainda observar a proposta de distinccedilatildeo entre eles por via da noccedilatildeo de
desigualdade e pela noccedilatildeo de proporccedilatildeo entre as seccedilotildees Soacutecrates pede que Glaacuteucon
imagine uma linha com partes desiguais (ἄληζα) e segundo a mesma proporccedilatildeo (ἀλὰ ηὸλ
54
αὐηὸλ ιόγνλ) a qual deve descrever ao que parece a relaccedilatildeo entre os domiacutenios a
relaccedilatildeo entre as classes de objetos e por consequecircncia uma diferenciaccedilatildeo de grau
cognitivo (Rep 509d8-510a) O texto natildeo parece chamar atenccedilatildeo para tais noccedilotildees na
representaccedilatildeo sensiacutevel do desenho de uma linha propriamente mas ao contraacuterio propotildee
a partir dessas duas concepccedilotildees os termos para uma comparaccedilatildeo entre objetos de tipos
distintos23
Igualdade a noccedilatildeo que estaacute sendo sugerida pela analogia24
e proporccedilatildeo
parecem constituir a base da estrutura das classificaccedilotildees que Soacutecrates propotildee
analogamente dita uma linha dividida por oferecer os criteacuterios para a disposiccedilatildeo entre
os objetos e a verificaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre eles Ao mesmo tempo em que se tem desse
modo um criteacuterio para situar os elementos se sensiacuteveis ou se inteligiacuteveis tem-se em
que medida se relacionam sendo assim niacutetidos e obscuros um em relaccedilatildeo ao outro25
23 Rep 509d10 ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια Natildeo se pretende realizar uma longa discussatildeo sobre
o diagrama da linha divida As questotildees acerca do desenho da linha e as interpretaccedilotildees que podem surgir
a partir dele satildeo para esta anaacutelise relevantes nos termos que se propotildee aqui ou seja o sentido das
distinccedilotildees que ela sugere Por consistir em uma representaccedilatildeo sensiacutevel a escolha da parte do desenho que
receberia um tamanho maior a partir desta desigualdade parece deste modo mostrar que algo como um
diagrama deve ser apenas um ponto de partida para buscar o sentido do que estaacute sendo representado a
noccedilatildeo de desigualdade como vemos agora Denyer pontua de modo bastante objetivo este antigo debate
ao comentar ldquoPor que temos de fazer uma escolha tatildeo arbitraacuteria Quando desenhamos um diagrama em
obediecircncia agraves discussotildees de Soacutecrates estamos produzindo uma representaccedilatildeo Tal representaccedilatildeo conteacutem
inevitavelmente caracteriacutesticas irrelevantes caracteriacutesticas que em nada correspondem agrave realidade
representada caracteriacutesticas que natildeo podem ser explicadas pela referecircncia pelo propoacutesito da
representaccedilatildeo A proacutepria resposta para tais caracteriacutesticas eacute claramente ignoraacute-las abstrair a partir da
desordem e pensar aleacutem da representaccedilatildeo em vista da realidade que ela representardquo Denyer N Sun and
Line in Plato‟s Republic 2007 Cambridge p 293 Cabe natildeo perder de vista as distinccedilotildees feitas na
analogia do sol que continuam presentes na linha A principal delas eacute a distinccedilatildeo entre juiacutezo e
conhecimento e entre objeto e pensamento Ao que parece a novidade da linha nos termos de uma
analogia estaacute em mostrar as relaccedilotildees entre a ideia do bem e ideias e do mesmo modo entre ideias e o
pensamento em dois planos de anaacutelise ontoloacutegico e cognitivo deixando evidentes as distinccedilotildees entre as
operaccedilotildees do pensamento O proacuteprio texto apresenta ao fim do Livro VII um parecer sobre o uso da
analogia A passagem 534a6-8 mostra que esta natildeo consiste em uma discussatildeo que deve estar em
primeiro plano sendo mais importante as relaccedilotildees que se estabelecem entre os elementos citadosrdquo ()
Quanto agrave correspondecircncia de que dependem essas coisas e quanto agrave divisatildeo de cada uma das duas
categorias a do opinaacutevel e a do inteligiacutevel deixemos isso de lado Glaacuteucon para que natildeo caiamos em
discussotildees mais complexas que as anterioresrdquo
24 Deve-se notar a discussatildeo acerca do estabelecimento do termo se ἄληζα estabelecido por Plutarco ou
α λ‟ η ζα estabelecido por Stallbaum As traduccedilotildees no geral seguem a opccedilatildeo de Plutarco sendo quase
consenso que o uso tanto de um quanto do outro propotildeem a noccedilatildeo de igualdade como nota Chambry op
cit p 140 Como Chambry Adam op cit p 63 nota 27 concorda que a interpretaccedilatildeo comum ao aceitar
ἄληζα eacute que a desigualdade se refere agrave diferenccedila de clareza e de verdade dos gecircneros sensiacutevel e
inteligiacutevel e entre opinaacutevel e cognosciacutevel De qualquer modo interessa averiguar o sentido desta particcedilatildeo
que apresenta partes iguais ou desiguais segundo os gecircneros que estatildeo sendo formulados
25 Pierre Aubenque compreende a funccedilatildeo do ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ na linha muito proacutexima ao que se
pretende defender nesta anaacutelise Para ele o propoacutesito da analogia da linha divida eacute pensar uma igualdade
de relaccedilotildees entre termos desiguais O interesse da operaccedilatildeo eacute desse modo construir uma proporccedilatildeo uma
analogia cuja estrutura eacute dada no seu modo de construccedilatildeo Uma analogia que trouxesse termos iguais (do
tipo 1=1) perderia a funccedilatildeo pois o objetivo maior eacute estabelecer uma mediaccedilatildeo entre termos extremos
Aubenque P ldquoDe L‟ Egaliteacutes des Segments Intermeacutediaires dans La Ligne de La Reacutepubliquerdquo in Sophie
Maietores ndash Chercheurs de Sagesse Institut d‟Etudes Augustiniennes Paris 1992 p 39 40
55
Desse modo na primeira parte a seccedilatildeo mais inferior da linha se refere agraves
sombras e aos reflexos de objetos originais que por serem da ordem do sensiacutevel natildeo satildeo
senatildeo imagens Estas recebem um estatuto mais baixo por constituiacuterem a imagem de um
objeto tambeacutem sensiacutevel representado na segunda subseccedilatildeo da linha Nesta primeira
seccedilatildeo apresenta-se a relaccedilatildeo objeto ndash reflexo ou ainda modelo e suas derivaccedilotildees
Assim exposto o domiacutenio das coisas visiacuteveis ou da sensibilidade compreende as
imagens como reflexo dos objetos originais e os objetos do mundo fiacutesico ndash ldquoos seres
vivos que nos rodeiam todas as plantas e todos os gecircneros de artefatosrdquo (ηά ηε πεξὶ
ἡκᾶο δῷο θαὶ πᾶλ ηὸ θπηεπηὸλ θαὶ ηὸ ζθεπαζηὸλ ὅινλ γέλνο Rep 510a14) os quais satildeo
considerados os modelos A linha classifica e qualifica as seccedilotildees e as subseccedilotildees e a
ligaccedilatildeo que entre eles eacute estabelecida de acordo com a noccedilatildeo de semelhanccedila (ηὸ
ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) que observe-se evoca a noccedilatildeo de igualdade Do mesmo
modo a verdade serve para a divisatildeo e distinccedilatildeo das partes assim como a noccedilatildeo de
cogniccedilatildeo Objetos originais e imagens assim como os seres matemaacuteticos e a ideia
suprema satildeo relacionados segundo tais noccedilotildees e teratildeo o seu caraacuteter exposto de acordo
com elas Entretanto todas estas noccedilotildees tem base em uma mesma ideia a ideia do bem
que deveraacute norteaacute-las e que seraacute o paracircmetro para qualificar cada um dos objetos
Deve-se no entanto averiguar o que o texto sugere ao descrever as etapas que
antecedem o ponto alto da linha que culmina na aquisiccedilatildeo das formas Elas informam
os outros niacuteveis de cogniccedilatildeo que se distinguem do conhecimento filosoacutefico os quais por
sua vez representam o grau de cogniccedilatildeo dos outros integrantes da cidade Do mesmo
modo que parece importante mostrar a divisatildeo e as peculiaridades de cada classe da
poacutelis para sugerir o funcionamento conjunto e harmocircnico da cidade interessa mostrar
analogamente este conjunto de capacidades da alma por meio das quais se supotildee
apresentar as atividades intelectuais mais importantes no que se refere ao conhecimento
Ao formular o lugar e o gecircnero da opiniatildeo e do conhecimento o texto propotildee uma
concepccedilatildeo de organizaccedilatildeo fundada neste trabalho da alma dito racional e portanto na
cogniccedilatildeo das coisas verdadeiras Ao mesmo tempo propotildee o domiacutenio do pensamento
revelando ser semelhanccedila e verdade as qualidades que devem orientar o estudo da ideia
do bem
56
24 Verdade e cogniccedilatildeo no domiacutenio sensiacutevel
Para analisar a questatildeo do pensamento segundo a analogia da Linha Dividida
antes eacute preciso averiguar como as suas seccedilotildees descrevem de algum modo diferentes
maneiras do pensamento atuar isto eacute em que medida se pode ver a percepccedilatildeo e a
atividade intelectual nas distintas potencialidades e meacutetodos Ao especificar os
domiacutenios a fim de elucidar as caracteriacutesticas do verdadeiro conhecimento entra em
cena o modo de apreensatildeo e incontornavelmente os aspectos do pensamento
ldquondash Pois bem Toma uma linha dividida em duas seccedilotildees desiguais
(ἄληζα) e de novo corta cada seccedilatildeo segundo a mesma proporccedilatildeo
(ηέκλε ἑθάηεξνλ ηὸ ηκκα ἀλὰ ηὸλ αὐηὸλ ιόγνλ) a do gecircnero visiacutevel e
a do inteligiacutevel De acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de
nitidez (ζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ) que tenham entre si no mundo visiacutevel
teraacutes uma das seccedilotildees as imagens (εἰθόλεο) Chamo as imagens em
primeiro lugar as sombras depois as apariccedilotildees refletidas nas aacuteguas
e nas superfiacutecies opacas lisas e brilhantes e tudo o mais que seja
assim Entendes (θαηαλνεῖο)
- Mas sim estou entendendo (θαηαλνῶ)
- Pois bem Supotildee como outra seccedilatildeo a que se assemelha a essa os
seres vivos que nos rodeiam todas as plantas e todo o gecircnero de
artefatos
- Suponho disse
- Seraacute que aceitarias afirmar disse eu que o gecircnero visiacutevel estaacute
dividido em verdade e natildeo verdade e que como o opinaacutevel estaacute para o
cognosciacutevel assim tambeacutem a imagem estaacute para o modelo (δηῃξζζαη
ἀιεζείᾳ ηε θαὶ κή ὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ
ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζε) (Rep 509d8-510a)
Vale analisar a partir dos criteacuterios estabelecidos a distinccedilatildeo entre os objetos Na
primeira seccedilatildeo reflexos (θαληάζκαηα) e sombras (ηὰο ζθηάο) satildeo na sua condiccedilatildeo de
imagens (ηὰο εἰθόλαο) semelhantes ao modelo ou seja satildeo derivados de um objeto
naquilo que diz respeito agrave sua aparecircncia (ἔνηθελ Rep 510b3) Esses ganham a forma do
objeto ao refleti-lo tornando-os aparentes dando a ele portanto uma forma visiacutevel em
superfiacutecies igualmente visiacuteveis - aparecem na aacutegua e nas superfiacutecies lisas e brilhantes
como diz o texto (Rep 509e-510a2) Ao darem a este objeto uma aparecircncia as imagens
se constituem enquanto tal e tecircm no objeto fiacutesico aparentado o seu modelo A imagem
obteacutem do seu modelo a aparecircncia e estabelece com ele desse modo a relaccedilatildeo de
semelhanccedila - natildeo semelhanccedila As aparecircncias que trazem as imagens eacute conforme o
texto a imitaccedilatildeo do modelo do qual derivam (Rep 510b3)
57
A explicaccedilatildeo sobre o inteligiacutevel apresenta por comparaccedilatildeo este como mais um
dado importante sobre o sensiacutevel a aparecircncia como imitaccedilatildeo (κ κεζηο)26
do objeto
original Sua importacircncia se daacute na medida em que reafirma o caraacuteter derivado do reflexo
e acrescenta a ele a explicaccedilatildeo sobre o que se pode fazer com uma imagem como
mostra o exemplo do procedimento matemaacutetico Dito de outro modo ao compreender a
aparecircncia como a imitaccedilatildeo de um modelo ressalta-se a sua carecircncia de conteuacutedo
cognitivo uma vez que natildeo exprime de modo suficiente o original ao qual se
assemelha27
Em contraste com o inteligiacutevel tal caracteriacutestica o exclui do processo do
conhecimento No domiacutenio sensiacutevel proacuteprio da opiniatildeo a alma apreende como imagem
isto que eacute imitaccedilatildeo dos objetos originais constituindo assim a εηθαζία a conjectura
atividade que parece ser tiacutepica no plano da δόμα Natildeo parece haver neste domiacutenio outro
tipo de atuaccedilatildeo como nos sugere o verbo ἀλαγθάδσ e por consequecircncia outro modo
de fazer especulaccedilatildeo no plano do sensiacutevel Ao ter dividido em gecircnero e lugar as
atividades que a alma realiza aparecem submetidas agraves condiccedilotildees do domiacutenio em que se
descreve sendo a conjectura portanto a atividade possiacutevel no domiacutenio sensiacutevel Ao se
fiar nas imagens para construir hipoacuteteses atribui-se agrave elas uma confianccedila da qual natildeo
satildeo dignas visto serem apenas uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo destituiacuteda de qualquer
conteuacutedo o que seraacute discutido no final do argumento da linha (Rep 511d7-e) Desse
26 Toda a recusa da poesia na educaccedilatildeo do guardiatildeo se explica por meio de um conceito caro a Platatildeo n‟A
Repuacuteblica o conceito de miacutemesis imitaccedilatildeo No Livro III ele se refere agrave relaccedilatildeo entre alguma coisa ou
uma pessoa com a sua representaccedilatildeo na poesia e na pintura Dado que a cidade platocircnica se funda na
suposiccedilatildeo de que cada cidadatildeo executa apenas uma tarefa uacutenica para a qual eacute naturalmente haacutebil
escrever e desempenhar o papel de uma personagem torna-se perversotildees do seu papel social pois atribui agrave
pessoa mais que uma uacutenica natureza (Rep 397d-398a) O mimetismo conduz os jovens aos maus haacutebitos
agrave linguagem grosseira respostas inapropriadas e agraves crises (Rep 395c-d) Quando muito os jovens
deveratildeo dramatizar a vida e os feitos de modelos de virtudes (Rep 396b-e) mas Platatildeo termina a criacutetica
no Liv X 595a-602c Haacute por traacutes dessa criacutetica uma tese que teraacute suas bases ontoloacutegicas explicadas no
livro VI e X que em linhas gerais consiste na tese de que se imita aquilo que se contempla No liv X a
imitaccedilatildeo ou representaccedilatildeo que se faz na poesia eacute uma imitaccedilatildeo da aparecircncia A poesia imita as accedilotildees
humanas (393b-c 395c-396d 605ac) mas na cidade ideal haacute de se imitar os melhores homens (396c-
397b 604e 607a)
27 Natildeo se pretende fazer uma longa anaacutelise sobre a imitaccedilatildeo de modo a recuperar dos outros livros o que
eacute dito sobre este conceito Interessa verificar a partir do seu caraacuteter sensiacutevel como tal caracteriacutestica eacute
oposta ao inteligiacutevel e o uso que a alma pode fazer dela na ascese Cabe entretanto conferir como Schuhl
compreende a noccedilatildeo de imitaccedilatildeo que Platatildeo considera em relaccedilatildeo agrave arte que diga-se de passagem parece
bastante afim nesse contexto Ele entende haver dois sentidos para a imitaccedilatildeo 1ordm a imitaccedilatildeo como coacutepia
(εηθαζηηθήλ) que na arte eacute dada como uma reproduccedilatildeo a qual se conforma agraves proporccedilotildees do modelo 2ordm
uma imitaccedilatildeo que constitui a arte da aparecircncia (θαληαζηηθήλ) Em ambas os recursos disponibilizados
como as proporccedilotildees que envolvem noccedilotildees matemaacuteticas satildeo utilizados para se adequarem ao sentido da
visatildeo e produzirem uma imagem que proporcione prazer esteacutetico Note-se que Platatildeo ataca uma
concepccedilatildeo de arte e de imitaccedilatildeo que atribui agraves sensaccedilotildees os criteacuterios para o juiacutezo a qual abandona a
verdade e o arrazoamento privilegiando assim as aparecircncias - ldquoA parte da Oacutetica chamada de cenografia
investiga como conveacutem desenhar as imagens dos edifiacutecios Como as coisas natildeo parecem tais quais elas
satildeo examina-se natildeo como representar as proporccedilotildees reais mas como as tornar tais quais elas
pareceratildeordquo Schuhl op cit p 30 58
58
modo o procedimento ao modo da opiniatildeo natildeo conduz ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico
dado que estagna nas imagens
Este eacute um ponto importante para o que concerne agrave cogniccedilatildeo Junto com a noccedilatildeo
de aparecircncia que surge da relaccedilatildeo modelo e suas derivaccedilotildees estatildeo as qualidades que vatildeo
classificar os elementos das seccedilotildees no que se refere agrave cogniccedilatildeo como as imagens e os
objetos fiacutesicos das primeiras partes Atributos como clareza verdade e cognoscibilidade
satildeo introduzidos a partir desta uacuteltima distinccedilatildeo de modo a qualificar os objetos A
intenccedilatildeo em usar a analogia da linha com vistas para o que seria o mais alto
conhecimento eacute sugerida na sequecircncia onde aparece de modo mais evidente nas partes
inteligiacuteveis a descriccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da alma Pode-se compreender da
analogia as atividades intelectuais que dizem respeito agrave cogniccedilatildeo ou seja agraves operaccedilotildees
que estabelecem a relaccedilatildeo com as ideias e podem assim apreendecirc-las Nas partes
inferiores da linha tem-se ao mesmo tempo as operaccedilotildees que antecipam a ascensatildeo ao
niacutevel inteligiacutevel e que por natildeo oferecerem o conhecimento em nenhum grau mas por
constituiacuterem de alguma forma uma operaccedilatildeo da mente podem ser consideradas preacute-
cognitivas A linha dividida nesse sentido mostra aquilo que se pode apreender do
sensiacutevel com a percepccedilatildeo e do inteligiacutevel com a cogniccedilatildeo em seus diferentes graus e
maneiras de proceder
Para isso deve-se comeccedilar por analisar ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ as
diferenccedilas e a relaccedilatildeo da linha nessa perspectiva entre o domiacutenio do opinaacutevel e do
cognosciacutevel Na seccedilatildeo que se refere ao sensiacutevel satildeo dados os elementos a partir dos
quais se fundam o juiacutezo a opiniatildeo Eacute importante fazer tais especificaccedilotildees acerca da
imagem para que se possa delimitar o plano no qual o juiacutezo estaacute envolvido e para em
seguida marcar definitivas distinccedilotildees do conhecimento e do seu meacutetodo especiacutefico em
relaccedilatildeo agrave opiniatildeo Cabe observar que a divisatildeo pressupotildee uma relaccedilatildeo entre as partes e
portanto entre os elementos que as compotildeem na qual os planos inferiores se mostram
reflexos do plano superior de acordo com o que propotildee a relaccedilatildeo modelo-imagem28
Tal observaccedilatildeo parece importante por oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da funccedilatildeo
da imagem na linha Ao se questionar acerca da inferioridade da aparecircncia da relaccedilatildeo
original-reflexo que o modelo-imagem propotildee a resposta mais imediata provavelmente
28 Note-se que a preposiccedilatildeo ldquoπξὸοrdquo parece indicar que haacute entre as partes a mesma relaccedilatildeo de
espelhamento que haacute entre modelo e a imagem Do mesmo modo os adveacuterbios ὡο e νὕησ sugerem que se
trata de uma comparaccedilatildeo na qual uma seccedilatildeo um domiacutenio tem seu aspecto analisado em relaccedilatildeo a outro -
laquoζαθελείᾳ θαὶ ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιειαrdquo (Rep 509d10) laquoὡο ηὸ δνμαζηὸλ πξὸο ηὸ γλσζηόλ νὕησ ηὸ
ὁκνησζὲλ πξὸο ηὸ ᾧ ὡκνηώζεrdquo (Rep 510a10-11)
59
seria a que sua inferioridade se deve ao fato de ser ela a coacutepia de um original Esse pode
ser um argumento vaacutelido se se tem em vista a superioridade ontoloacutegica do objeto
referido Dito de outro modo o objeto do qual se originam as imagens eacute autecircntico
como os animais e os artefatos do mundo fiacutesico na segunda parte da linha enquanto as
sombras e os reflexos derivados dele isto eacute as imagens natildeo satildeo pelas seguintes razotildees
1ordm natildeo satildeo o proacuteprio objeto 2ordm natildeo dizem o objeto original fidedignamente 3ordm como
satildeo imagens variam ao se referir ao objeto original como se veraacute na alegoria da
caverna 4ordm como satildeo derivadas do objeto dependem dele para existir29
Tais
caracteriacutesticas acabam por definir a aparecircncia e expor suas deficiecircncias sendo a
imagem desse modo um elemento que representa toda a debilidade dos objetos da
esfera sensiacutevel para os fins gnosioloacutegicos que Platatildeo pretende formular
Tal compreensatildeo eacute possiacutevel vale reparar somente se se tem em vista a clareza
como abalizadora da relaccedilatildeo entre o domiacutenio da opiniatildeo e o domiacutenio do conhecimento
(Rep 510a9) Deve-se perguntar a razatildeo de Platatildeo propor uma distinccedilatildeo entre domiacutenios
e objetos e estas relaccedilotildees de superioridade - inferioridade que a linha sugere a partir
desta relaccedilatildeo modelo-coacutepia Tais diferenciaccedilotildees sugerem que a analogia da linha
dividida pretende antes traccedilar e definir planos graus e objetos especiacuteficos em vista da
ἀιήζεηα A divisatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel acompanhada das subdivisotildees recebe
especificaccedilotildees no que diz respeito agraves variaccedilotildees dos objetos e potencialidades de
cogniccedilatildeo agora avaliados segundo o criteacuterio de clareza que exprime a realidade do
objeto em questatildeo A escolha da clareza como criteacuterio provavelmente se deve a
autenticidade que ela confere ao objeto dado que se trata de uma qualidade acessiacutevel
pela cogniccedilatildeo mas tambeacutem por constituir as noccedilotildees importantes para a construccedilatildeo de
valores importantes para a cidade do filoacutesofo Dado que a verdade constitui junto com o
ser e a essecircncia a benignidade do bem uma vez que satildeo atribuiacutedos por ele (Rep 508e-
509a6) este constitui um criteacuterio bastante razoaacutevel para mensurar a proacutepria cogniccedilatildeo e o
que eacute tido como um valor Natildeo parece viaacutevel pensar uma cidade justa e boa sem antes
especificar a noccedilatildeo de justiccedila e de bem e ao mesmo tempo sem discerni-las em seu
modo proacuteprio real Dito de outro modo o que eacute bom apresenta ser essecircncia e verdade
qualidades reconheciacuteveis apenas pelo intelecto
29 Stocks enumera do mesmo modo as diferenccedilas da imagem em relaccedilatildeo ao seu objeto Para ele esta eacute
uma indicaccedilatildeo clara da condiccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos objetos inteligiacuteveis sendo a
analogia da linha um bom exemplo da relaccedilatildeo unilateral de dependecircncia e a equaccedilatildeo da linha uma
explicaccedilatildeo desta relaccedilatildeo entre os dois domiacutenios ndash Stocks J L ldquoThe Divided Line of Rep VIrdquo in The
Classical Quartely vol 5 no 2 1911 p 75
60
Vale considerar as nuanccedilas de sentido de verdade Note-se que o contexto que
coloca verdade - natildeo verdade apresenta as condiccedilotildees em que ela aparece no domiacutenio
visiacutevel Cabe reparar que a abordagem da verdade no registro da sensibilidade tal como
aparece agora eacute posta relativamente ou seja como termo de avaliaccedilatildeo na relaccedilatildeo
modelo-reflexo diferentemente do contexto do estudo da ideia do bem no qual era
apresentada como atributo inteligiacutevel Todavia ela serve para mensurar algo que seraacute
dito verdadeiro ou natildeo a partir da correspondecircncia com um modelo Como se viu em
506c mesmo que constitua um criteacuterio de avaliaccedilatildeo ela eacute dada nos termos da
eventualidade sendo o mesmo nessas circunstacircncias que ldquocorresponde - natildeo
corresponderdquo Natildeo parece haver no domiacutenio sensiacutevel outra maneira de conceber a
verdade dado que natildeo se tem em vista seu fundamento inteligiacutevel A relaccedilatildeo que estaacute
em jogo diz respeito a uma identificaccedilatildeo do objeto com o modelo natildeo se tratando
portanto da realidade do objeto ou do modelo
Desse modo a verdade natildeo acompanha neste plano uma concepccedilatildeo da cogniccedilatildeo
mas o nome que se daacute agrave percepccedilatildeo entre dois elementos que se mostram equivalentes
no caso imagem - modelo sombra - objeto original em uma relaccedilatildeo de
correspondecircncia Parece importante definir o plano em que se enuncia a verdade para
justamente estabelecer a plausibilidade de uma relaccedilatildeo No campo do sensiacutevel natildeo haacute a
garantia de um termo que fundamente as relaccedilotildees como a de semelhanccedila por exemplo
da mesma forma que se encontra no inteligiacutevel estando a verdade desse modo apenas
no plano do ὄλνκα (Rep 505c4) 30
Desse modo uma das noccedilotildees que a linha propotildee diz respeito a esta realidade do
objeto a qual serve de referecircncia e deve ser considerada o verdadeiro objeto a ser
conhecido Um dos esforccedilos de Platatildeo nesta analogia parece consistir em apresentar
uma noccedilatildeo de realidade e a sua relaccedilatildeo com a verdade Realidade e verdade se mostram
em um plano diferente do comum diferente das opiniotildees vulgares Faz parte da tarefa
do filoacutesofo discernir a verdade das vaacuterias aparecircncias de verdade e verificar a natureza
dos objetos e o modo adequado de lidar com eles Esse discernimento comeccedila com a
compreensatildeo da deficiecircncia do domiacutenio da sensibilidade e do juiacutezo em relaccedilatildeo a um
plano mais autecircntico e por isso superior o plano da realidade no domiacutenio inteligiacutevel
Por enquanto nas duas primeiras partes da linha o texto oferece os dados e os tipos de
relaccedilotildees com as quais o leitor deve analisar as proacuteximas etapas
30 Parece vaacutelida tal interpretaccedilatildeo dado que em 505c esta perspectiva eacute posta como adversaacuteria da visatildeo
filosoacutefica que vai buscar a inteligecircncia do bem (ηὴλ ηνῦ ἀγαζνῦ θάλαη Rep 505b9)
61
Cabe notar que o questionamento acerca do objeto que deve servir de modelo eacute
sugerido tambeacutem pela relaccedilatildeo clareza - natildeo clareza falta de clareza Ao dividir os
objetos segundo o criteacuterio de clareza que apresentam acerca da realidade este parece ser
um dado que potildee diretamente em questatildeo a capacidade de apreensatildeo de alguma verdade
a partir de determinados objetos ao mesmo tempo em que se suspeita da possibilidade
desses oferecerem a realidade acerca de algo31
O domiacutenio sensiacutevel natildeo oferece verdade
acerca dos objetos os quais satildeo derivados de objetos fiacutesicos e portanto sensiacuteveis
sendo considerados assim deficientes A linha nesse sentido mostra com suas seccedilotildees
diferentes graus de apreensatildeo o que estaacute de algum modo relacionado com capacidade
de um objeto mostrar o seu modelo ou dito metaforicamente com a clareza dos
objetos32
A perspectiva que a analogia da linha propotildee a saber a condiccedilatildeo ontoloacutegica
dos objetos e o que eacute possiacutevel apreender deles e atraveacutes deles em termos gnosioloacutegicos
exige verificar a cogniccedilatildeo em seus niacuteveis de apreensatildeo Ao utilizar a noccedilatildeo de clareza
como criteacuterio tem-se sugerido uma realidade dada como modelo a qual natildeo aparece
com carga ontoloacutegica nas primeiras duas seccedilotildees da linha Tal proposiccedilatildeo surge
analogamente da relaccedilatildeo onde os objetos fiacutesicos originais satildeo os objetos reais e nesse
contexto portanto verdadeiros As imagens por outro lado como derivaccedilotildees como
reflexos apenas natildeo satildeo verdadeiras no sentido prosaico do termo Pretende-se mostrar
agora que a sombra de um boneco natildeo eacute o proacuteprio boneco ou seja que o reflexo natildeo eacute
igual ao modelo O que estaacute em questatildeo eacute a diferenccedila entre a coisa e a aparecircncia desta
coisa aparecircncia que ao imitar33
algo ao referi-lo natildeo deve ser confundida com ele
Deve-se ainda observar que o primeiro problema posto pela analogia se refere
justamente ao tipo de diferenciaccedilatildeo entre os objetos Dito de outro modo em que campo
operam as distinccedilotildees as quais se realizam por meio das noccedilotildees de igualdade
semelhanccedila e clareza Na perspectiva ontoloacutegica ou no esboccedilo de uma perspectiva
ontoloacutegica como parece ser o caso natildeo estaacute em questatildeo se um objeto tem mais ser que
outro em termos existecircncia A sombra natildeo existe menos que os bonecos que ela
31 O trecho ldquoDe acordo com a relaccedilatildeo de nitidez ou ausecircncia de nitidez (σαφηνείᾳ καὶ ἀσαφείᾳ) que
tenham entre si no mundo visiacutevel teraacutes uma das seccedilotildees as imagens -(θαί ζνη ἔζηαη ζαθελείᾳ θαὶ
ἀζαθείᾳ πξὸο ἄιιεια ἐλ κὲλ ηῷ ὁξσκέλῳ ηὸ κὲλ ἕηεξνλ ηκκα εἰθόλεο)rdquo (Rep 509d 10-509e1) parece
deixar evidente a comparaccedilatildeo que se faz na linha dividida os objetos uns em relaccedilatildeo aos outros conforme
se mostram claros ou obscuros ou seja segundo o que podem mostrar acerca do objeto de referecircncia A
clareza eacute vista aqui como a capacidade de manifestar algo a que se refere 32 Cf Stocks op cit p 80
33 Mais adiante em 510b4 o texto notaraacute a aparecircncia como uma imitaccedilatildeo do objeto original
62
reflete34
entretanto por natildeo ser ela mesma o objeto que ela reflete a sombra o oferece
apenas em algum grau Eacute neste sentido que a graduaccedilatildeo de clareza parece atuar posto
que a atenccedilatildeo da linha se volta especialmente como visto para os propoacutesitos acerca da
cogniccedilatildeo A clareza e a verdade satildeo dadas no niacutevel que manifestam o seu modelo e cada
domiacutenio apresenta um niacutevel caracteriacutestico de apreensatildeo35
Pode parecer impreciso falar de uma ldquograduaccedilatildeordquo ao analisar as duas primeiras
seccedilotildees da linha uma vez que as noccedilotildees que servem de criteacuterio satildeo dadas nos termos de
verdade ndash natildeo-verdade claro-obscuro ou seja X ou natildeo-X Tal graduaccedilatildeo vale
adiantar fica mais evidente a seguir com a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e
as especificaccedilotildees acerca do princiacutepio natildeo hipoteacutetico (Rep 510b6) No domiacutenio da
opiniatildeo as caracteriacutesticas atribuiacutedas agraves aparecircncias que as imagens supotildeem se
apresentam como um preacircmbulo para as duas seccedilotildees seguintes que concernem ao
inteligiacutevel e trazem assim as debilidades do sensiacutevel em comparaccedilatildeo com a realidade
da qual ele carece Eacute preciso contrastar as formas inteligiacuteveis os verdadeiros seres com
as suas ocorrecircncias ou seja com as aparecircncias as quais constituem o domiacutenio sensiacutevel
dito natildeo verdadeiro Este ldquonatildeo verdadeirordquo que consiste no natildeo-real no sentido de natildeo
ser idecircntico ao modelo mostra primeiro as mudanccedilas e a multiplicidade caracteriacutesticas
do sensiacutevel para depois expor a estabilidade e a autenticidade do real Enquanto
existentes as imagens possuem alguma realidade no entanto natildeo no mesmo grau que o
seu modelo No mundo sensiacutevel animais e plantas satildeo reais todavia muito mais que a
sombra que as refletem A diferenciaccedilatildeo eacute dada na comparaccedilatildeo de uma seccedilatildeo com a
outra e desse modo natildeo-verdade e sem clareza compreendem a inferioridade das
imagens36
34 Chen explica que a relaccedilatildeo entre os componentes dos niacuteveis mais baixos eacute dada nos termos de
realidade o que equivale a diferentes graus de verdade (aleacutetheia) em relaccedilatildeo ao ser Natildeo haacute ainda nos
niacuteveis mais baixos a verdade no sentido epistemoloacutegico As subdivisotildees da linha mostram a assimetria
das proporccedilotildees de participaccedilatildeo dos objetos os quais satildeo ditos mais ou menos verdadeiros equivalente a
dizer ter mais ou menos clareza Chen op cit p 105-106
35 Vlastos compreende que se pode reconhecer uma variedade de predicados intermediaacuterios entre real e
natildeo-real e portanto uma divisatildeo entre ser e natildeo-ser verdadeiro e falso natildeo eacute a interpretaccedilatildeo adequada do
ldquomais realrdquo ldquomenos-realrdquo Deve-se considerar que no sentido de ldquomais realrdquo cognato a mais verdadeiro e
metaforicamente dito mais claro estatildeo compreendidas as seguintes noccedilotildees 1ordm) melhor revelaccedilatildeo do que
eacute a coisa 2ordm) o sentido de modelo eacute ldquox-mesmordquo isto eacute a Forma Vlastos G ldquoDegrees of Realityrdquo in
Platonic Studies Princeton University Press 1981 p 62
36 Vlastos entende que as caracteriacutesticas do sensiacutevel satildeo como F (Forma) e natildeo-F F no sentido que
possui o ser em um grau que garante ao menos a sua existecircncia e natildeo-F no sentido que ldquosua natureza F foi
adulterada por caracteriacutesticas contraacuterias o que entatildeo poderia nos dar apenas uma ideia confusa e incerta
do que eacute F Algo que poderia ser sujeito de constantes flutuaccedilotildees como encontramos ocorrecircncias de F que
acabaram por serem diferentes em um ou mais aspectos a partir dos quais baseamos nossa concepccedilatildeo
preacutevia de Frdquo Vlastos idem p 63
63
Vale natildeo perder de vista a intenccedilatildeo maior do argumento o conhecimento da
ideia do Bem O objetivo eacute desfazer o mal-entendido de atribuir alguma legitimidade ao
que aparenta ser certo e verdadeiro anaacutelogo agraves sombras e aos reflexos pelo modo
vulgar de apreendecirc-los e de dar algum assentimento acerca deles Nesse sentido a
delimitaccedilatildeo do objeto especiacutefico do conhecimento mostra tal como se vecirc na descriccedilatildeo
do plano sensiacutevel que diante de objetos que satildeo apenas reflexos aparecircncias de
realidades a atividade da alma natildeo consiste mais do que em um juiacutezo ou em uma
convicccedilatildeo Dito de outro modo natildeo eacute a experiecircncia empiacuterica que daraacute a verdade acerca
de algo nem se enunciaraacute alguma verdade conjecturando o que se experiencia de modo
a emitir um juiacutezo como resultado pois no plano do sensiacutevel os objetos natildeo podem
revelar a realidade em toda a sua superioridade
III Atividade Inteligente
Estabelecidos os termos proacuteprios da atividade filosoacutefica tais como seus objetos
domiacutenio de atuaccedilatildeo e objetivos o que vem a seguir versaraacute sobre o conhecimento de
modo a elucidar a operacionalidade que constitui uma aquisiccedilatildeo da ideia Ter-se-aacute
dessa maneira uma explanaccedilatildeo do procedimento inteligente segundo um meacutetodo A
apreensatildeo do inteligiacutevel anteriormente referida como ldquoter inteligecircnciardquo ldquofixar-serdquo no
inteligiacutevel mostra-se agora na sua realizaccedilatildeo permitindo compreender pela via do
meacutetodo o alcance cognitivo e a distinccedilatildeo intelectual e moral do filoacutesofo Nessa
perspectiva vale adiantar tem-se novamente o pensamento nos termos da interaccedilatildeo
entre faculdade e objeto tal como no exemplo do sol mas desta vez com o acreacutescimo
das minuacutecias da realizaccedilatildeo desta ligaccedilatildeo A inteligecircncia aparece nesse contexto como
um efeito desta relaccedilatildeo e como realizaccedilatildeo da natureza inteligente do filoacutesofo que se daacute
na investigaccedilatildeo sobre o bem
Uma vez tratadas as caracteriacutesticas deacutebeis dos objetos no plano sensiacutevel a
exemplo da imagem e as consequecircncias cognitivas de seu uso o foco da explanaccedilatildeo se
64
volta sobretudo para a positividade da realidade a partir da qual se pode realizar a
verdadeira cogniccedilatildeo Os objetos e seus estatutos satildeo explicados a partir de agora em
comparaccedilatildeo com as ideias e em relaccedilatildeo agraves formas adequadas de intelecccedilatildeo para o
conhecimento
ldquo- De outro lado examina tambeacutem como deve ser divida a seccedilatildeo
correspondente ao inteligiacutevel
- Como
- A alma na primeira seccedilatildeo era forccedilada a pesquisar a partir de
hipoacuteteses usando objetos laacute imitados como imagens caminhando na
direccedilatildeo natildeo do princiacutepio mas do fim na outra poreacutem vai da
hipoacutetese ao princiacutepio que natildeo admite hipoacuteteses sem servir-se de
imagens como no outro caso e encaminha sua pesquisa soacute por meio
das proacuteprias ideias ndash(ηὸ δ αὖ ἕηεξνλ - ηὸ ἐπ‟ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ ndash ἐμ
ὑπνζέζεσο ἰνῦζα θαὶ ἄλεπ ηῶλ πεξὶ ἐθεῖλν εἰθόλσλ αὐηνῖο εἴδεζη δη‟
αὐηῶλ ηὴλ κέζνδνλ πνηνπκέλε)rdquo (Rep510b)
No plano inteligiacutevel que concerne ao cognosciacutevel a alma natildeo parte das imagens
para formular as hipoacuteteses mas das proacuteprias hipoacuteteses para chegar ao que constitui o
conhecimento o princiacutepio e o princiacutepio maior (ἀλππόζεηνο) A subida a este princiacutepio
que dispensa as imagens e utiliza um novo elemento as hipoacuteteses seraacute o novo
empreendimento do filoacutesofo no domiacutenio inteligiacutevel segundo o argumento da linha Os
objetos inteligiacuteveis natildeo podem ser atingidos senatildeo de acordo com o meacutetodo especiacutefico
para o conhecimento das ideias e do princiacutepio uacuteltimo que se mostra na atividade do
pensamento em relaccedilatildeo agraves hipoacuteteses O bem e a ideia do bem ganham agora
determinaccedilotildees metodoloacutegicas uma vez definidos seu estatuto e sua posiccedilatildeo no interior
da organizaccedilatildeo do quadro epistemoloacutegico em que se desenrola a atividade cognitiva A
noccedilatildeo de princiacutepio de tudo e por isso natildeo-hipoteacutetico satildeo as designaccedilotildees dadas a eles e
seratildeo conceituadas nos termos do meacutetodo dialeacutetico A inapreensiacutevel grandeza do bem
sugerida pela essecircncia de sua ideia pode ser inferida pelo procedimento dialeacutetico por
meio do qual o pensamento pode apreender o grau de cognoscibilidade possiacutevel acerca
dele Cabe analisar as tratativas do pensamento nesta operaccedilatildeo com as ideias e
sobretudo com a ideia do bem de modo a verificar a relaccedilatildeo objeto - pensamento que aiacute
se mostra
65
31 O meacutetodo matemaacutetico e a δηάλνηα
Apoacutes a seccedilatildeo das imagens e dos objetos originais estatildeo na primeira seccedilatildeo do
domiacutenio inteligiacutevel os objetos matemaacuteticos Estes apresentam as propriedades
inteligiacuteveis e demandam por isso um trabalho intelectual que consiste no raciociacutenio
(δηάλνηα)
ldquo- Ora explico outra vez Com a introduccedilatildeo que vou fazer
entenderaacutes com mais facilidade Creio que tu sabes que aqueles que
se ocupam da geometria com caacutelculos e assuntos como esses potildeem
como hipoacuteteses o par e o iacutempar as figuras trecircs espeacutecies de acircngulos e
outras coisas afins de acordo com o objeto de sua pesquisa e de um
lado como se as conhecessem tomam-nas como hipoacuteteses e acham
que natildeo tecircm de prestar contas nem a eles mesmos nem aos outros
(νὐδέλα ιόγνλ νὔηε αὑηνῖο νὔηε ἄιινηο ἔηη ἀμηνῦζη πεξὶ αὐηῶλ
δηδόλαη) sobre isso que segundo eles eacute coisa evidente para qualquer
um e de outro lado comeccedilando a partir dessas hipoacuteteses jaacute ao expor
o restante de maneira consequente acabam por chegar agrave
demonstraccedilatildeo (ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο) daquilo que os levou a
essa pesquisa
- Isso eu sei muito bem disse ele
-Entatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis
que discutem sobre elas ainda que natildeo estejam pensando nelas mas
naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedila Discutem a propoacutesito do
proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a propoacutesito da
diagonal que desenham e o mesmo fazem a respeito de outras
figuras Das figuras que modeladas e desenhadas por eles produzem
sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem imagens
buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam ser vistos
senatildeo com o pensamentordquo (Rep 510c-511a1)
Haacute duas classes de objetos inteligiacuteveis que demandam dois tipos de operaccedilotildees
intelectivas diferentes para que possam ser conhecidos37
Embora as duas seccedilotildees se
baseiem nas hipoacuteteses a abordagem dos seres inteligiacuteveis e o modo de operar pelas
hipoacuteteses faz Platatildeo distinguir na linha a atividade segundo a matemaacutetica e a dialeacutetica
Entre os geocircmetras e os matemaacuteticos (νἱ πεξὶ ηὰο γεσκεηξίαο ηε θαὶ ινγηζκνὺο Rep
510c2) os objetos inteligiacuteveis satildeo os trecircs tipos de acircngulo (γσληῶλ ηξηηηὰ εἴδε Rep
37 Para Cornford ldquoa distinccedilatildeo de objetos eacute uma questatildeo de expediente ao ensinarrdquo- Cornford
Mathematics and Dialectic in The Republic VI ndash VII (I) in Mind New Series vol 4 no 161 Oxford
University Press 1932 p 38 Embora seja inegaacutevel o uso propedecircutico que Cornford aponta interessa
ressaltar as especificidades das ideias matemaacuteticas em relaccedilatildeo agraves ideias morais como a ideia do bem
Dado que a intenccedilatildeo do filoacutesofo no Livro VI consiste em verificar o que fundamenta a justiccedila e a bondade
da cidade ideal conveacutem natildeo perder de vista uma distinccedilatildeo de tipos de ideias o que seraacute melhor defendido
apoacutes a anaacutelise dos argumentos d‟A Repuacuteblica
66
510c5) a noccedilatildeo de par e de iacutempar e as figuras geomeacutetricas (ηὰ ζρήκαηα) que
representam os seres matemaacuteticos como o quadrado e o triacircngulo Os matemaacuteticos
tomam por hipoacuteteses tais objetos sem fazer maiores questionamentos e sem oferecer
maiores explicaccedilotildees sobre eles (Rep 510c6) Do mesmo modo consideram o proacuteprio
meacutetodo matemaacutetico tambeacutem adequado e suficiente para dar o que entendem ser o
conhecimento uma conclusatildeo acerca do que investigavam a qual se tem
consensualmente ndash ldquo() de maneira consequente acabam por chegar agrave demonstraccedilatildeo
daquilo que os levou a essa pesquisardquo (ἤδε δηεμηόληεο ηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ
ηνῦην νὗ ἂλ ἐπὶ ζθέςηλ ὁξκήζσζη Rep 510d)38
Com esta criacutetica o foco da analogia da linha ilumina a questatildeo do meacutetodo de
cogniccedilatildeo e ao mesmo tempo as caracteriacutesticas de uma apreensatildeo do inteligiacutevel Natildeo
parece estar mais em questatildeo somente a relaccedilatildeo objeto original e seu reflexo como
exposto nas primeiras seccedilotildees da linha agora parece importante ter em vista tal relaccedilatildeo
no que concerne este tipo de objeto inteligiacutevel e seu modo de apreensatildeo Geometria
matemaacutetica e toda a disciplina desta natureza parecem natildeo corresponder inteiramente ao
processo de cogniccedilatildeo por utilizarem cada uma um meacutetodo sugestivamente inadequado
(Rep 510c5) Nesta parte da linha o meacutetodo aborda a natureza do objeto e ao mesmo
tempo diz de algum modo a atividade intelectual que ele demanda ao mostrar os
pormenores do procedimento como se daraacute na sequecircncia
Vale analisar em detalhes a descriccedilatildeo do procedimento matemaacutetico para
compreender melhor o domiacutenio inteligiacutevel e o que diz a primeira seccedilatildeo sobre a
cogniccedilatildeo A explicaccedilatildeo acerca da construccedilatildeo das hipoacuteteses vem em seguida A
geometria e a matemaacutetica utilizam em seu argumento elementos do visiacutevel das formas
visiacuteveis que eles proacuteprios moldam desenham (πιάηηνπζίλ ηε θαὶ γξάθνπζηλ Rep
510e) Apesar disso a figura geomeacutetrica natildeo parece consistir entretanto a melhor
maneira de exprimir o resultado do que a alta intelecccedilatildeo pode conceber39
Dito de outro
38 Algumas traduccedilotildees como a ediccedilatildeo em portuguecircs que se utiliza para as citaccedilotildees do texto traduzem o
trecho ldquoηειεπηῶζηλ ὁκνινγνπκέλσο ἐπὶ ηνῦηνrdquo por ldquodemonstraccedilatildeordquo Deve-se notar que algumas traduccedilotildees
preferem ser fieis aos termos do texto grego optando por ldquoagreementrdquo como a traduccedilatildeo de Emlyn-Jones e
Preddy op cit p 101 Ao menos por enquanto parece importante expor a criacutetica ao caraacuteter infundado ou
de base questionaacutevel como se veraacute adiante de uma conclusatildeo ao modo do procedimento matemaacutetico
uma vez que se daacute nos termos de um acordo Cabe adiantar que este seraacute um ponto a ser abordado e
reformulado na dialeacutetica Por enquanto vale acompanhar o desenvolvimento desta criacutetica ao que se tem
como fundamento na matemaacutetica
39 Rep 510d5 ldquoEntatildeo sabes tambeacutem que ainda se servem de figuras visiacuteveis que discute sobre elas
ainda que estejam pensando nelas mas naquelas com as quais elas tecircm semelhanccedilardquo (ὅηη ηνῖο ὁξσκέλνηο
εἴδεζη πξνζρξῶληαη θαὶ ηνὺο ιόγνπο πεξὶ αὐηῶλ πνηνῦληαη νὐ πεξὶ ηνύησλ δηαλννύκελνη ἀιι ἐθείλσλ
πέξη νἷο ηαῦηα ἔνηθε)
67
modo natildeo eacute a melhor representaccedilatildeo que se pode dar a um raciociacutenio noeacutetico pois
embora natildeo seja precisamente um reflexo a figura geomeacutetrica consiste na aparecircncia dos
objetos que os geocircmetras procuram O equiacutevoco da geometria parece estar no dado de
que tais formas visiacuteveis satildeo para eles o proacuteprio quadrado e a proacutepria diagonal sobre as
quais se constroacutei um ιόγνο40
O que se tem em vista eacute a noccedilatildeo de quadrado e de
diagonal que natildeo consistem em representaccedilotildees sensiacuteveis ao modo de um espectro como
acontecia com as sombras e com os reflexos nas superfiacutecies e na aacutegua (ηὰο ζθηάο
θαληάζκαηα Rep 510a1) Haacute uma distinccedilatildeo neste instante da forma visiacutevel (ηνῖο
ὁξσκέλνηο εἴδεζη) a figura geomeacutetrica por via da qual o geocircmetra busca o inteligiacutevel
Este tipo de imagem a figura da geometria refere-se a conceitos da geometria e de
algum modo oferece este conteuacutedo que eacute apreensiacutevel somente pela δηάλνηα
ldquo() Das figuras que modeladas e desenhadas por eles
produzem sombra e imagens na aacutegua usam como se fossem tambeacutem
imagens buscando ver neles proacuteprios esses objetos que natildeo poderiam
ser vistos senatildeo com o pensamentordquo (ηνύηνηο κὲλ ὡο εἰθόζηλ αὖ
ρξώκελνη δεηνῦληεο δὲ αὐηὰ ἐθεῖλα ἰδεῖλ ἃ νὐθ ἂλ ἄιισο ἴδνη ηηο ἢ ηῆ
δηαλνίᾳ (Rep 510e ndash 511a)
Antes de analisar o pensar nesse contexto a δηάλνηα propriamente vale verificar
esse dado que parece ser importante para distinguir a primeira seccedilatildeo inteligiacutevel e para
conferir o grau de conhecimento da realidade dos objetos da investigaccedilatildeo matemaacutetica O
conteuacutedo inteligiacutevel da figura geomeacutetrica estaacute na ordem dos conceitos o que define o
quadrado ldquoo proacutepriordquo impliacutecito em ldquoo proacuteprio quadradordquo e nas outras noccedilotildees
matemaacuteticas como a noccedilatildeo de par e de iacutempar e os tipos de triacircngulos Todavia a criacutetica
ao uso das imagens natildeo apresenta ao menos por enquanto maiores especificaccedilotildees
acerca da realidade dos seres matemaacuteticos O ldquoproacutepriordquo do quadrado natildeo deixa claro se
o que se entende por conceito matemaacutetico constitui uma ideia do quadrado como
poderia conceber a dialeacutetica ou se se trata de um quadrado dado pelo raciociacutenio
matemaacutetico e portanto uma demonstraccedilatildeo que conta com a representaccedilatildeo graacutefica
distinccedilotildees que seratildeo examinadas mais adiante Por parecer uacutetil a uma definiccedilatildeo de
atividade intelectual o texto chama atenccedilatildeo para o dado de que na praacutetica dos
40 Rep 510d8 ldquoDiscutem a propoacutesito do proacuteprio quadrado e da proacutepria diagonal natildeo poreacutem a
propoacutesito da diagonal que desenham ()rdquo (ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ ἕλεθα ηνὺο ιόγνπο πνηνύκελνη θαὶ
δηακέηξνπ αὐηο ἀιι νὐ ηαύηεο ἣλ γξάθνπζηλ)
68
geocircmetras se confere a tais imagens a funccedilatildeo de refletir conceitos41
Dito de outro
modo eles buscam as noccedilotildees matemaacuteticas a partir de uma representaccedilatildeo sensiacutevel por
compreenderem equivocadamente ser a figura capaz de referir as noccedilotildees inteligiacuteveis e
ao domiacutenio sensiacutevel simultaneamente
Ao considerar o que jaacute foi exposto sobre a aparecircncia e a sua debilidade em
relaccedilatildeo a uma referecircncia plena de realidade natildeo parece haver a completa aprovaccedilatildeo
deste meacutetodo no que se refere ao mais alto conhecimento Mesmo que se apreenda tais
noccedilotildees atraveacutes da figura geomeacutetrica as mesmas natildeo podem ser compreendidas em toda
a sua realidade por um recurso sensiacutevel como a imagem Em outros termos as noccedilotildees
inteligiacuteveis natildeo satildeo ditas em sua integridade em sua realidade pelas figuras sendo a
argumentaccedilatildeo e a explicaccedilatildeo matemaacutetica obscura carente de clareza ao se atribuir agrave
representaccedilatildeo graacutefica e agrave demonstraccedilatildeo o conhecimento do objeto em questatildeo como se
argumentou no iniacutecio da criacutetica
Dada a carecircncia de clareza da figura embora em menor grau comparada agraves
sombras o ιόγνο matemaacutetico fica comprometido o que explica a conclusatildeo nos termos
de um acordo Esse meacutetodo natildeo alcanccedila o que parece constituir o fundamento do
quadrado e dos conceitos matemaacuteticos o que mostra que a evidecircncia que busca o ιόγνο
geomeacutetrico tem iniacutecio e fim nas figuras sensiacuteveis ainda que seu procedimento e as
proacuteprias figuras envolvam noccedilotildees inteligiacuteveis42
A criacutetica ao meacutetodo matemaacutetico vale
antecipar estaraacute completa apoacutes o exame das disciplinas que colaboram na educaccedilatildeo do
governante e do guardiatildeo da cidade no livro VII Neste instante tem-se avaliados
observe-se os aspectos que ressaltam as limitaccedilotildees da aritmeacutetica e da geometria em
relaccedilatildeo agravequele que se mostraraacute o modo de pensar mais eficiente para o mais alto
conhecimento Assim importa mostrar as fragilidades do meacutetodo dos matemaacuteticos para
mais tarde expor o seu alcance intelectual e a sua utilidade propedecircutica
41 Embora haja a sugestatildeo de uma realidade ao dizer o ldquoquadrado mesmordquo tal indicaccedilatildeo natildeo parece
totalmente clara ao menos ainda A nota de James Adam sobre a ambiguidade de ηνῦ ηεηξαγώλνπ αὐηνῦ
vale ser citada pois ajuda a pocircr a questatildeo acerca da realidade dos seres matemaacuteticos Ele nota que o
αὐηνῦ se refere antes de tudo ao quadrado ele mesmo (ldquoitselfrdquo) e natildeo diz respeito portanto ao desenho
do quadrado Pode se referir tanto a ideia de quadrado quanto ao quadrado matemaacutetico o qual segundo
ele Platatildeo diz ser distinto da ideia Em seguida Adam vecirc a possibilidade de a ambiguidade ser desfeita a
partir 511a ao se falar do δηαλννύκελνη os quais entende serem os seres matemaacuteticos Adam op cit pg 68
42 Aubenque faz um comentaacuterio que vai nessa direccedilatildeo ldquoQue este objeto intermediaacuterio seja o objeto dos
matemaacuteticos eacute o que se extrai da passagem 510d seg onde o matemaacutetico eacute apresentado como
raciociacutenio sobre as figuras que ele traccedila no sensiacutevel () mas das quais ele se serve como imagens (hoacutes
eikoacutesin) bdquodestas realidades mais altas‟ com as quais tais figuras se assemelham (eacuteoike)rdquo Aubanque op
cit p 42-43
69
A explicaccedilatildeo do procedimento dos geocircmetras expotildee desse modo as
caracteriacutesticas do domiacutenio inteligiacutevel O detalhamento das especificidades acerca deste
plano prossegue com a exposiccedilatildeo da atividade inteligente da alma
ldquo- Pois bem Eis o gecircnero que eu dizia ser o inteligiacutevel Ao
buscaacute-lo a alma eacute obrigada a servir-se de hipoacuteteses e natildeo se
encaminha para o princiacutepio uma vez que natildeo pode elevar-se aleacutem de
hipoacuteteses mas servindo-se das proacuteprias imagens imitadas pelos
objetos da seccedilatildeo inferior que em comparaccedilatildeo com as outras satildeo
tidas e apreciadas como mais niacutetidas
- Entendo disse ele que falas do que se faz na geometria e nas
artes que lhe satildeo afins (ἀδειθαῖο ηέρλαηο)rdquo (Rep 511a3- b2)
Com um tom conclusivo a criacutetica aos matemaacuteticos termina mostrando a que se
deve o erro e as consequecircncias do meacutetodo Como sugerido anteriormente nas condiccedilotildees
que esta seccedilatildeo da linha apresenta a alma eacute impelida a buscar o inteligiacutevel no entanto
natildeo pelo princiacutepio mas pelas hipoacuteteses (Rep 511a3) Ela eacute incapaz de sair das hipoacuteteses
na direccedilatildeo de um niacutevel superior justamente porque permanece presa agraves representaccedilotildees
sem buscar compreender mais profundamente as noccedilotildees apreendidas (Rep 511d5-7)
Ao comparar as imagens como aparecircncias do niacutevel mais baixo e como graacuteficos
do meacutetodo geomeacutetrico a alma as julga e as preza como dotadas de clareza O geocircmetra
considera assim as imagens como fidedignas agraves hipoacuteteses e de certo modo aos objetos
fiacutesicos tomando o resultado que se tem atraveacutes delas como o proacuteprio conhecimento
Desse modo compreende como clareza a adequaccedilatildeo entre a representaccedilatildeo e o objeto
representado Tal uso da imagem ressalta o caraacuteter inoacutecuo da aparecircncia e sugere ser o
meacutetodo matemaacutetico tatildeo insuficiente nos termos da alta cogniccedilatildeo quanto o que se tem
na opiniatildeo uma vez que ao final perde de vista os conceitos Por se fixar a imagens e
assim natildeo desenvolver o grau necessaacuterio de intelecccedilatildeo para apreender o fundamento dos
conceitos aritmeacuteticos natildeo pode ir aleacutem de hipoacuteteses que o levaratildeo apenas a outras
hipoacuteteses Desse modo uma vez que a intenccedilatildeo eacute demonstrar a premissa e chegar a uma
conclusatildeo no sentido de ὁκνινγνπκέλσο a matemaacutetica natildeo alcanccedila os princiacutepios O
movimento intelectivo que o matemaacutetico faz consiste desse modo das premissas para a
conclusatildeo sendo as hipoacuteteses o meio para tal43
43 Nickolas Pappas oferece uma explicaccedilatildeo sobre o que Platatildeo compreende por hipoacutetese ldquoTatildeo
improvadas asserccedilotildees sobre entidades matemaacuteticas podem ser aquilo a que Platatildeo daacute o nome de
hipoacutetesesrdquo Para o autor Platatildeo procura um fundamento para toda a matemaacutetica e de algum modo
simultaneamente para a Metafiacutesica ndash papel desempenhado pela Ideia do Bem Haacute o desejo de encontrar
aquilo que nos termos da contemporaneidade se chamaria certeza loacutegica certeza que o axioma
70
Cabe averiguar qual deve ser a compreensatildeo sobre as hipoacuteteses no argumento
dos matemaacuteticos e dos dialeacuteticos no Livro VII Pelo que se tem ateacute agora elas se
referem agraves premissas a partir das quais se constroacutei o raciociacutenio matemaacutetico e uma
conclusatildeo a qual deve estar de acordo com o pressuposto primeiro Desse modo as
hipoacuteteses constituem os pressupostos que satildeo sempre reafirmados ao final do processo
e nesse sentido todo o ιόγνο pode ser compreendido como a explicaccedilatildeo da premissa
ou melhor dizendo como uma demonstraccedilatildeo44
O meacutetodo matemaacutetico se resume agrave
demonstraccedilatildeo de premissas e natildeo ascendem de modo a entender por isso agrave natureza da
ideia envolvida na operaccedilatildeo Com as premissas por sua vez os loacutegicos e os geocircmetras
pretendem dizer o que satildeo os objetos do mundo sensiacutevel e a demonstraccedilatildeo delas
pressupotildee o conhecimento destes objetos Eles compreendem que a evidecircncia (θαλεξόλ)
acerca do objeto investigado eacute dada com esta demonstraccedilatildeo matemaacutetica de algo
existente do mundo fiacutesico atraveacutes das figuras abstendo-se de investigar ou oferecer uma
explicaccedilatildeo acerca do que fundamenta a hipoacutetese ou seja de buscar o ἀλππόζεηνο ou os
proacuteprios princiacutepios que utilizam a ἀξρή
Vale ainda atentar para a singularidade da seccedilatildeo que concerne agrave matemaacutetica O
primeiro ponto a ser notado diz respeito agrave possibilidade de natildeo adquirir conhecimento
nos termos da filosofia mesmo ao lidar com objetos inteligiacuteveis Os matemaacuteticos assim
como os dialeacuteticos como se analisaraacute em detalhe lidam com seres inteligiacuteveis
entretanto devido ao meacutetodo natildeo apropriado para a apreensatildeo deste objeto de grau mais
alto este contato natildeo constitui exatamente um conhecimento nos termos da ἐπηζηήκε
como quer o filoacutesofo O geocircmetra e o matemaacutetico natildeo chegam ao princiacutepio e o ponto
para o qual a analogia parece lanccedilar luz eacute justamente a importacircncia do meacutetodo e
consequentemente da operaccedilatildeo intelectiva que ele demanda Ao problematizar as
condiccedilotildees para o conhecimento questionando os objetos e o procedimento Platatildeo
sugere as diferenccedilas de abordagem epistemoloacutegica Dito de outro modo o caraacuteter
intermediaacuterio que parece ter a matemaacutetica uma vez que estabelece as tratativas entre o
sensiacutevel e o inteligiacutevel oferece as condiccedilotildees para mostrar as possibilidades de
operacionalidade do pensamento em uma primeira etapa do processo de cogniccedilatildeo
matemaacutetico natildeo oferece mas acreditam os geocircmetras estar evidente nas suas demonstraccedilotildees A dialeacutetica
tem a tarefa de definir em termos mais amplos simples e mais abstratos os objetos da matemaacutetica que
carecem de definiccedilatildeo A ascese dialeacutetica da Linha Dividida pode ser vista como uma ldquoclarificaccedilatildeo
definitoacuteriardquo ao inveacutes de uma ldquocerteza axiomaacuteticardquo Pappas op cit p 176-177 Na verdade o que o
dialeacutetico compreende como ideia o matemaacutetico toma como axiomas e noccedilotildees e os utiliza como hipoacutetese
44 Para Cornford o matemaacutetico restringe hipoacutetese agrave afirmaccedilatildeo de uma existecircncia e natildeo de uma definiccedilatildeo
A definiccedilatildeo na matemaacutetica eacute um ιόγνο no sentido de uma explicaccedilatildeo e natildeo de uma causa Cornford op
cit p 39
71
Se nas primeiras seccedilotildees da linha a deficiecircncia das aparecircncias mostrava a
debilidade do sensiacutevel e consequentemente a impossibilidade da cogniccedilatildeo nesta parte
da linha o conhecimento depende mais da atividade que se estabelece em relaccedilatildeo aos
objetos ou seja do meacutetodo45
A geometria que pretende mensurar algo fiacutesico e no
entanto utiliza elementos inteligiacuteveis mostra a possibilidade de uma relaccedilatildeo do sensiacutevel
com o inteligiacutevel que a imagem sozinha natildeo oferecia Mesmo que o meacutetodo da
geometria natildeo ascenda agraves causas e agrave ideia ultima e termine por mirar o domiacutenio
sensiacutevel as tratativas com os conceitos inteligiacuteveis demonstram a capacidade da alma
de inteligir em diferentes niacuteveis e de acordo com a analogia ao menos de dois modos
como um raciociacutenio (δηάλνηα) e como uma intelecccedilatildeo em seu maacuteximo grau (λόεζηο)
Desse modo a distinccedilatildeo entre o princiacutepio e o objeto matemaacutetico merece alguns
esclarecimentos O princiacutepio que Platatildeo sugere nessas passagens se refere a ἀξρή e ao ηὸ
ἀξρὴλ ἀλππόζεηνλ causa dos princiacutepios e dos conceitos matemaacuteticos Eacute a ele que os
objetos da matemaacutetica devem sua realidade O objeto com o qual lida a matemaacutetica eacute o
ηὸ αὐηό ldquoo mesmordquo que exprime o conceito como visto Nesse sentido conhecer as
noccedilotildees matemaacuteticas naquilo que elas tecircm de inteligiacutevel e real constitui um
conhecimento no sentido de cognosciacutevel embora natildeo seja o mesmo conhecimento do
dialeacutetico (ἐπηζηήκε) que justamente apreende o primeiro princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico Os
objetos da matemaacutetica por serem inteligiacuteveis datildeo condiccedilotildees para a alma ter um grau de
frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel mesmo que os matemaacuteticos natildeo se deem conta dos
45 A ambiguidade desta parte da linha fez autores repensarem a verdadeira divisatildeo da linha Stocks por
exemplo entende que pode haver trecircs pares na divisatildeo conforme clareza ou verdade A e B (imagens e
originais) C e D (objetos matemaacuteticos ndash ideias) e AB e CD Entre B e C (originais e objetos matemaacuteticos)
haacute uma dissimetria natildeo havendo uma continuidade no sentido de uma passagem progressiva do grau
maior para o menor Os objetos do sensiacutevel B tem sua representaccedilatildeo em A D a seccedilatildeo mais alta tem a sua
verdade revelada em C na matemaacutetica Deve-se considerar B uma forma esclarecida de A e D uma forma
esclarecida de C ndash Stocks op cit p 76 77 De qualquer modo Stocks percebe haver entre os
seguimentos dos objetos fiacutesicos e o da matemaacutetica uma brusca distinccedilatildeo que ao final agruparia os
elementos da linha nos grupos domiacutenio sensiacutevel- domiacutenio inteligiacutevel e objetos originais fiacutesicos e
metafiacutesicos Chen entende que esta distinccedilatildeo de objetos entre imagem-original eacute assimeacutetrica enquanto a
relaccedilatildeo entre originais fiacutesicos-objetos matemaacuteticos e objetos matemaacuteticos-ideias eacute simeacutetrica uma vez que
a relaccedilatildeo dada pelo caacutelculo eacute intermediada pela noccedilatildeo de igualdade Natildeo se trata portanto de uma mesma
relaccedilatildeo e o texto entende Chen lida com a relaccedilatildeo assimeacutetrica - Chen op cit p 104 Em outras palavras
eacute possiacutevel ver uma riacutegida separaccedilatildeo entre os segmentos intermediaacuterios como Stocks considera ou uma
relativa continuidade como entende Chen As duas posiccedilotildees mostram a meu ver a complexidade da
parte que se refere agrave matemaacutetica na linha como bastante oportuna para propor uma noccedilatildeo de atividade do
pensamento que perpasse de algum modo os domiacutenios e possa chegar a mais superior das ideias a ideia
do bem No caso de Chen o comentaacuterio elege a noccedilatildeo de igualdade (equality) como a noccedilatildeo reguladora
que o caacutelculo utiliza para fazer as relaccedilotildees entre os domiacutenios Esta parece ser uma observaccedilatildeo pertinente e
importante do aspecto da cogniccedilatildeo pois evidencia os tipos de noccedilotildees inteligiacuteveis capaz de fazer esta
relaccedilatildeo entre os domiacutenios e as seccedilotildees Natildeo parece ser qualquer elemento inteligiacutevel que poderia
proporcionar este tracircnsito mas elementos especiacuteficos presentes tanto no domiacutenio sensiacutevel quanto no
inteligiacutevel isto eacute noccedilotildees a partir das quais eacute possiacutevel uma verificaccedilatildeo tanto empiacuterica quanto intelectual
como parecem ser as noccedilotildees matemaacuteticas
72
princiacutepios Sendo o princiacutepio e o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico a causa do conceito (ηὸ αὐηό)
deve-se atentar o matemaacutetico tem a via para a apreensatildeo deles que erroneamente
ignoram Tal noccedilatildeo de causalidade que seraacute detalhada adiante mostra a relaccedilatildeo entre as
duas partes em que se divide o domiacutenio inteligiacutevel e propotildee ao mesmo tempo a
passagem de um niacutevel a outro
Desta vez ao se referir aos objetos matemaacuteticos o texto parece tratar de maneira
mais objetiva a realidade deles e deixar para a questatildeo da cogniccedilatildeo as diferenciaccedilotildees
que propotildeem as divisotildees da linha Pode-se suspeitar que tais noccedilotildees tenham
peculiaridades que fazem Platatildeo utilizaacute-las para ilustrar o processo cognitivo na etapa de
transiccedilatildeo do sensiacutevel para o inteligiacutevel dado que com as noccedilotildees geomeacutetricas eacute possiacutevel
se referir de maneira inteligente ao sensiacutevel ou seja eacute possiacutevel dar um tratamento aos
objetos do mundo sensiacutevel a partir de noccedilotildees inteligiacuteveis Ao fazer uso de elementos
inteligiacuteveis para oferecer uma explicaccedilatildeo que tem por objetivo final dizer sobre o
domiacutenio sensiacutevel tal como se viu na demonstraccedilatildeo o meacutetodo matemaacutetico apresenta a
relaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel e ao mesmo tempo a participaccedilatildeo desta disciplina
em ambos os domiacutenios Desta perspectiva as noccedilotildees matemaacuteticas enviam diretamente
ao ser sem demandar outro tipo de objeto que natildeo sejam as noccedilotildees suscitadas pelas
figuras geomeacutetricas e pelas hipoacuteteses ao modo de axiomas46
A partir disso pode-se experimentar traccedilar um perfil da δηάλνηα visto que eacute a
operaccedilatildeo envolvida nessa tratativa entre seres de inteligibilidade tal como os conceitos
da matemaacutetica e da geometria com vistas para o sensiacutevel Ela apresenta as seguintes
caracteriacutesticas 1) opera partindo da premissa para a conclusatildeo por meio de hipoacuteteses 2)
faz a intermediaccedilatildeo entre conceitos inteligiacuteveis e imagens sensiacuteveis (graacuteficos da
geometria) 3) natildeo chega ao princiacutepio natildeo-hipoteacutetico embora os elementos com os
quais opera sejam inteligiacuteveis e por isso permitiriam fazecirc-lo Pode-se compreender o
movimento do pensamento do raciociacutenio com um grau ascendente e horizontal Em
termos cognitivos ou seja no que se refere ao alvo do conhecimento a atividade do
pensamento ao modo de um raciociacutenio se restringe a ir das hipoacuteteses agrave afirmaccedilatildeo acerca
de algo existente o qual natildeo define nos termos do raciociacutenio matemaacutetico Tal atuaccedilatildeo
parece ser suficiente para caracterizar um movimento que vai do sensiacutevel para um grau
46 Cornford faz uma observaccedilatildeo sobre o que ele chama de bdquoclasses de ideias‟ a qual parece ir ao encontro
desta hipoacutetese ldquoMatemaacuteticos podem usar bdquoimagens visiacuteveis‟ () Ele sabe que natildeo estaacute pensando a
partir destas coleccedilotildees [de representaccedilotildees de coisas] e de figuras mas de ideias Na classe das ideias
morais natildeo haacute imagens visiacuteveis suas semelhanccedilas no mundo satildeo propriedades invisiacuteveis da alma ()
Assim a matemaacutetica serve como o caminho mais faacutecil do mundo sensiacutevel para o mundo inteligiacutevel e deve
preceder ao estudo das ideias moraisrdquo Cornford op cit p 38
73
do inteligiacutevel mas que natildeo vai muito aleacutem da inteligibilidade dos nuacutemeros dos
conceitos matemaacuteticos e das hipoacuteteses
De outro modo em termos de operacionalidade no que diz respeito ao modo e
aos elementos dispostos no raciociacutenio matemaacutetico o procedimento demonstrativo
mostra que o movimento do pensamento consiste em um movimento horizontal uma
vez que permanece em torno da relaccedilatildeo princiacutepio-conclusatildeo tomando-os nos termos da
relaccedilatildeo entre hipoacuteteses A operaccedilatildeo desse modo fica restrita ao princiacutepio do qual
partiu constituindo um movimento de transiccedilatildeo entre as noccedilotildees envolvidas ao modo de
uma variaccedilatildeo entre os elementos que serve para demonstraacute-lo passando de um para
outro sem se lanccedilar questionamentos acerca deles proacuteprios Natildeo haacute nenhum movimento
que considere os elementos tomando-os da perspectiva de sua realidade Mesmo que ldquoo
proacuteprio quadradordquo possibilite inferir um grau ontoloacutegico superior parece ser satisfatoacuterio
para os propoacutesitos dos matemaacuteticos o grau de apreensatildeo do inteligiacutevel que os permita
fazer suas deduccedilotildees e voltar a imagem Parece natildeo haver necessidade de conhecer o
fundamento das noccedilotildees envolvidas no meacutetodo de demonstraccedilatildeo dado que a operaccedilatildeo
consiste justamente em intermediar os conceitos que estatildeo entre a premissa e a
conclusatildeo47
Tal descriccedilatildeo eacute o que torna possiacutevel uma caracterizaccedilatildeo da δηάλνηα ateacute aqui Vecirc-
se que se trata da operaccedilatildeo do pensamento que embora engajado na demonstraccedilatildeo de
noccedilotildees inteligiacuteveis natildeo chega ao princiacutepio maacuteximo e ocupa assim a posiccedilatildeo
intermediaacuteria entre a δόμα e a λόεζηϛ Conforme a primeira seccedilatildeo do domiacutenio
inteligiacutevel seu campo de atuaccedilatildeo versa sobre os inteligiacuteveis entretanto somente sobre
aqueles que mantecircm alguma relaccedilatildeo com o sensiacutevel isto eacute que podem de algum modo
dizecirc-los Dessa maneira a δηάλνηα constitui o primeiro grau do pensamento intelectivo
nos termos da cogniccedilatildeo e ganha lugar no domiacutenio do cognosciacutevel pois se refere ao uso
47 Diante da criacutetica ao procedimento dos matemaacuteticos conveacutem conferir o que Brisson e Meyerstein
explicam sobre o procedimento dos geocircmetras e a apropriaccedilatildeo em certa medida deste tipo de prova por
parte do filoacutesofo ldquoPara o filoacutesofo que na Greacutecia antiga toma como modelo os passos dos geocircmetras
provar implica 1) Por provisoriamente axiomas tambeacutem chamado ldquohipoacutetesesrdquo 2) verifica-se que esses
axiomas natildeo se contradizem 3) verifica-se que deduccedilatildeo obedece agraves regras da loacutegica 4) determina-se se
as consequecircncias decorrentes correspondem na realidade sensiacutevel agravequelas que devem ser 5) se as
respostas agraves questotildees 2 3 e 4 satildeo positivas retornam sobre seus passos para verificar se as hipoacuteteses satildeo
verdadeiramente primordiais ou se em vez disso necessitam de axiomas complementaresrdquo Brisson L
Meyerstein FW op cit p 47-48 Note-se que apesar das diferenciaccedilotildees que Platatildeo se esforccedila em
realizar a matemaacutetica foi uma disciplina de grande inspiraccedilatildeo para o modelo investigativo que pretendia
elaborar para a filosofia Em comum com a matemaacutetica o meacutetodo dialeacutetico teraacute um procedimento que
utiliza hipoacuteteses ou seja parte de ideias e tem a necessidade de investigaacute-las Essa parece ser a grande
contribuiccedilatildeo das matemaacuteticas para a proposiccedilatildeo de um meacutetodo filosoacutefico cabendo a partir de entatildeo
discernir acerca de como proceder segundo os interesses da filosofia
74
e ao consequente entendimento dos elementos inteligiacuteveis ao procurar organizaacute-los de
modo a elaborar uma explicaccedilatildeo48
Uma compreensatildeo mais profunda e detalhada sobre a δηάλνηα pode ser dada com
uma anaacutelise acerca das disciplinas matemaacuteticas no Livro VII Por meio da descriccedilatildeo da
ascese do aprendiz em direccedilatildeo ao conhecimento filosoacutefico eacute possiacutevel mensurar melhor o
grau de inteligecircncia e de cogniccedilatildeo do raciociacutenio O texto trata o raciociacutenio sob o
argumento de que toda disciplina matemaacutetica que conduz agrave ideia do bem pois obriga a
alma a se voltar para o inteligiacutevel e para a contemplaccedilatildeo do ser eacute uacutetil aos propoacutesitos do
pedagogo filoacutesofo49
Assim pretende especificar como ocorre a colaboraccedilatildeo da
geometria da astronomia e da harmonia na educaccedilatildeo do futuro governante e expotildee com
isso o objeto inteligiacutevel de cada uma Do mesmo modo a despeito do que argumenta a
maioria dos geocircmetras e dos astrocircnomos (Rep 526a) a geometria e a astronomia
desempenham o mesmo papel como disciplinas que promovem tal orientaccedilatildeo na medida
em que exigem o trabalho do raciociacutenio atraveacutes das relaccedilotildees que cada uma opera por via
das figuras geomeacutetricas e da observaccedilatildeo do movimento dos corpos celestes
De fato aleacutem de ser um conhecimento uacutetil para a guerra a geometria conhece os
objetos que apresentam a qualidade inteligiacutevel do que eacute perene ou literalmente do que
sempre eacute (ηνῦ ἀεὶ ὄληνο) e natildeo as figuras ou desenhos do que se observa empiricamente
ndash ldquondash Eacute faacutecil ficar de acordo quanto a isso A geometria eacute o conhecimento daquilo que
sempre eacute (Rep 527b7)rdquo Assim conceitos trabalhados pela geometria como
profundidade e pela astronomia como distacircncia movimento e velocidade expressam
relaccedilotildees apreensiacuteveis pelo raciociacutenio matemaacutetico como igualdade e duplicidade e por
isso constituem um aprendizado que treina a alma a trabalhar com o que eacute invisiacutevel e
com o ser (Rep 529b-c) Observe-se que o que vale satildeo as relaccedilotildees matemaacuteticas que
acompanham os conceitos da astronomia e da geometria os quais assim como a noccedilatildeo
de unidade treinam a faculdade inteligente da alma (ηὸ θύζεη θξόληκνλ ἐλ ηῆ ςπρῆ
Rep 530c1) para conhecer qualidades inteligiacuteveis essenciais agrave ideia do bem como
imutabilidade e verdade (Rep 530a3-b4) Do mesmo modo por utilizarem-se dos
nuacutemeros e do caacutelculo o geocircmetra o astrocircnomo e o muacutesico satildeo forccedilados agrave mesma
48 Cornford ldquoSeu entendimento intelectual de uma coerecircncia embora isolada peccedila do raciociacutenio
dedutivo eacute a diaacutenoiardquo Cornford op cit p 51
49 Rep 526e2-4 ldquoTende para laacute afirmamos noacutes tudo quanto obriga a alma a voltar-se para aquele
lugar onde estaacute o mais feliz dos seres () (ἀλαγθάδεη ςπρὴλ εἰο ἐθεῖλνλ ηὸλ ηόπνλ κεηαζηξέθεζζαη ἐλ ᾧ
ἐζηη ηὸ εὐδαηκνλέζηαηνλ ηνῦ ὄληνο) Rep 526e6 ldquoEntatildeo se obriga a contemplar a essecircncia ela nos
conveacutem se obriga a contemplar o devir natildeo nos conveacutemrdquo (Οὐθνῦλ εἰ κὲλ νὐζίαλ ἀλαγθάδεη ζεάζαζζαη
πξνζήθεη εἰ δὲ γέλεζηλ νὐ πξνζήθεη)
75
abstraccedilatildeo que o filoacutesofo e por consequecircncia adquirem o mesmo grau de conhecimento
por lidarem com a inteligibilidade do nuacutemero50
Conveacutem notar que a criacutetica quanto ao meacutetodo empregado e quanto aos objetivos
que tecircm em vista cada disciplina permanece O Livro VII oferece uma versatildeo
pormenorizada acerca da cogniccedilatildeo ao expor com detalhes a operaccedilatildeo intelectual e seu
grau de conhecimento envolvido nas matemaacuteticas Entretanto o argumento natildeo perdeu
de vista os limites destas disciplinas para uma elevaccedilatildeo mais alta ao apontar o equiacutevoco
por parte dos matemaacuteticos no que se refere ao verdadeiro objeto em questatildeo a ideia do
bem e a real contribuiccedilatildeo delas para tal O que o argumento diz da visatildeo dos geocircmetras
acerca da geometria vai ao encontro do que se observou no final do argumento da linha
(Rep 511a) onde se verifica a abstraccedilatildeo inteligiacutevel a partir da experiecircncia empiacuterica que
se realiza ao modo da adequaccedilatildeo do que se vecirc agraves figuras geomeacutetricas - ldquo() ao fazer
suas declaraccedilotildees falam em quadrar em construir uma figura acrescentar usando
sempre termos como esses Ora toda dedicaccedilatildeo a esse aprendizado tem em vista o
conhecimentordquo (Rep527a6-b1) Este parece constituir o objetivo uacuteltimo da geometria
a transposiccedilatildeo do sensiacutevel em direccedilatildeo agraves formas do inteligiacutevel na qual a racionalizaccedilatildeo
se daacute nos termos desse procedimento De todo modo a cogniccedilatildeo acontece todavia sem
ter em vista um conhecimento maior (ἐπηζηήκε)
O mesmo se observa entre os astrocircnomos os quais acreditam ser a astronomia
um conhecimento que equipara os fenocircmenos naturais com os astros sem considerarem
o que haacute de imutaacutevel e verdadeiro neles o que haacute de inteligiacutevel portanto (Rep 530a)
Tambeacutem entre os muacutesicos que julgam ser a harmonia o estudo que mensura e equipara
os sons dados da sensibilidade sem se darem conta da relevacircncia de examinar os
nuacutemeros que satildeo harmocircnicos e as razotildees que haacute para serem como tais (Rep 531a-d) ou
50 Cabe aqui trazer um esclarecimento de Trabattoni que vai ao encontro do que se analisa sobre a
δηάλνηα ldquoConveacutem no entanto esclarecer que natildeo satildeo as expressotildees oacuteticas em si que excluem esta
possibilidade e que para resolver a questatildeo eacute necessaacuterio investigar aleacutem dessa perspectiva Parece-me
que uma anaacutelise mesmo que resumida da metaacutefora da linha nos forneccedila argumentos suficientes para
estabelecermos que Platatildeo conceba que o conhecimento intelectual antes de qualquer coisa eacute um tipo de
pensamento discursivo O esquema dos manuais de filosofia segundo os quais apresentam a diaacutenoia
como o tipo de pensamento discursivo e proposicional que ocupa o terceiro segmento da linha e a noacuteēsis
como o quarto segmento e que seria portanto um pensamento intuitivo e natildeo proposicional natildeo se
verifica de maneira alguma no textordquo Trabattoni F ldquoIl Sapere del Filosofordquo in Vergetti M (Ed) La
Repubblica Naacutepoles Bibliopolis 2003 vol 5 p 158 O comentaacuterio expotildee a complexidade que envolve os
trabalhos do intelecto e a dificuldade ao se pretender dar uma classificaccedilatildeo riacutegida aos tipos de operaccedilatildeo
cognitivas O que Platatildeo parece ter em vista com a divisatildeo eacute primeiramente distinguir o que cada
conhecimento tem em vista para entatildeo mostrar a partir do meacutetodo de cada uma seus alcances e
limitaccedilotildees Raciociacutenio matemaacutetico e inteligecircncia mostram a intelecccedilatildeo ainda que em graus e de maneira
diferentes e que classificaacute-los como conhecimento proposicional o qual busca sobretudo definiccedilotildees ou
intuitivo pode dizer muito pouco sobre o intelecto e sua atividade
76
seja natildeo se questionam no que consiste a harmonia De modo geral diferentemente dos
dialeacuteticos os matemaacuteticos natildeo ascendem ao proacuteprio problema (ἀιι νὐθ εἰο πξνβιήκαηα
ἀλίαζηλ Rep 531c2) na perspectiva do filoacutesofo Mesmo que trabalhem com objetos
inteligiacuteveis e que tenham portanto um grau de intelecccedilatildeo e de cogniccedilatildeo os
matemaacuteticos natildeo demonstram ter o que para o filoacutesofo constituiria um conhecimento
pleno da sua disciplina o fundamento que as torna comuns e afins o natildeo hipoteacutetico
inteligiacutevel a ideia do bem
32 O meacutetodo dialeacutetico e a λόεζηϛ
A descriccedilatildeo do meacutetodo de cogniccedilatildeo na uacuteltima parte da linha dividida apresenta a
apreensatildeo de ideias a cogniccedilatildeo no seu grau superior A operaccedilatildeo empreendida no
processo e as especificidades dos objetos da cogniccedilatildeo satildeo dadas agrave luz da formulaccedilatildeo
filosoacutefica Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do domiacutenio inteligiacutevel e do conhecimento
proacuteprio deste tipo de apreensatildeo dita inteligente mostra-se segundo o caraacuteter da filosofia
e portanto da atividade cognitiva do filoacutesofo a partir de um meacutetodo especiacutefico
denominado ciecircncia dialeacutetica
ldquo- Pois bem Fica sabendo agora que eu digo que a seccedilatildeo das
coisas inteligiacuteveis eacute aquela em que eacute a proacutepria razatildeo que as apreende
com a forccedila da dialeacutetica (αὐηὸο ὁ ιόγνο ἅπηεηαη ηῆ ηνῦ δηαιέγεζζαη
δπλάκεη) considerando as hipoacuteteses natildeo como princiacutepios mas
realmente como hipoacuteteses como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο
ηε θαὶ ὁξκάο) para chegar ao princiacutepio de tudo aquele que natildeo
admite hipoacuteteses (κέρξη ηνῦ ἀλππνζέηνπ ἐπὶ ηὴλ ηνῦ παληὸο ἀξρὴλ
ἰώλ) Num movimento inverso por sua vez presa a tudo o que
depende desse princiacutepio vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem
servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias ideias
por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (εἴδε)
- Entendo disse mas natildeo como gostaria porque me parece que
estaacutes falando de uma tarefa muito pesada Queres determinar que o
conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da dialeacutetica
(ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο) eacute mais claro (ζαθέζηεξνλ εἶλαη) que
o que se tem por meio das ciecircncias cujos princiacutepios satildeo as hipoacuteteses e
que os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o
pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηῶλ ηερλῶλ αἷο αἱ
ὑπνζέζεηο ἀξραὶ θαὶ δηαλνίᾳ κὲλ ἀλαγθάδνληαη ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ
77
αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη) de outro lado por examinaacute-los sem voltar
ao princiacutepio (δηὰ δὲ ηὸ κὴ ἐπ ἀξρὴλ ἀλειζόληεο) mas a partir de
hipoacuteteses eles natildeo te parecem ter inteligecircncia a respeito deles ainda
que sejam inteligiacuteveis por meio de um princiacutepio Parece-me que
chamas pensamento (δηάλνηαλ) a disposiccedilatildeo (ἕμηλ) dos que estudam
geometria e ciecircncias afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo
inteligecircncia (λνῦλ) jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a
opiniatildeo e a inteligecircncia (ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ
νὖζαλ)rdquo (Rep 511b3-d5)
A primeira distinccedilatildeo do domiacutenio inteligiacutevel eacute dada pela peculiaridade do modo
de apreensatildeo de ideias O ιόγνο apreende toca (ἅπηεηαη) segundo os termos metafoacutericos
do texto o que eacute do gecircnero inteligiacutevel nesta uacuteltima seccedilatildeo da linha Tal relaccedilatildeo a qual
descreve uma apreensatildeo tem seu procedimento explicado logo em seguida tomar as
hipoacuteteses natildeo como princiacutepio mas por aquilo que elas mesmas satildeo utilizando-as
assim como degraus e pontos de apoio (ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο) indo ateacute o natildeo-
hipoteacutetico o princiacutepio de tudo De posse do que se apreendeu desse princiacutepio uacuteltimo
retornar na direccedilatildeo de uma conclusatildeo usando as ideias e natildeo as sensaccedilotildees chegando
assim a outras ideias (ηειεπηᾷ εἰο εἴδε) Tal procedimento eacute dado pela potecircncia
dialeacutetica da razatildeo51
que exprime as potencialidades da alma no que se refere agrave
capacidade de cogniccedilatildeo
Vaacuterias satildeo as questotildees que se deve analisar a partir desse trecho Deve-se
comeccedilar por verificar o sentido de hipoacutetese que a ciecircncia dialeacutetica tem em vista e o uso
que faz delas Por conhececirc-las verdadeiramente por saber no que elas consistem o
dialeacutetico procede de acordo com o gecircnero inteligiacutevel Ele utiliza as hipoacuteteses como
hipoacuteteses ou seja sem atribuir a elas maior valor cognitivo e sem tomaacute-las como
axiomas como acontecia no meacutetodo de demonstraccedilatildeo Do mesmo modo natildeo satildeo tidas
pelo filoacutesofo como princiacutepio uacuteltimo a partir do qual se deve iniciar uma inquiriccedilatildeo
tampouco constituem a conclusatildeo do processo cognitivo constituindo apenas graus a
serem superados para que se chegue a um princiacutepio irrefutaacutevel Note-se que a definiccedilatildeo
de hipoacutetese eacute dada por analogia e no que se refere a sua funccedilatildeo dentro do meacutetodo Tal
perspectiva importa observar natildeo a concebe necessariamente nos termos de um
51 O termo ldquorazatildeordquo para a traduccedilatildeo de ιόγνο parece de acordo com os propoacutesitos da descriccedilatildeo da
atividade dialeacutetica O trecho potildee em evidecircncia a distinccedilatildeo do meacutetodo dialeacutetico que diferentemente do
meacutetodo de demonstraccedilatildeo utiliza exclusivamente elementos racionais em toda a sua capacidade de
apreensatildeo Deve-se ter em vista que a palavra ldquorazatildeordquo parece sintetizar assim o alcance cognitivo do
meacutetodo e da potencialidade intelectual da alma do filoacutesofo
78
conceito podendo ser elas proposiccedilotildees ou axiomas A posiccedilatildeo de intermediaacuterias no
movimento de ascese chama atenccedilatildeo para sua utilidade no que se refere ao
procedimento dando a sugestatildeo desse modo de que pode consistir em uma proposiccedilatildeo
qualquer proacuteximo do que tambeacutem se encontra no Feacutedon (Fed 100d)52
justificando por
isso uma averiguaccedilatildeo do seu fundamento Evidentemente a criacutetica ao procedimento
matemaacutetico parece tomar como hipoacuteteses os axiomas e conceitos matemaacuteticos do
mesmo modo o dialeacutetico do livro VI parece considerar apenas as ideias Todavia este
tipo de abordagem coloca em foco o seu uso apontando-as antes de tudo como os
meios que conduzem o pensamento a um grau maior de cogniccedilatildeo Mesmo que se trate
de conceitos enquanto hipoacuteteses natildeo satildeo vistas em seu valor cognitivo jaacute que sua
natureza inteligiacutevel natildeo eacute objeto de investigaccedilatildeo Conveacutem compreender assim que
diferentemente dos matemaacuteticos para o dialeacutetico importa averiguaacute-las em sua natureza
rumo agrave ideia mais importante sendo esta a caracteriacutestica do pensamento posta em
destaque nesse procedimento
Como se vecirc natildeo se deve atribuir a elas um estatuto de princiacutepio devendo ter
por isso seu conteuacutedo cognitivo questionado ateacute que se chegue ao seu fundamento No
fundamento delas e de tudo (Rep 511b7) no ponto mais alto estaacute a ideia do bem
Parece ser nesse sentido que as hipoacuteteses se mostram os meios para chegar ao princiacutepio
de tudo pois se apresentam como elementos transitoacuterios de modo que se faz necessaacuterio
investigar uma a uma sucessivamente
A passagem entre hipoacuteteses que se eleva para outras ideias eacute dada nos termos de
um movimento ascendente tal como sugerem ἐπηβάζεηο ηε θαὶ ὁξκάο no qual se
apreende o natildeo-hipoteacutetico Haacute uma notaacutevel progressatildeo nesse movimento dada a
superaccedilatildeo de um elemento provisoacuterio para um elemento basilar o que natildeo se via no
meacutetodo de demonstraccedilatildeo Logo adiante descreve a finalizaccedilatildeo do processo como uma
volta (πάιηλ) do dialeacutetico pelas ideias uma vez que jaacute conheceu o fundamento de tudo
Nesse retorno o dialeacutetico termina por averiguar o que estaacute em questatildeo utilizando desta
vez as proacuteprias ideias valendo-se portanto de elementos inteligiacuteveis o que faz a
conclusatildeo a finalizaccedilatildeo do processo natildeo ser outra que tambeacutem uma ideia O dialeacutetico
tem em mira diferente do geocircmetra natildeo a existecircncia de objetos sensiacuteveis mas as
52 A hipoacutetese no Feacutedon natildeo deve ser compreendida tal como acontece no Liv VI apenas como uma
ideia a ser superada O contexto dialoacutegico em que surge o tema insinua hipoacutetese no sentido mais amplo o
qual compreende natildeo apenas elementos inteligiacuteveis como as ideias mas qualquer afirmaccedilatildeo que se usa
como premissa em uma investigaccedilatildeo De qualquer modo ambos diaacutelogos como se veraacute propotildee a
hipoacutetese como elemento usado no meacutetodo dialeacutetico que colabora para a ascensatildeo a um conhecimento ao
ser analisado e superado
79
proacuteprias ideias que satildeo os objetos inteligiacuteveis proacuteprios deste domiacutenio e que
fundamentam as noccedilotildees matemaacuteticas e os objetos dos niacuteveis antecedentes os objetos
fiacutesicos e as imagens53
Em termos cognitivos se vecirc um movimento linear ascende e a
permanecircncia em um niacutevel superior o qual consiste na saiacuteda das hipoacuteteses para a ideia e
da ideia para outras ideias Visto de outra maneira a compreensatildeo acerca da natureza da
hipoacutetese tal como sugere a dialeacutetica permite a apreensatildeo da ideia que a fundamenta e
potildee o pensamento assim a trabalhar apenas com ideias o que constitui uma elevaccedilatildeo
da atividade inteligente
Deve-se observar no que consiste o tracircmite entre ideias que constitui o meacutetodo
dialeacutetico e a noccedilatildeo de inteligibilidade aiacute envolvida Com a distinccedilatildeo das ideias em
comparaccedilatildeo agraves hipoacuteteses agora o meacutetodo apresenta o procedimento de maneira
condizente com a natureza inteligiacutevel delas A consequecircncia do detalhamento desta
ciecircncia apropriada para a aquisiccedilatildeo do conhecimento e para a frequentaccedilatildeo no domiacutenio
inteligiacutevel eacute a sugestatildeo dos diferentes graus de cogniccedilatildeo e da capacidade intelectiva
inteligente no seu maacuteximo poder de apreensatildeo Sendo as ideias o objeto especiacutefico do
inteligiacutevel a ascese mostra o trabalho do pensamento dado na sua autenticidade uma
vez que natildeo demanda qualquer auxiacutelio de recursos sensiacuteveis como as imagens o que
culmina na cogniccedilatildeo do fundamento inteligiacutevel e portanto no conhecimento maacuteximo
o da realidade A elucidaccedilatildeo acerca do inteligiacutevel eacute um dos propoacutesitos da ciecircncia
dialeacutetica e assim determinar que eacute mais claro mais evidente o que refere ao ser e agrave
contemplaccedilatildeo do inteligiacutevel em comparaccedilatildeo agrave evidecircncia da matemaacutetica e da geometria
denominadas teacutecnicas eacute uma tarefa (ἔξγνλ) do dialeacutetico (Rep 511c4-6)
Desse modo diferenciaccedilotildees importantes satildeo realizadas em torno das atividades
(ἔξγνλ) das disciplinas e das suas relaccedilotildees com o inteligiacutevel As teacutecnicas tomam as
hipoacuteteses como princiacutepio operam somente com hipoacuteteses e impotildeem a atividade
cognitiva ao modo de um raciociacutenio Desse modo matemaacuteticos e geocircmetras natildeo tecircm
(ἴζρσ) inteligecircncia mesmo que os seres com os quais lidam sejam inteligiacuteveis e
portanto tenham relaccedilatildeo com o princiacutepio o ser inteligiacutevel (Rep 511d1) A relaccedilatildeo que
a matemaacutetica manteacutem com o inteligiacutevel eacute portanto desprovida do grau maacuteximo de
inteligibilidade diferente da dialeacutetica dita ser propriamente uma ciecircncia (ἐπηζηήκε)
53 Rep511b7-c2 ldquo() Num movimento inverso por sua vez presa a tudo que depende desse princiacutepio
vai descendo na direccedilatildeo do fim e sem servir-se de nada que seja sensiacutevel mas apenas das proacuteprias
ideias por meio delas e por causa delas acaba por chegar agraves ideias (ἁςάκελνο αὐηο πάιηλ αὖ
ἐρόκελνο ηῶλ ἐθείλεο ἐρνκέλσλ νὕησο ἐπὶ ηειεπηὴλ θαηαβαίλῃ αἰζζεηῷ παληάπαζηλ νὐδελὶ
πξνζρξώκελνο ἀιι εἴδεζηλ αὐηνῖο δη αὐηῶλ εἰο αὐηά θαὶ ηειεπηᾷ εἰο εἴδε)rdquo
80
Para compreender a noccedilatildeo de ἐπηζηήκε que acompanha o meacutetodo dialeacutetico isto que
parece ser o niacutevel maacuteximo de cogniccedilatildeo possiacutevel no inteligiacutevel deve-se verificar a noccedilatildeo
de inteligecircncia que se pode ter a partir do que mostram as comparaccedilotildees entre dialeacutetica e
matemaacutetica Desse modo cabe voltar agrave definiccedilatildeo de imagem como a imitaccedilatildeo (κηκήζηο)
do inteligiacutevel que parece se completar apoacutes a introduccedilatildeo da ideia (Rep 510b4)
Haja vista que a imitaccedilatildeo consiste na semelhanccedila de um original na imagem
derivada de um objeto vale verificar tal definiccedilatildeo agrave luz dos objetos inteligiacuteveis que por
serem tais apresentam-se em sua realidade inteligiacutevel diferentemente dos objetos das
outras seccedilotildees da linha Dito ser a imagem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel tem-se duas
consequecircncias para a relaccedilatildeo que se estabelece entre os objetos das seccedilotildees A primeira
diz respeito ao tipo de relaccedilatildeo que vista nestes termos sugere 1) que todos os objetos
satildeo relacionados entre si o de menor grau de clareza constituindo a imitaccedilatildeo do objeto
da seccedilatildeo subsequente de maior grau e 2) os objetos de todas as seccedilotildees estatildeo
relacionados agrave ideia objeto inteligiacutevel do niacutevel mais alto Em termos mais explicativos
as imagens satildeo imitaccedilotildees dos objetos fiacutesicos os objetos fiacutesicos por sua vez satildeo
imitaccedilotildees das ideias inteligiacuteveis as quais aparecem na matemaacutetica como conceitos Da
mesma maneira as imagens por imitarem os objetos sensiacuteveis e esses por sua vez ao
constituiacuterem uma imitaccedilatildeo do inteligiacutevel revelam que os objetos de todos os niacuteveis satildeo
derivados do inteligiacutevel e recebem por conta disso a realidade Tal encadeamento ao
mesmo tempo em que coloca o inteligiacutevel como causa dos objetos sensiacuteveis confere ao
sensiacutevel a condiccedilatildeo de reflexo do inteligiacutevel
Essa anaacutelise tem consequecircncias importantes A primeira consiste na explicaccedilatildeo
em certa medida da diferenciaccedilatildeo de grau de conhecimento da realidade e o grau de
manifestaccedilatildeo desta realidade entre os objetos de cada seccedilatildeo e entre os domiacutenios A
segunda na evidente intenccedilatildeo da linha em mostrar a importacircncia do meacutetodo e por
consequecircncia a especificidade de cada operaccedilatildeo cognitiva O conhecimento a partir dos
objetos do sensiacutevel se exclui agrave medida que eles consistem na imagem de outros que
podem ser tambeacutem reflexos onde se tem entatildeo as duas situaccedilotildees a coacutepia do inteligiacutevel
e a coacutepia da coacutepia Assim a realidade tal como manifesta o domiacutenio sensiacutevel natildeo pode
ser via para o conhecimento porque todo ele eacute uma coacutepia uma imagem do domiacutenio
inteligiacutevel sendo pertinente considerar a realidade nessa seccedilatildeo somente do aspecto da
existecircncia Pelo que se vecirc os conceitos geomeacutetricos tratam de inteligiacuteveis com
determinadas caracteriacutesticas que permitem dar tratamento inteligente ao sensiacutevel mas
sobre as quais os geocircmetras natildeo investigam devidamente ou seja natildeo as apreende em
81
seu fundamento A realidade dos seres matemaacuteticos permanece preservada na penuacuteltima
seccedilatildeo da linha e o que coloca os conceitos da geometria em penuacuteltima posiccedilatildeo parece
ser na verdade o meacutetodo de apreensatildeo que aiacute se apresenta
Tal compreensatildeo eacute importante para o propoacutesito de uma pesquisa que versa sobre
o pensamento Ao ter as duas primeiras seccedilotildees como preacircmbulo para a elucidaccedilatildeo de
um domiacutenio inteligiacutevel e de um meacutetodo para a apreensatildeo dessa inteligibilidade as duas
uacuteltimas seccedilotildees se mostram o alvo da verdadeira questatildeo da linha dividida mostrar qual
eacute o verdadeiro objeto a ser conhecido as ideias e a forma de apreendecirc-lo Uma vez que
constituem os objetos no inteligiacutevel as ideias matemaacuteticas satildeo iguais agraves ideias da
dialeacutetica no que diz respeito agrave realidade mas aparecem de maneira desigual no que se
refere ao meacutetodo Isso explica provavelmente porque a partir da terceira parte da linha
se faz referecircncia ao meacutetodo natildeo havendo concomitantemente uma comparaccedilatildeo dos
conceitos matemaacuteticos com as ideias da uacuteltima seccedilatildeo como acontecia entre imagem e
objeto original nas duas primeiras partes No inteligiacutevel o foco se volta para a operaccedilatildeo
da alma dito raciociacutenio e inteligecircncia respectivamente expressos pelo meacutetodo
demonstrativo e dialeacutetico Nesse sentido os termos potecircncia dialeacutetica e ter inteligecircncia
se justificam dado que estatildeo em relevo os modos de atuaccedilatildeo da alma e as condiccedilotildees
para o conhecimento nas operaccedilotildees que exprimem os meacutetodos Assim ao apreender as
ideias o meacutetodo dialeacutetico apreende a realidade enquanto os matemaacuteticos mesmo
lidando com elas natildeo as compreendem em sua realidade
Outra distinccedilatildeo do tipo de abordagem e uso das ideias que o dialeacutetico realiza em
comparaccedilatildeo ao geocircmetra estaacute na descida ou melhor na finalizaccedilatildeo do processo Por
apreender as ideias o dialeacutetico se mostra capaz de utilizaacute-las como referecircncia em uma
inquiriccedilatildeo ou seja capaz de abordar o objeto em questatildeo tendo em vista o seu
fundamento inteligiacutevel a ideia que lhe confere realidade Ao compreender este
fundamento o dialeacutetico mostra que compreende a realidade da ideia ou seja mostra
que reconhece o que eacute verdadeiro acerca do objeto em questatildeo Todo este movimento
que remonta a cogniccedilatildeo eacute dito ter inteligecircncia e eacute nesse sentido que a conhecimento que
acompanha a dialeacutetica deve ser compreendida como o conhecimento do verdadeiro
fundamento da ideia que embasa os objetos Em outras palavras conhecer a ideia eacute ao
mesmo tempo apreender a realidade e a verdade do termo em questatildeo
A partir da compreensatildeo do meacutetodo dialeacutetico se pode iniciar uma caracterizaccedilatildeo
da λόεζηϛ o processo cognitivo de apreensatildeo da ideia proacuteprio do meacutetodo dialeacutetico
Tem-se assim as seguintes caracteriacutesticas 1) realiza dois movimentos a) ascese
82
superaccedilatildeo das hipoacuteteses b) descida averiguaccedilatildeo das hipoacuteteses a partir do princiacutepio e
conclusatildeo 2) apreende a realidade inteligiacutevel que se diz ldquoo ser inteligiacutevelrdquo e ldquoideiardquo
(ηὸ ὄληνο εἴδε) 3) utiliza a ideia como princiacutepio 4) eacute promovida pela potecircncia
dialeacutetica da razatildeo (ιόγνο) Diferentemente do raciociacutenio a inteligecircncia opera a partir e
exclusivamente com elementos inteligiacuteveis sendo tal procedimento referido nos termos
da contemplaccedilatildeo54
Ter inteligecircncia e contemplar se referem a esta apreensatildeo no mais
alto grau conferindo agrave δηάλνηα assim a posiccedilatildeo intermediaacuteria entre a δόμα e o λνῦο55
Tem-se desse modo a posiccedilatildeo dos meacutetodos situados segundo a divisatildeo da linha
dividida Cada meacutetodo mostra uma capacidade de apreensatildeo que oferece o
conhecimento de determinada perspectiva ou como jaacute referido antes em algum grau
Parece claro que a cogniccedilatildeo estaacute subordinada em certa medida ao objeto que o meacutetodo
tem em vista e que esse uacuteltimo seraacute o responsaacutevel por apreendecirc-lo Em outras palavras
do meacutetodo depende a cogniccedilatildeo pois a partir dele seraacute dada ou natildeo a perspectiva e a
operaccedilatildeo inteligente Deve-se notar antes de maiores conclusotildees sobre a λόεζηϛ e
mesmo sobre a δηάλνηα que a passagem 511c3-d6 termina por classificar tais operaccedilotildees
dadas pelo meacutetodo como disposiccedilotildees ἕμηο Tal maneira de se referir ao fazer da
geometria e indiretamente da inteligecircncia supotildee uma condiccedilatildeo permanente um estado
que oferece condiccedilotildees de proceder segundo mostrou cada meacutetodo Vale assim verificar
a partir do livro VII o significado desta elevaccedilatildeo do pensamento e acompanhar os
passos dessa ascese intelectual Do mesmo modo verificar as consequecircncias cognitivas
e morais que formam o caraacuteter do filoacutesofo
54 Rep 511c5-7 ldquoQueres determinar que o conhecimento do ser e do inteligiacutevel por meio da ciecircncia da
dialeacutetica eacute mais claro () e os que tentam contemplaacute-los satildeo forccedilados a contemplaacute-los com o
pensamento e natildeo com as sensaccedilotildees (ηὸ ὑπὸ ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη ἐπηζηήκεο ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ
ζεσξνύκελνλ ἀιιὰ κὴ αἰζζήζεζηλ αὐηὰ ζεᾶζζαη νἱ ζεώκελνη)rdquo
55 Rep 511d4 ldquoParece-me que chamas pensamento a disposiccedilatildeo dos que estudam geometria e ciecircncias
afins e tecircm conhecimento discursivo mas natildeo inteligecircncia jaacute que a ciecircncia eacute algo intermediaacuterio entre a
opiniatildeo e a inteligecircncia (δηάλνηαλ δὲ θαιεῖλ κνη δνθεῖο ηὴλ ηῶλ γεσκεηξηθῶλ ηε θαὶ ηὴλ ηῶλ ηνηνύησλ
ἕμηλ ἀιι νὐ λνῦλ ὡο κεηαμύ ηη δόμεο ηε θαὶ λνῦ ηὴλ δηάλνηαλ νὖζαλ)rdquo Note-se a ediccedilatildeo brasileira traduz
δηάλνηα por ldquociecircnciardquo termo que para os propoacutesitos de nossa anaacutelise natildeo parece o mais adequado A
ediccedilatildeo inglesa prefere ldquoentendimentordquo (understanding) traduccedilatildeo que tambeacutem natildeo eacute afim embora
evidentemente correta com o aspecto ativo-passivo do pensamento tal como se tem analisado na linha
Uma sugestatildeo de traduccedilatildeo de acordo com o que pretende por em relevo nesse trabalho seria ldquoA mim
pareces chamar raciociacutenio a disposiccedilatildeo dos geocircmetras e de estudos desse tipo mas natildeo inteligecircncia sendo
o raciociacutenio algo intermediaacuterio entre a opiniatildeo e a inteligecircnciardquo Trabattoni comenta sobre os a
dificuldade de atribuir um sentido e uma traduccedilatildeo riacutegida aos quatro estados citados na linha e em resumo
acerca da diaacutenoia afirma que o texto natildeo autoriza uma traduccedilatildeo por ldquoconhecimento discursivordquo Conf
Trabattoni F op cit p 158
83
33 A funccedilatildeo da dialeacutetica
Referidos como ldquopoucosrdquo (ηηλεο ὀιίγνη Rep 531e2) denotando assim o
aspecto incomum de tal capacidade intelectiva (Rep 531e2) o que o texto mostra sobre
os filoacutesofos agora ditos dialeacuteticos no livro VII e sobre a dialeacutetica termina por explicar a
relaccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel e as significativas diferenccedilas acerca dos meacutetodos das
disciplinas Desse modo a explanaccedilatildeo acerca do meacutetodo dialeacutetico inicia no livro VII
anunciando duas das caracteriacutesticas do seu procedimento reconhecer traccedilos inteligiacuteveis
comuns entre os objetos que se analisa (Rep 531d1-2) e dar e receber ιόγνϛ (Rep
531e4-5)
ldquo- Entatildeo Glaucon falei essa jaacute eacute a proacutepria melodia que a
dialeacutetica executa Essa melodia embora soacute a razatildeo possa apreendecirc-
la seria imitada pela faculdade da visatildeo (νὗηνο ἤδε αὐηόο ἐζηηλ ὁ
λόκνο ὃλ ηὸ δηαιέγεζζαη πεξαίλεη ὃλ θαὶ ὄληα λνεηὸλ κηκνῖη ἂλ ἡ ηο
ὄςεσο δύλακηο) que diziacuteamos tenta lanccedilar seu olhar para os
animais para os astros e por fim ao proacuteprio sol (πξὸο αὐηὸλ ηὸλ
ἥιηνλ) Assim tambeacutem quando apenas com a dialeacutetica sem contar
com todos os sentidos algueacutem tentar lanccedilar-se por meio da razatildeo
em busca da essecircncia de cada coisa (νὕησ θαὶ ὅηαλ ηηο ηῷ
δηαιέγεζζαη ἐπηρεηξῆ ἄλεπ παζῶλ ηῶλ αἰζζήζεσλ δηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐπ
αὐηὸ ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ ) e natildeo desiste antes que apreenda soacute pela
inteligecircncia o que eacute o proacuteprio bem (ἂλ θαὶ κὴ ἀπνζηῆ πξὶλ ἂλ αὐηὸ ὃ
ἔζηηλ ἀγαζὸλ αὐηῆ λνήζεη ιάβῃ) ele chega ao limite do inteligiacutevel
como naquele momento aquele outro chegava ao limite do visiacutevel (ἐπ
αὐηῷ γίγλεηαη ηῷ ηνῦ λνεηνῦ ηέιεη ὥζπεξ ἐθεῖλνο ηόηε ἐπὶ ηῷ ηνῦ
ὁξαηνῦ)rdquo (Rep 532a1-b1)
Vaacuterios satildeo os aspectos que se pode analisar acerca do perfil dos dialeacuteticos e por
consequecircncia da proacutepria λόεζηϛ a partir desse argumento Deve-se dar atenccedilatildeo
primeiramente ao modo como eacute posta a distinccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel segundo a
explicaccedilatildeo acerca da capacidade de apreensatildeo do inteligiacutevel pela dialeacutetica (ηὸ
δηαιέγεζζαη δηαιεθηηθή) e da sua independecircncia em relaccedilatildeo ao sensiacutevel Sem recorrer
aos dados da sensibilidade o dialeacutetico apreende o ser do objeto examinado atraveacutes da
razatildeo utilizando-se apenas da faculdade inteligiacutevel a λόεζηϛ Os oacutergatildeos da
sensibilidade e o visiacutevel tecircm notavelmente sua atuaccedilatildeo definida como imitaccedilatildeo da
inteligecircncia e do inteligiacutevel sendo ao que tudo indica uma coacutepia do modus operandi
do domiacutenio real - tal como foi dito ser o caso das imagens no livro VI atraveacutes das quais
84
se verificou que os objetos do niacutevel mais baixo constituiacuteam uma imitaccedilatildeo dos objetos do
niacutevel superior (Rep 510b4) Desta vez o plano inteligiacutevel eacute dado explicitamente como
referecircncia para o visiacutevel cuja relaccedilatildeo o dialeacutetico eacute capaz de reconhecer A perspectiva
do dialeacutetico ao lanccedilar o olhar para o sensiacutevel eacute diferente dos demais por conseguir
distinguir e situar devidamente os dois planos ao ter em vista do conhecimento da ideia
do bem Ele estaacute livre de cometer o equiacutevoco dos demais por buscar sempre o
inteligiacutevel mesmo quando se volta para o que eacute da ordem do visiacutevel A elevaccedilatildeo do
sensiacutevel exige pelo que se observa o reconhecimento do inteligiacutevel no que eacute visiacutevel
sendo indispensaacutevel para isso o exerciacutecio intelectual que as matemaacuteticas oferecem
cujos objetivos versam mais uma vez sobre ldquo() elevar a melhor parte da alma (νῦ
βειηίζηνπ ἐλ ςπρῆ) ateacute a contemplaccedilatildeo do que haacute de excelente nos seres (ηνῦ ἀξίζηνπ ἐλ
ηνῖο νὖζη) ()rdquo (Rep 532c3-6)
Assim a passagem do plano visiacutevel na direccedilatildeo do ponto mais alto do inteligiacutevel
tal como explora na alegoria da caverna recebe com esta nova exposiccedilatildeo do exerciacutecio
dialeacutetico uma elucidativa explicaccedilatildeo nos termos ontoloacutegicos suscitados no argumento
acerca das matemaacuteticas Uma vez que se tem como procedimento ldquo() olhar para as
imagens divinas na aacutegua e para as sombras dos seres (πξὸο δὲ ηὰ ἐλ ὕδαζη θαληάζκαηα
ζεῖα θαὶ ζθηὰο ηῶλ ὄλησλ) mas natildeo para as sombras das figuras (εἰδώισλ ζθηὰο)
projetadas por essa outra luz ()rdquo (Rep 532c1-2) cabe analisar a presenccedila do
inteligiacutevel no visiacutevel tal como o texto apresenta
Todavia antes de verificar este dado vale examinar acerca da dialeacutetica O texto
descreve a potecircncia dialeacutetica (ὁ ηξόπνο ηο ηνῦ δηαιέγεζζαη δπλάκεσο Rep532d8) no
que se refere ao seu gecircnero e percurso Na condiccedilatildeo de etapa final do processo de
ascensatildeo conduz para o fim e para o repouso56
Do mesmo modo constitui o estaacutegio do
pensamento no qual se apreende natildeo mais as imagens reflexo do inteligiacutevel mas a
verdade ou seja uma caracteriacutestica inteligiacutevel na ordem visiacutevel (Rep 533a2-3) A
apreensatildeo do ser (πέξη ὃ ἔζηηλ ἕθαζηνλ Rep 533b1) consiste na caracteriacutestica exclusiva
da dialeacutetica tendo as outras disciplinas como se viu outros objetivos e portanto outro
grau de apreensatildeo
ldquo- Isso pelo menos disse eu ningueacutem nos contestaraacute se dissermos
que nenhum outro meacutetodo tenta sistematicamente apreender em cada
56 Rep 532e3 ldquoEsses caminhos ao que parece jaacute estariam conduzindo para o lugar onde algueacutem laacute
chegado acharia o repouso da viagem e o teacutermino da caminhada (ὁδνῦ ἀλάπαπια ἂλ εἴε θαὶ ηέινο ηο
πνξείαο)rdquo
85
coisa o que ela eacute Ao contraacuterio todas as outras artes se referem a
opiniotildees e desejos dos homens ou estatildeo todas elas voltadas para
processos de geraccedilatildeo ou composiccedilatildeo ou para cuidados com produtos
naturais ou artificiais (ἄιιαη πᾶζαη ηέρλαη ἢ πξὸο δόμαο ἀλζξώπσλ
θαὶ ἐπηζπκίαο εἰζὶλ ἢ πξὸο γελέζεηο ηε θαὶ ζπλζέζεηο ἢ πξὸο
ζεξαπείαλ ηῶλ θπνκέλσλ ηε θαὶ ζπληηζεκέλσλ ἅπαζαη ηεηξάθαηαη)
Quanto agraves restantes as que segundo afirmamos apreendem algo do
ser (ἃο ηνῦ ὄληνο ηη ἔθακελ ἐπηιακβάλεζζαη) isto eacute a geometria e as
que dela derivam vemos que elas sonham com o ser mas despertas
natildeo lhes eacute possiacutevel vecirc-lo enquanto usando hipoacuteteses deixam-no
intocado porque satildeo incapazes de prestar contas sobre elas (ὡο
ὀλεηξώηηνπζη κὲλ πεξὶ ηὸ ὄλ ὕπαξ δὲ ἀδύλαηνλ αὐηαῖο ἰδεῖλ ἕσο ἂλ
ὑπνζέζεζη ρξώκελαη ηαύηαο ἀθηλήηνπο ἐῶζη κὴ δπλάκελαη ιόγνλ
δηδόλαη αὐηῶλ) Quando se tem como princiacutepio (ἀξρὴ) aquilo que se
desconhece e o fim e o meio estatildeo entretecidos com o que se
desconhece que expediente haveria para que tal acordo um dia viesse
a tornar-se ciecircncia
- Nenhum disse elerdquo (Rep 533b-c5)
Apreender apenas algo do ser (ηνῦ ὄληνο ηη) e a incapacidade de dar a razatildeo
(ιόγνλ δηδόλαη) do que se apreende demonstram a impotencialidade cognitiva das outras
disciplinas aqui referidas como ηέρλαη Tal incapacidade eacute atribuiacuteda ao uso equivocado
das hipoacuteteses como se viu tendo-se por consequecircncia apenas uma apreensatildeo parcial
do ser Este ldquoalgo do serrdquo ao que tudo indica refere-se aos nuacutemeros conceitos e
relaccedilotildees que as matemaacuteticas apreendem mas que por essas natildeo terem em vista o
princiacutepio o natildeo-hipoteacutetico tomam apenas algumas caracteriacutesticas dos objetos
examinados Sendo impossiacutevel para elas reconhecer integralmente o que eacute cada coisa
natildeo alcanccedilam o ser Ao natildeo atingirem o ser natildeo satildeo capazes de dar a razatildeo delas isto eacute
de reconhecer e expor de maneira igualmente racional as relaccedilotildees inteligiacuteveis que dizem
respeito a dado objeto uma vez que o meacutetodo estaacute comprometido ao natildeo reconhecer o
princiacutepio (Rep 533c2-5)
Tal como sugerem as uacuteltimas linhas do excerto nas quais se verifica a falta de
clareza acerca das etapas do meacutetodo da geometria o encadeamento racional que o
meacutetodo deve realizar na cogniccedilatildeo natildeo pode ser remontado por aquele que natildeo conheceu
o princiacutepio Dar explicaccedilatildeo se efetua adequadamente quando o encadeamento
(ζπκπιέθσ) das etapas do processo de cogniccedilatildeo acerca de algo leva ao conhecimento da
essecircncia e assim ambos ser e meacutetodos podem ser expostos em uma explanaccedilatildeo pois
se tem uma perspectiva da totalidade (ζπλνπηηθόο) do que se examina (Rep 537c6-7)
Em outros termos dada a apreensatildeo do ser eacute possiacutevel reconstituir a ordem das relaccedilotildees
que se estabelece ao longo deste processo cognitivo que conduziu agrave essecircncia pois se
86
tem nele o princiacutepio a partir do qual se constitui o conhecimento (ἐπηζηήκε) de algo
Diante disso implicados o fim e o intermezzo do processo com o princiacutepio a apreensatildeo
do princiacutepio determina a orientaccedilatildeo nessas etapas e os resultados O conhecimento do
ser se mostra portanto indispensaacutevel para ter um conhecimento no niacutevel da ἐπηζηήκε e
ao mesmo tempo ser capaz de dar a explicaccedilatildeo a demonstraccedilatildeo desse conhecimento
Somente o dialeacutetico portanto pode demonstrar tal conhecimento e realizar em
um sentido inverso o qual tem em vista a ideia uma apreensatildeo atraveacutes da razatildeo (δηὰ
ηνῦ ιόγνπ) diferentemente dos matemaacuteticos cujo meacutetodo natildeo demonstra o ser mas as
hipoacuteteses das quais partiram
O uso das hipoacuteteses ao modo matemaacutetico natildeo visa superar a forma axiomaacutetica
com que utiliza os elementos e os preceitos ndash a exemplo do que se averiguou no
argumento acerca dos nuacutemeros - diferentemente da ascensatildeo dialeacutetica que ultrapassa
este niacutevel ao colocaacute-los em questatildeo buscando seu fundamento O fundamento a
essecircncia do que se investiga eacute ao mesmo tempo dado na explicaccedilatildeo agrave medida que se
tem a reconstituiccedilatildeo de sua apreensatildeo na dialeacutetica visto que aiacute natildeo se confunde ser com
hipoacutetese O dialeacutetico sabe identificar hipoacutetese e essecircncia dando a cada uma a posiccedilatildeo
que lhe cabe dentro do meacutetodo57
e portanto a ordem para tal reconstituiccedilatildeo racional
como parece constituir o ιόγνο segundo este argumento
ldquo- Entatildeo disse eu soacute o meacutetodo dialeacutetico eliminando as
hipoacuteteses caminha por aiacute na direccedilatildeo do proacuteprio princiacutepio a fim de
dar firmeza aos resultados e realmente pouco a pouco vai
arrastando e levando para o alto o olho da alma que estaacute enterrado
57 Para tornar mais claro o que se propotildee acerca do discernimento do dialeacutetico vale trazer a
diferenciaccedilatildeo que Chen apresenta sobre hipoacuteteses matemaacuteticas e o natildeo-hipoteacutetico no interior do
argumento sobre a visatildeo do todo Ao considerar as hipoacuteteses matemaacuteticas como um ponto de partida para
a transposiccedilatildeo da penuacuteltima etapa e para a ascensatildeo agrave visatildeo do bem o autor apresenta o que entende ser
as razotildees para que isso se ocorra ldquoNo primeiro caso por conta de sua caracteriacutestica essencial de ser
hipoteacutetico no segundo dada a sua propriedade comum de ser semelhante ao bem Como premissas elas
estatildeo relacionadas agrave ideia do bem como hipoacuteteses para um anhypotheton Ser anhypotheton eacute somente um
dos aspectos da ideia como o princiacutepio do todo a visatildeo dela nesse aspecto natildeo mostra sua completa
natureza Mas como eles tambeacutem tecircm a propriedade de ser semelhante ao bem (good-like) assim como os
casos do bem que o acompanham (fellow-instances) fazem veem juntas estas hipoacuteteses neste aspecto e os
casos do bem que o acompanham e desse modo terminaria na visatildeo desta ideia em todos os seus
aspectosrdquo Chen op cit p 172 A visatildeo do todo se deve segundo o autor agrave semelhanccedila do que eacute derivado
do bem e agraves hipoacuteteses que conduzem agrave hipoacutetese maior Postas como premissas em contraste com o natildeo-
hipoteacutetico ver as hipoacuteteses em conjunto como faz o dialeacutetico faz identificar a relaccedilatildeo delas com o bem
conduzindo a alma a visatildeo dele Esse discernimento do dialeacutetico tal como explica Chen mostra a
capacidade de superaccedilatildeo das hipoacuteteses ao vecirc-las no seu fundamento inteligiacutevel o que conforme tem sido
analisado eacute dado exclusivamente pela apreensatildeo do traccedilo inteligiacutevel que exprime a relaccedilatildeo do objeto em
questatildeo com o bem Embora o comentaacuterio ofereccedila a ideia de que a visatildeo do todo se daacute a partir de uma
visatildeo de conjunto os exames feitos ateacute aqui apontam muito mais para um equacionamento no qual se
apreende o inteligiacutevel do que para um apanhado de hipoacuteteses o que ficaraacute mais claro na anaacutelise acerca da
ζύλνςηο
87
em um pacircntano baacuterbaro tendo como colaboradoras e auxiliares
nessa conversatildeo as artes de que falamos Muitas vezes por haacutebito as
chamamos de ciecircncia mas carecem de outro nome que seja mais
niacutetido que o de opiniatildeo e mais impreciso que o de ciecircncia jaacute a
definimos como pensamento (δηάλνηαλ δὲ αὐηὴλ ἔλ γε ηῷ πξόζζελ πνπ
ὡξηζάκεζα) numa passagem anterior de nossa discussatildeo Natildeo se
trata poreacutem parece-me de uma disputa sobre um nome mas do
exame de questotildees tatildeo importantes quanto as que temos diante de noacutes
- Natildeo se trata disse [Basta-nos um nome que faccedila ver claramente
nosso pensamento (Ἀιι ὃ ἂλ κόλνλ δεινῖ πσο ηὴλ ἕμηλ ζαθελείᾳ
ιέγεηλ ἐλ ςπρῆ ltἀξθέζεη)]rdquo (Rep534c7-e6)
Conveacutem notar desse modo que o uso do ιόγνο aparece nesse argumento como
um procedimento formal do conhecimento o qual descreve formalmente os
movimentos da aquisiccedilatildeo da ἐπηζηήκε pelo meacutetodo dialeacutetico58
O ιόγνο cabe reparar eacute
dado na medida em que acompanha a aquisiccedilatildeo do conhecimento ou seja constitui-se
como forma que expressa a coerecircncia do pensar na operaccedilatildeo dialeacutetica sendo
dependente portanto da apreensatildeo do fundamento natildeo-hipoteacutetico para ser enquanto tal
Sem a atividade entre ideias natildeo se chega agrave ideia do bem e por consequecircncia natildeo se
tem um ιόγνο que por natildeo ser coerente com ela seja capaz de dizecirc-la Desse modo um
exame acerca da racionalidade em seus vaacuterios niacuteveis procedimentos uacuteteis para o
conhecimento e alcance cognitivo satildeo indispensaacuteveis uma vez que se reconhece aiacute que
a forma loacutegica estaacute condicionada ao seu objeto maior e natildeo o contraacuterio Tem-se com as
explanaccedilotildees acerca da dialeacutetica uma definiccedilatildeo de ιόγνο filosoacutefico distinto dos demais
por meio do qual satildeo expostas as operaccedilotildees no alto niacutevel de cogniccedilatildeo e portanto o
conhecimento segundo a filosofia59
58 Chen compreende igualmente o papel do ιόγνο ao dizer Correspondente agrave λνήζηϛ nesses dois
sentidos [ἐπηζηήκε e γλῶζηο] estatildeo dois aspectos da dialeacutetica dinacircmico e estaacutetico Tanto o exerciacutecio da
δύλακηο noeacutetica resulta no estado noeacutetico (γλῶζηο) quanto o exerciacutecio da δύλακηο ηνῦ δηαιέγεζζαη resulta
na ἐπηζηήκε ηνῦ δηαιέγεζζαη Dialeacutetica no seu aspecto estaacutetico eacute o sistema de tal conhecimento Dialeacutetica
no seu aspecto dinacircmico tem duas formas raciociacutenio e ζύλνςηο da qual resulta no conhecimento
dialeacutetico Chen op cit 1992 p 164 nota 10
59 As palavras de Chen elucidam a concepccedilatildeo de razatildeo segundo a filosofia que se pretende explicar ldquoSer
conhecimento natildeo deve apenas cumprir a exigecircncia de uma consistecircncia loacutegica deve tambeacutem indicar seu
referente como referente em sua realidaderdquo O que o autor chama de consistecircncia loacutegica vale dizer diz
respeito agrave conformidade da estrutura do argumento com seu referente o que foi notado aqui como
coerecircncia entre ser e explicaccedilatildeo Ele admite a partir de 533e que a conclusatildeo de um raciociacutenio
logicamente consistente pode carecer de seu referente o que natildeo constituiria uma ἐπηζηήκε de fato Sem
entrar em detalhes como uma estrutura se mostraria logicamente consistente nessas condiccedilotildees o que natildeo
eacute posto em questatildeo pelo texto importa ressaltar a importacircncia da definiccedilatildeo de ιόγνο que se daacute no final do
Livro VII para mostrar a noccedilatildeo de conhecimento que se defende a visatildeo do ser e da ideia possiacutevel
somente pela atividade Inteligente Natildeo se trata portanto de um aparato loacutegico de manuseio do discurso
semelhante agrave retoacuterica ou eriacutestica mas de uma sofisticaccedilatildeo no uso do ιόγνο que sirva para os propoacutesitos
epistecircmicos do filoacutesofo governante Chen op cit 1992 p 168 nota 3
88
Essa perspectiva confirma a distinccedilatildeo e a classificaccedilatildeo tal como mostrou a linha
dividida O que segue mostra os estados da alma os graus de cogniccedilatildeo e de suas
respectivas distinccedilotildees como vaacutelidas para uma compreensatildeo do que possa ser um estado
de clareza na alma60
A superaccedilatildeo filosoacutefica que se daacute na dialeacutetica narra natildeo se pode
perder de vista um refinamento da alma operada pelos modos inteligentes do
pensamento tal como mostrou a linha dividida e se analisaraacute com mais detalhes na
narrativa da caverna A investigaccedilatildeo dos argumentos vista nos Livros VI e VII tem em
perspectiva assim a elevaccedilatildeo inteligente que resulta no conhecimento e nas virtudes a
qual agora eacute dita pode-se compreender uma clareza nas accedilotildees da alma Tal clareza
envolve portanto operaccedilotildees gnosioloacutegicas as quais funcionam como exerciacutecio por
meio das artes matemaacuteticas para uma efetiva elevaccedilatildeo da alma Coerente com o que eacute
dito em 511c a ἕμηο dada nos termos de uma disposiccedilatildeo um estado permanente da alma
quer do geocircmetra quer do dialeacutetico tem evidenciado o grau de apreensatildeo com o qual a
alma opera segundo o meacutetodo que utiliza e do mesmo modo a clareza que tecircm acerca
dos objetos que examina Nesse sentido observe-se ao mesmo tempo o limite cognitivo
das artes matemaacuteticas justificando sua posiccedilatildeo intermediaacuteria dentre as atividades que
ascende ao conhecimento
Os esclarecimentos que se obteacutem com a explanaccedilatildeo sobre a dialeacutetica e sobre seu
meacutetodo (Rep 533e7-534a8) corroboram as acepccedilotildees sobre as atividades da alma
descritas na analogia da linha Compreendido que o dialeacutetico eacute o uacutenico capaz de
apreender a essecircncia e prestar contas sobre ela o que demonstra seu estado de λνῦο
(Rep 534b) fica evidente sua capacidade para falar sobre o bem e se torna
inegavelmente aceita a sua distinccedilatildeo intelectual e poliacutetica cuja conduta cientificista
pautada no conhecimento da ideia do bem deve servir de paracircmetro no ensino Note-se
que a postura do dialeacutetico frente a busca do bem eacute pautada no que o meacutetodo indica
deixando clara a relaccedilatildeo entre exerciacutecio intelectual o meacutetodo e a apreensatildeo dos
direcionamentos para a praacutetica poliacutetica que se realiza na experiecircncia do pensamento
ldquo-Entatildeo acontece o mesmo a respeito do bem se algueacutem natildeo for
capaz de definir pela razatildeo a ideia do bem distinguindo-a de todas as
outras e como num combate passando atraveacutes de todas as objeccedilotildees
natildeo estiver disposto a natildeo refutaacute-las segundo a opiniatildeo mas segundo
a essecircncia (κὴ θαηὰ δόμαλ ἀιιὰ θαη νὐζίαλ πξνζπκνύκελνο
60 Rep 534e2 ldquoἕμηλ ζαθελείᾳ ιέγεηλ ἐλ ςπρῆrdquo a traduccedilatildeo da ediccedilatildeo inglesa privilegia esse mesmo
sentido que se atribui agrave frase ldquo()[ provided only that it states what corresponds to the state of clarity in
the soul]rdquo ndashEmlyn-Jones e Preddy op cit p 177
89
ἐιέγρεηλ) natildeo atravessar todas essas dificuldades com uma razatildeo
inabalaacutevel (ἐλ πᾶζη ηνύηνηο ἀπηῶηη ηῷ ιόγῳ δηαπνξεύεηαη) se for essa
a postura dele natildeo afirmaraacutes que ele natildeo conhece nem o proacuteprio bem
nem algum outro bem Mas se apreende uma imagem do bem eacute pela
opiniatildeo que a apreende natildeo pela ciecircncia (ἀιι εἴ πῃ εἰδώινπ ηηλὸο
ἐθάπηεηαη δόμῃ νὐθ ἐπηζηήκῃ ἐθάπηεζζαη) e a vida de agora passa-
a sonhando e cochilando sem despertar antes de chegar ao Hades e
laacute dormir completamenterdquo (Rep 534b8-d1)
De posse da inteligecircncia o dialeacutetico tem condiccedilotildees de cumprir os dois
movimentos que o filoacutesofo governante deve realizar ascender e com isso apreender a
ideia do bem e descer ao niacutevel comum ao plano da opiniatildeo e da ignoracircncia
analogamente o das sombras para dizecirc-lo Assim parece se dar o desfecho acerca da
relaccedilatildeo da alma com as sensaccedilotildees no argumento que descreve a dialeacutetica O pensar
conforme mostra o meacutetodo dialeacutetico e a explicaccedilatildeo daacute-se mediante a habilidade de
reconhecer as relaccedilotildees inteligiacuteveis e operar atraveacutes de ideias quer no visiacutevel quer no
inteligiacutevel dado seu conhecimento do ser e da ideia do bem Tem-se definido com isso
o modo de operar e o niacutevel cognitivo da λόεζηϛ apoacutes as mesmas deifniccedilotildees sobre a
δηάλνηα como se viu no exame acerca das matemaacuteticas Da mesma maneira o texto
atribui o estatuto do λνῦο estado da alma em que se daacute o trabalho dialeacutetico o grau mais
elevado da cogniccedilatildeo que se pode ter sobre o bem
34 Inteligecircncia e cogniccedilatildeo
Para bem compreender o que se diz sobre a λόεζηϛ que aparece sugerida no
exerciacutecio de contemplaccedilatildeo da ideia do bem eacute necessaacuterio analisar o sentido de realidade
dos seres inteligiacuteveis e o fundamento natildeo-hipoteacutetico Vale remontar como esta questatildeo
foi introduzida no argumento da linha e como se deu a construccedilatildeo do sentido de
realidade inteligiacutevel tatildeo importante para especificar a operaccedilatildeo de apreensatildeo das ideias
que consiste no conhecimento e no contemplar ao modo dialeacutetico As primeiras
90
distinccedilotildees entre os domiacutenios feitas nos termos de niacutetido e natildeo niacutetido (ζαθελεία θαὶ
ἀζαθεία Rep 509d5) verdadeiro e natildeo verdadeiro (ἀιεζεία ηε θαὶ κή Rep 510a9)
que acompanham a divisatildeo visiacutevel-inteligiacutevel ganham explicaccedilotildees em termos
ontoloacutegicos com a noccedilatildeo de inteligibilidade do inteligiacutevel no seu expoente maior o
princiacutepio natildeo-hipoteacutetico Cabe notar que na exposiccedilatildeo do inteligiacutevel na seccedilatildeo que se
refere agrave geometria as noccedilotildees de princiacutepio e princiacutepio de tudo que exprime o
ἀλππνζέηνο parece ter sua funccedilatildeo latente antes de serem introduzidos o ser do
inteligiacutevel os objetos de contemplaccedilatildeo ndash(ηνῦ ὄληνο ηε θαὶ λνεηνῦ ζεσξνύκελνλ) Ateacute
que sejam oferecidas algumas explicaccedilotildees sobre a realidade das ideias a noccedilatildeo de
princiacutepio natildeo tem o seu sentido completo pois natildeo recebe um parecer ontoloacutegico
condizente com a noccedilatildeo de fundamento que a criacutetica ao meacutetodo de demonstraccedilatildeo
sugere A noccedilatildeo de ἀξρή desvinculada da ideia natildeo eacute vista desse modo em sua
inteligibilidade ou seja em sua relaccedilatildeo com o inteligiacutevel dando margem a um tipo de
uso como se tem na geometria Dito de outro modo o princiacutepio de que fala a linha
consiste justamente nesta relaccedilatildeo que os conceitos possuem com o inteligiacutevel que
permite deste modo a cogniccedilatildeo Uma vez natildeo esclarecido o objeto fundador o
princiacutepio basilar dos conceitos que seraacute a ideia natildeo se pode conhecer o objeto em
questatildeo no seu aspecto inteligente Assim dito a cogniccedilatildeo consiste em ver do aspecto
inteligiacutevel oferecido pela ideia (εἴδε) tal como sugere a descida do dialeacutetico
Essa interpretaccedilatildeo parece afim com a noccedilatildeo de contemplaccedilatildeo que o texto
apresenta ao definir a apreensatildeo de ideias como aquisiccedilatildeo inteligente (Rep 511c-d) O
contemplar a partir do meacutetodo dialeacutetico posiccedilatildeo maacutexima no alcance cognitivo consiste
em averiguar desta perspectiva especiacutefica das ideias que analisa o objeto em seu
aspecto inteligiacutevel ou seja em sua realidade A realidade exprime o ser inteligiacutevel dado
pela ideia que eacute visto claramente ou seja visto em sua realidade na contemplaccedilatildeo e
observado parcialmente no procedimento matemaacutetico Nesse sentido a criacutetica ao
meacutetodo demonstrativo mostra que eacute a perspectiva inteligiacutevel que se deve ter em vista
isto eacute a realidade atingiacutevel somente pela potecircncia do meacutetodo dialeacutetico e natildeo a
aparecircncia da realidade a exemplo do que se tem no sensiacutevel A verdade se refere a esta
realidade que exprime o ser inteligiacutevel e a clareza agrave capacidade de observaacute-la Note-se
que o apelo da perspectiva que exige o conhecimento define-se na medida em que
mostra a progressatildeo de uma seccedilatildeo a outra de um objeto a outro de uma perspectiva a
outra tal como se daacute na progressatildeo da hipoacutetese para a ideia da ideia para outras ideias
Ao chegar no niacutevel de clarividecircncia da realidade das ideias proacuteprio da contemplaccedilatildeo
91
chega-se ao princiacutepio dito tambeacutem o princiacutepio dos seres inteligiacuteveis - λνεηῶλ ὄλησλ
κεηὰ ἀξρο61
Examinar a partir do princiacutepio dessa articulaccedilatildeo com o inteligiacutevel
constitui a via para o conhecimento daquele que parece ser eleito o mais superior entre
todos o que a contemplaccedilatildeo mostra como o principio de tudo aquele que natildeo eacute posto
sob inspeccedilatildeo como uma hipoacutetese (ἀλππνζέηνο) visto que constitui o fundamento de
todas elas
O caraacuteter inteligente da λόεζηϛ se completa com tais elucidaccedilotildees sobre a
contemplaccedilatildeo Esta visatildeo do princiacutepio de tudo dado pelas ideias o qual natildeo se deve
perder de vista consiste tambeacutem em uma ideia a qual determina a perspectiva da
inteligecircncia que o conhecimento deve possuir Por outro lado a ascensatildeo a esse
princiacutepio de tudo e a investigaccedilatildeo a partir dele que se daacute no retorno do dialeacutetico mostra
o caraacuteter praacutetico da inteligecircncia e de todo o processo de cogniccedilatildeo no sentido de ser
conveniente a aplicaccedilatildeo dos termos em questatildeo Ascese e descida pelas ideias mostram
o movimento da inteligecircncia que tem como objetivo ver a realidade o ser em toda a sua
extensatildeo apreensiacutevel como fundamento de tudo e portanto como princiacutepio do
conhecimento
Natildeo se pode todavia deixar de fazer maiores questionamentos sobre o ser como
causa e o bem como causa de tudo tal como mostrou o encadeamento feito entre os
objetos das seccedilotildees da linha e a analogia do sol Na perspectiva do princiacutepio esta noccedilatildeo
de causa ganha o sentido de 1) origem de acordo com o que sugeriu a relaccedilatildeo original-
reflexo 2) referecircncia sugerida na perspectiva inferior das imagens 3) objeto real
conforme o que se viu na relaccedilatildeo original-reflexo e na exposiccedilatildeo sobre o inteligiacutevel As
trecircs acepccedilotildees que o ser e o bem assumem como princiacutepio mostra sob vaacuterios acircngulos o
ser que a ideia exprime Como origem ele confere existecircncia aos objetos que dele
derivam- outros objetos natildeo existiriam se natildeo o refletissem Desse modo assume a
condiccedilatildeo de referecircncia pois sendo a causa da existecircncia deve ser o objeto a ser
conhecido Ao ser o objeto do qual deriva todos os outros revela-se como o elemento
uacuteltimo e mais importante em uma cadeia de derivaccedilotildees sendo portanto o uacutenico objeto
real
Algumas conclusotildees parecem ser possiacuteveis sobre a cogniccedilatildeo e a relaccedilatildeo com a
realidade do ser Em primeiro lugar com a linha didividida Platatildeo parece estar
61 Deve-se compreender λνεηῶλ ὄλησλ κεηὰ ἀξρο como a relaccedilatildeo que o dialeacutetico observa do princiacutepio
com o ser Tal sutileza nem sempre privilegiada pelas traduccedilotildees mostra o reconhecimento do princiacutepio
como a articulaccedilatildeo desta relaccedilatildeo e portanto ponto de partida para a cogniccedilatildeo Somente vinculado ao ser
se pode adquirir conhecimento o que mostra a importacircncia do ἐπ‟ ἀξρὴλ ζθνπεῖλ
92
interessado em afirmar o valor de realidade ou seja de inteligibilidade clareza e
verdade do ser os quais se mostram com as ideias no processo de cogniccedilatildeo Mostrar
esta perspectiva real ocircntica como o grau mais elevado (ἀλσηέξσ) pressupotildee um valor
neste contexto dito epistemoloacutegico e cognitivo Do mesmo modo tais atributos
conferidos agrave ideia objeto do pensamento confere valor ao que resulta dele o discurso
filosoacutefico A postura intelectualista do filoacutesofo e o seu governo adquirem valor desta
forma ao empreender o conhecimento desta realidade Nesse sentido a comparaccedilatildeo
com os geocircmetras constitui um exemplo bastante uacutetil A condiccedilatildeo de intermediaacuterio do
raciociacutenio natildeo possui o mesmo valor epistemoloacutegico e cognitivo no mesmo grau que a
inteligecircncia dialeacutetica uma vez que lhe escapa essa cadeia que mostra o ser como objeto
real Entretanto dado que as ideias matemaacuteticas possuem a mesma realidade que outras
seria razoaacutevel perguntar o que as coloca como intermediaacuterias O meacutetodo matemaacutetico e
os seus objetivos finais como visto Todavia possivelmente as qualidades que
apresentam as ideias da geometria devem justificar de algum modo a escolha de Platatildeo
em utilizar a matemaacutetica para contrapor aos dialeacuteticos
Haja vista a posiccedilatildeo e a importacircncia conferidas agrave ideia do bem para os
propoacutesitos poliacuteticos do filoacutesofo governante natildeo parece descabido questionar acerca das
matemaacuteticas se estas seriam igualmente adequadas para embasar os valores eacuteticos que o
filoacutesofo tem em mira uma vez que os inteligiacuteveis nas matemaacuteticas satildeo noccedilotildees que
permitem de acordo com a sua especificidade tratar o sensiacutevel Dito de outro modo o
conceito de iacutempar o par ou o quadrado dariam conta de originar outras ideias como a
ideia de justiccedila Ateacute aqui note-se que as ideias inteligiacuteveis do uacuteltimo niacutevel natildeo recebem
maiores especificaccedilotildees aleacutem das averiguadas seu grau maacuteximo de realidade apreensiacutevel
pela inteligecircncia Parece possiacutevel no entanto arriscar que existe uma diferenciaccedilatildeo
entre as ideias no que se refere agrave singularidade de cada uma como mostrou o exemplo
da geometria e que para os propoacutesitos poliacuteticos d‟A Repuacuteblica interessa uma divisatildeo e
um discernimento acerca das ideias que se pode alcanccedilar a partir de cada meacutetodo
dialeacutetico por ser possiacutevel reconhecer desse modo sua ligaccedilatildeo com o bem
93
IV A inteligecircncia elevaccedilatildeo pela experiecircncia do conhecimento
Diante das especificaccedilotildees da atividade cognitiva conveacutem averiguar os resultados
desse empreendimento no que se refere agraves accedilotildees Desse modo os esclarecimentos sobre
as afecccedilotildees da alma no final do livro VI e os propoacutesitos e praacuteticas do pedagogo no livro
VII constituem um bom desfecho acerca do tema da excelecircncia do pensamento ao
apresentarem o percurso de sua aquisiccedilatildeo e o significado da superioridade da
inteligecircncia Parece necessaacuterio explicar como se concretizam os saberes adquiridos pelo
filoacutesofo e desse modo uma analogia que mostra a atividade racional do ponto de vista
do comportamento psiacutequico e da praacutetica da educaccedilatildeo parecem bastante uacuteteis Ver-se haacute
as tratativas da alma e os ganhos que ela tem com o exerciacutecio da filosofia como uma
resposta agrave frequentaccedilatildeo intelectual na realidade e na verdade dos inteligiacuteveis de modo a
deixar clara a caracteriacutestica ascendente do pensamento na condiccedilatildeo de inteligecircncia Do
mesmo modo no livro VII d‟ A Repuacuteblica se analisaraacute o pensar da perspectiva que
apresenta a cogniccedilatildeo e a ascensatildeo agrave condiccedilatildeo de excelecircncia nos termos de uma
experiecircncia Narrada na educaccedilatildeo do filoacutesofo tal enredo oferece uma visatildeo linear do
desenvolvimento da potecircncia intelectual e consequentemente da consumaccedilatildeo da
natureza filosoacutefica Eacute possiacutevel verificar os efeitos da relaccedilatildeo entre a alma e o inteligiacutevel
no empreendimento pedagoacutegico de modo a ter a λόεζηϛ como resultado da experiecircncia
de cogniccedilatildeo Assim a narrativa acerca da formaccedilatildeo do caraacuteter do filoacutesofo passa a
oferecer outros aspectos da aquisiccedilatildeo da inteligecircncia antes averiguada segundo o seu
meacutetodo e objeto especiacutefico
41 Operaccedilotildees e regras do pensamento
O discernimento que se teve ateacute o momento sobre o domiacutenio do pensamento e
seus meacutetodos distintos de cogniccedilatildeo seraacute visto agrave luz de quatro παζήκαηα quatro estados
da alma que como tais expressam as operaccedilotildees ou atividades intelectivas Tal
abordagem versa sobre o comportamento da alma segundo os graus de cogniccedilatildeo nos
quais os estados podem ser tomados em certa medida como indicadores da accedilatildeo do
intelecto
94
ldquo- Entendeste de modo mais que suficiente disse eu Agora agraves
quatro seccedilotildees se aplica os quatro estados da alma (θαί κνη ἐπὶ ηνῖο
ηέηηαξζη ηκήκαζη ηέηηαξα ηαῦηα παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ γηγλόκελα
ιαβέ) inteligecircncia agrave seccedilatildeo mais elevada pensamento agrave segunda
atribui agrave terceira nome de crenccedila e agrave ultima o de verossimilhanccedila
(λόεζηλ κὲλ ἐπὶ ηῷ ἀλσηάησ δηάλνηαλ δὲ ἐπὶ ηῷ δεπηέξῳ ηῷ ηξίηῳ δὲ
πίζηηλ ἀπόδνο θαὶ ηῷ ηειεπηαίῳ εἰθαζίαλ) e coloca-as numa ordem
em que teu criteacuterio (θαὶ ηάμνλ αὐηὰ ἀλὰ ιόγνλ) seja que quanto mais
os objetos participarem da verdade (ἀιεζείαο κεηέρεη) tanto mais
clareza (ζαθελείαο) teratildeo (Rep 511d9-e)
Depois de esclarecimentos acerca da capacidade cognitiva da alma ou seja apoacutes
verificar a sua potecircncia de apreensatildeo inteligente exequiacutevel pela dialeacutetica (Rep 511b3)
as divisotildees como παζήκαηα ganham apreciaccedilotildees segundo o alcance e a organizaccedilatildeo da
razatildeo (ἀλὰ ιόγνλ) Assim a classificaccedilatildeo das atividades na alma deve ser vista segundo
o que a razatildeo reconheceraacute como verdadeiro e claro ou seja segundo a relaccedilatildeo com o
ser agora dito participaccedilatildeo na verdade e na clareza Posta dessa maneira tal
organizaccedilatildeo enfatiza a aquisiccedilatildeo do ponto de vista da alma e natildeo somente do meacutetodo
no que se refere agraves qualidades do ser Nesse sentido as atividades da alma que satildeo da
ordem do intelecto e do juiacutezo devem ser observadas como as operaccedilotildees realizadas com
vistas agrave verdade e agrave clareza de acordo com determinado domiacutenio e niacutevel Analisadas
desta perspectiva torna-se possiacutevel compreender de que maneira as aquisiccedilotildees
intelectuais se concretizam de modo a constituiacuterem o norte para as accedilotildees poliacuteticas e uma
conduta como a do filoacutesofo
Para melhor compreender em que aspecto tal reclassificaccedilatildeo se mostra
importante vale se questionar acerca do sentido de παζήκαηα ἐλ ηῆ ςπρῆ A rigor o
termo compreende o sentido de uma afecccedilatildeo estado ou condiccedilatildeo As trecircs concepccedilotildees
podem ser encontradas no texto no entanto ao que tudo indica interessa em pontuar o
sentido de afecccedilatildeo nos termos do resultado de determinadas atividades sobre as quais
pretende investigar a saber o que resulta de uma atividade cognitiva e preacute-cognitiva
intelecccedilatildeo e percepccedilatildeo sensiacutevel como parece apresentar respectivamente o domiacutenio do
inteligiacutevel e da opiniatildeo Vale reparar que ao nomear as operaccedilotildees segundo a divisatildeo da
linha o texto mostra a postura e o alcance intelectual da alma possiacutevel em cada domiacutenio
e desta perspectiva o παζήκαηα como um estado uma condiccedilatildeo da alma ao lidar com a
realidade ou a imagem dela A novidade desta classificaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos argumentos
anteriores estaacute em sugerir a esses estados diferenciaccedilotildees para investigar a partir destas
95
distinccedilotildees o trabalho intelectivo ou a atividade mental como desdobramentos da
interaccedilatildeo entre a alma e a realidade Parece razoaacutevel compreender que em tais estados
esteja envolvido um trabalho psiacutequico que corresponda de alguma forma aos diferentes
graus de conhecimento das realidades e que pode ser considerado assim o resultado e
desse modo a manifestaccedilatildeo do trabalho intelectivo em diferentes niacuteveis de intelecccedilatildeo
ou de modo mais geral o pensamento em seus variados modos de operar - afinal o que
justificaria tal distinccedilatildeo entre as atividades se natildeo argumentar acerca da distinccedilatildeo da
atividade da alma e as respostas psiacutequicas diante dos distintos niacuteveis de manifestaccedilotildees
da realidade do ser Cabe analisar as seccedilotildees nesta perspectiva
O domiacutenio da δόμα mostra dois tipos de παζήκαηα O primeiro considerado
mais inferior entre todos consiste na εἰθαζία no que resulta da apreensatildeo ao modo de
uma imagem que se daacute nos termos de uma conjectura das percepccedilotildees sensiacuteveis Esta
concatenaccedilatildeo a partir das aparecircncias que se tem na opiniatildeo natildeo consiste em uma
operaccedilatildeo cognitiva dado que parte de elementos incapazes de manifestar a realidade do
ser A partir do que se analisou tem-se aiacute a percepccedilatildeo no niacutevel mais elementar da
sensibilidade no qual se assimila somente os elementos sensiacuteveis do objeto sem ter
por isso nenhuma apreensatildeo do aspecto inteligiacutevel dele Provavelmente constitui uma
afecccedilatildeo na qual a alma ainda natildeo discerniu com categorias do conhecimento isto eacute
relativas ao ser como a verdade em seu teor inteligiacutevel sendo a atividade no primeiro
niacutevel da opiniatildeo onde os objetos percebidos satildeo vazios de conteuacutedo cognitivos62
Outro estado que compotildee o plano da opiniatildeo segundo na classificaccedilatildeo da linha
refere-se agrave πίζηηο a crenccedila no sentido da convicccedilatildeo acerca dos objetos do plano fiacutesico
os artefatos os animais e outros seres da natureza que manifestam um grau maior de
realidade por constituir um modelo para os reflexos e por isso ocupam um grau acima
na escala de superioridade em comparaccedilatildeo agrave imagem Nesse contexto a alma estaacute
convicta do que observa empiricamente e portanto sem ter diante do que observa uma
postura gnosioloacutegica pois ao contraacuterio cede (ἀπνδίδσκη) a esta convicccedilatildeo permanece
alheia agraves relaccedilotildees que o objeto possui com o inteligiacutevel e desse modo natildeo tem qualquer
apreensatildeo da realidade nem suspeitam da ausecircncia dela
62 Stocks define assim a eikasiacutea ldquoEikasiacutea estado da mente produzido pela contemplaccedilatildeo de um eikoacuten e
como temos visto uma parcial percepccedilatildeo das caracteriacutesticas sensoriais dos originais dos eikoacutenes ele vecirc
o Dzocircon no eikonrdquo O autor define a imagem como uma percepccedilatildeo imperfeita dos originais no qual se
apreende parcialmente a caracteriacutestica sensiacutevel destes Mesmo o objeto sensiacutevel tendo relaccedilatildeo com o ser
na esfera da opiniatildeo natildeo se tem nenhuma apreensatildeo desta ligaccedilatildeo Deste modo a doacutexa no sentido de um
juiacutezo elaborado a partir da experiecircncia empiacuterica como as aparecircncias corresponde a um estaacutegio primaacuterio
da atividade intelectiva no qual ainda natildeo se constitui uma cogniccedilatildeo no sentido epistemoloacutegico de Platatildeo
Stocks op cit p 83
96
Deve-se ter em vista aleacutem disso que tais objetos satildeo igualmente vazios de
conteuacutedo cognitivo visto que o domiacutenio sensiacutevel consiste ontologicamente em um
reflexo na aparecircncia do domiacutenio inteligiacutevel e natildeo tem condiccedilotildees por conta disso de
oferecer base para o conhecimento A alma no registro do visiacutevel (ὁξαηόλ) apresenta
esses tipos de atividade as quais natildeo ultrapassam o niacutevel da percepccedilatildeo do sensiacutevel Em
termos operacionais pode-se dizer que a conjectura e a convicccedilatildeo juntas compotildeem a
percepccedilatildeo em termos cognitivos compotildeem o juiacutezo Ao ter como atividade a percepccedilatildeo
natildeo sendo a alma capaz de reconhecer o viacutenculo com o inteligiacutevel naquilo que observa
na opiniatildeo se abre a possibilidade para o obscuro e para a natildeo-verdade63
A
incapacidade da percepccedilatildeo de apreender uma relaccedilatildeo com o inteligiacutevel faz com que a
alma natildeo reconheccedila a verdade mostrando ser o juiacutezo faliacutevel nas suas afirmaccedilotildees Ao
mesmo tempo por se fiar nas aparecircncias ela natildeo eacute capaz de exprimir mais que outras
aparecircncias ao chegar a uma conclusatildeo visto que carece de conhecer a realidade A
passagem 511e sugere a verdade como uma caracteriacutestica do objeto tomado
intelectualmente Observe-se que no inteligiacutevel sua funccedilatildeo se daacute na relaccedilatildeo entre
cognoscente e ela mesma e natildeo entre dois elementos Se no visiacutevel a dita ldquoverdaderdquo
constituiacutea uma noccedilatildeo de equivalecircncia entre elementos postos em relaccedilatildeo no inteligiacutevel
ela aparece como caracteriacutestica do objeto que na cogniccedilatildeo mostra seu alto grau de
conhecimento e portanto seu alcance da realidade Desse modo sua mensura se daacute nos
termos de uma referecircncia constituinte do objeto a ser conhecido e natildeo como uma noccedilatildeo
vaga de equivalecircncia que empresta a palavra verdade
ao considerar que a linha estabelece uma comparaccedilatildeo entre sensiacutevel e inteligiacutevel
comparando assim o que se considera ldquoverdaderdquo no visiacutevel domiacutenio das aparecircncias
com a verdade como qualidade do inteligiacutevel faz sentido questionar se os objetos
participam ou natildeo da verdade Nesse sentido a manifestaccedilatildeo da verdade pode ser
relacionada agrave sua apreensatildeo da realidade podendo ser a cogniccedilatildeo nestas circunstacircncias
mensurada Assim o objeto que participa da verdade manifestando-a em toda a sua
inteligibilidade eacute o objeto claro oposto agraves aparecircncias objetos do domiacutenio sensiacutevel que
natildeo satildeo capazes de oferecer o inteligiacutevel em nenhum grau e desse modo natildeo podem
conduzir a nenhuma atividade cognitiva Os objetos que constituem cada gecircnero podem
ser ditos desse modo mais ou menos niacutetidos como ocorrem em 509d10-509e1 sendo
63 Gosling define assim a capacidade da doacutexa ldquoDoacutexa eacute a habilidade de julgar e o que se julga (eph‟ hoi
he duacutenamis) eacute o que as vezes eacute verdade e agraves vezes natildeordquo Ele compreende isso como uma verdade parcial
que a doacutexa eacute capaz de alcanccedilar fruto da oscilaccedilatildeo entre os objetos referidos Gosling JC B ldquoDoacutexa and
Duacutenamis in Plato‟s Republicrdquo in Phronesis no 2 vol 13 1968 p 129 130
97
as imagens obscuras e as ideias niacutetidas O juiacutezo natildeo teria portanto como apreender a
verdade ficando relegado a uma condiccedilatildeo de incogniccedilatildeo bem ao contraacuterio do raciociacutenio
e da inteligecircncia
Diante da debilidade cognitiva da conjectura e da convicccedilatildeo e da consequente
falibilidade do juiacutezo eacute possiacutevel dizer que estes dois primeiros niacuteveis da linha mostram o
pensamento em um estado muito elementar quando comparado agrave inteligibilidade da
cogniccedilatildeo nos termos da dialeacutetica Por outro lado deve-se admitir que Platatildeo parece estar
interessado em todas as disposiccedilotildees (ἕμηο) da alma tanto naquelas que envolvem o
conhecimento quanto naquelas que se referem a opiniatildeo Ao que tudo indica eacute preciso
considerar a δόμα por ser ela a ἕμηο de uma boa parte dos componentes da polis e nesse
sentido ao se ter em vista a organizaccedilatildeo da cidade em suas distintas classes vale dar
atenccedilatildeo a ela da mesma forma que ao λνῦο do filoacutesofo As distinccedilotildees feitas a partir da
comparaccedilatildeo do procedimento demonstrativo e dialeacutetico (Rep 511c3-d5) atribuem
nessa aplicaccedilatildeo da divisatildeo da linha agrave alma o caraacuteter de disposiccedilatildeo no sentido de
condiccedilatildeo da alma em determinado niacutevel em determinado contexto Assim no
cognosciacutevel no inteligiacutevel a alma tem as disposiccedilotildees necessaacuterias para inteligir ou seja
para ter contato com o que eacute verdadeiro o ser real No ambiente da sensibilidade no
visiacutevel natildeo apresenta as mesmas disposiccedilotildees e por isso natildeo atinge a verdade como se
observa
Diferentemente do sensiacutevel o domiacutenio do λνῦο oferece as condiccedilotildees necessaacuterias
para a alma desenvolver as operaccedilotildees inteligentes Nesse niacutevel os dois παζήκαηα na
alma apontam para uma frequentaccedilatildeo que ela manteacutem com os objetos inteligiacuteveis a
partir dos quais eacute possiacutevel a apreensatildeo da realidade A δηάλνηα o primeiro estado desse
domiacutenio pressupotildee a operaccedilatildeo que lida com termos inteligiacuteveis os conceitos
matemaacuteticos de modo a remontaacute-los O raciociacutenio opera pela variaccedilatildeo entre os
elementos de mesma realidade que servem para demonstrar um conceito em questatildeo
Nos termos de uma teacutecnica natildeo eacute proacuteprio do procedimento raciocinativo questionar
acerca do fundamento ontoloacutegico desses conceitos tomando-os assim todos nos
termos de hipoacuteteses uacuteteis em uma demonstraccedilatildeo Desse modo questionar e buscar as
relaccedilotildees dos elementos investigados com o criteacuterio e de clareza fica igualmente limitado
ao niacutevel da clareza e das verdades matemaacuteticas ou seja agravequilo que pode exprimir um
conceito ou o que se deduz a partir dele
A verdade como quer a matemaacutetica provavelmente diz respeito agrave singularidade
que caracterizam as ideias matemaacuteticas Da mesma forma que as ideias morais possuem
98
verdade e ser (ἀιήζεηά ηε θαὶ ηὸ ὄλ Rep 508d) mas possuem evidentemente essecircncia
distinta sendo a verdade aiacute dada consequentemente nos limites da identidade do ser que
ela acompanha A ideia do quadrado natildeo tem o mesmo ser da ideia de justiccedila em
termos de identidade e consequentemente a verdade de uma seraacute diferente da outra
Natildeo haacute maiores definiccedilotildees sobre a verdade a natildeo ser a sua inteligibilidade e a
sua filiaccedilatildeo com a ideia do bem A verdade matemaacutetica eacute tatildeo inteligiacutevel quanto a
verdade de uma ideia moral entretanto o sentido em que se quer a verdade no meacutetodo
matemaacutetico eacute igualmente teacutecnico na medida em que remonta o conceito sem maiores
apreensotildees da sua natureza inteligiacutevel Raciocinar leva a alma a compreensotildees da
verdade e da clareza deste tipo sem proporcionar maiores conhecimentos acerca do ser
e do fundamento inteligente dos conceitos Desse modo a δηάλνηα constitui um niacutevel
limitado da cogniccedilatildeo no qual a alma apreende determinadas participaccedilotildees do ser e
portanto a verdade tal como as que se tem com o meacutetodo matemaacutetico Do aspecto
operacional a alma realiza tais apreensotildees com um meacutetodo o de demonstraccedilatildeo que por
natildeo ter como objetivo o conhecimento do fundamento ontoloacutegico eacute classificado como
uma teacutecnica natildeo como um saber Natildeo se pode negar que a δηάλνηα ganha com essas
acepccedilotildees o perfil de um pensamento teacutecnico que atua segundo as regras da arte
chamada aritmeacutetica Ainda que o texto natildeo pretenda marcar rigidamente as designaccedilotildees
utilizadas na linha agraves operaccedilotildees descritas nota-se a intenccedilatildeo de esclarecer a atuaccedilatildeo da
alma ao se lanccedilar a uma atividade dita intelectual No caso da δηάλνηα parece que as
regras que a alma obedece ao raciocinar uma vez que eacute forccedilada (ἀλαγθάδσ) pelos
objetos de determinado domiacutenio e pelo meacutetodo satildeo as ditadas pela matemaacutetica sendo o
raciocinar assim o exerciacutecio segundo tais procedimentos e tais regras A consequecircncia
de proceder assim eacute que a alma estagna e o matemaacutetico natildeo poderia ter a excelecircncia
intelectual e moral do filoacutesofo por conta disso pois natildeo conseguiria chegaria ao grau
maacuteximo de conhecimento possiacutevel ao intelecto
Diferentemente a λόεζηϛ mostra o estado de apreensatildeo da realidade inteligiacutevel
o qual constitui o grau mais elevado da atividade e da condiccedilatildeo da alma Tal apreensatildeo
consiste em adquirir conhecimento do ser e a partir dele reconhecer o viacutenculo dos
objetos pesquisados agrave luz de sua realidade fazendo para isso uso exclusivamente das
ideias Ao consistir na atividade em que a alma opera somente pelas ideias a inteligecircncia
demonstra ser o maior grau de interaccedilatildeo com o inteligiacutevel Ao atuar assim ela conhece
a verdade e a clareza dos objetos uma vez que eacute capaz pela dialeacutetica de observar a
participaccedilatildeo nessas duas caracteriacutesticas do ser O inteligir deixa a alma diante do
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aspecto inteligiacutevel dos objetos investigados ou seja de posse da ideia desses
colocando-a no maior grau de cogniccedilatildeo no estado de contemplaccedilatildeo A alma que tem
inteligecircncia conhece a verdade e a clareza ao operar com todos os elementos dados pelo
ser A capacidade de apreensatildeo ao inteligir dada pela potecircncia de apreensatildeo do meacutetodo
dialeacutetico torna realizaacutevel a operaccedilatildeo inteligente Em outros termos a alma natildeo
adquiriria o ser se natildeo fizesse uso do meacutetodo adequado para isso o que demonstra a
importacircncia e a peculiaridade da ciecircncia dialeacutetica e sua coerecircncia com o alcance da
inteligecircncia Neste uacuteltimo niacutevel parece claro que o meacutetodo de investigaccedilatildeo determina o
conhecimento uma vez que parece possuir as regras adequadas para tal Ao seguir as
regras do meacutetodo dialeacutetico a alma obedece ao mesmo tempo os criteacuterios de clareza e de
verdade segundo o que se apreende das relaccedilotildees com o ser inteligiacutevel Desse modo em
uacuteltima instacircncia ao obedecer as regras impostas pela dialeacutetica a alma segue o que dita o
proacuteprio ser atuando assim de maneira inteligente As regras do meacutetodo se tornam
assim as regras por excelecircncia do pensar em sua atuaccedilatildeo inteligente O saber que busca
a filosofia se realiza nesse conhecimento da realidade e da verdade dos objetos os quais
apontam para o bem Ao conhecer tais qualidades a alma toma o bem como modelo
demonstrando estar a alma assim no estado de inteligecircncia
Talvez tais distinccedilotildees mostrem a diferenccedila mais determinante para qualificar o
homem comum o matemaacutetico e o dialeacutetico A anaacutelise da atividade intelectual a partir
das distinccedilotildees da linha apontam principalmente a disposiccedilatildeo e a capacidade de cada um
no que se refere ao comportamento Estendendo esta anaacutelise pode-se inferir que se tem
nas atividades da alma indicadas nesses estados que a linha oferece uma explicaccedilatildeo
acerca da disposiccedilatildeo e da capacidade de buscar seguir e de se submeter ao que eacute
verdadeiro ao que eacute dado segundo o ser A consequecircncia desta inferecircncia talvez possa
ser conferida nas passagens que tocam a questatildeo do criteacuterio para a organizaccedilatildeo da
cidade e a funccedilatildeo de cada classe de cidadatildeos nesta organizaccedilatildeo Os παζήκαηα
reconstituem nesse sentido o comportamento da alma do ponto de vista intelectivo
dado como uma ἕμηο uma δύλακηο e um ἔξγνλ expressos no meacutetodo naquilo que ela eacute
capaz de apreender sob a forma da cogniccedilatildeo ou do juiacutezo O foco no proceder intelectivo
revela quatro fenocircmenos mentais cuja distinccedilatildeo e compreensatildeo apresentam quatro
modos do pensamento em contextos de gecircnero diferentes isto eacute em relaccedilatildeo ao sensiacutevel
e em relaccedilatildeo ao inteligiacutevel Dados assim tais modos parecem bastante convenientes agrave
100
proposta de uma cidade com classes variadas de cidadatildeos as quais o filoacutesofo
governante deve comandar64
Evidentemente natildeo se deve compreender que essas quatro operaccedilotildees definem e
mostram o pensar em sua totalidade Deve-se admitir que o texto natildeo oferece
especificaccedilotildees acerca do tema do pensamento em seu conjunto isto eacute como o conjunto
de fenocircmenos que se datildeo a partir de uma atividade sobre os quais se pode inferir a
partir de um estado da alma Entretanto a analogia da linha aborda os quatro principais
aspectos do pensamento no que se refere ao ιόγνο que se propotildee para a cidade Tem-se
provavelmente os quatro aspectos mais importantes capazes de situar cada atividade em
relaccedilatildeo agrave verdade qualidade que ganha fundamento inteligiacutevel e colabora assim para a
teoria moral do governo do filoacutesofo Do mesmo modo as especificaccedilotildees acerca das
atividades intelectuais que traz a linha mostram os efeitos da atividade intelectual da
filosofia anteriormente anunciado como a fixaccedilatildeo da alma (ἀπεξείδσ) ao ser accedilatildeo que
descreve o λνῦλ ἔρεηλ e a θξόλεζηο (Rep 508b d) Ao especificar as operaccedilotildees da alma
tem-se explicado o procedimento os efeitos e o significado desta relaccedilatildeo intelectual
com a ideia do bem que culmina na inteligecircncia
Os distintos παζήκαηα parece se tornarem mais claros ao buscar compreender a
alma em sua caracteriacutestica ativa ao se elucidar as suas operaccedilotildees e ao mesmo tempo
ao revelar os meandros de sua natural passividade que resulta em tais afeccccedilotildees tal
como se daacute na submissatildeo da alma ao ser no caso da λόεζηϛ agraves regras do meacutetodo
matemaacutetico na δηάλνηα e a sujeiccedilatildeo agraves aparecircncias na δόμα A dicotomia atividade-
passividade que o livro VI apresenta tal como se observou nos argumentos analisados
mostra a dinacircmica das relaccedilotildees como uma das bases sobre as quais se deve interferir
atraveacutes da educaccedilatildeo para a organizaccedilatildeo da cidade Ao exibir os efeitos das interaccedilotildees
que a alma pode ter com o inteligiacutevel se mostra a necessidade de compreender a atuaccedilatildeo
64 Entre os autores que partilham da leitura de que haacute a exposiccedilatildeo acerca do trabalho intelectivo na
analogia da Linha estaacute Cornford que compreende haver ldquoquatro experiecircncias mentaisrdquo correspondentes
ao pathema en tei psykhei Note-se a cuidadosa opccedilatildeo ao traduzir paacutethema por ldquoexperiecircnciardquo buscando
muito provavelmente preservar a eiacutekasia e a piacutestis como partes de um processo que visto em todo o
conjunto comeccedila na sensibilidade e termina na apreensatildeo da ideia do bem Ainda que seu interesse seja
apresentar a diaacutenoia e a noeacutesis como as operaccedilotildees inteligentes ele admite com este comentaacuterio haver uma
relaccedilatildeo entre os diferentes niacuteveis de apreensatildeo que as partes da linha representa sendo o primeiro a
percepccedilatildeo e os dois uacuteltimos modos de operaccedilatildeo intelectivas ldquoEste eacute o primeiro lugar onde Platatildeo
contrasta dois modos de operaccedilatildeo da parte racional da almardquo Esta afirmaccedilatildeo de Cornford parece
bastante afim com a proposta do texto de esclarecer a diferenccedila entre opiniatildeo e conhecimento a partir da
dicotomia filoacutesofo-natildeo-filoacutesofo que se apresenta nos livros centrais Tais distinccedilotildees ao que parece
merecem tambeacutem serem vistas do ponto de vista da parte racional da alma tal como a linha especifica
Cornford ldquoMathematics and Dialectic in The Republicrdquoop cit p 37-38
101
dela Vecirc-se que a passividade de uma afecccedilatildeo natildeo estaacute e natildeo deve ser tomada sem a
investigaccedilatildeo da atividade que a origina
Atividade e passividade do pensamento cabe reparar eacute um tema presente que
deve ser analisado tambeacutem no Feacutedon (79d) o qual dito antecipadamente mostraraacute a
graduaccedilatildeo do exerciacutecio intelectual da filosofia rumo a θξόλεζηο Tomada nos termos de
atividade de alta intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo resultado desta atividade a θξόλεζηο
descreve a interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e os beneacuteficos resultados dessa ligaccedilatildeo
para a alma A dupla funccedilatildeo que descreve os estados classificados na linha parece estar
presente desse modo em uma concepccedilatildeo de afecccedilatildeo que Platatildeo parece ter Mesmo sem
ter a intenccedilatildeo de especificar esta duplicidade observa-se na linha como se observaraacute no
Feacutedon o resultado como expressatildeo de uma atividade e assim a passividade de uma
condiccedilatildeo como efeito da atividade em do pensar em determinado niacutevel O pensamento
abarca desse modo atividade e passividade as quais devem ser vistas
concomitantemente Conveacutem assim perseguir as caracteriacutesticas deste conjunto de
atividades dita pensamento nos argumentos do Livro VII de modo a analisar os
aspectos racionais em uma progressiva interaccedilatildeo da alma com o inteligiacutevel e dessa
maneira a natureza de uma possiacutevel intervenccedilatildeo da filosofia Natildeo diferente do filoacutesofo
em processo de purificaccedilatildeo do diaacutelogo Feacutedon o aprendiz do Livro VII mostra o
processo de superaccedilatildeo do sensiacutevel como atividade e efeito deste movimento de
interaccedilatildeo do intelecto com a realidade inteligiacutevel O resultado desta superaccedilatildeo
intelectual consiste na superaccedilatildeo ao niacutevel maacuteximo nos demais domiacutenios eacutetico e
poliacutetico elevando a alma agrave melhor condiccedilatildeo que ela pode alcanccedilar ou simplesmente agrave
condiccedilatildeo de excelecircncia
42 A alegoria e a condiccedilatildeo da alma
A Alegoria da Caverna que abre o seacutetimo livro d‟A Repuacuteblica oferece outros
aspectos do pensamento ao sugerir uma imagem da alma nas condiccedilotildees de ignoracircncia
(ἀκαζία Rep 518a7) e de inteligecircncia (λνῦο Rep 518a1) Ao enfatizar seu
102
comportamento na situaccedilatildeo de educaccedilatildeo e de ausecircncia da educaccedilatildeo (Rep 514a1) como
trazem as primeiras linhas do livro o texto aborda o tema da racionalidade da
perspectiva da experiecircncia intelectual da alma mostrando por analogia as condiccedilotildees o
processo e os efeitos deste tipo de exerciacutecio A comparaccedilatildeo entre as naturezas se daacute
agora no que se refere agrave atitude a partir da condiccedilatildeo de ignoracircncia natural ao homem
em sua humanidade diante da possibilidade do conhecimento O movimento de ascese
que mostra a saiacuteda da ignoracircncia na direccedilatildeo do conhecimento descrito na saiacuteda do
prisioneiro liberto da caverna em direccedilatildeo agrave luz da realidade explica a accedilatildeo que promove
e justifica a excelecircncia do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum demonstrando o
caraacuteter da postura que resulta na cogniccedilatildeo ou na permanecircncia na ausecircncia de
conhecimento
Diferentemente da analogia da linha o pensar natildeo teraacute na alegoria da caverna
suas operaccedilotildees explicitadas de modo que se pode analisar cada niacutevel em suas
especificidades metodoloacutegicas A abordagem que pretende salientar as caracteriacutesticas do
filoacutesofo e do natildeo filoacutesofo em relaccedilatildeo agrave educaccedilatildeo aponta as relaccedilotildees que se estabelece
entre estes dois tipos de trabalho mentais percepccedilatildeo e cogniccedilatildeo de modo a sugerir entre
eles uma relaccedilatildeo tal como pressupotildee a saiacuteda e o retorno do filoacutesofo agrave caverna Dito de
outro modo a descriccedilatildeo da ascese e descida do filoacutesofo sugere uma dinacircmica do
pensamento natildeo na sua operacionalidade teacutecnica isto eacute segundo o meacutetodo mas neste
tracircnsito de um plano a outro exequiacutevel pela παηδεία Nesta construccedilatildeo da imagem da
experiecircncia intelectual do conhecimento a racionalidade aparece sob o acircngulo da
condiccedilatildeo humana (ηὰ ἀλζξώπεηά Rep 517d5) sendo a inteligecircncia seu ponto alto e a
ignoracircncia a posiccedilatildeo inferior Assim tanto a figura do prisioneiro quanto a do liberto
descrevem a vivecircncia da alma em duas circunstacircncias antagocircnicas que contrapotildeem a
natural inferioridade do homem comum agrave superioridade de condiccedilatildeo do filoacutesofo dada
pela aquisiccedilatildeo do conhecimento
A mudanccedila de posiccedilatildeo que pode se dar durante a vida (δηὰ βίνπ Rep 515b1)
operada pelo exerciacutecio intelectual eacute dita atraveacutes das dificuldades no processo de
conhecer Nesta narrativa que mostra a libertaccedilatildeo do prisioneiro e a sua gradual
adaptaccedilatildeo a um novo ambiente (Rep 515e-516c6) tem-se a uma imagem da superaccedilatildeo
de um niacutevel a outro pressupondo uma progressatildeo do trabalho intelectual que vai da
percepccedilatildeo agrave cogniccedilatildeo
103
Cabe acompanhar a narrativa desta experiecircncia atraveacutes da construccedilatildeo da imagem
do prisioneiro que conquista a libertaccedilatildeo Para isso deve-se comeccedilar por analisar o
ambiente e o estado que se refere agrave ignoracircncia (ἀκαζία)
ldquo() Imagina homens que estatildeo numa morada subterracircnea
semelhante a uma furna cujo acesso se faz por uma abertura que
abrange toda a extensatildeo da caverna que estaacute voltada para a luz Laacute
estatildeo eles desde a infacircncia com grilhotildees nas pernas e no pescoccedilo de
modo que fiquem imoacuteveis onde estatildeo e soacute voltem o olhar para a
frente jaacute que os grilhotildees os impedem de virar a cabeccedila De longe
chega-lhes a luz de uma fogueira que arde num local mais alto atraacutes
deles e entre a fogueira e os prisioneiros haacute um caminho em aclive
ao longo do qual se ergue um pequeno muro semelhante ao tabique
que os maacutegicos potildeem entre eles e os espectadores quando lhes
apresentam suas habilidades
- estou imaginando disse
- Pois bem Imagina homens passando ao longo desse pequeno
muro e levando toda a espeacutecie de objetos que ultrapassam a altura do
muro e tambeacutem estaacutetuas de homens e de outros animais feitas de
pedra e de madeira trabalhadas das mais diversas maneiras Alguns
dos que os carregam como eacute natural vatildeo falando e outros seguem
em silecircnciordquo (Rep 514a2-b7)
O ambiente rebaixado e de penumbra que sugere a caverna subterracircnea alude agrave
condiccedilatildeo de inferioridade do homem no que se refere ao conhecimento Tal
inferioridade parece inexoraacutevel ao considerar que este eacute o uacutenico ambiente conhecido
pelos habitantes da caverna visto que estatildeo laacute desde a infacircncia Por estarem de costas
para a abertura da gruta e portanto em posiccedilatildeo contraacuteria agrave saiacuteda tem-se a natural
oposiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo ao que pode provocar o conhecimento de outro lugar
outro plano Outro dado que talvez determine a aparente inflexibilidade desta condiccedilatildeo
eacute a imobilidade que os torna prisioneiros e em permanente estado de ἀκαζία Presos
pelos peacutes pernas e pescoccedilo os moradores da caverna estatildeo impedidos de sair e de fazer
qualquer movimento que os permita ver outro acircngulo e assim realizar qualquer
verificaccedilatildeo acerca do lugar que habitam Limitados pelos grilhotildees natildeo podem
reconhecer a fonte que oferece a baixa luminosidade para a gruta nem a origem dos
ruiacutedos que escutam e das imagens que veem projetadas na parede diante deles Imoacuteveis
e alheios a outra realidade os habitantes da caverna creem que as sombras de animais e
estaacutetuas projetadas satildeo os proacuteprios animais e os proacuteprios homens e natildeo imagens de
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algum objeto refletido pela luz do fogo Crentes chamam tal conjuntura de real e
consideram as sombras verdadeiras sem ao menos supor um lugar diferente da gruta
permanecendo assim ignorantes (Rep 515b4-5 515c1-2)
A narrativa aponta os elementos que determinam a ignoracircncia e o principal
dentre todos cabe notar consiste na imobilidade que resulta na crenccedila Chama atenccedilatildeo
do mesmo modo que a analogia natildeo indique outro fator que fixa o homem a esta
imobilidade que natildeo seja a natureza Representado pelos grilhotildees o que coloca o
homem na posiccedilatildeo de prisioneiro parece consistir na natural sujeiccedilatildeo aos elementos que
compotildeem o cenaacuterio as sombras crenccedila e o haacutebito agrave escuridatildeo Natildeo parece estar em
questatildeo em um primeiro momento qualquer fator desiderativo para a permanecircncia
nesse estado tampouco alguma deliberaccedilatildeo em livrar-se dele Ao que tudo indica a
proposta da narrativa tem em vista descrever uma situaccedilatildeo hipoteacutetica de elevaccedilatildeo de
uma natural condiccedilatildeo de desconhecimento para a de conhecimento circunstacircncia
considerada mais elevada Para isso elege as variaacuteveis que colaboram para a construccedilatildeo
de uma imagem desobrigada a corresponder fielmente agraves questotildees na vida ordinaacuteria
mas que parecem uacuteteis aos propoacutesitos de uma comparaccedilatildeo (ἀπεηθάδσ Rep 514a1)65
Assim ainda que pareccedilam estranhas importa que tais representaccedilotildees permitam
investigar a questatildeo no registro da suposiccedilatildeo
A incapacidade de discernimento devido as caracteriacutesticas do ambiente e agrave
imobilidade das capacidades que permitiriam reconhecer os objetos verdadeiros mostra
a ignoracircncia como o estado em que a alma natildeo mobiliza suas potencialidades
cognitivas ficando alheia a um tipo de experiecircncia que soacute pode ser realizada pelo
pensamento O resultado desta postura eacute o desconhecimento de uma realidade que daacute
origem ao que ela por haacutebito (λνκίδσ) concebe como verdadeiro e real Este eacute um ponto
que ganha algumas elucidaccedilotildees na alegoria em comparaccedilatildeo ao que trazia a primeira
parte da linha Como componente do segundo grau do primeiro niacutevel na escala que
sugere a linha dividida (Rep 511d9-e) correspondente ao juiacutezo a πίζηηο aparecia como
a convicccedilatildeo nos objetos fiacutesicos tomados como verdadeiros os quais nada mais eram que
as aparecircncias dos objetos reais Por essa razatildeo naquele contexto a convicccedilatildeo natildeo
consistia em um estado em que a alma estava em via de adquirir o conhecimento mas
ao contraacuterio permanecia incapaz de efetuar qualquer relaccedilatildeo que lhe permitisse
reconhecer a realidade inteligiacutevel A crenccedila tal como descreve a linha parece estar
65 Rep 515a4-5 ldquo- Estranho eacute o quadro que descreves disse e estranhos tambeacutem os prisioneiros (-
Semelhante a noacutes disse eu (Ἄηνπνλ ἔθε ιέγεηο εἰθόλα θαὶ δεζκώηαο ἀηόπνπο Ὁκνίνπο ἡκῖλ)rdquo
105
presente na descriccedilatildeo da ignoracircncia que sofre o prisioneiro uma vez que se toma como
real o que se daacute pelo costume ou seja a partir do que regularmente se vecirc por forccedila de
sua condiccedilatildeo
Dito de outro modo o julgamento que o prisioneiro faz tem como base uma
presumiacutevel regularidade das apariccedilotildees projetadas na parede da caverna nas aparecircncias
mesmo fundamento da crenccedila Eacute possiacutevel compreender que a ἀκαζία da alegoria
corresponde agrave δόμα da linha dividida Pode-se encontrar uma correspondecircncia entre os
dois estados se considerarmos que ambos se referem ao desconhecimento da realidade
inteligiacutevel Ambas parecem compreendidas nos termos que se enuncia os riscos de
entregar a salvaguarda da cidade a um guardiatildeo que ignora (ἄγλνηα) e portanto
desconhece a ideia do bem (Rep 5064-7) Entretanto vale ressaltar que o que a alegoria
pretende enfatizar diz respeito ao desconhecimento como um estado natural ao homem
que pode por determinadas razotildees ser abandonado Se na linha se tem uma explicaccedilatildeo
do ponto de vista gnosioloacutegico e epistemoloacutegico desta ἄγλνηα cujo sentido parece
abarcar a opiniatildeo e a ignoracircncia na alegoria ela eacute dada da perspectiva existencialista e
sobretudo poliacutetica visto que marca a posiccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a ideia do bem
inteligiacutevel a saber naturalmente inferior e contraacuterio a ele Conveacutem investigar nas
proacuteximas passagens o que o texto sugere acerca do processo de abandono da
inferioridade da ignoracircncia e averiguar o processo intelectivo nessa mudanccedila de
condiccedilatildeo Deve-e atentar para o caraacuteter ascendente da inteligecircncia dada na figura do
aprendiz
43 Mobilidade do pensamento ἀλάβαζηο
O processo de saiacuteda do estado de ignoracircncia dada nos termos da libertaccedilatildeo de
tal posiccedilatildeo propotildee o iniacutecio do processo do conhecimento que sugere ao mesmo tempo
os estiacutemulos necessaacuterios para o desenvolvimento do exerciacutecio intelectual de ascese e as
reaccedilotildees naturais agraves mudanccedilas de niacutevel cognitivo Diferente do que se viu na analogia do
sol a alegoria natildeo enfatiza a relaccedilatildeo entre alma e objeto e a familiaridade da alma com
106
o inteligiacutevel como suficientes para descrever o que promove a busca pelo conhecimento
ao menos em um primeiro momento A saiacuteda da caverna depende da intervenccedilatildeo de
algueacutem que por conhecer a realidade provoca e orienta esta libertaccedilatildeo Nesse sentido a
ambientaccedilatildeo do liberto agrave luz mostra as dificuldades que envolvem a ascese elevaccedilatildeo
que cabe notar natildeo constitui um processo natural
ldquo- Observa agora disse eu como seria para eles a libertaccedilatildeo dos
grilhotildees e da cura da ignoracircncia se isso lhes ocorresse de forma
natural (Σθόπεη δή ἦλ δ ἐγώ αὐηῶλ ιύζηλ ηε θαὶ ἴαζηλ ηῶλ ηε δεζκῶλ
θαὶ ηο ἀθξνζύλεο νἵα ηηο ἂλ εἴε εἰ θύζεη ηνηάδε ζπκβαίλνη αὐηνῖο)
Sempre que um deles fosse liberado dos grilhotildees e obrigado
(ἀλαγθάδνηην) a pocircr-se de peacute de repente a virar o pescoccedilo a andar e
a olhar para a luz tudo isso o faria sofrer e sob a luminosidade
intensa ficaria incapaz de olhar para aqueles objetos cujas sombras
havia pouco estava vendo O que diria ele na tua opiniatildeo se algueacutem
lhe dissesse que o que ele via antes era apenas uma nonada
(θιπαξίαο) mas que agora mais proacuteximo do ser voltado para o que
eacute mais ser estaacute enxergando (λῦλ δὲ κᾶιιόλ ηη ἐγγπηέξσ ηνῦ ὄληνο θαὶ
πξὸο κᾶιινλ ὄληα ηεηξακκέλνο ὀξζόηεξνλ βιέπνη) melhor e
apontando cada um dos objetos que estavam passando com suas
perguntas o obrigasse a dizer-lhe o que era Natildeo achas que ele se
veria em dificuldades e julgaria que os objetos que via antes eram
mais verdadeiros do que os que lhe estavam sendo mostrados
agorardquo (Rep 515c4 -d7)
O texto mostra as dificuldades de se observar a realidade na figura do prisioneiro
obrigado a pocircr-se em uma posiccedilatildeo diferente e a fazer movimentos nunca realizados
antes O embaraccedilo de lidar com uma nova realidade sugerida pela incapacidade do
receacutem liberto de ver (ἀδπλαηνῖ θαζνξᾶλ) sob luz intensa mostra a natural incapacidade
de frequentaccedilatildeo na realidade inteligiacutevel e ao mesmo tempo a necessidade de orientaccedilatildeo
e de exerciacutecio para que isso ocorra Forccedilado a sair da caverna (ἀλαγθάδσ) e sem estar
adaptado agraves novas condiccedilotildees o prisioneiro insiste em acreditar nas sombras e natildeo
confere qualquer credibilidade aos objetos que agora se apresentam uma vez que soacute tem
a ignara experiecircncia das imagens O abandono da condiccedilatildeo de ignoracircncia natildeo acontece
sem a natural reaccedilatildeo de contrariedade e sofrimento amenizados somente por um
gradativo processo de conformaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas deste novo ambiente Ainda que
fosse arrastado agrave forccedila para um plano mais alto (Rep 515e6) sua reaccedilatildeo seria a de
relutacircncia e demandaria tempo para deixar de se incomodar (ἀγαλαθηέσ Rep 516a1)
com a claridade
107
Tal eacute a descriccedilatildeo da relaccedilatildeo entre alma e objeto no processo de ascese na
narrativa da alegoria A graduaccedilatildeo entre niacuteveis dita nos termos da saiacuteda de um plano e
subida a outro mostra dessa vez a relaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel como resposta ao
contato com objetos distintos Se a analogia do sol descrevia essa reaccedilatildeo do ponto de
vista do fenocircmeno mental ou seja do que se tem na relaccedilatildeo entre faculdade cognitiva e
objeto inteligiacutevel a saber a apreensatildeo da ideia aqui a descriccedilatildeo da reaccedilatildeo do
prisioneiro agrave luminosidade leva em consideraccedilatildeo a θύζηο como um componente
determinante nessa relaccedilatildeo Nesse sentido tais dificuldades representam um aspecto
tambeacutem natural do processo de ascese uma vez que se eacute naturalmente contraacuterio e
desabituado ao inteligiacutevel A relaccedilatildeo entre alma e objeto experienciado dado na alegoria
oferece uma imagem do conhecimento como uma superaccedilatildeo na qual o pensamento se
realiza em todo o seu conjunto de operaccedilotildees ao longo da transposiccedilatildeo desses obstaacuteculos
O foco se volta para o estabelecimento dessa relaccedilatildeo com o inteligiacutevel que se efetiva
nesse percurso oferecendo dessa maneira uma narrativa da passagem da percepccedilatildeo
sensiacutevel para a cogniccedilatildeo inteligiacutevel
Vale lembrar que o propoacutesito de tal abordagem tem em vista a noccedilatildeo de παηδεία
e pretende por isso apontar a possibilidade de conduccedilatildeo ao conhecimento Desse
modo importa assinalar no contexto da alegoria as caracteriacutesticas do pensamento posto
em atividade orientado para a inteligecircncia de modo a averiguar as possiacuteveis
correspondecircncias com o que se analisou na analogia do sol e na analogia da linha
argumentos importantes para uma caracterizaccedilatildeo da racionalidade no livro VI Note-se
que o texto propotildee a superaccedilatildeo cognitiva anaacuteloga agrave gradativa ambientaccedilatildeo na verdadeira
realidade e o viacutenculo entre a alma e o inteligiacutevel sendo constituiacutedo nesta frequentaccedilatildeo
no novo ambiente ao qual aos poucos ela estaraacute familiarizada
ldquo- E se disse eu algueacutem o arrastasse dali aacute forccedila pela ladeira
aacutespera e abrupta (Εἰ δέ ἦλ δ ἐγώ ἐληεῦζελ ἕιθνη ηηο αὐηὸλ βίᾳ δηὰ
ηξαρείαο ηο ἀλαβάζεσο θαὶ ἀλάληνπο) e natildeo o largasse antes de
conseguir arrastaacute-lo para fora e expocirc-lo agrave luz do sol seraacute que ele natildeo
sofreria dores natildeo se indignaria por o arrastarem (ἆξα νὐρὶ
ὀδπλᾶζζαί ηε ἂλ θαὶ ἀγαλαθηεῖλ ἑιθόκελνλ) e quando chegasse laacute ateacute
a luz com os olhos ofuscados pelo fulgor nada seria capaz de ver do
que agora lhe dissessem ser verdadeiro
- De imediato (ἐμαίθλεο) pelo menos disse natildeo seria capaz
- Seria preciso creio que se habituasse se pretendesse ver o que
estivesse no alto (Σπλεζείαο δὴ νἶκαη δένηη ἄλ εἰ κέιινη ηὰ ἄλσ
ὄςεζζαη) Primeiro iria ver muito facilmente as sombras depois as
imagens dos homens e as dos outros objetos na aacutegua e mais tarde os
proacuteprios homens e os objetos depois agrave noite voltando o olhar para
108
a luz dos astros e da lua contemplaria o que estivesse no ceacuteu e o
proacuteprio ceacuteu com mais facilidade que durante o dia o sol se a luz do
sol
- Em uacuteltimo lugar viria creio o sol natildeo os reflexos dele na aacutegua
ou em outra superfiacutecie e ele seria capaz de ver e contemplar o
proacuteprio sol no lugar que eacute o dele tal qual ele eacute (Τειεπηαῖνλ δὴ νἶκαη
ηὸλ ἥιηνλ νὐθ ἐλ ὕδαζηλ νὐδ ἐλ ἀιινηξίᾳ ἕδξᾳ θαληάζκαηα αὐηνῦ
ἀιιαὐηὸλ θαζ αὑηὸλ ἐλ ηῆ αὑηνῦ ρώξᾳ δύλαηη ἂλ θαηηδεῖλ θαὶ
ζεάζαζζαη νἷόο ἐζηηλ)
- Necessariamente disse
- Depois disso a respeito do sol jaacute inferiria (ζπιινγίδνηην) que eacute
ele que cria as estaccedilotildees e os anos e tudo governa (ἐπηηξνπεύσλ) no
mundo visiacutevel e eacute de certo modo a causa (αἴηηνο) de tudo aquilo que
viam
- Eacute evidente que depois de passar por aquelas experiecircncias
chegariam a essas conclusotildees (Δινλ ἔθε ὅηη ἐπὶ ηαῦηα ἂλ κεη
ἐθεῖλα ἔιζνη)rdquo (Rep 515e- 516 c3)
Os passos dados na elevaccedilatildeo ao inteligiacutevel parecem francamente sugeridos nesta
progressatildeo da visatildeo que descreve o texto Apoacutes a relutacircncia e as dores de estar em um
ambiente desconhecido onde comeccedila a se acostumar com as caracteriacutesticas dele como
a luminosidade o liberto primeiro vecirc com facilidade as sombras na penumbra depois
consegue observar as imagens na aacutegua e finalmente mira diretamente os proacuteprios
objetos originais Receacutem-saiacutedo da caverna o ex-prisioneiro reconhece a multiplicidade
do mundo visiacutevel em seus variados objetos cujos reflexos promovem as sombras e as
imagens Desse modo tem-se a descriccedilatildeo do estado de percepccedilatildeo (αἴζζεζηο) no mundo
visiacutevel na qual os elementos apreendidos satildeo as imagens as sombras os animais e os
objetos do mundo fiacutesico Embora seja difiacutecil fazer uma riacutegida identificaccedilatildeo das partes da
linha com a ascese tal como trata a alegoria parece razoaacutevel entender que a percepccedilatildeo
aparece como a vivecircncia na caverna e esses primeiros momentos da saiacuteda rumo ao
conhecimento o iniacutecio do percurso da experiecircncia intelectual da ascese
No que se refere agrave elevaccedilatildeo da alma ao inteligiacutevel parece razoaacutevel supor os
primoacuterdios desta ascese neste reconhecimento da multiplicidade de elementos do
domiacutenio visiacutevel para marcar as distinccedilotildees do inteligiacutevel e a superioridade da
inteligecircncia Faz sentido mostrar desta perspectiva as evoluccedilotildees da alma que se eleva
da percepccedilatildeo da multiplicidade para a aquisiccedilatildeo do conhecimento da ideia enfatizando
com isso o exerciacutecio do pensamento que aqui eacute dado de modo progressivo e gradual
rumo agrave sua excelecircncia operacional como mostrou a linha e moral como parece propor
109
a alegoria Desse modo a passagem da conjectura para a convicccedilatildeo constitui um
progresso nos termos de um trabalho mental importante de ser dado uma vez que estaacute
em questatildeo o desenvolvimento para o exerciacutecio intelectual Mais que mostrar o prejuiacutezo
cognitivo da δόμα em relaccedilatildeo a ἐπηζηήκε a passagem de uma etapa a outra da
percepccedilatildeo eacute dada como ponto a partir do qual pode haver a mudanccedila (κεηαβνιή Rep
516c6) movimento que pode pocircr a alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel Por enquanto vale ter
em vista que conjectura e convicccedilatildeo compotildeem o conjunto de operaccedilotildees mentais tal
como o raciociacutenio e a intelecccedilatildeo e que constitui o grau de inferioridade da condiccedilatildeo da
alma que pode ser superado
Cabe reparar na sequecircncia que a segunda fase do liberto sugere a atividade
preliminar do pensamento pois parece ir um pouco aleacutem da percepccedilatildeo Nessa etapa o
liberto jaacute suporta a claridade e comeccedila a observar o que eacute reluzente na ausecircncia de luz
sendo possiacutevel para ele realizar as primeiras observaccedilotildees no claro e no escuro no dia e
na noite ateacute encarar o proacuteprio sol em toda a sua luminosidade e grandiosidade Este grau
de adaptaccedilatildeo parece ser o mais adequado para o iniacutecio da atividade intelectual uma vez
que jaacute se eacute capaz de observar em diferentes circunstacircncias e contemplar a proacutepria fonte
de luz Ao inferir (ζπιινγίδνκαη) sobre a causa (αἴηηνο) e sobre a ordenaccedilatildeo
(ἐπηηξνπεύσ) do mundo a partir da contemplaccedilatildeo do sol concluindo ser ele a origem
dos fenocircmenos a alegoria descreve um trabalho do pensar mostrando o que
provavelmente constitui seu exerciacutecio nos primeiros graus do niacutevel inteligiacutevel visto que
causa e princiacutepio satildeo questotildees presentes em uma investigaccedilatildeo racionalista como
mostrou a analogia do sol e da linha
Natildeo se deve perder de vista o objetivo moral e poliacutetico da argumentaccedilatildeo Ao
oferecer um relato das mudanccedilas e das aquisiccedilotildees cognitivas nesta experiecircncia
gnosioloacutegica a alegoria propotildee o fundamento epistemoloacutegico da poliacutetica naquilo que a
ciecircncia pode orientar e portanto intervir a partir de um modelo ideal e de um meacutetodo
adequado de educaccedilatildeo De maneira simeacutetrica o pedagogo e o governante partilham da
mesma funccedilatildeo respectivamente orientar a alma e conduzir a cidade sendo pertinente
portanto uma investigaccedilatildeo acerca do que deve ser mobilizado e dos meios adequados
para que a governabilidade de fato se realize O que eacute posto em questatildeo natildeo eacute outra
coisa que a alma e o que envolve a racionalidade Na condiccedilatildeo superior ao ter adquirido
o conhecimento da realidade portanto o liberto avalia o seu percurso e a sua condiccedilatildeo
anterior considerando depois disso os benefiacutecios de ter se lanccedilado a tal experiecircncia
(Rep 516e1)
110
Esse constitui um dos efeitos da inteligecircncia dito dessa vez nos termos da inteira
conversatildeo da alma agrave ideia do bem operada pelo pensamento no seu movimento de
superaccedilatildeo da multiplicidade sensiacutevel para a unidade inteligiacutevel A ascensatildeo ao
conhecimento estaacute completa uma vez estabelecido o viacutenculo com o domiacutenio inteligiacutevel
sendo a recompensa desse percurso a visatildeo do niacutevel mais alto (ζέαλ ηῶλ ἄλσ ηὴλ εἰο ηὸλ
λνεηὸλ ηόπνλ Rep 517b 4-5) e portanto o conhecimento da ideia do bem Conhecer a
ideia do bem vale assinalar eacute dita como as conclusotildees as quais forccedilosamente se chega
acerca de sua funccedilatildeo como causa do que eacute belo correto verdadeiro e inteligiacutevel66
Tal
conhecimento consiste na base para a accedilatildeo quer no domiacutenio da vida puacuteblica quer no
domiacutenio da vida privada Mais uma vez a apreensatildeo da ideia constitui o ponto alto da
inteligecircncia e o conhecimento dela mostra o que eacute fundamental para a boa accedilatildeo
(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) ou seja para a moral e para a poliacutetica Vecirc-se destacado aqui o
caraacuteter ascendente da inteligecircncia antes dado na superaccedilatildeo das hipoacuteteses rumo agrave ideia
do bem Este certamente constitui um dos traccedilos importantes que compotildeem a distinccedilatildeo
deste modo do pensamento e justifica a sua condiccedilatildeo de excelecircncia
44 A orientaccedilatildeo para a ideia do bem a παηδεία e θαηακαλζάλσ
A παηδεία mostra o pensamento em dois aspectos como a capacidade de
cogniccedilatildeo e como atividade do aprendizado (ηὴλ ἐλνῦζαλ ἑθάζηνπ δύλακηλ ἐλ ηῆ ςπρῆ
θαὶ ηὸ ὄξγαλνλ ᾧ θαηακαλζάλεη ἕθαζηνο Rep 518c) Dessa vez a argumentaccedilatildeo vai se
referir agrave preparaccedilatildeo necessaacuteria que antecede agrave apreensatildeo das ideias ou seja mostra a
conduccedilatildeo da alma na direccedilatildeo do inteligiacutevel que constitui o aprendizado O movimento
induzido pelo pedagogo consiste em voltar (ζηξέθσ πεξηάγσ Rep 518c79) a alma
para a contemplaccedilatildeo do ser e da sua inteligibilidade tal como se viu na alegoria o que
66 Rep 517b7-c4rdquoEm todo o caso eis o que penso No mundo cognosciacutevel vem por uacuteltimo a ideia do
bem que se deixa ver com dificuldade mas se eacute vista impotildeem-se a conclusatildeo de que para todos eacute a
causa de tudo quanto eacute reto e belo e que no mundo visiacutevel eacute ela quem gera a luz e o senhor da luz e no
mundo inteligiacutevel eacute ela mesma que como senhora propicia verdade e inteligecircncia devendo tecirc-la diante
dos olhos quem quiser agir com sabedoria(ἐκθξόλσο πξάμεηλ) na vida privada e puacuteblicardquo
111
exige um treinamento de modo a deixaacute-la apta para o conhecimento (Rep 518c8-d1) A
educaccedilatildeo seraacute dada como a arte de mover a alma fazendo com que ela mude de direccedilatildeo
(κεηαζηξέθσ) e contemple o bem desviando-a do que se refere ao devir
ldquo- Pois bem disse eu Pode ser que haja uma arte a arte do
desvio isto eacute de como da maneira mais raacutepida e eficiente essa
pessoa mudaria de direccedilatildeo (Τνύηνπ ηνίλπλ ἦλ δ ἐγώ αὐηνῦ ηέρλε ἂλ
εἴε ηο πεξηαγσγο ηίλα ηξόπνλ ὡο ῥᾷζηά ηε θαὶ ἀλπζηκώηαηα
κεηαζηξαθήζεηαη) Natildeo seria poreacutem para criar dentro dela a visatildeo
porque jaacute a tem mas como natildeo a manteacutem na direccedilatildeo correta e natildeo
olha para onde deve para proporcionar-lhe os meios necessaacuterios
para isso
- Eacute provaacutevel que seja assim disse
- Pois bem As outras virtudes as chamadas virtudes da alma
podem muito bem ser algo muito proacuteximo das do corpo (na realidade
natildeo existindo previamente podem ser criadas mais tarde por meio de
haacutebitos e exerciacutecios (ηῷ ὄληη γὰξ νὐθ ἐλνῦζαη πξόηεξνλ ὕζηεξνλ
ἐκπνηεῖζζαη ἔζεζη θαὶ ἀζθήζεζηλ)) a virtude do pensar poreacutem ao
que parece por ser proacutepria de algo mais divino jamais perde sua
forccedila (ἡ δὲ ηνῦ θξνλζαη παληὸο κᾶιινλ ζεηνηέξνπ ηηλὸο ηπγράλεη ὡο
ἔνηθελ νὖζα ὃ ηὴλ κὲλ δύλακηλ νὐδέπνηε ἀπόιιπζηλ) De acordo com
a direccedilatildeo que lhe eacute imposta (ὑπὸ δὲ ηο πεξηαγσγο) vem a ser uacutetil e
proveitosa ou inuacutetil e nociva ()rdquo (Rep 518d2-519a1)
Um dos importantes aspectos do pensamento que ganha ecircnfase na descriccedilatildeo da
educaccedilatildeo diz respeito agrave possibilidade de exerciacutecio e orientaccedilatildeo da capacidade cognitiva
Ao verificar no argumento como eacute dada a atividade intelectual e por quais meios eacute
possiacutevel mobilizaacute-la observa-se que nesse contexto se tem em vista o pensar ao modo
do exerciacutecio por meio do qual a alma se volta para os inteligiacuteveis a partir daquilo que
ela proacutepria dispotildee O desenrolar da capacidade e das atividades intelectuais da alma as
quais tinha como guia um meacutetodo para as suas operaccedilotildees como se viu na analogia da
linha agora tem seu desenvolvimento a partir do estiacutemulo dado pela arte de orientar do
pedagogo Do mesmo modo como caracteriacutestica indestrutiacutevel da alma o pensar no seu
modo excelente (θξόλεζηο)67
resulta da boa orientaccedilatildeo que lhe eacute dada O aprendizado
por sua vez consiste neste movimento de mudar de direccedilatildeo e manter-se tendo em mira o
inteligiacutevel tal como orienta o pedagogo para que por si mesmo adquira o
conhecimento
67 Φξόλεζηο como capacidade inteligente da alma que existe antes do nascimento e apoacutes a morte do
corpo tem a sua ocorrecircncia no Feacutedon na Teoria da Reminiscecircncia e no argumento final que constitui a
prova da imortalidade como seraacute analisado em detalhe mais tarde
112
Cabe notar que natildeo parece se tratar apenas da atividade do conhecimento ou da
capacidade de cogniccedilatildeo mas sobretudo da potencialidade de voltar-se para o bem As
qualidades que se pode adquirir com o exerciacutecio do pensar se distinguem de um tipo de
virtude que os exerciacutecios fiacutesicos e o haacutebito podem conferir ao corpo Dito deste modo
o treino para o exerciacutecio intelectual em contraste com os exerciacutecios fiacutesicos aponta mais
uma vez o pensamento como a faculdade cuja potencialidade deve ser desenvolvida e
orientada para aquisiccedilatildeo das virtudes que interessam ao filoacutesofo governante
Note-se todavia que ao mesmo tempo em que se tem uma importante afirmaccedilatildeo
acerca do pensar como uma atividade virtuosa ou que demonstra virtude da parte de
quem a realiza parece curioso o dado de que isto depende de uma orientaccedilatildeo que natildeo
seja dada pela sua relaccedilatildeo com a ideia do bem inteligiacutevel diretamente O conhecimento
que ilumina as orientaccedilotildees necessaacuterias para o bom governo natildeo seria possiacutevel sem esse
contato com a ideia do bem Entretanto a figura do pedagogo parece realizar a
mediaccedilatildeo entre os inteligiacuteveis e aquele que estaacute em processo de desenvolvimento
intelectual A intenccedilatildeo pedagoacutegica do argumento tem em vista oferecer um modelo de
educaccedilatildeo e para isso precisa sugerir os meios para mobilizar a alma e indicar o que de
fato a potildee em movimento rumo ao conhecimento Natildeo haacute motivos para supor dessa
forma que uma submissatildeo agrave ideia do bem se daria diretamente como parece ocorrer
com o dialeacutetico dispensando um processo para tal O processo nesse caso eacute orientado
pelo pedagogo e o pensar aqui eacute exibido em suas potencialidades para a aquisiccedilatildeo das
virtudes e em seu desenvolvimento como oacutergatildeo a ser treinado para a cogniccedilatildeo Natildeo se
trata portanto de impor ou transmitir um conteuacutedo considerado cientiacutefico ldquo() a
educaccedilatildeo natildeo eacute o que alguns profissionais que satildeo dizem que ela eacute Natildeo havendo
ciecircncia na alma dizem eles laacute a colocam tal qual colocassem visatildeo em olhos cegosrdquo
(Rep 518d9-c2) mas de dispor daquela que parece ser a caracteriacutestica mais importante
da alma e que deve ser atingida por aquele que tem aptidatildeo para governar
Por outro lado dito deste modo o pensar eacute sugerido como uma grande
habilidade para agir segundo a orientaccedilatildeo que lhe for imposta e de discernir sobre a
alma que estaacute para receber orientaccedilatildeo o que pode resultar na virtude ou no viacutecio Ao
modo de uma habilidade esta visatildeo eacute aparentemente incompatiacutevel com a ideia da
caracteriacutestica excelente da alma como eacute a θξόλεζηο Uma vez que o viacutecio parece
tambeacutem ser resultado dela permite a indagaccedilatildeo em que sentido tal caracteriacutestica
excelente poderia servir aos viacutecios se ela eacute excelente justamente por poder atingir a ideia
do bem
113
ldquo- Ora disse eu se uma alma cuja natureza (ηὸ ηο ηνηαύηεο
θύζεσο) eacute essa jaacute na infacircncia fosse submetida a uma cirurgia em
que lhe fosse cortado o que para ela eacute como uma chumbada algo que
tem afinidade com o devir (ηὰο ηο γελέζεσο ζπγγελεῖο ὥζπεξ
κνιπβδίδαο) e que sendo por natureza adequada (πξνζθπεῖο) aos
banquetes prazeres e glutonerias tais voltam para baixo o olhar da
alma se poreacutem jaacute liberta disso voltasse seu olhar para as coisas
verdadeiras (ὧλ εἰ ἀπαιιαγὲλ πεξηεζηξέθεην εἰο ηὰ ἀιεζ) mesmo
aquela alma a dos homens teria uma visatildeo muito niacutetida como a que
tem das coisas para as quais estaacute voltada agorardquo (Rep 519a8-b6)
Cabe problematizar a partir desta uacuteltima passagem a relaccedilatildeo entre o pensamento
como capacidade e atividade cognitiva e a natureza a qual compreende as noccedilotildees de
habilidade e aptidatildeo que o texto ora oferece A primeira questatildeo que se coloca diz
respeito agrave natureza racional da alma ou seja em que sentido o racionalismo tal como
foi analisado ateacute entatildeo estaacute de acordo com a noccedilatildeo de natureza que determina e
classifica a posiccedilatildeo dos cidadatildeos na cidade Antes de mais nada deve-se notar que a
uacuteltima passagem sugere que a educaccedilatildeo eacute capaz de corrigir a natureza Disso decorre
outra importante e inevitaacutevel questatildeo todos poderiam ser filoacutesofos a partir de uma
educaccedilatildeo adequada A tentadora resposta negativa para essa uacuteltima questatildeo viraacute mais
adiante e mostraraacute justamente como procede esta correccedilatildeo De todo modo o limite entre
o que se pode aperfeiccediloar com exerciacutecio e as potencialidades que se tem naturalmente se
encontram nesse contexto da παηδεία e do θαηακαλζάλσ o qual natildeo oferece maiores
elucidaccedilotildees acerca do assunto antes do texto sugerir um procedimento pedagoacutegico O
que eacute posto interessa observar eacute o caraacuteter racional da alma como gecircnero ou seja
distinto do corpo e como o que se refere ao indiviacuteduo o qual se divide em dois tipos os
que estatildeo voltados para a sua parte inferior e os que tecircm em vista a sua parte superior
Observe-se que ainda natildeo estaacute em questatildeo para a educaccedilatildeo somente a natureza do futuro
filoacutesofo o que se daraacute a seguir mas a partir do que como e com que finalidade a
educaccedilatildeo deve orientar a alma Tal como eacute sugerida a possibilidade de orientaccedilatildeo da
alma parece ter em vista os tipos distintos aqui resumidos nesses dois uacuteltimos
perspectiva bastante conveniente com as pretensotildees de um governo que pretende
organizar de modo harmocircnico as vaacuterias partes da cidade
Dado que o diaacutelogo se refere a naturezas diferentes vale lembrar em que sentido
o texto apresenta tal noccedilatildeo e verificar em que medida se pode compreender o
pensamento como capacidade e atividade da alma De acordo que cada cidadatildeo deve
114
exercer uma funccedilatildeo compatiacutevel com a sua natureza (Rep 453b) e de que existem
distinccedilotildees entre elas a exemplo da diferenccedila entre os homens e as mulheres (Rep
453e) Soacutecrates e Glaacuteucon se datildeo conta da importacircncia de averiguar a espeacutecie das
naturezas que se mostram distintas ou iguais Depreendida ateacute entatildeo a partir das
funccedilotildees a investigaccedilatildeo passa a abordaacute-la da perspectiva inversa a saber da natureza
em seu gecircnero e espeacutecie para a funccedilatildeo Dito de outro modo pretende-se verificar o tipo
de natureza como o fator determinante para atribuir uma funccedilatildeo (Rep 454c-d) O
primeiro ponto que se deve ter em vista se refere ao aspecto que se propotildee analisar a
natureza Parece muito mais plausiacutevel e conveniente aos assuntos da cidade observar a
natureza segundo as caracteriacutesticas que apresenta determinado indiviacuteduo Assim natildeo se
trata de considerar a natureza segundo o gecircnero feminino ou masculino mas considerar
individualmente o que se mostra natural- haacute mulheres que satildeo dotadas para a muacutesica ou
tem amor pela sabedoria mas outras natildeo (Rep 455e-456a) A natureza nesses termos eacute
dada como uma aptidatildeo que manifestaraacute ao mesmo tempo as suas afinidades (Rep
456b) e que deve ser desenvolvida pela educaccedilatildeo (Rep 456d-e) Ao constituir o
elemento individual e intriacutenseco que determina as funccedilotildees dos cidadatildeos a natureza tal
como eacute sugerida contrapotildee-se ao haacutebito fundamento ordinaacuterio para o estabelecimento
da ordem na cidade (Rep 456c) Dado que se persegue o conjunto de aptidotildees
adequadas para determinadas atividades o criteacuterio de excelecircncia para desenvolver os
indiviacuteduos e para harmonizar a cidade (Rep 456e-457a) leva em consideraccedilatildeo ao
mesmo tempo eleger os instrumentos e os meacutetodos convenientes para o
desenvolvimento da aptidatildeo ao ponto da excelecircncia sendo conveniente assim propor
uma educaccedilatildeo adequada para cada tipo de natureza
A excelecircncia nesse sentido refere-se ao desenvolvimento maacuteximo da
capacidade que se tem naturalmente No que se refere agraves virtudes a θξόλεζηο parece ser
a capacidade eleita para tal o que permite presumir que aqueles que naturalmente a
possuem podem desenvolvecirc-la a ponto de se tornar um homem virtuoso e ser ela
portanto uacutetil e proveitosa Por outro lado aqueles que a possuem mas natildeo a
desenvolvem podem adquirir viacutecios e ser tatildeo decaiacutedos quanto aqueles que naturalmente
natildeo a tecircm como parece ser o caso daqueles que satildeo considerados saacutebios mas na
verdade satildeo maus (πνλεξόο) Assim cabe perguntar a habilidade que possuem de
discernir e incutir o viacutecio natildeo eacute sinal da inteligecircncia
115
ldquo () Seraacute que a respeito dos que satildeo chamados maus mas
saacutebios ainda natildeo notaste como eacute penetrante o olhar da almazinha
deles como ela distingue nitidamente os objetos para os quais estaacute
voltada e que porque sua visatildeo natildeo eacute ruim ela eacute obrigada a servir o
viacutecio de forma que quanto mais penetrante for seu olhar tanto mais
danos ela produz ndash (ὡο δξηκὺ κὲλ βιέπεη ηὸ ςπράξηνλ θαὶ ὀμέσο δηνξᾷ
ηαῦηα ἐθ ἃ ηέηξαπηαη ὡο νὐ θαύιελ ἔρνλ ηὴλ ὄςηλ θαθίᾳ δ
ἠλαγθαζκέλνλ ὑπεξεηεῖλ ὥζηε ὅζῳ ἂλ ὀμύηεξνλ βιέπῃ ηνζνύηῳ
πιείσ θαθὰ ἐξγαδόκελνλ) (Rep 519a1-6)
Note-se que os falsos saacutebios parecem ser donos de uma potencialidade jaacute que
demonstram ter discernimento e certa perspicaacutecia entretanto mal orientados produzem
danos (θαθὰ) e prestam um serviccedilo nocivo para a cidade A capacidade que possuem a
qual lhe confere discernimento e agudez natildeo parece constituir a θξόλεζηο dado que a
consequecircncia do desenvolvimento natildeo satildeo as virtudes Ao que parece ateacute esses a
educaccedilatildeo seria capaz de corrigir se fossem orientados desde a infacircncia a desenvolver o
que naturalmente possuem de melhor Com a boa educaccedilatildeo as virtudes naturais a cada
um parecem surgir como resultado o que pressupotildee o desenvolvimento de uma
habilidade nos termos de uma aptidatildeo Bem educado cada um estaacute apto a cumprir a
funccedilatildeo que naturalmente lhe cabe desempenhando bem desse modo o seu papel na
cidade A uacuteltima passagem contrapotildee a figura do filoacutesofo e do natildeo-filoacutesofo na figura do
pedagogo e do falso saacutebio para marcar as distinccedilotildees e as consequecircncias do tipo de
conduccedilatildeo e desenvolvimento que se propotildee em contraste com uma ordinaacuteria concepccedilatildeo
de saber e de governo Do mesmo modo distingue o que pode ser considerado
maioridade excelecircncia de uma grande habilidade nem sempre desenvolvida para a
direccedilatildeo que deveria
Assim no que diz respeito ao governante da cidade haacute a exigecircncia do
conhecimento e portanto da frequentaccedilatildeo no inteligiacutevel pois a verdade e as virtudes
satildeo conhecidas e adquiridas como jaacute visto nesta experiecircncia intelectual que somente o
filoacutesofo pode empreender (Rep 519b7-c1) Para os que natildeo possuem natureza filosoacutefica
natildeo satildeo possiacuteveis as mais altas aquisiccedilotildees que a filosofia oferece com o seu alto grau de
desenvolvimento intelectual Mesmo bem treinados pelo pedagogo os naturalmente
natildeo-filoacutesofos natildeo ascenderiam ao conhecimento e portanto natildeo poderiam governar O
filoacutesofo por apresentar a aptidatildeo para o conhecimento tem por natureza aptidatildeo para o
governo No entanto apesar da ascensatildeo do filoacutesofo a potencialidade de sua natureza
filosoacutefica parece natildeo estar plenamente desenvolvida se natildeo houver o movimento
descendente ou seja se natildeo houver uma atividade que varie da frequentaccedilatildeo do
116
domiacutenio inteligiacutevel para a obscuridade do domiacutenio sensiacutevel a qual analogamente se
refere agrave praacutetica da educaccedilatildeo e do governo A praacutetica de governar constitui uma
exigecircncia da funccedilatildeo que naturalmente deve desempenhar por um lado e o que parece
ser uma inescapaacutevel consequecircncia da inteligibilidade adquirida com a aquisiccedilatildeo das
ideias por outro Em outras palavras tanto a natureza filosoacutefica quanto os ditames
dados pelo conhecimento determinam que o filoacutesofo desccedila ao domiacutenio aonde deve
conduzir a cidade e os educandos na direccedilatildeo do bem
ldquo- A tarefa que cabe a noacutes fundadores que somos disse eu eacute
obrigar que as melhores naturezas cheguem ao aprendizado (ηάο ηε
βειηίζηαο θύζεηο ἀλαγθάζαη ἀθηθέζζαη πξὸο ηὸ κάζεκα) que no que
falaacutevamos haacute pouco daacutevamos como o melhor de todos isto eacute ver o
bem e fazer aquela caminhada para o alto e depois que a fizerem e jaacute
tiverem contemplado suficientemente o bem natildeo devemos permitir-
lhes o que hoje permitimos
- O quecirc
- Que permaneccedilam laacute disse eu e natildeo queiram descer outra vez
para junto daqueles prisioneiros nem partilhar com eles das labutas
e das honras sejam elas de pouco ou muito valor (εἴηε θαπιόηεξαη
εἴηε ζπνπδαηόηεξαη)rdquo (Rep 519c7-d8)
Natildeo parece haver exagero em compreender que o movimento ascendente e
descendente do percurso intelectual do filoacutesofo tal como eacute dado nessa uacuteltima passagem
resgata o movimento da λόεζηϛ como mostrou o exemplo da linha dividida Nas duas
narrativas tanto na linha quanto agora na educaccedilatildeo de posse do conhecimento apoacutes a
ascese o filoacutesofo deve voltar agraves etapas anteriores agrave condiccedilatildeo anterior no caso para
efetivamente levar a termo a sua atividade inteligente Esta parece ser a face praacutetica do
conhecimento cuja base eacute em uacuteltima circunstacircncia a relaccedilatildeo que se estabelece com o
inteligiacutevel pelo pensamento Tal como se viu na anaacutelise acerca da λόεζηϛ a benignidade
do bem conhecida em tal relaccedilatildeo impotildee-se para a alma como modelo atraveacutes do
meacutetodo dialeacutetico O exerciacutecio de pensar segundo a dialeacutetica potildee a alma em contato com
a ideia do bem que uma vez apreendida serviraacute de paracircmetro para as accedilotildees Nesse
sentido a orientaccedilatildeo e a conduccedilatildeo dada por esta arte (ηέρλε ηο πεξηαγσγο) mostra a
legitimidade do conhecimento ao modo da filosofia para a conduccedilatildeo dos cidadatildeos que
se efetiva nessa partilha das coisas valorosas adquiridas com a ascese
Ao mesmo tempo em que a alta cogniccedilatildeo fornece o conhecimento acerca da
ideia do bem como fundamento da justiccedila e das virtudes a realizaccedilatildeo do bom governo
o qual pretende harmonizar a cidade a partir do bem estar (εὖ πξάμεη Rep 519e2) em
117
todas as partes exige esse segundo movimento A lei da cidade como deve ser baseia-
se nesse princiacutepio de harmonia o qual somente o governante filoacutesofo com a
compreensatildeo do verdadeiro princiacutepio pode estabelecer pela ligaccedilatildeo (ηὸλ ζύλδεζκνλ
Rep 520a4) entre as partes assim a cumprindo efetivamente (Rep 520a) O
conhecimento obtido na contemplaccedilatildeo acerca da verdade das coisas belas boas e justas
faz com que o filoacutesofo tenha o discernimento necessaacuterio acerca das imagens sendo
possiacutevel para ele voltar ao domiacutenio das sombras sem riscos O filoacutesofo estaacute preparado
para ordenar a cidade para comandar os cidadatildeos segundo o que dita a razatildeo
45 Estiacutemulo para a cogniccedilatildeo e superaccedilatildeo do sensiacutevel
O completo trabalho que o pensamento pode realizar e consequentemente as
transformaccedilotildees morais que podem ocorrer na alma devido o exerciacutecio intelectual de
ascensatildeo ao inteligiacutevel podem ser dadas somente pelo treino da educaccedilatildeo Como se vecirc a
alegoria da caverna e o argumento da παηδεία e do θαηακαλζάλσ descrevem o exerciacutecio
intelectual da filosofia como o percurso da experiecircncia do conhecimento e oferecem
para isso a figura do filoacutesofo como o modelo ideal desse desenvolvimento que a alma
experimenta a partir desta arte - ldquo- Aqui natildeo se trata de ver de que lado cai um caco de
ceracircmica mas de fazer que uma alma decirc uma volta deixando um dia carregado de
trevas para dirigir-se ateacute o verdadeiro dia isto eacute realizar uma verdadeira ascensatildeo ateacute
o ser Isso afirmamos eacute a verdadeira filosofiardquo (Rep 521c6-9) Como meio de
organizar a cidade a paideia deve mobilizar as diferentes classes de modo a se
submeterem ao governo ideal do filoacutesofo Faz sentido assim apresentar um quadro no
qual a alma estaacute sob coaccedilatildeo No caso da alma filosoacutefica interessa mostrar como se daacute
sua submissatildeo ao bem Desse modo para que o projeto de harmonizaccedilatildeo da polis se
cumpra eacute necessaacuterio averiguar os meios que na educaccedilatildeo ajudam nesse movimento As
orientaccedilotildees e aprendizados aplicados no treinamento do futuro governante devem servir
para pocircr a alma por meio da dialeacutetica obediente ao que oferece a razatildeo o ser a
verdade a ideia do bem
118
Ao especificar assim acerca das disciplinas que promovem o movimento da
alma em direccedilatildeo ao ser - ηνῦ ὄληνο νὖζαλ ἐπάλνδνλ- movimento que constitui a
ascensatildeo intelectual da filosofia tem-se o que parece consistir em uma segunda causa
para a atividade de pensar aleacutem da filiaccedilatildeo entre alma e inteligiacutevel O treino intelectual
para percorrer o caminho entre o devir e o ser (Rep 521d1-4) que algumas artes como a
aritmeacutetica possibilitam (Rep 522c) mostram uma via para a intelecccedilatildeo que permite a
atuaccedilatildeo do pedagogo a inquietaccedilatildeo que a contrariedade entre as percepccedilotildees do sensiacutevel
e a visatildeo do inteligiacutevel causam na alma Tal contrariedade como a que encontra o
receacutem-saiacutedo da caverna ao se deparar com os verdadeiros objetos pode consistir em um
estiacutemulo para o pensamento de modo a fazecirc-lo buscar a verdade Desse modo a
disciplina que parece tocar nessa questatildeo a contradiccedilatildeo entre as aparecircncias em
contraponto ao inteligiacutevel eacute a matemaacutetica Natildeo somente por serem o nuacutemero e o caacutelculo
presentes nas outras artes raciociacutenios e ciecircncias mas principalmente por colocarem em
questatildeo de maneira bastante uacutetil para o filoacutesofo a contradiccedilatildeo entre as percepccedilotildees e
assim a contraposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel
Assim o aspecto a ser notado no argumento do Livro VII que toca sobretudo a
aritmeacutetica consiste na utilidade pedagoacutegica dessas disciplinas Natildeo somente o proveito
que se pode ter no que se refere ao treinamento militar ou seja o que se pode aproveitar
delas para fins estrateacutegicos de guerra mas sobretudo o treinamento que se pode dar ao
aprendiz atraveacutes do exerciacutecio intelectual envolvido na operaccedilatildeo com os nuacutemeros
ldquo- Pode bem ser que ele seja por natureza um dos aprendizados
que conduzem a inteligecircncia na direccedilatildeo do que buscamos (Κηλδπλεύεη
ηῶλ πξὸο ηὴλ λόεζηλ ἀγόλησλ θύζεη εἶλαη) mas ningueacutem o usa
corretamente mesmo que ele seja o que sem duacutevida eacute capaz de
arrastar-nos ateacute o ser (ρξζζαη δ νὐδεὶο αὐηῷ ὀξζῶο ἑιθηηθῷ ὄληη
παληάπαζη πξὸο νὐζίαλ) (Rep 523a1-3)
Dada a peculiaridade desse κάζεκα ao que parece eacute possiacutevel obter a destreza de
superar as sensaccedilotildees em vista de um exerciacutecio intelectual atraveacutes da aritmeacutetica na
medida em que ela potildee de forma mais objetiva a multiplicidade e a contradiccedilatildeo das
percepccedilotildees sensiacuteveis em contraposiccedilatildeo agrave unidade Se no argumento da linha dividida o
meacutetodo matemaacutetico era dado para mostrar um objeto de natureza inteligiacutevel mas cujas
caracteriacutesticas implicavam em limitaccedilotildees cognitivas em comparaccedilatildeo agrave ideia do bem e ao
meacutetodo filosoacutefico agora esta mesma caracteriacutestica a saber ter certa ligaccedilatildeo com o
119
sensiacutevel potildee em certa medida a possibilidade da superaccedilatildeo que constitui o trabalho do
intelecto em relaccedilatildeo ao sensiacutevel
A passagem da contradiccedilatildeo sensiacutevel para a determinaccedilatildeo inteligiacutevel como fazem
as matemaacuteticas parece bastante uacutetil para o contexto da pedagogia e revela de fato uma
superaccedilatildeo do intelecto A noccedilatildeo de superaccedilatildeo que acontece com o caacutelculo realizado na
aritmeacutetica por exemplo a passagem da multiplicidade para a unidade tem por essa
razatildeo grande importacircncia para o aprendizado Este dado se mostra relevante na medida
em que situa a oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel apresentada no Livro VI no que se refere a
uma operaccedilatildeo da mente Na analogia da linha dividida as operaccedilotildees envolvidas nos
estados de percepccedilatildeo e de cogniccedilatildeo satildeo distintas e classificadas nos termos de estados
intelectivos da alma em relaccedilatildeo a determinados objetos O que se mostra agora eacute o
princiacutepio que faz a alma inteligir a partir das sensaccedilotildees e qual o tipo de elevaccedilatildeo que a
matemaacutetica enquanto exerciacutecio intelectual pode promover
ldquo- Vou mostrar falei se me concedes atenccedilatildeo que nas sensaccedilotildees
algumas coisas natildeo convidam a inteligecircncia agrave reflexatildeo (ηὰ κὲλ ἐλ ηαῖο
αἰζζήζεζηλ νὐ παξαθαινῦληα ηὴλ λόεζηλ) como se lhes fosse
suficiente o julgamento feito pela sensaccedilatildeo (ὑπὸ ηο αἰζζήζεσο
θξηλόκελα) mas que outras ordenam (δηαθειεύνκαη) que de toda
maneira a inteligecircncia examine como se a sensaccedilatildeo nada produzisse
de vaacutelido
- O que se vecirc de longe disse e o que eacute desenhado com luzes e
sombras Eacute evidente que eacute disso que falas
- Natildeo conseguiste apreender disse eu o que estou dizendo
- De quecirc disse estaacutes falando
- Natildeo incita agrave reflexatildeo disse eu o que natildeo resulta
simultaneamente em sensaccedilotildees opostas (Τὰ κὲλ νὐ παξαθαινῦληα ἦλ
δ ἐγώ ὅζα κὴ ἐθβαίλεη εἰο ἐλαληίαλ αἴζζεζηλ ἅκα) o que poreacutem
delas resulta eu considero que incita agrave reflexatildeo porque a sensaccedilatildeo
natildeo torna uma coisa mais evidente que seu oposto quer a percebemos
de longe ou de perto Com este exemplo compreenderaacutes melhor o que
estou dizendo ()rdquo (Rep 523b9-c4)
Diante deste novo caraacuteter conferido agrave aritmeacutetica parece vaacutelido questionar se
estaria neste argumento a resposta para uma questatildeo pertinente em relaccedilatildeo agraves divisotildees
da linha o que faz a alma realizar a passagem da segunda parte da primeira divisatildeo a
parte que conteacutem animais e objetos fiacutesicos do reino sensiacutevel para a primeira parte da
segunda divisatildeo a qual abarca os seres matemaacuteticos no domiacutenio Inteligiacutevel Ou
resumidamente qual o elemento e de que modo se daacute a passagem do sensiacutevel para o
inteligiacutevel Para tentar responder essa pergunta e para compreender a operaccedilatildeo
120
envolvida nessa superaccedilatildeo deve-se antes reparar que o argumento sugere um trabalho
mental nos termos da percepccedilatildeo que antecede a intelecccedilatildeo a operaccedilatildeo com seres
inteligiacuteveis As operaccedilotildees em torno da αἴζζεζηο satildeo dadas de dois modos ὑπὸ ηο
αἰζζήζεσο θξηλόκελα um juiacutezo sob efeito das sensaccedilotildees considerando-as suficientes e
ηὰ δὲ παληάπαζη δηαθειεπόκελα ἐθείλελ ἐπηζθέςαζζαη um exame feito a partir do
intelecto natildeo baseado nos dados sensiacuteveis No primeiro caso as sensaccedilotildees satildeo tomadas
como os uacutenicos elementos para se realizar tal atividade dita ao modo de um
discernimento (θξίλσ) consideradas portanto suficientes No segundo caso
consideradas deficientes (νὐδὲλ ὑγηὲο) as sensaccedilotildees tecircm exposta a caracteriacutestica que as
invalidam como via para o conhecimento mas que ao mesmo tempo as revelam um
estiacutemulo para a atividade de pensar no seu modo superior a λόεζηο a saber a
contrariedade que se daacute simultaneamente devido a multiplicidade dos dados sensiacuteveis
As muacuteltiplas sensaccedilotildees que assaltam a alma ao mesmo tempo especificamente
as que se apresentam contraacuterias entre si provocam o pensar na medida em que a
obrigam a realizar uma distinccedilatildeo de modo a determinaacute-lo nos termos inteligiacuteveis o que
pode ser feito tanto pela geometria quanto pela filosofia Formulado nesses termos as
percepccedilotildees do sensiacutevel como estiacutemulo se assemelham ao que se encontra no Feacutedon
onde o intelecto trabalha para promover o afastamento ente alma e corpo como resposta
da alma agraves perturbaccedilotildees advindas da sensibilidade Nesse contexto a contradiccedilatildeo eacute dada
na relaccedilatildeo alma-corpo sendo o pensamento uma resposta inteligente da alma para ela
O que se vecirc aqui no livro VII entretanto diz respeito agrave mesma contradiccedilatildeo mas agora
reunida na matemaacutetica a qual apela para elementos inteligiacuteveis a fim de dar tratamento
aos objetos do mundo sensiacutevel
Embora em contextos diferentes a contradiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel se mostra um
estiacutemulo tanto para o matemaacutetico que vecirc nisso a oportunidade de tratar o sensiacutevel
quanto para o filoacutesofo que se vecirc instigado a questionaacute-la filosoficamente O argumento
pede desse modo uma anaacutelise disto que propotildee como contrariedade para que se possa
compreender tal estiacutemulo Primeiramente longe de se sugerir a passividade de uma
mera recepccedilatildeo de dados sensoriais o texto mostra que a percepccedilatildeo constitui uma
atividade que parece ocorrer inevitavelmente acerca desses dados recebidos quer ao
modo de um discernimento quer ao de uma inspeccedilatildeo como se viu Tal contrariedade
potildee em perspectiva nesse sentido a excitaccedilatildeo advinda do sensiacutevel para um trabalho
inteligente e faz desse modo reconhecer na αἴζζεζηο um fator para que se decirc a
atividade do pensamento (δηάλνηα e λόεζηο)
121
Cabe verificar a explicaccedilatildeo que o texto oferece acerca da contradiccedilatildeo dos dados
sensiacuteveis como origem deste estiacutemulo com o ldquoexemplo dos dedosrdquo Vale a pena analisar
este argumento e compreender no que consiste essa contradiccedilatildeo seus mecanismos e as
peculiaridades disto que se mostra um estiacutemulo para o processo de cogniccedilatildeo Desse
modo o exemplo utilizado para ilustrar o que se pretende dizer acerca das sensaccedilotildees
mostra primeiro que uma sensaccedilatildeo natildeo provoca a inteligecircncia quando vista
unilateralmente ou dito de outro modo somente sob uma uacutenica caracteriacutestica
ldquo() Aqui estatildeo trecircs dedos o polegar o indicador e o meacutedio
- Eacute bem isso disse
- Pois bem Imagina que deles eu falo como se estivesse sendo
vistos de perto Vamos Observa-me a respeito deles o seguinte
- O quecirc
- Cada um deles tem igualmente a aparecircncia de um dedo e por
aiacute natildeo faz diferenccedila se eacute visto no meio ou como uacuteltimo se branco ou
negro se grosso ou fino e assim quanto a todas qualificaccedilotildees como
essas Eacute que em situaccedilotildees como essas a alma da maioria dos homens
natildeo eacute forccedilada a perguntar agrave inteligecircncia o que eacute um dedo porque a
visatildeo em nenhum momento lhe deu sinal de que um dedo eacute tambeacutem
ao mesmo tempo o oposto de um dedordquo (Rep 523b4-d6)
Uma vez observados os dedos sem levar em consideraccedilatildeo outras caracteriacutesticas
como cor e tamanho o que os diferenciam entre si natildeo apresentam nenhuma
contrariedade e por isso natildeo evocam em nada a inteligecircncia A visatildeo de um dedo
parece ser suficiente para informar que o objeto visto consiste em um dedo se se
pretende reconhecer no que consiste um dedo Diferentemente se considerados em
todas as caracteriacutesticas que se pode atribuir a um dedo como cor tamanho espessura
tem-se naquilo que eacute reconhecido como dedo caracteriacutesticas distintas e contraacuterias
pondo a alma em reflexatildeo sobre as percepccedilotildees dessas caracteriacutesticas O que eacute visto e
dito como um dedo pode ser grande e pequeno afinal o dedo meacutedio e o polegar satildeo
diferentes um do outro e ambos ditos ldquodedordquo Em outros termos reconhece-se no
mesmo sujeito o dedo atributos contraacuterios como grande e pequeno Observe-se que
diferente de compreender as sensaccedilotildees como via direta para a definiccedilatildeo de algo de
modo que sentir seja equivalente a conhecer elas satildeo dadas naquilo que proporcionam agrave
alma isto eacute nada mais que a percepccedilatildeo de dados sensoriais Opostas as sensaccedilotildees
causam algo que pode ser proveitoso se usado corretamente o ἀπνξεῖλ a dificuldade de
ter no mesmo sujeito em questatildeo percepccedilotildees antagocircnicas
122
A dificuldade o impasse no qual a alma se vecirc ao se dar conta de atributos
opostos eacute o que a faz recorrer ao intelecto Eacute nestes termos que se pode compreender a
incitaccedilatildeo (παξαθιεηηθόο ἐγεξηηθόο Rep 523e1) da alma ao pensamento a partir das
sensaccedilotildees a procura por meio da razatildeo de uma resoluccedilatildeo para tal dificuldade de
origem na percepccedilatildeo sensiacutevel
ldquo- Entatildeo disse eu em tais situaccedilotildees a alma natildeo se sentiraacute
necessariamente diante de um impasse (Οὐθνῦλ ἦλ δ ἐγώ ἀλαγθαῖνλ
ἔλ γε ηνῖο ηνηνύηνηο αὖ ηὴλ ςπρὴλ ἀπνξεῖλ) O que afinal eacute a dureza
que essa sensaccedilatildeo indica se da mesma coisa ela diz que tambeacutem eacute
mole E o que eacute a sensaccedilatildeo de leveza e de peso se o pesado eacute leve e
o leve eacute o pesado - E satildeo essas interpretaccedilotildees que desconcertam a
alma e exigem exame (Καὶ γάξ ἔθε αὗηαί γε ἄηνπνη ηῆ ςπρῆ αἱ
ἑξκελεῖαη θαὶ ἐπηζθέςεσο δεόκελαη) (Rep 524a6-b2)
Uma vez discorrido acerca de como ocorre e no que consiste o estiacutemulo das
percepccedilotildees que colaboram com o pensar vale examinar com minuacutecias a caracteriacutestica
dos nuacutemeros e do caacutelculo capaz de pocircr e de promover a superaccedilatildeo desse antagonismo
do sensiacutevel A saiacuteda do impasse posto pela sensaccedilatildeo estaacute nas operaccedilotildees intelectivas que
iratildeo investigar o que eacute a unidade em vista destas vaacuterias percepccedilotildees Assim a alma busca
o que eacute o dedo o pesado ou qualquer outra percepccedilatildeo em questatildeo como jaacute dito mas
nos termos que a matemaacutetica oferece como uma unidade de modo a examinar
(ἐπηζθνπεῖλ Rep 524b4) com o caacutelculo e com a inteligecircncia (ινγηζκόλ ηε θαὶ λόεζηλ) se
cada dado recebido diz respeito a um ou a dois objetos (Rep 524b5) Um e dois
constituem as referecircncias nas quais a alma se baseia para realizar uma interpretaccedilatildeo
(ἑξκελεία Rep524b1) do que lhe sobreveacutem Ela procede verificando primeiro se o
objeto que vecirc corresponde a um ou a dois isto eacute o que lhe aparece como dois eacute
entendido como dois nos termos de duas caracteriacutesticas distintas o pesado e o leve por
exemplo igualmente o que eacute visto tambeacutem eacute um ou seja uma uacutenica caracteriacutestica vista
individualmente o peso e a leveza Cada sensaccedilatildeo pode ser concebida como uacutenica
como peso e leveza as quais ditas deste modo supotildeem a noccedilatildeo e natildeo mais a sensaccedilatildeo
de pesado e de leve Assim podem ser concebidas duas quando entendidas como
sensaccedilotildees e uma quando entendidas nos termos de uma noccedilatildeo de natureza inteligiacutevel
Nesse uacuteltimo as caracteriacutesticas satildeo compreendidas como distintas e separadas
A alma entende nesta operaccedilatildeo que caracteriza o ινγηζκόο a unidade a
duplicidade e a relaccedilatildeo entre os objetos soma divisatildeo e ao fim o que mais interessa ao
123
filoacutesofo a indivisibilidade da unidade tal como seraacute sugerido mais adiante A divisatildeo
que a inteligecircncia opera nos termos da matemaacutetica constitui a divisatildeo (δύν
θερσξηζκέλα) daquilo que nos sentidos eacute apreendido como misturado (ἀρώξηζηά) (Rep
524c) A oposiccedilatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel (ηὸ κὲλ λνεηόλ ηὸ δ ὁξαηὸλ Rep 524c13) ganha
a sua versatildeo nesse argumento ao modo da distinccedilatildeo matemaacutetica isto eacute na dicotomia
confuso - distinto ou junto ndash separado (Rep 524c6-8) Constrangida a apreender as
qualidades separadamente a alma faz a distinccedilatildeo matemaacutetica entre sensiacutevel-inteligiacutevel
ao modo de uma abstraccedilatildeo na qual separa a qualidade percebida em termos inteligiacuteveis
como nuacutemero e relaccedilatildeo Uma vez separadas pelo intelecto qualidades como grandeza e
pequenez podem ser averiguadas individualmente ou conforme os propoacutesitos
filosoacuteficos nelas mesmas (Rep 524c10-11)68
Eacute nesta dicotomia que o nuacutemero se mostra capaz de estimular o exerciacutecio
intelectual do raciociacutenio (ὡο ηὰ κὲλ παξαθιεηηθὰ ηο δηαλνίαο Rep 524d2-3) visto
que potildee a unidade indivisiacutevel e o oposto que sempre a acompanha a multiplicidade (εἰ δ
ἀεί ηη αὐηῷ ἅκα ὁξᾶηαη ἐλαληίσκα Rep 524e2) Este constitui um dado importante acerca
dos nuacutemeros uma vez levantada a hipoacutetese da caracteriacutestica ligaccedilatildeo da matemaacutetica com
o sensiacutevel no Livro VI Neste trecho parece claro que tal ligaccedilatildeo se daacute nessa dicotomia
proacutepria do nuacutemero a qual possibilita tanto uma investigaccedilatildeo em vista da essecircncia
quanto uma ordenaccedilatildeo no que se refere agrave esfera do sensiacutevel Em outras palavras ao
mesmo tempo em que a simultaneidade das percepccedilotildees obriga a alma a buscar a unidade
para distinguir e definir um objeto visto tem-se no nuacutemero uma versatildeo inteligiacutevel para
compreender a pluralidade que tambeacutem caracteriza esse mesmo objeto A matemaacutetica se
mostra assim um modo de inquiriccedilatildeo que colabora com a filosofia ao constituir um
caminho para o estudo do ser Ao mesmo tempo eacute uma disciplina que oferece uma
perspectiva inteligente para o que eacute experienciado69
sendo por essa razatildeo uacutetil tambeacutem
para entender e organizar linhas de batalha como jaacute mostrou o texto (Rep 522e)
68 Trabattoni adverte que o ldquoPortanto natildeo se trata de colher a definiccedilatildeo de cada coisardquo Para o autor o
dinamismo do logos filosoacutefico natildeo tem a intenccedilatildeo de definir o objeto pois uma definiccedilatildeo justamente o
cessaria Assim considera que ldquo() na realidade este verbo [dioriacutezō] para Platatildeo significa muito mais
que definir ldquodistinguir delimitar separarrdquo A ldquodefiniccedilatildeordquo em outras palavras eacute o ato pelo qual certo
objeto eacute delimitado quando eacute individuado atraveacutes de uma especifica atribuiccedilatildeo que o diferencia em meio
agrave confusatildeo de um conjunto de outros objetosrdquo O conhecimento na filosofia natildeo deve ser entendido como
um conhecimento proposicional Trabattoni F 2013 p 169-171
69 Para deixar clara a perspectiva em que o argumento aborda os nuacutemeros os conceitos geomeacutetricos vale
trazer o comentaacuterio de Pierre-Maxime Schuhl sobre o que Platatildeo pretendia extrair dos conhecimentos
matemaacuteticos em oposiccedilatildeo ao prazer esteacutetico que se buscava nas artes especialmente escultura e
arquitetura ldquoApoacutes ter assim falado das belezas geomeacutetricas ndash a preferecircncia que lhes eacute dedicada natildeo haacute
124
Uma vez que trabalham com os nuacutemeros o caacutelculo e a aritmeacutetica estimulam
intelectualmente a alma atraveacutes do estudo da unidade a investigar a essecircncia
conduzindo-a a contemplaccedilatildeo do ser e por consequecircncia agraves qualidades proacuteprias do
inteligiacutevel como a verdade (Rep 524e5-525b1) Nisto consiste a superaccedilatildeo que a
matemaacutetica de fato proporciona a elevaccedilatildeo do sensiacutevel em busca da essecircncia inteligiacutevel
cujo exerciacutecio deste movimento torna haacutebil o guerreiro e o filoacutesofo para a funccedilatildeo que
lhes cabem ndash (εἶλαη γελέζεσο ἐμαλαδύληη Rep 525b5-6) Note-se que o argumento natildeo
sugere uma aquisiccedilatildeo da matemaacutetica anaacuteloga ou equivalente ao que se tem na filosofia
Mesmo que haja tal elevaccedilatildeo no exerciacutecio do raciociacutenio aritmeacutetico natildeo eacute a mesma que
mostraraacute a dialeacutetica visto que natildeo atinge a essecircncia mas a sugere atraveacutes da unidade e
do conhecimento da verdade
Como se viu o questionamento acerca do que eacute o um para o matemaacutetico gira
em torno do objeto que observa tendo em consideraccedilatildeo pode-se presumir a noccedilatildeo de
unidade em relaccedilatildeo agrave sua multiplicidade tendo em vista as relaccedilotildees que manteacutem com
ela soma divisatildeo multiplicaccedilatildeo O tratamento inteligente que pode oferecer ao sensiacutevel
exige ainda assim uma superaccedilatildeo das percepccedilotildees que satildeo postas em termos
aritmeacuteticos mas entretanto o objetivo maior consiste no trabalho com o caacutelculo que os
nuacutemeros possibilitam Natildeo parece haver portanto um questionamento acerca da
inteligibilidade da unidade sua natureza e relaccedilatildeo com o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico como
questionaria o filoacutesofo fazendo com que o matemaacutetico permaneccedila em um grau inferior
de elevaccedilatildeo comparado ao dialeacutetico
ldquo- Essa ciecircncia como diziacuteamos haacute pouco com muita forccedila
conduz a alma para o alto e a obriga a discutir a respeito dos
proacuteprios nuacutemeros sem jamais admitir discussatildeo caso algueacutem lhe
proponha nuacutemeros que tenham corpos visiacuteveis e palpaacuteveis Deves
saber que os peritos nesses assuntos se algueacutem usando a sua razatildeo
tenta dividir a proacutepria unidade fazem caccediloada e natildeo admitem isso
Se poreacutem tu a fazes em pedaccedilos eles a multiplicam para que jamais a
unidade se mostre como natildeo una mas como muitas partiacuteculas (ἀιι
ἐὰλ ζὺ θεξκαηίδῃο αὐηό ἐθεῖλνη πνιιαπιαζηνῦζηλ εὐιαβνύκελνη κή
πνηε θαλῆ ηὸ ἓλ κὴ ἓλ ἀιιὰ πνιιὰ κόξηα)rdquo (Rep 525d5e4)
nada de surpreendente pois elas deixam entrever as Ideias e os nuacutemeros com cujo auxiacutelio o demiurgo
deu sua forma definitiva aos elementos ()rdquo Schuhl P M op cit p 78
125
Nesse sentido o estiacutemulo que a aritmeacutetica daacute agrave λόεζηϛ eacute indireto sendo a
operaccedilatildeo intelectual da δηάλνηα ao modo do ινγηζκόο um degrau de ascensatildeo
inteligiacutevel
Dadas nesta perspectiva as matemaacuteticas explicam a origem da ascensatildeo do
domiacutenio sensiacutevel para o domiacutenio inteligiacutevel que o Livro VI indicou no exemplo da linha
dividida O acreacutescimo fundamental do ldquoargumento dos dedosrdquo para explicar a noccedilatildeo de
ascese vale notar consiste na reaccedilatildeo inteligente ao sensiacutevel que o argumento mostra
com a oposiccedilatildeo uno-muacuteltiplo operada pela aritmeacutetica a qual deixa evidente a ligaccedilatildeo
entre um plano e outro e o salto do ηόπνπ ηὸ ὁξαηνῦ para o ηὸ λνεηνῦ γέλνπο efetuada
pelo pensamento Natildeo se trata de oferecer um parecer e uma classificaccedilatildeo agrave atividade
racional de acordo com as qualificaccedilotildees sensiacutevel-inteligiacutevel como anteriormente mas
mostrar nesta experiecircncia do conhecimento tal como quer mostrar o Livro VII ao
oferecer um modelo de educaccedilatildeo porque e como as disciplinas se mostram
verdadeiramente uacuteteis para despertar e conduzir a alma para uma elevaccedilatildeo desse tipo O
argumento responde de certo modo as indagaccedilotildees acerca dos seres matemaacuteticos e da
sua cogniccedilatildeo sendo indicados o nuacutemero como o objeto proacuteprio da matemaacutetica a
unidade como o elemento inteligiacutevel primordial e o caacutelculo como a operaccedilatildeo racional
especiacutefica para este conhecimento O grau de inteligibilidade dos objetos matemaacuteticos
ganha elucidaccedilatildeo com as explicaccedilotildees sobre a unidade a qual do mesmo modo que o
meacutetodo natildeo tem sua natureza inteligiacutevel posta em questatildeo Em outros termos a
exemplo do que se viu na linha o matemaacutetico natildeo busca o um essencial agrave unidade
ficando restrito agraves operaccedilotildees que pode realizar com ele - diga-se de passagem restriccedilatildeo
bastante parecida com a que se identifica no procedimento demonstrativo Todavia tal
restriccedilatildeo serve tambeacutem para revelar o ensino da matemaacutetica como conhecimento
estrateacutegico na educaccedilatildeo do futuro governante e como atividade racional fundamental
para a elevaccedilatildeo da alma ao niacutevel mais alto de sua capacidade inteligente
V A perspectiva da inteligecircncia
A apreensatildeo do ser e da ideia segundo a λόεζηϛ constitui uma forma de visatildeo
que oferece agrave alma o objeto apreendido em sua integralidade Agrave primeira vista uma
126
afirmaccedilatildeo deste tipo pode induzir a questionar a essecircncia ou a ideia como compostos
cujas partes seriam caracteriacutesticas conhecidas no decorrer do exerciacutecio dialeacutetico Esse
natildeo consiste em um raciociacutenio naife se estiver em vista a noccedilatildeo de θαη ἰδέαλ κίαλ
ἑθάζηνπ ὡο κηᾶο νὔζεο ηηζέληεο a ideia uacutenica que exprime a realidade a essecircncia (ldquoὃ
ἔζηηλrdquo ἕθαζηνλ) (Rep 517b) e por isso tais caracteriacutesticas Outra maneira de
compreender consiste em julgar que os atributos conhecidos pelo exerciacutecio do
pensamento no niacutevel matemaacutetico ou mesmo no niacutevel dialeacutetico como a verdade ou a
unidade formam todo o composto que a essecircncia exprime alternativa que o argumento
sobre as matemaacuteticas natildeo autoriza visto que o meacutetodo aritmeacutetico ou geomeacutetrico por
exemplo natildeo pretende conhecer a ideia e sim a unidade os conceitos e as operaccedilotildees
realizaacuteveis nesta arte Isso valeria para a dialeacutetica mas natildeo para as matemaacuteticas A
terceira opccedilatildeo a que parece mais fiel agraves dificuldades de se compreender no que consiste
uma visatildeo total do ser na dialeacutetica deixa somente a essecircncia como o que consituiu o
todo de um objeto sendo o pensamento nos termos da intelecccedilatildeo maacutexima capaz de
apreender o ser e consequentemente algumas caracteriacutesticas ataacutevicas a ele como
parece ser o caso da verdade O sentido de totalidade ou integralidade inspirado pela
declaraccedilatildeo da capacidade do dialeacutetico deve ser tomado ao que parece como o conjunto
de atributos da essecircncia apreendidos com o treino nas disciplinas matemaacuteticas o uno
imutaacutevel e invisiacutevel tal como apresenta o argumento no qual se fala das capacidades
cognitivas do aprendiz da arte dialeacutetica
ldquo- Depois desse periacuteodo disse eu a partir dos vinte anos os que
tiveram preferecircncia na escolha receberatildeo honras maiores que os
outros e as noccedilotildees que nessa etapa da educaccedilatildeo crianccedilas que eram
natildeo receberam sistematicamente deveratildeo ser reunidas para que elas
numa visatildeo de conjunto vejam a afinidade que as ciecircncias tecircm entre
si e tambeacutem a natureza do ser (νἱ πξνθξηζέληεο ηηκάο ηε κείδνπο ηῶλ
ἄιισλ νἴζνληαη ηά ηε ρύδελ καζήκαηα παηζὶλ ἐλ ηῆ παηδείᾳ γελόκελα
ηνύηνηο ζπλαθηένλ εἰο ζύλνςηλ νἰθεηόηεηόο ηε ἀιιήισλ ηῶλ
καζεκάησλ θαὶ ηο ηνῦ ὄληνο θύζεσο)
- Pelo menos falou soacute um aprendizado como esse permaneceraacute
firme naqueles em que vier a ocorrer
- Essa eacute a maior prova disse eu de que uma natureza eacute ou natildeo eacute
apta para a dialeacutetica Quem eacute capaz de visatildeo de conjunto estaacute apto
para a dialeacutetica e quem natildeo eacute capaz natildeo estaacute (Καὶ κεγίζηε γε ἦλ δ
ἐγώ πεῖξα δηαιεθηηθο θύζεσο θαὶ κή ὁ κὲλ γὰξ ζπλνπηηθὸο
δηαιεθηηθόο ὁ δὲ κὴ νὔ)ldquo (Rep 537b8-c7)
A visatildeo que o dialeacutetico possui versa sobre o inteligiacutevel isto eacute sobre a natureza
inteligiacutevel do ser e a relaccedilatildeo de familiaridade entre as disciplinas como dito antes (Rep
127
531d) A inteireza com que se pode tomar o inteligiacutevel envolve tambeacutem deve-se
observar um olhar sobre as ηέρλαη com as quais se exercita O treino do aprendiz
requer ao mesmo tempo um exame acerca dos aprendizados que recebe devendo ver
nesses natildeo somente o que eles tecircm por objeto mas tambeacutem o meacutetodo e os resultados de
cada um Assim tal como mostra o contexto da παηδεία a noccedilatildeo de totalidade de visatildeo
que demonstra ter o dialeacutetico eacute composta pela apreensatildeo da realidade e pelo olhar criacutetico
sobre o procedimento das artes sendo esta a perspectiva tiacutepica do dialeacutetico Tal visatildeo
confere a ele deve-se observar um caraacuteter cientificista dado que aposta nos
procedimentos e nos paracircmetros racionais - o princiacutepio natildeo-hipoteacutetico o ser e a ideia do
bem - para obter o conhecimento de algo A ἐπηζηήκε sob esse acircngulo consiste na
visatildeo dessa integralidade para a qual o dialeacutetico eacute naturalmente inclinado e que se
constitui consequentemente tambeacutem de um exame sobre as operaccedilotildees racionais
expressas nos diferentes meacutetodos que se dispotildee para atingir os inteligiacuteveis70
Desse modo justifica-se que a destreza que se desenvolve pelo treinamento dado
pela educaccedilatildeo deve ser permanentemente exercitada por via do movimento de subida e
descida dialeacutetica A habilidade em inspecionar o objeto em questatildeo exige a inspeccedilatildeo
sobre os meacutetodos racionais uma autoinspeccedilatildeo para garantir ao final o conhecimento
Da mesma maneira na vida puacuteblica tal inspeccedilatildeo serve para assegurar um modo de vida
no qual se decirc o devido respeito e a obediecircncia ao que de fato se deve conhecer e seguir
a verdade o belo a justiccedila e o bem Sem a clara compreensatildeo do que consiste o
exerciacutecio dialeacutetico os aprendizes correm o risco de confundi-la com a arte eriacutestica ou
retoacuterica deixando reduzirem tais noccedilotildees ao niacutevel das opiniotildees (θαὶ πνιιάθηο θαὶ
πνιιαρῆ ἐιέγρσλ εἰο δόμαλ θαηαβάιῃ Rep 538d9) corrompendo assim o processo de
aprendizado e formaccedilatildeo intelectual e moral do futuro governante (Rep Rep 538d6-
539a1) e solapando a credibilidade na filosofia antes adquirida (Rep 539b9-c3) A
postura inteligente que se exprimiraacute mais tarde no governo depende dessa maneira da
dedicaccedilatildeo contiacutenua agrave filosofia por meio do exerciacutecio racional que garantiraacute o exerciacutecio
70 Gosling entende tal visatildeo como uma percepccedilatildeo intelectual da Forma provocada pelo exerciacutecio
dialeacutetico Este tipo de percepccedilatildeo como denomina oferece o conhecimento nos termos de uma
consciecircncia acerca do que se examina Gosling The Argument of the Philosophers p 120 O autoexame
que o exerciacutecio filosoacutefico propotildee tal como aqui se verifica realiza-se na observaccedilatildeo das accedilotildees segundo o
meacutetodo empregado para conhecer e consequentemente na apreensatildeo dessa Forma que constitui o
conhecimento O comentaacuterio do autor nesse sentido vai ao encontro do que aqui se analisa embora
aponte apenas para o que resulta do exerciacutecio A apreensatildeo da realidade e a autoinspeccedilatildeo que acontecem
na dialeacutetica compotildeem pelo que se vecirc esta ldquoconsciecircnciardquo de que fala Gosling dado que o conhecimento
natildeo seria possiacutevel sem que houvesse a atividade intelectual a partir do meacutetodo correto e adequado
128
do governo a favor da cidade como uma accedilatildeo inevitaacutevel dado que estaacute treinado a
contemplar a ideia do bem e desse modo tecirc-lo como modelo (Rep 540a-b)
A semelhanccedila entre filoacutesofo e cidade dita no final do Livro VII (Rep 541b) se
cumpre na medida em que as accedilotildees tanto intelectuais quanto poliacuteticas tenham como
paracircmetro o mesmo elemento o bem e a ideia do bem e sejam realizadas segundo a
operaccedilatildeo da alma que reconhece esta relaccedilatildeo a inteligecircncia A visatildeo de todo que o
dialeacutetico possui garante a frequentaccedilatildeo de maneira inteligente nos planos poliacutetico eacutetico
e cientiacutefico uma vez que constitui a perspectiva na qual identifica as vias inteligiacuteveis
comuns em todos os campos Como dispotildee da capacidade de reconhecer o elo comum
entre as ciecircncias natildeo seria de todo impossiacutevel reconhecer da mesma forma as relaccedilotildees
de afinidade entre o que observa ainda que seja no plano sensiacutevel no qual se daacute a vida
poliacutetica Nesse sentido natildeo se pode abrir matildeo do movimento racional da inteligecircncia
fundamentalmente ἀλάβαζηο e θαηάβαζηο o qual proporciona o reconhecimento das
ligaccedilotildees inteligiacuteveis entre objetos e campos diferentes e permite ao filoacutesofo governante
o trabalho intelectual de inteligir e realizar o exerciacutecio poliacutetico de governar a cidade
Pode-se supor que sem esta peculiaridade da ζύλνςηο natildeo haveria uma maneira
inteligente com a qual o filoacutesofo pudesse mobilizar as partes da cidade para governaacute-las
A visatildeo do todo caracteriacutestica do dialeacutetico consiste assim na apreensatildeo da essecircncia e
da ideia que se realiza com a intelecccedilatildeo ao modo da λόεζηϛ por via do reconhecimento
das relaccedilotildees e aspectos inteligiacuteveis entre os elementos que se tem em exame71
Cabe ainda um debate sobre a ζύλνςηο Para isso vale ter em mente as
limitaccedilotildees expostas no iniacutecio da investigaccedilatildeo sobre a possibilidade de conhecer o bem
Conveacutem lembrar que o estudo acerca do bem se realiza a partir do exame daquilo que a
ele se assemelha e possui propriedades iguais ao bem a ideia do bem analogamente dito
ldquofilho do bemrdquo Natildeo se teve a pretensatildeo com isso de compreender o bem ou mesmo a
ideia do bem em toda a sua magnitude mas somente na medida em que eacute possiacutevel
apreendecirc-los Um estudo acerca da racionalidade isto eacute seus objetos gecircneros
operaccedilotildees procedimentos e alcances como mostraram os argumentos analisados nos
Livros VI e VII apresenta um perfil racional da alma condizente com a natureza e
habilidades do dialeacutetico que eacute educado para ser plenamente consciente dos limites e
alcances cognitivos (Rep 532b1-2) A visatildeo que a alma adquire com a dialeacutetica
71 Em outros termos Chen define assim a ζύλνςηο ldquoSynopsis eacute a atividade da visatildeo de conjunto (seeing-
together) intelectual dos casos ζπγγελή de uma ideia na visatildeo da ideia ao longo da linha de relaccedilatildeo de
derivaccedilatildeordquo Chen op cit p 187
129
demonstra a sua capacidade de ver com clareza tal como sugerido em 533e nesse
sentido equivalente a apreender a realidade Natildeo parece haver no caso da ζύλνςηο algo
como uma visatildeo suacutebita na qual a alma ao fim de um processo repentinamente se depara
com o real As exigecircncias do meacutetodo dialeacutetico demonstram que o processo eacute o que
determina tal apreensatildeo como resultado e natildeo se teria a visatildeo da ideia sem o percurso
anterior no qual se orienta a visatildeo para as coisas inteligiacuteveis72
Em outras palavras a visatildeo ao ser orientada para ver os inteligiacuteveis adquire aos
poucos a habilidade de ver com clareza ou seja de apreender o que eacute do gecircnero
inteligiacutevel constituindo desse modo uma clarividecircncia primeiro sobre as relaccedilotildees
inteligentes como se daacute nas matemaacuteticas e depois sobre o ser as ideias e tudo que seja
do gecircnero inteligiacutevel e possa evidentemente ser apreendido pelo intelecto A
consequecircncia importante da apreensatildeo da visatildeo do todo como se mostra a ζύλνςηο diz
respeito agrave possibilidade de conhecer o justo e as virtudes ou seja aquilo que natildeo eacute dado
precisamente como uma forma mas que no entanto soacute pode ser inferido no caso da
justiccedila e adquirido no caso das virtudes com a visatildeo sinoacuteptica dada por meio do
trabalho da inteligecircncia Natildeo se trata de uma ἐμαίθλεο onde a alma subitamente capta a
ideia como um salto cognitivo Compreender assim a visatildeo do todo seria infiel ao
trabalho de preparaccedilatildeo do pedagogo que pretende uma progressatildeo cognitiva O
resultado do trabalho dialeacutetico como bem mostrou a alegoria da caverna depende de
um treino de conversatildeo em que consiste a educaccedilatildeo da alma na direccedilatildeo da ideia um
processo paulatino de ascensatildeo a um grau cognitivo superior que condiciona a alma a
ter tal clareza ou seja a discernir e operar com as ideias mesmo ao lidar com o domiacutenio
visiacutevel como visto O dialeacutetico natildeo abandona tal perspectiva inteligente e ao continuar
operando com ideias demonstra possuir uma visatildeo integral que natildeo se daria ao que
72 Trabattoni tem o seguinte entendimento sobre a metaacutefora da visatildeo a qual descreve uma apreensatildeo
dialeacutetica e natildeo uma intuiccedilatildeo o que tambeacutem se defende nessa argumentaccedilatildeo ldquoAo indicar a instantacircnea
precisatildeo do conhecimento natildeo mediado pelo loacutegos estruturado e descritivo da linguagem a metaacutefora
taacutetil neste caso seria anaacuteloga agravequela oacutetica Como demonstra por outro lado no confronto com 511b4
ao exprimir um conhecimento de caraacuteter discursivo a expressatildeo taacutetil natildeo eacute menos idocircnea daquelas
oacuteticas a faculdade que colhe os objetos relativos ao quarto segmento da linha natildeo eacute portanto a visatildeo
ou a intuiccedilatildeo intelectual mas o loacutegos compreendido na sua plena capacidade do dialeacutegesthai ou seja
de raciocinar dialeticamente Confirma-se assim que a extensatildeo de modelos tiacutepicos do conhecimento
sensiacutevel e intelectual possuem valores metafoacutericos e que consequentemente o uso destas metaacuteforas natildeo
diz nada de decisivo acerca da natureza do conhecimento Cabe pontuar que a dyacutenamis toũ dialeacutegesthai
representa a capacidade universalizante do logos e eacute um instrumento ativo e fomentador do movimento e
da relaccedilatildeo entre o particular e o universal entre a multiplicidade e a unidade De fato esta eacute a funccedilatildeo
da dialeacuteticardquo Trabattoni op cit p 161 Deve-se entender ldquovisatildeordquo ou ldquotocarrdquo como metaacutefora da
apreensatildeo das ideias realizada pela dialeacutetica Natildeo parece haver como apontou Trabattoni a intenccedilatildeo de
mostrar a possibilidade de aquisiccedilatildeo sem o trabalho da dialeacutetica e de todo o processo de conversatildeo ao
inteligiacutevel promovido pela educaccedilatildeo O conhecimento da ideia exige como se tem visto a preparaccedilatildeo da
alma para tal
130
parece sem poder operar no niacutevel tal qual supotildee o estado de λόεζηϛ A inteligecircncia
nesses termos constitui a visatildeo do todo e ldquoter inteligecircnciardquo significa natildeo sair deste
estado natildeo perder esta perspectiva
Pelo que foi analisado a alma pode descer a um domiacutenio inferior sem descer de
niacutevel cognitivo Parece natildeo haver relaccedilatildeo necessaacuteria entre ir agraves sombras e deixar de ser
dialeacutetico Todavia deve-se admitir que precisar o momento desta visatildeo consiste em uma
tarefa bastante difiacutecil e cabiacutevel somente na medida em que se distingue os dois graus de
cogniccedilatildeo δηάλνηα e λνῦο A δηάλνηα natildeo constitui uma visatildeo do todo porque com seu
modo de operar a alma natildeo apreende o caraacuteter ontoloacutegico dos objetos o que eacute a unidade
ou o triacircngulo atendo-se ao aspecto formal e operacional desses - a unidade como
referecircncia numeacuterica o triacircngulo uma forma geomeacutetrica de trecircs lados O que parece
afirmar a visatildeo do todo como uma condiccedilatildeo do dialeacutetico eacute o movimento ascendente ndash
descendente cuja descida se realiza utilizando exclusivamente ideias o que natildeo
configura desse modo uma descida de niacutevel cognitivo A visatildeo ao modo de uma
ζύλνςηο descreve assim um estado elevado da alma cuja capacidade intelectual
apreende a ideia inteligiacutevel e o que se pode inferir a partir dela
A possibilidade de inferecircncia e de conhecimento por parte do filoacutesofo do que eacute
justo e das virtudes se tornam conjugadas com a boa praacutetica poliacutetica a partir das relaccedilotildees
inteligentes as quais tecircm como paracircmetro o inteligiacutevel e que se pode realizar nos termos
da descida do filoacutesofo O condicionamento a um estado de λόεζηϛ e ζύλνςηο resultante
deste exerciacutecio faz supor assim que se trata do estado contemplativo propiciado pela
filosofia no qual se conhece coisas tal como o belo o bom e o justo desta vez dito no
contexto do processo cientiacutefico e do exerciacutecio poliacutetico Longe de consistir em uma
apariccedilatildeo o que se diz da visatildeo do inteligiacutevel sugere assim a construccedilatildeo de uma
perspectiva proacutepria para atingir e lidar com o que eacute real que se realiza antes de tudo a
partir da capacidade de estabelecer determinadas relaccedilotildees utilizando as capacidades
racionais como a cogniccedilatildeo73
Deve-se admitir que ao descrever o fim do processo nos termos de uma visatildeo o
texto abre caminho para algumas interpretaccedilotildees acerca do que consiste de fato a
73 A visatildeo da alma como parece ser a ζύλνςηο apresenta-se desse modo bastante diferente do que se
tem em O Banquete talvez o exemplo mais direto de que venha a ser uma visatildeo do Belo inteligiacutevel nos
termos de uma ἐμαίθλεο ( ) de um salto impetuoso que leva o homem para o estado de contemplaccedilatildeo O
impulso eroacutetico orientado pelo exerciacutecio filosoacutefico permite a visatildeo do Belo e a vivecircncia inteligiacutevel tal
como se tem n‟A Repuacuteblica (211a-b) A diferenccedila entre as narrativas eacute que o Banquete traz uma
descriccedilatildeo deste salto da abrupta aquisiccedilatildeo do Belo como uma visatildeo que irrompe diante da alma enquanto
n‟A Repuacuteblica a ecircnfase da visatildeo Inteligiacutevel ou perspectiva inteligente ao que parece se volta para o
desenrolar da apreensatildeo intelectual que encontra termo no exerciacutecio pedagoacutegico e poliacutetico
131
aquisiccedilatildeo do conhecimento operada pela inteligecircncia Jaacute foi posta a dificuldade em
precisar a passagem na qual se tem a visatildeo da ideia Do mesmo modo jaacute se comentou
sobre a pertinecircncia de considerar o movimento completo da inteligecircncia composto pela
apreensatildeo e pelo estabelecimento de relaccedilotildees tendo a ideia como paradigma O
comentaacuterio de Gosling natildeo estaacute tatildeo distante de algumas conclusotildees das uacuteltimas anaacutelises
sobre a ζύλνςηο realizadas aqui que contra essa posiccedilatildeo diz
ldquoA ecircnfase eacute entretanto sobre unidades isolaacuteveis em contraste
com os particulares multiformes que manifestam um hospedeiro de
propriedades em uma mistura confusa A exigecircncia de que estas
unidades devem ser definiacuteveis conduz no entanto ao sentido de que
natildeo satildeo isolaacuteveis mas constituiacuteram eles mesmos um conjunto inter-
relacionado Isto produziu dificuldades para a visatildeo perceptiva do
conhecimento e um progresso gradual para ver o conhecimento como
proposicionalrdquo74
Ainda que adote uma saiacuteda tiacutepica de uma interpretaccedilatildeo que defende um saber
proposicional Gosling admite a progressatildeo de um conhecimento negando
evidentemente uma apreensatildeo intuitiva Ao que tudo indica o movimento que leva agrave
visatildeo do todo natildeo pode ser tomado no sentido de um aparecimento imprevisto
incalculado de algo que se pretendia buscar cujo alcance era completamente incerto Ao
contraacuterio o sentido que parece se alinhar com o que se tem visto sobre a inteligecircncia
satildeo justamente as inferecircncias que se pode fazer sobre o Bem e os conhecimentos que se
pode ter a partir da ideia Assim o objetivo maior do filoacutesofo natildeo tem em vista um
conhecimento proposicional como chegou a falar o comentador mas tambeacutem
pressupotildee um trabalho deste tipo visto que a apreensatildeo das ideias torna possiacutevel a
definiccedilatildeo e o trabalho dialeacutetico passa pela anaacutelise de premissas O que estaacute em questatildeo
diz respeito ao meu ver acerca do alvo maior o bem e no caso do Feacutedon da
imortalidade portanto diz respeito agravequilo que uma atividade intelectual como a
dialeacutetica e uma perspectiva como a synoacutepsis podem oferecer sobre desses
O proacuteprio Gosling mais adiante traccedila uma definiccedilatildeo do que venha ser uma visatildeo
segundo as imagens do conhecimento que o texto apresenta na qual potildee em questatildeo a
74 Gosling The Argument of the Philosophers p 121
132
concepccedilatildeo de que a visatildeo do dialeacutetico consiste em algo como uma intuiccedilatildeo ou uma
percepccedilatildeo intelectual ele diz
ldquoPrimeiro por elas (imagens do conhecimento) se ajustam a
apreensatildeo final ou progressiva do conjunto de inter-relaccedilotildees De fato
em ambos Symposium e Repuacuteblica eacute o que a linguagem tende a
sugerir Em ambos o estaacutegio final eacute tomado como um resultado cada
vez mais amplo de consideraccedilotildees sinoacutepticas no Symposium (210d) bdquoo
vasto oceano de beleza‟ e na Repuacuteblica o bdquosistema solar das Formas‟
A visatildeo eacute a explicaccedilatildeo de porque todas as coisas belas satildeo chamadas
belas na Repuacuteblica a explicaccedilatildeo do que torna boas todas as coisas
boasrdquo75
O comentador compreende a visatildeo como uma explicaccedilatildeo (explanation)
apontando a relaccedilatildeo de causalidade entre ideia e existentes que com ela se relacionam -
o bem e coisas boas Ao que parece a visatildeo para o autor tem um caraacuteter de identificar
e demonstrar nos termos que uma explicaccedilatildeo pretende tal relaccedilatildeo enquadrando-se
muito mais em processo do que em uma apariccedilatildeo na mente
Natildeo se pretende defender aqui que o conhecimento nesse contexto equivale a
um fenocircmeno que se daacute no intelecto uma percepccedilatildeo intelectual como aponta Gosling
A cogniccedilatildeo envolve operaccedilotildees como a comparaccedilatildeo a deduccedilatildeo a soma por exemplo
que natildeo permitem uma interpretaccedilatildeo da visatildeo como uma passiva recepccedilatildeo da imagem
da ideia Na tentativa de precisar a passagem para o grau da inteligecircncia superando
assim o niacutevel do raciociacutenio matemaacutetico Chen considera a visatildeo como um ato cognitivo
em que se apreende o que pertence ao gecircnero inteligiacutevel
ldquoAo ser educado na dialeacutetica a alma toma instacircncias syggene
por um uacutenico ato da cogniccedilatildeo (by a single act of cognition) que
termina em uma visatildeo do seu genos comum Agora posto em uma
linguagem de relaccedilatildeo o resultado eacute quando volta para conhecer o
referente da segunda relaccedilatildeo ela se move ao longo dessa linha de
relaccedilatildeo para um relatum a visatildeo do que eacute obtido simultaneamente
com a chegada da alma diante dele ndash ou posto simbolicamente (hsup1 +
hsup2 + hn) RH Entatildeo a terceira fronteira eacute cruzada e foi cruzada por
meio da synopsis76
Segundo o comentaacuterio de Chen a visatildeo sinoacuteptica consiste na visatildeo da ideia no
instante em que esta se apresenta mas eacute o que se tem na descese O comentaacuterio eacute
75 idem pg 123
76 Chen op cit p 165
133
pertinente no sentido de que potildee a diferenciaccedilatildeo entre a visatildeo do todo pela dialeacutetica e a
visatildeo parcial que proporciona as matemaacuteticas Entretanto considerar apenas a tomada
da ideia como um ldquouacutenico ato cognitivordquo parece irrelevar a permanecircncia da alma nesse
estado de λόεζηϛ no qual finalmente ela demonstra ldquoter inteligecircnciardquo condiccedilatildeo
importante para as questotildees pedagoacutegicas e poliacuteticas como visto aqui
O que fazer com o movimento da alma ao longo da linha de relaccedilotildees que ela
pode efetuar Se para isso haacute a visatildeo sinoacuteptica como ele proacuteprio compreende estar
presente como entender a ζύλνςηο como um ato Esta posiccedilatildeo parece ser atenuada pelo
proacuteprio Chen mais adiante77
A atividade intelectual que o meacutetodo dialeacutetico exige
mostra as relaccedilotildees operadas pela inteligecircncia e os inteligiacuteveis aiacute utilizados como os
seres matemaacuteticos como os intermediaacuterios para a visatildeo sinoacuteptica Em treinamento o
filoacutesofo ao longo de sua educaccedilatildeo aprendeu a reconhecer e a utilizar os elementos e as
relaccedilotildees inteligiacuteveis que as disciplinas oferecem uma vez que domina a arte dialeacutetica
ele faz este mesmo reconhecimento e estabelece relaccedilotildees de acordo com as exigecircncias
do meacutetodo A visatildeo tal como sugere a ζύλνςηο supotildee natildeo somente a tomada da ideia
mas o trabalho que se pode fazer posteriormente tendo-a como referecircncia Nesse
sentido ζύλνςηο constitui uma perspectiva especiacutefica capaz de identificar a ideia do
bem e compreender as ideias que subsidiam os valores morais pilares para o bom
governo que soacute o filoacutesofo pode conhecer
Conclusotildees sobre a λόεζηϛ
O pensamento pode ser em resumo definido como a atividade que a alma
realiza por meio de suas disposiccedilotildees intelectuais em busca do seu objeto de desejo o
bem Nos livros VI e VII de A Repuacuteblica o pensar constitui a experiecircncia gnosioloacutegica
de tornar a alma apta a fazer esta busca e se elevar a uma condiccedilatildeo de excelecircncia a qual
se torna possiacutevel com o desenvolvimento de sua capacidade inteligente no seu maacuteximo
grau dita inteligecircncia (θξόλεζηϛ e λόεζηϛ) A inteligecircncia ponto maacuteximo de cogniccedilatildeo
da alma eacute constituiacuteda de uma perspectiva distinta por meio da qual se pode obter o
77 Note-se que a explicaccedilatildeo sobre a apreensatildeo das ideias como um golpe apresenta-se de fato como algo
que parece se dar em partes ao longo de um processo ldquoA exigecircncia de ver em conjunto todas as
instancias do Bem a fim de atingir a visatildeo desta ideia em todos os seus aspectos eacute claro somente um
ideal O que atualmente eacute exigido natildeo eacute tatildeo radical Para obter a visatildeo da ideia do bem tomar as
instacircncias em grupos natildeo individualmente seria o bastante () Chen op cit p 172 nota 8
134
autecircntico conhecimento (ἐπηζηήκε) Nesse niacutevel tem-se o ponto alto do desdobramento
das capacidades intelectivas da alma sendo o conhecimento portanto natildeo mais uma
atividade de cogniccedilatildeo (γλνζηϛ) apenas mas uma perspectiva distinta que consiste em
atingir seres do domiacutenio inteligiacutevel identificar relaccedilotildees inteligiacuteveis e apreender a ideia
do bem o alvo mais importante no contexto do texto Tal perspectiva confere ao
filoacutesofo dono por natureza desta aptidatildeo a habilidade de governo uma vez que o
conhecimeno que a inteligecircncia propicia pode atingir as ideias sob as quais se deve
organizar a cidade justa Por via da atividade inteligente torna-se possiacutevel conhecer a
justiccedila e assim realizar o bom governo uma vez que com a perspectiva privilegiada do
todo e da ideia do bem se pode inferir acerca das noccedilotildees que fundamentam os valores
Ao que tudo indica somente por meio de relaccedilotildees estabelecidas pela inteligecircncia se
adquire o discernimento necessaacuterio para inquerir e executar com base na ideia do bem
o que a cidade tem como demanda
Desse modo a avaliaccedilatildeo das questotildees que se apresentam no cenaacuterio eacutetico-
poliacutetico tal como a investigaccedilatildeo acerca delas daacute-se de maneira apropriada e justa a
partir de um governo que encontra seus fundamentos no exerciacutecio intelectual da
filosofia e em uma epistemologia tal como esta elabora Na figura do filoacutesofo
governante como se viu accedilatildeo poliacutetica e exerciacutecio intelectual satildeo aliados na organizaccedilatildeo
da cidade ideal denotando o papel do pensamento sobretudo da inteligecircncia como a
disposiccedilatildeo propiacutecia para o bom governo e para as accedilotildees justas O pensar em seu modo
excelente consiste em ultima instacircncia na atividade intelectual que busca igualmente
conhecer o que eacute justo e virtuoso ao ter em vista o Bem
Haja vista a importacircncia do pensar no que se refere agrave alma do filoacutesofo pode-se
afirmar o papel mobilizador da atividade intelectual no contexto poliacutetico como o
exerciacutecio com o qual se realiza o cumprimento da natureza da alma filosoacutefica Visto
desse acircngulo θξόλεζηϛ e λόεζηϛ demonstram a distinccedilatildeo da alma justa do filoacutesofo ao
mostraacute-la como a alma que pocircs em exerciacutecio suas naturais habilidades dispondo de suas
capacidades cognitivas para tal Ao adquirir conhecimento a alma filosoacutefica tem os
elementos ideais necessaacuterios para lanccedilar um olhar sobre as operaccedilotildees que ela mesma
realiza e para as questotildees da cidade conquistando assim sua excelecircncia no contexto
eacutetico e poliacutetico ao tornar-se com isso justa e apta para governar A cidade justa
demonstra desse modo sua base intelectual na qual o pensar dado na figura do filoacutesofo
governante eacute o agente mobilizador fundamental para pocircr a cidade de acordo com o que
eacute justo e com o que eacute bom
135
Tal como se mostra a importacircncia do estabelecimento de fundamentos racionais
para a vida poliacutetica em uma perspectiva inversa se pode admitir que o conhecimento
constitui uma questatildeo moral A busca pela excelecircncia do pensamento e pelo verdadeiro
conhecimento se mostra o meio de haver justiccedila tanto para a alma do filoacutesofo que teraacute
cumprido as determinaccedilotildees de sua natureza intelectualista sendo por consequecircncia
justo quanto para a cidade que teraacute por via de um governante orientado pela razatildeo os
meios para que as partes coexistam em harmonia e haja enfim a justiccedila Caso natildeo
houvesse empenho em conhecer a ideia do bem por parte do filoacutesofo hipoacutetese que os
livros VI e VII natildeo colocam mas sobre cujas consequecircncias cabe imaginar em uacuteltima
instacircncia a justiccedila e as virtudes natildeo seriam possiacuteveis nem o filoacutesofo nem a cidade
seriam justos A investigaccedilatildeo acerca do exerciacutecio do pensamento tal como mostrou os
dois livros analisados revela sua utilidade sobretudo ao pocircr em evidecircncia a
possibilidade e os meios de atingir a justiccedila e as virtudes desse modo a ligaccedilatildeo entre o
domiacutenio da realidade do bem e a praacutetica poliacutetica
Dada a finalidade praacutetica da razatildeo a excelecircncia do pensamento se constroacutei e se
confirma no processo de conhecimento Mesmo que a aquisiccedilatildeo das ideias natildeo garanta a
apreensatildeo de uma dimensatildeo maior o bem o meacutetodo dialeacutetico bem como as proacuteprias
ideias satildeo vaacutelidos para a finalidade que lhe eacute atribuiacuteda Dito de outro modo os limites
que o pensamento encontra natildeo invalidam o meacutetodo racional da filosofia sendo correto
consideraacute-lo o mais justo e digno para a busca do bem comum na cidade Na perspectiva
do filoacutesofo d‟A Repuacuteblica a saber do governante que deve voltar sua atenccedilatildeo para a
praacutetica poliacutetica e por isso ter em questatildeo efetivar os conhecimentos o que eacute oferecido
pela ideia acerca do bem parece suficiente para harmonizar a poacutelis Esta suficiecircncia natildeo
eacute vista da mesma maneira no Feacutedon como se analisaraacute uma vez que o filoacutesofo na
iminecircncia da morte tem como objetivo a imortalidade e portanto um domiacutenio sugerido
pelas ideias que se mostra inapreensiacutevel em sua totalidade pelo pensamento Neste
enredo embora eficientes em oferecer o domiacutenio inteligiacutevel a impossibilidade de
conhecer efetivamente esta dimensatildeo maior constitui um problema tornando-se muito
mais visiacutevel o limite do pensar
De qualquer modo a potecircncia do pensamento e seus limites tal como satildeo dados
corroboram a figura de excelecircncia do filoacutesofo A narrativa de experiecircncia intelectual
mostra o desenvolvimento da alma filosoacutefica e portanto do pensamento no processo de
elevaccedilatildeo agrave sua maioridade O pensamento ao atuar como meio de adquirir os
fundamentos dos valores e das regras para a melhor organizaccedilatildeo constitui para o
136
filoacutesofo e para a cidade enquanto atividade permanente um modo de ser justo e bom
Ao mesmo tempo mostra a cidade harmonizando-se e portanto tornando-se justa A
caracteriacutestica de ser agente e paciente comum nos dois diaacutelogos como se veraacute a seguir
no Feacutedon resume a autonomia do pensamento quando atua em seu estado excelente
Antes de iniciar a anaacutelise acerca da inteligecircncia (θξόλεζηϛ) no diaacutelogo Feacutedon eacute
necessaacuterio fazer algumas aproximaccedilotildees com o que se conclui sobre a λόεζηϛ a partir dos
livros VI e VII d‟A Repuacuteblica Em primeiro lugar deve-se considerar a condiccedilatildeo
limitada do filoacutesofo frenta a grandeza dos objetos uacuteltimos que tem em vista o bem e a
morte como jaacute dito As potecircncias e os limites da racionalidade satildeo dados desse modo
dentro do alcance possiacutevel de tais objetos pelo pensamento tendo-se uma visatildeo da
racionalidade operando dentro destas limitaccedilotildees Desse perspectiva a cogniccedilatildeo constitui
a atividade da alma que a potildee tanto quanto possiacutevel em uma condiccedilatildeo de elevaccedilatildeo
desse estado de minoridade que consiste a humanidade representada pelos habitantes
da caverna no livro VII e pela alma presa ao corpo no Feacutedon O tema do conhecimento
assume seu papel na questatildeo do pensamento tal como se viu ao consistir na superaccedilatildeo
operada pela racionalidade de uma condiccedilatildeo de inferioridade intelectual e moral e na
apreensatildeo dos objetos as ideias cuja apreensatildeo reverte em benefiacutecios para alma O
percurso do filoacutesofo agrave beira da morte traz desse modo uma visatildeo desse processo de
conhecimento ao mesmo tempo em que descreve a emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao
corpo como um efeito beneacutefico da atividade filosoacutefica A narrativa do Feacutedon se
aproxima do percurso do aprendiz do livro VII no que se refere agrave necessidade de
mostrar as etapas de superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao ordinaacuterio sensiacutevel e desprovido
de conteuacutedo cognitivo para uma condiccedilatildeo de maioridade da alma e portanto de
autonomia e excelecircncia do pensamento A excelecircncia eacute construiacuteda nos dois contextos
como resultado de um processo progressivo que no resgistro da relaccedilatildeo vida-morte se
daacute durante o tempo de vida
O empenho em investigar e estabelecer definiccedilotildees acerca do pensamento em seu
niacutevel de excelecircncia se apresenta nos dois diaacutelogos como uma exigecircncia Como visto eacute
preciso distinguir e treinar o futuro governante de modo a deixaacute-lo na melhor condiccedilatildeo
137
intelectual e apto a exercer o comando da cidade para isso deve-se ter claro no que
consiste esta distinccedilatildeo O filoacutesofo na iminecircncia da morte precisa dar provas razoaacuteveis e
plausiacuteveis da imortalidade da alma aos seus companheiros e para isso eacute imprescindiacutevel
provar a eficiecircncia da razatildeo no seu grau de maioridade grau no qual se realiza o
filosofar e a sua proacutepria capacidade para tal empresa Desse modo apesar dos
diferentes contextos a investigaccedilatildeo sobre o pensamento se constitui no exame acerca
dos termos que descrevem a atividade inteligente os quais compotildeem o aparato dado
pela proacutepria razatildeo a saber o meacutetodo o loacutegos e as teorias Esses devem receber durante
a sua formulaccedilatildeo e uso o olhar de inspeccedilatildeo do filoacutesofo e ter seu caraacuteter e procedimento
inteligiacuteveis elucidados
No Feacutedon encontrar-se-aacute uma visatildeo mais enfaacutetica do pensamento nos termos de
uma interaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis Dado que natildeo haacute um propoacutesito praacutetico que exige
uma elaboraccedilatildeo em termos de accedilatildeo poliacutetica tal como tem em vista o governante filoacutesofo
da cidade ideal esta relaccedilatildeo se restringiraacute ao comportamento da alma em relaccedilatildeo agraves
influecircncias do corpo e em relaccedilatildeo aos objetos do intelecto A oposiccedilatildeo presente aqui diz
respeito ao corpo e agraves suas influecircncias sendo a relaccedilatildeo intelectual da alma com seres
superiores dada no pensar a saiacuteda para se elevar dessa condiccedilatildeo adversa de estar
encarnada em corpo humano A superaccedilatildeo desta situaccedilatildeo em vida constitui a
inteligecircncia do filoacutesofo e compotildee um quadro de percurso e desenvolvimento intelectual
e no qual se daacute a elevaccedilatildeo ao grau mais refinado e potente do pensamento niacutevel
descrito pela λόεζηϛ nos livros VI e VII
Nesse sentido o que pode ser considerado o efeito praacutetico dos conhecimentos
adquiridos pela filosofia diz respeito agrave proacutepria postura intelectualista do filoacutesofo a qual
confere a ele as virtudes morais e as condiccedilotildees necessaacuterias para o bom destino poacutes-vida
Considerada como um cuidado da alma cabe compreender o exerciacutecio filosoacutefico como
sem duacutevidas um benefiacutecio bastante uacutetil Apesar de ser estimulado pela convicccedilatildeo de
uma boa vida apoacutes a morte as atenccedilotildees dirigidas a alma pela filosofia promovem em
vida reflexotildees vaacutelidas e uma conduta pautada nos melhores valores O lado praacutetico da
filosofia e do exerciacutecio intelectual no Feacutedon revela-se assim na conduta exemplar do
filoacutesofo que em vias de morrer constitui um modelo de alma purificada e por isso
pronta para estar totalmente livre
Tal eacute o resgistro em que se constroacutei a concepccedilatildeo de pensamento excelente no
Feacutedon As primeiras acepccedilotildees de maioridade e distinccedilatildeo do pensamento satildeo dados nos
termos de um pensamento puro assemelhado por isso agraves coisas divinas e portanto livre
138
para atuar de modo autecircntico Em um segundo momento essa mesma superioridade eacute
dada a partir das formulaccedilotildees nos termos de seu procedimento de modo a oferecer uma
versatildeo mais teacutecnica da atividade racional Ambos modelos de cidade ideal e de
existecircncia datildeo mostras de um niacutevel de cogniccedilatildeo que se traduz nessa excelecircncia
exemplar a qual se deve perseguir tanto na vida poliacutetica quanto no que concerne ao uma
postura existencial
139
Parte II Feacutedon
I O sentido de θξόλεζηο e o inteligiacutevel
11 O filoacutesofo agrave beira da morte
O Feacutedon oferece uma perspectiva existencial do filoacutesofo ao narrar a conversa de
Soacutecrates no seu uacuteltimo dia de vida O diaacutelogo apresenta o filoacutesofo que resignado agrave sua
condenaccedilatildeo aceita de bom grado a morte Tem-se nesse enredo a personificaccedilatildeo da
postura intelectual a qual uma vez sempre pautada no exerciacutecio filosoacutefico como
maneira para adquirir as excelecircncias morais e intelectuais pode especular sobre a
imortalidade e crer com base na razatildeo que ao final teraacute garantido um bom destino apoacutes
a morte (Fed 107c1-5) O que aos olhos dos amigos que se despendiam do mestre
parecia inicialmente uma excentricidade e uma insensatez (Fed 62e) se torna coerente
com a explicaccedilatildeo dada sobre a imortalidade A esperanccedila (ἐιπηο) de ter uma boa morte e
a crenccedila na indestrutibilidade da alma convicccedilotildees que justificam esta boa aceitaccedilatildeo
apoiamndashse na verdade nos resultados da investigaccedilatildeo filosoacutefica a qual revela o
fundamento de tais crenccedilas e do proacuteprio loacutegos filosoacutefico
Diferentemente do filoacutesofo de A Repuacuteblica o qual apresenta um modelo de
perfeiccedilatildeo e ao mesmo tempo sugere o iniacutecio e a execuccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo do
caraacuteter filosoacutefico o Soacutecrates do Feacutedon representa por que natildeo o cume deste processo e
a personificaccedilatildeo das qualidades deste modelo Como exemplo de uma vida digna ou
autecircntica a narrativa oferece uma imagem do acabamento do percurso filosoacutefico nesta
figura do Soacutecrates sereno cordato e convicto do que iraacute encontrar apoacutes a morte
percurso que o guardiatildeo aprendiz d‟A Repuacuteblica cabe divagar ainda estaria por
realizar Vale dizer que este percurso filosoacutefico o qual natildeo descreve uma vida poliacutetica
como mostra o filoacutesofo governante apresenta em certa medida o caraacuteter filosoacutefico no
que se refere ao uso da razatildeo e agraves aquisiccedilotildees morais e epistecircmicas que se pode obter
pela filosofia O Soacutecrates do Feacutedon natildeo eacute o filoacutesofo rei mas como filoacutesofo no seu
140
uacuteltimo dia de vida periacuteodo no qual se limita a narrativa disserta sobre a excelecircncia do
pensamento ao investigar sobre a alma e a sua imortalidade
Ao ter a imortalidade da alma como objeto de investigaccedilatildeo o diaacutelogo permite a
anaacutelise da natureza da alma e por consequecircncia do pensamento (θξόλεζηο) Deste
modo o afastamento entre alma e corpo constitui o tema que articula uma explicaccedilatildeo
para a imortalidade oferecendo assim o percurso do filoacutesofo nos termos de uma
preparaccedilatildeo para a morte na qual a alma se purifica pela filosofia A justificativa da boa
aceitaccedilatildeo da morte resulta desta postura intelectualista de desprezo pela satisfaccedilatildeo do
corpo e pelas coisas que se referem aos desejos levianos e agraves vilanias da vida ordinaacuteria
os quais satildeo identificados ao que se refere ao domiacutenio da sensibilidade Uma vez
exercitado na filosofia durante toda a vida e portanto distante das coisas relativas ao
corpo o filoacutesofo assume a condiccedilatildeo semelhante aos objetos que contempla no exerciacutecio
filosoacutefico a saber as ideias e ao que iraacute encontrar apoacutes a morte do corpo Nesse
sentido os resultados do treino na filosofia satildeo muito mais psicoloacutegicos do que praacuteticos
em comparaccedilatildeo ao que se veraacute nos livros V e VII d‟A Repuacuteblica nos quais se tem em
vista uma preparaccedilatildeo para a vida poliacutetica
A preparaccedilatildeo para a morte que a filosofia proporciona se traduz em
discernimento acerca da natureza da alma e por consequecircncia no autecircntico uso da
inteligecircncia (θξόλεζηο) condiccedilatildeo que constitui o verdadeiro cuidado da alma e que
permite realizar suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre o poacutes-vida A inteligecircncia neste contexto
de emancipaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo e agrave vida humana assume posiccedilatildeo central
uma vez que as caracteriacutesticas que o texto atribui agrave alma satildeo da ordem de sua faculdade
cognitiva e de seu parentesco com o gecircnero inteligiacutevel imutaacutevel una indivisiacutevel
incorpoacuterea imortal dotada da faculdade da razatildeo tem a capacidade de conhecer e de
aprender O filoacutesofo eacute identificado portanto agrave alma una que se apresenta apenas em
seu caraacuteter racional e com caracteriacutesticas afins com o gecircnero invisiacutevel78
Esta pode ser
uma dificuldade na comparaccedilatildeo entre os dois diaacutelogos aqui analisados A visatildeo da alma
que se encontra no Feacutedon natildeo eacute a da alma tripartida do livro IV d‟A Repuacuteblica
Entretanto ambos os diaacutelogos se preocupam em delimitar o caraacuteter racional como
distinto e soberano No livro IV a parte racional da alma deve se sobrepor agraves demais ( )
78 A visatildeo de alma una natildeo eacute unacircnime Haacute comentadores que entendem ser a alma que o Feacutedon
apresenta por um lado dotada de razatildeo e de qualidades semelhantes ao gecircnero invisiacutevel e por outro com
caracteriacutesticas referentes agraves emoccedilotildees e agraves afecccedilotildees do sensiacutevel Dado que essas uacuteltimas Platatildeo descarta ao
privilegiar a alma desencarnada livre do corpo natildeo considero pertinente o debate sobre a possibilidade
de uma biparticcedilatildeo da alma no Feacutedon
141
mostrando a necessidade de ter minimamente claro seu perfil e campo de atuaccedilatildeo De
outro modo mas com o mesmo objetivo o Feacutedon apresenta a alma racional que
embora natildeo se apresente em partes deve por natureza estar no comando de modo a natildeo
se deixar influenciar pelas sensaccedilotildees Nas duas situaccedilotildees a racionalidade se apresenta
diferenciada das caracteriacutesticas da ordem da sensibilidade que a alma pode ter seja
como parte constitutiva seja como afecccedilatildeo diante de sua condiccedilatildeo de estar em um
corpo
As caracteriacutesticas que o Feacutedon apresenta em relaccedilatildeo a alma a oferecem quase
exclusivamente em suas faculdades intelectuais Invisiacutevel incorpoacuterea afim com o
gecircnero inteligiacutevel e dotada de capacidade inteligente (θξόλεζηο) os atributos conferidos
a ela satildeo dados para descrever o seu caraacuteter inteligente sendo deixados de lado os traccedilos
que se referem agraves emoccedilotildees Quando dados esses recebem junto com as percepccedilotildees
advindas da sensibilidade conotaccedilatildeo negativa A autenticidade que o diaacutelogo pretende
imprimir agrave alma tem em vista sua independecircncia em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees sendo o
estado de elevaccedilatildeo intelectual a maior expressatildeo de sua pureza e aquisiccedilatildeo de virtudes e
o apego aos apelos do corpo ao contraacuterio sua condiccedilatildeo de decaimento moral e
intelectual Do mesmo modo que a congenereidade da alma com os objetos incorpoacutereos
confere a ela caracteriacutesticas comuns a esses - quando natildeo as mesmas - o apego da alma
ao corpo pode trazer prejuiacutezos agrave sua natureza Quando ela se fixa nas coisas inteligiacuteveis
comporta-se como tal se ao contraacuterio a alma se apega ao corpo e aos objetos sensiacuteveis
torna se eacutebria pois nessa condiccedilatildeo eacute incapaz ao menos em condiccedilotildees adequadas usar e
se exercitar na capacidade que pode lhe conferir um grau de excelecircncia O conflito
neste contexto adveacutem do antagonismo entre alma e corpo cujas distinccedilotildees de natureza-
o corpo dotado das qualidades do gecircnero visiacutevel eacute composto e portanto passiacutevel de
perecer (Fed 78c) - proporcionam ao filoacutesofo a tensatildeo proacutepria da condiccedilatildeo de
humanidade na qual a alma tem de conviver associada ao corpo e da qual ele filoacutesofo se
livraraacute com a morte estado no qual a alma sobreviveraacute totalmente separada das afliccedilotildees
lanccediladas pelas sensaccedilotildees Nesse sentido o corpo e o que eacute do domiacutenio da αἴζζεζηο
perturbam a alma e constituem um empecilho nessa busca da condiccedilatildeo mais proacutexima de
sua natureza inteligiacutevel
O que supotildee no iniacutecio do diaacutelogo uma perspectiva da interioridade dos
personagens na ordem das emoccedilotildees eacute substituiacutedo pela visatildeo racionalista na qual a
noccedilatildeo de identidade esta fundamentada na alma inteligente Em virtude do seu
parentesco com o domiacutenio inteligiacutevel a alma tem condiccedilotildees suficientes de por si
142
mesma conhecer algo verdadeiramente sem recorrer ao que eacute dado pelos sentidos Os
objetivos do filoacutesofo seus compromissos eacuteticos e epistemoloacutegicos ligam-se dessa
forma agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento exerciacutecio que garante a emancipaccedilatildeo da alma e as
recompensas desejadas ao final do processo de desvinculaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao corpo
Por enquanto para os propoacutesitos deste estudo basta coletar dados que colaborem
para compor um quadro que esboccedila um caraacuteter a ser definido Importa ressaltar os
traccedilos que mais tarde receberatildeo maior detalhamento e conceituaccedilatildeo e que vistos como
aqui se propotildee indicam os elementos e a complexidade que estaacute em causa ao se
pretender traccedilar um perfil da razatildeo Assim deve-se ter em vista que para uma anaacutelise
acerca do pensamento em sua condiccedilatildeo mais alta a figura do filoacutesofo a qual incarna o
uso correto da razatildeo e oferece uma imagem da excelecircncia moral e epistecircmica que
supotildeem-se eacute anaacuteloga agrave noccedilatildeo de inteligecircncia introduz as questotildees que perpassaratildeo nos
capiacutetulos seguintes agrave anaacutelise Ao figurar a posse das virtudes e dos conhecimentos reais
vantagens da vida dedicada agrave filosofia e portanto os resultados da elevaccedilatildeo do intelecto
quando exercitado em sua plena potecircncia o filoacutesofo permite entrever o significado que
o os textos pretendem dar agrave racionalidade neste niacutevel e agrave proacutepria filosofia Natildeo parece
suficiente elencar as qualidades do filoacutesofo sem remontar o percurso que levou a elas
Somente a partir das articulaccedilotildees realizadas pela razatildeo em seu exerciacutecio como acontece
na relaccedilatildeo entre alma e corpo e os efeitos dessa atividade se torna possiacutevel mensurar e
avaliar a atuaccedilatildeo do pensamento tal como o significado e o valor que se atribui a ele
12 O pensar e o estado de morte
Ao explicar (ηὸλ ιόγνλ ἀπνδνῦλαη Fed 63e9)79
acerca do destemor do filoacutesofo
em relaccedilatildeo agrave morte Soacutecrates inaugura a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade da alma
pesquisa que natildeo se mostra exequiacutevel sem uma minuciosa anaacutelise acerca do pensamento
(θξόλεζηο) Considerada a condiccedilatildeo excelente da capacidade racional da alma e
79 Para as citaccedilotildees em portuguecircs utilizaremos a traduccedilatildeo de Maria Tereza Schiappa de Azevedo Feacutedon
Platatildeo Ed Imprensa Oficial UNB 2000
143
portanto a via para averiguar adequadamente a sobrevivecircncia apoacutes a morte do corpo o
pensar seraacute examinado a partir da definiccedilatildeo acerca da filosofia como um treino para a
morte mais precisamente para morrer e estar morto (ἢ ἀπνζλῄζθεηλ ηε θαὶ ηεζλάλαη
Fed 64a6) definiccedilatildeo que introduz a perspectiva racionalista do tema Dada nos termos
do exerciacutecio filosoacutefico a morte ganha uma versatildeo filosoacutefica com bases agumentativas
resultantes de uma especiacutefica formulaccedilatildeo de conhecimento de atividade racional e de
objetos verdadeiros Posto assim ηεζλάλαη indica um estado distinto diferente da vida
no seu sentido bioloacutegico no qual a alma sobrevive e para o qual o filoacutesofo eacute treinado
por meio do exerciacutecio filosoacutefico (ἀλὴξ ηῷὄληη ἐλ θηινζνθίᾳ δηαηξίςαο ηὸλ βίνλ
Fed63e9) Nesse contexto a atividade racional constitui a caracteriacutestica da alma capaz
de averiguar acerca deste estado
Platatildeo pretende imprimir agrave morte um sentido estritamente filosoacutefico para dar
iniacutecio a um exame dentro da mesma perspectiva acerca da imortalidade Sendo assim
faz sentido questionar nestes termos ldquo- Acreditamos que a morte eacute alguma coisa
(ἡγνύκεζά ηὸλ ζάλαηνλ Fed 64c2)rdquo Note-se que a formulaccedilatildeo da questatildeo potildee em
evidecircncia o acircngulo em que se pretende investigaacute-la junto com as demais questotildees que
perpassam a argumentaccedilatildeo ηη εἶλαη - ldquoser algordquo traduzindo literalmente prenuncia uma
existecircncia um ser que mais tarde ganharaacute formulaccedilatildeo ontoloacutegica e seraacute uma das
maneiras de se questionar em vista da definiccedilatildeo de algo Posta assim a questatildeo induz o
interlocutor a dar uma resposta positiva entretanto sem o compromisso de dizer o que
ela seria A definiccedilatildeo de morte vem a seguir a separaccedilatildeo alma em relaccedilatildeo ao corpo
- Que outra coisa pois senatildeo a separaccedilatildeo da alma e do corpo
(Ἆξα κὴ ἄιιν ηη ἢ ηὴλ ηο ςπρο ἀπὸ ηνῦ ζώκαηνο ἀπαιιαγήλ) E
nesse caso bdquoestar morto‟ significa isto mesmo que o corpo uma vez
separado da alma subsiste em si e por si mesmo (αὐηὸ θαζ αὑηὸ ηὸ
ζῶκα γεγνλέλαη) agrave parte dela tal como a alma uma vez separada do
corpo subsiste em si e por si mesma (αὐηὴλ θαζαὑηὴλ εἶλαη) agrave parte
dele Ou seraacute a morte algo diverso do que dizemosrdquo80
(Fed 64c3-9)
80 Vale notar uma sutileza no texto original Ao se referir agrave separaccedilatildeo e consequente isolamento do
corpo Platatildeo utiliza o verbo γίγλνκαη enquanto que ao falar do isolamento da alma o verbo escolhido eacute o
verbo εἰκί Os dois verbos que nessa passagem ainda natildeo possuem sentido filosoacutefico ao longo da
investigaccedilatildeo marcaratildeo a importante diferenciaccedilatildeo entre a instabilidade e corrupccedilatildeo do γεγνλέλαη da
γέλεζηϛ em contraposiccedilatildeo agrave imutabilidade e fixidez do ser inteligiacutevel e do que tem familiaridade com ele
como ocorre com a alma Tais distinccedilotildees de gecircnero constituiratildeo ao longo do texto as diferenciaccedilotildees
entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel aqui esboccediladas
144
Assim definida a morte consiste no estado no qual a alma estaacute separada do
corpo Ao mesmo tempo se deve notar o processo dessa separaccedilatildeo no qual o corpo se
torna isolado da alma e do mesmo modo a alma passa a existir por si mesma separada
dele Apartados corpo e alma mostram a partir daiacute naturezas distintas cujo conflito eacute
compreendido vale adiantar pela racionalidade Eacute posto em questatildeo desse modo a
natureza da alma e de sua Inteligecircncia na figura do filoacutesofo que aceita de bom grado a
sua condenaccedilatildeo Para o homem que filosofa eacute natural desprezar (ἀηηκάδεηλ) os prazeres
corporais e tudo o que se refere a ele para se ocupar dos cuidados que dizem respeito agrave
alma (Fed 64e) O desapego pelo que constitui um cuidado ou adorno do corpo e o
consequente voltar-se para a alma (πξὸο δὲ ηὴλ ςπρὴλ ηεηξάθζαη Fed 64e6) consiste
no exerciacutecio de morte no qual o verdadeiro filoacutesofo (ἀιεζῶο θηιόζνθνο Fed64e2) se
empenha
O filosofar origina assim este afastamento da alma em relaccedilatildeo ao corpo que se
daacute pelo desprezo tanto quanto possiacutevel dos apelos e dos prazeres corporais (θαζὅζνλ
δύλαηαη ἀθεζηάλαη αὐηνῦ Fed64e5) Tal postura de afastamento do corpo descreve
deve-se observar um traccedilo do perfil do filoacutesofo que diferentemente da maioria vecirc a
morte como a oportunidade para emancipar a alma e tornaacute-la assim livre das afliccedilotildees
geradas por ele A visatildeo positiva da morte eacute construiacuteda com a intenccedilatildeo de fazer um
discurso em defesa do filoacutesofo condenado no qual se apresente ao mesmo tempo uma
explicaccedilatildeo filosoacutefica e uma justificativa racional e por isso plausiacutevel para a
imortalidade
Diante de tal propoacutesito o texto vai dispor dos elementos e do foco sob os quais
uma investigaccedilatildeo deste tipo se torna possiacutevel O desligamento progressivo da alma em
relaccedilatildeo ao corpo que acontece nesse exerciacutecio de preparaccedilatildeo para a morte torna-se
desse modo a circunstacircncia apropriada em que se deve examinar o pensamento por
apresentar a alma isolada nela mesma (αὐηὴ θαζαὑηὴλ) livre de influecircncias e
perturbaccedilotildees e assim ter suas caracteriacutesticas racionais ressaltadas
ldquo- E o que dizer quanto a adquirir a sabedoria (Τί δὲ δὴ πεξὶ
αὐηὴλ ηὴλ ηο θξνλήζεσο θηζηλ) eacute ou natildeo o corpo obstaacuteculo
(ἐκπόδηνλ) quando aceitamos associaacute-lo nessa procura Mais
concretamente haacute uma dose de verdade naquilo que os homens
apreendem por exemplo pela vista e pelo ouvido ou (como os poetas
por aiacute repetem agrave saciedade) nada do que vemos ou ouvimos eacute
seguro E refiro-me apenas aos sentidos da vista e do ouvido porque
145
se estes natildeo satildeo seguros e exatos (θαίηνη εἰ αὗηαη ηῶλ πεξὶ ηὸ ζῶκα
αἰζζήζεσλ κὴ ἀθξηβεῖο εἰζηλ κεδὲ ζαθεῖο) os outros muito menos o
satildeo dado serem suponho ainda mais faliacuteveis (θαπιόηεξαί) Ou natildeo
achas
- Mas decerto
- Ora - prosseguiu- em que condiccedilotildees a alma atinge a verdade
(Πόηε νὖλ ἦ δ ὅο ἡ ςπρὴ ηο ἀιεζείαο ἅπηεηαη) Pois quando tenta
qualquer tipo de indagaccedilatildeo com o auxiacutelio do corpo eacute certo e sabido
que este a induz em erro (ἐμαπαηᾶηαη ὑπ αὐηνῦ)rdquo (Fed 65a9-b)
Conveacutem notar a almejada condiccedilatildeo em que eacute dado o pensar a alma atua
plenamente sem impecilhos e desse modo atinge a verdade81
O texto atribui um papel
negativo ao corpo por constituir um impedimento para a aquisiccedilatildeo disto que parece ser
um dos alvos da inquiriccedilatildeo a θξόλεζηο De modo incipiente essa uacuteltima passagem
sugere de antematildeo a noccedilatildeo de alta inteligecircncia que seraacute edificada ao longo do diaacutelogo
O pensar nos termos da θξόλεζηο estaacute vinculado agrave verdade e ao ser livre das
influecircncias corpoacutereas o que confere a ele uma superioridade cujo sentido comeccedila a ser
construiacutedo nesta etapa inicial da investigaccedilatildeo Diferentes deste estado estatildeo as sensaccedilotildees
que por natildeo se mostrarem exatas e claras para uma investigaccedilatildeo (Fed 65a10)
demonstram a insuficiecircncia do corpo e a consequente legitimidade da alma para a
aquisiccedilatildeo desta condiccedilatildeo correspondente ao estar morto que o filoacutesofo almeja Dado que
a realidade e a verdade que interessam ao filoacutesofo apresentam-se apenas na atividade
do raciociacutenio (ινγίδνκαη) 82
o pensar ganha foco e deve ser paralelamente objeto de
estudo na medida em que se mostra relevante para a anaacutelise dos temas que compotildeem a
argumentaccedilatildeo sobre a boa morte do filoacutesofo
O desapego em relaccedilatildeo ao corpo apresenta com este argumento motivos
existenciais e epistemoloacutegicos os quais encontram no exerciacutecio do pensamento a via
para uma explicaccedilatildeo razoaacutevel sobre a morte e sobre a vida ao modo da filosofia e na
θξόλεζηο um dos seus objetivos Desse modo o texto natildeo demora em oferecer cabe
81 O sentido do termo nesta passagem estaacute e geral associado agrave noccedilatildeo de sabedoria conhecimento e
inteligecircncia Robin traduz ldquoposseder proprement l‟inteligencerdquo- Platon Pheacutedon in Editions Belle
Lettres Paris 1957 Dixsaut ldquoet quand il s‟agit de se mettre agrave penserrdquo Platon Pheacutedon GF Flammarion
1991 Opccedilatildeo semelhante agrave que temos na traduccedilatildeo portuguesa faz Gual ldquo[] de La aquisicioacuten misma de
La sabiduriardquo Fedoacuten Editorial Gredos Madrid 1997 Trata-se da primeira ocorrecircncia do termo
Interessa examinar e discutir ao longo da anaacutelise os sentidos que ele adquire e como esses se relacionam
com aquilo que descreve uma teoria da racionalidade no diaacutelogo
82 Fed 65c2 ldquoPor conseguinte admitindo que a natureza das coisas possa em certos aspectos se
apercebida natildeo seraacute justamente pelo raciociacutenio (Ἆξ νὖλ νὐθ ἐλ ηῷ ινγίδεζζαη εἴπεξ πνπ ἄιινζη
θαηάδεινλ αὐηῆ γίγλεηαί ηη ηῶλ ὄλησλ)rdquo Tal eacute o caraacuteter em que o diaacutelogo sugere a aquisiccedilatildeo do
conhecimento a saber como uma manifestaccedilatildeo da realidade dos seres na atividade racional Esta
descriccedilatildeo seraacute novamente formulada em 79d e demonstrada no final do diaacutelogo
146
notar a visatildeo de uma alma cuja principal caracteriacutestica para natildeo dizer quase uacutenica eacute a
racionalidade Com o processo de afastamento do corpo natildeo estatildeo em questatildeo outras
afecccedilotildees que natildeo sejam da ordem da atividade racional ou que natildeo digam respeito a sua
natureza inteligente que a esta altura estaacute para ser estabelecida Assim a narrativa da
separaccedilatildeo entre alma e corpo acentua o caraacuteter racional da alma e potildee em certa medida
os objetivos o sentido e a operacionalidade da atividade inteligente a partir desse
exerciacutecio de separaccedilatildeo O perfil do pensamento vai sendo revelado ao passo que se
realiza a criacutetica e a recusa das sensaccedilotildees e de concepccedilotildees vulgares sobre a morte e sobre
temas como as virtudes e o conhecimento
13 Primeiro sentido de θξόλεζηο pensamento puro
Realizadas as primeiras consideraccedilotildees sobre a morte e o sentido em que se deve
conceber o pensar vale analisar passo a passo como aparece o tema do pensamento
Nesse contexto de progressivo desligamento do corpo que constitui o filosofar a alma
estaacute em situaccedilatildeo cada vez mais apropriada para o raciociacutenio Ao mesmo tempo ao
livrar-se de qualquer influecircncia do corporal estaacute em condiccedilotildees de almejar o seu objeto
de desejo o ser (ὀξέγεηαη ηνῦ ὄληνο Fed 65c9) Diante disso logo se reconhece a
necessidade de averiguar o caraacuteter desta racionalidade e dos elementos que a ela se
referem Vale observar que ainda sem ter exposta a sua inteligibilidade nem definido o
seu estatuto ontoloacutegico os temas que devem receber tratamento filosoacutefico satildeo dispostos
para auxiliar na composiccedilatildeo de uma distinccedilatildeo entre os domiacutenios sensiacutevel e inteligiacutevel
fundamental para elucidar a atuaccedilatildeo pensar
147
ldquo- Passamos a outro ponto afirmamos que existe qualquer coisa
como seja o ldquoJustordquo ou natildeo (Τί δὲ δὴ ηὰ ηνηάδε ὦ Σηκκία θακέλ ηη
εἶλαη δίθαηνλ αὐηὸ ἢ νὐδέλ)
- Por Zeus claro que sim
- E o mesmo em relaccedilatildeo a ldquoBelordquo e ldquoBemrdquo (Καὶ αὖ θαιόλ γέ ηη
θαὶ ἀγαζόλ)
- Contudo alguma vez jaacute os viste com os teus proacuteprios olhos (ηη
ηῶλ ηνηνύησλ ηνῖο ὀθζαικνῖο εἶδεο )
83
- Natildeo de modo algum
- Seraacute que os apercebeste por qualquer outra sensaccedilatildeo fiacutesica
(Ἀιι ἄιιῃ ηηλὶ αἰζζήζεη ηῶλ δηὰ ηνῦ ζώκαηνο ἐθήςσ αὐηῶλ) Falo
em geral incluindo por exemplo a Grandeza a Sauacutede a Forccedila em
resumo a realidade e todas as demais coisas aquilo que cada uma
delas preciosamente84
eacute (θαὶ ηῶλ ἄιισλ ἑλὶ ιόγῳ ἁπάλησλ ηο νὐζίαο
ὃ ηπγράλεη ἕθαζηνλ ὄλ) E ou pelo corpo se chega agrave contemplaccedilatildeo da
absoluta verdade delas (ηὸ ἀιεζέζηαηνλ ζεσξεῖηαη) ou entatildeo o
processo eacute outro e aquele de noacutes que mais profundamente se dispuser
a meditar (δηαλνεζλαη) na realidade mesma das coisas que observa eacute
quem mais perto esta da de atingir o conhecimento (γλῶλαη) de cada
uma delasrdquo (Fed 65d3-e4)
O excerto oferece uma primeira descriccedilatildeo acerca do que se pode conceber como
um trabalho intelectual oposto agraves percepccedilotildees advindas dos oacutergatildeos dos sentidos Dada
nos termos da cogniccedilatildeo (γηγλώζθσ) tem-se o trabalho intelectivo do δηαλνέσ no qual a
alma conhece a essecircncia (νὐζία) daquilo que examina Apreender a essecircncia a realidade
dos objetos em exame quer dizer o mesmo que contemplar a verdade deles Conhecer
consiste assim neste tipo de apreensatildeo que tem em vista o ηη εἶλαη presente nesta
noccedilatildeo de δίθαηνλ αὐηὸ θαιόλ αὐηὸ e ἀγαζόλ αὐηὸ O bem o belo e a justiccedila tal como
quer o filoacutesofo natildeo podem ser conhecidos pelas sensaccedilotildees e devem ser desse modo
apreendidos exclusivamente por esta atividade do pensamento revelando-se portanto
serem da ordem do intelecto Cabe notar que o ηὸ αὐηὸ que acompanha as noccedilotildees
sugeridas e mesmo a νὐζία natildeo satildeo ditas ainda no registro da ontologia Apesar de
evocar a noccedilatildeo abstrata desses conceitos parece precipitado dizer que o texto faz nesse
instante referecircncia agraves Formas O que estaacute em jogo eacute primeiramente delimitar o
verdadeiro objeto da alma e o modo como o filoacutesofo deve proceder para atingi-lo A
nova perspectiva que estaacute sendo proposta a partir daqui a da ζεσξία contemplaccedilatildeo das
83 Observe-se a partir daqui o uso do verbo ὁξάσ e o termo ὄςηο enfatizando a visatildeo sensiacutevel em
contraposiccedilatildeo agrave imagem que se obteacutem pelo trabalho intelectivo da alma Este verbo passa a partir de
agora a denotar a inferioridade da percepccedilatildeo sensiacutevel ao mesmo tempo em que o verbo εἶδνλ assume o
sentido de visatildeo inteligiacutevel isto eacute a visatildeo capaz de apreender os seres inteligiacuteveis
84 Cabe uma notar que o termo correto seria ldquoprecisamenterdquo e natildeo ldquopreciosamenterdquo como traz a
traduccedilatildeo
148
coisas85
desfaz o equiacutevoco de tomar o corpo como instrumento para o conhecimento e
atribui de vez este papel agrave alma
A partir da oposiccedilatildeo corpo - alma sensaccedilatildeo ndash intelecto a dicotomia sensiacutevel ndash
inteligiacutevel que comeccedila a ser delineada ganha definiccedilotildees mais especiacuteficas e se mostra
decisiva para uma pesquisa filosoacutefica Eacute importante estabelecer as diferenciaccedilotildees entre
alma e corpo na qual se verifica que o corpo eacute distinto da alma natildeo se confunde com
ela e eacute o abrigo das sensaccedilotildees por isso tambeacutem das contrariedades que elas podem
apresentar umas com as outras86
Por conta disso eacute incapaz de conhecer a verdade
acerca do que investiga tal como propotildee a filosofia uma vez que as sensaccedilotildees natildeo
oferecem qualquer dado de modo claro e preciso O corpo natildeo constitui assim um
instrumento seguro para uma anaacutelise mas ao contraacuterio confunde e perturba alma como
visto ateacute aqui Por outro lado a alma se mostra capaz de conhecer e eacute desejante do que eacute
real e verdadeiro caracteriacutesticas que obrigam o filoacutesofo a averiguar mais
detalhadamente a αὐηὴ θαζαὑηὴ no desenlace desta separaccedilatildeo Dito de outro modo a
alma por ela mesma apresenta a conduta do filoacutesofo e sua posiccedilatildeo perante vida e morte
ao narrar a maneira como ele lida com as perturbaccedilotildees dos sentidos e de que maneira o
pensar age nesse contexto
ldquo- Ora isso soacute poderaacute realizaacute-lo em plena pureza o homem que
na medida de suas forccedilas for ao encontro delas exclusivamente pela
via do pensamento abstraindo dele o recurso agrave vista ou qualquer um
dos sentidos e sem arrastar nenhum deles atraacutes da razatildeo (Ἆξ νὖλ
ἐθεῖλνο ἂλ ηνῦην πνηήζεηελ θαζαξώηαηα ὅζηηο ὅηη κάιηζηα αὐηῆ ηῆ
δηαλνίᾳ ἴνη ἐθ ἕθαζηνλ κήηε ηηλ ὄςηλ παξαηηζέκελνο ἐλ ηῷ
δηαλνεῖζζαη κήηε [ηηλὰ] ἄιιελ αἴζζεζηλ ἐθέιθσλ κεδεκίαλ κεηὰ ηνῦ
ινγηζκνῦ) que utilizando apenas o pensamento em si mesmo sem
mistura se lanccedila na caccedila de cada uma das realidades em si mesmas e
sem misturas (αὐηῆ θαζ αὑηὴλ εἰιηθξηλεῖ ηῆ δηαλνίᾳ ρξώκελνο αὐηὸ
θαζ αὑηὸ εἰιηθξηλὲο ἕθαζηνλ ἐπηρεηξνῖ ζεξεύεηλ ηῶλ ὄλησλ) liberto
85 Fed 66e1 θαὶ αὐηῆ ηῆ ςπρῆ ζεαηένλ αὐηὰ ηὰ πξάγκαηα
86 Vale ter em vista aqui o que o diaacutelogo sugere logo nas primeiras cenas de Soacutecrates na prisatildeo e o seu
comentaacuterio ao se livrar dos grilhotildees ldquo- Que coisa estranha amigos essa sensaccedilatildeo a que os homens
chamam de prazer Eacute espantoso como naturalmente se associa ao que passa por ser o seu contraacuterio a
dor Ambos se recusam a estar presentes ao mesmo tempo no mesmo homem e todavia se algueacutem
persegue e alcanccedila um deles eacute quase certo e sabido que acaba por alcanccedilar o outro como dois seres
que estivessem ligados por uma soacute cabeccedila () Ora estou acreditando que eacute tambeacutem o que acontece
comigo agrave sensaccedilatildeo de dor que a corrente me provocava na perna eacute agora o prazer que manifestamente
lhe vem no encalccedilordquo (60b3-c) O excerto sugere ser a condiccedilatildeo de humanidade isto eacute da alma ainda
associada ao corpo um estado no qual a alma ainda experimenta as diferentes sensaccedilotildees O corpo nesse
contexto constitui o lugar para a recepccedilatildeo dessas sensaccedilotildees e portanto o lugar onde se apresentam
oposiccedilotildees as quais soacute podem advir do sensiacutevel como prazer e dor A contrariedade tema que seraacute
discutido no diaacutelogo vale adiantar natildeo eacute aceitaacutevel segundo a concepccedilatildeo de alma racional una e invisiacutevel
que estaacute sendo formulada
149
ateacute onde lhe for possiacutevel dos olhos dos ouvidos numa palavra de
todo o corpo - ciente de quanto esta perturba a alma e a impede de
adquirir a verdade e sabedoria (ἀιήζεηάλ ηε θαὶ θξόλεζηλ) quando
ambos se associam Ou natildeo te parece que se algueacutem existe com a
possibilidade de atingir o real (ηνῦ ὄληνο) eacute este mesmordquo (Fed
65e5-66a8)
O afastamento da alma em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees eacute dado nos termos da
purificaccedilatildeo Nesse contexto o pensamento eacute claramente o agente que promove tal
distanciamento e assim o responsaacutevel pelo processo de purificaccedilatildeo Aquele que busca
adquirir o ser deve ter no pensamento o meio de emancipar-se das sensaccedilotildees de modo a
natildeo se deixa arrastar influenciar por elas e desse modo natildeo permitir que estas
imponham obstaacuteculo agrave atividade racional O texto oferece a busca do conhecimento
anaacutelogo ao de uma ldquocaccedila agraves realidadesrdquo que sugere de um lado a dificuldade do
pensamento agir nesse contexto de separaccedilatildeo e por outro o benefiacutecio de ter a alma e o
pensar tornando-se com isso puros (θαζαξόο) e sem mistura (εἰιηθξηλήο) Δηάλνηα e
ινγηζκόο mostram essa atividade racional que nesta circunstacircncia oferece o
pensamento do mesmo modo como uma faculdade em processo de θάζαξζηο ou seja
em contiacutenuo distanciamento do corpoacutereo tanto quanto possiacutevel87
Note-se que o trecho
apresenta nesta relaccedilatildeo o pensamento como agente e paciente na medida em que este
promove a purificaccedilatildeo e ao mesmo tempo se beneficia dela ao se tornar puro e livre
para atuar na aquisiccedilatildeo dos alvos maiores converter-se em alta inteligecircncia e apreender
a verdade88
No processo de purificaccedilatildeo ainda natildeo se tem todavia a descriccedilatildeo de seu
modo excelente como quer o filoacutesofo Entretanto natildeo se deve descartar que nessa fase
em que o sentido da θξόλεζηο como condiccedilatildeo excelente da razatildeo comeccedila a ser
formulado essa noccedilatildeo de pureza que o texto sugere serve aos propoacutesitos de exaltar e
oferecer uma noccedilatildeo de excelecircncia ao modo filosoacutefico Diferentemente de uma noccedilatildeo
baseada em distinccedilotildees de ordem social pretende-se agora uma superioridade intelectual
que se busca a partir de uma purificaccedilatildeo cuja concepccedilatildeo foge agrave noccedilatildeo que se tem nos
87 Chen op cit p 17
88 Vale verificar a afirmaccedilatildeo de BREacuteHIER ldquoMas no Feacutedon ele trata da purificaccedilatildeo do pensamento natildeo
se poderaacute obtecirc-lo se natildeo for pelo proacuteprio pensamento que eacute portanto agraves vezes o ser a se purificar agraves
vezes o meio de purificaccedilatildeo temos sobre isso a declaraccedilatildeo expressa do Feacutedon (69c) pensamento eacute um
bdquomeio de purificaccedilatildeo‟ (katharmos) Para ele a katharsis consiste na verdade na conversatildeo de um
ldquopensamento impurordquo na direccedilatildeo de ldquoum Pensamento puro e infalivelmente perfeitordquo que age sobre o ser
atraveacutes do alcance e dos efeitos disto que aqui se considera o pensamento em seu estado excelente e para
ele constitui a Forma Pensamento Breacutehier E ldquoAretai Katharseisrdquo in Etudes de Philosophie Antiquerdquo
Presses Universitaires de France Paris 1955 p241
150
ritos tradicionais sendo ambos dados no registro da inteligecircncia89
Assim parece
coerente que faccedila parte da alta intelecccedilatildeo que constitui a θξόλεζηο o desapego das
paixotildees desejos e sofrimentos do corpo90
tal como o desprezo por honrarias e outras
vilanias sendo o conhecimento a busca intelectual propiacutecia para isso e a verdade
definida como niacutetido e sem mistura o guia (Fed 66b7)
Cabe observar que o pensamento eacute oferecido como a uacutenica atividade da alma
atraveacutes da qual apresenta o seu caraacuteter enquanto distinta e afastada do corpo A
descriccedilatildeo da purificaccedilatildeo que o pensamento promove tal como se apresenta revela que
ele proacuteprio aparentemente consiste no uacutenico elemento que resiste a esse afastamento
sendo portanto apropriado para supor o conhecimento do que eacute distinto do sensiacutevel e
que concerne agrave alma Este movimento de afastamento que descreve a alma mesmo sem
a intenccedilatildeo de defini-la oferece uma noccedilatildeo a seu respeito na medida vale dizer do que
parece necessaacuterio para a investigaccedilatildeo sobre a imortalidade Se tomarmos a alma por sua
capacidade e atividade de intelecccedilatildeo que eacute o que interessa ao nosso estudo eacute
conveniente examinar como este pensamento eacute capaz de mover a alma em direccedilatildeo aos
seres inteligiacuteveis ou melhor de que modo e por quais razotildees a alma se move de que
maneira isso constitui o pensar
A pista encontrada por Soacutecrates para um exame racional eacute pautado pela verdade
e tem a consciecircncia de que a alma por ela mesma no exerciacutecio do pensamento eacute a via
adequada para o conhecimento91
Assim na funccedilatildeo de agente purificador o pensamento
separa o que natildeo constitui uma qualidade que colabore para o conhecimento as
sensaccedilotildees e se potildee a contemplar o que estaacute em exame pela proacutepria alma o que em
89 Para Louis Moulinier ldquokatharsisrdquo em geral assume o significado de limpar tornar livre de mistura
purgar Os termos katharos e katharein satildeo os termos que em geral exprimem a pureza no domiacutenio da
inteligecircncia como parece ser o sentido privilegiado no Feacutedon As ocorrecircncias desse significado nesse
domiacutenio fazem referecircncia agrave limpidez do oraacuteculo ou quando katharos significa ldquoclaramenterdquo
O autor
explica ldquo[] os Gregos conceberam uma pureza das coisas e uma pureza do espiacuterito que entre essas
coisas estaacute a verdade e dentro dela a sinceridade esta noccedilatildeo eles exprimiam pelo adjetivo katharos
que ainda eacute muito material e que implica agraves vezes um juiacutezo de valor inteiramente moralrdquo Em toda a sua
obra Moulinier nota a presenccedila da noccedilatildeo de materialidade no que diz respeito ao tema da purificaccedilatildeo
tanto na perspectiva fiacutesica do mundo quanto no plano abstrato O valor material da pureza eacute transposto
para outras perspectivas como o da moralidade e o da intelectualidade Na medicina o termo katharsis se
apresenta em todo o tipo de evacuaccedilatildeo ou escorrimento seja esse escorrimento natural como a
menorreacuteia ou um escorrimento causado por alguma patologia Os dois sentidos que o termo possui na
linguagem meacutedica designam tanto a eliminaccedilatildeo de um mal quanto uma evacuaccedilatildeo que restabelece uma
ordem uma harmonia Moulinier L Le Pure et Le Impure dans La Penseacutee des Grecs- De Homere a
Aristote Librarie Klincksiec Paris 1952 167-170
90 Fed 66c2rdquoPaixotildees desejos temores futilidades e fantasias de toda ordem (ἐπηζπκηῶλ θαὶ θόβσλ θαὶ
εἰδώισλ παληνδαπῶλ θαὶ θιπαξίαο)rdquo
91 Fed 66b3 7 ldquoProvavelmente haacute uma espeacutecie de pista [que por meio da razatildeo] nos guia nas nossas
pesquisas (Κηλδπλεύεη ηνη ὥζπεξ ἀηξαπόο ηηο ἐθθέξεηλ ἡκᾶο [κεηὰ ηνῦ ιόγνπ ἐλ ηῆ ζθέςεη])rdquo
151
outras palavras representa a sua autonomia Somente a partir desta liberdade que
consiste no desapego da alma e na consequente autonomia do pensamento que os
objetos almejados parecem atingiacuteveis um grau de saber do qual o filoacutesofo eacute amante92
que corresponde ao que tudo indica ao pensar em seu modo excelente
Conveacutem verificar desse modo o sentido dessa pureza dada pelo processo
racional que o filoacutesofo pretende defender para compreender melhor o tipo de objeto
desejado na filosofia O puro (θαζαξόο) eacute anaacutelogo agrave clareza e agrave precisatildeo anteriormente
referidas como qualidades ausentes nos dados fornecidos pelos sentidos e constitui um
atributo supostamente comum em relaccedilatildeo aos objetos aspirados pelo filoacutesofo a verdade
os seres e os deuses que encontraraacute no destino apoacutes a morte (Fed 66e) Nas passagens
onde Soacutecrates confessa ter esperanccedila em obter um bom destino post mortem a θάζαξζηο
aparece como a preparaccedilatildeo apropriada e necessaacuteria para este fim Tem-se claramente a
identificaccedilatildeo desta purificaccedilatildeo ao que eacute divino denotando a proposta de atribuir um
caraacuteter intelectualista agravequilo que tradicionalmente eacute visto no acircmbito da religiosidade
ldquo() assim pois uma vez resgatados da demecircncia (ἀθξνζύλεο)
do corpo eacute razoaacutevel se supor que gozaremos da companhia de outros
seres igualmente puros e conheceremos por noacutes mesmos (γλσζόκεζα
δη ἡκῶλ αὐηῶλ ) tudo o que eacute sem mistura o que equivale talvez a
dizer a verdade (ηνῦην δ ἐζηὶλ ἴζσο ηὸ ἀιεζέο) pois soacute ao impuro
natildeo deveraacute ser permitido tocar o que eacute puro‟ Aqui tens Siacutemias o
que quanto a mim natildeo deixaratildeo de sentir e comentar entre si todos
aqueles que efetivamente amam a sabedoria (πάληαο ηνὺο ὀξζῶο
θηινκαζεῖο) Ou natildeo concordasrdquo (Fed 67a6-b4)
O processo da θάζαξζηο apresenta a sua finalidade metafiacutesica Natildeo seria um erro
dizer de acordo com esta uacuteltima passagem que os termos em que se coloca a questatildeo
religiosa da vida apoacutes a morte recebe a sua versatildeo filosoacutefica na qual o domiacutenio dos
deuses tem uma natureza tal que pode ser atingida apoacutes a alma se desvincular do corpo
O propoacutesito de um argumento acerca da purificaccedilatildeo estaacute justamente em propor o gecircnero
deste domiacutenio dos deuses que o filoacutesofo pretende alcanccedilar Entretanto disto depende
uma minuciosa investigaccedilatildeo sobre a alma e assim sobre a faculdade e o processo
responsaacutevel para esta aquisiccedilatildeo Nesses termos conveacutem especificar no que consiste a
92 Fed 66e1 ldquoEntatildeo sim ser-nos-aacute dado ao que parece alcanccedilar o alvo das nossas aspiraccedilotildees a
sabedoria de que somos amantes (θαὶ ηόηε ὡο ἔνηθελ ἡκῖλ ἔζηαη νὗ ἐπηζπκνῦκέλ ηε θαί θακελ ἐξαζηαὶ
εἶλαη θξνλήζεσο)rdquo
152
purificaccedilatildeo para o filoacutesofo o qual possui uma noccedilatildeo especiacutefica de morte e uma vez que
dela se daacute todo o processo para atingir o bom destino tatildeo almejado O discurso da antiga
tradiccedilatildeo (πάιαη ἐλ ηῷ ιόγῳ ιέγεηαη Fed 67c6) chama de θάζαξζηο o que para o filoacutesofo
consiste na morte a total liberaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao corpo (Fed 67d4-5) Ora
entatildeo qual seria diante disso a vantagem de se purificar na filosofia E poucas
palavras a postura de desapego do filoacutesofo eacute um ensaio para a condiccedilatildeo de total
desvinculaccedilatildeo das coisas que dizem respeito ao corpoacutereo ao fiacutesico na qual a alma em
breve no caso de Soacutecrates se encontraraacute (Fed 67d)
A comeccedilar o objeto do qual os filoacutesofos se dizem amantes mais
especificamente no gecircnero desse objeto constitui um dado importante nessa
purificaccedilatildeo Os homens comuns enfrentam a morte movidos pelas afeiccedilotildees que mantecircm
em vida humana e aparentemente pretendem mantecirc-las na condiccedilatildeo de mortos
mostrando-se assim apegados ao corpo e ao que eacute relativo agrave vida humana (ἀλζξώπηλνο
Fed 68a3) O filoacutesofo ao contraacuterio se move pelo desejo de se reunir a seres divinos
descorporificados identificados aos seres da ordem inteligiacutevel como se veraacute mais
adiante uma vez que reconhece pela filosofia ser a desvinculaccedilatildeo do que eacute relativo agrave
condiccedilatildeo humana como algo positivo93
Outro ponto importante acerca dessa racionalizaccedilatildeo sobre a morte diz respeito a
uma certeza uma convicccedilatildeo (ζθόδξα γὰξ αὐηῷ ηαῦηα δόμεη Fed 68b3) que se adquire
sobre eles pela filosofia como a do bom destino apoacutes a morte para aquele que filosofou
Tal convicccedilatildeo deve-se reparar daacute-se pela via racional e tem em vista junto agrave
pretendida estadia com os deuses (Fed 69c-d6) a aquisiccedilatildeo de um estado de pureza dito
θξνλήζεσο do qual satildeo amantes os filoacutesofos e no qual ele teraacute a desejada sabedoria94
Tem-se ressaltado novamente neste argumento os dois aspectos da θξόλεζηο sua
conotaccedilatildeo de sabedoria alto conhecimento e uma condiccedilatildeo de pureza da alma De
93Sobre a funccedilatildeo do misticismo que Platatildeo apresenta no Feacutedon Brehieacuter pergunta ldquoPoderiacuteamos ser
tentados a considerar o misticismo como um simples meio de intelectualismo de fato uma boa parte dos
argumentos que convida purificar a alma da impureza do corpo (65b-66c) insistem sobre as razotildees
intelectuais da purificaccedilatildeo [] mas podemos crer que as noccedilotildees religiosas introduzidas com um
semelhante acento sejam simples metaacuteforas literaacuteriasrdquo Breacutehier op cit p 237 Compatiacutevel em parte
com a nossa anaacutelise Moulinier comenta ldquoUma tal doutrina eacute no fundo a mesma que a dos Misteacuterios
que por sua vez natildeo prometendo mais que as purificaccedilotildees libertadoras prometem uma felicidade divina
no outro ladordquo Moulinier opcit p 359 Sem pretensotildees de responder a estas questotildees de cunho
religioso importa observar a construccedilatildeo de uma concepccedilatildeo de depuraccedilatildeo racional em benefiacutecio da alma
que consiste na filosofia
94 Fed 68b4 ldquoPelo menos meu caro amigo assim devem pensar os filoacutesofos que o satildeo de fato pois eacute
neles que em especial se firma esta convicccedilatildeo de que em nenhum outro lugar a natildeo ser ali lhes seraacute
dado alcanccedilar a autecircntica sabedoria (κεδακνῦ ἄιινζη θαζαξῶο ἐληεύμεζζαη θξνλήζεη ἀιι ἢ ἐθεῖ) e
Fed 68a7 ldquoalgueacutem que ame deveras a sabedoria (θξνλήζεσο δὲ ἄξα ηηο ηῷ ὄληη ἐξῶλ) e sinta em si
enraizada essa convicccedilatildeo ()rdquo
153
maneira incisiva o texto apresenta tal estado e esse alto conhecimento possiacutevel somente
com a total separaccedilatildeo entre alma e corpo e portanto inatingiacutevel inteiramente durante a
vida O que pode parecer uma afirmaccedilatildeo frustrante para aquele que se empenhou em
filosofar demonstra na verdade o tipo de crenccedila que o exerciacutecio racional daacute subsiacutedios
Em outras palavras trata-se de apresentar os pilares inteligentes que sustentam a crenccedila
da imortalidade da qual Soacutecrates natildeo abre matildeo e que justificam o seu destemor sendo a
atividade do pensamento atuando livre de influecircncias diversas a base principal para uma
convicccedilatildeo
ldquo[] Pelo menos meu caro assim devem pensar os filoacutesofos que
o satildeo de fato pois eacute neles que em especial se forma a convicccedilatildeo de
que em nenhum lugar a natildeo ser ali lhes seraacute dado alcanccedilar a
autecircntica sabedoria E se isto eacute exato nada mais absurdo (ἀινγία)
portanto como dizia haacute pouco do que um homem dessa tecircmpera
recear a morterdquo (Fed 68 a-b)
Outros adjetivos se somaratildeo agraves vantagens que pode trazer o exerciacutecio da
filosofia As virtudes como coragem (ἀλδξεία Fed 68c5) e temperanccedila (ζσθξνζύλε
Fed 68c8) satildeo aquisiccedilotildees do filoacutesofo ao longo de uma vida dedicada ao pensar e aos
cuidados da alma Diferentemente da noccedilatildeo vulgar de coragem e temperanccedila a
aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude se daacute com conduta de desapego que se realiza pelo
exerciacutecio do pensamento Para a maioria ser corajoso consiste em enfrentar o que lhes
causa temor como a morte sendo neste caso o proacuteprio medo a causa da accedilatildeo De
maneira similar o ser temperante consiste para o natildeo filoacutesofo em certo comedimento
imposto justamente pelo desregramento que o acomete sendo a intemperanccedila portanto
a causa da temperanccedila (Fed 68d-69a4) As accedilotildees para o vulgo tem origem na
irracionalidade das emoccedilotildees afecccedilotildees das quais a alma do filoacutesofo estaacute treinada em natildeo
se deixar influenciar e pode assim agir guiado pela razatildeo
ldquo- Ora meu caro siacutemias talvez natildeo seja esse o processo
adequado de troca devido agrave virtude esse de trocar prazeres por
prazeres sofrimentos por sofrimentos receios por receios ndash uns
maiores por outros menores - como se de moedas tratasse Talvez
que pelo contraacuterio haja uma uacutenica moeda adequada capaz de
assegurar a validade de todas essas trocas ndash a Razatildeo - (ἀιι ᾖ ἐθεῖλν
κόλνλ ηὸ λόκηζκα ὀξζόλ ἀληὶ νὗ δεῖ πάληα ηαῦηα θαηαιιάηηεζζαη
θξόλεζηο) Sim talvez soacute com ela [e mediante ela] se possa de
verdade [comprar e vender] coragem temperanccedila justiccedila numa
palavra a autecircntica virtude que eacute a que vem acompanhada de razatildeo
(ζπιιήβδελ ἀιεζὴο ἀξεηή κεηὰ θξνλήζεσο) []rdquo (Fed 69a6-10)
154
A relaccedilatildeo do filoacutesofo com o corpo e de maneira mais abrangente sua postura
diante das questotildees humanas mostram a especificidade de uma eacutetica baseada na
inteligecircncia Aqueles que dedicam a vida agrave filosofia trocam os apelos e os prazeres
corporais pelas virtudes e assim procuram se depurar do modo mais apropriado (Fed
69a-b) que constitui o cuidado da alma Esses almejam aquilo que por analogia
poderia ser considerado a uacutenica moeda correta a θξόλεζηο a qual deve prevalecer sobre
todo e qualquer tipo de troca ou tentando apreender mais profundamente o sentido da
analogia o valor superior a qualquer moeda que se possa adquirir Diante de tal relaccedilatildeo
cabe analisar a analogia a fim de verificar a noccedilatildeo de valor e de superioridade que o
argumento sugere A argumentaccedilatildeo se utiliza de analogia cujo objeto a moeda
representa a instabilidade dos paradigmas em que o homem comum se baseia para
atribuir valor Note-se que se tem sugerido assim a distinccedilatildeo entre dois planos no qual
fica aparente a dicotomia entre um valor de uso que se refere agrave troca de um prazer pelo
outro e um valor real a θξόλεζηο e as verdadeiras virtudes Como objeto desprovido de
valor intriacutenseco a moeda em seu uso comum demonstra por contraste a superioridade
da θξόλεζηο que eacute dada como objeto em si mesmo valioso Sua importacircncia consiste
justamente na funccedilatildeo de promover as virtudes a qual o filoacutesofo compreende quando se
dispotildee a procurar aquilo que eacute de mais alto valor e descobre ser a proacutepria θξόλεζηο a
fonte dos bens Tal relaccedilatildeo difere desse modo das trocas e das escolhas que se realizam
no plano da simples permuta onde natildeo haacute nenhuma verdadeira aquisiccedilatildeo visto que aiacute
os objetos satildeo efecircmeros As relaccedilotildees para o homem comum constituem uma relaccedilatildeo de
substituiccedilatildeo uma vez que esse efetua uma permuta entre objetos cujo valor eacute o mesmo
enquanto o filoacutesofo ao contraacuterio tem em vista a troca de algo inferior referente ao
corpo por algo superior as virtudes verdadeiras95
o que consiste em uma verdadeira
relaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo
A vida filosoacutefica como um modo intelectivo de purificaccedilatildeo garante assim a
verdadeira aquisiccedilatildeo ou seja a elevaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo de alta inteligecircncia e por
consequecircncia promove as verdadeiras virtudes96
Deve-se notar que as virtudes assim
95Rowe tambeacutem comenta sobre a inquietante comparaccedilatildeo dizendo que a base da comparaccedilatildeo natildeo
consiste propriamente na troca de valores mas no valor e na importacircncia dos objetos em questatildeo Na sua
visatildeo isso ajuda a pontuar a phronesis equivalente a sabedoria que natildeo consiste em mais um objeto
dentre tantos outros a ser trocado Plato Phaedo texto estabelecido e comentado por C J Rowe
Cambridge University Press 1996 (Cambridge Greek and Latin Classics) p 149-150
96 Yvon Bregraves compreende a perspectiva que Platatildeo lanccedila sobre a arete da seguinte forma ldquoCom o Feacutedon
a alma se arrisca natildeo mais a tornar-se apenas um receptaacuteculo de arete mas o substituto de arete (op
155
como a θξόλεζηο satildeo postas como objetos almejados e ao mesmo tempo qualidades
passiacuteveis de serem adquiridas com o processo racional de purificaccedilatildeo Natildeo se tem aqui
uma noccedilatildeo de ἀξεηή que embora aliada ao exerciacutecio do pensamento consiste no que se
poderia dizer uma ideia de justiccedila de coragem ou de temperanccedila Trata-se ao que
parece de sugerir uma noccedilatildeo de verdadeira virtude relacionada agrave noccedilatildeo de inteligecircncia
a qual recebe nessa argumentaccedilatildeo seus primeiros contornos Do mesmo modo
pretende-se argumentar acerca do teor racional de sua aquisiccedilatildeo de modo a qualificar e
especificar a conduta do filoacutesofo Assim as virtudes tal como a θξόλεζηο consistem
em qualidades dadas pelo exerciacutecio do pensar ao modo da filosofia e podem ser
referidas como se vecirc nos termos da purificaccedilatildeo Uma vez a alma depurada ela estaacute
dotada de virtudes verdadeiras e portanto livre de apresentar aparecircncias enganosas
(ζθηαγξαθία) de virtude
A partir dessa argumentaccedilatildeo note-se que se agrega agrave noccedilatildeo de alto pensamento
dito nos termos da θξόλεζηο a noccedilatildeo de autecircntica virtude da qual ele eacute tambeacutem
responsaacutevel (θαὶ αὐηὴ ἡ θξόλεζηο κὴ θαζαξκόο ηηο ᾖ Fed 69c2) A dupla face do
pensamento como resultado do processo e ao mesmo tempo agente que o promove
mostra que a aquisiccedilatildeo da verdadeira virtude corresponde agrave aquisiccedilatildeo do estado de alta
inteligecircncia que pressupotildee a θξόλεζηο Estar na condiccedilatildeo da θξόλεζηο pressupotildee ter
adquirido a alta inteligecircncia pelo processo do proacuteprio pensamento se tornando desse
modo possuidor das virtudes Assim ao mesmo tempo em que se tem agrave mostra alguns
dos seus atributos sugere-se a valoraccedilatildeo do pensar em seu mais alto niacutevel virtuoso
puro e autecircntico por isso condiccedilatildeo almejada pelo filoacutesofo Nos papeacuteis de agente e
paciente o pensar neste niacutevel se apresenta como o cume da atividade intelectual na qual
a alma se encontra em total independecircncia do corpo apesar da convivecircncia com ele e
demonstra atingir por conta disso as coisas em seu modo puro ou em termos
filosoacuteficos verdadeiro Tal pureza lhe permite um grau de compreensatildeo acerca de um
gecircnero distinto diferente do corpoacutereo identificado agrave condiccedilatildeo de estar morto que
constitui a peculiaridade do seu alcance A purificaccedilatildeo torna salientes suas distinccedilotildees e
as distinccedilotildees do que a ele se refere deixando claro que a sua atividade se daacute em torno
deste gecircnero incorpoacutereo diferente do sensiacutevel e tem em vista o que eacute verdadeiro Do
mesmo modo note-se que sendo as virtudes ataacutevicas ao seu exerciacutecio o pensar em
cit paacuteg 193) Jaacute Monique Dixsaut na nota 104 de sua traduccedilatildeo diz ldquo[] o resultado da purificaccedilatildeo
pelo pensamento eacute a katharsis isto eacute resultado do que foi purificado as virtudes Puras de qualquer
erro aos quais concernem seus termos de aplicaccedilatildeo as virtudes se tornam moderaccedilatildeo justiccedila etc[]rdquo
156
busca de sua excelecircncia constitui o ponto em que racionalidade e moral satildeo ligadas no
diaacutelogo e revela assim o teor eacutetico da investigaccedilatildeo sobre a imortalidade e da vida
segundo a filosofia
Dadas as aquisiccedilotildees do exerciacutecio do pensamento na filosofia a defesa da
conduta do filoacutesofo mostra seu valor e seu modo de operar O pensamento tem exposto
nos termos da θάζαξζηο a sua funccedilatildeo no contexto do diaacutelogo dignificar a vida do
filoacutesofo o deixando pleno de virtudes conferir-lhe algum grau de conhecimento97
tornar a alma pura e se tornar com isso cada vez mais puro ou seja livre para pensar
A abrangecircncia desta noccedilatildeo de pensamento puro ou pensamento livre do corpoacutereo natildeo
tem seu caraacuteter inteiramente exposto mas note-se eacute afim e estaacute dentro da proposta de
investigaccedilatildeo da imortalidade como permanecircncia apoacutes a morte do corpo como sugerido
anteriormente Aleacutem disso vale notar que o diaacutelogo elenca atraveacutes dos vaacuterios
argumentos utilizados na investigaccedilatildeo as caracteriacutesticas do pensamento e por enquanto
importa ressaltar as duas importantes atribuiccedilotildees que a noccedilatildeo de θαζαξκόο oferecem
analogamente e que passam a integrar o conjunto de qualidades do trabalho racional
processo e autenticidade este uacuteltimo vinculado agrave ἀιήζεηα Da mesma maneira o
θαζαξόο apresenta clareza e precisatildeo como qualidades referentes aos seus objetos e
portanto compartilhada pelo pensamento Analogamente referida pela θάζαξζηο a
operacionalidade dada nos termos da δηάλνηα e ινγηζκόο que conduz agrave excelecircncia da
razatildeo tem proposto seu valor depurativo O que na purificaccedilatildeo eacute dado como separaccedilatildeo e
afastamento mais adiante seraacute revelado como o discernimento de objetos especiacuteficos
mas que por enquanto constitui um processo de desapego promovido pela filosofia de
valor moral Tais noccedilotildees faratildeo parte da concepccedilatildeo de ciecircncia que o diaacutelogo evocaraacute
mais adiante e compotildeem a partir de entatildeo as caracteriacutesticas da atividade racional a qual
sofreraacute ao longo do diaacutelogo as devidas formulaccedilotildees filosoacuteficas
97 Pakaluk considera que a desvinculaccedilatildeo depuradora que trata o texto se daacute em graus Aos poucos a
alma vai se aproximando do estado em que permaneceraacute quando estiver inteiramente pura liberta do
corpo Ele entende que ao ligar a noccedilatildeo de purificaccedilatildeo com o treino para a morte Platatildeo sugere ser
possiacutevel a depuraccedilatildeo em vida mesmo sendo obviamente limitada ldquoPodemos imaginar tambeacutem que
parte do objetivo de Platatildeo ao introduzir a imagem da purificaccedilatildeo no SD (argumento de defesa de
Soacutecrates) em 65e6-66a 7 e 67c5-d1 eacute sugerir que a separaccedilatildeo nesta vida difere somente em graus da
morte O processo de remover uma impureza eacute naturalmente um processo para alcanccedilar um grau
extremo de uma qualidade que jaacute eacute presente Dizer que bdquonoacutes natildeo podemos conhecer nada puramente na
companhia do corpo‟ (64e4) implica dizer que noacutes jaacute conhecemos algo em algum grau na companhia do
corpordquo Pakaluk Michel ldquoDegrees of Separation in the Phaedordquo in Phronesis - Journal For Ancient
Philosophy Brill XLVIII 2 Leiden 2003 paacuteg 101
157
14 Subsistecircncia da alma e a faculdade cognitiva
Dado o processo de afastamento e a consequente separaccedilatildeo entre corpo e alma
as questotildees acerca de imortalidade satildeo formuladas com vistas para a sobrevivecircncia apoacutes
a morte A partir dos proacuteximos argumentos o foco da argumentaccedilatildeo teraacute em questatildeo a
natureza da alma que como tal permite sua subsistecircncia Surge nos termos da filosofia
especificaccedilotildees acerca do domiacutenio correspondente ao que a tradiccedilatildeo religiosa tem como
poacutes-vida no qual se apresentam algumas caracteriacutesticas daquilo que seraacute descrito como
o domiacutenio da inteligibilidade e que tem portanto a faculdade cognitiva da alma como
testemunho de sua presenccedila nesse plano
ldquo[] Quem nos garante de fato que ao separar-se do corpo a
alma subsiste algures (νὐδακνῦ ἔηη ᾖ) e natildeo fica destruiacuteda e
aniquilada (δηαθζείξεηαί ηε θαὶ ἀπνιιύεηαη) no mesmo dia em que
morre Quem sabe se logo depois que dele se liberta e sai natildeo se
desvanece como sopro ou fumo evolando-se para natildeo mais deixar
rastro de existecircncia (νὐδὲλ ἔηη νὐδακνῦ ᾖ) Claro que a verificar-se
a hipoacutetese de ela subsistir algures concentrada em si mesma e liberta
(εἴπεξ εἴε πνπ αὐηὴ θαζαὑηὴλ ζπλεζξνηζκέλε θαὶ ἀπειιαγκέλε )
desses males que mesmo haacute pouco enumeravas entatildeo sim haveria
fortes e boas razotildees para esperar que o que dizes Soacutecrates fosse
verdade Poreacutem aiacute estaacute uma coisa que requer talvez natildeo pequeno
esforccedilo persuadir e provar (νὐθ ὀιίγεο παξακπζίαο δεῖηαη θαὶ
πίζηεσο) nada mais nada menos que a alma existe para aleacutem da
morte e manteacutem de alguma forma o uso das suas faculdades e
entendimento (ὡο ἔζηη ηε ςπρὴ ἀπνζαλόληνο ηνῦ ἀλζξώπνπ θαί ηηλα
δύλακηλ ἔρεη θαὶ θξόλεζηλ)rdquo (Fed 70a2-b4)98
Deve-se primeiramente observar que a concepccedilatildeo de alma segundo a tradiccedilatildeo
entra em conflito com a noccedilatildeo de morte oferecida pelo filoacutesofo ateacute aqui Ao se levantar
pela voz de Cebes a possibilidade de destruiccedilatildeo e de aniquilamento coloca-se em
98 Vale chamar a atenccedilatildeo para as traduccedilotildees do termo phronesis Na traduccedilatildeo francesa de Monique
Dixsaut temos esse trecho ldquo[] ela conserva tambeacutem uma certa forccedila e o pensamento (penseacutee)rdquo Dixsaut
op cit p Rowe opta por algo proacuteximo da traduccedilatildeo que estamos seguindo ldquotina dinamin `algum poderacute
`alguma capacidadeacute mas seraacute de fato uma capacidade relevante se for para um entendimento
(understanding)rdquo Rowe op cit p 153 Fowler opta por ldquoany power and intelligencerdquo Fowler H N Plato
Phaedo Harvard University Press Cambridge Massachusetts Loeb Classical Library p243
158
questatildeo de maneira mais direta a natureza da alma que estaacute em jogo A existecircncia da
alma separada do corpo esbarra em um problema que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo
uma vez que na morte o perecimento do corpo eacute visiacutevel Embora o argumento acerca da
filosofia como exerciacutecio para a boa morte seja aceito falta detalhar esta natureza que
oferece condiccedilotildees para uma possiacutevel sobrevivecircncia agrave corrupccedilatildeo Dito de outro modo o
diaacutelogo propotildee uma anaacutelise de planos no qual se pode distinguir corpo e alma a fim de
revelar o gecircnero de cada um e obter a partir disso uma explicaccedilatildeo acerca da destruiccedilatildeo
de um e da permanecircncia do outro Da mesma maneira eacute notaacutevel a necessidade de
demonstrar a possibilidade de rastrear de conhecer em alguma medida tal subsistecircncia
sendo o pensamento e sua capacidade cognitiva as caracteriacutesticas sobreviventes e
portanto uacuteteis para a investigaccedilatildeo
Para isso o diaacutelogo utilizaraacute duas argumentaccedilotildees que procuram demonstrar a
existecircncia A primeira que vem a seguir mostra atraveacutes da anaacutelise do movimento e
princiacutepio de geraccedilatildeo dos seres vivos que a alma se distingue em gecircnero de tudo o que eacute
corruptiacutevel pelo tempo Na sequecircncia com a Teoria da Reminiscecircncia se pretende
oferecer uma explicaccedilatildeo sobre a vivecircncia da alma antes do nascimento em vida humana
ou seja em um periacuteodo anterior agrave sua prisatildeo em um corpo Ambos os argumentos
oferecem uma visatildeo da alma neste domiacutenio distinto e por conseguinte do pensamento
como faculdade do conhecimento e de sua atuaccedilatildeo como capacidade cognitiva Cabe
verificar as primeiras formulaccedilotildees deste outro domiacutenio distinto do sensiacutevel no qual a
alma supostamente pode sobreviver a partir do argumento da geraccedilatildeo e corrupccedilatildeo e dos
contraacuterios Neles satildeo dadas informaccedilotildees acerca da natureza da alma e acerca da
concepccedilatildeo de inteligibilidade que o texto pretende construir a partir da concepccedilatildeo
filosoacutefica de morte como um estado no qual a alma subsiste
Uma vez de acordo que a alma sobrevive no Hades tal como narra os antigos
misteacuterios (παιαηὸο ιόγνο) parece aceitaacutevel conceber que as almas que ali habitam
regressam renascendo dos que estatildeo mortos Logo deve-se admitir que os vivos nascem
dos mortos o que demonstra portanto a sua existecircncia no paiacutes dos mortos Se
comprovada a validade deste raciociacutenio Soacutecrates e seus amigos teriam encontrado uma
maneira de argumentar a favor da imortalidade (Fed 70c4-d5) O princiacutepio em questatildeo
a saber princiacutepio da geraccedilatildeo o qual governa a geraccedilatildeo dos seres vivos ganha uma
anaacutelise que mostraraacute seus limites em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de vida e morte geraccedilatildeo e
corrupccedilatildeo Ao propor que as coisas se originam do seu oposto cabe verificar se nas
relaccedilotildees entre opostos esse princiacutepio se apresenta seja no que diz respeito a situaccedilotildees
159
opostas como morte-vida seja nas relaccedilotildees em que estatildeo envolvidos conceitos como a
justiccedila o belo e a grandeza Em outros termos a anaacutelise parte da relaccedilatildeo de
contrariedade ἐλαληίνο que daacute origem conforme o raciociacutenio ao nascimento agrave γέλεζηο
(Fed 70d5-e) Seria comum a tudo o que existe surgir de seu oposto Esta pergunta de
fundo norteia a anaacutelise da γέλεζηο e conduz a investigaccedilatildeo de modo a examinar o
proacuteprio princiacutepio e qual contexto ele abrange
Parece evidente que este princiacutepio eacute presente ao se observar a geraccedilatildeo
equivalente a uma mudanccedila de estado O mais fraco pode se tornar mais forte o mais
raacutepido se tornar mais lento coisas injustas podem se tornarem justas o que denota que
entre as coisas que satildeo passiacuteveis de transiccedilatildeo ou seja que podem mudar de estado a
mudanccedila sempre seraacute para o estado contraacuterio (Fed 71a) Da mesma forma a
argumentaccedilatildeo tem em vista o processo de mudanccedila que se daacute no intervalo entre um
estado e outro que constituem o processo de geraccedilatildeo como diminuiccedilatildeo e aumento
aquecimento resfriamento separar unir (Fed 71a12-b10) O argumento coloca assim
estado e processo como os pontos a partir dos quais se deve dar a diferenciaccedilatildeo de
gecircnero entre o que se analisa Examinada dessa perspectiva a morte tem a vida como
seu contraacuterio e morrer e nascer satildeo o processo de passagem de um estado para o outro
gerando-se reciprocamente (Fed 71c) Dado que a alma existe no mundo dos mortos e
que o estar morto se origina do estar vivo e o estar vivo por sua vez adveacutem do estado
de morte parece inegaacutevel que faz parte do processo assim como o morrer o reviver (Τὸ
ἀλαβηώζθεζζαη Fed71d5 72a2)
ldquo- E agora ndash comentou Soacutecrates ndash que caminho vamos noacutes
seguir Ou bem que nos escusamos a compensar esse processo com
seu oposto (mas natildeo seraacute isso deixar a natureza manca (ἀιιὰ ηαύηῃ
ρσιὴ ἔζηαη ἡ θύζηο) ) ou bem que a ldquomorrerrdquo teremos de antepor
um processo de geraccedilatildeo contraacuterio [] ndash E qual em concreto ndash
Reviverrdquo (71e8-13)
Trata-se de dois estados e sobretudo no caso do tema da morte de planos
diferentes em que se analisa a geraccedilatildeo Ainda que natildeo se questione ainda sobre o tipo
destes estados como se daraacute mais adiante cabe notar tal divisatildeo e a dinacircmica que
Soacutecrates sublinhou no processo de geraccedilatildeo O movimento que descreve a γέλεζηο eacute
dotado de uma circularidade que garante o nascimento e a morte dos seres vivos com
essa a alternacircncia de estados Tal noccedilatildeo eacute importante porque sugere a conservaccedilatildeo
daquilo que morre e renasce oferecendo assim subsiacutedios para a tese de permanecircncia da
160
alma Sem um movimento circular que garantisse a alternacircncia entre estados o
fenocircmeno da geraccedilatildeo cessaria uma vez que a mudanccedila que constitui a gecircnese de morte
e vida natildeo aconteceria
ldquo[] se os contraacuterios natildeo se compensassem mutuamente como
que numa sucessatildeo circular (ὡζπεξεὶ θύθιῳ πεξηηόληα) se ao inveacutes
a geraccedilatildeo se processasse linearmente e num uacutenico sentido de um
extremo para o seu oposto sem dar volta na direccedilatildeo do primeiro e
vice-versa bem vecircs todas as coisas acabariam por adquirir a mesma
postura por se sujeitarem a um mesmo estado e seria o fim da
geraccedilatildeo (νἶζζ ὅηη πάληα ηειεπηῶληα ηὸ αὐηὸ ζρκα ἂλ ζρνίε θαὶ ηὸ
αὐηὸ πάζνο ἂλ πάζνη θαὶ παύζαηην γηγλόκελα)rdquo (Fed 72a11-72b5)
Soacutecrates parece ter demonstrado dessa forma a loacutegica que subjaz agrave geraccedilatildeo e
ao mesmo tempo agrave doutrina da transmigraccedilatildeo das almas que narra a antiga doutrina
(Fed 72d6 ndash e2) Ao mesmo tempo estaacute diante de um argumento que autoriza a
investigaccedilatildeo da indestrutibilidade da alma uma vez que tal loacutegica dissipa ao menos por
ora qualquer duacutevida acerca da possibilidade de sua existecircncia e portanto de sua
resistecircncia agrave morte e destruiccedilatildeo do corpo Conveacutem notar ainda alguns elementos deste
argumento Tal como foi dada a geraccedilatildeo assume como principal caracteriacutestica a
transitoriedade entre um estado e outro Deve-se observar que embora a argumentaccedilatildeo
se decirc a partir da observaccedilatildeo da geraccedilatildeo em um sentido bastante amplo e pouco
definido do que existe - seres vivos fenocircmenos da natureza e noccedilotildees abstratas ndash tem-se
por objetivo encontrar um princiacutepio comum que promove tal existecircncia e conferir a ele
uma explicaccedilatildeo filosoacutefica como se viu O plano em que se daacute o exame vale observar
consiste no domiacutenio dos eventos da vida no tempo de sua duraccedilatildeo (βίνο) cuja loacutegica
que os organiza mostra um elemento inexoraacutevel em meio agrave mudanccedila que inicia ou finda
essa duraccedilatildeo a alma que renasce Morte e vida satildeo tomados nessa perspectiva como
circunstacircncias transitoacuterias sendo conferido a elas portanto certa relatividade em
contraste com a conservaccedilatildeo da alma que permanece
Essa parece ser uma estrateacutegia que Soacutecrates utiliza na argumentaccedilatildeo para chegar
ao ponto que tinha em mira demonstrar que algo escapa agrave mudanccedila dos eventos
necessaacuterios agrave vida humana nascer-morrer Se a questatildeo de fundo levava em conta a
possibilidade de destruiccedilatildeo da alma junto com o corpo a conclusatildeo da argumentaccedilatildeo
oferece uma noccedilatildeo de exterioridade a esse princiacutepio atraveacutes do ldquoreviverrdquo o qual
apresenta o processo de geraccedilatildeo como movimento ciacuteclico possiacutevel e ao mesmo tempo
161
sugere que de tal processo participa justamente algo que resiste a transitoriedade das
mudanccedilas Esse aspecto duacutebio do reviver parece importante para fazer a distinccedilatildeo entre
seres abstratos e o plano da experiecircncia que o diaacutelogo vai apresentar mais adiante
Embora tenha a sua sobrevivecircncia demonstrada pelo princiacutepio de geraccedilatildeo a alma parece
natildeo obedececirc-lo na medida em que ela mesma natildeo muda natildeo se aniquila e permanece
portanto no mundo do Hades podendo nascer novamente Sendo assim sua existecircncia
natildeo pode ser tomada tal como existecircncia na natureza e nem sua duraccedilatildeo compreendida
no tempo de vida devendo ser ela de um gecircnero distinto
Importa realizar tais observaccedilotildees para apontar a construccedilatildeo da noccedilatildeo de
domiacutenio em que vai atuar o intelecto Pode-se entrever nessa uacuteltima argumentaccedilatildeo o
plano distinto da vida humana e da corporeidade como o ambiente no qual a θξόλεζηο
de alguma forma atua dada sobrevivecircncia da alma O fato de encontrar um princiacutepio que
apresente uma loacutegica para explicar a sobrevivecircncia da alma eacute do mesmo modo um
dado que deve ser levado em consideraccedilatildeo uma vez que o pensar no exerciacutecio de sua
faculdade teraacute como vaacutelido para a investigaccedilatildeo da imortalidade o que for do acircmbito da
racionalidade Dadas as razotildees para se convencer da subsistecircncia da alma o diaacutelogo
prossegue averiguando as possibilidades de dizecirc-la nesse domiacutenio passando a
especificar de agora em diante a atuaccedilatildeo do pensamento
II A natureza inteligiacutevel
21 A reminiscecircncia como ato e operaccedilatildeo cognitiva
Apoacutes a conclusatildeo sobre a indestrutibilidade e portanto sobre a preservaccedilatildeo da
faculdade intelectual da alma e de sua capacidade cognitiva os rumos da investigaccedilatildeo
sobre a imortalidade passam a utilizarem elementos epistemoloacutegicos Parece
conveniente que a faculdade intelectual da alma tenha a partir de agora o seu perfil
explorado e o resultado de sua atividade analisado para que se possa averiguar em que
medida tal produto constitui de fato um conhecimento Para tal o texto recorre a Teoria
da Reminiscecircncia um discurso (ιόγνο) jaacute conhecido do ciacuterculo de amigos de Soacutecrates
atraveacutes da qual se pretende demonstrar em certa medida a subsistecircncia e a atuaccedilatildeo
162
intelectual da alma A concepccedilatildeo de rememoraccedilatildeo tal como o Feacutedon apresenta ressalta
o caraacuteter cognitivo do pensamento sendo a ἀλάκλεζηο equivalente agrave atividade do
aprendizado
Introduzir a Teoria como um argumento que oferece provas (αἱ ἀπνδείμεηο Fed
75a5) da imortalidade parece conveniente aos propoacutesitos da investigaccedilatildeo dado que a
accedilatildeo de rememorar permite ao filoacutesofo fazer deduccedilotildees sobre um domiacutenio no qual o
corpo ainda natildeo tinha nenhuma participaccedilatildeo ou seja em um ambiente supostamente
anterior ao nascimento em vida humana Considera-se que a rememoraccedilatildeo constitui
assim um testemunho da accedilatildeo puramente racional e portanto a partir da qual se pode
deduzir acerca da imortalidade
ldquoO que aliaacutes Soacutecrates ndash atalhou Cebes- natildeo vem senatildeo
reforccedilar essa conhecida teoria que trazes agrave baila (θαὶ θαη ἐθεῖλόλ γε
ηὸλ ιόγνλ) ou seja que o aprender natildeo eacute senatildeo recordar segundo
ela eacute indispensaacutevel que tenhamos adquirido em tempo anterior ao
nosso nascimento os conhecimentos que atualmente recordamos (ὅηη
ἡκῖλ ἡ κάζεζηο νὐθ ἄιιν ηη ἢ ἀλάκλεζηο ηπγράλεη νὖζα θαὶ θαηὰ
ηνῦηνλ ἀλάγθε πνπ ἡκᾶο ἐλ πξνηέξῳ ηηλὶ ρξόλῳ κεκαζεθέλαη ἃ λῦλ
ἀλακηκλῃζθόκεζα) Ora tal natildeo seria possiacutevel se a nossa alma natildeo
existisse jaacute algures antes de encarnar nesta forma humana De modo
que ateacute sob este prisma daacute ideia que a alma eacute algo de imortalrdquo (Fed
72e3-73a3)
A elucidaccedilatildeo desta noccedilatildeo de rememoraccedilatildeo como aprendizado vem logo a seguir
No exerciacutecio de rememorar a explicaccedilatildeo (Ἑλὶ κὲλ ιόγῳ Fed 75a7) dada como resposta
correta a um questionamento eacute possiacutevel porque a alma teve conhecimento e uma
atividade racional correta neste periacuteodo anterior99
Desse modo a atividade intelectual
em termos do conhecimento e de um arrazoamento correto (ἐπηζηήκε ἐλνῦζαθαὶ ὀξζὸο
ιόγνο)100
realizados em um estado anterior ao nascimento constitui a condiccedilatildeo para que
99 Fed 73a9-10 ldquo(hellip) quando interrogamos as pessoas desde que saibamos interrogaacute-las elas satildeo por
si capazes de explicar corretamente tudo o que se lhes peccedila ora se natildeo tivesses jaacute um conhecimento
inato e uma correta visatildeo das coisas de forma alguma estariam em condiccedilotildees de fazecirc-lordquo (θαίηνη εἰ κὴ
ἐηύγραλελ αὐηνῖο ἐπηζηήκε ἐλνῦζα θαὶ ὀξζὸο ιόγνο νὐθ ἂλ νἷνί η ἦζαλ ηνῦην πνηζαη)rdquo Fowler traduz
os termos por ldquosome knowledge and right reasonrdquo Fowler op cit p 253
100 Para Dominic Scott esta eacute uma clara alusatildeo de que a Teoria da Reminiscecircncia constitui a exemplo do
que se tem no Meacutenon uma teoria do inatismo Para o autor a diferenccedila da teoria de Platatildeo em relaccedilatildeo a
outras teorias do inatismo diz respeito ao dado de ser o conhecimento latente e sobretudo anterior ao
nascimento Este dado no entanto seria apenas um recurso literaacuterio afim com a prova da preacute-existecircncia
da alma como pretende o argumento sendo a Teoria na verdade sobre a descoberta de conteuacutedos inatos
Scott D Recollection and Experience - Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge
University Press nota 2 p 16 Embora seja a leitura de muitos inteacuterpretes vale dizer que esta natildeo eacute a
perspecitiva que se privilegia neste estudo A compreensatildeo de Chen sobre este ponto eacute bastante afim com
o que se entende aqui O autor chama tal experiecircncia de revivificaccedilatildeo de um conteuacutedo de uma percepccedilatildeo
163
haja rememoraccedilatildeo no estado de vida e uma prova da preexistecircncia da alma em relaccedilatildeo
ao nascimento em um corpo (Fed 73c1-3)
Cabe observar assim que o tipo de operaccedilatildeo do pensamento que a narrativa
acerca da ἀλάκλεζηο propotildee consiste na recuperaccedilatildeo de dados adquiridos em uma
experiecircncia puramente intelectual os quais satildeo considerados conhecimento e razotildees
corretas Aprender ou rememorar consiste nesta atividade de resgate de conhecimento
operaccedilatildeo que pode ser induzida vale dizer por diagramas e outras figuras matemaacuteticas
A passagem cita o exemplo para introduzir o tema da induccedilatildeo da reminiscecircncia e da
conduccedilatildeo do aprendizado Entretanto vale dizer que o aspecto cognitivo que se quer
apresentar no Feacutedon com a Teoria da Reminiscecircncia se desenvolveraacute com importantes
diferenccedilas em relaccedilatildeo ao Meacutenon diaacutelogo no qual o tema eacute explorado com vistas
sobretudo para a questatildeo do aprendizado nos termos de um raciociacutenio indutivo
Enquanto no Meacutenon101
a Teoria pretende oferecer uma explicaccedilatildeo e uma demonstraccedilatildeo
da capacidade raciocinativa e de um meacutetodo especiacutefico o meacutetodo indutivo a partir de
figuras matemaacuteticas no Feacutedon interessa mostrar a recuperaccedilatildeo de elementos inteligiacuteveis
nos termos de uma reaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo sensiacutevel a qual eacute dada como um ato simples e
como uma operaccedilatildeo tambeacutem sem grande complexidade da faculdade inteligente da
alma102
preacutevia O que se tem em mente para ele natildeo satildeo os conteuacutedos mas ldquoa revificaccedilatildeo do conteuacutedo desta
percepccedilatildeo preacutevia e o estado de ser lembrado do objeto que eacute mais uma vez vistordquo Ele explica que tal
conteuacutedo percepccedilotildees preacutevias diferenciam-se de ideias inatas de conteuacutedo definido dizendo ldquoA suposta
faculdade inata eacute distinta de ideias inatas exatamente neste ponto natildeo oferece o conteuacutedo necessaacuterio ()
entatildeo a percepccedilatildeo sensiacutevel eacute indispensaacutevel para oferecer o conteuacutedo do conhecimento os sentidos satildeo
sine qua non para o conhecimentordquo Chen op cit p 25 28 O inatismo tal como a Teoria no Feacutedon
apresenta parece se referir muito mais a uma faculdade inata de apreensatildeo de objetos de determinado tipo
do que a um conteuacutedo antes apreendido e mantido ateacute ser descoberto posteriormente As accedilotildees cognitivas
que descrevem a reminiscecircncia como um resgate de conteuacutedo tal como entendo consistem justamente
em maneiras de a alma realizar uma experiecircncia intelectual semelhante agrave que teve antes do nascimento
cujo resultado pode ser a apreensatildeo dos conceitos Natildeo haacute portanto latecircncia e descoberta de conteuacutedo
mas a descriccedilatildeo de um ato cognitivo que remonta uma experiecircncia intelectual passada
101 A rememoraccedilatildeo como aprendizado que o diaacutelogo Meacutenon apresenta traz uma diferenccedila em relaccedilatildeo ao
que se vecirc no Feacutedon ao considerar que a rememoraccedilatildeo de um conteuacutedo pode levar a outros (Men 81d3)
tal como parece mostrar o argumento no qual Soacutecrates conduz o escravo na investigaccedilatildeo de um problema
da geometria Ao tomar como modelo os meacutetodos dedutivo e indutivo dos geocircmetras (86-87b2) Soacutecrates
admite ter a reminiscecircncia um objetivo diferente que vai aleacutem da demonstraccedilatildeo de um plano inteligiacutevel
testemunhado pelo intelecto Platatildeo Meacutenon traduccedilatildeo de Maura Iglesias 2ordf ed Rio de Janeiro Satildeo Paulo
PUC do Rio Loyola 2003 (coleccedilatildeo Bibliotheca Antiqua)
102 Chen corrobora nossa anaacutelise ao dizer ldquo() a anamnesis como eacute concebida no Feacutedon se distingue
daquela vista no Meacutenon no que segue e em dois outros pontos A) rememoraccedilatildeo de ideias eacute a
rememoraccedilatildeo de ideias de forma isolada isto eacute natildeo da relaccedilatildeo de ideias entre elas mesmas enquanto que
no Meacutenon eacute a rememoraccedilatildeo de um objeto inteligiacutevel em relaccedilatildeo a outros inteligiacuteveis B) a rememoraccedilatildeo
tratada no Feacutedon eacute um instantaneous a rememoraccedilatildeo tratada no Meacutenon consiste em dois estaacutegios cada
um consistindo de um processo racionalrdquoChen op cit p 19-20
164
Eacute importante dar atenccedilatildeo a este uacuteltimo dado porque a partir dele tem iniacutecio uma
explanaccedilatildeo sobre o que se pode considerar a provocaccedilatildeo das sensaccedilotildees como um
estiacutemulo para o pensamento Apesar do papel negativo atribuiacutedo ao corpo e aos dados
sensiacuteveis as proacuteximas passagens mostram a colaboraccedilatildeo dos sentidos como indutores
desta atividade de reminiscecircncia a partir das quais se datildeo como se veraacute a seguir noccedilotildees
inteligiacuteveis como as noccedilotildees matemaacuteticas Vale notar que o contexto deste aprendizado
nos termos da rememoraccedilatildeo pressupotildee a superaccedilatildeo do domiacutenio sensiacutevel entretanto natildeo
exatamente por meio do exerciacutecio intelectual que exigem as operaccedilotildees matemaacuteticas
mas do ato intelectivo que corresponde a uma resposta inteligente da alma ao sensiacutevel
sendo nesse caso a noccedilatildeo matemaacutetica tambeacutem resultado de uma rememoraccedilatildeo
consistindo portanto em uma lembranccedila103
Uma vez aceita a definiccedilatildeo da reminiscecircncia cabe verificar como se constitui
uma rememoraccedilatildeo e como a Teoria potildee a questatildeo da cogniccedilatildeo Como retorno a um
conhecimento a reminiscecircncia designa determinada situaccedilatildeo (ηίλα ηξόπνλ Fed 73c5)
que envolve a participaccedilatildeo dos sentidos e ao mesmo tempo a superaccedilatildeo do domiacutenio
sensiacutevel A partir da percepccedilatildeo seja atraveacutes da visatildeo ou da audiccedilatildeo a alma toma
conhecimento do objeto que experiencia e de outro distinto desse que ela vecirc ou ouve
constituindo assim um conhecimento diferente da percepccedilatildeo sensiacutevel Esse objeto
distinto que a alma capta apreende (ἐλλόεζηο) consiste de fato no objeto lembrado ou
seja recuperado pelo intelecto dito ldquoconhecimentordquo e tal assimilaccedilatildeo no ato de
rememorar104
Natildeo se trata de uma mera percepccedilatildeo sensiacutevel mas de conceber algo que
estaacute para aleacutem dela105
103 Acrill faz um esclarecimento importante ldquoO argumento no Meacutenon diz respeito ao nosso
conhecimento de verdades necessaacuterias () O argumento do Feacutedon difere nisto trata da nossa aquisiccedilatildeo
dos conceitos mais do que de verdades necessaacuteriasrdquo Acrill J ldquoAnamnesis in the Phaedo ndash Remarks on the
73c-75crdquo in Essays on Plato and Aristotle 1997 New York Oxford University Press p 13 De acordo com
o que se tem analisado por verdades necessaacuterias os resultados de uma demonstraccedilatildeo matemaacutetica e por
conceitos as ideias
104 Fed73c6-10 ldquo() suponhamos que um indiviacuteduo percepciona um dado objeto pela vista pelos
ouvidos ou por qualquer outro meio sensorial e natildeo apenas fica a conhecer esse objeto como capta
para aleacutem dele a ideia de um outro que natildeo pertence agrave mesma esfera de conhecimentos natildeo seraacute
razoaacutevel neste caso afirmar que houve uma reminiscecircncia de algo que a nossa mente jaacute tinha captado
(ἐάλ ηίο ηη ἕηεξνλ ἢ ἰδὼλ ἢ ἀθνύζαο ἤ ηηλα ἄιιελ αἴζζεζηλ ιαβὼλ κὴ κόλνλ ἐθεῖλν γλῷ ἀιιὰ θαὶ ἕηεξνλ
ἐλλνήζῃ νὗ κὴ ἡ αὐηὴ ἐπηζηήκε ἀιι ἄιιε ἆξα νὐρὶ ηνῦην δηθαίσο ιέγνκελ ὅηη ἀλεκλήζζε νὗ ηὴλ
ἔλλνηαλ ἔιαβελ)rdquo
105 Acrill aponta para uma dificuldade acerca dos conteuacutedos dados na reminiscecircncia ao colocar uma
questatildeo importante sobre as razotildees do argumento oferecer nesses termos a possibilidade de apreensatildeo de
um segundo conteuacutedo na reminiscecircncia O autor se questiona sobre a omissatildeo da condiccedilatildeo de ser este
ldquooutrordquo anteriormente conhecido o que seria uma condiccedilatildeo condizente com a definiccedilatildeo de reminiscecircncia
mas que no entanto colocaria em risco o objetivo do argumento de constituir uma demonstraccedilatildeo da preacute-
existecircncia da alma Este conhecimento secundaacuterio derivado de uma primeira lembranccedila poderia ser
compreendido como uma invenccedilatildeo uma composiccedilatildeo de uma ideia o que segundo Acrill seria censuraacutevel
165
Ao ver a lira ou o manto do amado o amante se recorda dele do mesmo modo
algueacutem ao avistar Siacutemias ou ver a figura de um cavalo poderia se lembrar de Cebes ou
lembrar de Siacutemias a partir do retrato do proacuteprio Siacutemias (73d-e) Os objetos que possuem
alguma relaccedilatildeo seja de semelhanccedila ou dessemelhanccedila satildeo associados na rememoraccedilatildeo
quando um deles eacute percebido A ligaccedilatildeo entre eles no caso entre uma lira e um homem
descreve o processo de conceber uma ideia (εἶδνο) dada como a tomada de um
conteuacutedo pelo intelecto e oferecendo uma mostra do pensamento atuando de modo a se
distinguir e se elevar em relaccedilatildeo a uma percepccedilatildeo106
Deve-se notar que o que se tem nesse resgate eacute entretanto a forma do amado
nos termos de uma imagem oriunda do sensiacutevel Embora se trate de um conteuacutedo
cognitivo parece notaacutevel a ausecircncia de caraacuteter ontoloacutegico no sentido forte em que εἶδνο
apareceraacute ao longo do diaacutelogo e na Teoria das Ideias Ao que parece o objeto dado pela
lembranccedila tem seu aspecto inteligiacutevel sugerido no que se refere a um conteuacutedo da
mente mas natildeo consiste necessariamente em uma ideia Seria precipitado afirmar que
os conhecimentos tal como satildeo dados neste exemplo referem-se sempre a uma forma
inteligiacutevel O produto mental deste ato de rememorar dito lembranccedila pelo que o texto
sugere ateacute aqui consiste na imagem de uma experiecircncia vivida anteriormente Natildeo se
deve compreender que a lembranccedila de Siacutemias consiste na forma de Siacutemias Parece mais
plausiacutevel supor que ao ter como fonte o Siacutemias conhecido com o qual se teve uma
experiecircncia preacutevia a lembranccedila consista na imagem que remonta tal experiecircncia- o
Siacutemias visto
Nesse sentido a fonte da lembranccedila eacute muito mais empiacuterica e natildeo se trata
portanto da aquisiccedilatildeo de uma ideia Todavia tal aquisiccedilatildeo pode acontecer a partir das
associaccedilotildees possiacuteveis que se pode fazer na reminiscecircncia Ver Siacutemias e conceber que ele
eacute um homem por exemplo lembrar-se de um objeto relacionado a ele ou natildeo descreve
em certa medida a aquisiccedilatildeo de um conteuacutedo intelectual dado que eacute produto de uma
operaccedilatildeo do intelecto como se daraacute mais adiante Contudo natildeo parece estar em questatildeo
neste produto o qual constitui um conceito ou uma ideia caracteriacutesticas e extensotildees que
o qualificariam como tais A caracteriacutestica acerca da lembranccedila que parece ser
em uma investigaccedilatildeo ldquosobre a origem geral das ideiasrdquo e caacute entre noacutes a partir do que se observa natildeo
parece ser o caso Acrill op cit p 23
106 Fed 73d5-9 ldquoOra sabes o que acontece se por exemplo um amante avista uma lira um manto ou
qualquer objeto de que o seu amado habitualmente se serve ao mesmo tempo em que apreende a lira o
seu espiacuterito capta por igual a imagem do amado a quem a lira pertence e aiacute tens pois uma
reminiscecircncia(Οὐθνῦλ νἶζζα ὅηη νἱ ἐξαζηαί ὅηαλ ἴδσζηλ ιύξαλ ἢ ἱκάηηνλ ἢ ἄιιν ηη νἷο ηὰ παηδηθὰ αὐηῶλ
εἴσζε ρξζζαη πάζρνπζη ηνῦην ἔγλσζάλ ηε ηὴλ ιύξαλ θαὶ ἐλ ηῆ δηαλνίᾳ ἔιαβνλ ηὸ εἶδνο ηνῦ παηδὸο νὗ
ἦλ ἡ ιύξα ηνῦην δέ ἐζηηλ ἀλάκλεζηο)rdquo
166
importante ressaltar nesse argumento se refere justamente agrave natureza distinta do
conteuacutedo da faculdade cognitiva107
Conveacutem primeiramente observar que a superaccedilatildeo do intelecto que ocorre na
ἀλάκλεζηο se mostra importante para a prova da imortalidade e para os fins
epistemoloacutegicos que o diaacutelogo aos poucos faz uso a fim de comprovar a validade do
argumento e a eficiecircncia do pensamento Note-se que noccedilotildees como conhecimento
aprendizagem e reta razatildeo satildeo introduzidos ao passo que o diaacutelogo se encaminha para
elucidar a natureza da alma e assim realizar uma profiacutecua distinccedilatildeo em relaccedilatildeo ao
corpo e agrave percepccedilatildeo do sensiacutevel O argumento da ἀλάκλεζηο lanccedila luz dessa maneira
ao outro domiacutenio que ainda estaacute por ser explanado o qual supostamente abriga a alma
em estado de pureza e os conhecimentos O recurso dado pela Teoria da Reminiscecircncia
permite dessa forma associar o conhecimento e a atividade intelectual a este domiacutenio
distinto deslocando-os do campo que se refere ao corpo ao sensiacutevel para este outro o
qual mais tarde seraacute descrito e identificado ao inteligiacutevel Sendo assim vale examinar
por enquanto as caracteriacutesticas e a operaccedilatildeo desta atividade do pensamento nos termos
de uma rememoraccedilatildeo ou aprendizado atentando para os elementos epistemoloacutegicos que
comeccedilam a ser dispostos na investigaccedilatildeo
O argumento segue de modo a averiguar com mais detalhes as associaccedilotildees e os
objetos que se tem na reminiscecircncia
ldquo - Ora de todos estes exemplos natildeo decorre justamente que
nuns casos a reminiscecircncia se produz a partir de objetos
semelhantes e noutros a partir de objetos dessemelhantes
- Sem duacutevida
- E quando ela se produz a partir de objetos semelhantes natildeo
seraacute inevitaacutevel uma segunda reaccedilatildeo (πξνζπάζρεηλ) como esta ndash a de
nos interrogarmos sobre o grau de semelhanccedila que o objeto atual
apresenta com aquele que recordamos (ἐλλνεῖλ εἴηε ηη ἐιιείπεη ηνῦην
θαηὰ ηὴλ ὁκνηόηεηα εἴηε κὴ ἐθείλνπ)
- Eacute inevitaacutevel ndash confirmou
- Vecirc laacute entatildeo se estaacute certo ndash prosseguiu ndash Afirmamos creio a
existecircncia de algo ldquoigualrdquo (εἰ ηαῦηα νὕησο ἔρεη θακέλ πνύ ηη εἶλαη
ἴζνλ) natildeo quero dizer um tronco de madeira igual a outro tronco ou
uma pedra igual a outra pedra nem nada desse gecircnero mas uma
realidade distinta de todas estas que estaacute para aleacutem delas ndash o igual
107 Para Acrill o conceito eacute equivalente agrave Forma ldquoX-ness is an eternal unchanging Form an
independently existing entityrdquo Acrill op cit p 29 Brisson faz uma criacutetica a este entendimento dizendo
ldquo() the Forms are not equivalent to concepts as J L Acrill wold have it (hellip)rdquo por compreender que no
Feacutedon a reminiscecircncia estaacute explicitamente associada ao inteligiacutevel Brisson ldquoReminiscence in Platordquo in
Platonism and Forms of Intelligence Berlin Akademie Verlag (Dillon J Zouko M E ed) 2008 p 184
nota 13
167
em si mesmo Afirmaremos que isso existe ou natildeo (ἀιιὰ παξὰ ηαῦηα
πάληα ἕηεξόλ ηη αὐηὸ ηὸ ἴζνλ θῶκέλ ηη εἶλαη ἢ κεδέλ)rdquo (Fed 74a)
Esse trecho apresenta de maneira mais assertiva a sugestatildeo da Teoria acerca de
outro domiacutenio e a ligaccedilatildeo que se tem com ele por meio da atividade intelectiva A accedilatildeo
de rememoraccedilatildeo pode se dar a partir de objetos semelhantes paus e pedras iguais ou
dessemelhantes a lembranccedila de um homem por meio da visatildeo de um cavalo Natildeo
parece haver uma regra para as associaccedilotildees realizadas na reminiscecircncia no entanto eacute
evidente que em qualquer ligaccedilatildeo entre o que se associa estaacute presente um conteuacutedo da
ordem do intelecto algo distinto do gecircnero corpoacutereo como a noccedilatildeo de igualdade ou a
imagem do amado Este ldquoalgo outrordquo (ἕηεξόλ ηη) diferente do que se percebe atraveacutes
dos sentidos mostra-se afim com a noccedilatildeo de igualdade que subjaz agraves relaccedilotildees entre as
percepccedilotildees dos paus e pedras que se tem na experiecircncia e que deve ser chamado de ldquoo
proacuteprio igualrdquo (αὐηὸ ηὸ ἴζνλ)
A esta noccedilatildeo que se mostra agora de tipo distinto parece ser conferida um grau
realidade (ηη εἶλαη) ainda natildeo definida evidentemente mas certamente diferente do
corpoacutereo e coerente com este periacuteodo anterior que traz o argumento sendo assim
cognosciacutevel e uacutetil para a investigaccedilatildeo108
(Fed 74b1-3) A partir da igualdade suscitada
pela experiecircncia de dois objetos iguais ou desiguais a alma eacute remetida a esta realidade
Nela o proacuteprio igual eacute concebido e ao ser recuperado pela rememoraccedilatildeo eacute designado
conhecimento (ἐπηζηήκε) (Fed 74b4)
Ora em que termos a imagem de uma experiecircncia anterior dada em uma
reminiscecircncia pode oferecer os seres inteligiacuteveis a ponto de serem tais imagens as
lembranccedilas consideradas conhecimentos Do que pode diferir uma noccedilatildeo ou conceito
dado na reminiscecircncia da ideia Para obter uma resposta cabe verificar novamente
acerca do significado de ἐπηζηήκε Segundo o que sugere o exemplo o que se recupera
na reminiscecircncia satildeo as imagens de inteligiacuteveis anteriormente conhecidos e natildeo os
proacuteprios seres inteligiacuteveis Tal como a partir da lira se tem na rememoraccedilatildeo da imagem
do amado e natildeo ldquoo proacuteprio amadordquo ou seja tem-se X1 e natildeo do proacuteprio X parece
legiacutetimo haver na reminiscecircncia a apreensatildeo de conteuacutedos da ordem do pensamento sem
constituiacuterem necessariamente a apreensatildeo de uma ideia ou conceito Nesse sentido os
conhecimentos consistem nos objetos do pensar outrora experienciados sejam imagens
108 O que aqui se designa como domiacutenio ou realidade sugerida na reminiscecircncia Brisson chama de
ldquototalidade do inteligiacutevelrdquo a qual teria dado agrave alma o conhecimento antes de nascer Brisson 2008 op cit
p 187
168
ou conceitos e o rememorar descreve a recuperaccedilatildeo desta experiecircncia anterior e natildeo um
novo contato entre a alma e os seres tal qual se realizou antes do nascimento nem a
descoberta de ideias abrigadas em algum canto esquecido da memoacuteria como visto 109
Todavia este trecho aponta para a apreensatildeo de uma noccedilatildeo inteligiacutevel que se daacute
indiretamente a partir da reminiscecircncia A concepccedilatildeo do proacuteprio igual constitui uma
mostra da operaccedilatildeo intelectiva decorrente da reminiscecircncia na qual se ultrapassa a
imagem de uma experiecircncia sensiacutevel como acontecia com a imagem de Siacutemias para
um dado inteligiacutevel ou seja apreensiacutevel somente em uma experiecircncia puramente
intelectual Seria portanto o proacuteprio igual uma visatildeo da ideia anteriormente conhecida
Eacute provaacutevel e conforme o que indica o texto a tal produto se daacute o nome de
conhecimento Vale reparar que a atividade e o ato intelectivo que descrevem a
ἀλάκλεζηο mostram o pensar de uma perspectiva especiacutefica Ela descreve a passagem de
um fenocircmeno mental a outro ou seja da percepccedilatildeo do sensiacutevel para uma apreensatildeo
intelectual que acontece nos termos de um ato cognitivo ou de um πξνζπάζρσ (Fed
74a6) respectivamente como uma reaccedilatildeo imediata e como uma operaccedilatildeo racional
simples em resposta aos dados advindos das sensaccedilotildees A resposta nos termos de um
πξνζπάζρσ dito ἐλλνέσ consiste na atividade intelectual por meio da qual se pode
reconhecer o grau de relaccedilatildeo que os objetos percebidos possuem com o proacuteprio igual
conhecimento utilizado como paracircmetro para julgar o que se tem na experiecircncia110
Tal atividade conforme o que sugere o argumento constitui-se da comparaccedilatildeo
entre objetos percebidos e lembrados ou seja entre dados sensoriais e dados
intelectualmente oferecidos pela reminiscecircncia descrevendo uma operaccedilatildeo na qual o
intelecto estabelece um termo inteligiacutevel para fazer relaccedilotildees com o que se observa no
domiacutenio do sensiacutevel Apesar disso parece difiacutecil precisar o grau de ligaccedilatildeo que paus e
pedras percebidos como iguais podem ter com uma noccedilatildeo de igualdade Admite-se que
eacute possiacutevel a percepccedilatildeo de certa igualdade entre os objetos na experiecircncia da visatildeo no
entanto uma vez dada no contexto sensiacutevel natildeo deve ser a mesma nem deve estar
totalmente relacionada agrave outra realidade (Fed 74c)
Cabe notar que nesse estaacutegio da investigaccedilatildeo falta precisar esses conhecimentos
e a realidade a qual se referem para que se possa dizer algo acerca do grau de relaccedilatildeo
109 Segundo Chen o que se tem a partir do argumento da lira eacute o conteuacutedo da percepccedilatildeo preacutevia do
amado ou a imagem de sua forma fiacutesica a qual eacute novamente revivida intelectualmente pelo amante
Chen op cit p 25
110 Segundo Chen o πξνζπάζρσ se refere a ldquoUm pensamento adicional presente pela proacutepria mente o
pensamento da presenccedila ou ausecircncia de alguma deficiecircncia na igualdade do retrato de X para o proacuteprio
Xrdquo Chen op cit p 21
169
de um objeto percebido com isto que se apresenta como αὐηὸ ηὸ ἴζνλ Do mesmo modo
ainda estaacute para ser verificado o verdadeiro alcance da cogniccedilatildeo ou seja da capacidade
intelectiva de conhecer o que se refere a este outro domiacutenio ndash ldquoLogo ndash concluiu- a
igualdade dos tais objetos que referiacuteamos natildeo equivale precisamente ao Igual em si
mesmordquo (Fed 74c4) Ateacute este ponto a noccedilatildeo de ἀλάκλεζηο revelou uma variaccedilatildeo de
aspectos que permitem delinear o perfil da atividade racional envolvida na cogniccedilatildeo
mas sem oferecer muitos esclarecimentos acerca do objeto adquirido na reminiscecircncia
Ao se apresentar nos termos da aprendizagem mostrou sua atuaccedilatildeo como ato cognitivo
que se realiza como a retomada de conteuacutedos de tipo inteligiacutevel Nos termos de uma
operaccedilatildeo a capacidade de elevaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis para a aquisiccedilatildeo de uma
noccedilatildeo inteligiacutevel afim e apreensiacutevel no pensamento (ἐλλνέσ) ndash ldquo[] Sempre que ao
veres um dado objeto a visatildeo desse mesmo objeto te transporte agrave ideia de outro (ἕσο ἂλ
ἄιιν ἰδὼλ ἀπὸ ηαύηεο ηο ὄςεσο ἄιιν ἐλλνήζῃο) seja ele igual ou diverso eacute
necessariamente um caso de reminiscecircnciardquo (Fed 74c13-d1)
A superaccedilatildeo de um domiacutenio em vista de outro parece ser a caracteriacutestica da
ἀλάκλεζηο que mais importa na Teoria para os fins da investigaccedilatildeo pois sugere a
possibilidade de explorar este ἕηεξόλ ηη Por esta razatildeo pode-se supor que outros
aspectos da reminiscecircncia presentes em outros diaacutelogos natildeo satildeo trazidos para o Feacutedon
por serem muitas das questotildees que poderiam parecer pertinentes ao tema na verdade
inconvenientes neste contexto Interessa apresentar a Teoria naquilo que ela auxilia para
a proposiccedilatildeo de um ambiente que diz respeito ao inteligiacutevel anaacutelogo e afim ao estado de
morte no qual se supotildee a alma permaneceraacute Desse modo a diferenciaccedilatildeo dos objetos
que se referem a este outro domiacutenio tal como indica a relaccedilatildeo entre a noccedilatildeo de proacuteprio
igual e a igualdade percebida nos objetos sensiacuteveis decorrente da rememoraccedilatildeo
conduziraacute a investigaccedilatildeo de modo a iluminar as distinccedilotildees de gecircnero cujo exame eacute
necessaacuterio para indicar a natureza e a possibilidade de indestrutibilidade da alma
Sugeridas as diferenccedilas entre coisas semelhantes ou iguais e o proacuteprio igual o
diaacutelogo se encaminha de modo a questionar a distinccedilatildeo de gecircneros que se apresenta
nesta atividade de rememorar- (Τί δέ αὐηὰ ηὰ ἴζα ἔζηηλ ὅηε ἄληζά ζνη ἐθάλε ἢ ἡ ἰζόηεο
ἀληζόηεο Fed 74c1) A partir do que se examinou acerca da noccedilatildeo de igualdade cabe
investigar primeiramente a suposta deficiecircncia (ἐλδεήο) do fenocircmeno em relaccedilatildeo agrave
noccedilatildeo abstrata Em outras palavras deve-se analisar no que difere a igualdade
observada em pedras e paus iguais em relaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de Igual que se verificou nesta
relaccedilatildeo de comparaccedilatildeo entre dados experienciados O que o texto nota como diferenccedila eacute
170
dito constituir em primeiro lugar um grau de carecircncia por parte da igualdade observada
nos objetos sensiacuteveis do proacuteprio igual (Fed 75d5-7) Assim vale analisar as relaccedilotildees
expressas neste argumento para verificar como opera a superaccedilatildeo da alma em relaccedilatildeo ao
sensiacutevel na rememoraccedilatildeo
Note-se que as relaccedilotildees satildeo dadas em dois planos 1) entre dados sensiacuteveis 2)
entre dados sensiacuteveis e noccedilatildeo inteligiacutevel Em 1) a relaccedilatildeo de igualdade se apresenta nos
seguintes termos X1 eacute igual X2 Xn isto eacute as pedras observadas comparadas entre elas
mesmas apresentam semelhanccedilas o que equivale dizer que satildeo iguais Cabe reparar que
a ideia de igual subjaz a esta relaccedilatildeo embora o foco tenha em vista a igualdade que se
pode observar a partir dos dados sensiacuteveis Nesse sentido tal relaccedilatildeo eacute equivalente a 2
na qual a comparaccedilatildeo se daacute entre os dados advindos do sensiacutevel com o conceito X1
X2 Xn eacute igual X ou seja as pedras observadas possuem relaccedilatildeo com a ideia de igual
dada a igualdade entre elas A intenccedilatildeo eacute sugerir o conteuacutedo inteligiacutevel o proacuteprio igual
como termo regulador para a comparaccedilatildeo mesmo que ainda natildeo se apresente uma
explicaccedilatildeo ontoloacutegica que justifique a sua funccedilatildeo como se daraacute na Teoria das
Formas111
Do mesmo modo a comparaccedilatildeo entre os termos tendo em vista a natildeo
semelhanccedila entre eles ou seja a diferenccedila apresenta outro aspecto da operaccedilatildeo feita na
reminiscecircncia Sobre a diferenccedila entre os objetos vistos o argumento mostra que X1 natildeo
eacute o mesmo que X2 Xn ou seja as pedras embora sejam pedras apresentam distinccedilotildees
umas das outras o que eacute compreendido como natildeo igualdade ou desiguais Apesar da
constataccedilatildeo da natildeo igualdade a relaccedilatildeo ainda tem a noccedilatildeo de igual como paracircmetro
denotando assim a distinccedilatildeo entre a ideia de Igual e a igualdade reconhecida entre os
termos analisados em 1 A igualdade de coisas iguais natildeo eacute idecircntica agrave ideia de igual
Parece vaacutelido oferecer nesse momento da investigaccedilatildeo um argumento que
aponte as distinccedilotildees entre aquilo que se observa e certa especificidade do conteuacutedo
trazido pela reminiscecircncia Todavia tal especificidade natildeo eacute dada com maiores detalhes
tendo-se apenas uma sugestatildeo acerca de sua natureza inteligiacutevel e de algumas noccedilotildees
que caracterizam a ideia tal como a noccedilatildeo de identidade aludida pelo proacuteprio Igual Em
consequecircncia destas distinccedilotildees os objetos sensiacuteveis vistos como iguais assumem uma
posiccedilatildeo inferior em relaccedilatildeo ao proacuteprio Igual que comeccedila a ter sua superioridade e
estatuto definido ηη ηῶλ ὄλησλ As coisas iguais (ηὰ ἴζα) se distinguem do Igual (αὐηὸ
ηὸ ἴζνλ) porque natildeo possuem literalmente algo dos seres Dada a explicaccedilatildeo do que
111 Acrill explica este dado por um outro vieacutes ldquoO exemplo eacute um caso de igualdade e a relaccedilatildeo de
igualdade com o seu original eacute de fato assimeacutetricardquo Acrill op cit p 26
171
significa ἐλδεήο lanccedila-se luz de agora em diante para trecircs pontos importantes os quais
passam a ser analisados e formulados filosoficamente 1ordm) a identificaccedilatildeo de ηὸ αὐηὸ ao
ser 2ordm) a indicaccedilatildeo do ser como criteacuterio para julgar algo que se relaciona com ele em
algum grau 3ordm) a contraposiccedilatildeo entre a percepccedilatildeo sensiacutevel e o trabalho intelectual que
julga a percepccedilatildeo112
Conveacutem compreender que os desdobramentos que levam agrave apreensatildeo de uma
realidade diversa a partir das experiecircncias sensiacuteveis que se daacute na reminiscecircncia (Fed
74e6) constitui de fato operaccedilotildees simples A Igualdade eacute reconhecida no processo de
rememoraccedilatildeo vindo agrave tona com a experiecircncia de objetos iguais o que parece suficiente
para apreender a distinccedilatildeo entre o proacuteprio igual e as coisas iguais Dar-se conta desta
distinccedilatildeo significa ateacute o momento perceber que as coisas iguais possuem algo em
comum com o proacuteprio Igual e ao mesmo tempo sua deficiecircncia em comparaccedilatildeo a
ele113
A comparaccedilatildeo que se realiza a partir da tomada de conhecimento da Igualdade
consiste portanto em apreender o que haacute de comum e de diferente entre conceito e
percepccedilatildeo a qual expressa ao mesmo tempo a inferioridade do sensiacutevel aqui dito
ἐλδεήο e sugere um viacutenculo a partir do qual eacute possiacutevel estabelecer relaccedilatildeo
Nesse sentido as operaccedilotildees cognitivas que se tecircm na rememoraccedilatildeo consistem
basicamente em reconhecer e identificar elementos concebidos por associaccedilatildeo114
ou por
comparaccedilatildeo a algum outro tal como 1) entre objeto percebido e objeto lembrado e 2)
entre objeto percebido e noccedilatildeo concebida Em 1 A operaccedilatildeo do intelecto se constitui da
imediata reaccedilatildeo da alma a um dado advindo do sensiacutevel ou entre dois objetos
rememorados X rArr S vejo o retrato e lembro-me de Siacutemias ou vejo Cebes e lembro-
me de Siacutemias Trata-se de uma associaccedilatildeo na qual natildeo haacute nenhum juiacutezo envolvido e
portanto natildeo recorre a nenhum termo inteligiacutevel para fazer a mediaccedilatildeo entre os termos
112 Fed 74d9-e4 ldquo-Pois bem estamos de acordo quando uma pessoa olha para um dado objeto e
reflete de si para si mesma bdquoEste objeto que tenho diante dos olhos aspira a identificar-se com
determinada realidade mas estaacute longe de poder identificar-se a ela e lhe eacute pelo contraacuterio bastante
inferior‟- ao fazer tais reflexotildees eacute porque suponho conhecia jaacute essa tal realidade agrave qual segundo ela
se assemelha o objeto em causa embora bastante imperfeitamente (Οὐθνῦλ ὁκνινγνῦκελ ὅηαλ ηίο ηη
ἰδὼλ ἐλλνήζῃ ὅηη βνύιεηαη κὲλ ηνῦην ὃ λῦλ ἐγὼ ὁξῶ εἶλαη νἷνλ ἄιιν ηη ηῶλ ὄλησλ ἐλδεῖ δὲ θαὶ νὐ δύλαηαη
ηνηνῦηνλ εἶλαη [ἴζνλ] νἷνλ ἐθεῖλν ἀιι ἔζηηλ θαπιόηεξνλ ἀλαγθαῖόλ πνπ ηὸλ ηνῦην ἐλλννῦληα ηπρεῖλ
πξνεηδόηα ἐθεῖλν ᾧ θεζηλ αὐηὸ πξνζενηθέλαη κέλ ἐλδεεζηέξσο δὲ ἔρεηλ )rdquo
113 Fed75a1 ldquoigualdades desse tipo tendem todas elas a identificar-se com o Igual em si embora lhe
fiquem bastante aqueacutem ( ὅηη ὀξέγεηαη κὲλ πάληα ηαῦηα εἶλαη νἷνλ ηὸ ἴζνλ ἔρεη δὲ ἐλδεεζηέξσο)
114 Acrill entende a associaccedilatildeo uma operaccedilatildeo essencial agrave reminiscecircncia ldquoInvocar a noccedilatildeo de lembranccedila
implica a disponiblidade de uma explicaccedilatildeo nos termos de leis associativas conectando pensamento e
conteuacutedordquo Acrill op cit p 18
172
associados Pode-se dizer que essa operaccedilatildeo descreve um ato cognitivo simples115
Uma
operaccedilatildeo que pode decorrer deste ato de reminiscecircncia consiste justamente no
ajuizamento deste conteuacutedo do intelecto com a percepccedilatildeo que suscitou a rememoraccedilatildeo
ou com o proacuteprio objeto anteriormente conhecido no qual se tem 2 X eacute S ou X natildeo eacute
S ou seja o retrato eacute (igual) Siacutemias Cebes natildeo eacute Siacutemias Neste caso a referecircncia para o
julgamento da imagem conteuacutedo mental ou da percepccedilatildeo eacute o proacuteprio Siacutemias
previamente conhecido116
Este tipo de operaccedilatildeo que ocorre no registro da
reminiscecircncia comparado ao exerciacutecio intelectual da dialeacutetica constitui uma operaccedilatildeo
simples o πξνζπάζρσ e pede assim como no exemplo das pedras e paus iguais uma
referecircncia exterior agrave sensibilidade previamente conhecida117
Natildeo se tem no contexto da reminiscecircncia detalhes sobre outras operaccedilotildees do
pensar acerca de elementos inteligiacuteveis como apareceraacute com a explanaccedilatildeo acerca do
meacutetodo hipoteacutetico ao final do diaacutelogo O que interessa nessas passagens eacute verificar as
distinccedilotildees das percepccedilotildees sensiacuteveis em relaccedilatildeo aos conteuacutedos rememorados mostrando
que as afecccedilotildees advindas do sensiacutevel se mostram uacuteteis para rememorar mas que natildeo
consistem elas proacuteprias em uma rememoraccedilatildeo Tais questotildees vale observar conduzem
a investigaccedilatildeo do que era conflituoso no corpo ou seja das sensaccedilotildees entre elas
mesmas tal como se viu no iniacutecio da anaacutelise para o conflito entre o que parece
constituir dois tipos de afecccedilotildees diferentes uma pela percepccedilatildeo do sensiacutevel e a outra
pela atividade do pensamento (πξνζπάζρσ ἐλλνέσ) O argumento acerca da Igualdade
deixa patente o conflito entre dados sensoriais e conteuacutedo inteligiacutevel sugerindo para ele
um criteacuterio ontoloacutegico e intelectual como possiacutevel soluccedilatildeo a qual eacute indicada pela
ἀλάκλεζηο Ao conferir um estatuto distinto para o conteuacutedo do intelecto a Teoria da
Reminiscecircncia propotildee a saiacuteda para as contradiccedilotildees que se pode verificar na observaccedilatildeo
do sensiacutevel e por consequecircncia no contexto da alma presa ao corpo uma vez que os
conhecimentos dados no ato de rememorar e nas operaccedilotildees que advecircm dele se mostram
os elementos corretos e portanto adequados para resolver tais questotildees
115 A aparente ausecircncia de ligaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e a realidade rememorada se deve ao caraacuteter
instantacircneo da reminiscecircncia onde natildeo eacute necessaacuterio um encadeamento causal para obter um objeto por
via da rememoraccedilatildeo Sobre este ponto Acrill explica ldquoReconhecer X como uma lira eacute logicamente
independente de pensar Alcebiacuteades () Por outro lado reconhecer X como a lira de Alcebiacuteades natildeo eacute
logicamente independente pois pensar isto eacute uma lira de Alcebiacuteades jaacute eacute pensar Alcebiacuteades natildeo haacute
relaccedilatildeo temporal causal aquirdquo e mais a frente completa ldquoNovamente ao pensar que isto eacute o retrato de
Siacutemias jaacute estou pensando em Siacutemias mas natildeo vice-versardquo Acrill opcit p 1921
116 Nos termos de Chen a base ontoloacutegica desse argumento eacute o proacuteprio Siacutemias que existe a partir do
qual eacute possiacutevel haver correspondecircncia entre o retrato e a lembranccedila Chen op cit p 23
117 Para Acrill a operaccedilatildeo posterior que ocorre na reminiscecircncia tem o princiacutepio de contiguidade como
princiacutecio associativo Chen op cit p 25
173
22 αἴζζεζηο como estiacutemulo na ἀλάκλεζηο
A partir do que se viu cabe reparar a dupla funccedilatildeo da reminiscecircncia na
investigaccedilatildeo Ao mesmo tempo em que a reminiscecircncia mostra o indiacutecio da existecircncia
da alma na condiccedilatildeo de independecircncia do corpo apresenta-se como uma alternativa aos
impedimentos da sensibilidade para o conhecimento do inteligiacutevel Uma das razotildees para
tal aleacutem da familiaridade que a alma possui com o inteligiacutevel como se veraacute consiste
que a ἀλάκλεζηο tem como estiacutemulo para as accedilotildees cognitivas as proacuteprias sensaccedilotildees Natildeo
se deve no entanto tomar como uma incongruecircncia o dado de ser a experiecircncia sensiacutevel
uma condiccedilatildeo para que se decirc a rememoraccedilatildeo O diaacutelogo pretende afirmar a
anterioridade dos conhecimentos e a reminiscecircncia como a recuperaccedilatildeo deles no
contexto de humanidade no qual a alma natildeo estaacute totalmente isolada e imune agraves
perturbaccedilotildees do corpo e desse modo tem na rememoraccedilatildeo uma resposta inteligente aos
assaltos das sensaccedilotildees
ldquo- E nisto ainda estamos de acordo a noccedilatildeo que temos do Igual
de forma alguma poderia ter-se formado em noacutes a natildeo ser por
intermeacutedio da vista do tato ou de qualquer dos outros sentidos (κὴ
ἄιινζελ αὐηὸ ἐλλελνεθέλαη κεδὲ δπλαηὸλ εἶλαη ἐλλνζαη ἀιι ἢ ἐθ
ηνῦ ἰδεῖλ ἢ ἅςαζζαη ἢ ἔθ ηηλνο ἄιιεο ηῶλ αἰζζήζεσ ηαὐηὸλ δὲ πάληα
ηαῦηα ιέγσ)rdquo (Fed 75a5)
Mesmo diante das constataccedilotildees acerca da inferioridade dos dados sensiacuteveis tal
como as igualdades percebidas cabe agraves sensaccedilotildees a funccedilatildeo de provocar este envio da
alma aos conhecimentos o proacuteprio igual e assim buscar a compreensatildeo deles - o que
nos termos da reminiscecircncia eacute dita como um natildeo esquecimento118
Do mesmo modo a
noccedilatildeo de aprendizado que a Teoria da Reminiscecircncia apresenta consiste tambeacutem em natildeo
ceder ao esquecimento (ἐπηιαλζάλνκαη) ou seja exercitar-se neste tipo de operaccedilatildeo
118 75d7-10 ldquojaacute que o saber natildeo consiste senatildeo nisto em segurar determinado conhecimento que se
alcanccedilou e impedir que se perca (ηὸ γὰξ εἰδέλαη ηνῦη ἔζηηλ ιαβόληα ηνπ ἐπηζηήκελ ἔρεηλ θαὶ κὴ
ἀπνισιεθέλαη ἢ νὐ ηνῦην ιήζελ ιέγνκελ) ou natildeo dizemos noacutes Siacutemias que esquecer eacute deixar escapar
o que conhecemosrdquo
174
intelectiva por meio da qual se pode preservar os conhecimentos antes apreendidos
(Fed 75d7-76a)
Assim a operaccedilatildeo que descreve a cogniccedilatildeo na reminiscecircncia eacute importante notar
atribui funccedilatildeo positiva agraves sensaccedilotildees Diferentemente do que se viu no argumento da
purificaccedilatildeo as sensaccedilotildees satildeo neste contexto um impulso para o desencadeamento da
reminiscecircncia servindo de estiacutemulo para uma accedilatildeo intelectiva Nesse sentido toda a
explicaccedilatildeo do desenrolar da operaccedilatildeo racional que ocorre na reminiscecircncia descreve
muito mais um ato inteligente da capacidade cognitiva a qual se daacute imediatamente
como reaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees do que um processo cognitivo como traz A Repuacuteblica no
Livro VII no qual haacute a gradual superaccedilatildeo do intelecto do plano da sensibilidade para o
plano inteligiacutevel das ideias Tem-se em vista apresentar com a reminiscecircncia uma prova
de apreensatildeo inteligente tambeacutem nos termos de um ato de resgate de conteuacutedos jaacute
conhecidos como se vecirc ao inveacutes de uma narrativa do processo propedecircutico de
preparaccedilatildeo para a aquisiccedilatildeo de uma alta inteligecircncia como acontece no Livro VII ou
uma demonstraccedilatildeo de habilidades intelectuais O texto especifica com isso a uacutenica
maneira no Feacutedon em que se pode considerar uma colaboraccedilatildeo do corpo e do sensiacutevel
para o conhecimento como perturbaccedilatildeo para a qual a alma daacute uma resposta inteligente
Ao sugerir um ato cognitivo como mais uma maneira de a alma reagir agraves sensaccedilotildees o
texto natildeo oferece na verdade grandes novidades em relaccedilatildeo ao resultado do trabalho
cognitivo em comparaccedilatildeo ao exerciacutecio filosoacutefico Embora apresente mais uma faceta da
atividade do intelecto tal sugestatildeo serve apenas para deixar mais uma vez evidente que
o testemunho acerca da possibilidade de uma vida apoacutes a morte se refere agrave faculdade
intelectual da alma e exige superaccedilatildeo do domiacutecio sensiacutevel119
A rememoraccedilatildeo nos termos de uma via cognitiva como mostra o diaacutelogo
apresenta a possibilidade de aquisiccedilatildeo intelectual na condiccedilatildeo adversa para a alma de
estar presa ao corpo aquisiccedilatildeo que se daacute de maneira simples e imediata sem recorrer a
operaccedilotildees intelectuais mais complexas Isto parece ser suficiente para sugerir um limite
para o uso das sensaccedilotildees no que se refere agrave aquisiccedilatildeo do conhecimento e de um niacutevel
superior do intelecto Do mesmo modo conferir superioridade aos objetos distintos do
119 Chen sintetiza esta compreensatildeo dizendo ldquoDe acordo com a Teoria do Feacutedon a funccedilatildeo geral dos
sentidos eacute dupla Eacute primeiramente informar o que eacute percebido e em seguida estimular a mente a lembrar
do conhecimento uma vez adquirido e depois perdido- uma accedilatildeo sempre acompanhada da outrardquo Chen
op cit p 22 nota 11
175
corpoacutereo tal como o belo o maior o menor o proacuteprio bem reconhecidas como
realidades previamente conhecidas120
Tem-se a partir daqui a proposta de um plano cujos seres satildeo do gecircnero ηὸ αὐηὸ
ὃ ἔζηη os quais consistem em conhecimentos (ηὰο ἐπηζηήκαο Fed 75d4) e satildeo
acessiacuteveis pelo pensamento Tal gecircnero apresenta afinidade com a alma apartada do
corpo e portanto com o pensamento livre de impedimentos A relaccedilatildeo entre alma e ηὰο
ἐπηζηήκαο eacute dada na reminiscecircncia provavelmente para sugerir o inteligiacutevel e esta
afinidade permitindo ao pensamento especular e provar como se pretende a existecircncia
da alma e sua imortalidade Dito de outro modo a rememoraccedilatildeo constitui a primeira
formulaccedilatildeo de atividade inteligente na qual se pode apreender conhecimentos os quais
oferecem uma indicaccedilatildeo acerca da capacidade inteligente da alma em condiccedilatildeo de
pureza pura sem o corpo concomitamente agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia anterior que
ela possui
Faz-se necessaacuterio contudo explicar (δνῦλαη ιόγνλ Fed 76b3) as consequecircncias
da Teoria de modo a demonstraacute-la como uma prova acerca da existecircncia da alma neste
periacuteodo Assim verificar a identificaccedilatildeo da alma com o plano dos seres e apontar as
especificaccedilotildees acerca desta realidade exige concomitantemente um detalhamento do
gecircnero sensiacutevel e de sua deficiecircncia O corpo tomado agora como pertencendo ao
domiacutenio do sensiacutevel estaacute contraposto agrave alma cujo caraacuteter inteligiacutevel seraacute desenvolvido
e com isso se daraacute um maior detalhamento sobre a θξόλεζηο Importa observar que no
argumento da reminiscecircncia o pensamento enquanto faculdade sede do conhecimento e
atividade cognitiva como se viu tem seu caraacuteter firmado concomitante agrave verificaccedilatildeo da
existecircncia da alma Tal como o bem o belo e outros seres do mesmo tipo (Fed 75d5-
76e) ele difere do sensiacutevel e como faculdade da alma preexiste ao corpo121
Embora constitua uma demonstraccedilatildeo da preexistecircncia da alma a relaccedilatildeo entre
alma e conhecimento tal como traz a Teoria natildeo supotildee a cogniccedilatildeo como accedilatildeo
necessaacuteria para a anterioridade dos conhecimentos As ideias natildeo dependem de serem
conhecidas para terem seu caraacuteter e existecircncia firmados embora sejam sugeridas ao
serem apreendidas novamente na rememoraccedilatildeo A relaccedilatildeo esquecimento-rememoraccedilatildeo
que se daacute no aprendizado sugere justamente esta permanecircncia das ideias que estaacute para
120 Fed 75d1 ldquocomo digo selamos genericamente com o roacutetulo de realidade em si (ὅπεξ ιέγσ πεξὶ
ἁπάλησλ νἷο ἐπηζθξαγηδόκεζα ηὸ ldquoαὐηὸ ὃ ἔζηη)rdquo
121 Fed 76c11-13 ldquo- Donde segue Siacutemias que antes de encarnar numa forma humana as nossas
almas existiam jaacute independentemente de um corpo e dotadas de inteligecircncia ( Ἦζαλ ἄξα ὦ Σηκκία αἱ
ςπραὶ θαὶ πξόηεξνλ πξὶλ εἶλαη ἐλ ἀλζξώπνπ εἴδεη ρσξὶο ζσκάησλ θαὶ θξόλεζηλ εἶρνλ)rdquo
176
aleacutem da recuperaccedilatildeo que ocorre no ato e na operaccedilatildeo de rememorar Por outro lado a
alma como supotildee a hipoacutetese da imortalidade precisa ter comprovada a natureza
inteligiacutevel imutaacutevel e eterna das ideias para que se possa comprovar a sua subsistecircncia
agrave morte do corpo ndash tarefa que se daraacute ao longo do diaacutelogo Por enquanto o diaacutelogo
oferece as indicaccedilotildees do que se refere agrave inteligibilidade - seus objetos natureza
operaccedilotildees da capacidade cognitiva domiacutenio ndash na busca de legitimar o trabalho
racional122
O que antes foi narrado nos termos de um pensamento puro livre das
influecircncias do corpo recebe nos argumentos seguintes definiccedilotildees segundo uma
explicaccedilatildeo da filosofia que vecirc na reminiscecircncia o primeiro ato da cogniccedilatildeo e as
condiccedilotildees de sua possibilidade
23 Aquisiccedilatildeo na reminiscecircncia
Vale comentar os resultados que se obteacutem a partir do dado de serem as
sensaccedilotildees o estiacutemulo para a rememoraccedilatildeo e verificar em que termos a reminiscecircncia
descreve uma atividade cognitiva um ato e uma operaccedilatildeo de aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis
pelo intelecto Natildeo somente para sugerir a anterioridade e a independecircncia da alma em
relaccedilatildeo ao corpo a Teoria da Reminiscecircncia indica um fato importante no Feacutedon ao
atribuir agrave rememoraccedilatildeo o papel de via possiacutevel no qual se obteacutem um grau de aquisiccedilatildeo
dos inteligiacuteveis em vida humana (βίνο) Uma vez que o conhecimento autecircntico eacute
possiacutevel apenas apoacutes a morte a ἀλάκλεζηο oferece elementos uacuteteis como referecircncia na
cogniccedilatildeo Ao que parece a alteridade que se propotildee com ηὰο ἐπηζηήκαο e ἕηεξόλ ηη
serve para propor a base cognitiva exequiacutevel no contexto da vida aquela sobre a qual o
pensamento deve se empenhar para buscar as referecircncias indicadas na rememoraccedilatildeo e
levar a cabo a investigaccedilatildeo filosoacutefica123
Ao considerar tal contexto natildeo parece haver a intenccedilatildeo de afirmar que a
apreensatildeo de ideias eacute algo exclusivo do ato de rememorar O argumento natildeo parece ter
122 Chen op cit p 23 nota 12
123 Nas palavras de Charles Kahn esta ligaccedilatildeo entre alma e inteligiacuteveis que mostra a reminiscecircncia
consiste no ponto filosoacutefico essencial do argumento ldquo() A funccedilatildeo preciacutepua aqui da teoria da
reminiscecircncia (como o argumento a partir da afinidade em sequecircncia) consiste em estabelecer a
condiccedilatildeo transcendental da alma por meio de seu elo cognitivo com o ser transcendente das Formasrdquo
Kahn C rdquoPlatatildeo e a Reminiscecircnciardquo in Platatildeo (Benson H e col) Artmed 2011 Porto Alegre p 124
177
como proposta portanto apresentar uma relaccedilatildeo de necessidade entre a reminiscecircncia e
um objeto de estatuto ontoloacutegico elevado nem ser a rememoraccedilatildeo necessariamente
acompanhada de um trabalho intelectual posterior As duas situaccedilotildees satildeo descritas na
Teoria e mostram este ato de cogniccedilatildeo em duas perspectivas que acompanham a
dualidade da condiccedilatildeo do homem ser composto de corpo e alma (Fed 79b) ou dito de
outro modo ter a alma associada ao corpo Disto decorre que se tem na reminiscecircncia a
descriccedilatildeo tanto de um ato do pensamento comum ou seja possiacutevel a qualquer homem
quanto uma primeira explicaccedilatildeo acerca da origem das operaccedilotildees inteligentes da alma
Ao se questionar acerca da escolha do caraacuteter da reminiscecircncia por Platatildeo124
Dominic Scott mostra as duas interpretaccedilotildees que surgiram dessa dupla funccedilatildeo da
rememoraccedilatildeo Uma primeira explicaccedilatildeo seria para aplicar certos conceitos agrave experiecircncia
e uma segunda responderia que a finalidade eacute somente elucidar o conhecimento do
filoacutesofo de entidades transcendentes as quais servem para a comparaccedilatildeo com
particulares Na primeira resposta haacute uma colaboraccedilatildeo entre empiacuterico e inato para
explicar o pensamento ordinaacuterio enquanto de acordo com a uacuteltima interpretaccedilatildeo a
reminiscecircncia se refere precisamente as formas125
A resposta que se propotildee para esta
duplicidade a qual parece suficiente para apontar a complexidade do pensamento nos
termos da rememoraccedilatildeo tema deste estudo consiste justamente no duplo aspecto que o
ato cognitivo de rememorar apresenta Ter acesso a um conteuacutedo do intelecto que se
refira agrave experiecircncia empiacuterica uma imagem ou representaccedilatildeo como quer Brisson eacute
possiacutevel tanto quanto ter acesso a um conteuacutedo que se refira agraves ideias Mesmo que a
comparaccedilatildeo faccedila referecircncia agrave forma do igual natildeo parece haver nesse contexto um
objeto definido rigidamente em termos ontoloacutegicos Ao contraacuterio a lembranccedila de
Siacutemias e o conceito de Igual enquanto conteuacutedos mentais satildeo ambos referidos como
conhecimentos Desse modo faz sentido o que Scott afirma em seguida ldquo()
reminiscecircncia eacute usada para cobrir diferentes extensotildees do desenvolvimento intelectual
conforme a interpretaccedilatildeo que se seguerdquo126
No caso do Feacutedon constitui um primeiro
exemplo da via inteligente que o filoacutesofo natildeo deve perder de vista Ao se pretender
124 Scott ao considerar a Teoria da Reminiscecircncia uma forma de inatismo adverte ldquo() devemos nos
perguntar por que Platatildeo decidiu adotar esta em particularrdquo Scott D Recollection and Experience -
Plato‟s Theory of Learning and its Successors 1995 Cambridge University Press p 17 O entendimento
da Teoria como uma forma de inatismo de Scott eacute oposta agrave compreensatildeo de Luc Brisson Enquanto Sc
considera possiacutevel a presenccedila de formas na alma as quais se tornam conhecidas na reminiscecircncia Brisson
diz se tratar de imagens que representam as ideias anteriormente conhecidas natildeo havendo portanto
ideias inatas Brisson op cit p 180 185
125 Scott idem p 17 19
126 Scott ibidem 20
178
elucidar e compreender as operaccedilotildees e estatuto da atividade do pensamento a
reminiscecircncia nos termos do aprendizado parece natildeo ignorar nenhuma das perspectivas
embora sua ecircnfase esteja na cogniccedilatildeo daquilo que seraacute definido como ideia
Desse modo no contexto de oposiccedilatildeo do intelecto agrave sensibilidade e de gradativo
afastamento entre corpo e alma tal como descreve a postura filosoacutefica a aquisiccedilatildeo que
se tem na reminiscecircncia varia sendo diferente para filoacutesofo e natildeo-filoacutesofo A igualdade
que o natildeo filoacutesofo apreende eacute apenas a igualdade perceptiacutevel pelos dados do sensiacutevel em
uma comparaccedilatildeo entre sensiacuteveis Ainda que a ideia do igual ampare esta comparaccedilatildeo
somente o filoacutesofo concebe que haacute por traz das relaccedilotildees entre sensiacuteveis um modelo ideal
que se difere e escapa agraves relaccedilotildees no sensiacutevel Em outras palavras o natildeo filoacutesofo natildeo
apreende a distinccedilatildeo deste igual que ele pode conceber na reminiscecircncia daquelas
igualdades vistas nas pedras e paus natildeo se dando conta portanto da ideia
A aquisiccedilatildeo de uma ideia na rememoraccedilatildeo parece prescindir cabe supor da
iniciaccedilatildeo na filosofia como acontece no ciacuterculo de Soacutecrates ou na induccedilatildeo do pedagogo
filoacutesofo a exemplo do que se vecirc n‟A Repuacuteblica Ao se perguntar pode-se compreender
que a aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia eacute possiacutevel tambeacutem para o natildeo filoacutesofo A
resposta plausiacutevel consiste natildeo segundo o que diz a Teoria no Feacutedon A percepccedilatildeo da
disparidade entre as pedras iguais e o proacuteprio igual e da mesma forma a origem desta
diferenccedila se referem agrave habilidade daquele que se exercita na filosofia As palavras de
Scott parecem concluir de maneira adequada esta questatildeo ldquoEacute inegaacutevel entatildeo que
somente poucas pessoas tenham comparado formas e particularesrdquo127
Todavia natildeo se
pode desconsiderar que a rememoraccedilatildeo eacute um ato exequiacutevel por todo homem ainda que
natildeo se decirc a segunda operaccedilatildeo do intelecto ao rememorar de modo a apreender o
inteligiacutevel A distinccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo ao homem comum eacute justamente conceber
no que a generalidade suscitada pelo trabalho de comparaccedilatildeo a partir da percepccedilatildeo em
realidade consiste conhecimento o qual seraacute elucidado e compreendido por meio do
exerciacutecio hipoteacutetico e natildeo na simplicidade das operaccedilotildees que descrevem a
reminiscecircncia
Sobre o que se apreende na reminiscecircncia Chen eacute mais categoacuterico ao afirmar o
sentido fraco de cogniccedilatildeo que apresenta a Teoria ldquoAnamnesis natildeo eacute o proacuteprio meacutetodo
para atingir a visatildeo das ideias o que ela proporciona eacute a revivificaccedilatildeo da cogniccedilatildeo
original natildeo a proacutepria cogniccedilatildeo originalrdquo128
Na direccedilatildeo oposta destas explicaccedilotildees
127 Scott op cit p 60
128 Chen op cit p 27
179
Acrill considera que a generalidade apreensiacutevel pelo filoacutesofo na rememoraccedilatildeo diz
respeito ao final agraves formas uma vez que ele a entende como tal Ele considera que o
apreensiacutevel para a maioria das pessoas o que se tem desde a infacircncia diz respeito ao
uso da palavra e agrave sua generalidade enquanto para o filoacutesofo eacute apreensiacutevel o significado
desta generalidade como forma imutaacutevel129
A compreensatildeo de Acrill se justifica na
medida em que se sabe que o diaacutelogo trabalha para apresentar as formas e um meacutetodo
para a apreensatildeo delas Nesse sentido ainda que se recupere parcialmente ou
indiretamente o conhecimento o conteuacutedo se revela consistir na forma inteligiacutevel pelo
filoacutesofo
Todavia ao levar em conta o momento da investigaccedilatildeo em que o argumento eacute
oferecido ou seja apoacutes uma primeira defesa do afastamento da alma em relaccedilatildeo ao
corpo onde se tem apenas a alusatildeo do que se apresentaraacute mais tarde como essecircncia a
posiccedilatildeo que considera a lembranccedila tal como uma cogniccedilatildeo insuficiente ou incompleta
parece mais adequada Tais posiccedilotildees parecem privilegiar enfoques diferentes mas
talvez natildeo incompatiacuteveis Do ponto de vista da cogniccedilatildeo trata-se de um tipo de
apreensatildeo que oferece um conhecimento inautecircntico no sentido de um conteuacutedo que faz
referecircncia a outro supostamente verdadeiro experienciado em uma anterioridade Ao
mesmo tempo vale observar que o argumento natildeo faz qualquer sugestatildeo sobre o que
poderia constituir uma referecircncia agraves formas que natildeo as oferecesse apenas em alguma
medida ndash tema que ganharaacute explicaccedilatildeo com a teoria da participaccedilatildeo130
129 ldquo(hellip) a) As pessoas comuns conhecem o uso da palavra ordinaacuteria X e desse modo adquirem
conhecimento de X - idade (X-ness) ela sabe que haacute tal coisa como X-idade e sabe o que ela eacute (no
sentido fraco) b) platonistas concebem que X-idade eacute uma forma eterna imutaacutevel uma entidade
independentemente existenterdquo Acrill op cit p 28-29 Kahn compartilha da mesma interpretaccedilatildeo ao julgar
que o argumento traz uma referecircncia impliacutecita agraves Formas o que explica a generalidade dadas nos
exemplos de paus e pedras Kahn op cit p 125
130 Outra maneira de se perguntar se o conhecimento adquirido na resminiscecircncia se refere agraves ideias
acessiacuteveis aos filoacutesofos ou a outro tipo de conteuacutedo acessiacutevel tambeacutem aos natildeo filoacutesofos consiste em
questionar a imagem ou a visatildeo que se tem na reminiscecircncia de uma ideia eacute a proacutepria ideia Pode-se
dizer que as igualdades percebidas se referem exclusivamente ao proacuteprio igual e natildeo a outro conceito Um
referencial ou uma visatildeo de X natildeo eacute o proacuteprio X entretanto tal conteuacutedo natildeo faria referecircncia a outra
coisa que natildeo X Se tal raciociacutenio procede o que se deve considerar Em uma posiccedilatildeo pessimista em
relaccedilatildeo agrave capacidade de adquirir o conhecimento em sua inteireza e autenticidade Gosling explica o
conteuacutedo da reminiscecircncia como uma ldquoquasi-perceptionrdquo anaacuteloga agrave visatildeo direta que supostamente a alma
teve antes do nascimento Assim ele compreende que o argumento da reminiscecircncia como aprendizado
exige muito mais do que possuir conhecimento a priori estando em jogo a familiaridade com estes
objetos a partir dos quais eacute possiacutevel fazer comparaccedilotildees entre os dados observados Para o autor
justamente tal familiaridade a qual envolve esta semivisatildeo constitui o conhecimento do igual na verdade
uma semicogniccedilatildeo ldquoA conclusatildeo parece ser a de que conhecemos (acquainted) certos objetos os quais
podemos comparar com o que agora observamos bdquoConhecer‟ aqui parece envolver uma quase percepccedilatildeo
(quasi-perception) e isso eacute certamente o que constitui o bdquoconhecimento do igual‟rdquo Gosling op cit p126
180
Perguntar-se sobre em que medida a imagem ou a visatildeo que se tem na
reminiscecircncia de uma ideia oferece a proacutepria ideia faz sentido ao lanccedilar o olhar para a
questatildeo de fundo acerca da aquisiccedilatildeo da ideia e portanto do alcance intelectual Tal
tema no entanto eacute melhor elaborado n‟ A Republica VI na relaccedilatildeo modelo-coacutepia que a
analogia da linha oferece Aqui esta relaccedilatildeo natildeo estaacute em questatildeo se natildeo for para supor
outro domiacutenio131
A consequecircncia que natildeo se deve perder de vista consiste desse modo
em natildeo atribuir agrave reminiscecircncia ou natildeo somente a ela a capacidade de aquisiccedilatildeo das
ideias Natildeo haacute necessariamente aquisiccedilatildeo das ideias na reminiscecircncia da mesma forma
que o exerciacutecio dialeacutetico natildeo descreve obrigatoriamente uma rememoraccedilatildeo Satildeo
atividades cognitivas distintas e no caso da rememoraccedilatildeo natildeo leva somente agraves ideias
inteligiacuteveis Os objetos introduzidos pela ἀλάκλεζηο devem ser resultado do tratamento
intelectual do meacutetodo hipoteacutetico o qual mostraraacute definitivamente a legitimidade da
faculdade intelectual da alma tarefa que a Teoria da Reminiscecircncia tal como se
apresenta natildeo o pode realizar Nesse sentido a Teoria eacute utilizada no Feacutedon para
oferecer uma saiacuteda intelectual nesta circunstacircncia de processo de afastamento da alma
em relaccedilatildeo ao corpo para colaborar nas devidas distinccedilotildees que se pretende realizar sobre
sua capacidade inteligente O que o diaacutelogo mostra com a reminiscecircncia eacute entre os
conteuacutedos que jaacute se analisou mais uma forma de atividade do intelecto que nesta altura
da investigaccedilatildeo constitui uma alternativa para persistir na busca do que eacute verdadeiro e
puro em um contexto adverso agrave natureza inteligente da alma
131 Trabattoni reconhece a relaccedilatildeo que estamos a nos referir entre a gnosiologia n‟A Repuacuteblica e a
reminiscecircncia no Feacutedon ao dizer ldquoNas paacuteginas d‟A Repuacuteblica natildeo aparece a doutrina da reminiscecircncia
que Platatildeo tratou pela primeira vez no Feacutedon e retomou posteriormente no Fedro Todavia natildeo eacute difiacutecil
estabelecer uma ligaccedilatildeo entre a gnosiologia d‟A Repuacuteblica com a teoria da reminiscecircncia dos dois
diaacuteloacutegos que citamos O conhecimento anterior do mundo ideal corresponde ao perfeito saber das ideias
que os filoacutesofos possuem somente no modelo ideal natildeo na realidade concreta Acredito que se deva
deixar aberto agrave interpretaccedilatildeo de cada um que a ausecircncia do saber perfeito na experiecircncia mundana
dependa do fato que este conhecimento eacute em Platatildeo somente ideal uma vaacutelvula de escape para aqueles
que aplicam o conhecimento humano no uacutenico mundo existente mesmo se se o considera um lugar real o
ideal pertencente a outro mundo a um mundo que o homem conheceu antes de nascer e (re) alcanccedilaraacute
apoacutes a morterdquo Trabattoni op cit p 184 Faz sentido no que diz respeito ao trabalho itelectual a
suposiccedilatildeo de um outro domiacutenio um plano real distinto do mundo ordinaacuterio a partir do qual se obtenha as
referecircncias necessaacuterias Tanto a cidade ideal do filoacutesofo governante quando os objetos ideiais
rememorados servem de paracircmetros e indicam esta realidade a qual o filoacutesofo deseja conhecer O
conhecimento e a rememoraccedilatildeo descrevem assim a atividade que eleva a alma para este outro domiacutenio e
no Feacutedon isto parece ser dito mais objetivamente
181
24 Distinccedilotildees entre alma e corpo
A partir dos temas tratados na Teoria da Reminiscecircncia a questatildeo da
imortalidade dada ateacute entatildeo com elementos do registro da religiatildeo eacute transposta para o
registro da metafiacutesica A existecircncia da alma anterior ao nascimento que o ato racional da
reminiscecircncia testemunha mostra que um maior entendimento sobre os seres deste plano
satildeo os indicativos da possibilidade de sua imortalidade Distintos da sensibilidade as
realidades descobertas como seres anteriores devem apresentar as caracteriacutesticas que
permitem a sobrevivecircncia da alma e do mesmo modo a compreensatildeo acerca da atuaccedilatildeo
do pensamento nesta tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel
ldquo- Portanto Siacutemias eis a questatildeo se de fato existem coisas
como essas que temos constantemente nos laacutebios um Belo um Bem e
toda a espeacutecie de realidade que lhes eacute afim (ἡ ηνηαύηε νὐζία) se eacute
esta que tomamos como ponto de referecircncia de tudo (ὑπάξρνπζαλ) o
que os sentidos nos transmitem e a ela reportamos (ἀλαθέξνκελ) os
dados recebidos em virtude de lhe descobrirmos uma existecircncia
anterior que nos pertencia - forccedilosamente entatildeo na medida em que
tais realidades existem assim tambeacutem a nossa alma existe antes de
nascermos caso contraacuterio este nosso argumento cairaacute pela base
[]rdquo (Fed 76d6-e4)
Deve-se observar que tais realidades servem de paracircmetro para estabelecer
relaccedilotildees com os dados advindos do sensiacutevel (θαὶ ηαῦηα ἐθείλῃ ἀπεηθάδνκελ Fed 76e2)
Cabe dessa forma averiguar a questatildeo se baseando estritamente no trabalho racional
dada a capacidade de estabelecer relaccedilotildees com estes seres e fazer atraveacutes deles maiores
inferecircncias sobre o tema Esta constitui uma mudanccedila metodoloacutegica no diaacutelogo digna
de nota Haja vista as diferenciaccedilotildees das realidades e a afinidade da alma com elas
parece razoaacutevel recorrer cada vez mais aos resultados do trabalho racional empregado
na investigaccedilatildeo e ao que se pode conhecer por meio dele sobre tal realidade (θαηαθεύγεη
ὁ ιόγνο Fed 76e9) Desse modo o estado de morte em que supostamente a alma
sobrevive deve ser investigado segundo o que mostra o caraacuteter dos dois tipos de planos
que agora se apresentam amparados pelo ιόγνο no trabalho filosoacutefico Utilizando as
palavras do texto ldquo() ficou por demonstrar (ἀπνδεδεῖρζαη) que ela subsiste tambeacutem
apoacutes a morterdquo (Fed 77b1) o que abordaraacute a alma e a sua imortalidade da perspectiva
182
do seu possiacutevel perecimento em uma comparaccedilatildeo com o aniquilamento dos objetos
fiacutesicos do plano sensiacutevel
Ao considerar a morte como uma destruiccedilatildeo tal como se daacute com os corpos
deve-se questionar se ela eacute suscetiacutevel a um fim desses ou se ao contraacuterio natildeo padece de
qualquer tipo de ruiacutena e se manteacutem viva (Fed 77b3) Estaacute em questatildeo agora a natureza
da alma no que diz respeito agrave sua constituiccedilatildeo O medo da morte que Soacutecrates critica
nos seus interlocutores (Fed 77d4-e) estaacute baseado na concepccedilatildeo tradicional que a
compreende semelhante ao corpoacutereo podendo assim ter fim se dissipando esvoaccedilando
ou sendo destruiacuteda de alguma outra forma Todavia deve-se ter em conta que as uacutenicas
atribuiccedilotildees feitas agrave alma ateacute esta altura da investigaccedilatildeo se refere a sua faculdade
intelectual e a sua capacidade de cogniccedilatildeo (Fed 70b3 76c12) tal como o seu poder de
se purificar de se desvincular do corpoacutereo por meio da filosofia A formulaccedilatildeo sobre a
alma que o discurso filosoacutefico propotildee eacute oposta a concepccedilatildeo tradicional como se tem
observado e apresenta primeiramente como razatildeo para sua indestrutibilidade sua
natureza incorpoacuterea
Tal incorporeidade entenda-se o que se distingue do corpo eacute averiguada como o
contraacuterio de um composto O que eacute de natureza composta estaacute suscetiacutevel agrave
decomposiccedilatildeo dos elementos que o integra sendo dessa forma passiacutevel de ser
destruiacutedo Ao contraacuterio o que eacute de natureza simples natildeo eacute composto (ἀζύλζεηνλ) estaacute
livre de sofrer decomposiccedilatildeo (Fed 78c1-4)
Outra caracteriacutestica que os seres de natureza incorpoacuterea apresenta diz respeito a
mudanccedilas Coisas simples satildeo sempre do mesmo modo comportam-se sempre da
mesma maneira (ὡζαύησο ἔρεη Fed 78c6) enquanto as compostas mudam (Fed 78c6-
8) O ser de realidade diversa do corpoacutereo (ἡ νὐζία) possui tais caracteriacutesticas e da
mesma forma natildeo admite nenhum tipo de mudanccedila (κή πνηε κεηαβνιὴλ θαὶ ἡληηλνῦλ
ἐλδέρεηαη Fed 78d4) Assim os conhecimentos apreensiacuteveis na reminiscecircncia que
indicam a preexistecircncia da alma ao corpo satildeo da mesma natureza incorpoacuterea e
apresentam essas caracteriacutesticas tal como o Igual o Belo e tudo o que eacute dito ldquoser por si
mesmordquo (Fed 78d1-7) Com esta descriccedilatildeo esses seres passam a receber um estatuto
ontoloacutegico que os define como essecircncia (νὐζία) As essecircncias portanto natildeo sofrem
qualquer tipo de mudanccedila ou variaccedilatildeo em nenhum momento satildeo simples (κνλνεηδὲο) e
conserva a sua identidade
Tais definiccedilotildees acerca dos conhecimentos descrevem em boa medida a natureza
de um domiacutenio distinto do sensiacutevel com o qual o ιόγνο filosoacutefico concorrente com o
183
tradicional trabalha A explicaccedilatildeo nos termos da filosofia passa a estabelecer nesta
argumentaccedilatildeo os criteacuterios e os paracircmetros para uma explicaccedilatildeo racional e assim
oferece as caracteriacutesticas dos seres pertencentes a este domiacutenio que satildeo eacute importante
notar os objetos do pensamento O trabalho intelectual envolvido na separaccedilatildeo da alma
em relaccedilatildeo ao corpo ganha explicaccedilotildees acerca de seu desenvolvimento indicando a
forma dialogada da dialeacutetica como o exerciacutecio proacuteprio neste tipo de operaccedilatildeo intelectual
de explanaccedilatildeo acerca das essecircncias (Fed 78d1) Eleger a forma de operar em relaccedilatildeo a
tais objetos defini-los e expor as suas caracteriacutesticas parece importante a esta altura do
diaacutelogo para assegurar na medida do possiacutevel a retidatildeo da investigaccedilatildeo e assim ter
maior esperanccedila sobre a imortalidade da alma e sobre o bom destino do filoacutesofo apoacutes a
morte Do mesmo modo conforme sugere o medo dos amigos de Soacutecrates a
investigaccedilatildeo deve considerar a natureza dos objetos em questatildeo e sendo assim natildeo se
pode realizar uma inquiriccedilatildeo acerca da alma a concebendo como algo corpoacutereo uma
vez que jaacute se deu indicaccedilotildees de se tratarem de seres de naturezas diferentes Parece claro
que para efeito de distinccedilotildees entre alma e corpo a partir de agora se deve ter em conta o
estatuto ontoloacutegico conferido a cada plano e que o domiacutenio das essecircncias eacute acessiacutevel
somente pela atividade do pensamento
25 Alma inteligente e aquisiccedilatildeo da θξόλεζηο
A caracterizaccedilatildeo dos conhecimentos segue de modo a lanccedilar luz no que diz
respeito agrave apreensatildeo e assim na contraposiccedilatildeo sensibilidade-intelecto a partir da qual
seraacute exposta a causa da falibilidade dos sentidos contrariamente agrave eficiecircncia da razatildeo
No domiacutenio da sensibilidade estatildeo as coisas que possuem o atributo de uma essecircncia
como a beleza e a igualdade mas embora seja homocircnima dela os objetos sensiacuteveis
dotados de tais qualidades natildeo consistem nas proacuteprias essecircncias e por isso satildeo passiacuteveis
de corrupccedilatildeo (Fed 78e1) Os objetos sensiacuteveis como um belo cavalo ou pedras iguais
184
satildeo apreendidos pela αἴζζεζηο diferentemente do proacuteprio Belo e da noccedilatildeo de Igualdade
que soacute eacute concebida pela atividade racional mais precisamente pelo raciociacutenio132
Neste argumento a criacutetica ao corpo tem em vista apontar a deficiecircncia das
sensaccedilotildees na aquisiccedilatildeo do conhecimento e justificar por outro lado a excelecircncia do
pensamento nessa funccedilatildeo ao mostrar sua ligaccedilatildeo com o domiacutenio das essecircncias o qual
pode ser compreendido apoacutes as uacuteltimas explicaccedilotildees como domiacutenio inteligiacutevel Importa
comparar pensamento e sensibilidade no que se refere agraves qualidades que cada um pode
acessar A alma e os objetos satildeo examinados assim a partir de dois tipos de existecircncias
(Fed 79a6)133
uma visiacutevel e outra invisiacutevel Os objetos que possuem as caracteriacutesticas
das essecircncias satildeo os invisiacuteveis enquanto os visiacuteveis podem ser corrompidos uma vez
que satildeo da ordem do sensiacutevel A partir desse criteacuterio a alma se mostra mais aparentada
ao que eacute invisiacutevel enquanto o corpo afim com o visiacutevel (Fed 79b4) Essa uacuteltima
argumentaccedilatildeo vale reparar aborda as caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel nos
termos da invisibilidade e da visibilidade Ao mesmo tempo em que oferece uma
definiccedilatildeo uacutetil para o tema da morte ao admitir ser a alma a parte invisiacutevel do homem
(Fed 79b1) e portanto a que deve ser objeto de averiguaccedilatildeo o argumento pontua a
criacutetica aos sentidos mostrando a incapacidade destes de apreender o que eacute da ordem das
essecircncias
O texto com a finalidade de ilustrar a indestrutibilidade da alma mostra na
verdade que temas que se referem agraves essecircncias e ao conhecimento delas como ocorre
com a questatildeo da natureza da alma natildeo deve ser associado agrave sensibilidade mas ao
intelecto Tem-se a total incapacidade da αἴζζεζηο para o conhecimento e ao mesmo
tempo uma explicaccedilatildeo causal acerca da potencialidade cognitiva da θξόλεζηο
ldquo- Caacute estamos entatildeo no que diziacuteamos haacute pouco sempre que a
alma faz uso do corpo (πξνζρξηαη) para se lanccedilar em qualquer
indagaccedilatildeo utilizando a vista o ouvido ou qualquer outro meio
sensorial (e utilizar os sentidos que significa senatildeo utilizar o corpo)
eis que este a arrasta para as realidades em contiacutenuo devir (ἕιθεηαη
ὑπὸ ηνῦ ζώκαηνο) e quanto a ela por aiacute erra mergulhando como
eacutebria na perturbaccedilatildeo e na vertigem (πιαλᾶηαη θαὶ ηαξάηηεηαη θαὶ
132 Fed 79a2 ldquoPois bem essas satildeo justamente as que tu podes ver tocar e apreender pelos restantes
sentidos as outras pelo contraacuterio que mantecircm a sua identidade proacutepria jamais teria meios de captaacute-las
a natildeo ser pelas faculdades da inteligecircncia pois que se trata das realidades invisiacuteveis que a nossa vista
natildeo capta (ηῶλ δὲ θαηὰ ηαὐηὰ ἐρόλησλ νὐθ ἔζηηλ ὅηῳ πνη ἂλ ἄιιῳ ἐπηιάβνην ἢ ηῷ ηο δηαλνίαο
ινγηζκῷ ἀιι ἔζηηλ ἀηδ ηὰ ηνηαῦηα θαὶ νὐρ ὁξαηά)rdquo
133 Privilegiamos a traduccedilatildeo de FOWLER ldquotwo kinds of existencesrdquo para o trecho ldquo δύν εἴδε ηῶλ ὄλησλ
ηὸ κὲλ ὁξαηόλ ηὸ δὲ ἀηδέοrdquo diferentemente da traduccedilatildeo de Azevedo que prefere traduzir eide ton onton
por ldquoduas realidadesrdquo op cit p 275
185
εἰιηγγηᾷ) pois tal eacute a natureza das coisas a que se apega (ἅηε
ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)
- Decerto
- Ao inveacutes quando indaga por si e em si refugiando-se aleacutem no
que eacute puro e sempre existe imortal e idecircntico a si mesmo fica em
razatildeo do seu parentesco para sempre ligada a ele (Ὅηαλ δέ γε αὐηὴ
θαζ αὑηὴλ ζθνπῆ ἐθεῖζε νἴρεηαη εἰο ηὸ θαζαξόλ ηε θαὶ ἀεὶ ὂλ θαὶ
ἀζάλαηνλ θαὶ ὡζαύησο ἔρνλ θαὶ ὡο ζπγγελὴο νὖζα αὐηνῦ ἀεὶ κεη
ἐθείλνπ ηε γίγλεηαη) precisamente quando passa a existir por si e em
si e tal lhe eacute permitido e eacute entatildeo que cessam os seus erros e fixando-
se nessa realidade de aleacutem salvaguarda a sua identidade porque tal
eacute tambeacutem a natureza das coisas a que se apega (ὅηαλπεξ αὐηὴ θαζ
αὑηὴλ γέλεηαη θαὶ ἐμῆ αὐηῆ θαὶ πέπαπηαί ηε ηνῦ πιάλνπ θαὶ πεξὶ
ἐθεῖλα ἀεὶ θαηὰ ηαὐηὰ ὡζαύησο ἔρεη ἅηε ηνηνύησλ ἐθαπηνκέλε)
Ora a esse estado de alma natildeo damos noacutes o nome de ldquorazatildeordquo (θαὶ
ηνῦην αὐηο ηὸ πάζεκα θξόλεζηο θέθιεηαη) (Fed 79c-2-d7)
Ao fazer uso dos sentidos para realizar um exame a alma vai na direccedilatildeo
contraacuteria dos inteligiacuteveis e de sua natureza Ao se deixar influenciar pelos dados
sensiacuteveis ela eacute arrastada por eles desviando-se dos objetos que lhe satildeo afins Em
contato com seres de natureza oposta ou seja advindos do corpoacutereo ela permanece em
um estado de perturbaccedilatildeo (ηαξάζζσ) Note-se que o comportamento da alma eacute orientado
pelo domiacutenio ao qual cede a influecircncia Ao se fixar em objetos inteligiacuteveis a alma age
de maneira semelhante a eles mantendo-se reta e conservando a sua natureza imutaacutevel
Se ao contraacuterio ela se deixa influenciar pelo corpo e tendo em vista o que corresponde
ao domiacutenio do sensiacutevel torna-se incapaz de fazer uso da inteligecircncia assumindo assim
um comportamento condizente com ele eacutebrio e errante134
Esse estado de agitaccedilatildeo
constitui a descaracterizaccedilatildeo mais evidente que ela pode sofrer A alma demasiado
influenciada pelo corpo assume suas caracteriacutesticas corpoacutereas no sentido de dispensar a
racionalidade tendo como dano maior se tornar bestial como o corpo A consequecircncia
nefasta do apego da alma ao corpo traz prejuiacutezos agrave sua natureza que significa em uacuteltima
circunstacircncia um uso indevido ou desuso de suas capacidades intelectuais A resposta
da alma nessa condiccedilatildeo conveacutem notar demonstra ser diferente se comparada ao que
acontece em relaccedilatildeo agraves sensaccedilotildees corpoacutereas No contato com os objetos sensiacuteveis a
alma entatildeo agitada reage a eles com o trabalho da intelecccedilatildeo
134 Note-se aqui a negatividade atribuiacuteda aos sentidos semelhante ao que constitui uma limitaccedilatildeo para o
meacutetodo geomeacutetrico isto eacute o uso de imagens e a atenccedilatildeo voltada para os objetos do mundo fiacutesico Da
mesma forma observa-se o impecilho que uso do sensiacutevel constitui para a alma na busca pelo
conhecimento presente nos termos do obstaacuteculo para a alma ainda presa ao corpo no contexto do Feacutedon
e das dificuldades que se antepotildeem ao aprendiz conforme o livro VII anaacutelogas agraves dificuldades que
encontra o homem ao sair da caverna O que a uacuteltima parte da linha oferece como pensamento que
trabalha somente com ideias e atraveacutes de ideias aqui se daacute o nome de pensamento puro
186
Cabe analisar de que modo o texto descreve a identificaccedilatildeo da alma como algo
que mais se assemelha ao que eacute inteligiacutevel uniforme indestrutiacutevel divino e imutaacutevel135
em contraponto a uma hiperinfluecircncia do corpoacutereo Vale observar que embora este
ὁκνηόηαηνλ indique a afinidade da alma com o gecircnero invisiacutevel e inteligiacutevel natildeo se
pode compreender haver aqui uma riacutegida definiccedilatildeo de alma Natildeo haacute no horizonte do
texto ainda que se tenha em questatildeo a imortalidade o propoacutesito de traccedilar uma riacutegida
definiccedilatildeo da alma mas salientar as caracteriacutesticas que concernem agrave sua
indestrutibilidade nesse caso note-se seu parentesco com o gecircnero incorpoacutereo que se
manifesta com a atividade inteligente
O diaacutelogo chama atenccedilatildeo para as caracteriacutesticas que satildeo justamente opostas e
portanto comparaacuteveis com as caracteriacutesticas dos seres do gecircnero corpoacutereo de modo a
apresentar assim uma narrativa que descreve a alma basicamente em trecircs estados sob
influecircncia do corpo em processo de desvinculaccedilatildeo do corpo ou seja desapegando-se
dessa influecircncia e totalmente apartada dele o que constitui o estado de morte e
supostamente um estado de alta intelecccedilatildeo tal como se daacute nessa descriccedilatildeo da θξόλεζηο
Faz sentido apresentar desse modo as trecircs circunstacircncias que consiste vale lembrar no
percurso do filoacutesofo Mostrar a alma ao mesmo tempo afim e mais assemelhada ao
divino e imortal natildeo a coloca em um estatuto de igualdade em relaccedilatildeo agraves essecircncias ou agrave
divindade parecendo cabiacutevel portanto oferecer uma imagem dela como algo quase
corpoacutereo por assim dizer que pode demonstrar a hiperinfluecircncia do corpoacutereo e o
consequente desuso da razatildeo no que se refere agrave sua potencialidade cognitiva Em outros
termos para ilustrar o processo de aquisiccedilatildeo da excelecircncia intelectual do filoacutesofo eacute
preciso ter uma visatildeo da alma suscetiacutevel a depuraccedilatildeo racional da filosofia e desse
modo que ofereccedila tanto os resultados dele a exemplo da alma do filoacutesofo quanto a
possibilidade dessa purificaccedilatildeo natildeo ocorrer
A narrativa de uma conduta pautada pelo corpoacutereo no qual as faculdades
inteligiacuteveis da alma natildeo exercem qualquer comando contrariando sua natureza (79e8-
80a5) sugere uma posiccedilatildeo intermediaacuteria da alma entre apelos do sensiacutevel uma vez
encarnada em um corpo humano e sua inclinaccedilatildeo inteligiacutevel dada afinidade com tal
gecircnero A tensatildeo sensiacutevel-inteligiacutevel posta em termos de domiacutenios distintos eacute agora
refletida conforme o texto em uma conduta da alma que pode oscilar e que tem no
135 Fed 80b1-3 ldquo() se eacute ao que eacute divino imortal e inteligiacutevel ao que possui uma soacute forma e eacute
indissoluacutevel e se manteacutem constante e igual a si mesmo que a alma mais se identifica ()rdquo ( ηῷ κὲλ ζείῳ
θαὶ ἀζαλάηῳ θαὶ λνεηῷ θαὶ κνλνεηδεῖ θαὶ ἀδηαιύηῳ θαὶ ἀεὶ ὡζαύησο θαηὰ ηαὐηὰ ἔρνληη ἑαπηῷ
ὁκνηόηαηνλ εἶλαη ςπρή)
187
intelecto a faculdade para orientaacute-la na direccedilatildeo daquilo que ela deveria naturalmente
aspirar A ausecircncia da atuaccedilatildeo da razatildeo ou como diz o texto a ausecircncia do comando da
alma tem origem no apego ao corpoacutereo resultante da convivecircncia (ἅηε ηῷ ζώκαηη ἀεὶ
ζπλνῦζα Fed 81b2) com o corpo o que pode ser visto em certa medida como uma
alteraccedilatildeo em sua natureza Tal alteraccedilatildeo eacute dada analogamente como uma mancha
(κηαίλσ) uma impureza (ἀθάζαξηνο ηνῦ ζώκαηνο Fed 81b1) consequecircncia de uma
conduta na qual a alma desprovida da atividade do pensamento estaacute enleada pelo que se
refere ao corpo mais precisamente prazeres e paixotildees (Fed 81b2-4) A alma nesse
contexto acostuma-se (ἐζίδσ) com as caracteriacutesticas corpoacutereas (ηὸ ζσκαηνεηδέο)
reconhecendo somente estes como verdadeiros recusando o que eacute inteligiacutevel (λνεηὸλ δὲ
θαὶ θηινζνθίᾳ αἱξεηόλ Fed 81b5)
Dominada pelo corpo vecirc-se a corrupccedilatildeo de sua potecircncia cognitiva e a ecircnfase
que o texto cabe notar confere ao pensamento ao identificar a conservaccedilatildeo da natureza
da alma agrave intelecccedilatildeo Em outros termos como responsaacutevel por evitar tal domiacutenio o
pensar exercido pela filosofia pode garantir o bom destino apoacutes a morte e a felicidade
(Fed 81a) por habituar a alma agrave convivecircncia com o que eacute inteligiacutevel e a tornaacute-la
temperante e justa Do mesmo modo ao contraacuterio em uma vida na qual se privilegia os
viacutecios como as glutonias beberronices injusticcedila e tirania (Fed 82a) habituou-se a
alma a tais coisas e tem portanto uma forte relaccedilatildeo e uma assimilaccedilatildeo de sua forma e
de seu modo de ser (Fed 81c4-6) Apegada ao corpo a alma assimila apenas o que eacute
corpoacutereo assumindo algumas caracteriacutesticas dele O que de maneira anaacuteloga eacute dito se
tornar pesada e ser arrastada ao sensiacutevel pelo temor da morte (Fed 81c9) sugere na
verdade a corrupccedilatildeo da natureza da alma devida a ausecircncia da praacutetica do trabalho
intelectual em vista dos inteligiacuteveis (Fed 81c9)
Parece importante mostrar os efeitos negativos desta dominaccedilatildeo do corpo para
enfatizar o modo de vida como o percurso no qual se daacute a depuraccedilatildeo ou corrupccedilatildeo desta
natureza Como perda do seu caraacuteter se tem anuladas algumas caracteriacutesticas tal como o
uso da racionalidade como jaacute dito e a perda de sua invisibilidade Apoacutes a morte do
corpo as almas ainda muito influenciadas pelo corpoacutereo seratildeo fantasmas que vagaratildeo
em torno dos tuacutemulos podendo assim serem vistas uma vez que compartilham
caracteriacutesticas dele (Fed 81d2) Diferentemente aqueles que conservam as virtudes por
terem o haacutebito de praticaacute-las de algum modo ainda que sem o exerciacutecio da filosofia
188
podem ter um bom destino no poacutes vida136
Note-se que o costume nos termos da praacutetica
e da convivecircncia demonstra o aspecto eacutetico da racionalidade neste intercurso entre
sensiacutevel e inteligiacutevel realizaacutevel pelo pensamento Eacute preciso exercitar a alma a frequentar
o ambiente inteligiacutevel para que possa se preservar e ter um destino compatiacutevel com sua
natureza Dito de outro modo a conduta correta que garante a vida digna e o bom
destino apoacutes a morte depende da preponderacircncia da razatildeo que assegura seu caraacuteter de
ser inteligente e de compartilhar caracteriacutesticas comuns com o domiacutenio invisiacutevel
Conveacutem observar que o diaacutelogo apresenta a conduta como fator determinante na
conservaccedilatildeo da natureza da alma sendo por conta disso o modo de se exercitar
racionalmente um dos pontos importantes a serem abordados a seguir (Fed 81e2)137
A interaccedilatildeo da alma com os inteligiacuteveis realizada que se tem no exerciacutecio
filosoacutefico proporciona um estado duradouro de inteligibilidade cujos efeitos satildeo
prolongados e tecircm reflexos na conduta que o filoacutesofo assume durante a vida e nas
razotildees que fundamentam seu destemor em relaccedilatildeo agrave morte Natildeo constituindo apenas
uma operaccedilatildeo raciocinativa ou de caacutelculo a inteligecircncia consiste na aquisiccedilatildeo das
qualidades dignas de se assemelharem com as essecircncias e com os seres divinos (Εἰο δέ
γε ζεῶλ γέλνο Fed 82b10)
Sugere-se desse modo a elevaccedilatildeo da alma ao grau dos seres superiores
comparaacuteveis agravequeles seres puros e autecircnticos os quais Soacutecrates acredita serem possiacuteveis
de encontrar no melhor destino apoacutes a morte Dado anteriormente como uma capacidade
inteligente da alma de se purificar da negativa influecircncia do corpo o pensar tambeacutem eacute
visto como estado de influecircncia dos inteligiacuteveis (ηὸ πάζεκα) na condiccedilatildeo da alma pura
ou atuando por si mesma (αὐηὴ θαζ αὑηὴλ) isolada do corpo
Cabe ressaltar o papel paradoxal atribuiacutedo ao pensamento no Feacutedon Diante dos
dois movimentos da alma afastamento e aquisiccedilatildeo dos inteligiacuteveis a θξόλεζηο
apresenta seu caraacuteter ativo e passivo ao sintetizar o conjunto dos resultados da
identificaccedilatildeo da alma com o domiacutenio suprassensiacutevel ou seja como accedilatildeo de interaccedilatildeo e
136 Fed 82a10-b3 ldquoE dentre estes os mais felizes os mais bem instalados seratildeo ainda os que praticam
essas formas populares e sociaacuteveis de virtude que chamam de temperanccedila e justiccedila ainda que assentes
na forccedila do haacutebito e natildeo na reflexatildeo filosoacutefica (Οὐθνῦλ εὐδαηκνλέζηαηνη ἔθε θαὶ ηνύησλ εἰζὶ θαὶ εἰο
βέιηηζηνλ ηόπνλ ἰόληεο νἱ ηὴλ δεκνηηθὴλ θαὶ πνιηηηθὴλ ἀξεηὴλ ἐπηηεηεδεπθόηεο ἣλ δὴ θαινῦζη
ζσθξνζύλελ ηε θαὶ δηθαηνζύλελ ἐμ ἔζνπο ηε θαὶ κειέηεο γεγνλπῖαλ ἄλεπ θηινζνθίαο ηε θαὶ λνῦ)rdquo
137 Note-se que a natureza inteligente da alma filosoacutefica n‟A Repuacuteblica eacute dada como um dos fatores
decisivos para a escolha e treinamento do futuro governante uma vez que significa aptidatildeo para uma
tarefa (Rep 455b) e demonstra a potencialidade para apreender e se apegar ao belo (476b) enquanto aqui
eacute um fator imprescindiacutevel para a conservaccedilatildeo e restauraccedilatildeo da alma que a filosofia pretende Apesar dos
diferentes contextos estaacute em questatildeo o seu desenvolvimento e a sua preservaccedilatildeo como condiccedilatildeo para
atingir os fins pretendidos o bom governo e a boa morte
189
como os efeitos do reconhecimento deste domiacutenio138
Apesar da estranheza que possa
causar tal afirmaccedilatildeo esse duplo papel eacute o que explica a natureza autocircnoma da alma A
possibilidade de isolamento do que lhe eacute naturalmente adverso como as sensaccedilotildees soacute eacute
possiacutevel por causa dessa faculdade que a eleva a um plano superior e a manteacutem nesse
niacutevel de elevaccedilatildeo onde ele apreende os seres verdadeiros Sua autonomia resulta da
capacidade de interagir com os inteligiacuteveis e de se manter sob influecircncia deles agindo
assim sem o auxiacutelio de outra capacidade e sem se deixar desorientar por algo de outra
ordem Ao mesmo tempo em que se tem uma faculdade tal somente um pensamento
elevado pode assegurar a continuidade da realizaccedilatildeo de sua atividade
Eacute nesses termos que se deve compreender que a alma pura tem o pensamento
igualmente puro influenciado e orientado pelos inteligiacuteveis seres igualmente puros ou
seja de mesma natureza incorpoacuterea e inteligiacutevel O texto acrescenta uma explicaccedilatildeo
acerca do processo de aquisiccedilatildeo do estado excelente do pensamento ao oferecer a sua
constituiccedilatildeo enquanto atividade nessa relaccedilatildeo A descriccedilatildeo do comportamento da alma
nas duas circunstacircncias narradas apresenta o gecircnero da intelecccedilatildeo e dos seus
desdobramentos embora ainda sem se ater agraves especificidades acerca de sua operaccedilatildeo
como vai se dar ao se tratar da dialeacutetica
Vale observar como esse argumento contribui na construccedilatildeo da noccedilatildeo de
excelecircncia do pensamento a partir das questotildees ontoloacutegicas e eacuteticas que se apresentam
O que antes foi dado como pensamento puro termo de empreacutestimo da tradiccedilatildeo recebe
do ιόγνο filosoacutefico suas especificaccedilotildees origem gecircnero objetos e modus operandi
adequado para os fins da cogniccedilatildeo este uacuteltimo tratado com maior detalhe no fim do
diaacutelogo Tais especificaccedilotildees contribuem ateacute aqui para justificar o destemor do filoacutesofo
e sugerir a superioridade de um plano acessiacutevel pelo pensamento que em muito se
identifica com o invisiacutevel e eterno A preservaccedilatildeo de sua natureza ou cuidado da alma
sugere ser a atividade (πξ ηηεηλ Fed 82d5) e o haacutebito (ἔζνο) a condiccedilatildeo para a
felicidade o que no caso do filoacutesofo consiste na vida pautada pelo pensamento
O processo de purificaccedilatildeo ou aquisiccedilatildeo do estado de interaccedilatildeo com as ideias
inteligiacuteveis se daacute como se vecirc em uma eacutetica que encontra seu fundamento na natureza
racional e na atividade de conhecimento desses inteligiacuteveis ao mesmo tempo em que ela
138 Na compreensatildeo de Dixsaut esse ldquoestadordquo ou ldquoafecccedilatildeordquo da psykhe nomeada ldquosaberrdquo tal como
prefere a autora mostra o equiacutevoco em compreender que Platatildeo pergunta o que eacute ser uma ciecircncia uma
ciecircncia constituiacuteda Haacute na verdade o interesse em saber sobre essa relaccedilatildeo entre a alma e os objetos que
a afetam Dixsaut op cit p 145 Este eacute provavelmente o sentido de episteacuteme que encontramos no Feacutedon
a qual deve ser vista como em 79d uma relaccedilatildeo entre a alma e os seres inteligiacuteveis
190
mesma se constitui deste trabalho O filoacutesofo amante do saber do aprendizado potildee-se
com esta praacutetica em condiccedilotildees de atingir o plano superior de seres de gecircnero
identificados ao divino139
ao deixar a filosofia como traz o texto cuidar da alma para
tornaacute-la liberta ou seja natildeo mais submetida ao corpo (Fed 82e) O isolamento da alma
dado nesta postura intelectualista entenda-se que despreza o que natildeo se refere agrave alma e
se dedica agravequilo que se pode tratar apenas pelo intelecto sugere o cuidado de si como
submissatildeo da alma ao pensamento que se daacute sob a forma de convencimento (πείζσ)
(Fed 83a6-b3)
Este ponto ganharaacute foco com a explanaccedilatildeo da dialeacutetica ao final do diaacutelogo e se
mostraraacute importante por expor o meacutetodo do conhecimento e a forma de operar desta
racionalidade defendida ateacute este instante A exposiccedilatildeo que o diaacutelogo aos poucos
ofereceu sobre a θξόλεζηο teve o propoacutesito como se viu de apresentar a partir das
diferenciaccedilotildees em relaccedilatildeo aos sentidos o gecircnero ao qual pertence e o seu valor para que
fosse possiacutevel fundamentar a noccedilatildeo de imortalidade que o filoacutesofo tem em vista Ao que
parece era importante levantar as questotildees que tocam a natureza da alma para traccedilar seu
perfil corretamente no qual a faculdade inteligente e a inteligecircncia satildeo os elementos sob
os quais cabe maior detalhamento Feitas tais distinccedilotildees o diaacutelogo acentuaraacute o caraacuteter
racionalista desta vida filosoacutefica propondo ao longo do seu desenvolvimento
especificaccedilotildees acerca dos objetos inteligiacuteveis do meacutetodo de aquisiccedilatildeo de tais objetos e
por consequecircncia da operacionalidade deste pensamento em seu modo excelente Todas
as qualificaccedilotildees atribuiacutedas ao inteligiacutevel tal como as provas da imortalidade da alma
passam a ser explicitadas segundo o ιόγνο filosoacutefico o qual ganha uma elaboraccedilatildeo
teacutecnica do meacutetodo filosoacutefico de anaacutelise e construccedilatildeo do discurso abandonando assim
os termos da tradiccedilatildeo
III A θξόλεζηο e o ιόγνο o exerciacutecio filosoacutefico
139 Fed 82b10-c1 ldquoQuanto agrave espeacutecie dos deuses natildeo seraacute permitido o acesso agravequele que natildeo praticou
a filosofia e natildeo se vai daqui totalmente purificado mas somente ao que ama o saber (Εἰο δέ γε ζεῶλ
γέλνο κὴ θηινζνθήζαληη θαὶ παληειῶο θαζαξῷ ἀπηόληη νὐ ζέκηο ἀθηθλεῖζζαη ἀιι ἢ ηῷ θηινκαζεῖ)rdquo
191
A proposta acerca da imortalidade da alma e consequentemente de sua
inteligibilidade eacute analisada segundo a forma cientiacutefica de filosofar A filosofia como
exerciacutecio intelectual aparece a partir de agora natildeo somente nos termos de uma
preparaccedilatildeo para a morte que prevecirc um retorno da alma agrave sua condiccedilatildeo mais autecircntica
ou de uma forma religiosa de obediecircncia ao deus Apolo (Fed 60e-61b) Ela passa a ser
exibida sob a forma da atividade capaz de elaborar instrumentos teoacutericos para a
aquisiccedilatildeo do conhecimento dos seres inteligiacuteveis ao dizer a relaccedilatildeo que a alma mantecircm
com eles (Fed 79d) e para demonstrar a imortalidade O aparato teoacuterico e
metodoloacutegico que Platatildeo elabora mais adiante ao tratar do ιόγνο do meacutetodo e ao
compor a Teoria das Formas colabora para os propoacutesitos do filoacutesofo Deve-se ter em
conta que a intenccedilatildeo de elaborar este aparato indicada no iniacutecio do diaacutelogo na ocasiatildeo
em que Soacutecrates declarava ter composto durante a vida a filosofia por ser justamente
esta a mais alta muacutesica (Fed 60e-61b10) cumpre-se ao especificar no que de fato
consiste e como se daacute essa forma de composiccedilatildeo filosoacutefica e portanto esta ordenaccedilatildeo
intelectual que julga ser superior agrave forma de composiccedilatildeo tradicional
Tem-se com isso a sugestatildeo de uma praacutetica intelectual que nesse contexto
consiste na maneira de compor argumentos140
Dito de outro modo investigar acerca do
meacutetodo filosoacutefico e de seus fundamentos consiste concomitantemente em analisar como
se deve exercer essa atividade intelectual para que ela se torne praticaacutevel no contexto
em que a alma ainda estaacute presa ao corpo ou seja limitada pela condiccedilatildeo de
humanidade
Deve-se notar que tal abordagem acerca da praacutetica filosoacutefica vai ao encontro de
uma questatildeo que surge a partir do que a passagem 79d descreve dado que o estado de
alta inteligecircncia descreve a ligaccedilatildeo do pensamento puro portanto livre do corpo eacute
possiacutevel o conhecimento destes seres na condiccedilatildeo de humanidade na qual a alma ainda
estaacute presa ao corpo A Teoria da Reminiscecircncia mostrou que sim No entanto vale
140 O sonho que visitou Soacutecrates vaacuterias vezes ao longo da vida pedia ao filoacutesofo que fizesse e praticasse
a arte das musas a musikeacute O filoacutesofo obedeceria mais uma vez a ordem do deus como fez durante toda a
vida mas atraveacutes da filosofia a mais alta muacutesica Ao identificar de algum modo a filosofia agrave musike o
diaacutelogo propotildee uma nova definiccedilatildeo para ambos No sonho a muacutesica natildeo aparece somente sob a forma de
mensagem divina tal como define a tradiccedilatildeo mas como exerciacutecio de ldquocompor e praticar a muacutesicardquo (60e-
61b10) A mensagem ganha uma interpretaccedilatildeo racionalista ao ser equiparada agrave filosofia sendo a muacutesica
ao que tudo indica uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo segundo a racionalidade que subsidia o exerciacutecio da
filosofia Apesar disso a filosofia se distingue da muacutesica ao criar loacutegoi enquanto que a poesia cria
mythoi e nisso reside a superioridade da atividade filosoacutefica Vale observar que a sugestatildeo do exerciacutecio
filosoacutefico como ordenaccedilatildeo e portanto como trabalho intelectual que Soacutecrates faz no iniacutecio do diaacutelogo
agora se torna especiacutefica por meio da elaboraccedilatildeo da Teoria das Formas e do meacutetodo os quais conferem
caraacuteter cientiacutefico agrave filosofia
192
observar que o tema da imortalidade visto agrave luz dos infortuacutenios e limites da condiccedilatildeo da
alma presa ao corpo encontra na elaboraccedilatildeo do ιόγνο o caminho Assim uma pesquisa
sobre o discurso filosoacutefico no que concerne ao conhecimento e a possibilidade de dizer
as coisas em sua forma inteligiacutevel e portanto autecircntica parece parte do exerciacutecio e um
dos propoacutesitos da investigaccedilatildeo
Este terceiro movimento do Feacutedon propotildee uma reflexatildeo sobre a plausibilidade
das teses defendidas ateacute aqui como construtos do intelecto de modo a atestar mais uma
vez sua legitimidade como o uacutenico meio adequado para tal tarefa Uma vez realizadas
as devidas distinccedilotildees entre alma e corpo sensaccedilotildees e intelecto o empenho de agora em
diante consiste em demonstrar a capacidade do intelecto e a legitimaccedilatildeo de seus
instrumentos Assim os argumentos seguintes oferecem em certa medida um parecer
criacutetico e analiacutetico sobre os feitos que se referem agrave racionalidade e ao gecircnero
suprassensiacutevel sugeridos pela noccedilatildeo de θξόλεζηο tal qual o diaacutelogo propotildee141
O exerciacutecio racional da filosofia dado ateacute entatildeo nos termos de uma postura
intelectualista passa a ser exposto no registro de uma concepccedilatildeo de ciecircncia a partir da
qual a capacidade cognitiva seraacute o ponto de intersecccedilatildeo entre os temas do diaacutelogo A
postura do filoacutesofo de se desligar do que concerne ao corpo como as paixotildees (αὐηὴλ
παξαδηδόλαη ηαῖο ἡδνλαῖο Fed 84a4) eacute dada como o resultado do caacutelculo (ινγηζκόο) da
orientaccedilatildeo da razatildeo O refuacutegio nas essecircncias que se daacute por meio do ιόγνο anteriormente
sugerido para o prosseguimento da investigaccedilatildeo (Fed 79d1) eacute visto sob duas
perspectivas tomado como conduta durante a vida tem por finalidade a libertaccedilatildeo dos
males que afetam a alma na condiccedilatildeo de humanidade como postura gnosioloacutegica tem
como consequecircncia a aquisiccedilatildeo dos seres do que eacute verdadeiro e divino e o retorno agrave
natureza inteligiacutevel (Fed 86a7-b3)
O paralelismo entre conduta moral e aquisiccedilatildeo do conhecimento lanccedila luz a
questotildees acerca da veracidade do argumento e portanto acerca da operacionalidade e
do alcance da inteligecircncia Parece pertinente que a forma do discurso como trabalho da
inteligecircncia deva ter a sua capacidade de persuasatildeo posta de modo indubitaacutevel para que
a tese defendida e explanada a da imortalidade seja comprovada e aceita e o medo do
141 Conceber esta uacuteltima parte do diaacutelogo a qual traz a Teoria das ideias e o meacutetodo hipoteacutetico como
uma explicaccedilatildeo da primeira parte eacute uma leitura aceita para alguns comentadores Chen entender a
explicaccedilatildeo acerca do logos e a sua demonstraccedilatildeo na prova final da imortalidade uma exemplificaccedilatildeo do
treino para a morte dita no iniacutecio do texto Ele explica que apesar de parecer uma afirmaccedilatildeo ldquofantaacutesticardquo
jaacute que tal relaccedilatildeo natildeo eacute dada textualmente pode-se fazer esta associaccedilatildeo porque o exerciacutecio para a morte
que consiste na filosofia se realiza no meacutetodo das hipoacuteteses utilizada para provar a imortalidade da alma
Chen op cit p 30 nota 13
193
fim seja finalmente dissipado Em outras palavras como aspecto formal de uma
racionalidade que fundamenta um modo de vida e explica a morte o ιόγνο filosoacutefico
deve igualmente passar por um exame para que as teses que satildeo por ele explicadas
tenham validade
31 Questionamentos sobre o fundamento do ιόγνο
Vale a pena expor brevemente os dois argumentos que expotildeem a fragilidade de
uma concepccedilatildeo fisicalista da alma no que se refere a uma prova da imortalidade Eacute
pertinente levantar as caracteriacutesticas desta concepccedilatildeo a partir das duacutevidas dos
interlocutores de Soacutecrates como contraponto ao que se pretende defender sobre o
discurso filosoacutefico como a forma do trabalho inteligiacutevel A argumentaccedilatildeo que
apresentou a proposiccedilatildeo da alma como ser indestrutiacutevel parece natildeo ter sido inteiramente
aceita (Fed 84c) apoacutes serem dadas as principais abordagens sobre ela Siacutemias questiona
acerca da possibilidade do conhecimento da imortalidade dadas as condiccedilotildees que a vida
humana oferece e a partir disso a validade da argumentaccedilatildeo filosoacutefica O argumento
anterior parece natildeo ter sido capaz de convencer o interlocutor de Soacutecrates que natildeo
pretende abandonar a investigaccedilatildeo apesar de reconhecer as dificuldades Para Siacutemias o
exerciacutecio de investigar se mostra carente de uma base minimamente soacutelida sob a qual
seja possiacutevel construir o discurso e assim constituir algum conhecimento na medida do
que for possiacutevel sobre a imortalidade O risco nesse sentido estaacute justamente em se
lanccedilar em uma experiecircncia que ateacute o momento se mostra destituiacuteda de um fundamento
ldquo() - Vou pois expor-te as minhas duacutevidas e outro tanto faraacute
o nosso Cebes explicando em que aspecto rejeito a tua argumentaccedilatildeo
(θαὶ ἐγώ ηέ ζνη ἐξῶ ὃ ἀπνξῶ θαὶ αὖ ὅδε ᾗ νὐθ ἀπνδέρεηαη ηὰ
εἰξεκέλα) Por mim Soacutecrates acho como talvez tambeacutem tu que um
conhecimento exato nesse tipo de mateacuterias eacute ou impossiacutevel ou
extremamente difiacutecil de adquirir em vida mas por outro lado natildeo
criticar em todos os seus aspectos as afirmaccedilotildees que nesse domiacutenio se
produzem ou renunciar a fazecirc-lo antes de ter esgotado todas as
possibilidades de exame (ἐιέγρεηλ) eacute bem sinal de fraqueza de
espiacuterito (πάλπ καιζαθνῦ εἶλαη ἀλδξόο) Ora nesse campo as
perspectivas que temos satildeo estas aprendermos a verdade de outrem
194
ou descobri-la noacutes ou ainda caso qualquer destas hipoacuteteses seja
inviaacutevel escolhermos dentre as doutrinas humanas a que nos
parecer melhor (βέιηηζηνλ ηῶλ ἀλζξσπίλσλ ιόγσλ) e menos faliacutevel
(εἰ κή ηηο δύλαηην ἀζθαιέζηεξνλ θαὶ ἀθηλδπλόηεξνλ) e como em
jangada arriscar nela a travessia da vida ndash a menos claro que se
consiga com maior seguranccedila e ausecircncia de risco embarcar em
transporte mais soacutelido do que este quero dizer uma doutrina
revelada (ιόγνπ ζείνπ ηηλόο) ()rdquo (Fed 85c1- d3)
Um ιόγνο sobre a imortalidade natildeo eacute possiacutevel sem que haja o trabalho do
pensamento filosoacutefico Mesmo diante da aparente falta de fundamento da pesquisa ao
modo da filosofia e da incerteza quanto aos resultados o discurso que se baseia na
natureza inteligente da alma e por isso na legitimidade das faculdades intelectuais
mostram-se a alternativa mais indicada para a investigaccedilatildeo As razotildees de prosseguir na
investigaccedilatildeo apesar da sua possiacutevel falibilidade potildee a dimensatildeo da limitaccedilatildeo do
pensamento ao explicar o sentido da persistecircncia em tal empresa Parece incontestaacutevel o
trabalho racional que a alma realiza mesmo em condiccedilatildeo hostil ou seja presa ao corpo
Parece vaacutelido que agrave filosofia cabe aprender descobrir (καζεῖλ εὑξεῖλ Fed 85c7) e
buscar o melhor discurso sobre a imortalidade mesmo que se admita a impossibilidade
de conhecer algo sobre o plano suprassensiacutevel em vida humana
Nesse sentido tem-se em vista a κάζεζηο e o que foi sugerido sobre o
conhecimento dos seres verdadeiros tal como mostrou a reminiscecircncia ao se aceitar
como via possiacutevel a busca a partir da proacutepria alma Do mesmo modo o impasse que se
mostra agora natildeo tira do horizonte da investigaccedilatildeo a proposta do conhecimento a partir
desta natureza inteligente e incorpoacuterea haacute pouco defendida da qual a alma se filia
Parece pertinente assim admitir ser o que resulta deste ιόγνο uma descoberta (εὑξεῖλ) e
ser correta a recusa de discursos jaacute estabelecidos sobre a alma e sobre sua natureza
Fraacutegil como a travessia em uma jangada o conhecimento em condiccedilotildees de humanidade
natildeo pode assertivamente dizer o destino da alma apoacutes a morte do corpo entretanto
parece mais razoaacutevel ter o ιόγνο como meio e o pensamento como condutor da pesquisa
Cabe notar que dada a precariedade de qualquer discurso humano sobre o que se
refere ao post-mortem o filoacutesofo se vecirc descomprometido com o acerto mas
comprometido em fazecirc-lo e fazecirc-lo bem lanccedilando sobre ele um minucioso e profundo
exame O receio relaccedilatildeo agrave morte que impedia os interlocutores de Soacutecrates de
persistirem na investigaccedilatildeo sobre a imortalidade (Fed 84d) se mostra assim descabido
sendo a via da racionalidade pela filosofia a que se mostra mais plausiacutevel A
195
superioridade que se pretende atribuir agrave especificidade do discurso filosoacutefico em
comparaccedilatildeo aos outros se restringe ao fato de constituir tambeacutem um autoexame o qual
sugere ao filoacutesofo a noccedilatildeo de sua verdadeira capacidade de cogniccedilatildeo A inquiriccedilatildeo
acerca da natureza da alma e assim do pensamento conduz incontornavelmente a
questionamentos relativos ao seu alcance e modo de operar chamando atenccedilatildeo para o
meacutetodo atraveacutes do qual eacute possiacutevel o conhecimento
Esse instante que serve como interluacutedio inaugura a nova perspectiva sob a qual a
imortalidade da alma seraacute tratada Ateacute agora o diaacutelogo destacou a alma na condiccedilatildeo da
humanidade e em relaccedilatildeo a um plano considerado superior ou seja em relaccedilatildeo ao plano
inteligiacutevel e ao plano da divindade As consideraccedilotildees acerca do pensamento foram
realizadas desse modo a partir desta relaccedilatildeo a qual apontou seu papel como faculdade
da alma seu gecircnero e qualidades mas que no entanto natildeo apresentaram maiores
especificaccedilotildees que demonstrassem a sua legitimidade Ao questionar sobre a validade
do discurso o texto potildee mais uma vez a questatildeo que se liga crucialmente agrave legitimidade
do trabalho racional a natureza imortal da alma que passa a ser examinada com
elementos da filosofia ou seja por meio do meacutetodo filosoacutefico
As duacutevidas acerca do pensamento recebem tratamento na revisatildeo da tese da
indestrutibilidade da alma nos dois proacuteximos argumentos142
O diaacutelogo contrapotildee agrave
pertinecircncia da pesquisa filosoacutefica o medo da morte amparado pela noccedilatildeo de alma que
os interlocutores de Soacutecrates possuem143
O discurso acerca da imortalidade defendido
142 Michael Ferejohn faz um comentaacuterio acerca da postura de Soacutecrates que pode justificar os argumentos
nos quais se potildee agrave prova as concepccedilotildees de seus interlocutores ldquoOs primeiros diaacutelogos bem como o
Meacutenon foram escritos do que podemos chamar perspectiva ldquosocraacuteticardquo isto eacute do ponto de vista de um
inquiridor criacutetico que reconhece que ele proacuteprio natildeo possui conhecimento genuiacuteno e entatildeo se potildee a
descobrir se algueacutem em seu torno estaacute em melhor posiccedilatildeo do que ele a este respeito () Por contraste o
que chamo de ldquoperspectiva socraacuteticardquo e com ela o requerimento de explicaccedilatildeo do conhecimento eacute muito
evidente no Feacutedon ()ldquo Ferejohn M ldquoO Conhecimento e as Formas em Platatildeordquo in Platatildeo (Benson H e
col Org) Porto Alegre Artmed 2011 p 152 A necessidade de testar as proposiccedilotildees conforme sugeriraacute o
meacutetodo hipoteacutetico mais adiante aparece demonstrada nessa exposiccedilatildeo do erro dos discursos dos
interlocutores Assim uma defesa da tese filosoacutefica da imortalidade exigiraacute tambeacutem que seja posta agrave
prova demonstrando concomitantemente assim a atividade da razatildeo e a validade de seu trabalho
143 Siacutemias e Cebes pertenciam agrave escola pitagoacuterica e eram ouvintes de Filolau de Crotona Esse uacuteltimo se
estabeleceu em Tebas em meados do seacuteculo V quando tinha por volta de cinquumlenta anos e teve contato
com os disciacutepulos de Pitaacutegoras Guardini R La Mort de Socrate Editions du Seuil p 142 A visatildeo da
alma como uma harmonia pelos pitagoacutericos eacute criticada no Feacutedon (85c-86e) Platatildeo constata nessa
identificaccedilatildeo a concepccedilatildeo de alma como um elemento corpoacutereo o qual natildeo escaparaacute agrave aniquilaccedilatildeo com a
morte Evidentemente natildeo se deve pensar que o diaacutelogo consiste em uma criacutetica agrave teoria da alma segundo
o pitagorismo ou segundo os misteacuterios mas eacute notaacutevel que ele natildeo ignora tal doutrina considerando-a um
bom ponto de partida para a concepccedilatildeo filosoacutefica de alma que pretende formular Temas como a
imortalidade e transmigraccedilatildeo presentes no diaacutelogo satildeo comuns aos pitagoacutericos e ganham
gradativamente no desenrolar da narrativa os contornos filosoacuteficos tais como Platatildeo os concebe Deste
modo o argumento presente mostra os pontos da visatildeo pitagoacuterica que se mostram incompatiacuteveis com a
alma inteligiacutevel e imortal do Feacutedon Os personagens que dialogam com Soacutecrates na investigaccedilatildeo acerca
196
pelo filoacutesofo ateacute entatildeo esbarra em uma concepccedilatildeo de alma ao modelo do corpoacutereo no
qual a destruiccedilatildeo e o fim satildeo as visotildees que se tem da morte e o medo um sentimento
inevitaacutevel Para expor o ponto de insuficiecircncia (νὐρ ἱθαλῶο Fed 85e2) do discurso
filosoacutefico tal como entendem os interlocutores o diaacutelogo retoma o exemplo da lira
(Fed 73d seg) dando a ele um tratamento diferente dada a nova dificuldade que se
coloca A explicaccedilatildeo de Siacutemias sobre a harmonia mostra a parcial concordacircncia acerca
das distinccedilotildees entre duas naturezas sensiacutevel e inteligiacutevel tal como o filoacutesofo propocircs
Para ele parece compreensiacutevel que a lira enquanto objeto fiacutesico composto de outros
artefatos como as cordas e a madeira seja identificado ao que eacute por natureza destrutiacutevel
terreno composto e mortal A harmonia144
por sua vez eacute incorpoacuterea invisiacutevel e
portanto imortal O interlocutor supotildee diante disso que se o instrumento for destruiacutedo
tiver as cordas dilaceradas e a madeira quebrada de modo algum a lira existiria jaacute que
os elementos fiacutesicos que a compotildeem satildeo destruiacutedos Entretanto segundo o raciociacutenio
proposto pelo filoacutesofo a harmonia permanece dada a natureza atribuiacuteda a ela ou seja
existe ainda assim natildeo perecendo com o fim do instrumento (Fed 85e-86b4)
Surge no entanto o que parece uma dificuldade para o interlocutor O discurso
tradicional descreve a alma nos termos de uma composiccedilatildeo e de uma harmonia de
elementos do corpo misturados com proporccedilatildeo (Fed 86b9-c2) Sendo ela mesma um
tipo de harmonia a tensatildeo e coesatildeo dos elementos fiacutesicos como a temperatura tem
influecircncia havendo assim uma dependecircncia do corpo para se manter harmocircnica e satilde
A exemplo da lira a alma precisa do equiliacutebrio dos elementos do corpo para ser tal
como uma harmonia podendo ser corrompida pela doenccedila e outros males o que
demonstra segundo esse argumento sua possiacutevel destrutibilidade (Fed 86c2-7) A
morte seria portanto a decomposiccedilatildeo desta harmonia e o fim da alma (Fed 86d2)
Do mesmo modo Cebes parece incapaz de conceber algo que natildeo seja ao
modelo do corpoacutereo demonstrando com isso suas dificuldades em seguir e reconstituir
uma argumentaccedilatildeo nos termos da filosofia Ele se diz satisfeito com o discurso do
filoacutesofo (πάλπ ἱθαλῶο ἀπνδεδεῖρζαη Fed 87a3) no que se refere agrave vida da alma antes de
estar na condiccedilatildeo de humanidade (Fed 87a1-4) Todavia considera insuficiente a
demonstraccedilatildeo no que toca a permanecircncia (ζώδσ) da alma apoacutes a morte do corpo Ao
comparar a durabilidade da alma do tecelatildeo ao manto que o veste Cebes demonstra o
da imortalidade representam o contraponto agrave concepccedilatildeo que Platatildeo tem sobre a alma a qual ele se esforccedila
mais uma vez em demonstrar que eacute distinta do corpo
144 A harmonia aqui deve ser pensada como o que hoje chamamos de afinaccedilatildeo conf nota 51 de M T
Schiappa de Azevedo
197
equiacutevoco de um raciociacutenio que busca ter provas da imortalidade a partir da parte mais
fraacutegil o corpo e os objetos corpoacutereos Uma afirmaccedilatildeo baseada no argumento do filoacutesofo
natildeo hesitaria em dizer a sobrevivecircncia da alma que resiste ao perecimento do corpo e do
manto que o cobria No entanto Cebes tem a intenccedilatildeo de demonstrar a durabilidade do
homem tendo como prova o manto que o vestia (Fed 87b4-c6) e a durabilidade da alma
tendo como prova a durabilidade do corpo Se a parte mais vulneraacutevel se encontra
preservada o homem e entatildeo a alma de gecircnero supostamente mais resistente
sobreviveu (Fed 87c6-d3)
O que se demonstra na verdade com esta uacuteltima argumentaccedilatildeo eacute a
incompreensatildeo dos interlocutores natildeo somente sobre o discurso filosoacutefico mas sobre a
tese que se propotildee Parece evidente ao mesmo tempo que Siacutemias natildeo distingue entre a
harmonia nos termos de uma noccedilatildeo apreensiacutevel pelo intelecto e uma relaccedilatildeo bem
equacionada entre elementos como ocorre na muacutesica natildeo conseguindo acompanhar o
exerciacutecio de intelecccedilatildeo que a investigaccedilatildeo exige Do mesmo modo o raciociacutenio
equivocado de Cebes em pretender demonstrar o perecimento da alma demonstra a sua
incompreensatildeo no que se refere agrave distinccedilatildeo de gecircneros A falta de entendimento acerca
da natureza inteligiacutevel da alma conforme as duas objeccedilotildees resultou na descrenccedila sobre
a imortalidade e sobre o alcance do exerciacutecio filosoacutefico Ao tomar a alma como o
resultado da composiccedilatildeo de elementos fiacutesicos que se relacionam entre si Siacutemias
transfere para o corpo a funccedilatildeo de oferecer indiacutecios da natureza e da sobrevivecircncia dela
A consequecircncia deste argumento despoja o pensamento de seu papel de testemunhar a
suposta permanecircncia da alma ficando o trabalho do ιόγνο nesse contexto sem qualquer
fundamento De modo semelhante a visatildeo da alma tal como descreveu Cebes
vulneraacutevel em relaccedilatildeo aos corpos a destitui de toda potecircncia inteligente e portanto da
capacidade de oferecer um discurso apoiado em uma natureza incorpoacuterea para supor o
poacutes-morte
ldquoE o momento exato em que essa morte essa separaccedilatildeo do
corpo acarreta consigo o aniquilamento da alma (argumentaria) eacute o
que ningueacutem sabe ao certo pois natildeo estaacute ao alcance de nenhum de
noacutes pressenti-lo (ἀδύλαηνλ γὰξ εἶλαη ὁηῳνῦλ αἰζζέζζαη ἡκῶλ) Por
isso mesmo quando um homem encara confiadamente a morte essa
confianccedila natildeo tem em princiacutepio razatildeo de ser (ἀλνήησο ζαξξεῖλ) a
menos que consiga demonstrar que a alma eacute de todos os modos
imortal e impereciacutevel (ὃο ἂλ κὴ ἔρῃ ἀπνδεῖμαη ὅηη ἔζηη ςπρὴ
παληάπαζηλ ἀζάλαηόλ ηε θαὶ ἀλώιεζξνλ)rdquo (Fed 88b2-6)
198
As dificuldades de compreensatildeo acerca do discurso do filoacutesofo que mostraram
as questotildees dos ouvintes satildeo uacuteteis porque expotildee o que eacute preciso para melhor
compreender os fundamentos e a construccedilatildeo do logos filosoacutefico Para isso conveacutem
questionar acerca dos motivos de Platatildeo para retomar esses exemplos dessa maneira
sendo a primeira sugestatildeo sua intenccedilatildeo de pocircr em evidecircncia os problemas acerca da
natureza da alma para em seguida reformulaacute-la segundo o meacutetodo que pretende
desenvolver Assim exibe duas argumentaccedilotildees que expotildeem a perspectiva de uma
concepccedilatildeo fisicalista de modo a deixarem evidentes as fragilidades desta concepccedilatildeo
para depois objetaacute-la Com isso ressalta a principal distinccedilatildeo entre esta teoria e a que
pretende propor tanto em termos conceituais quanto metodoloacutegicos Ao que parece tatildeo
importante quanto demonstrar a natureza incorpoacuterea da alma eacute conseguir demonstrar e
testar um discurso com bases seguras capaz de investigar e fazer suposiccedilotildees razoaacuteveis a
respeito de sua imortalidade
32 Sobre o uso e a validade do ιόγνο
Cabe analisar a defesa do ιόγνο filosoacutefico que o diaacutelogo apresenta antes de dar o
discurso que demonstra a natureza incorpoacuterea da alma e a partir disso a capacidade do
intelecto segundo o meacutetodo e preceitos estritamente filosoacuteficos Diante da descrenccedila que
se instalou apoacutes as duas objeccedilotildees (ἀπηζηία Fed 84d2) as quais desacreditavam na
capacidade do discurso (Fed 88c) pareceu necessaacuterio ao filoacutesofo definir o lugar do
ιόγνο na investigaccedilatildeo de modo a distingui-lo como recurso da inteligecircncia A primeira
caracteriacutestica conferida a ele cabe notar diz respeito agrave identificaccedilatildeo com a humanidade
Recusar o discurso mais precisamente a sua praacutetica seria o mesmo que recusar e nutrir
aversatildeo ao homem Ao equivaler a misantropia agrave misologia o texto sugere ser o ιόγνο o
trabalho caracteriacutestico e portanto possiacutevel da alma no estado de humanidade ndash ldquo()
De fato natildeo haacute coisa pior para um homem do que ganhar aversatildeo pelos argumentos
ora pelo que toca agrave sua origem a misologia natildeo difere da misantropia ()rdquo (Fed
89d2) Tal afirmaccedilatildeo cabe observar resume o que se propocircs acerca da atividade
racional durante o diaacutelogo e de modo mais contundente o que se tinha em questatildeo nas
duas uacuteltimas objeccedilotildees a humanidade estaacute identificada agrave capacidade racional da qual o
199
ιόγνο constitui um recurso formal As questotildees acerca da imortalidade tem no fundo
esta identificaccedilatildeo posta agora em relevo problematizando nesse instante o uso das
capacidades intelectuais individualmente ou seja lanccedilando luz agrave inteligecircncia natildeo
somente em termos de gecircnero mas tambeacutem como instrumento atraveacutes do qual se
demonstra um grau da experiecircncia inteligente
Tal abordagem da inteligecircncia eacute corroborada pela explicaccedilatildeo que se segue sobre
a origem da aversatildeo aos argumentos e ao homem O oacutedio aos homens segundo o texto
surge do desapontamento da confianccedila excessiva depositada em algueacutem A decepccedilatildeo
causa a desconfianccedila que se estende a todos e o julgamento precipitado de que todos
satildeo peacuterfidos (Fed 89d3-e3) Este caso constitui um exemplo de inabilidade nas relaccedilotildees
humanas que serve para ilustrar a diferenciaccedilatildeo moral e em uacuteltima instacircncia de alcance
intelectual entre os homens A inabilidade estaacute em natildeo considerar que a maioria dos
homens esteja em um grau intermediaacuterio entre o completamente bom e o
completamente ruim os quais satildeo casos raros natildeo sendo difiacutecil tal situaccedilatildeo de
desapontamento acontecer A maioria ou seja a situaccedilatildeo mais comum entre os
indiviacuteduos e tambeacutem entre as qualidades eacute a mediana (Fed 90a8-11) O niacutevel mais
alto o qual sugestivamente o filoacutesofo ocupa eacute acessiacutevel apenas para poucos (Fed
90b1)
ldquo() Pois se soubesse lidar com eles suponho consideraria por
certo como eacute o caso que os homens radicalmente bons ou maus satildeo
em nuacutemero reduzidiacutessimo e que a grande maioria estaacute num grau
intermediaacuterio (ὥζπεξ ἔρεη νὕησο ἂλ ἡγήζαην ηνὺο κὲλ ρξεζηνὺο θαὶ
πνλεξνὺο ζθόδξα ὀιίγνπο εἶλαη ἑθαηέξνπο ηνὺο δὲ κεηαμὺ
πιείζηνπο)rdquo (Fed 90a1-3)
A criacutetica se dirige vale notar a quem profere um julgamento A semelhanccedila
entre os homens e os discursos estaacute em poder ser arbitraacuterio ou seja tanto o homem
quanto os argumentos podem estar baseado ou natildeo na razatildeo No que se refere ao
discurso esse eacute tratado nesse caso como mera produccedilatildeo em um jogo de proacute e contra no
qual se atribui valor de verdade ou de falsidade tal como parece acontecer na eriacutestica e
retoacuterica Tal postura diante da razatildeo descreve o alcance cognitivo mediano da maioria e
representa por que natildeo dizer o trabalho racional em um niacutevel mediacuteocre A descrenccedila
no ιόγνο surge desse uso inaacutebil que o coloca como uma forma de convencimento e uma
200
disputa de teses (Fed 91a3) desprovida de um fundamento que o valide e que ofereccedila
seus resultados como algo confiaacutevel145
Com um discurso ora confiaacutevel ora natildeo o natildeo
filoacutesofo demonstra desconhecer a natureza e o uso adequado do ιόγνο natildeo sendo capaz
de identificar no que de fato o discurso deve estar baseado e como proceder
corretamente em relaccedilatildeo a ele
Nesse sentido seria um equiacutevoco atribuir o desconhecimento acerca da
imortalidade da alma agrave forma discursiva da razatildeo que como tal oferece a possibilidade
de conhecer a verdade dos seres da qual o retor permanece privado146
A maneira
sofiacutestica de uso do ιόγνο eacute incapaz de apreender o que pode haver de firme e verdadeiro
em um discurso sendo os homens que o utilizam equivocadamente responsaacuteveis pelo
insucesso em uma argumentaccedilatildeo (Fed 90c8-d7) Dito de outro modo o problema natildeo
satildeo os argumentos mas o uso inadequado e a capacidade discursiva dos homens que
em sua maioria eacute mediana (Fed 90d9-e3)
O uso do discurso pelo filoacutesofo na iminecircncia da morte estaacute norteado pela
verdade e amparado na convicccedilatildeo (Fed 91a9) Esta pode parecer uma afirmaccedilatildeo
destoante da criacutetica feita haacute pouco ao uso sofiacutestico do discurso jaacute que nesse caso natildeo
havia para eles uma base soacutelida e segura Todavia conveacutem observar que tal convicccedilatildeo
se fia na confianccedila que ele atribui ao correto uso do ιόγνο Trata-se ao que parece de
uma crenccedila oriunda da persuasatildeo do proacuteprio ιόγνο filosoacutefico a qual tem a ἀιεζήο como
fator de convencimento (Fed 91b8-c3) O teor de incerteza quanto aos resultados do
ιόγνο tanto no discurso retoacuterico quanto no filosoacutefico deve-se notar natildeo confere ao
discurso como pretende a filosofia um caraacuteter de doutrina ou revelaccedilatildeo de um misteacuterio
como se tem na tradiccedilatildeo O filoacutesofo estaacute descomprometido em anunciar uma verdade de
modo categoacuterico pois sua aspiraccedilatildeo deve se voltar para o plano especulativo no qual se
verifica as possibilidades de dizer sobre a morte por meio de certo tipo de anaacutelise em
torno da natureza da alma Nesse sentido a pesquisa filosoacutefica se mostra muito mais
145 Fed 90b6-c3 ldquoNa verdade eacute noutro aspecto que falo de semelhanccedila quando por exemplo uma
pessoa sem qualquer experiecircncia de argumentos toma por verdadeiro o primeiro que lhe aparece para
pouco depois o reputar de falso (quantas vezes com razatildeo mas quantas vezes sem ela) e assim
sucessivamente com outro e com outro (ᾗ ἐπεηδάλ ηηο πηζηεύζῃ ιόγῳ ηηλὶ ἀιεζεῖ εἶλαη ἄλεπ ηο πεξὶ ηνὺο
ιόγνπο ηέρλεο θἄπεηηα ὀιίγνλ ὕζηεξνλ αὐηῷ δόμῃ ςεπδὴο εἶλαη ἐλίνηε κὲλ ὤλ ἐλίνηε δ νὐθ ὤλ θαὶ
αὖζηο ἕηεξνο θαὶ ἕηεξνο) E tal eacute em especial o caso dos que passam a vida a argumentar proacute e contra
bem sabes como por fim se convencem de terem atingido o cume da sabedoria de serem os uacutenicos a
concluir que nada de satildeo e de seguro haacute nas coisas como nos argumentosrdquo
146 Fed 90d ldquo() seria caso para lamentar que havendo um argumento verdadeiro soacutelido e acessiacutevel
ao entendimento o simples fato de parecer associado a tais que embora permaneccedilam os mesmos tanto
passam por verdadeiros como natildeo servisse de pretexto a qualquer um para natildeo ter de acusar a si e agrave sua
ignoracircncia () privando-se assim de conhecer a verdade dos seres (ηῶλ δὲ ὄλησλ ηο ἀιεζείαο ηε θαὶ
ἐπηζηήκεο ζηεξεζείε)rdquo
201
valiosa ao colocar como se daacute a partir de agora as regras para o uso do ιόγνο e apontar
os caminhos mais seguros para uma investigaccedilatildeo
As recomendaccedilotildees acerca do uso filosoacutefico da razatildeo natildeo tardam A resposta agraves
objeccedilotildees lanccediladas agrave argumentaccedilatildeo filosoacutefica mostra as diferenccedilas entre os discursos e o
erro da tese que concebe a alma como harmonia Uma vez aceita a Teoria da
Reminiscecircncia pelos interlocutores (Fed 91e) deve-se avaliar as teses que apostam na
destruiccedilatildeo da alma por concebecirc-la de alguma maneira como algo corpoacutereo Ao iniciar
a refutaccedilatildeo o filoacutesofo potildee em questatildeo a compatibilidade entre as duas teses Parece
haver um conflito em admitir uma existecircncia anterior agrave vivecircncia em um corpo e supor
uma alma ao modo corpoacutereo que necessita dele para ser como tal harmocircnica ou tem
um fim por ser ela mesma desgastada
ldquo() se persistires nessa convicccedilatildeo (δόμαη) de que a harmonia eacute
algo de compoacutesito (ζπγθεηκέλε) e a nossa alma uma harmonia
resultante de elementos do corpo em tensatildeo de certo natildeo aceitaraacutes
nem dito por ti mesmo (νὐ γάξ πνπ ἀπνδέμῃ γε ζαπηνῦ ιέγνληνο) que
sendo a harmonia algo de compoacutesito possa algum dia ter existido
antes desses mesmos elementos que a deveratildeo constituir ou seraacute que
aceitasrdquo (Fed 92a6-b2)
Dado que a harmonia depende da lira e da tensatildeo das cordas para ser enquanto
tal ela natildeo poderia existir antes do instrumento que a produz mostrando ser a
concepccedilatildeo da alma como uma composiccedilatildeo harmocircnica desse modo insustentaacutevel (Fed
92b4-c3) O filoacutesofo conduz a objeccedilatildeo de modo a equiparar cabe notar uma capacidade
inteligente da alma agrave noccedilatildeo de harmonia ldquo() por qual das ideias te decides (αἱξῆ ηῶλ
ιόγσλ) a de que a aprendizagem (ηὴλ κάζεζηλ) eacute uma reminiscecircncia ou a de que eacute
uma harmoniardquo (Fed 92c8-10) Essa comparaccedilatildeo ajusta o raciociacutenio da refutaccedilatildeo em
andamento agrave concepccedilatildeo de alma que o filoacutesofo defende e mostra o aspecto em relevo
para as assertivas acerca do trabalho argumentativo Parece ser mais uacutetil ao argumento
abordar a alma por meio de seu caraacuteter inteligente para contrapor a uma noccedilatildeo que
deve-se observar varia ao apresentar um aspecto formal e um aspecto conceitual Eacute
possiacutevel compreender a harmonia como fez Siacutemias nos termos de uma composiccedilatildeo
oriunda do instrumento musical ao mesmo tempo em que se pode abordaacute-la nos termos
de uma concepccedilatildeo de harmonizaccedilatildeo como quer o filoacutesofo Importa opor algo uno e
imutaacutevel a algo que aceita ser tomado com a ambiguidade para mostrar que a alma eacute
concebida erroneamente quando vista com ambiguidade ora composta e sensiacutevel ora
202
preacute-existente e inteligiacutevel e que um discurso deste tipo eacute invaacutelido Ao propor essa
dicotomia com a sugestatildeo da alma harmonia o diaacutelogo tem em mira expor a inabilidade
de estabelecer relaccedilotildees entre elementos do mesmo gecircnero tal como se deu nos outros
tipos de argumentaccedilatildeo Em outras palavras falta aos demais discursos compreenderem
a diferenccedila entre os domiacutenios e aceitar como procedimento estabelecer relaccedilatildeo entre
elementos inteligiacuteveis
Tal deficiecircncia eacute logo compreendida por Siacutemias que admite no que se baseiam
os argumentos natildeo-filosoacuteficos na verossimilhanccedila (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ εὐπξεπείαο)
A origem do engano do discurso sofiacutestico satildeo as aparecircncias que constituem de fato um
fundamento incerto por permitirem apenas uma argumentaccedilatildeo plausiacutevel A partir de
uma base desta natureza tem-se uma opiniatildeo que natildeo enuncia algum conhecimento
sobre a alma e sobre a morte
ldquo- De longe pela primeira Soacutecrates Quanto agrave uacuteltima nada
tenho na realidade a abonaacute-la baseei-me tatildeo soacute numa
verossimilhanccedila numa plausibilidade formal (κεηὰ εἰθόηνο ηηλὸο θαὶ
εὐπξεπείαο) que eacute com certeza a origem dessa convicccedilatildeo na maior
parte dos homens Mas eu proacuteprio sei por experiecircncia quatildeo falazes
satildeo essas demonstraccedilotildees fabricadas a partir de meras
verossimilhanccedilas (ἐγὼ δὲ ηνῖο δηὰ ηῶλ εἰθόησλ ηὰο ἀπνδείμεηο
πνηνπκέλνηο ιόγνηο ζύλνηδα νὖζηλ ἀιαδόζηλ) e a que erros
(ἐμαπαηῶζη) nos induzem seja na geometria seja em qualquer outro
domiacutenio quando mal nos precatamos contra elas ()rdquo (Fed 92c11-
d5)
Por outro lado o ιόγνο filosoacutefico tem na relaccedilatildeo inteligiacutevel entre alma e a
essecircncia a base para as especulaccedilotildees147
Apoacutes a reacuteplica do filoacutesofo Siacutemias estaacute
persuadido (ὡο ἐκαπηὸλ πείζσ 92e1) desta relaccedilatildeo testemunhada pelas operaccedilotildees
inteligentes descritas ateacute agora a reminiscecircncia e a aprendizagem (ὁ δὲ πεξὶ ηο
ἀλακλήζεσο θαὶ καζήζεσο ιόγνο δη ὑπνζέζεσο ἀμίαο ἀπνδέμαζζαη εἴξεηαη Fed 92d6-
7) O discurso filosoacutefico construiacutedo desde o iniacutecio da investigaccedilatildeo apresenta nesse
instante uma demonstraccedilatildeo de seus procedimentos e de seu efeito ao levar o
interlocutor ao reconhecimento das falhas de sua proacutepria tese e a aceitaccedilatildeo da tese
adversaacuteria ndash ldquoOra esse pressuposto tenho para mim que eacute natildeo apenas suficiente como
correto aceitaacute-lo (ἀμηνῖο ἐπηδεηρζλαη ἡκῶλ ηὴλ ςπρὴλ ἱθαλῶο ηε θαὶ ὀξζῶο
ἀπνδέδεγκαη)rdquo (Fed 92e1) Ao ser posto agrave prova um criteacuterio para a validade do 147 Fed 92d8-9 ldquouma vez que equaciona a existecircncia da alma anteriormente ao nosso nascimento com
a desse tipo de realidade em sirdquo (ὥζπεξ αὐηο ἐζηηλ ἡ νὐζία ἔρνπζα ηὴλ ἐπσλπκίαλ ηὴλ ηνῦ ldquoὃ ἔζηηλrdquo)
203
discurso (ἀλώιεζξόλ ηε θαὶ ἀζάλαηνλ νὖζαλ 95b9-c1) a argumentaccedilatildeo deve resistir ao
exame e ter assim a clareza e a suficiecircncia da tese que defende comprovadas o que
natildeo se verificou com a refutaccedilatildeo das duas objeccedilotildees Resta ao interlocutor prosseguir se
submetendo ao meacutetodo e aos princiacutepios desta forma do uso da razatildeo e ouvir a
desconstruccedilatildeo de sua tese anteriormente defendida148
Natildeo conveacutem analisar em minuacutecias a desconstruccedilatildeo da tese da alma harmonia
todavia devem-se levantar alguns raciociacutenios que oferecem informaccedilotildees sobre a funccedilatildeo
conferida ao intelecto Algumas caracteriacutesticas da alma se chocam com a noccedilatildeo de
harmonia presentes no discurso de Siacutemias 1ordm) sendo a harmonia uma composiccedilatildeo duas
caracteriacutesticas caras a alma por compartilhaacute-las com os seres inteligiacuteveis satildeo postas em
risco a unidade e a imutabilidade Como tal a harmonia pode ser quantificada em
proporccedilatildeo sendo correto dizer ldquomais ou menos harmocircnicardquo entretanto o mesmo natildeo se
pode dizer em relaccedilatildeo a alma a qual natildeo se pode considerar ldquomais plena e
completamente bdquoalma‟ ou menos plena e completamente bdquoalma do que outrardquo (Fed
93a1-b1-6)
Natildeo eacute correto concebecirc-la nos termos de possuir um atributo em maior ou menor
grau de harmonia do mesmo modo natildeo se pode ser e natildeo ser harmocircnica ou
textualmente natildeo pode participar da harmonia nem da desarmonia ter uma identidade
X e participar do seu oposto (Fed 93e) Diante da uacuteltima anaacutelise deve-se admitir 2ordm) a
primazia da inteligecircncia a qual por natureza comanda as accedilotildees do homem (Fed 94b4-
5) Supor a dependecircncia da harmonia em relaccedilatildeo agrave lira eacute o mesmo que considerar a alma
dependente do corpo para ser enquanto tal o que entraria em conflito com a tese
anteriormente aceita de que ela se opotildee aos desejos e apetites do corpo (Fed 94b6-c) A
importacircncia de afirmar tal primazia estaacute justamente em atribuir validade e confianccedila ao
discurso produto da inteligecircncia e preservar a funccedilatildeo de governo (ἄξρσ) do
pensamento em um alto niacutevel θξόληκνλ (Fed 94b5)
Interessa agrave investigaccedilatildeo a partir de agora abordar a alma nos termos de uma
noccedilatildeo com a qual se possa levar adiante a investigaccedilatildeo utilizando para isso elementos
148 Cabe aqui trazer o cometaacuterio de Ferejohn para ressaltar o que se pretende com a refutaccedilatildeo das teses
dos interlocutores ldquoO objetivo central de Soacutecrates nessa obra consiste em estabelecer a imortalidade da
alma Para fazer isso contudo natildeo seria suficiente para ele determinar (ao modo da Repuacuteblica) que as
almas vatildeo se mostrar imortais em sua teoria proposta Antes ele quer mostrar que elas realmente satildeo
imortais Consequentemente ele deve argumentar com base em premissas verdadeiras que estatildeo ao seu
alcance e ao de seus interlocutores em sua condiccedilatildeo de insciecircncia ou do que chamei perspectiva
socraacutetica (perspectiva criacutetica do inquiridor que reconhece sua ignoracircncia e por isso cobra explicaccedilatildeo de
seu intelector supostamente conhecedor) () Soacutecrates no Feacutedon tenta dar razotildees filosoacuteficas para
pensar que a teoria eacute verdadeirardquo Ferejohn opcit p 152
204
inteligiacuteveis como manda a filosofia e deixando de lado uma visatildeo que a considere
individualmente abordagem que o dialogo tambeacutem apresentou Dito de outro modo a
argumentaccedilatildeo aponta a perspectiva a partir da qual conveacutem tratar a alma e o tema da
imortalidade da universalidade das ideias em oposiccedilatildeo ao particular da multiplicidade
das percepccedilotildees do sensiacutevel Dados os ditames para a pesquisa ao modo da filosofia
cabe analisar como se desenvolve tal uso e em que medida a argumentaccedilatildeo sobre a
imortalidade se torna uma demonstraccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia uma vez comprovada a
validade do discurso
33 αἰηία e λνῦο elementos do discurso filosoacutefico
Para contra-argumentar acerca da ideia de que a alma tem o iniacutecio da sua
destruiccedilatildeo ao entrar no corpo (Fed 95d1-4) encontrando seu fim apoacutes muitas
encarnaccedilotildees o diaacutelogo lanccedila luz para o tema que deve ganhar atenccedilatildeo a causa da
geraccedilatildeo e da corrupccedilatildeo (γελέζεσο θαὶ θζνξᾶο ηὴλ αἰηίαλ Fed 95e9) Duraccedilatildeo e
imortalidade no discurso de Cebes natildeo satildeo correspondentes Para ele ainda natildeo
convencido pelo filoacutesofo o que se tem com a reminiscecircncia e com a morte do corpo eacute a
demonstraccedilatildeo de um tempo de duraccedilatildeo da alma Ao mesmo tempo em que considera a
existecircncia da alma anterior ao nascimento uma prova de sua duraccedilatildeo entende que ela
sofre com os nascimentos ateacute perecer completamente com a morte (Fed 95c4-e1) natildeo
havendo assim prova de sua imortalidade mas de um periacuteodo limitado de
permanecircncia Cebes que pedia a demonstraccedilatildeo da imortalidade e da conservaccedilatildeo da
alma para que pudesse ter confianccedila no discurso filosoacutefico e aceitar que este natildeo seria
vatildeo e sem sentido (ἀλόεηόλ ηε θαὶ ἠιίζηνλ) (Fed 95b8-c4) tem questionado agora o que
estaacute na base deste tempo de duraccedilatildeo ou seja o que pode de fato revelar o suposto iniacutecio
e fim da existecircncia de modo a tornar evidente a imortalidade
A αἰηία tema herdado dos tempos em que o jovem Soacutecrates frequentava os
estudos da ciecircncia da natureza (θύζεσο ἱζηνξίαλ Fed 96a8) ganha definiccedilatildeo filosoacutefica
junto com a evoluccedilatildeo dos questionamentos sobre a inteligecircncia (λνῦο) Antes examinada
a partir do que se podia observar nos seres vivos e dos fenocircmenos naturais a causa que
205
em um primeiro momento tentava responder o porquecirc da geraccedilatildeo e da destruiccedilatildeo o
porquecirc de existirem 149
era associada agraves percepccedilotildees desses eventos Era pertinente desse
modo levantar uma questatildeo qual a causa do pensamento das percepccedilotildees do sensiacutevel e
dos conhecimentos
ldquoE eacute graccedilas ao sangue que pensamos (θξνλνῦκελ) ou ao ar ou
ao fogo Ou nada disso conta e eacute sim o ceacuterebro que nos permite as
sensaccedilotildees (ὁ δ ἐγθέθαιόο ἐζηηλ ὁ ηὰο αἰζζήζεηο παξέρσλ) do ouvido
da vista e do olfato sensaccedilotildees estas que estaratildeo na base da memoacuteria
e da opiniatildeo (ἐθ ηνύησλ δὲ γίγλνηην κλήκε θαὶ δόμα) dando origem
uma vez consolidadas a conhecimentos correspondentes (θαηὰ ηαῦηα
γίγλεζζαη ἐπηζηήκελ)rdquo (Fed 96b2-8)
Vale notar que a pergunta tema desse estudo esteve presente desde o iniacutecio como
tema de fundo e sintetiza as indagaccedilotildees do diaacutelogo ao ligar as trecircs perspectivas que se
referem agrave questatildeo do pensamento seu objeto seu fundamento e seu modo de operar A
conveniecircncia da anaacutelise da causa estaacute desse modo em reunir tais abordagens e indicar o
que subjaz ao pensar Ao se perguntar pela causa questiona-se acerca deste fundamento
que permite a atividade do pensamento ser enquanto tal A explanaccedilatildeo sobre a causa
pretende especificar o foco e o domiacutenio de um discurso delimitando assim o seu
objeto e os meios pelos quais se deve abordar os temas propostos em uma investigaccedilatildeo
filosoacutefica
O tipo de investigaccedilatildeo (ηαύηελ ηὴλ ζθέςηλ Fed 96c2) que desapontou o jovem
Soacutecrates as ciecircncias naturais levava em consideraccedilatildeo as causas corpoacutereas a carne o
sangue os ossos a comida a bebida (Fed 96c7-9) sendo a explicaccedilatildeo portanto um
montante destes elementos Entretanto tal como buscava o filoacutesofo a investigaccedilatildeo
nestes termos natildeo dava conta de explicar as causas nas relaccedilotildees como nas relaccedilotildees
matemaacuteticas cujos elementos satildeo inteligiacuteveis A razatildeo que levava a unidade a constituir
o dois seja por fraccedilatildeo ou por adiccedilatildeo ou que a faz existir natildeo era do domiacutenio deste tipo
de investigaccedilatildeo (Fed 97a-b) Soacutecrates desejava um tipo de causa como escopo de todas
as coisas existentes obedecendo assim ao criteacuterio de universalidade que o discurso
filosoacutefico exige
149 Fed 96a8-10 ldquoQue interessante natildeo seraacute (pensava eu) conhecer as causas de cada coisa a razatildeo
por que cada uma surge por que cada uma desaparece ou existe (ὑπεξήθαλνο γάξ κνη ἐδόθεη εἶλαη
εἰδέλαη ηὰο αἰηίαο ἑθάζηνπ δηὰ ηί γίγλεηαη ἕθαζηνλ θαὶ δηὰ ηί ἀπόιιπηαηθαὶ δηὰ ηί ἔζηη)rdquo
206
De todo modo as leituras de Anaxaacutegoras mostraram a direccedilatildeo para a causa tal
como queria o filoacutesofo A partir da narrativa do encontro com a tese acerca da
inteligecircncia ordenadora ndash ldquoAiacute se afirmava que era o Espiacuterito o ordenador e causa de
todas as coisasrdquo (ἄξα λνῦο ἐζηηλ ὁ δηαθνζκῶλ ηε θαὶ πάλησλ αἴηηνο) (Fed 97c1-2)
tem-se indicada de maneira objetiva a construccedilatildeo das bases do discurso filosoacutefico as
quais apresentam o trabalho do pensamento em seu niacutevel mais alto e reorganizam nos
termos do discurso filosoacutefico todos os elementos anteriormente dados como
pertencentes ao domiacutenio inteligiacutevel A descriccedilatildeo da comparaccedilatildeo entre os dois meacutetodos
mostra a intenccedilatildeo de delimitar a forma e o meacutetodo investigativo ao modo da filosofia
Narrado segundo discernimento de Soacutecrates (θαηὰ λνῦλ ἐκαπηῷ Fed 97d7) o λνῦο
ordenador de todas as coisas de Anaxaacutegoras constituiacutea uma causa eficiente na qual
todos os elementos estavam ordenados da melhor maneira O melhor e o mais excelente
(ηὸ ἄξηζηνλ θαὶ ηὸ βέιηηζηνλ Fed 97d3) deveriam ser portanto os objetos de anaacutelise
de modo a se investigar a causa e a necessidade de serem enquanto tais e porque razatildeo
tal natureza eacute a melhor150
Estes dois pontos a serem investigados constituem a maneira da investigaccedilatildeo
filosoacutefica inquirir acerca da causa Causa necessidade e no que consiste a melhor
ordenaccedilatildeo satildeo os pontos que devem indicar uma tipo de causa (αἰηίαο εἶδνο Fed 98a2)
que conduziraacute a investigaccedilatildeo para o verdadeiro fundamento de todas as coisas Esse tipo
de causa descreve as causas particulares e a causa comum a tudo por meio da qual eacute
possiacutevel explanar acerca do melhor para cada uma e acerca do bem que as
fundamenta151
A ordenaccedilatildeo segundo a inteligecircncia (ὑπὸ λνῦ αὐηὰ θεθνζκζζαη Fed
98a7) eacute orientada em uacuteltima instacircncia vale adiantar pelo bem (ηὸ ἀγαζὸλ Fed 99c5)
que teraacute nas proacuteximas passagens sua posiccedilatildeo e funccedilatildeo elucidadas
O texto trabalha para oferecer uma relaccedilatildeo causal que tem em vista o seu
fundamento Essa distinccedilatildeo deve ser bem compreendida haacute a causa dos particulares
serem enquanto tais e um fundamento comum a todas elas o qual torna possiacutevel todas
150 Fed 97c4-6 97e3 ldquo() Porque se assim eacute (pensei) se eacute o Espiacuterito que ordena todas as coisas entotilde
por certo que as ordena e dispotildee da forma que for mais conveniente para cada uma delas () Assim
julgava eu por exemplo que me diria primeiramente se a Terra era redonda ou plana em seguida expor-
me-ia a causa e a necessidade de ela assim ser invocando razotildees de conveniecircncia e demonstrando que tal
ou tal natureza lhe era de fato a mais ajustada (εἰ ηνῦζ νὕησο ἔρεη ηόλ γε λνῦλ θνζκνῦληα πάληα
θνζκεῖλ θαὶ ἕθαζηνλ ηηζέλαη ηαύηῃ ὅπῃ ἂλ βέιηηζηα ἔρῃ () ἐπεθδηεγήζεζζαη ηὴλ αἰηίαλ θαὶ ηὴλ
ἀλάγθελ ιέγνληα ηὸ ἄκεηλνλ θαὶ ὅηη αὐηὴλ ἄκεηλνλ ἦλ ηνηαύηελ εἶλαη)rdquo
151 Fed 98b1-3 ldquoE pois uma vez que atribuiacutea tal causa a cada um dos seres e a todos em geral supus
que iria explicar-me onde reside o melhor para cada um deles e aquilo que eacute comumente bom para todos
- (ἑθάζηῳ νὖλ αὐηῶλ ἀπνδηδόληα ηὴλ αἰηίαλ θαὶ θνηλῆ πᾶζη ηὸ ἑθάζηῳ βέιηηζηνλ ᾤκελ θαὶ ηὸ θνηλὸλ
πᾶζηλ ἐπεθδηεγήζεζζαη ἀγαζόλ)rdquo
207
as relaccedilotildees causais a causa de todas as causas Importa realizar tal diferenciaccedilatildeo para
indicar o plano em que se deve pensar esta causa primordial e o tipo de relaccedilatildeo causal
da qual se pretende tratar A escolha de Soacutecrates estaacute fundamentada na escolha do
melhor ordenado pelo λνῦο O fato de o filoacutesofo aceitar a sua condenaccedilatildeo e se manter
encarcerado tem como causa portanto o melhor estabelecido segundo a inteligecircncia e
natildeo o aprisionamento do seu corpo (Fed 99a4-b6) A causa como quer o filoacutesofo diz
respeito em primeiro lugar a um tipo de relaccedilatildeo na qual se deve encontrar a razatildeo de
cada coisa ser tal como eacute a realidade da coisa em segundo lugar deve-se ter em vista o
que a relaccedilatildeo causal indica como fundamento A relaccedilatildeo e o reconhecimento do
fundamento vale notar tecircm a inteligecircncia como agente a qual como todas as outra
coisas tambeacutem tem como causa o bem ndash posiccedilatildeo em geral compreendida erroneamente
e para a qual o filoacutesofo atribuiraacute posiccedilatildeo loacutegica e sentido metafiacutesico (Fed 99b) 152
A narrativa do desapontamento de Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave tese de Anaxaacutegoras traz
as distinccedilotildees da noccedilatildeo de inteligecircncia (λνῦο) e do meacutetodo investigativo da filosofia
Como se viu a noccedilatildeo de αἰηία que pretende o meacutetodo de Soacutecrates tem em vista o
fundamento que orienta a inteligecircncia e pode assim remeter agrave verdade sobre a alma e
sobre a imortalidade Dada importacircncia da causa primordial as questotildees sobre a causa
dos conhecimentos das percepccedilotildees e do pensamento feitas anteriormente encontram
nessa base comum a sua resposta O bem como causa comum ganha atenccedilatildeo nos
proacuteximos passos da investigaccedilatildeo sendo exposto o teor de sua posiccedilatildeo e a sua
causalidade em relaccedilatildeo ao trabalho do intelecto Do mesmo modo a universalidade do
bem dada a sua condiccedilatildeo colabora para construir a noccedilatildeo de uma razatildeo ordenadora
proacutepria da natureza inteligiacutevel presente no bem nas realidades e em tudo o que eacute
derivado dele a qual a inteligecircncia humana deve perseguir atraveacutes da cadeia de relaccedilotildees
causais Eacute dado desse modo o caminho para o trabalho racional o qual deve ascender agrave
causa maior o bem e aos assuntos que compartilham da mesma realidade como a
imortalidade
152 Este parece ser o ponto em que Soacutecrates pretende diferenciar sua concepccedilatildeo de nous da de
Anaxaacutegoras Como explica Ferejohn o despontamento de Soacutecrates se deve agrave constataccedilatildeo de que ldquo()
havia apenas uma defesa vazia do nous (ao conter frequentes ocorrecircncias do termo) mas sem fazer uso
teoacuterico de fato deste conceito em nenhuma forma que Soacutecrates reconhecia a saber como repositoacuterio de
crenccedilas desejos etc () ao proceder assim negligenciasse as causas reais (tas hocircs alecircthos aitias 98e2-
5) de sua situaccedilatildeordquo Ferejohn opcit p 153
208
IV Atividade do puro pensamento
O texto oferece adiante mais detalhes da relaccedilatildeo que pretende estabelecer entre o
que filosoficamente pode ser dito ldquoo bemrdquo e ldquoo melhorrdquo Ao mesmo tempo em que natildeo
se perdeu de vista a necessidade de manter o ιόγνο filosoacutefico sob inspeccedilatildeo o diaacutelogo
expotildee de maneira franca os elementos com o quais o filoacutesofo deve trabalhar Nesse
sentido o bem e a capacidade da inteligecircncia recebem consideraccedilotildees acerca de sua
natureza inteligiacutevel as quais revelam outros importantes elementos que se referem ao
trabalho do pensamento a saber o meacutetodo dialeacutetico e a Teoria das Ideias Natildeo seria
exagero considerar serem os proacuteximos passos da investigaccedilatildeo uma mostra do
pensamento puro no qual a alma do filoacutesofo descreve o que supotildee ser a livre atuaccedilatildeo do
pensamento e ao mesmo tempo considera ser o mais alto grau de intelecccedilatildeo possiacutevel
A segunda navegaccedilatildeo153
tal como descreve o texto propotildee a passagem para um
tipo de investigaccedilatildeo e de ιόγνο a partir do qual se pode fazer algumas assertivas sobre a
natureza da alma e do pensamento Nesse contexto satildeo dados os elementos e as
operaccedilotildees do intelecto que constituem o trabalho da inteligecircncia no seu niacutevel mais alto
ou seja agraves cercanias de apreender o quanto possiacutevel do bem do belo e por
consequecircncia da imortalidade A partir das explicaccedilotildees seguintes a θξόλεζηο tem a
origem e a constituiccedilatildeo de sua excelecircncia revelada em termos operacionais na relaccedilatildeo
entre pensamento e ideias que se realiza no meacutetodo dialeacutetico Se no iniacutecio da
investigaccedilatildeo seu valor foi estabelecido nos termos da pureza e da mais alta moeda (Fed
69a) acessiacuteveis por meio do modo de vida orientado pela filosofia a argumentaccedilatildeo que
confere meacutetodo agrave atividade filosoacutefica oferece a explicaccedilatildeo desta depuraccedilatildeo e origem da
atribuiccedilatildeo de valoraccedilatildeo ao apontar sua a verdadeira base Dito de outro modo o que
vem a seguir mostra de que maneira e por quais meios se datildeo o contato entre alma e a
realidade inteligiacutevel estado descrito anteriormente (Fed 79d) como fonte do proacuteprio
proacuteprio pensar em seu modo mais autecircntico
153 Fed 99d1 ldquotive de tentar uma segunda via para lanccedilar na sua busca( ηὸλ δεύηεξνλ πινῦλ ἐπὶ ηὴλ
ηο αἰηίαο δήηεζηλ)
209
41 O bem o melhor e a noccedilatildeo de causa
Conveacutem examinar o bem tal como apresenta o Feacutedon Em primeiro lugar deve-
se observar a sua posiccedilatildeo de verdadeira causa Tal como mostrou o argumento sobre a
αἰηία o bem na condiccedilatildeo de causa de tudo subjaz a todas accedilotildees do filoacutesofo e relaccedilotildees
que se pode estabelecer A noccedilatildeo de causa que estaacute em questatildeo em um primeiro
momento deve-se observar eacute a teleoloacutegica dado que oferece uma explicaccedilatildeo das accedilotildees
objetivos e intenccedilotildees do filoacutesofo No entanto ao propor uma explicaccedilatildeo sobre a
aquisiccedilatildeo destes objetivos e do modo de proceder por meio do meacutetodo o que
denominou de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo a noccedilatildeo de causa se refere agrave possibilidade de
acessar as causas reais154
Em outros termos a causa como entenderaacute o filoacutesofo
repousaraacute sobre aquilo que pode em certa medida oferecer a verdadeira causa sendo
dada assim a pertinecircncia de averiguar acerca da primazia da racionalidade que por
meio de suas operaccedilotildees realizadas de forma adequada e correta pode escolher aquilo
que em certa medida corresponde ao bem ou seja escolher o melhor (Fed 99a9b1)
Vale analisar esta correspondecircncia e verificar as incursotildees do pensamento em
torno desta causa primordial O melhor (βέιηηζηνο) eacute dado como o poder de dispor da
melhor maneira as coisas ou dito de outro modo a causa de estarem dispostas tais
como estatildeo ndash ldquoMas esse porder graccedilas ao qual tais coisas se encontram dispostas da
forma mais conveniente (νἷόλ ηε βέιηηζηα αὐηὰ ηεζλαη δύλακηλ νὕησ λῦλ θεῖζζαη)rdquo
(Fed 99c1) A relaccedilatildeo desta disposiccedilatildeo cabe compreender eacute a melhor porque constitui
a ligaccedilatildeo que o bem faz entre todas as coisas - ldquo() sem pensarem que eacute o bem o
verdadeiro elo que liga entre si todas as coisas e as suporta (θαὶ ὡο ἀιεζῶο ηὸ ἀγαζὸλ
θαὶ δένλ ζπλδεῖλ θαὶ ζπλέρεηλ νὐδὲλ νἴνληαη (Fed 99c5)rdquo155
Interessa ao filoacutesofo
154 Os dois sentidos em que Soacutecrates parece compreender a αἰηία para os quais se pretende chamar
atenccedilatildeo aqui satildeo os mesmos que Ferejohn apontam ldquoSoacutecrates estaacute exprimindo uma preferecircncia clara e
categoacuterica pelas explicaccedilotildees ldquoteleoloacutegicasrdquo (a ldquocausa finalrdquo aristoteacutelica) em termos objetivos intenccedilotildees
e similares contra as que fazem referecircncia somente agraves causas ldquoeficientesrdquo (a ldquocausa motorardquo de
Aristoacuteteles Neste ponto todavia o relato de Soacutecrates daacute uma guinada surpreendente Em 99c6-d1 ele
declara abruptamente que se deu conta em um certo momento que suas explicaccedilotildees teleoloacutegicas
preferidas estavem indisponiacuteveis e que portanto se tornou necessaacuterio para ele dar iniacutecio ao que chama
de ldquosegunda navegaccedilatildeordquo uma busca por um modo de explicaccedilatildeo ldquosucedacircneordquo que pelo menos esteja ao
seu alcancerdquo Ferejohn op cit p 153 Essa busca estaraacute baseada nas ideias e seraacute considerada por conta
disso uma causa segura a qual o filoacutesofo tanto no Feacutedon quanto no livro VI d‟A Repuacuteblica pretender
conhecer
155 Esta mesma caracteriacutestica do bem eacute dada n‟A Repuacuteblica nos termos da benignidade do bem traccedilo
presente nas coisas que derivam dele apreensiacutevel pelo intelecto Note-se que eacute fundamental para o
trabalho do intelecto essa presenccedila a qual serve de condutor causal que pode levar ao conhecimento
causa primordial
210
desse modo apreender (99c6) essa atuaccedilatildeo do bem como causa a partir desta ordenaccedilatildeo
que dispotildee os astros da melhor maneira o que natildeo se verificou no discurso que
pretendia uma ciecircncia da natureza O desapontamento de Soacutecrates se explica em parte
pela concepccedilatildeo equivocada aos olhos do filoacutesofo evidentemente por natildeo compreender
esta relaccedilatildeo entre o bem o melhor e a inteligecircncia Natildeo parece possiacutevel uma
compreensatildeo correta acerca do λνῦο sem considerar a correspondecircncia entre o melhor e
o bem Em outros termos natildeo haacute uma verdadeira compreensatildeo da natureza e da funccedilatildeo
da inteligecircncia sem ter tal compreensatildeo acerca desta concepccedilatildeo de melhor e do papel do
bem O λνῦο tal como quer Soacutecrates natildeo eacute a causa da ordenaccedilatildeo mas eacute o agente
cognitivo para apreender tal ordenaccedilatildeo e averiguar na medida do possiacutevel o bem como
a verdadeira causa
Vale verificar tal corespondecircncia entre βέιηηζηνο e ἀγαζόο
ldquo() Depois disso uma vez desiludido da observaccedilatildeo dos seres
achei por bem acautelar-me natildeo viesse a acontecer-me a mim o
mesmo que agravequeles que contemplam e observam o Sol em momentos
de eclipse eacute sabido que alguns chegam a perder de vista se natildeo for
atraveacutes da aacutegua ou de qualquer outro meio que mirem a sua imagem
(ζθνπῶληαη ηὴλ εἰθόλα αὐηνῦ) E com pensamentos mais ou menos
deste teor receei ficar irremediavelmente cego de espiacuterito caso
persistisse em fixar os olhos nas coisas em tentar tocar-lhes
diretamente com os meus cinco sentidos (ηῶλ αἰζζήζεσλ) Pensei
entatildeo que o melhor que tinha a fazer era refugiar-me do lado das
ideias e atraveacutes delas inquirir da verdade dos seres (ἔδνμε δή κνη
ρξλαη εἰο ηνὺο ιόγνπο θαηαθπγόληα ἐλ ἐθείλνηο ζθνπεῖλ ηῶλ ὄλησλ
ηὴλ ἀιήζεηαλ) Aliaacutes talvez num aspecto o paralelo natildeo seja exato
pois natildeo eacute quanto a mim ponto resolvido que o estudo dos seres por
meio das suas manifestaccedilotildees externas se revele menos do que as
ideias um estudo agrave base de imagens (ἴζσο κὲλ νὖλ ᾧ εἰθάδσ ηξόπνλ
ηηλὰ νὐθ ἔνηθελ νὐ γὰξ πάλπ ζπγρσξῶ ηὸλ ἐλ [ηνῖο] ιόγνηο
ζθνπνύκελνλ ηὰ ὄληα ἐλ εἰθόζη κᾶιινλ ζθνπεῖλ ἢ ηὸλ ἐλ [ηνῖο]
ἔξγνηο) Seja como for o certo eacute que me lancei por essa via E assim
partindo em cada caso do pressuposto que julgo ser mais seguro tudo
o que se me afigura em concordacircncia com ele tomo por verdadeiro
quer no tocante agraves causas que a qualquer outro aspecto e caso
contraacuterio natildeo o aceito como tal (ἃ κὲλ ἄλ κνη δνθῆ ηνύηῳ ζπκθσλεῖλ
ηίζεκη ὡο ἀιεζ ὄληα θαὶ πεξὶ αἰηίαο θαὶ πεξὶ ηῶλ ἄιισλ ἁπάλησλ
[ὄλησλ] ἃ δ ἂλ κή ὡο νὐθ ἀιεζ) Poreacutem quero explicar-me mais
claramente pois acho que agora natildeo estaacute entendendo- merdquo (Fed
99d4-100a8)
Esta passagem na qual se argumenta sobre a impossibilidade de contemplar
diretamente o bem revela-se de grande importacircncia por propor o alcance do
pensamento A comeccedilar pela metaacutefora da visatildeo em relaccedilatildeo agrave luminosidade do Sol vecirc-se
211
sugeridas as limitaccedilotildees de apreender o bem sendo necessaacuterio usar por conta disso um
recurso teoreacutetico para as tratativas acerca dele Dito de outro modo estatildeo em questatildeo os
instrumentos por meio dos quais o pensamento pode atingir a ideia do bem os quais se
mostram insuficientes para abarcaacute-lo Seja por via das imagens seja pelas ideias esse
uacuteltimo o meio escolhido pelo filoacutesofo a superioridade do bem exige o esforccedilo de
elaborar meios de acessaacute-lo em alguma medida o que demonstra ser a averiguaccedilatildeo
constante do discurso como se tem feito uma praacutetica concordante com a condiccedilatildeo do
pensar em relaccedilatildeo agrave maioridade de tal objeto Nesse sentido os ιόγνηο que se pode dar
consistem em verdade em dizer dos objetos o que realmente satildeo o que no que se refere
ao bem requer o uso da alta inteligecircncia do filoacutesofo Todavia natildeo se trata de definir no
que consiste o bem ou outros objetos mas antes fazer uma afirmaccedilatildeo acerca deles a
partir da qual se daacute iniacutecio o exerciacutecio dialeacutetico O ldquorefugiar-se no ιόγνοrdquo que o filoacutesofo
propotildee deve ser entendido muito mais como reservar-se ao exerciacutecio do meacutetodo
hipoteacutetico do que oferecer um discurso que apresente uma riacutegida definiccedilatildeo156
Os recursos mobilizados para prosseguir a investigaccedilatildeo constituem deve-se
notar a atividade intelectual no seu limite dentro do qual o filoacutesofo conscientemente se
exercita Natildeo se pretende alcanccedilar o bem em sua totalidade da mesma forma que natildeo eacute
possiacutevel como se sabe ter certeza acerca da imortalidade Entretanto este trabalho do
pensamento sabidamente limitado pretende argumentar a favor do que considera ser
razoaacutevel acreditar e carece para tanto de elaborar o meacutetodo correto e de discernir
acerca dos elementos que conduzem agraves noccedilotildees que daratildeo indicaccedilotildees mais confiaacuteveis
sobre a imortalidade
42 A verdadeira causa e o uso da hipoacutetese
O meacutetodo eacute enunciado sem rodeios Cotejar cada argumentaccedilatildeo (ἑθάζηνηε
ιόγνλ) com a hipoacutetese que parece ser a mais segura (ἐξξσκελέζηαηνλ) de modo a
156 Chen apresenta uma explicaccedilatildeo condizente com esta argumentaccedilatildeo ldquoιόγνηο usado aqui satildeo
afirmaccedilotildees ou proposiccedilotildees cujo objetivo visa nos informar sobre o que seus referentes realmente satildeo
Eles somente os refletem A este respeito eacute tambeacutem um estudo-imagem como vendo nos objetos
sensiacuteveis na busca pelo verdadeiro conhecimento do que eles realmente satildeo ()rdquo Mas em nota ele
termina por explica ldquoEstes ιόγνηο satildeo usados como premissas para dar uma soluccedilatildeo hipoteacutetica de algum
problemardquo Chen opcit p 30
212
verificar entre elas uma concordacircncia (ζπκθσλέσ) Caso haja a concordacircncia o ιόγνο
deve ser considerado verdadeiro se ao contraacuterio forem discordantes eacute falso Conveacutem
observar os elementos que estatildeo postos no meacutetodo 1ordm) a hipoacutetese como ponto de partida
para a verificaccedilatildeo das teses e validaccedilatildeo do ιόγνο 2ordm) a verdade assume um caraacuteter
formal para validaccedilatildeo do argumento sendo definida nesse instante pode-se apreender
como o ajuste entre o ιόγνο defendido e hipoacutetese proposta O caraacuteter do meacutetodo
filosoacutefico se torna devidamente definido todavia com a especificaccedilatildeo dos elementos
com os quais trabalha Para compreender o teor dessa operaccedilatildeo aparentemente
complexa eacute necessaacuterio tomar a hipoacutetese e fazer o discurso na perspectiva da
inteligibilidade Neste caso eacute necessaacuterio abordar as causas e a causa de tudo no seu
aspecto inteligiacutevel O bem o belo e a grandeza seratildeo analisados em sua natureza157
para
que uma vez aceita a existecircncia destes seja possiacutevel a partir deles argumentar acerca da
imortalidade ou dito de outro modo apresentar a causa de a alma ser imortal
Em uacuteltimas circunstacircncias o meacutetodo pretende verificar as razotildees para apostar
na imortalidade tomando os objetos de anaacutelise a partir do seu aspecto inteligiacutevel ditos
por si mesmos (αὐηὸ θαζ αὑηὸ) como hipoacutetese A investigaccedilatildeo encontra no ιόγνο um
recurso para descrever e apreender as relaccedilotildees inteligiacuteveis ou seja as quais indicam a
relaccedilatildeo entre ideia e particular158
Nesse sentido as premissas lanccediladas no discurso e
avaliadas no exerciacutecio de investigaccedilatildeo segundo o meacutetodo filosoacutefico devem buscar
apresentar a ideia em causa a qual uma vez encontrada nos termos de uma hipoacutetese
uacuteltima serve como paracircmetro a partir do qual se verifica qual dentre as relaccedilotildees
estabelecidas no ιόγνο se mostra afim com ela
Conveacutem prosseguir desse modo na investigaccedilatildeo da causa primeira e a sua
relaccedilatildeo com as demais causas Diz o texto o que existe aleacutem do proacuteprio belo ou seja
coisas consideradas belas satildeo como satildeo por participarem do belo Eacute nesta relaccedilatildeo de
157 Fed 100b5-8 ldquo() tomando por pressuposto a realidade de um Belo que existe em si e por si
mesmo de um Bem de um Grande e assim por diante Se neste ponto me daacutes razatildeo e aceitas a existecircncia
de coisas como estas espero bem a partir delas explicar-te qual seja essa causa e descobrir o que faz
com que a alma seja essa causa e descobrir o que faz com que a alma seja imortal ndash (ὑπνζέκελνο εἶλαί ηη
θαιὸλ αὐηὸ θαζ αὑηὸ θαὶ ἀγαζὸλ θαὶ κέγα θαὶ ηἆιια πάληα () ἐιπίδσ ζνη ἐθ ηνύησλ ηὴλ αἰηίαλ
ἐπηδείμεηλ θαὶ ἀλεπξήζεηλ ὡο ἀζάλαηνλ [ἡ] ςπρή)rdquo
158 Conveacutem emprestar as palavras de Matthews para explicar o sentido que a hipoacutetese assume no
argumento rdquo() elas satildeo proposiccedilotildees envolvendo uma referecircncia agraves formas em questatildeo satildeo consistentes
com a hipoacutetese de que estas formas existem e a negaccedilatildeo delas [formas] seriam inconsistentes com estas
hipoacutetesesrdquo Matthews G Plato ndash Epistemology and Related Logical Problems Faber and Faber London
1972p 33
213
participaccedilatildeo que se daacute a causalidade do belo159
Segundo a teoria da participaccedilatildeo
(κεηέμηο) as coisas se tornam belas pela presenccedila (παξνπζία Fed 100d5) ou pela
comunhatildeo (θνηλσλία Fed 100d6) com o proacuteprio Belo causa das coisas que satildeo belas
(Fed 100d) Do mesmo modo o que possui a qualidade de grande tem como causa a
sua relaccedilatildeo com a grandeza (ηὸ κέγεζνο) e o que eacute pequeno adquire a caracteriacutestica
porque se relaciona com a pequenez (Fed 101a-b3)
Participar do bem ou do belo confere agravequele que participa caracteriacutesticas
distintivas da ideia da qual participa X1 participa de X adquirindo caracteriacutesticas
exclusivas agrave X que as distinguem e a definem como tal A beleza do cavalo ocorre
porque participa da ideia do belo Sem a participaccedilatildeo no belo a beleza do cavalo natildeo
ocorreria A dependecircncia ontoloacutegica dos particulares em relaccedilatildeo agraves ideias se apresenta
nos termos da participaccedilatildeo como a causa do que existe no domiacuteno sensiacutevel Sendo
assim a causa da beleza eacute a ideia do belo No caso de relaccedilotildees da matemaacutetica natildeo se
trata de recorrer a uma causalidade na qual se tem como base a extensatildeo a quantidade
ou a somatoacuteria Em verdade tais relaccedilotildees consistem na participaccedilatildeo do termo na
unidade (κνλάδνο) ou na dualidade (δπάδνο) do um e do dois dadas aqui como a
essecircncia de cada termo uma realidade especiacutefica- (κεηαζρὸλ ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ
Fed101c3) O que parece estar em questatildeo com o exemplo dos nuacutemeros eacute a relaccedilatildeo
inteligente entre termos inteligiacuteveis que subjaz agraves operaccedilotildees matemaacuteticas Por tornarem
existentes a soma e a subtraccedilatildeo relaccedilotildees da onde advecircm o dez e o oito por exemplo
deve ser considerada a verdadeira causa160
O tipo de causa que o filoacutesofo pretende mostrar consiste na causa inteligiacutevel
cujo gecircnero eacute afim com a natureza da alma161
Desse modo os elementos reais que
constituem a causa e como tais fundamentam uma relaccedilatildeo causal tecircm o viacutenculo entre
universais e particulares desvelado na participaccedilatildeo recurso por meio do qual se explica
159 Fed 100c4 ldquose alguma coisa existe aleacutem do Belo em si a uacutenica e exclusiva razatildeo de assim ser eacute o
fato de participar desse mesmo Belo E assim falo de todos os casos semelhantes (εἴ ηί ἐζηηλ ἄιιν θαιὸλ
πιὴλ αὐηὸ ηὸ θαιόλ νὐδὲ δη ἓλ ἄιιν θαιὸλ εἶλαη ἢ δηόηη κεηέρεη ἐθείλνπ ηνῦ θαινῦ θαὶ πάληα δὴ νὕησο
ιέγσ ηῆ ηνηᾷδε αἰηίᾳ ζπγρσξεῖο)rdquo Fed 100d7-8 ldquoNatildeo eacute aliaacutes nisso que faccedilo propriamente questatildeo
mas sim em que eacute graccedilas ao Belo que todas as coisas belas satildeo belas (ἀιι ὅηη ηῷ θαιῷ πάληα ηὰ θαιὰ
[γίγλεηαη] θαιά ηνῦην γάξ κνη δνθεῖ ἀζθαιέζηαηνλ εἶλαη)rdquo
160 Vlastos Natildeo parece ser do interesse de Platatildeo especificar a relaccedilatildeo de participaccedilatildeo Reconhecer uma
ligaccedilatildeo entre os dois domiacutenios e mostrar a superioridade ontoloacutegica das formas provavelmente eacute o
bastante para propor o meacutetodo hipoteacutetico Vlastos G ldquoReasons and Causes in the Phaedordquoin op cit p
142
161 Fed 100b3 ldquo() vou entatildeo tentar explicar-te a espeacutecie de causa a que me tenho aplicado (ἔξρνκαη
[γὰξ] δὴ ἐπηρεηξῶλ ζνη ἐπηδείμαζζαη ηο αἰηίαο ηὸ εἶδνο ὃ πεπξαγκάηεπκαη)rdquo
214
a ligaccedilatildeo do sensiacutevel com o inteligiacutevel e no contexto do diaacutelogo serve aos propoacutesitos de
conduzir a investigaccedilatildeo de modo a reconhecer os objetos do intelecto as ideias162
43 Dialeacutetica e Teoria das Ideias meacutetodo e objeto do pensamento
Dada solidez das hipoacuteteses ponto de partida para a ascensatildeo do pensamento na
apreensatildeo das verdadeiras causas o meacutetodo toma sua forma
ldquo() E para o caso do teu interlocutor se apoiar na hipoacutetese em
si mesma pois bem despachaacute-lo ias sem resposta ateacute verificares se
as consequecircncias dela decorrentes estatildeo entre si em concordacircncia ou
discordacircncia (ζπκθσλεῖ ἢ δηαθσλεῖ) Por outro lado quando fosse
necessaacuterio justificar essa mesma hipoacutetese (ἐπεηδὴ δὲ ἐθείλεο αὐηο
δένη ζε δηδόλαη ιόγνλ) faacute-lo-ias recorrendo a uma hipoacutetese mais
acima que de entre as de igual niacutevel se te afigurasse mais adequada
ateacute chegares a alguma coisa de satisfatoacuterio (ὡζαύησο ἂλ δηδνίεο
ἄιιελ αὖ ὑπόζεζηλ ὑπνζέκελνο ἥηηο ηῶλ ἄλσζελ βειηίζηε θαίλνηην
ἕσο ἐπί ηη ἱθαλὸλ ἔιζνηο) ()rdquo (Fed 101d1- e1)
O meacutetodo hipoteacutetico ou dialeacutetico constitui-se da superaccedilatildeo das premissas ateacute
que se chegue a uma premissa superior que resista a esta eliminaccedilatildeo e se mostre a mais
segura e portanto verdadeira O procedimento de superaccedilatildeo se daacute atraveacutes da anaacutelise e
demonstraccedilatildeo constante dos resultados das hipoacuteteses dadas revelando-as como
suficientes ou natildeo Neste processo de ascensatildeo de uma hipoacutetese a outra superior
consiste no meacutetodo filosoacutefico (Fed 102a1) o qual pretende discernir diferentemente de
como procedem os ἀληηινγηθνὶ princiacutepio e consequecircncias para que se chegue a uma
apreensatildeo dos seres163
A noccedilatildeo de causalidade se torna mais esclarecida com a
explicaccedilatildeo desse meacutetodo dado que o movimento ascendente se daraacute na direccedilatildeo da causa
162 Vlastos comenta o papel da participaccedilatildeo dizendo ldquo() Participaccedilatildeo aqui designa o uacutenico caminho da
relaccedilatildeo ontoloacutegica de dependecircncia entre coisas temporais e as Formas eternas as quais satildeo princiacutepios
fundamentais para a filosofiardquo Vlastos ldquoReasons and Causesrdquo op cit p 141
163 Fed 101e1-3 ldquoEntretanto abster-se-ias de misturar como eacute haacutebito dos controversistas a anaacutelise
dos princiacutepios loacutegicos e a das suas implicaccedilotildees - isto no caso de pretenderes chegar efetivamente a algo
de positivo sobre os seres (ἅκα δὲ νὐθ ἂλ θύξνην ὥζπεξ νἱ ἀληηινγηθνὶ πεξί ηε ηο ἀξρο δηαιεγόκελνο
θαὶ ηῶλ ἐμ ἐθείλεο ὡξκεκέλσλ εἴπεξ βνύινηό ηη ηῶλ ὄλησλ εὑξεῖλ)rdquo
215
a qual se mostraraacute segura por se mostrar indubitaacutevel Dito de outro modo o exerciacutecio de
buscar as causas encontra na dialeacutetica um meacutetodo mais preciso pois ao ter em vista a
apreensatildeo do ser seja nas coisas determinadas seja nas ideias pode chegar a apreensatildeo
daquela que constitui a causa primordial Tal tarefa se torna factiacutevel pela dialeacutetica
porque os objetos com os quais se daacute o exerciacutecio de superaccedilatildeo das hipoacuteteses satildeo da
ordem do inteligiacutevel
Neste sentido cabe precisar o entendimento acerca dos inteligiacuteveis agora dados
como forma (εἶδνο) ou ideia (ἰδέα) As formas satildeo por si mesmas e satildeo a causa do que
delas participam O que tem participaccedilatildeo nas formas recebe dela nome e a caracteriacutestica
que a identifica (Fed 102b1-3) A forma tem sua identidade distinta e preservada natildeo
sendo compatiacutevel portanto com o que lhe eacute oposto tal como o frio natildeo pode participar
do quente nem a grandeza da pequenez (Fed 102e6-103a1) Dada a perspectiva da
inteligibilidade em que se tomam os termos agora em questatildeo o oposto tido como uma
forma (αὐηὸ ηὸ ἐλαληίνλ Fed 103b4) aparece como causa da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo dada
anteriormente
Assim na condiccedilatildeo de εἶδνο da mesma maneira natildeo pode aceitar algo oposto a
ele mesmo (Fed 103b1-c1) O texto potildee em operaccedilatildeo o princiacutepio de identidade e de natildeo
contradiccedilatildeo que acompanha a ideia de forma
ldquoVerifica-se pois em certo nuacutemero de casos como esses que natildeo
soacute a Forma em si mesma conserva para todo o sempre o nome a que
tem direito mas o mesmo acontece com qualquer outra realidade que
embora natildeo se identifique com ela possui sempre enquanto existir o
caraacuteter dessa Forma()rdquo (ὥζηε κὴ κόλνλ αὐηὸ ηὸ εἶδνο ἀμηνῦζζαη
ηνῦ αὑηνῦ ὀλόκαηνο εἰο ηὸλ ἀεὶ ρξόλνλ ἀιιὰ θαὶ ἄιιν ηη ὃ ἔζηη κὲλ
νὐθ ἐθεῖλν ἔρεη δὲ ηὴλ ἐθείλνπ κνξθὴλ ἀεί ὅηαλπεξ ᾖ Fed 103e2-5)
A forma tal como oferece o texto refere-se a uma unidade idecircntica a si mesma
que tecircm expostas nesse argumento as qualidades que a determinam164
Nessa passagem
164 Vale fazer uso das palavras de White para precisar o aspecto essencialista que a ideia apresenta e para
o qual se chama atenccedilatildeo aqui ldquoPor bdquo‟essencialismo ou bdquodoutrina das essecircncias‟ neste artigo quero dizer a
perspectiva sobre algum dado particular X tem qua particular alguma propriedade ou propriedades F
tal que X natildeo pode ser natildeo foi ou natildeo continua a ser sem ter F nem poderia continuar a ser X se
adquiriu o Oposto-F Por bdquoqua particular‟ quer dizer que X tem F natildeo sobre esta ou aquela descriccedilatildeo
216
vecirc-se que sua identidade estaacute de acordo com o gecircnero inteligiacutevel ou seja possui como
os seres inteligiacuteveis invisibilidade imutabilidade e imperecibilidade mas acrescenta-se
a isso um ἴδηνο que o determina como tal conferindo agrave forma caraacuteter especiacutefico
O trecircs o cinco natildeo satildeo idecircnticos agrave forma do iacutempar165
no entanto satildeo nuacutemeros
iacutempares por participarem de sua identidade (Fed 104a5-4)166
Embora natildeo haja
oposiccedilatildeo entre os nuacutemeros por participarem da forma iacutempar o trecircs e o cinco satildeo
nuacutemeros opostos aos nuacutemeros pares dado que a forma par eacute oposta agrave forma iacutempar da
qual esses nuacutemeros participam (Fed 104b6-10) Pode-se apreender a relaccedilatildeo entre as
ideias tal qual o argumento sugere atraveacutes dos elementos partiacutecipes das formas a partir
dos quais se verificaraacute se satildeo de caraacuteter opostos ou natildeo ao relacionarem uns aos outros
Esses a exemplo dos nuacutemeros iacutempares e dos nuacutemeros pares satildeo opostos por
participaccedilatildeo porque tomam a forma (κνξθή Fed 104d10) e em certa medida a
identidade da ideia na qual tecircm participaccedilatildeo O nuacutemero trecircs participa da ideia do trecircs e
do iacutempar assume portanto a relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo que acompanham tais ideias ndash ldquoNatildeo
haacute duacutevidas certamente que tudo aquilo que a Forma do trecircs ocupa natildeo apenas teraacute de
ser trecircs como iacutempar (νἶζζα γὰξ δήπνπ ὅηη ἃ ἂλ ἡ ηῶλ ηξηῶλ ἰδέα θαηάζρῃ ἀλάγθε
αὐηνῖο νὐ κόλνλ ηξηζὶλ εἶλαη ἀιιὰ θαὶ πεξηηηνῖο)rdquo (Fed 104d5) A ideia e seu partiacutecipe
trazem (ἐπηθέξσ) suas caracteriacutesticas e com elas a oposiccedilatildeo a outras ideias
Cabe aqui alguns esclarecimentos sobre a diferenccedila entre forma (κνξθή) e ideia
e a consequente distinccedilatildeo entre ideia e seus participantes O diaacutelogo parece sugerir
desde o iniacutecio da argumentaccedilatildeo acerca da Teoria a noccedilatildeo de εἶδνο e ἰδέα como
equivalentes a uma essecircncia especiacutefica (ηο ἰδίαο νὐζίαο ἑθάζηνπ 101c3)
correspondente a cada coisa que existe O que existe ou seja algo em particular como
o nuacutemero cinco encontra o seu correspondente inteligiacutevel na ideia de cinco e de iacutempar
mas independente de todas as descriccedilotildeesrdquo White F C ldquoThe Phaedo and The Republic V on The
Essencesrdquo in The Journal of Hellenic Studies Vol 98 1978 p 142 nota 3
165 Fed 104b1 ldquoconquanto nenhum deles se identifique individualmente com o Iacutempar nem por isso
deixam de ser por natureza iacutemparesrdquo (ὅπεξ ηὸ πεξηηηὸλ ἀεὶ ἕθαζηνο αὐηῶλ ἐζηη πεξηηηόο)
166 Ver Em nota Azevedo chama tenccedilatildeo para a questatildeo dizendo ldquoPelos exemplos do fogo da neve e do
trecircs (que deveraacute entender-se como nuacutemero e natildeo como conjunto de objetos da realidade sensiacutevel) Platatildeo
sugere aqui que as coisas em si natildeo satildeo opostas mas sim os caracteres (morphai) que nelas operam
Este pormenor relaciona-se provavelmente com uma tendecircncia visiacutevel nos diaacutelogos para privilegiar
como Formas as qualidades (opostos) e raramente substacircnciasrdquo Este comentaacuterio ajuda a pontuar um
dado e uma dificuldade que os diaacutelogos apresentam ao abordar as formas e seus aspectos Ao que sugere
o exemplo da igualdade no Feacutedon e ldquodos dedosrdquo no livro VII tanto a quididade a substacircncia como cita a
tradutora quanto as qualidades que a forma abarca e as que lhe satildeo opostas satildeo apreensiacuteveis pela forma
Os nuacutemeros e as relaccedilotildees de semelhanccedila-dessemelhanccedila ou grandeza-pequenez deixam mais aparente
esse duplo uso do termo N‟A Repuacuteblica Platatildeo parece ter deixado claro esta caracteriacutestica ao dizer ldquoMas
de outro lado disse essa propriedade caracteriza muito bem a visatildeo que temos da unidade pois vemos a
mesma coisa como una e como multiplicidade infinitardquo Azevedo M T S in Platatildeo op cit p 139 nota
87
217
sendo explicada a sua existecircncia e as suas caracteriacutesticas pela participaccedilatildeo nestas ideias
Natildeo se deve pensar portanto que a ideia tal como apresenta a Teoria proponha
necessariamente um conjunto de qualidades ndash aleacutem da imparidade nos nuacutemeros iacutempares
e do belo nas coisas consideradas dotadas de beleza- pois isso aparece de modo mais
contundente nos partiacutecipes das formas O que parece estar proposto eacute justamente a
recusa de certas relaccedilotildees que poriam em risco a identidade da forma ndash a neve quente
por exemplo - como a de contrariedade
Ainda que o texto sinalize para a compreensatildeo da ideia como um conjunto a
intenccedilatildeo de oferececirc-la como um ἴδηνο parece prevalecer na discussatildeo natildeo sendo
pertinente destacar as consequecircncias de outras relaccedilotildees aleacutem da relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo O
que pode parecer um dado de conteuacutedo (ἐπηθέξσ) expressa a persistecircncia da forma
(εἶδνο) em preservar a sua identidade sendo a ideia de oposiccedilatildeo nesse sentido bastante
pertinente para salientar tal preservaccedilatildeo como caracteriacutestica cara ao que eacute inteligiacutevel
ldquo() dizemos que soacute uma forma oposta recusa aceitar a que lhe
eacute oposta mas que tambeacutem outra coisa que contenha em si um
determinado oposto qualquer que seja o objeto em que se manifeste ndash
tambeacutem ela jamais aceitaraacute em tais circunstacircncias o caraacuteter
contraacuterio daquele que conteacutem ()rdquo (Fed 105a2-6)
O diaacutelogo assume vale notar uma postura bastante praacutetica em relaccedilatildeo ao seu
objetivo Ao argumento importa definir o que se tem preservado na ideia e como se daacute
tal preservaccedilatildeo nas relaccedilotildees que se pode fazer com o discurso para propor uma prova
final acerca da imortalidade da alma Os princiacutepios postos aqui se mostram uacuteteis para a
investigaccedilatildeo ao oferecer uma explicaccedilatildeo acerca da relaccedilatildeo entre as coisas que tomam
parte na inteligibilidade A tentativa de precisar no que consiste uma relaccedilatildeo de κεηέμηο
antes referida como presenccedila ou comunhatildeo mostra o caminho cognitivo para a
verificaccedilatildeo de uma tese acerca do post mortem no qual se faz necessaacuterio ter claro o
procedimento e a natureza dos objetos a serem conhecidos Tem-se na dialeacutetica deve-
se- reconhecer um procedimento de autoinspeccedilatildeo da razatildeo que valida a sua atividade e
os seus resultados conferindo veracidade agraves teses defendidas dentro dos ditames do
meacutetodo Como meacutetodo de investigaccedilatildeo filosoacutefica a dialeacutetica representa uma maneira
estritamente racional ou seja que natildeo recorre a qualquer recurso da sensibilidade para
conduzir uma investigaccedilatildeo o que constitui uma maneira conveniente dado que se tem
em questatildeo a possiacutevel atividade da alma totalmente apartada do corpo Ele consiste na
forma de operar pelo pensamento de modo a ultrapassar a particularidade do plano
218
sensiacutevel em vista da inteligibilidade do domiacutenio das essecircncias seus verdadeiros objetos
tendo nestes termos ao final o conhecimento acerca do que investiga
Assim natildeo se deve supor que o diaacutelogo ao abordar o meacutetodo hipoteacutetico tenha
abandonado os objetivos que se referem agrave apreensatildeo das ideias e agrave aquisiccedilatildeo do
conhecimento dadas anteriormente Nesse registro do trabalho intelectual sob forma
dialeacutetica o que se tem em foco diz respeito a um procedimento racional consistente para
se obter uma defesa igualmente consistente e digna de confianccedila sobre a imortalidade e
sobre aquele que se mostrou o uacutenico meio para esta investigaccedilatildeo o pensamento A
mudanccedila de abordagem do tema da θξόλεζηο ao longo do diaacutelogo cabe notar mostra a
aceitaccedilatildeo de seu valor dado no iniacutecio da investigaccedilatildeo e o aprofundamento das questotildees
que envolvem o pensar mais precisamente meacutetodo e objeto especiacutefico os quais satildeo
tratados de forma conclusiva nesses uacuteltimos argumentos
Ao elucidar o trabalho do pensamento segundo o meacutetodo tem-se uma
explicaccedilatildeo acerca do filosofar como exerciacutecio racional diante das limitaccedilotildees da
condiccedilatildeo de humanidade jaacute referidos anteriormente na defesa do pensar como via para
se chegar mais proacuteximo do conhecimento em detrimento dos sentidos (Fed 65e1) As
vantagens das tratativas deste meacutetodo estatildeo em reconstituir de forma operacional a
relaccedilatildeo com os objetos inteligiacuteveis que se tem na filosofia demonstrando assim o
alcance do pensamento e oferecendo a possibilidade de fazer suposiccedilotildees sobre a
imortalidade O filoacutesofo encontra neste tipo de exerciacutecio os pilares que justificam a
postura de cuidado da alma (ἐπηκέιεηα Fed 107c2) que se realiza com a postura e
exerciacutecio filosoacutefico modo legiacutetimo de adquirir alguma excelecircncia e inteligecircncia
(βειηίζηελ ηε θαὶ θξνληκσηάηελ γελέζζαη Fed 107d1)
Nesta direccedilatildeo na qual se encontrou um meacutetodo de validaccedilatildeo de um argumento
filosoacutefico a prova da imortalidade da alma consiste na prova da validade do pensar e de
tudo o que anteriormente foi dito acerca do gecircnero da funccedilatildeo e do valor atribuiacutedo ao
alto pensamento Diante das conclusotildees acerca pode-se ter alguma confianccedila sobre o
destino apoacutes a morte e as especulaccedilotildees sobre os temas que excedem o tempo da vida
humana como a morte a partir do meacutetodo com o qual se deve inquirir sobre a
imortalidade A prova se daacute a partir das prerrogativas da dialeacutetica e para tanto parte-se
do aspecto inteligiacutevel da questatildeo ou seja da forma vida e da relaccedilatildeo de participaccedilatildeo
que os seres vivos e a alma tem com ela O corpo em comunhatildeo com a alma se torna
vivo (Fed 105c9-11) separado dela eacute apenas um cadaacutever A alma torna o corpo vivo e
219
eacute portanto portadora da vida que nos termos da investigaccedilatildeo consiste na parte que
participa da forma vida
De acordo com esse raciociacutenio de forma a vida natildeo pode aceitar o seu contraacuterio
a morte sendo a forma vida (ηὸ ηο δσο εἶδνο Fed 106d6) e o que tem parte nela a
alma imortais (Fed 105d-e) No mesmo raciociacutenio o que tem parte na vida e portanto
o atributo de imortalidade natildeo pode aceitar a destruiccedilatildeo o que equivale agrave morte ndash ldquo() e
a Forma em si todos concordam que nunca perecemrdquo (Fed 106d5-7) O corpo por natildeo
partilhar da forma vida como a alma estaacute sujeito agrave destruiccedilatildeo (Fed 106e5) Tem-se
explicado ao modo da dialeacutetica a morte do corpo e a imortalidade da alma
Conclusotildees sobre a θξόλεζηο
Em poucas palavras o pensamento descreve a capacidade e a atividade
cognitiva o estado autecircntico do intelecto e o estado de interaccedilatildeo da alma com
inteligiacuteveis na qual permite a ela estar o mais proacuteximo possiacutevel de seu estado natural
Tais aspectos indicam que a excelecircncia do pensamento no diaacutelogo Feacutedon eacute antes
anaacuteloga ao modo autecircntico que a intelecccedilatildeo assume no decorrer da emancipaccedilatildeo da
alma pela filosofia O pensar sobre o qual se pretende argumentar no diaacutelogo para
realizar a investigaccedilatildeo acerca da imortalidade diz respeito ao exerciacutecio pleno da
faculdade inteligente ou dito de outro modo o seu exerciacutecio autocircnomo referido em um
primeiro momento nos termos de ldquopensamento purordquo A liberdade que a θξόλεζηο deve
adquirir em uma condiccedilatildeo de total ausecircncia dos sentidos tal como descreve o estado de
morte mostra a natureza distinta e ascendente da inteligecircncia que tem na elevaccedilatildeo
intelectual e no desapego do sensiacutevel as condiccedilotildees que favorecem seu exerciacutecio A
automonia da razatildeo consiste na condiccedilatildeo mais condizente com a natureza do pensar na
qual a alma atinge o grau maacuteximo de cogniccedilatildeo uma postura adequada agrave sua natureza a
postura intelectual e um meacutetodo para adquirir resultados vaacutelidos em um
empreendimento racional Todo o empreendimento filosoacutefico tem em vista esta
autonomia pois eacute ela a liberdade possiacutevel agrave alma ainda presa em corpo humano
220
O pensamento estabelece relaccedilatildeo com as ideias inteligiacuteveis seu verdadeiro
objeto podendo atraveacutes delas conhecer a verdade e elaborar uma explicaccedilatildeo (loacutegos)
razoaacutevel sobre a imortalidade da alma Do mesmo modo pode inferir acerca da vida
apoacutes a morte do corpo com bases mais seguras dadas pela razatildeo A relaccedilatildeo entre o alma
e inteligiacutevel que o intelecto estabelece nas tratativas com as ideias em um primeiro
momento dada nos termos de uma afecccedilatildeo (Fed 79d) mas posteriormente dita como
um exerciacutecio do loacutegos filosoacutefico indica o conhecimento como o modo de apreensatildeo do
caraacuteter inteligiacutevel o qual eacute afim com a natureza da alma A interaccedilatildeo com inteligiacuteveis
constitui um estado duradouro de inteligibilidade no qual a alma apreende o ser e as
qualidades semelhantes ao que eacute divino tendo por via da alta intelecccedilatildeo desse modo a
restauraccedilatildeo do seu estado natural Dito de outra maneira o alto pensamento que
constitui a θξόλεζηο preserva a natureza inteligente da alma e por consequecircncia seu
verdadeiro modo de atuar
Sendo assim nos termos de uma afecccedilatildeo pode ser entendido como uma resposta
aos objetos com os quais interage de modo a assimilaacute-los Como exerciacutecio inteligente o
qual se daacute por meio do meacutetodo constitui a apreensatildeo dos aspectos inteligiacuteveis acerca do
que se tem em exame de modo a discerni-los e utilizaacute-los tal como se deu na prova da
imortalidade para a qual a Teoria das Ideias e o meacutetodo foram os pilares Nos dois
casos tem-se o pensamento no niacutevel mais alto atuando com os objetos inteligiacuteveis e
trazendo de algum modo benefiacutecios quer como vantagens para a alma as virtudes e o
seu cuidado por exemplo quer como a aquisiccedilatildeo de elementos teoacutericos e
metodoloacutegicos que conduzem a uma hipoacutetese indubitaacutevel Seja como for com o
conhecimento das ideias a alma tem elementos para atraveacutes da filosofia se emancipar do
corpo e fazer suposiccedilotildees plausiacuteveis sobre um domiacutenio maior o da morte
O caraacuteter de testemunho que o argumento da reminiscecircncia confere ao pensar
indica a afinidade dele com o inteligiacutevel e sobretudo a possibilidade de superaccedilatildeo de
um plano a outro ou seja do sensiacutevel para o inteligiacutevel A descriccedilatildeo desta superaccedilatildeo
afirma a presenccedila de uma faculdade cognitiva independente do corpo e adianta assim a
hipoacutetese da sobrevivecircncia da alma com atividade inteligente em um plano distinto do da
vida humana A anterioridade indicada por meio da reminiscecircncia propotildee de certo
modo o alcance da faculdade da razatildeo o qual se torna limitado ao nascer em corpo
humano mas ao mesmo tempo mostra ao filoacutesofo a possibilidade de explorar outro
objeto aleacutem do experienciado pelas sensaccedilotildees (ἕηεξόλ ηη) um outro domiacutenio O papel de
inquiridor do pensar sugerido nas pistas dadas pela reminiscecircncia encontra na
221
explicaccedilatildeo acerca do loacutegos filosoacutefico os meios para realizar tal superaccedilatildeo O percurso
do intelecto eacute dado neste contexto na verificaccedilatildeo das hipoacuteteses e desse modo na
constante inspeccedilatildeo do objeto e da proacutepria atuaccedilatildeo da razatildeo A alta intelecccedilatildeo estaacute em
fazer este percurso e chegar agrave hipoacutetese inabalaacutevel a ideia do que se investiga Assim a
apreensatildeo na dialeacutetica no Feacutedon se daacute pela superaccedilatildeo de hipoacuteteses mas longe de
constituir uma intuiccedilatildeo o objeto uacuteltimo deve se revelar enquanto tal resistindo ao teste
do filoacutesofo com a sua dialeacutetica O pensamento adquire o seu objeto de conhecimento
apoacutes essa atividade de inquiriccedilatildeo mostrando desse modo seu caraacuteter especulativo
A excelecircncia do pensamento filosoacutefico estaacute diante disso em fazer este percurso
de superaccedilatildeo intelectual ateacute a apreensatildeo da ideia Condizente com o seu aspecto
emancipador e provedor das virtudes o pensamento tal como apresenta o Feacutedon supotildee
antes de tudo a relevacircncia da atividade filosoacutefica embora natildeo se decirc de fato a conquista
de seu objetivo maior Essa eacute a resposta pertinente ao se questionar em que medida a
inteligecircncia da θξόλεζηο eacute exequiacutevel em vida dado que sua plena realizaccedilatildeo ocorre
apoacutes a morte do corpo Trata-se de mostrar no decurso de uma vida filoacutesoacutefica os
esforccedilos e a realizaccedilatildeo plena das possibilidades de conhecimento ainda que estes natildeo
sejam capazes de oferecer mais que uma convicccedilatildeo e alimentar a esperanccedila do filoacutesofo
de obter um bom destino A θξόλεζηο em vida humana se efetiva com o exerciacutecio
filosoacutefico e todo o conhecimento possiacutevel nesta condiccedilatildeo precaacuteria mostrando seu valor
nos benefiacutecios que propricia agrave alma Uma conduta deste tipo encontra sentido na ligaccedilatildeo
que a inteligecircncia estabelece com um domiacutenio das coisas verdadeiras semelhantes ao
divino proporcionando a alma um grau de saber ou seja o conhecimento dos
verdadeiros valores pelos quais ela deve se orientar e seguir O limite do conhecimento
dado pelo que oferece as ideias mostra o fundamento das coisas verdadeiras o que
parece suficiente para indicar o domiacutenio em que deve atuar o pensamento e as
orientaccedilotildees mais importantes para a vida Desse modo a alta inteligecircncia descreve o
amor do filoacutesofo pela sabedoria o qual adquire o conhecimento maacuteximo dentro dos
limites de sua condiccedilatildeo
222
Conclusatildeo geral
Em uacuteltima instacircncia a inteligecircncia consiste na superaccedilatildeo de planos do senso
comum para o filosoacutefico da ignoracircncia para o conhecimento do sensiacutevel para o
inteligiacutevel a partir da qual se apreende os objetos ideais com o objetivo de realizar
inferecircncias razoaacuteveis e portanto plausiacuteveis sobre os temas considerados de maior valor
como o Bem e a imortalidade A excelecircncia de um trabalho como esse estaacute por sua vez
na busca e na apreensatildeo possiacutevel de objetos de tal magnitude atividade que potildee a alma
em sua melhor condiccedilatildeo O movimento de superaccedilatildeo que mostra a ascese da alma a um
plano superior no qual alcanccedila uma condiccedilatildeo de maturidade e perfeiccedilatildeo daacute-se pela
capacidade de apreender as formas e obter assim o verdadeiro conhecimento
Apreender as realidades se traduz em adquirir os conhecimentos e constitui o meio e o
estaacutegio mais elevado da capacidade racional a partir dos quais se pode fazer as
inferecircncias possiacuteveis e plausiacuteveis sobre temas que extrapolam os limites da razatildeo
Tem-se na condiccedilatildeo de ascensatildeo inteligente o desenvolvimento da habilidade de
ascender e de fazer as relaccedilotildees necessaacuterias para apreender a causa ou princiacutepio que
governa tudo e que permite supor o que estaacute aleacutem da capacidade dele proacuteprio
(pensamento) Eacute provaacutevel que nessas duas accedilotildees ascender e relacionar resida a
principal diferenccedila da inteligecircncia O movimento de superaccedilatildeo ao ter em vista algo que
exceda agrave sua capacidade potildee em xeque a sua proacutepria atuaccedilatildeo e alcance o que mostra ser
as realidades o meio para a intelecccedilatildeo e ao mesmo tempo seu objeto maacuteximo e final A
excelecircncia do pensamento estaacute sendo assim em adquirir este niacutevel de apreensatildeo no
qual se tem o conhecimento maacuteximo e se torna possiacutevel inferir
A superaccedilatildeo que constitui a inteligecircncia natildeo deve ser vista somente na ascensatildeo
em relaccedilatildeo ao plano superior dos inteligiacuteveis Uma completa superaccedilatildeo deve levar em
conta a postura do filoacutesofo em se orientar pelos conhecimentos adquiridos Tanto a
atuaccedilatildeo poliacutetica do filoacutesofo governante quanto a conduta cordata do filoacutesofo na
iminecircncia da morte resultam de ter os inteligiacuteveis como referecircncia o que significa a
permanecircncia no estado de interaccedilatildeo com os seres verdadeiros pela filosofia Ao mesmo
tempo tal estado se constitui da capacidade da razatildeo de estabelecer relaccedilotildees revelando
a face praacutetica dos conhecimentos As ligaccedilotildees que se pode fazer ao modo da visatildeo
223
sinoacuteptica ou ao modo da averiguaccedilatildeo dialeacutetica nos termos de uma superaccedilatildeo de
hipoacuteteses revelam ser factiacuteves os ideais poliacuteticos e existecircncias
A elevaccedilatildeo a um grau de superioridade consiste nesse sentido na frequentaccedilatildeo
ou ascensatildeo e permanecircncia de seres superiores e coloca ao mesmo tempo o filoacutesofo
em situaccedilatildeo de excelecircncia ao exigir dele o desenvolvimento e plena realizaccedilatildeo de sua
capacidade intelectual O pensamento mostra assim sua abrangecircncia nos papeacuteis de
atividade de uma faculdade no seu desenvolvimento e estado e tem na inteligecircncia seu
modo mais elevado e a face mais perfeita de sua atuaccedilatildeo
224
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