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Paulo Ricardo Schier Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional 224 DENÚNCIA ANÔNIMA EM PROCESSO DISCIPLINAR NA EXPERIÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES: ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER DE INVESTIGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ANONYMOUS COMPLAINT IN DISCIPLINARY PROCEEDINGS IN THE EXPERIENCE OF SUPERIOR COURT: BETWEEN FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE DUTY OF PUBLIC ADMINISTRATION INVESTIGATION Paulo Ricardo Schier 1 Resumo O presente estudo analisa a interpretação que o instituto da denúncia anônima recebe dos tribunais superiores brasileiros, apontando o dissenso jurisprudencial existente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça que aceita a denúncia anônima em nome da proteção do interesse público e do Supremo Tribunal Federal que oscila entre a aceitação e não aceitação da denúncia anônima. Em ambos os casos a jurisprudência anota, quando discute sobre a possibilidade de admissão da denúncia anônima, a existência de uma tensão entre direitos fundamentais e interesse público, variando as respostas para o problema conforme o tribunal adote um modelo de aplicação do direito fundado na lógica das regras ou na lógica dos princípios. Palavras-chaves: Denúncia anônima; Direitos Fundamentais; Interesse público. Abstract The current study analyses the interpretation that the called institute of anonymous delation receives from the Brazilian Higher Courts, for their point over the non-equality of jurisprudential factor existent in the Superior Court of Justice - which accepts the anonymous delation in the sake of protection of the Public Interest a fact also existent in the Supreme Federal Court that waves between the acceptance and the denial of such possible right; the anonymous delation said. In both cases, jurisprudence makes notable, when discussing on the possibility of 1 Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Professor de Direito Constitucional, em nível de graduação, especialização e mestrado, da Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil UniBrasil. Vinculado à Linha de Pesquisa "Constituição e Condições Materiais da Democracia”. Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa "Constitucionalização do Direito". Professor do Instituto de Pós-Graduação em Direito Romeu Felipe Bacellar e da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/PR. Advogado militante. E-mail: <[email protected]>

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Ótima Crítica ao Direito Administrativo Brasileiro.

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    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    224

    DENNCIA ANNIMA EM PROCESSO DISCIPLINAR NA

    EXPERINCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES: ENTRE OS

    DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER DE

    INVESTIGAO DA ADMINISTRAO PBLICA

    ANONYMOUS COMPLAINT IN DISCIPLINARY PROCEEDINGS IN THE EXPERIENCE OF SUPERIOR COURT: BETWEEN FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE DUTY OF PUBLIC

    ADMINISTRATION INVESTIGATION

    Paulo Ricardo Schier1

    Resumo

    O presente estudo analisa a interpretao que o instituto da denncia annima recebe dos tribunais superiores brasileiros, apontando o dissenso jurisprudencial existente no mbito do Superior Tribunal de Justia que aceita a denncia annima em nome da proteo do interesse pblico e do Supremo Tribunal Federal que oscila entre a aceitao e no aceitao da denncia annima. Em ambos os casos a jurisprudncia anota, quando discute sobre a possibilidade de admisso da denncia annima, a existncia de uma tenso entre direitos fundamentais e interesse pblico, variando as respostas para o problema conforme o tribunal adote um modelo de aplicao do direito fundado na lgica das regras ou na lgica dos princpios.

    Palavras-chaves: Denncia annima; Direitos Fundamentais; Interesse pblico.

    Abstract

    The current study analyses the interpretation that the called institute of anonymous delation receives from the Brazilian Higher Courts, for their point over the non-equality of jurisprudential factor existent in the Superior Court of Justice - which accepts the anonymous delation in the sake of protection of the Public Interest a fact also existent in the Supreme Federal Court that waves between the acceptance and the denial of such possible right; the anonymous delation said. In both cases, jurisprudence makes notable, when discussing on the possibility of

    1 Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Professor de Direito Constitucional, em nvel de

    graduao, especializao e mestrado, da Escola de Direito e Relaes Internacionais das

    Faculdades Integradas do Brasil UniBrasil. Vinculado Linha de Pesquisa "Constituio e Condies Materiais da Democracia. Trabalho vinculado ao Projeto de Pesquisa "Constitucionalizao do Direito". Professor do Instituto de Ps-Graduao em Direito Romeu

    Felipe Bacellar e da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro Honorrio da

    Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro da Comisso de Ensino Jurdico da

    OAB/PR. Advogado militante. E-mail:

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    this acceptance, the realness of a tension between Fundamental Rights and Public Interest, working with variation of answers to this case in the accordance of the decision made on the grounds of the logical rules of law in their application or on the grounds of the logicality of principles contained.

    Keywords: Anonymous Delation. Fundamental Rights. Public Interest. Autoprotection. Principles and Rules.

    Sumrio: I. Introduo. II. Referencial normativo e quadro jurisprudencial. III.

    Anlise crtica da jurisprudncia. IV. Concluso.

    I INTRODUO

    A Constituio Federal de 1988 deflagrou importante momento de

    transformao social a partir de sua normatividade se considerada num plano geral

    emancipatria2. Dentre as mudanas de fcil percepo deve-se salientar a

    consolidao do processo de afirmao da democracia3 e, no mbito da teoria e da

    prxis jurisdicional, o fenmeno da constitucionalizao do direito4.

    Deveras, muitas so as propostas de estudo que tm como mote central, por

    exemplo, a constitucionalizao do Direito Administrativo. preciso reconhecer,

    contudo, que embora o dilogo entre Direito Constitucional e Administrativo tenha

    trazido importantes avanos ou, no mnimo, reflexes, no raro o que se tem

    assistido, em verdade, uma constitucionalizao de fachada ou

    constitucionalizao retrica. No so poucos os textos acadmicos que, sob a

    fachada do discurso da constitucionalizao, fazem uma apologia ao dilogo entre

    Direito Constitucional e Direito Administrativo nos prlogos dos estudos mas, no

    desenvolvimento das anlises, no abordam nenhuma categoria da dogmtica

    constitucional. Isso quando no se reduz o processo de constitucionalizao a uma

    leitura meramente formal, como se fosse suficiente, para tratar de uma compreenso

    constitucionalizada, a simples referncia a alguns poucos dispositivos da Lei

    Fundamental5. Tem-se a impresso, assim, que o tema da constitucionalizao

    tornou-se um imperativo acadmico que, ao menos formalmente, precisa ser

    2 Neste sentido, dentre outros: Clve (2004, p. 223 e ss.); Barroso (2007, p. 1-4).

    3 Neste sentido, conferir: Barroso, In: Souza Neto; Sarmento; Binenbojm (2009, p. 28).

    4 Para um panorama geral sobre o debate terico e suas aplicaes prticas do processo de

    constitucionalizao, conferir: Souza Neto; Sarmento; Binenbojm, (2009, 1009 p.). 5 Este problema j havamos delatado em outro texto: Schier (1999, introduo).

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    referido. Cumprida a formalidade, parece manifestar-se uma autorizao implcita

    para se abordar qualquer tema ou utilizar-se qualquer espcie de fala.

    No a proposta do presente estudo analisar as causas deste peculiar

    processo de constitucionalizao. Para atingir este fim seria preciso, qui, uma

    reflexo mais detida sobre aquilo que Gustavo Binenbojm vem designando como

    dficit terico do Direito Administrativo (BINENBOJM, 2006, p. 14-15)6. O que se

    pretende, aqui, apenas alertar, preliminarmente, que qualquer processo dialgico

    deve ser, antes de tudo, dialtico e, logo, ele incompatvel com o silncio de uma

    das partes ou infrutfero quando no pondera os argumentos do outro sujeito da

    interlocuo.

    O objeto deste ensaio tem como pano de fundo, mais uma vez, a

    constitucionalizao do Direito Administrativo. Pretende-se analisar a legitimidade da

    denncia annima, no mbito de processos administrativos disciplinares, em face da

    ordem constitucional. E neste campo, como ser demonstrado, existe um verdadeiro

    abismo entre as jurisprudncias do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal

    de Justia. Enquanto o STF vem admitindo a legitimidade da denncia annima com

    reservas, determinando a necessidade de sopesamento dos diversos bens

    envolvidos nos casos concretos, sem contudo admitir uma resposta definitiva nesta

    seara, o STJ, praticamente sem qualquer reserva, admite este tipo de delao de

    forma quase que indiscriminada.

    Este descompasso de interpretao fruto de uma construo normativa

    que no tem levado em considerao a necessria compresso sistemtica que o

    processo de constitucionalizao impe. No mbito do STF nota-se a pressuposio

    da natureza principiolgica dos direitos fundamentais em jogo (vedao de

    anonimato, ampla defesa e contraditrio, dentre outros) em face do poder-dever de

    investigao da Administrao Pblica (decorrncia da tutela constitucional do

    interesse pblico e da indisponibilidade do interesse pblico). No mbito do STJ

    nota-se a prevalncia de um entendimento do poder-dever de investigao com

    natureza de regra, afastando totalmente dispositivos legais que vedam

    expressamente a denncia annima.

    6 Seguindo a esteira de Binenbojm, este tipo de anlise tambm proposta por Davi, (2008, p. 59-

    62).

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    Neste trabalho, contudo, no ser defendido nenhum dos dois modelos

    adotados nos tribunais superiores, pois a concluso ser de que a denncia

    annima no meio legtimo para deflagrar processos disciplinares em nosso

    sistema. E ainda que fosse legtima, no caso de se admitir como correta a leitura do

    STF, o processamento das infraes deveria no mnimo exigir prvia instaurao de

    sindicncia.

    II REFERENCIAL NORMATIVO E QUADRO JURISPRUDENCIAL

    Levando em considerao, como partida, o referencial normativo

    constitucional, a instaurao de processo disciplinar com base em denncia annima

    incompatvel com o texto da Constituio Federal eis que, prima facie, representa

    afronta ao art. 5, IV, que confere especial proteo ao direito honra, ao

    contraditrio e a ampla defesa, ao vedar o anonimato.

    Alm disso, no plano infraconstitucional, e densificando a dimenso

    principiolgica dos referidos direitos fundamentais mediante sopesamento de

    valores, a Lei dos Servidores Pblicos Federais - Lei n. 8.112/90, em seu artigo 144,

    expressamente exige, para o processamento de denncia contra servidor, a

    identificao do denunciante, seu endereo e confirmao de autenticidade. Da

    mesma forma o art. 6, da Lei n. 9784/99, traz idnticas exigncias. A Lei de

    improbidade Administrativa, por sua vez, em seu art. 14, pargrafo nico, impede o

    processamento de denncia annima. E, agora no plano de normatividade infralegal,

    a Portaria 4491/057, que regulamenta o processo administrativo realizado no mbito

    7 Art. 8 O servidor que tiver cincia de irregularidade no servio pblico dever, imediatamente,

    representar, por escrito e por intermdio de seu chefe imediato, ao titular da Unidade, sob pena de responsabilidade administrativa, civil e penal..

    2 A representao funcional de que trata este artigo dever:

    I - conter a identificao do representante e do representado e a indicao precisa do fato que, por ao ou omisso do representado, em razo do cargo, constitui ilegalidade, omisso ou abuso de poder;

    II - vir acompanhada das provas ou indcios de que o representante dispuser ou da indicao dos indcios ou provas de que apenas tenha conhecimento; (...)

    3 Quando a representao for genrica ou no indicar o nexo de causalidade entre o fato denunciado e as atribuies do cargo do representado, dever ser devolvida ao representante para que preste os esclarecimentos adicionais indispensveis para subsidiar o exame e a deciso da autoridade competente quanto instaurao de procedimento disciplinar.

    4 Quando o fato narrado no configurar evidente infrao disciplinar ou ilcito penal, a

    representao ser arquivada por falta de objeto.

  • Paulo Ricardo Schier

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    da Receita Federal, e citada aqui apenas exemplificativamente, exige igualmente a

    identificao do denunciante.

    O quadro normativo, como se nota, parece claro: denncias annimas no

    so admitidas em nosso sistema jurdico. Nada obstante, no raro as experincias

    administrativa e jurisprudencial desmentem a suposta clareza da norma. Afirma-se

    isto pois, ao se analisar a jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia no mbito

    dos julgamentos que envolvem denncia annima em processos administrativos o

    que se encontra exatamente o oposto: a admisso quase que indiscriminada de

    denncia annima.

    A ttulo exemplificativo observe-se os seguintes julgados:

    RECURSO ESPECIAL 2006/0153177-0 DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PBLICO FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DENNCIA ANNIMA. NULIDADE. NO-OCORRNCIA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. Tendo em vista o poder-dever de autotutela imposto Administrao, no h ilegalidade na instaurao de processo administrativo com fundamento em denncia annima. Precedentes do STJ. 2. Recurso especial conhecido e improvido (DJe 25/05/2009) MANDADO DE SEGURANA 2006/0249998-2 PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. SERVIDOR FEDERAL. FALTA DE CITAO PESSOAL. PROVA EMPRESTADA. DENNCIA ANNIMA. NULIDADE. INOCORRNCIA. INDEPENDNCIA DAS INSTNCIAS PENAL E ADMINISTRATIVA. 1. vlida a citao feita ao procurador constitudo quando ausente o servidor acusado e no demonstrado o prejuzo defesa (art. 156 da Lei n. 8.112/1990 e art. 9 da Lei n. 9.784/1999). 2. A jurisprudncia do STJ admite o uso de provas emprestadas. 3. No h ilegalidade na instaurao de processo administrativo com fundamento em denncia annima, por conta do poder-dever de autotutela imposto Administrao e, por via de conseqncia, ao administrador pblico. 4. As instncias administrativa e penal so independentes (Lei n. 8.112/1990, art. 125). 5. Denegao da segurana (DJe 05/09/2008).

    No mesmo sentido: Recurso em Mandado de Segurana n. 2005/0044783-5;

    Recurso em Mandado de Segurana n. 2004/0162925-0; Mandado de Segurana n.

    2000/0063512-0; Mandado de Segurana n. 2000/0125375-1; Recurso Ordinrio em

    Mandado de Segurana n. 1991/0018676-7; Recurso Ordinrio em Mandado de

    Segurana n. 4.435; Recurso Ordinrio em Mandado de Segurana n. 1.278 e

    Recurso em Habeas Corpus n. 7.329, todos do Superior Tribunal de Justia.

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    Ou seja, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justia,

    nada obstante a vedao legal expressa da denncia annima, este instituto se

    mostraria legtimo no sistema em vista do poder-dever de autotutela ou do poder-

    dever de investigao.

    Em suma, o resultado prtico descortinado na experincia do STJ mostra

    que a invocao dos princpios (i) da autotutela e (ii) da proteo dos bens e

    interesses pblicos autoriza a superao de regras legislativas que expressamente

    vedam a denncia annima. Em outras palavras, o STJ trata referidos princpios

    como se regras fossem, dando-lhes um carter de definitividade8 para afastar a

    aplicao de regras que vedam denncia annima em qualquer situao.

    No plano do Supremo Tribunal Federal, contudo, a leitura diversa e

    apresenta contornos mais complexos. Isto porque no STF, tanto a vedao de

    denncias annimas como os interesses vinculados com a autotutela,

    impessoalidade, moralidade etc., vm sendo tratados como se princpios fossem,

    demandando, a soluo dos diversos casos concretos, o devido sopesamento9. A

    ttulo exemplificativo, observe-se a seguinte deciso (apresentada de forma

    resumida):

    MS 24.369-DF

    RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO EMENTA: DELAO ANNIMA. COMUNICAO DE FATOS GRAVES QUE TERIAM SIDO PRATICADOS NO MBITO DA ADMINISTRAO PBLICA. SITUAES QUE SE REVESTEM, EM TESE, DE ILICITUDE (PROCEDIMENTOS LICITATRIOS SUPOSTAMENTE DIRECIONADOS E ALEGADO PAGAMENTO DE DIRIAS EXORBITANTES). A QUESTO DA VEDAO CONSTITUCIONAL DO ANONIMATO (CF, ART. 5, IV, IN FINE), EM FACE DA NECESSIDADE TICO-JURDICA DE INVESTIGAO DE CONDUTAS FUNCIONAIS DESVIANTES. OBRIGAO ESTATAL, QUE, IMPOSTA PELO DEVER DE OBSERVNCIA DOS POSTULADOS DA LEGALIDADE, DA IMPESSOALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA (CF, ART. 37, CAPUT), TORNA INDERROGVEL O ENCARGO DE APURAR COMPORTAMENTOS EVENTUALMENTE LESIVOS AO INTERESSE PBLICO. RAZES DE INTERESSE SOCIAL EM POSSVEL CONFLITO COM A EXIGNCIA DE PROTEO

    8 Sobre a aplicao das regras com carter de definitividade, conferir: Alexy (2008, p. 103-106).

    9 Sobre a aplicao dos princpios como mandamentos prima facie, conferir: Alexy (2008, p. 103-

    106).

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    INCOLUMIDADE MORAL DAS PESSOAS (CF, ART. 5, X). O DIREITO PBLICO SUBJETIVO DO CIDADO AO FIEL DESEMPENHO, PELOS AGENTES ESTATAIS, DO DEVER DE PROBIDADE CONSTITUIRIA UMA LIMITAO EXTERNA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE. LIBERDADES EM ANTAGONISMO. SITUAO DE TENSO DIALTICA ENTRE PRINCPIOS ESTRUTURANTES DA ORDEM CONSTITUCIONAL. COLISO DE DIREITOS QUE SE RESOLVE, EM CADA CASO OCORRENTE, MEDIANTE PONDERAO DOS VALORES E INTERESSES EM CONFLITO. CONSIDERAES DOUTRINRIAS. LIMINAR INDEFERIDA.

    DECISO:

    ... O veto constitucional ao anonimato, como se sabe, busca impedir a consumao de abusos no exerccio da liberdade de manifestao do pensamento, pois, ao exigir-se a identificao de quem se vale dessa extraordinria prerrogativa poltico-jurdica, essencial prpria configurao do Estado democrtico de direito, visa-se, em ltima anlise, a possibilitar que eventuais excessos, derivados da prtica do direito livre expresso, sejam tornados passveis de responsabilizao, a posteriori, tanto na esfera civil, quanto no mbito penal. Essa clusula de vedao - que jamais dever ser interpretada como forma de nulificao das liberdades do pensamento - surgiu, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituio republicana, promulgada em 1891 (art. 72, 12), que objetivava, ao no permitir o anonimato, inibir os abusos cometidos no exerccio concreto da liberdade de manifestao do pensamento, viabilizando, desse modo, a adoo de medidas de responsabilizao daqueles que, no contexto da publicao de livros, jornais ou panfletos, viessem a ofender o patrimnio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intrpretes daquele Estatuto Fundamental. ... Nisso consiste a ratio subjacente norma, que, inscrita no inciso IV do art. 5, da Constituio da Repblica, proclama ser livre a manifestao do pensamento, sendo vedado o anonimato (grifei). Torna-se evidente, pois, que a clusula que probe o anonimato - ao viabilizar, a posteriori, a responsabilizao penal e/ou civil do ofensor - traduz medida constitucional destinada a desestimular manifestaes abusivas do pensamento, de que possa decorrer gravame ao patrimnio moral das pessoas injustamente desrespeitadas em sua esfera de dignidade, qualquer que seja o meio utilizado na veiculao das imputaes contumeliosas. ... A manifestao do pensamento no raro atinge situaes jurdicas de outras pessoas a que corre o direito, tambm fundamental individual, de resposta. O art. 5, V, o consigna nos termos seguintes: assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alm da indenizao por dano material, moral ou imagem. Esse direito de resposta, como visto antes, tambm uma garantia de eficcia do

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    direito privacidade. Esse um tipo de conflito que se verifica com bastante freqncia no exerccio da liberdade de informao e comunicao. A presente impetrao mandamental, nos termos em que deduzida, sustenta, com apoio na clusula que veda o anonimato, a existncia, em nosso ordenamento positivo, de impedimento constitucional formulao de delaes annimas. inquestionvel que a delao annima pode fazer instaurar situaes de tenso dialtica entre valores essenciais, igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de coliso de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idntica estatura jurdica, a reclamar soluo que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possvel conferir primazia a uma das prerrogativas bsicas, em relao de antagonismo com determinado interesse fundado em clusula inscrita na prpria Constituio. O caso ora exposto pela parte impetrante - que entidade autrquica federal - pode traduzir, eventualmente, a ocorrncia, na espcie, de situao de conflituosidade entre direitos bsicos titularizados por sujeitos diversos. Com efeito, h, de um lado, a norma constitucional, que, ao vedar o anonimato (CF, art. 5, IV), objetiva fazer preservar, no processo de livre expresso do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade (como a honra, a vida privada, a imagem e a intimidade), buscando inibir, desse modo, delaes annimas abusivas. E existem, de outro, certos postulados bsicos, igualmente consagrados pelo texto da Constituio, vocacionados a conferir real efetividade exigncia de que os comportamentos funcionais dos agentes estatais se ajustem lei (CF, art. 5, II) e se mostrem compatveis com os padres tico-jurdicos que decorrem do princpio da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput). Presente esse contexto, resta verificar se o direito pblico subjetivo do cidado rigorosa observncia do postulado da legalidade e da moralidade administrativa, por parte do Estado e de suas instrumentalidades (como as autarquias), constitui, ou no, limitao externa aos direitos da personalidade (considerados, aqui, em uma de suas dimenses, precisamente aquela em que se projetam os direitos integridade moral), em ordem a viabilizar o conhecimento, pelas instncias governamentais, de delaes annimas, para, em funo de seu contedo - e uma vez verificada a idoneidade e a realidade dos dados informativos delas constantes -, proceder-se, licitamente, apurao da verdade, mediante regular procedimento investigatrio. Entendo que a superao dos antagonismos existentes entre princpios constitucionais h de resultar da utilizao, pelo Supremo Tribunal Federal, de critrios que lhe permitam ponderar e avaliar, hic et nunc, em funo de determinado contexto e sob uma perspectiva axiolgica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situao de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilizao do mtodo da ponderao de bens e interesses no importe em esvaziamento do contedo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistrio da doutrina.

    ...

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

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    Parece registrar-se, na espcie em exame, uma situao de colidncia entre a pretenso mandamental de rejeio absoluta da delao annima, ainda que esta possa veicular fatos alegadamente lesivos ao patrimnio estatal, e o interesse primrio da coletividade em ver apuradas alegaes de graves irregularidades que teriam sido cometidas na intimidade do aparelho administrativo do Estado. Isso significa, em um contexto de liberdades em conflito, que a coliso dele resultante h de ser equacionada, utilizando-se, esta Corte, do mtodo - que apropriado e racional - da ponderao de bens e valores, de tal forma que a existncia de interesse pblico na revelao e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais e/ou administrativas que teriam sido praticadas por entidade autrquica federal, bastaria, por si s, para atribuir, denncia em causa (embora annima), condio viabilizadora da ao administrativa adotada pelo E. Tribunal de Contas da Unio, na defesa do postulado tico-jurdico da moralidade administrativa, em tudo incompatvel com qualquer conduta desviante do improbus administrador. Na realidade, o tema pertinente vedao constitucional do anonimato (CF, art. 5, IV, in fine) posiciona-se, de modo bastante claro, em face da necessidade tico-jurdica de investigao de condutas funcionais desviantes, considerada a obrigao estatal, que, imposta pelo dever de observncia dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna imperioso apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse pblico. No por outra razo que o magistrio da doutrina admite, no obstante a existncia de delao annima, que a Administrao Pblica possa, ao agir autonomamente, efetuar averiguaes destinadas a apurar a real concreo de possveis ilicitudes administrativas... ... Esse entendimento tem o beneplcito da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal. ... Sendo assim, e tendo em considerao as razes expostas, indefiro, em sede de delibao, o pedido de medida liminar, sem prejuzo de oportuno reexame da questo ora veiculada nesta sede mandamental. 2. Requisitem-se informaes aos rgos ora apontados como coatores, encaminhando-se-lhes cpia da presente deciso. Publique-se. Braslia, 10 de outubro de 2002. Ministro CELSO DE MELLO (deciso publicada no DJU de 16.10.2002).

    Referida deciso sintetiza o entendimento do STF que, em alguns casos

    concretos, aps sopesamento (admitido ora explicitamente e ora intuitivamente), por

    vezes tolera a denncia annima (como no caso do MS 27339/DF) e por vezes a

    rechaa (vg. Inqurito n 1.957-PR).

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    233

    Ou seja, no STF a questo pensada no plano principiolgico, aceitando,

    sempre, respostas diferentes para cada caso concreto10. Parece no fazer diferena,

    alis, para o STF, o fato de a legislao infraconstitucional trazer regras explcitas

    vedando a delao annima (como se a prvia existncia de um sopesamento

    legislativo, neste campo, no trouxesse qualquer interferncia no resultado dessas

    decises).

    III ANLISE CRTICA DA JURISPRUDNCIA

    Tanto a jurisprudncia consolidada no mbito do Supremo Tribunal Federal

    como a do Superior Tribunal de Justia, com o devido respeito, trazem alguns

    problemas de cunho prtico e terico.

    Com efeito, no quadro de um Estado Democrtico de Direito, causa certa

    estranheza o fato da jurisprudncia dominante dos tribunais superiores, com

    fundamentos diferentes, praticamente ignorar a regra do art. 144, da Lei n. 8.112/90

    e do art. 6, da Lei n. 9784/99.

    No quadro do STJ, como se afirmou, a justificativa do entendimento transita

    por dois grandes argumentos: (i) a aplicao da regra contida no art. 143, da prpria

    Lei n. 8112/90, segundo a qual a autoridade administrativa, tendo cincia de

    irregularidade, obrigada a apur-la; (ii) aplicao direta do chamado poder-dever

    de autotutela (em verdade, um princpio com fundamento implcito na Constituio e

    com base normativa infraconstitucional, no campo em anlise, no art. 53, da Lei

    Federal n. 9784/99 A Administrao deve anular seus prprios atos, quando

    eivados de vcio de legalidade, e pode revog-los por motivo de convenincia ou

    oportunidade, respeitados os direitos adquiridos).

    Em relao ao primeiro argumento que justifica as decises do STJ

    cabimento da denncia annima por aplicao da regra do art. 143, da Lei n.

    8112/90 -, parece que referido Tribunal olvida uma necessria interpretao

    10

    Alerta sobre a necessidade de que a ponderao seja realizada apenas em vista de um caso

    concreto, devendo-se evitar ponderaes "abstratas", pode-se encontrar em: Sarmento (2003, p.

    42-49).

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

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    sistemtica da legislao constitucional e infraconstitucional11. Deveras, na

    realidade, tal raciocnio advm de um mtodo de interpretao rude, qual seja, o

    mtodo literal. O art. 143, com efeito, obriga a apurao das irregularidades de que

    se tenha cincia; em seguida, o art. 144 determina que no se apure as

    irregularidades que tenham chegado ao conhecimento da autoridade por meio de

    denncia annima. Lendo com ateno os dois dispositivos a nica concluso

    possvel a de que a autoridade no pode deixar de averiguar irregularidades que

    tenham chegado ao seu conhecimento da forma preconizado pela lei, ou seja, por

    meio de denncia realizada por pessoa identificada, de forma legtima, consoante o

    meio lcito previsto em nosso sistema jurdico. O que significa dizer: a regra do art.

    143, da Lei n. 8112/90, que impe o dever de investigar, no nega a regra do art.

    144, do mesmo diploma legal. Trata-se antes de um reforo. A autoridade

    administrativa, quando a denncia estiver revestida de seus requisitos dentre, no

    ser annima -, tem o dever de investigar. O Poder Pblico no pode se furtar de

    averiguar as delaes de ilicitudes e irregularidade que, na forma da lei, chegam ao

    seu conhecimento. Todavia este dever no pode prevalecer se se tratar de denncia

    annima.

    Esta parece ser a construo adequada da norma, que leva em

    considerao o mtodo de interpretao sistemtico e salva a aplicao de ambos

    os dispositivos. Neste modelo de interpretao, nem a vedao de denncia

    annima retira a validade do dever de investigar e nem o dever de investigar retira a

    validade ou a possibilidade de aplicao da vedao de denncia annima. De outro

    lado, a interpretao literal suprime qualquer sentido prtico do art. 144, retirando-lhe

    completamente os efeitos e restringindo, tambm, os direitos do servidor.

    Como se nota, portanto, a interpretao literal e isolada do art. 143 equivale

    a uma peculiar declarao de inconstitucionalidade implcita do art. 144, da Lei n.

    8.112/90. Ora, uma vez que o art. 144, da Lei 8.112/90, no foi, em momento algum,

    declarado inconstitucional (nem em sede abstrata e nem em sede de controle

    difuso), a sua no aplicao representa verdadeira violao ao Estado de Direito.

    11

    Sobre a necessidade de interpretao sistemtica como imposio do princpio da unidade da

    Constituio, consultar: Barroso (1996, p. 181-198).

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    235

    Ademais, neste campo, a leitura conjunta dos art. 143 e 144, da Lei

    8.112/90, na sequncia como foi colocada, indicia a necessidade de uma leitura

    ajustada em que, primeiramente, dever-se-ia considerar a existncia do dever de

    investigao e, em seguida, como se criasse verdadeira regra de exceo, desde

    que a denncia no seja annima.

    A segunda justificativa do STJ para admitir, em suas decises, a denncia

    annima, est na invocao da aplicao direta do princpio da autotutela, que tem

    por escopo, como j restou adiantado, a tutela do interesse pblico, da moralidade,

    finalidade, da eficincia etc.

    Neste ponto, uma anlise crtica deve ser desdobrada em dois pontos: (i) o

    contido no art. 53, da Lei Federal n. 9.784/99 dever de anulao (autotutela) dos

    atos eivados de ilegalidade e (ii) a possibilidade de aplicao direta dos princpios

    constitucionais da administrao pblica, sejam explcitos ou implcitos.

    Na primeira linha de raciocnio, no que tange com o dever de autotutela,

    pode-se imaginar que, embora dotado de fundamentao constitucional, e no que

    pertine com a sua aplicao em processos disciplinares, este princpio est

    densificado, em nvel infraconstitucional, no art. 53, da Lei Federal n. 9.784/99. A se

    considerar, ainda, que a atividade legislativa manifesta uma deciso em relao ao

    modo de realizao das normas constitucionais, no se pode olvidar que, de forma

    crua, referido dispositivo da Lei 9.784/99 em nenhum momento autoriza a utilizao

    da autotutela com a fim de tolerar denncia annima. O referido enunciado

    normativo expressa, rememore-se, o seguinte: A Administrao deve anular seus

    prprios atos, quando eivados de vcio de legalidade... . Como se nota, o dever

    de anular seus prprios atos s um dever em relao aos atos eivados de vcio de

    legalidade.

    Considerando o dispositivo preciso, logo, fazer uma distino lgica: uma

    coisa o dever de anulao do ato ilegal e outra coisa e a possibilidade de

    aplicao de sano disciplinar a quem cometeu o ato ilegal. Com esta distino,

    fcil perceber que, uma vez constatada uma ilegalidade, a lei impe o dever de

    anulao do ato ilegal. Aqui h autotutela. Mas isso, reitere-se, vale para a

    investigao do ato ilegal em sentido prprio. A aplicao de sano disciplinar ao

    agente que cometeu a ilegalidade deve se dar mediante processo disciplinar que

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    236

    garanta o contraditrio e a ampla defesa, eis que se trata de imposio de medida

    restritiva de direito de liberdade e/ou propriedade. A autotutela encontra, neste

    campo, portanto, limite. Autotutela no plano do processo disciplinar ser admitida

    apenas quando algum ato do processo administrativo estiver eivado de ilegalidade;

    jamais para justificar a abertura do processo disciplinar. Neste aspecto, ilegal seria,

    sim, a abertura de processo disciplinar com fundamento no dever de autotutela

    insculpido no art. 53, da Lei Federal n. 9.784/99, quando este dispositivo alcana

    apenas o ato ilegal, e no a aplicao de sano ao agente que o praticou.

    Poder-se-ia, ento, contra-argumentar que o dever de autotutela, neste

    caso, no decorre prpria e diretamente da lei mas, antes, decorre diretamente da

    principiologia constitucional que protege o interesse pblico, a moralidade, a

    eficincia, a isonomia, a finalidade etc. ou, em outras palavras, a supremacia do

    interesse pblico contra o interesse privado do particular (revestido de agente

    pblico).

    Em face deste argumento pode-se opor o debate emergente das reservas

    que parte da teoria do Direito Pblico tem levantado contra o discurso absolutizante

    da supremacia do interesse pblico sobre o privado. Aqui, mais uma vez, as

    preocupaes manifestadas por esta doutrina se confirmam: de nada adianta

    invocar a vedao constitucional do anonimato, mesmo confirmada por regra

    inequvoca de legislao infraconstitucional, pois os interesses de um particular no

    podem superar a invencvel supremacia do interesse pblico. Algo como que se

    afirmasse: o dever de autotutela protege o interesse pblico e a vedao de

    denncia annima protege o indivduo, aqui pressupostamente mprobo. Logo,

    interesses privados no podem prevalecer sobre os pblicos e, assim, toda vez que

    houver este tipo de coliso, a resposta est pronta: que vena o interesse pblico.

    No o caso, aqui, novamente, de desenvolver uma linha de argumentao

    neste sentido. Fazemos referncia, neste momento, s observaes lanadas em

    trabalhos anteriores12.

    12

    Panorama do debate sobre o mito da supremacia do interesse pblico sobre o privado pode ser

    encontrado em: Sarmento (2007, 246 p).

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    237

    De outro lado, independentemente de se superar o problema da questo

    da supremacia do interesse pblico, seria possvel levantar, como crtica ao modelo

    de interpretao do STJ, a forma como permite a aplicao direta de princpios

    constitucionais, revestidos de elevada abertura e indeterminao, para afastar a

    aplicao de regras legais muito claras que manifestam juzo de sopesamento do

    legislador na aplicao de princpios13. Aqui, portanto, est-se a transitar por outro

    problema metodolgico: a aplicao direta de princpios constitucionais para afastar

    a aplicao de regras legais14.

    Este problema no est revestido de qualquer novidade. A produo terica

    do direito constitucional e a teoria do direito, de modo geral, j havia se dado conta

    de certos perigos que o processo de constitucionalizao, despido de critrios

    racionais, pode ensejar no campo da realizao da justia. A insegurana jurdica, a

    eventual incontrolabilidade das decises, o excesso de subjetivismo e abertura para

    os juzos morais no preenchimento dos conceitos indeterminados trazidos pelos

    princpios, o eventual dficit democrtico que o afastamento das opes legislativas

    podem proporcionar, so alguns temas recorrentes que permeiam este debate15.

    No se pretende, neste estudo, abrir uma porta metodolgica para a

    discusso desses temas relevantes. A presente abordagem assumir, aqui, alguns

    pressupostos metodolgicos para no fugir do tema central: (i) a aplicao direta de

    princpios constitucionais em detrimento de regras infraconstitucionais revestidas de

    presuno de constitucionalidade (ou seja, sobre as quais no recaia um juzo de

    inconstitucionalidade evidente) procedimento perigoso16; (ii) h que se conferir

    uma certa deferncia s decises expressadas pelo legislador infraconstitucional em

    homenagem ao princpio democrtico e segurana jurdica (MARRAFON, p. 362);

    (iii) princpios, preferencialmente, devem ser aplicados atravs das regras que lhe

    do concretude e expressam as opes da sociedade em relao s concepes

    dos conceitos trazidos por aqueles (BARCELLOS, 2005, p. 165-200).; (iv) logo,

    13

    O problema do afastamento da aplicao de regras no evidentemente inconstitucionais diante de

    princpios dotados de elevada carga de indeterminao e abstrao interessantemente apontado

    em: Guastini (2008, p. 73-91). 14

    Este tipo de problema j havamos, de forma formar, abordado no seguinte texto: Schier. In: Souza

    Neto; Sarmento (p. 251-270). 15

    Neste sentido, conferir: Sarmento. In: Souza Neto; Sarmento (p. 113-148). 16

    Neste sentido, conferir: vila. In: Souza Neto; Sarmento; Binenbojm (2009, p. 187 e ss.).

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    238

    aplicao direta de princpios em detrimento de regras s pode ser levada a efeito

    com reservas e mediante a demanda de um nus argumentativo mais custoso

    (MARRAFON, p. 362).

    Neste quadro o que se nota, por tudo o que j se exps, que os

    argumentos que podem justificar a eventual aplicao direta da autotutela contra a

    vedao de denncia annima, no que tange com a linha de argumentao do STJ,

    no resiste a um processo de debate mais apurado. Apenas a referncia genrica

    possibilidade de aplicao direta dos princpios constitucionais da Administrao

    Pblica que tem fundado esta prtica.

    Conforme resta claro, a no aplicao da regra que veda denncia annima

    se baseia, principalmente, na eventual aplicao direta do princpio da moralidade,

    da impessoalidade e da supremacia do interesse pblico.

    No entanto, como se tem admitido mais recentemente, entende-se que

    apesar do reconhecimento da normatividade dos princpios se constituir uma

    importante conquista no movimento constitucionalista e ps-positivista que ganha

    fora no Brasil a partir da luta pela efetividade da Constituio de 1988, que se

    consolida em meados da dcada de 90 do sculo passado (BARROSO, 2007, p.

    203-249), isso no implica que as regras de direito possam ser descartadas com

    base em certos voluntarismos interpretativos tpicos de novos jusnaturalismos e sua

    incessante busca de uma justia ideal e abstrata ou novos realismos, segundo os

    quais o fim social se torna um critrio interpretativo superador das fontes formais

    estatais.

    Recair nessas posturas pode significar, na prtica, a runa do Estado

    Democrtico de Direito, uma vez que a falta de densidade semntica dos princpios

    jurdicos faz com que eles se tornem verdadeiras chaves-mestras da interpretao

    jurdica, permitindo que se diga qualquer coisa acerca da moral, do justo ou ainda do

    interesse social.

    Ciente das armadilhas ocultas nessas perspectivas de realizao do direito,

    Norberto Bobbio lembra que as controvrsias entre o justo e o injusto, a moral e o

    imoral so praticamente insuperveis. Como exemplo possvel citar a crena de

    Locke na propriedade como direito natural e o repdio dessa ideia por parte de

    socialistas utpicos (BOBBIO, 2001, p. 56).

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    239

    Sendo assim, h que se concordar com Antonio Cavalcanti Maia quando

    defende que:

    ...falar de ps-positivismo no significa adotar uma posio radicalmente anti-positivista, mas sim propugnar por uma superao desta dmarche

    terica na busca de uma compreenso mais afinada da vida jurdica contempornea. Ora, por um lado, no podemos nos recusar a reconhecer as incontornveis contribuies dadas pelos juristas filiados ao positivismo jurdico inteligncia da estrutura da norma jurdica, bem como sua preocupao com a clareza, a certeza e a objetividade no estudo do direito, tudo isso referenciado preocupao central dos estados de direitos contemporneos com a segurana jurdica. Por outro lado, advogar um enfoque ps-positivista no significa defender como , por vezes, salientado por autores crticos a esse posicionamento um retorno a posies jusnaturalistas devedoras de concepes metafsicas incompatveis com o atual estgio de compreenso cientfica (MAIA, 2009, p. 123).

    Desta feita, no h que se descuidar de uma anlise apurada e colocar as

    questes envolvidas em seus devidos lugares.

    Como j indicado anteriormente, a questo da moralidade, do interesse

    pblico, da impessoalidade, no so necessariamente incompatveis com a vedao

    de denncia annima. Tenha-se em mente que os princpios so pontos de partida e

    sua concretizao no pode ser feita s custas de qualquer meio, especialmente

    quando, no caso em debate, ela atinge dispositivos constitucionais ainda em vigor

    (art. 5, IV), superando claros limites textuais da Constituio e das opes do

    legislador ordinrio.

    preciso, ento, para evitar arbitrariedades, identificar os parmetros para

    uma correta dimenso da aplicabilidade dos princpios.

    Princpios e regras jurdicas, enquanto espcies do gnero norma jurdica,

    operam funes diferenciadas, mas interligadas no sistema jurdico. Princpios

    possuem maior carga axiolgica e funcionam como instituidores de regras.

    Estabelecem, os princpios, direitos prima facie. As regras, por sua vez, descrevem

    condutas ou estruturas de modo mais objetivo, justamente porque sua finalidade

    tornar aplicvel na vida prtica os valores contidos nos princpios atravs de

    escolhas e opes normativas indispensveis sua concretizao. As regras, por

    desempenharem esta funo, estabelecem direitos definitivos.

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    240

    Assim compreendidos, h de se reconhecer uma relao paradoxal entre

    ambos, na medida em que o princpio funda a normatividade e depende de

    realizao pela via de regra, as quais, por sua vez, apenas possuem existncia

    jurdica porque aferveis por um princpio que tambm lhes serve de fechamento

    interpretativo, dando o tom dos valores a serem juridicamente protegidos.

    Um demanda o outro, com determinaes recprocas de sentido. Os

    princpios permitem a oxigenao do sistema, trazendo para dentro de si os

    contedos existencialmente dados em determinado perodo histrico. As regras

    especificam a aplicao dos princpios, ao mesmo tempo que existem em funo

    deles.

    Em decorrncia, postula-se que na soluo imediata dos casos jurdicos,

    deve-se dar primazia s regras, vez que os princpios apenas adquirem

    aplicabilidade direta em situaes muito especficas, em que se impe uma deciso

    que deve suportar o nus argumentativo.

    Essa exigncia de priorizar as regras surge como uma tentativa de alcanar

    o ideal de segurana jurdica almejado pelo Direito, conforme assinala Maral Justen

    Filho:

    o reconhecimento da importncia dos princpios conduziu a um certo

    desprestgio das regras, o que um equvoco. A existncia de regras essencial para a segurana jurdica e para a certeza do direito. A regra traduz as escolhas quanto aos valores e aos fatos sociais. Permitindo a todos os integrantes da sociedade conhecer a soluo perstigiada pelo direito (JUSTEN FILHO, 2003, p. 53-54).

    A argumentao com base em princpios especialmente relevante nos

    chamados casos difceis. Com efeito, Ronald Dworkin diagnostica que,

    frequentemente, a argumentao assentada em padres normativos que no se

    adequam s caractersticas de regra jurdica, mas sim de princpios, ocorre em

    casos polmicos, dotados de alto grau de problematicidade (DWORKIN, 2002, p.

    36).

    Para determinar quais so esses casos no existe um critrio universal, uma

    regra definidora ou um mtodo que seja satisfatrio. No entanto, possvel afirmar

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    241

    que eles possuem carter problemtico porque no se vislumbra uma resposta

    jurdica ou ento, do oposto, so detectadas inmeras possibilidades decisrias.

    Ocorre, todavia, que no parece ser esta a situao do caso aqui discutido.

    A denncia annima vedada expressamente na Constituio e em diversos

    dispositivos infraconstitucionais jamais declarados inconstitucionais. O texto

    constitucional, ademais, no estabelece diretamente qualquer exceo.

    Simplesmente expressa a vedao de anonimato. No h, ainda, uma clusula geral

    do tipo vedado o anonimato, salvo se ele for invocado contra o interesse, o poder

    ou a moral pblica. Isso no significa, todavia, que o legislador, sopesando bens

    constitucionais17, esteja impedido de estabelecer algum tipo de restrio nesta sede.

    Ora, a interveno estatal, neste campo sempre restritiva (SILVA, 2009, p. 65-125),

    ser legtima desde que justificada e preserve, numa perspectiva de

    proporcionalidade, o ncleo essencial do direito restringido (SILVA, 2009, p. 183-

    208). E, neste aspecto, a vedao do anonimato apenas confirmada pelas regras

    infraconstitucionais. Eventuais restries, destarte, poderiam ser colocadas pelo

    legislador infraconstitucional. Nada obstante, ao legislar sobre o dever de

    investigao (no caso do art. 143, da Lei n. 8112/90) e sobre o dever de autotutela

    (art. 53, da Lei n. 9784/99), no legislador ordinrio no colocou tais deveres como

    excees vedao de denncia annima.

    Tambm no h suporte ftico que autorize a concluso de que a vedao

    de denncias annimas, inevitavelmente, criar embaraos ao Poder Pblico no que

    tange com a anulao de atos ilegais. Poder criar algum custo, sim, na aplicao

    de sanes ao agente pblico que cometeu a ilegalidade, mas isso integra o

    chamado nus da democracia, da aplicao do devido processo legal.

    A importncia de valorizar as regras estabelecidas pela via da legislao

    democraticamente elaborada, destarte, surge como corolrio do Estado Democrtico

    de Direito, que tem o princpio da legalidade como seu pilar fundamental,

    imprescindvel para que os cidados tenham condies de prever as condutas lcitas

    ou no. Na lio de Jos Afonso da Silva:

    17

    Conferir Virglio Afonso da Silva, ao demonstrar que a atividade de restrio realizada pelo

    legislador ordinrio atividade de sopesamento em vista de um caso concreto: (2009, p. 140, nota

    de rodap n. 64).

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    242

    a lei efetivamente o ato oficial de maior realce na vida poltica. Ato de deciso poltica por excelncia, por meio dela, enquanto emanada da atuao da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os membros da sociedade saibam, de antemo, como guiar-se na realizao de seus interesses (SILVA, J., 1990, p.107).

    Para Jorge Reis Novais o princpio da legalidade consagra, ainda, a ideia da

    segurana jurdica, uma vez que sem a possibilidade, juridicamente garantida, de

    poder calcular e prever os possveis desenvolvimentos da actuao dos poderes

    pblicos susceptveis de repercutirem na sua esfera jurdica, o indivduo converter-

    se-ia, em ltima anlise com violao do princpio fundamental da dignidade da

    pessoa humana, em mero objeto do acontecer estatal (NOVAIS, 2004, p. 262).

    Com efeito, alm da possibilidade de antever as condutas juridicamente

    reguladas, a noo de segurana jurdica implica na faculdade de invocar o aparato

    jurdico como garantia de segurana social, atravs do instrumental dogmtico

    disponvel, formado pelas normas de direito objetivo integrantes da ordem legal e

    tambm por inmeros princpios de cariz constitucional, tais como o princpio

    legalidade, princpio ampla defesa, princpio da irretroatividade da norma, princpio

    da presuno de constitucionalidade das leis, entre outros.

    Esses princpios permitem que se vislumbre na ordem constitucional um

    bloco de direitos fundamentais que atentam para a necessria preservao da

    segurana jurdica, garantia de cidadania e previsivilidade jurdica, cuja origem

    remonta aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, estabelecidos no art. 5,

    incisos XXXVI a LXXIII, da Constituio da Repblica de 1988.

    Por certo, a ideia de segurana jurdica no pode servir para justificar

    qualquer direito positivo existente, mas sim deve acompanhar a concretizao da

    justia, em especial quando se trata de garantia fundamental do cidado, na forma

    assentada constitucionalmente.

    Na situao aqui desenhada, percebe-se que a aplicao autnoma do

    princpio da moralidade e da impessoalidade sem a devida contextualizao e

    adequao, contra regras inequvocas que vedam a denncia annima, acaba

    promovendo a violao de uma outra srie de princpios constitucionais de igual

    relevncia jurdica, como o contraditrio, a ampla defesa, a defesa da honra, da

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    243

    imagem e, dentre eles, tambm, a segurana jurdica, em especial manifestada

    atravs do princpio da presuno de constitucionalidade das leis.

    Por isso, em caso de se configurar uma aparente coliso, a aplicao de um

    princpio deve gerar menos danos ordem constitucional do que os prejuzos

    causados pela violao dos outros princpios. Na situao em comento, contata-se

    que a aplicao dos princpios da moralidade, da impessoalidade e da supremacia

    do interesse pblico, para afastar a aplicao das regras que vedam a denncia

    annima, acarreta grave prejuzo aos princpios acima declinados.

    Da porque preciso concordar que a constitucionalizao do direito, se

    entendida de modo apressado, pode acarretar alguns efeitos indesejveis que

    devem ser evitados.

    Ciente da problemtica, Luis Roberto Barroso aponta duas consequncias

    negativas da m compreenso desse fenmeno terico no direito brasileiro

    contemporneo: a primeira de natureza poltica, ocasionada pelo enfraquecimento

    do poder democrtico majoritrio e pelo desprestgio da legislao ordinria e a

    segunda de natureza metodolgica, pois a textura aberta e vaga de algumas normas

    constitucionais podem levar ao decisionismo judicial (BARROSO, 2009, p. 391-392).

    Com base nesse diagnstico, citado constitucionalista taxativo ao destacar

    a importncia de coibir tais efeitos. Notadamente em relao prtica do chamado

    decisionismo, diz ele:

    indispensvel que juzes e tribunais adotem certo rigor dogmtico e assumam o nus argumentativo da aplicao de regras que contenha conceitos jurdicos indeterminados ou princpios de contedo fluido. O uso abusivo da discricionariedade judicial na soluo de casos difceis pode ser extremamente problemtico para a tutela de valores como segurana e justia, alm de comprometer a legitimidade democrtica da funo judicial (BARROSO, 2009, p. 392).

    Para tanto, nos mesmos termos da linha de raciocnio e da proposta

    esboada no presente estudo, Luis Roberto Barroso prope dois parmetros

    metodolgicos a serem seguidos pelos intrpretes em geral, quais sejam:

    a) preferncia pela lei: onde tiver havido manifestao inequvoca e vlida do legislador deve ela prevalecer, abstendo-se o juiz ou o tribunal de produzir soluo diversa que lhe parea mais conveniente;

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    244

    b) preferncia pela regra: onde o constituinte ou o legislador tiver atuado, mediante a edio de uma regra vlida, descritiva da conduta a ser

    seguida, deve ela prevalecer sobre os princpios de igual hierarquia que por acaso pudessem postular incidncia na matria.

    Ora, transpondo essas lies para o caso em tela, verifica-se que as leis

    ordinrias federais que tratam da matria (i) contm manifestaes inequvocas e

    vlidas do legislador. Da a aplicao do critrio da preferncia da lei em detrimento

    da aplicao direta dos princpios na situao aqui analisada, mesmo porque,

    reforce-se, ele concretiza os princpios da separao dos poderes, da segurana

    jurdica e da isonomia (BARROSO, 2009, p. 393).

    Tambm visvel que deve ser aplicado o critrio da preferncia pela regra,

    vez que os dispositivos legislativos amplamente citados acima so vlidos e

    descrevem condutas especficas a serem seguidas, merecendo o privilgio da

    prioridade.

    Logo, portanto, pelo que se exps, a interpretao predominante do STJ,

    que admite denncia annima, ao no conceber a possibilidade de qualquer

    sopesamento ou relativizao da autotutela ou do dever de investigar: (i) tem tratado

    princpios como se regras fossem, (ii) tem autorizado a aplicao direta de princpios

    constitucionais abertos e indeterminados contra texto de lei e contra regra vlida no

    sistema, (iii) tem criado insegurana jurdica, (iv) tem cerceado a ampla defesa, na

    medida em que a no identificao do denunciante impede a eventual possibilidade

    de provar abuso de poder ou desvio de finalidade.

    Todas as crticas lanadas ao modelo de interpretao predominante no

    STJ, sob a justificao de aplicao autnoma dos princpios da moralidade,

    impessoalidade, interesse pblico etc., servem tambm para o modelo de

    interpretao predominante no STF.

    Com efeito, e de acordo com o que se demonstrou, as solues

    colecionadas na experincia do Supremo Tribunal Federal mostram que nesta Corte

    a questo vem sendo trabalhada a partir de uma dogmtica estritamente

    principiolgica. As solues apresentadas, normalmente, reportam-se necessidade

    de realizao de juzos de ponderao em cada caso concreto. Com efeito, na

    deciso acima citada, proferida no MS 24.369-DF, todo o raciocnio construdo a

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    245

    partir de enunciados constitucionais tomados pressupostamente como princpios.

    Quanto a isso, de partida, nenhum problema. H relevante produo terica que

    defende que direitos fundamentais so princpios18, e nada impede que este

    entendimento fique pressuposto no discurso. Na argumentao, perceba-se, o

    Ministro relator coloca, de um lado, a vedao do anonimato (art. 5, IV) e, de outro,

    legalidade (art. 5, II) e moralidade (art. 37, caput). Toda a construo da deciso leva

    em considerao uma abordagem genrica desses princpios e, reiteradas vezes,

    refere-se necessidade de resposta com base na ponderao, que seria mtodo

    racional de deciso. Ao fim a deciso nega a liminar e admite o processamento de

    denncia annima afirmando que, cite-se novamente:

    Na realidade, o tema pertinente vedao constitucional do anonimato (CF, art. 5, IV, in fine) posiciona-se, de modo bastante claro, em face da necessidade tico-jurdica de investigao de condutas funcionais desviantes, considerada a obrigao estatal, que, imposta pelo dever de observncia dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna imperioso apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse pblico. No por outra razo que o magistrio da doutrina admite, no obstante a existncia de delao annima, que a Administrao Pblica possa, ao agir autonomamente, efetuar averiguaes destinadas a apurar a real concreo de possveis ilicitudes administrativas... ... Esse entendimento tem o beneplcito da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal.

    O curioso, com a devida vnia, perceber que toda a fundamentao

    construda no voto poderia conduzir, ao final, a uma concluso absolutamente

    diferente. Ademais, em nenhum momento o voto tece consideraes s disposies

    legais e regras que vedam expressamente o anonimato. Todo o raciocnio se d no

    plano da normatividade constitucional, com total abstrao das opes do legislador

    ordinrio.

    Na deciso proferida no julgamento do Inqurito n 1.957-PR, o STF, atravs

    de julgamento levado a efeito no Plenrio, deixou evidente que o anonimato

    postura afrontosa ao Estado de Direito, indigna de acolhimento ou defesa,

    desprovida inclusive da qualidade jurdica documental que eventualmente pretenda

    18

    Conferir, exemplificativamente: Figueroa. In: Souza Neto; Sarmento, p. 3-34.

    No mesmo sentido: Silva (2009, p. 108-113), ao defender a teoria do suporte ftico amplo.

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    246

    ter (quando escrita ou reduzida a termo). Contudo ela apta a deflagrar

    procedimento de mera averiguao da verossimilhana se portadora de informao

    dotada de um mnimo de idoneidade. A delao annima, destarte, seria postura

    repudiada em nosso direito constitucional pelo simples fato de colocar em risco a

    integridade do sistema de direitos fundamentais.

    Ou seja, com pequenas nuances entre os Ministros, firmou-se tese no

    sentido de que a delao de autoria desconhecida no instrumento dotado de

    juridicidade, pois se constitui num desvalor em face do prprio ordenamento jurdico

    que o repudia. A despeito de se tratar de um desvalor, caso a denncia annima

    releve indcios confiveis dos fatos por ela encaminhados, no pode o aparelho

    estatal que recebe a informao simplesmente ignorar a notitia. Assim, um juzo de

    ponderao autorizaria a superao desse desvalor para que a investigao da

    ilicitude seja eventualmente levada a efeito com discrio e cautela.

    Conclui-se, mais uma vez: apesar da lei, apesar da regra, no plano

    principiolgico, o juzo de ponderao permite o afastamento das decises do

    legislador que, por sua vez, tambm so juzos de sopesamento entre bens

    constitucionais, todavia realizados em seara diversa.

    Da, ento, o resultado prtico da jurisprudncia do STF supera uma das

    crticas antes delineada jurisprudncia do STJ: no STF a autotutela, a moralidade,

    a legalidade etc., ao serem tratados como princpios, no so absolutizados.

    Contudo o entendimento ainda permite o afastamento de regras e de opes

    legislativas que teriam preferncia de incidncia na soluo do caso concreto.

    IV CONCLUSO

    Apesar do entendimento fixado no mbito dos tribunais superiores, como se

    demonstrou, o presente estudo defende a tese de que a denncia annima, ao

    menos no campo de processos disciplinares, vedada em nosso sistema jurdico. A

    Constituio, expressamente, veda o anonimato. A legislao infraconstitucional,

    revestida de presuno de legitimidade, por sua vez, tambm veda, em mais de um

    dispositivo e em mais de um diploma, a denncia annima.

  • Denncia annima em processo disciplinar...

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    247

    Se o problema for tratado no plano de regras, os dispositivos que se

    referem autotutela e ao dever de investigar no substanciam excees vedao

    de denncia annima.

    O dever de investigar subsiste desde que a denncia no seja proveniente

    de delao annima. A lei cria, primeiro, o dever de investigar e, em seguida veda a

    denncia annima. Assim, at mesmo pela forma como se deu a construo

    legislativa no seio da Lei 8112/90, no se trata de vedao de denncia annima

    que pode ser excepcionada em vista do dever de investigar, mas o que se tem

    dever de investigar, exceto se a denncia for annima.

    A previso legislativa de autotutela eventualmente aplicvel aos processos

    disciplinares, decorrente de aplicao subsidiria da Lei n. 9.784/99, autorizada

    ou imposta, melhor dizendo, pois a lei usa o termo dever para a anulao dos atos

    eivados de ilegalidade. A autotutela aplica-se, portanto, para nulificar o produto da

    atuao do agente poltico, o ato ilegal. A punio disciplinar do agente que

    cometeu a ilegalidade coisa distinta. Este intento possvel, mas se submete a um

    regime jurdico em que a autotutela encontra limite em face do devido processo

    legal, previsto na Constituio e delineado na legislao infraconstitucional, que no

    aceita a denncia annima nesta sede punitiva.

    Ainda que se considere a discusso no plano principiolgico, deveras, h

    que se reconhecer que vrias solues, de mrito e metodolgicas, seriam

    possveis.

    Assim, na perspectiva metodolgica, pressupondo os riscos, os perigos

    subjacentes a uma exacerbada principiologizao, parece necessrio tomar-se o

    cuidado de dar preferncia para a aplicao dos princpios atravs da mediao

    legislativa, manifestando, aqui, o estudo, uma clara opo pela primazia da regra,

    produto do legislador democrtico, desde que, como sucede no caso em tela, o

    sopesamento legislativo no esteja revestido de flagrante inconstitucionalidade e

    respeite, portanto, os pressupostos constitucionais exigidos para as medidas de

    restrio.

    Todavia, ainda no campo metodolgico, nada obstante os riscos que a

    anlise pode trazer neste plano dos princpios, no de destitudo de fundamentos

    slidos o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, ao conduzir o debate como

  • Paulo Ricardo Schier

    Anais do IX Simpsio Nacional de Direito Constitucional

    248

    se o problema fosse, sempre, uma questo de pura coliso entre princpios. Neste

    caso, ento, poder-se-ia admitir o sopesamento judicial mesmo contra as regras

    legais dotadas de constitucionalidade. Porm este procedimento, sem dvida,

    demandar um nus argumentativo maior, principalmente no que tange com a leitura

    dos bens concretamente envolvidos na coliso.

    A prevalecer esta linha de interpretao, que no a que se defende no

    presente texto, seria legtimo sustentar, nas situaes em que restaria autorizada, no

    caso concreto, a denncia annima, a abertura do processo disciplinar ficasse

    condicionada a uma prvia instaurao de sindicncia com o fim de averiguar alguns

    elementos que indiquem um mnimo de seriedade da denncia annima. Ou seja,

    em tais hipteses o processamento deveria, sempre, ficar condicionado prvia

    instaurao de investigao preliminar.

    Afinal, certo que a instaurao de sindicncia no providncia obrigatria

    para todos os casos. No entanto, diante de situaes em que no existam elementos

    suficientes para a criao da Portaria de instalao do processo disciplinar, impe-se

    a instaurao de sindicncia para que sejam reunidos estes elementos bsicos.

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