PATRICIA MANENTE MELHEM

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PATRICIA MANENTE MELHEM

DA INAPLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA NO DIREITO PENAL

CURITIBA

2008

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO MESTRADO PATRICIA MANENTE MELHEM

DA INAPLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA NO DIREITO PENALDissertao apresentada como requisito parcial para outorga do ttulo de mestre no Programa de Ps-Graduao em Direito Mestrado. Universidade Federal do Paran. Prof. Orientador: Dr. Luiz Alberto Machado

CURITIBA 2008

TERMO DE APROVAO

PATRICIA MANENTE MELHEM

DA INAPLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA NO DIRETO PENAL

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paran como requisito parcial para outorga do ttulo de mestre em Direito e aprovada pela seguinte banca examinadora: Banca examinadora:

Orientador:

Prof. Dr. Luiz Alberto Machado

Prof. Dr. Gilberto Giacia

Prof. Dr. Joo Gualberto Garcez Ramos

Curitiba, OUT/2008.

Quem fiel nas pequenas coisas tambm fiel nas grandes, e quem injusto nas pequenas grandes. tambm injusto nas grandes. (Lucas 16,10)

Para meus pais Cesar e Josane, e meu irmo Cesar, primeiros e constantes modelos na busca das coisas do alto. Para meus avs Miguel e Vitrio, Zita e Neusa, e com eles cada membro da famlia que tanto amo e de que me orgulho.

AGRADECIMENTOS Ao concluir este trabalho, em que tantos foram os que me acompanharam, agradeo: A Paulo Roberto Faucz da Cunha, Renato Ges Penteado Filho e Luiz Vergilio Dalla-Rosa, amizades que as oportunidades profissionais me proporcionaram, cada um a sua maneira fez das lies de Direito, lies para a minha vida. Faculdade Campo Real, na pessoa de Antonio Cezar Ribas Pacheco, pela confiana em mim depositada, permitindo que eu faa todos os dias o que verdadeiramente amo: lecionar. Universidade Federal do Paran, representada pelo Prof. Luiz Alberto Machado, assim expressando tambm minha gratido a todos os nossos demais professores. Aos colegas de trabalho e de mestrado, Adri, Mari, Ju, Ana, Guilherme e Mauricio, cada conversa nossa me faz uma pessoa e uma professora melhor. Aos companheiros no Movimento de Cursilhos de Cristandade, cada vida um tesouro inestimvel na construo da minha vida. A todos os demais e felizmente numerosos amigos, representados aqui por Amlia Cristina Arajo, Tatiane Furtoso Imhoff e Thais Regina De George, na certeza de que conto com parceiros para as alegrias e as dificuldades de cada dia. A Deus, a quem almejo que minha vida seja expresso diria de gratido. Muito obrigada.

SUMRIO INTRODUO ......................................................................................................09 1 O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA ...............................................................15 1.1 ANTECEDENTES TERICOS .......................................................................16 1.2 BREVE HISTRICO ......................................................................................23 1.3 APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA E SEUS EFEITOS .......26 1.4 INSTITUTOS RELACIONADOS .....................................................................40 1.4.1 Princpio da Subsidiariedade e Fragmentariedade do Direito Penal ............41 1.4.2 Princpio da Interveno Mnima .................................................................43 1.4.3 Irrelevncia Penal do Fato ...........................................................................44 1.4.4 Princpio da Adequao Social.....................................................................47 2 TIPICIDADE .. ....................................................................................................51 2.1 O CONCEITO DE CRIME ...............................................................................52 2.2 A AO TPICA ..............................................................................................55 2.3 ELEMENTOS DO TIPO ..................................................................................66 2.4 TIPO E TEORIAS DA CONDUTA ..................................................................73 2.4.1 A Ao Humana ...........................................................................................74 2.4.2 Teoria Causal ...............................................................................................76 2.4.3 Teoria Normativa ou Neoclssica ................................................................78 2.4.4 Teoria Finalista.............................................................................................79 2.4.4.1 Teoria da imputao objetiva ...................................................................86 2.4.5 Teoria Pessoal ou Sintomtica ....................................................................87 2.4.6 Teoria Social ................................................................................................88 2.4.7 Teoria Negativa ............................................................................................89 2.5 O TIPO E A PROTEO DE BENS JURDICOS ...........................................90 2.5.1 Bem jurdico e desvalor da conduta versus desvalor do resultado ..............92 3 DA INAPLICABILIDADE DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA .................105 3.1 DA INCOMPATIBILIDADE COM A TEORIA FINALISTA DA AO .............105 3.2 ANLISE ECONMICA DO DIREITO ..........................................................110 3.3 OUTROS INSTITUTOS APLICVEIS ...........................................................115 3.3.1. Medidas Despenalizadoras .......................................................................118 3.3.1.1 Do procedimento da lei 9099/95 e relacionadas ....................................119 3.3.1.2 Penas restritivas de direitos ...................................................................126 3.3.1.3 Suspenso condicional da pena .............................................................129 3.3.1.4 Regimes de cumprimento de pena privativa de liberdade: regime progressivo .........................................................................................................132 3.3.1.5 Livramento condicional ...........................................................................135 CONSIDERAOES FINAIS ............................................................................138 REFERNCIAS...................................................................................................142

RESUMO

Por influncia de estudos criminolgicos, notadamente das propostas das Teorias do Labelling Approach e da Criminologia Crtica, verificando os efeitos negativos que o sistema penal pode desencadear sobre o indivduo e na sociedade, surgem as tendncias denominadas Direito Penal Mnimo, englobando diversos princpios e alteraes legislativas. So exemplos: a criao dos Juizados Especiais Criminais e mecanismos que lhe so prprios, como a transao penal e a suspenso condicional do processo, alm da nfase no respeito a princpios tais como a Interveno Mnima e Adequao Social, na criao e aplicao de tipos penais. Entre tais propostas por uma retrao do mbito de atuao do Direito Penal, encontra-se o Princpio da Insignificncia. Da aplicao de tal princpio, decorre a atipicidade de condutas que no ofendam relevantemente o bem jurdico protegido pela norma, bem cuja defesa, na opinio de muitos, o principal escopo do Direito Penal. Nestas situaes, no estaria presente a tipicidade material da conduta. Ocorre, porm, que se faz necessria uma anlise mais atenta da aplicao de tal princpio, primeiramente, por no haver critrios claros quanto insignificncia de uma conduta. Em segundo lugar, porque da anlise de outros instrumentos legislativos atualmente disponveis em nosso ordenamento jurdico, possvel retirar solues mais adequadas aos casos em que a leso causada seja de menor relevncia. E por fim, impe-se a reviso dos fundamentos de aplicao do Princpio da Insignificncia, considerando-se principalmente a adoo do modelo finalista de conduta, evidente em toda a legislao penal brasileira, que no se coaduna com um mecanismo que, tal como o princpio da insignificncia, d maior enfoque ao desvalor do resultado, que sempre causal, do que ao desvalor da conduta, esta sim movida por uma finalidade.

Palavras-chave: Direito Penal Mnimo. Princpio da Insignificncia. Teoria Finalista. Teoria do Tipo.

ABSTRACT

Influenced by Criminologic studies, mostly from the Labelling Approach and Critical Criminology proposals, considering the negative effects that the criminal system may cause in the individual and in the society, appear the Minimal Criminal Law tendencies, including many principles and law changings, such as the Special Criminal Justice and it's proper instruments, like probation and conciliation, besides the emphasis on principles like Minimal Interference and Social Appropriation. Among those propositions is the Insignificance Principle. From the application of the principle, comes the fact that the behaviour wont match the legal descriptions cause of the smaller damage that it caused to the legally protected interest, whose defense is the Criminal Law major job. In those cases, the behavior wouldn't be substantialy typical. However, its essential a more careful analisys of the application of the principle, firstly because its lack of criteria and second, because from the analysis of other legal instruments currently avaiable, its possible to find more accurate solutions to the cases of smaller injuries. And finally, its important to review the aplication of the principle, considering the adoption of the finalism as the model of behaviour, clearly adopted in brazilian criminal law, wich doesnt fit with a mechnism that considers most the disapproval of the results, that are always causal, then the disapproval of the behaviour, wich always have goals.

Key-words: Minimal Criminal Law. Insignificance Principle. Criminal Behaviour Theories.

INTRODUO

O estudo do Direito Penal e do Direito em geral evidencia que desde que o homem vive em sociedade sempre houve conflitos, sendo necessrio encontrar meios adequados para administrar tais situaes. Assim que se passaram os perodos caracterizados pela vingana, at a monopolizao por parte do Estado, do direito de punir aqueles que de alguma forma prejudicassem a harmonia social. A partir do momento em que se inicia uma reflexo filosfica mais aprofundada sobre as razes e os limites do jus puniendi vo surgindo e sendo aperfeioadas diversas teorias sobre tal temtica, procurando os fundamentos da possibilidade do Estado intervir de alguma forma nos direitos e na esfera individual de um cidado. Paulatinamente foi sendo construdo o conceito de tipo, como conseqncia do Princpio da Legalidade, tendo seu contedo repensado pelas Teorias da Conduta de maior influncia em cada momento histrico. Com o desenvolvimento e mudanas enfrentadas pela sociedade, tambm o crime vai revelando faces cada vez mais diversas e complexas. As mudanas econmicas e nas relaes de trabalho, bem como as profundas diferenas culturais e nos padres morais do mundo moderno, influenciam todas as relaes pessoais e tambm as escolhas tomadas pelo Estado na tentativa de promover o bem comum e conservar uma razovel paz. Neste contexto, a Criminologia foi adquirindo papel cada vez mais relevante. Atravs de seus mtodos de observao dos fatos, sendo uma cincia do mundo do ser, procura dar dogmtica jurdico-penal as informaes necessrias para regular o mundo do dever ser. Surgem ento diferentes posies quanto atitude a ser tomada pelo Estado em face do crime e do criminoso. Alguns, considerando o aumento da criminalidade e, principalmente, da criminalidade violenta, pregam um chamado Direito Penal do Inimigo ou do Terror, incentivados pela opinio pblica que levada a uma experincia virtual do crime, sedenta por vingana, mesmo sem ter sido ainda vtima de qualquer agresso. Assim que surgem as j excessivamente comentadas polticas de Tolerncia Zero, com menor ou maior sucesso em diversos pases.

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Por outro lado, afirmando que o crime no um fato isolado, mas fruto da convergncia de diversos fatores pessoais e do contexto social do criminoso, outros vo apregoar que necessrio limitar a atuao do Direito Penal apenas a agresses realmente intolerveis para o controle social. Conforme GIMBERNAT ORDEIG:Que o Direito Penal seja imprescindvel no significa, certamente, que seja imprescindvel em sua forma atual. [...] Porque a aplicao do aparato punitivo supe uma interveno to radical na vida do cidado, deve-se exigir do Estado o mais excelente, delicado e cuidadoso manejo da fora destrutiva da pena.1

So propostas de Direito Penal Mnimo, que asseveram que o Direito Penal cumpre apenas um papel simblico dentro da sociedade, prestando-se principalmente a consolidar diferenas e conflitos de classes, como instrumento de opresso de classes consideradas exploradas, para que no se rebelem e subvertam a ordem das coisas e a diviso do poder, sendo esta a base do pensamento da chamada Criminologia Crtica. Ainda, apoiados em teorias criminolgicas como o Labelling Approach, afirma-se que a resposta penal do Estado no exerce qualquer efeito preventivo na sociedade e sequer sobre o prprio condenado, servindo a punio apenas como ingresso a uma verdadeira carreira desviante. Da a necessidade de descriminalizao, desprocessualizao, despenalizao e desinstitucionalizao, que possvel verificar em muitos dispositivos legais atualmente vigentes e em posicionamentos doutrinrios e jurisprudenciais. Entre todas estas propostas encontra-se o Princpio da Insignificncia, como causa de excluso da tipicidade de fatos que lesionem minimamente um bem jurdico protegido pelo Direito Penal. Os princpios vm adquirindo papel cada vez mais relevante no Direito, no diferente no Direito Penal. Tem-se que princpios no so meras sugestes ao aplicador do Direito, sendo possvel atender pretenses com fundamento exclusivo neles. Quando aplicados positivamente do respostas aos casos concretos, como faz o Princpio da Insignificncia, e, numa tica negativa, impedem a entrada no ordenamento jurdico de normas que com ele no se compatibilizem, como o caso da Interveno Mnima.

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ORDEIG, Enrique Gimbernat. O futuro do direito penal. Barueri: Manole, 2004. p. 22.

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Princpios, diferentemente do que ocorre com as leis, so mais abertos, plsticos, tm assim possibilidade de se adequar aos mais diversos casos concretos. As mudanas constantes da sociedade desafiam o jurista e o operador do direito. Vive-se em sociedade e dela no se pode esquecer no labor jurdico dirio. Porm, tambm no se pode olvidar as bases cientficas do Direito Penal, seus fundamentos e finalidades. Tudo o que permite ao direito uma maior dinamicidade, maleabilidade, facilidade para adequar-se s demandas sociais, exige dos seus operadores ainda maior responsabilidade no exerccio de seus misteres. Excluir a aplicao de princpios da prtica diria de promotores, advogados e juzes seria os transformar em burocratas, atados letra da lei, comprometidos apenas com a sua obedincia e repetio. No entanto, ao mesmo tempo, todas estas propostas devem ser muito bem fundamentadas, visando no apenas necessidades e interesses momentneos, mas tendo em vista o futuro da sociedade em que atuam o criminoso e seus julgadores. Em alguns aspectos, a fundamentao (doutrinria e jurisprudencial) de todas estas propostas so muito mais sociolgicas, baseadas em estatsticas e meras hipteses que podem ou no ser comprovadas, e menos jurdicas e cientficas. No raro encontrarmos defensores da idia de que se o Estado falhou em suas obrigaes em proporcionar uma vida digna e prover as necessidades bsicas de seus cidados, no pode se fazer presente apenas quando este acaba reagindo a tal situao, atravs do cometimento de crimes. Nesta linha de raciocnio toda sociedade mais responsvel pelo crime do que o seu prprio autor. Pensando de tal forma, muitas vezes possvel chegar concluso apresentada por FOUCAULT: indecoroso ser passvel de punio, mas pouco glorioso punir.2 Tal argumentao encontra ampla aceitao, at mesmo porque uma superficial observao da realidade efetivamente demonstra que h imensas diferenas sociais e inclusive diferena na atuao de todo o sistema em relao a determinadas pessoas. Dificilmente se encontra alguma opinio contrria a isto. Porm, esta abordagem do problema, aos poucos, parece ter afastado os

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 19 ed. Petrpolis: Vozes, 1987.

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estudiosos do Direito Penal do verdadeiro ncleo dos seus estudos, qual seja, definir o que crime, sendo que uma vez definido isto, est legitimada a atuao do Estado em face dele. Assim que a principal proposta do presente trabalho deter-se sobre o conceito de crime, mais especificamente sobre o seu conceito analtico e mais ainda sobre o primeiro de seus elementos, a tipicidade, j que ela que atingida quando da aplicao do Princpio da Insignificncia. Verifica-se que a questo sobre qual a qualidade que deve ter um comportamento para que seja objeto da punio estatal ser sempre um problema central, no somente para o legislador, mas, tambm, para a Cincia do Direito Penal.3 Heleno Cludio Fragoso, autor que ser diversas vezes mencionado no presente estudo, afirma:O estudo da objetividade jurdica do delito constitui indagao fundamental e importantssima para determinao de seu conceito e de sua essncia. Trata-se de saber qual o sentido substancial da ao delituosa; que em ltima anlise, atingido, atravs do fato punvel, ou, ainda, qual o objeto da 4 tutela jurdico-penal.

necessrio ento voltar a estas que so as indagaes mais bsicas e fundamentais do Direito Penal, sem no entanto serem as mais simples. Procurouse consultar os mais variados autores, dando nfase a aqueles que podem ser considerados os construtores de toda a base sobre a qual est fundado o Direito Penal Brasileiro, atravs das variadas correntes que o influenciaram, como o conceito analtico de crime e de tipo (delito-tipo) em Ernst von Beling e a Teoria Finalista de Hans Welzel. o prprio WELZEL, que, logo ao iniciar uma de suas obras, denominada Direito Penal, afirma a necessidade de se ir s bases filosficas do direito penal, para possibilitar um tratamento fundamentado sobre a ao humana:O direito penal a parte do ordenamento jurdico que determina as aes de natureza criminal e as vincula com uma pena ou medida de segurana. [...] uma teoria do atuar humano justo e injusto, de maneira que suas 5 ltima razes chegam at os conceitos bsicos da filosofia prtica.

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ROXIN, Claus. A proteo de bens jurdicos como funo do direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 11. 4 FRAGOSO, Heleno Cludio. Objeto do crime. Disponvel em: http://www.fragoso.com.br/cgibin/heleno_artigos/arquivo60.pdf Acesso em 13 de maro de 2008. 5 WELZEL, Hans. Direito penal. Campinas: Romana, 2003. p. 27.

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Neste sentido, parte-se tambm de reflexo feita por Winfried HASSEMER sobre o Direito Penal Moderno. Entende ele que tal direito:[...] se afasta dos conceitos metafsicos e prescreve a si mesmo uma metodologia emprica; realiza a sua execuo pelo empirismo, especialmente, no conceito de orientao das conseqncias; favorece, por isso, mais os conceitos preventivos do que os conceitos relativos teoria da retribuio; tenta vincular o legislador penal e suas decises a princpios como, por exemplo, ao tentar tornar controlvel a proteo dos bens 6 jurdicos.

Mais adiante conclui: Por isso, eu considero ter chegado o momento no qual os desenvolvimentos modernos no direito penal devem ser novamente sintonizados s tradies no direito penal. com esta mentalidade que se iniciou a pesquisa cujo resultado ora se apresenta, buscando conciliar as propostas mais recentes de um Direito Penal Mnimo s tradies que fundamentam este sistema jurdico. Para tanto, inicia-se com a apresentao do Princpio da Insignificncia, mencionando as fontes tericas que inspiraram sua criao, notadamente a teoria estadunidense do Labelling Approach e a Criminologia Crtica ou Radical. Fala-se ento da adoo do princpio em diversos pases e da forma como comeou a aparecer em decises e posicionamentos doutrinrios brasileiros. Sero tratados os critrios para aplicao do princpio (ou a ausncia deles), e os efeitos que dele decorrem, principalmente a excluso da tipicidade. Conseqentemente, o segundo captulo abordar a tipicidade penal, partindo de uma breve abordagem do conceito de crime, passando ao tpica e concepo que dela e dos elementos do tipo tm cada uma das Teorias da Conduta. Por fim, no terceiro e derradeiro captulo, ser apresentada a crtica ao Princpio da Insignificncia e as razes porque se prope a sua inaplicabilidade: primeiramente por existirem outros meios jurdicos para se responder s condutas sem delas retirar o carter criminoso e, mais importante, porque primar pela anlise do resultado para averiguar se um fato crime ou no, contraria os fundamentos do ordenamento jurdico-penal brasileiro. Desde logo se assevere que a crtica ao Princpio no equivale a defender um Direito Penal Mximo, que faa uso da sua fora contra qualquer pequena infrao, mas defende-se que esta considerao cabe ao Princpio da Interveno Mnima e outros, tendo em conta a subsidiariedade e fragmentariedade6

HASSEMER, Winfried. Direito penal libertrio. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 190.

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do Direito Penal. Porm, sendo a conduta escolhida pelo legislador como penalmente relevante, o desvalor da conduta que determina sua punio e no apenas o desvalor do resultado da mesma. o que se pretende demonstrar a seguir.

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1 O PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA Nesta primeira parte do trabalho, ser abordado o Princpio da Insignificncia, para ento, em momento oportuno, ser tratada com mais nfase sua aplicabilidade. Causa de excluso da tipicidade pela pouca lesividade concreta da conduta, conforme se verifica na doutrina e em diversos julgados de nossos tribunais superiores, o princpio fruto de reflexes sobre o porventura simblico papel desempenhado pelo Direito Penal no combate criminalidade, oriundo de propostas da Criminologia Crtica que h muito tempo j deixaram de ser meramente tericas. A insignificncia no tema de interesse meramente acadmico mas atinge a prtica diria de todos os que trabalham com o Direito Penal. Retomando o brocardo romano do nullum crimen sine injuria, uma das maiores dificuldades do princpio encontrar seu conceito e critrios de aplicao, que ficariam relegados ao bom senso do aplicador, ameaando a segurana jurdica. Conforme Mauricio Antonio Ribeiro LOPES:Nenhum instrumento legislativo ordinrio ou constitucional o define ou o acata formalmente, apenas podendo ser inferido na exata proporo em que aceitam limites para a interpretao constitucional e das leis em geral. de criao exclusivamente doutrinria e pretoriana, o que se faz justificar estas como autnticas fontes do Direito.7

Da que vrios autores apresentam diferentes argumentos em defesa do princpio e diferentes limites para sua aplicao. Alguns o defendem meramente fundamentados na sobrecarga de trabalho dos juzes e tribunais, que, assim to assoberbados, no deveriam perder tempo com casos penais que giram em torno de valores aqum dos prprios custos do processo. o que afirma Abel CORNEJO: aquele que permite no ajuizar condutas socialmente irrelevantes, garantindo no s que a justia se encontre mais desafogada, ou bem menos sobrecarregada, permitindo tambm que fatos insignificantes no se 8 erijam em uma sorte de estigma prontuarial para seus autores.

LOPES, Mauricio Antonio. Princpio da insignificncia no direito penal: anlise luz da Lei 9.099/95. p. 45. 8 CORNEJO, Abel. Apud SILVA, Ivan Luiz. Princpio da insignificncia no direito penal. Curitiba: Juru, 2004. p. 94.

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Contra o princpio, h quem levante a crtica de que a aplicao do mesmo equivaleria a um incentivo para a prtica de pequenos delitos. No o objetivo do presente trabalho satisfazer-se com assertivas como estas, frutos que so apenas de meras opinies, e no de verdadeiro conhecimento que possa ser considerado cientfico, aps a confrontao com teses opostas e depurao em contraste com a dogmtica construda ao longo de dcadas e com teorias que ainda hoje orientam todo o ordenamento jurdico-penal brasileiro, tais como a Teoria Finalista da Ao. No a inteno da presente pesquisa investigar a natureza e normatividade do Princpio da Insignificncia, ou nomatividade dos princpios em geral. Pretende-se apresentar as origens tericas e histricas do princpio, verificando assim para que finalidades foi criado, abordando-se ento os critrios para sua aplicao e os efeitos que dela decorrem.

1.1 ANTECEDENTES TERICOS Antes de adentrarmos diretamente temtica do Princpio da Insignificncia e considerando ser o mesmo decorrncia de reflexes da Criminologia chamada Crtica ou Radical, necessria se faz num primeiro momento uma breve anlise desta vertente criminolgica, verificando de que pressupostos parte at chegar proposta do Direito Penal Mnimo e, dentro dela, do Princpio da Insignificncia. Em face de uma sociedade cada vez mais violenta, do crescimento de setores da criminalidade como o crime do colarinho branco e o crime organizado, a Criminologia passou a adquirir relevo dentro das Cincias Criminais, destacando-se paulatinamente do Direito Penal, ostentando h algum tempo o status de cincia autnoma. Relevante sua contribuio e interao com a Poltica Criminal e a Dogmtica Jurdico-Penal, auxiliando nas opes estatais no combate criminalidade e no aperfeioamento do ordenamento jurdico-penal, aproximando ambos da sociedade, sendo este modelo integrado das cincias criminais, a

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Enciclopdia das Cincias Criminais como designou Von Liszt9, condio necessria para a construo de um Direito Penal Cidado. Neste ponto intervm Klaus TIEDEMANN, afirmando que a descrio legal de todos os tipos penais por meio de circunstncias atenuantes ou agravantes apenas pode ser efetuada de forma generalizante e abstrata. Por isso, quase inevitvel que o direito siga, claudicante, atrs das transformaes sociais.10 De acordo com ROXIN, o penalista deve conhecer e levar em considerao os resultados de pesquisa da Criminologia. Eles no so, em si, Direito Penal, mas constituem os pressupostos de Estado de Direito dos princpios penais.11 Este papel da Criminologia h muito reconhecido pelo legislador brasileiro, como se pode inferir a partir da Exposio de Motivos da Parte Especial do Cdigo Penal (Decreto-lei n. 2.848 de 1940), que afirma:Com o atual Cdigo Penal nasceu a tendncia de reform-lo. A datar de sua entrada em vigor comeou a cogitao de emendar-lhe os erros e falhas. Retardado em relao cincia penal do seu tempo, sentia-se que era necessrio coloc-lo em dia com as idias dominantes no campo da criminologia e, ao mesmo tempo, ampliar-lhe os quadros [...]12.

Inclusive o projeto foi objeto de anlise de conferncias de criminologia, conforme aduz a mesma exposio de motivos. Diante ento da crescente importncia deste setor das Cincias Criminais, e analisando algumas das diversas cincias que gradualmente foram delineando o objeto especfico da Criminologia, Anbal BRUNO avalia que:A sociedade criminal toma o crime como fato da vida da sociedade, estudando as suas manifestaes, as condies da estrutura e do processo social que influem sobre a criminalidade e as regras que a sociedade lhe ope. No o crime como forma de comportamento de determinado indivduo, mas como expresso de certas condies do grupo social. Nessas cincias encontra o Direito Penal uma fonte de renovao, que o impede de estagnar-se em uma posio distante da vida, e, portanto, dos 13 fins prticos a que tem de dirigir-se .

apud FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Questes fundamentais do direito penal revisitadas. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 22. 10 ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introduo ao direito penal e ao direito processual penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 11 ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introduo ao direito penal e ao direito processual penal. p. 4. 12 BRASIL. Cdigos penal, processo penal e constituio federal. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 261. 13 BRUNO, Anbal. Direito penal parte geral. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 56-57.

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Paulatinamente vem a Criminologia despertando maior interesse nos estudiosos das cincias criminais, o que j produziu reformas prticas, tanto de legislao quando de mentalidade, que podem ser atribudas s concluses de algumas das mais importantes vertentes criminolgicas, tais como a Teoria do Labelling Approach (Reao Social/ Etiquetamento) e a Criminologia Crtica ou Radical. Considerando no ser o objetivo do presente trabalho dedicar-se profundamente ao estudo da Criminologia e todas as diversas teorias e correntes que a integram, no se far uma abordagem mais cuidadosa sobre as primeiras Escolas Penais (Clssica e Positiva), passando-se diretamente chamada sociologia criminal, formada a partir do sculo XIX, responsvel pela gradual construo da chamada Criminologia Crtica e de abordagens da reao social, como o Labelling Approach. Segundo tais vertentes tericas:A abordagem do crime que propunham, como um fenmeno coletivo, sujeito s leis do determinismo sociolgico e, portanto, previsvel, apontava para a sociedade como causadora do criminoso; ela conteria em si mesma os germes do crime, e o criminoso apenas o executaria, como um instrumento14.

Afirmando esta influncia da sociedade no comportamento criminoso, fundamentam suas concluses principalmente em estatsticas, o que preponderou nos estudos criminolgicos principalmente nos Estados Unidos da Amrica, que, aos poucos, foram vivenciando o aumento da criminalidade (principalmente a do colarinho branco) ao mesmo tempo em que crescia o bem-estar social. Desta forma, desvinculam-se da idia de que o crime necessariamente estaria relacionado s classes menos favorecidas, mas sim com uma sociedade excludente, em que o Direito seria usado como instrumento de manuteno da diviso de poder. Assim que se vai construindo o conceito criminolgico de crime, que deixaria de ser apenas um problema jurdico, decomposto nos elementos da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, sendo visto sim como um problema social.

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SMANIO, Gianpaolo Poggio. Criminologia e juizado especial criminal. So Paulo: Atlas, 1997. p. 17.

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Uma das principais correntes nesta tendncia a Teoria do Labelling Approach, um movimento surgido nos anos 196015, considerado um marco da chamada teoria do conflito. Explica SHECAIRA:A idia de encarar a sociedade como um todo pacfico, sem fissuras interiores, que trabalha ordenadamente para a manuteno da coeso social, substituda, em face de uma crise de valores, por uma referncia que aponta para as relaes conflitivas existentes dentro da sociedade e que estavam mascaradas pelo sucesso do Estado de Bem Estar Social. As questes centrais do pensamento criminolgico, a partir desse momento histrico, deixam de referir-se ao crime e ao criminoso, passando a voltar sua base de reflexo ao sistema de controle social e suas conseqncias, 16 bem como ao papel exercido pela vtima na relao conflitual.

Verifica-se ento que o foco dos estudiosos da Criminologia deixa de ser apenas o crime e seu autor, mas passa a incluir notadamente o sistema de controle, entendido como conjunto articulado de instncias de produo normativa e de estruturas de reao da sociedade17. Uma das concluses que o prprio sistema oficial de combate criminalidade ao mesmo tempo causa de tal fenmeno, em virtude de seu efeito estigmatizante. Um indivduo, ao receber o rtulo oficial de criminoso, tenderia a mergulhar neste papel (role engulfment), aprofundando-se na criminalidade. Passa-se ento anlise da delinqncia secundria, aquela oriunda da reao das instncias oficiais de controle social, a partir de seu poder seletivo e das chamadas cerimnias degradantes a que so expostos os escolhidos do sistema, que acabam assim ingressando em carreiras delitivas. Verificando-se os efeitos negativos da interveno penal, uma das mais relevantes contribuies do Labelling Approach a recomendao de uma prudente no-interveno, que decorre da necessidade de repensar o ordenamento penal no contexto de uma sociedade aberta, democrtica e pluralista, ampliando as margens de tolerncia para a superao dos conflitos e tenses sociais.18 Essa prudente no interveno foi acolhida com o nome de Direito Penal Mnimo. A proposta de Direito Penal Mnimo ter diversas repercusses legais, como por exemplo: regime progressivo de cumprimento de pena privativa de15

H. Becker considerado o fundador dessa vertente criminolgica, atravs da publicao de sua obra Outsiders (1963). Conforme SMANIO, Gianpaolo Poggio. p. 21. 16 SHECAIRA, Srgio Salomo. Criminologia. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 271. 17 SMANIO, Gianpaolo Poggio, Criminologia e juizado especial criminal. p. 20. 18 SHECAIRA, Srgio Salomo. Criminologia. p. 310.

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liberdade, penas substitutivas, a previso de infraes de menor potencial ofensivo e procedimento diferenciado em relao s mesmas no mbito dos Juizados Especiais Criminais. A proposta prtica dessa orientao est na base das tendncias modernas na rea do crime e do controle social: descriminalizao, despenalizao, desinstitucionalizao, estigmatizantes, etc.19 Tambm a Criminologia Crtica concluir pela imprescindibilidade de retrao do campo de atuao do Direito Penal, mas vai ainda alm afirmando a possibilidade de se chegar posterior abolio do mesmo. A Criminologia Crtica reconhece a contribuio prestada pelo Labelling Approach, mas procura a superar, por considerar que tal teoria apenas mais uma das teorias consideradas liberais, ainda que tenha sido a mais crtica destas, representando alternativa somente parcial ideologia da defesa social.20 Tal crtica se d principalmente porque tais teorias, na viso crtica, consideram o delito um fenmeno universal e ineliminvel, o que implicaria na inutilidade de se procurar e combater suas causas. Afirma-se que a Teoria da Reao Social verifica o que acontece e como acontece, mas no explica por que acontece. aqui que procura contribuir a Criminologia Crtica, analisando o crime a partir de uma viso marxista, considerando o Direito Penal como direito desigual por excelncia, afirmando-se por exemplo que:As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da populao criminosa aparecem, de fato, concentradas nos nveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posio precria no mercado de trabalho (desocupao, subocupao, falta de qualificao profissional) e defeitos de socializao familiar e escolar, que so caractersticas dos indivduos pertencentes aos nveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contempornea so indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotaes sobre a base das quais o status de criminoso 21 atribudo.

substituio

de

sanes

estigmatizantes

por

no-

Assim o sistema penal apenas reproduziria as desigualdades sociais.19

ANYAR DA CASTRO apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 3 ed. Curitiba: Lumen Jris, 2006. p. 21. 20 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 151. 21 BARATTA, Alessandro. Criminologia crtica e crtica do direito penal. p. 165.

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Da partem propostas de uma abordagem do direito penal desde o ponto de vista subalterno, afirmando-se que tal situao s ser superada por uma democracia real, com reformas sociais radicais, eliminando-se a explorao econmica e poltica e que a tutela penal deve ser reforada apenas em reas de maior interesse social (patrimnio pblico, sade, crime organizado, segurana do trabalho, etc.), ao mesmo tempo em que se deve contrair ao mximo o sistema punitivo. BARATTA menciona etapas que tal processo percorreria, tais como adoo de medidas alternativas, ampliao da liberdade condicional e da suspenso condicional da pena, regime de semiliberdade, permisso do trabalho carcerrio e principalmente uma maior participao da sociedade no crcere e dos encarcerados na sociedade. So propostas de reintegrao social do autor de uma conduta desviante, analisando-se a relao sujeito-comunidade, asseverando-se que no o indivduo que precisa de ressocializao, mas a sua relao com a comunidade que precisa ser reconstituda e isto no se faria mediante segregao desnecessria. Assim, conforme CIRINO DOS SANTOS:Por tudo isso, o objetivo imediato menos melhor crcere e mais menos crcere, com a maximizao dos substitutivos penais, das hipteses de regime aberto, dos mecanismos de diverso e de todas as indispensveis mudanas humanistas do crcere. 22

Vrios so os autores, em todo o mundo e na Amrica Latina, que comungam de pensamento semelhante. O principal objetivo do cientista criminal deixa de ser a necessidade de defender a sociedade em face do criminoso e passa a ser a defesa do indivduo contra o tipo de sociedade (capitalista) em que ele vive. Trata-se, portanto, de uma atitude de simpatia pelos infratores. Considerando que o sistema rotula e gera criminalidade (Labelling) e que a atuao do direito penal serve apenas legitimao de desigualdades sociais (Criminologia Crtica), ganha fora a defesa do Direito Penal Mnimo que, entre outras medidas j mencionadas, tem como uma das sugestes fundamentais:A consagrao de certos princpios com os quais seriam assegurados os direitos humanos fundamentais. Tais princpios poderiam ser destinados22

SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia crtica e a reforma da legislao penal. Em http://www.cirino.com.br/artigos.htm. Acesso em 1.09.2006.

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desde a criminalizao primria, bem como poderiam servir para conter a violncia das agncias de controle. Isto se faria por meio do reconhecimento de um norte minimizador, com base em trs postulados: carter fragmentrio do direito penal; interveno punitiva como ultima ratio; 23 reafirmao da natureza assessria do direito penal.

Dentre estes princpios pode-se citar o exemplo do Princpio da Insignificncia. Entre outros pontos, a descriminalizao da Criminologia Crtica, significaria:Primeiro, a descriminalizao indicada em todas as hipteses (a) de crimes punidos com deteno, (b) de crimes de ao penal privada, c) de crimes de ao penal pblica condicionada representao e (d) de crimes de perigo abstrato sob os seguintes fundamentos: a) violao do princpio de insignificncia, por contedo de injusto mnimo, desprezvel ou inexistente; b) violao do princpio de subsidiariedade da interveno penal, como ultima ratio da poltica social, excluda no caso de suficincia de meios no-penais; c) violao do princpio de idoneidade da pena, que pressupe demonstrao emprica de efeitos sociais teis, com excluso da punio no caso de efeitos superiores ou iguais de normas jurdicas diferentes; d) violao do primado da vtima, que viabilizaria solues restitutivas ou indenizatrias em lugar da punio.24

No ordenamento jurdico-penal ptrio, percebe-se claramente a grande influncia desta forma de pensar o sistema penal, na exposio de motivos da nova parte geral do Cdigo Penal (Lei 7.209 de 2984), ao tratar das penas, assim afirma:Uma poltica criminal orientada no sentido de proteger a sociedade ter de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ao crimingena cada vez maior do crcere. Esta filosofia importa obviamente na busca de sanes outras para delinquentes sem periculosidade ou crimes menos graves. No se trata de combater ou condenar a pena privativa de liberdade como resposta penal bsica ao delito.25

Assim, pensando-se na humanizao e aperfeioamento do Direito Penal que fala-se em Interveno Mnima, Criminalidade de Bagatela, Princpio da Insignificncia, Princpio da Lesividade, retomam importncia as noes de subsidiariedade, fragmentariedade do Direito Penal e jamais ser perdido de vista o norte da dignidade da pessoa humana, que permeia a prpria concepo de Estado Democrtico de Direito.2324

SHECAIRA, Srgio Salomo. Criminologia. p. 344. SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia crtica e a reforma da legislao penal. Em http://www.cirino.com.br/artigos.htm. Acesso em 1.09.2006 25 BRASIL. Cdigos penal, processo penal e constituio federal. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2008. p. 252.

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1.2 BREVE HISTRICO Aps verificada a origem do Princpio da Insignificncia como uma das propostas da Criminologia Crtica, a seguir, ser analisado o seu percurso histrico, com a adoo em diferentes pases, at chegarmos sua atual concepo e aceitao. As mudanas sociais que influenciam as cincias jurdicas e que tiveram espao e conseqncias no ordenamento jurdico ptrio, so em muito inspiradas em avanos e reflexes operadas anteriormente em ordenamentos estrangeiros, aos poucos obtendo espao entre os juristas brasileiros. Processo em que teve relevante papel Francisco de ASSIS TOLEDO, influenciando a reforma operada no Cdigo Penal em 1984, quando passou-se a primar pela necessidade da pena, adotou-se o princpio da culpabilidade, excluiu-se a medida de segurana ao imputvel, reformulou-se o livramento condicional, o crime continuado, deu-se maleabilidade execuo penal, conforme descrito pelo referido autor.26 Procurou-se amoldar o Cdigo s tendncias modernas, optando claramente por um direito penal democrtico, em consonncia com um Estado Democrtico de Direito. A adoo no Brasil, do Princpio da Insignificncia, como outros de nossos institutos jurdico-penais, tem inspirao em ordenamentos estrangeiros, que paulatinamente adquiriram espao entre ns. Antes de se tornar fundamento recorrente de decises e manifestaes diversas na prtica diria de nossas varas criminais e tribunais, ele j aparecia, por exemplo, no Cdigo Penal Alemo, em seu art. 3, como nos relata Paulo de Souza QUEIROZ:No subsiste o crime, se, no obstante a conformidade da conduta descrio legal de um tipo, as conseqncias do fato sobre direitos e os interesses dos cidados e da sociedade e da culpabilidade do ru so 27 insignificantes.

TOLEDO, Francisco de. Assis. Princpios bsicos de direito penal. 5 ed. So Paulo: Saraiva, 1994. p. 71-78 27 Recorda ainda a legislao da antiga Repblica Sovitica da Rssia (1960) e da TchecoEslovquia (1961) e destaca as previses feitas pelos Cdigos Penais de Portugal (art. 74); da ustria (art. 42), de Cuba (art. 8), da China (art. 10), da Polnia (art. 1), da Coria (art. 8), da Iugoslvia (art. 1, 2 e 8), da Bulgria (art. 9) e da Romnia (art. 3 e 17). QUEIROZ, Paulo de Souza Do carter subsidirio do direito penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 126.

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O mesmo autor cita outros diplomas legais com disposies semelhantes, tais como a legislao penal da antiga Repblica Sovitica da Rssia (1960) e da Tcheco-Eslovquia (1961). Destaca ainda as previses feitas pelos Cdigos Penais de Portugal (art. 74); da ustria (art. 42), de Cuba (art. 8), da China (art. 10), da Polnia (art. 1), da Coria (art. 8), da Iugoslvia (art. 1, 2 e 8), da Bulgria (art. 9) e da Romnia (art. 3 e 17). No Brasil, verificamos esta tendncia j no Cdigo Criminal do Imprio, que previa possibilidade de no se punir alguns crimes, tomando por base a pena a eles cominadas. QUEIROZ comenta inclusive, que em relao ao crime de furto a pena era graduada conforme o valor do objeto furtado (art. 330), demonstrando j quela poca o entendimento de que nos delitos patrimoniais a simples restrio da liberdade do agente no seria suficiente para sanar o prejuzo por ele causado. Tambm o primeiro Cdigo Penal Republicano, em seu artigo 16, previa: no ser punida a tentativa de contraveno e nem a de crime ao qual no fosse imposta maior pena que a de um ms de priso celular.28 Nossos tribunais h muito j o vm adotando reiteradamente, sendo o seguinte julgado apontado como a primeira meno do Princpio da Insignificncia:Acidente de trnsito Leso Corporal Inexpressividade da leso Princpio da Insignificncia Crime no configurado. Se a leso corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trnsito de absoluta insignificncia, como resulta dos elementos dos autos e outra prova no seria possvel fazer-se tempos depois -, h de impedir-se que se instaure ao penal que a nada chegaria, inutilmente sobrecarregando-se as Varas 29 Criminais, geralmente to oneradas .

ROXIN, indicado por ASSIS TOLEDO30 como aquele que props a introduo do Princpio da Insignificncia no sistema penal, retomou o brocardo minima non curat praetor, desenvolvendo sua essncia, reconhecendo que h situaes em que a reprimenda estatal significaria mal maior do que o prprio crime. A doutrina fala de sua necessidade:Observou-se que as afetaes de bens jurdicos exigidas pela tipicidade penal requeriam sempre alguma entidade, isto , alguma gravidade, posto

28

Ressalte-se que se trata apenas das tentativas e no dos crimes consumados, que seriam punidos mesmo que a pena prevista fosse bastante baixa. 29 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso de Habeas Corpus n. 66.869-1. Relator: Ministro Aldir Passarinho. 6 dez. 1988. 30 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. p. 133

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que nem toda afetao mnima do bem jurdico era capaz de configurar a afetao requerida pela tipicidade penal.31

Cndido Furtado MAIA NETO afirma:Outras hipteses permissivas de uso expresso do princpio da oportunidade ao titular do jus persequendi, precisam ser catalogadas, entre elas, a Diversin (Blgica, Frana, Japo, Inglaterra) que permite ao Ministrio Pblico o sobrestamento/arquivamento do processo, quando o ru a seu cargo toma certas obrigaes de carter ressocializador; bem como ampliar o instituto do Perdo Judicial, alargando as condies em casos de delitos menos graves, chamados delitos de bagatela, crimes sem vtima, em nome dos princpios da insignificncia, da utilidade e economia 32 processual, ou ainda quando se tratar de jovem delinqente primrio.

Foi sendo ento construda a noo do que sejam infraes bagatelares, que trazem a idia de:Delito de bagatela ou crime insignificante expressa o fato de ninharia, de pouca relevncia (ou seja: insignificante). uma conduta ou ataque ao bem jurdico to irrelevante que no requer a (ou no necessita da) interveno penal. Resulta desproporcional a interveno penal nesse caso.33

Luiz Flavio GOMES classifica tais infraes em infrao bagatelar prpria (onde inclui o princpio da insignificncia) e imprpria. As prprias seriam infraes que j nascem sem relevncia penal, por no apresentarem desvalor da conduta e nem desvalor de resultado, nestas sendo devida a aplicao do princpio da insignificncia, sem perquirir o animus do agente, seus antecedentes, sua vida pregressa, etc.34 H quem o critique pelo fato de no estar expressamente previsto em nosso ordenamento jurdico. Evidente que, entre as possveis crticas a se levantar contra o princpio, esta das que menos tem procedncia. Ora, bem se sabe que nem s de dispositivos de lei se faz o Direito, no sendo este o nico dos princpios a no contar com previso expressa. Muitos dos princpios que orientam o Direito Penal no esto positivados em textos legais, como a Humanidade das Penas ou a Interveno Mnima. No dizer de RIBEIRO LOPES, do princpio da dignidade humana possvel retirar a insignificncia:ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal: Parte Geral, 3. ed., So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 562. 32 MAIA NETO, Candido Furtado; KUEHNE, Mauricio. (org). Bases humanitrias e democrticas para reforma do direito penal brasileiro Cincia Penal, Coletnea de Estudos. Curitiba: Juru, 1999. p. 46. 33 GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. v 2. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 303. 34 GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. v 2. p. 304.31

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Outros princpios expressos e no expressos podem ser tambm apontados como natural decorrncia do princpio da dignidade da pessoa humana de fcil reconhecimento se aplicadas as tcnicas de hermenuticas apropriadas, assim: o princpio da insignificncia, o princpio da lesividade, o 35 princpio da interveno mnima [...]

Disto advm a grande responsabilidade dos intrpretes e aplicadores do Direito. Assim, foi o princpio adquirindo aceitao generalizada entre os doutrinadores estrangeiros e ptrios, passando a fundamentar numerosas decises em todo o pas.

1.3 APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA E SEUS EFEITOS Afirma-se que os tipos penais devem destinar-se s condutas realmente lesivas ordem jurdica e social, no entanto, os mesmos jamais conseguiro abranger as infinitas mudanas sociais, as inmeras possibilidades do mundo dos fatos, que no so apreendidas em sua totalidade por previses abstratas. Desta forma, acabam por alcanar prticas que resultam em leses leves, aparentemente sem danosidade social. Aos operadores do direito caber a aferio da afetao do bem jurdico e a tipicidade da conduta. Aqui possvel tecer algumas breves reflexes a partir do pensamento de HART e seu Conceito de Direito36. Para o autor, regras, padres e princpios so um instrumento do controle social e o Direito s pode existir, por ser possvel comunicar padres gerais de conduta. Tal comunicao se faz atravs de precedentes ou de leis. Porm, precedente ou lei, sempre apresentaro momentos de indeterminao, possuindo o que se designa por textura aberta37. O mundo no tem um nmero definido de aspectos, e nem todos os aspectos so conhecidos, por isso no seria possvel estabelecer prescries antecipadas para cada possibilidade. Isto traz uma relativa indeterminao de finalidades. No h a possibilidade de prever antecipadamente casos no contemplados pelas disposies humanas, surgindo a35

LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do direito penal. So Paulo: RT, 2000. p.399-400. 36 HART. Herbert L. A. O conceito de direito. Fundao Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1972. 37 HART, Herbert L. A. Op. Cit. p. 141.

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questo, se escolheria a partir da anlise dos interesses concorrentes, da forma que melhor os satisfaa. Pode-se ento entender que o domnio a ser tutelado juridicamente to variado que no podero ser criadas pelo Poder Legislativo regras uniformes destinadas caso a caso sem diretivas oficiais posteriores. Portanto, ainda conforme Hart, admitir essa textura aberta reconhecer que h reas em que muitos aspectos devem ser desenvolvidos pelos tribunais ou funcionrios, que determinam o equilbrio luz das circunstncias que variam para cada caso. Sobre a tarefa de verificar estas situaes no dia a dia, diz HERKENHOFF:Esta misso cabe ao prprio juiz, pois que a funo jurisdicional escapa a qualquer criao legislativa. No cabe ao juiz revogar a lei, mas pode afastar a aplicao diante do caso concreto, quando a aplicao resultaria em injustia, feriria a conscincia jurdica do povo, o sentido de justo do julgador e da comunidade38.

Alguns autores ento, diante deste quadro de abertura do Direito, no que se refere ao Direito Penal e aplicao de suas regras, trazem o Princpio da Insignificncia como reitor da interpretao dos tipos penais. ROXIN, por exemplo, prope uma interpretao restritiva do tipo penal:So necessrios princpios regulativos como a adequao social, introduzida por WELZEL, que no elementar do tipo, mas certamente um auxlio de interpretao para restringir formulamentos literais que tambm abranjam comportamentos socialmente respeitveis. Aqui pertence igualmente o chamado princpio da insignificncia, que permite excluir logo de plano leses de bagatela da maioria dos tipos. Se reorganizssemos o instrumentrio de nossa interpretao dos tipos a partir destes princpios, daramos uma significativa contribuio para diminuir a 39 criminalidade em nosso pas.

Alguns afirmam que o Princpio da Insignificncia seria um aspecto do prprio Princpio da Proporcionalidade. Cezar Roberto BITENCOURT opina que segundo este princpio, necessria uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da interveno estatal.40

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HERKENHOFF, Joo Batista. Como aplicar o direito. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 108 39 ROXIN, Claus. Poltica criminal e sistema jurdico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 40 BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibio. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 2000. p. 32.

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Luiz Alberto MACHADO41 afirma a insignificncia (juntamente adequao social) como causa de atipia material da conduta, este o seu principal efeito. Mauricio Antonio Ribeiro LOPES cita Vico MAAS: ele um instrumento de interpretao restritiva, fundado na concepo material do tipo penal, por intermdio do qual possvel alcanar, pela via judicial e sem macular a segurana jurdica do pensamento sistemtico, a proposio poltico-criminal da desnecessidade de descriminalizao de condutas que, embora formalmente tpicas, no atingem de forma relevante 42 os bens jurdicos protegidos pelo direito penal.

Sobre o tema, reflete SANTORO FILHO:O acerto da proposio vem sendo cada vez mais acolhido pela doutrina e pela jurisprudncia, pois o direito penal, por sua natureza subsidiria, de ultima ratio, somente deve ir at onde seja necessrio real proteo dos bens jurdicos, no podendo ocupar-se de ofensas inexpressivas aos 43 valores tutelados.

H consenso quanto afirmao de que o Estado no deveria ocuparse de pequenas questes, porm, ao mesmo tempo, no possvel se olvidar que, se o legislador incluiu a conduta entre as que devem ser consideradas criminosas, porque se trata de situaes que atingem bens jurdicos relevantes para a sociedade e para os indivduos, a elaborao de cada tipo especfico j demonstra em si que se trata de comportamentos penalmente relevantes. Tem-se ento que:O princpio da insignificncia o princpio penal que norteia a comparao entre o desvalor consagrado no tipo penal e o desvalor social da conduta do agente, aferindo, assim, qualitativa e quantitativamente lesividade desse fato para constatar-se a presena do grau mnimo necessrio concreo do tipo penal; se nesse cotejo axiolgico verificar- se que o desvalor do ato ou do resultado insignificante em relao ao desvalor exigido pelo tipo penal, ento esse fato dever ser excludo da incidncia penal, j que desprovido de reprovabilidade jurdica.44

Porm, definir o que seja esta relevncia ou reprovabilidade jurdica dos maiores problemas no que se refere ao princpio da insignificncia. At mesmo41 42

MACHADO, Luiz Alberto. Direito Criminal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 123. LOPES, Maurcio Antonio Ribeiro. Princpios polticos do direito penal. 2 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 90. 43 SANTORO FILHO, Antnio Carlos. Princpio da insignificncia nos crimes patrimoniais: proposta de um critrio para a sua aplicao. Boletim Jurdico, Uberaba/MG, a. 3, n 171. Disponvel em: Acesso em Acesso em: 25 abr. 2008. 44 SILVA, Ivan Luiz. Princpio da insignificncia no direito penal. p. 94.

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em outras situaes, apenas relacionadas a delitos patrimoniais, j h uma enorme indefinio, mais ainda no que tange insignificncia.45 Desta forma, como reconhecem os doutrinadores e aplicadores, as maiores polmicas relacionadas ao princpio giram em torno dos critrios que devam ser adotados para sua aplicao:Embora sejamos partidrios da admisso deste critrio de interpretao redutor - da tipicidade penal, foroso reconhecer que, nos crimes contra o patrimnio, vigora alto grau de incerteza no que se refere aos parmetros de sua utilizao, pois a lei no fixa ao menos diretamente o que insignificante, circunstncia que, no poucas vezes, causa dvidas a respeito da incidncia, ou no, do princpio proposto e de sua prpria 46 validade.

Pondera Francisco Vani BENFICA:O princpio muito liberal e procura esvaziar o direito penal. E, afinal, no fcil medir a valorizao do bem, para dar-lhe proteo jurdica. E sua adoo seria perigosa, mormente porque, medida que se restringe o conceito de moral, mais fraco se torna o direito penal, que nem sempre deve acompanhar as mutaes da vida social, infelizmente para pior, mas det-las, quando nocivas.47

Alguns tendem, de forma simplista, a considerar insignificante a conduta de indivduo economicamente desfavorecido, quando ento se pesa o desemprego, o descaso e a falncia estatal e uma srie de circunstncias exteriores ao delito para concluir que, quando algum em tal situao delinqe, h que se considerar insignificante e, portanto, atpica a conduta. Outras vezes, verifica-se que apesar da nfima leso ao bem jurdico protegido, aquele determinado agente tambm autor de diversos outros delitos de mesma natureza (insignificante), ostentando longa lista de antecedentes criminais. Nestes casos, apesar da irrelevncia da conduta, tende-se a afastar a aplicao do princpio devido s anteriores prticas de seu autor, inclusive afirmando-se que este j faz do crime um meio de vida.

Gunther Arzt menciona o caso do furto de pequeno valor. Afirma ele: [...] as dificuldades de interpretao multiplicam-se. O que de pequeno valor? Existe um limite de valor que tenha validade geral? Depende da situao financeira da vtima? O que acontece com valores ideais quando a coisa no tem valor econmico? ROXIN, Claus; GNTHER, Arzt; TIEDEMANN, Klaus. Introduo ao direito penal e ao direito processual penal. p. 85. 46 SANTORO FILHO, Antnio Carlos. Princpio da insignificncia nos crimes patrimoniais: proposta de um critrio para a sua aplicao. Boletim Jurdico, Uberaba/MG, a. 3, n 171. Disponvel em: Acesso em Acesso em: 25 abr. 2008. 47 Apud FREITAS, Vladimir Passos; FREITAS, Gilberto Passos. Crimes contra a natureza. 6 ed. So Paulo : Revista dos Tribunais, 2000. p. 42.

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H corrente que exige tambm a anlise da culpabilidade do agente, assim, alm de insignificante a conduta, deveria ser escassa tambm a reprovabilidade de seu autor, para que fosse possvel a aplicao do Princpio da Insignificncia. De plano necessrio rechaar tais argumentos, o que faremos primeiramente incursionando pelas diversas posies sobre a questo. O tema nos remete ao conceito de crime, que a teoria geral do delito estruturou em fato tpico, antijurdico e culpvel (sistema tripartido de VON LISZT, BELING e RADBRUCH), o que ser melhor explicitado em captulo prprio. Estas seriam categorias conceituais que, quando presentes, tornam o fato um crime, fato este que no pode ser dividido, mas que tem aspectos objetivos e subjetivos. Diante do fato concreto o julgador obedece ao referido conceito analtico como se fora este um caminho a ser percorrido na formao de sua convico. Verifica primeiramente se a conduta tpica, a seguir analisa a antijuridicidade ou ilicitude da conduta (ausncia de causas de justificao) e por fim observa a culpabilidade do agente. A aplicao do Princpio da Insignificncia atinge o primeiro elemento do conceito analtico de crime. Analisa-se a conduta e percebe-se, objetivamente, que esta deve ser considerada atpica, j que a leso ou prejuzo no foi suficiente para que se pudesse considerar tal fato subsumido a uma norma, este o efeito principal da aplicao do princpio da insignificncia. excluda assim uma das mencionadas categorias que do a natureza criminosa ao fato, o que prejudica a anlise da existncia das restantes. Inexistente um dos elementos no h crime, pois ele no conduta tpica, ou antijurdica ou culpvel, mas tais aspectos devem se cumular para que estejamos diante de um crime. Saliente-se que a no tipicidade da conduta elimina a indagao quanto existncia do crime48, desta forma, no persistir sequer a obrigatoriedade da denncia pelo representante do Ministrio Pblico, por isto a imensa importncia de se fixar exatamente quais so os casos da atipia. Caso ocorra ainda assim a denncia, Luiz Flvio GOMES afirma que, diante do enriquecimento dado

48

MACHADO, Luiz Alberto. Op. Cit. p. 105.

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tipicidade penal modernamente, o juiz deve fazer sua anlise j no recebimento da denncia.49 O caso do Princpio da Insignificncia seria de atipicidade ou atipia material. Observa ZAFFARONI:Observou-se que as afetaes de bens jurdicos exigidas pela tipicidade penal requeriam sempre alguma entidade, isto , alguma gravidade, posto que nem toda afetao mnima do bem jurdico era capaz de configurar a afetao requerida pela tipicidade penal. [...] A insignificncia da afetao exclui a tipicidade, mas s pode ser estabelecida atravs da considerao 50 conglobada da norma.

Da mesma forma, reflete Eugnio Pacelli de Oliveira, afirmando que embora uma conduta possa se ajustar a determinado tipo penal, enquanto subsuno (do fato norma), nem sempre se far presente a tipicidade do crime, se no houver leso ao bem jurdico em que se acha inserido o referido tipo penal.51 Do trecho acima, percebe-se claramente que a aplicao do principio regida eminentemente pelo desvalor do resultado obtido pelo autor e se verifica a oposio entre tipicidade material e tipicidade formal, que tema do captulo destinado tipicidade. No que se refere aos critrios de aplicao, a avaliao da significncia da conduta se d caso a caso e, com a reiterao de algumas situaes concretas levadas ao Poder Judicirio, vo surgindo contornos, os quais no so absolutos. Francisco de ASSIS TOLEDO d alguns exemplos:O dano do art. 163 do Cdigo Penal no deve ser qualquer leso coisa alheia, mas, sim, aquela que possa representar prejuzo de alguma significao para o proprietrio da coisa; o descaminho do art. 334, 1, d, no ser certamente a posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas, sim, a de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique leso tributria de certa expresso, para o Fisco; o peculato do art. 312 no pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor pblico de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amndoas; a injria, a difamao, a calnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputao, a honra, o que exclui ofensas tartamudeadas e sem conseqncias palpveis.52

GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. p. 252. ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 2001, p. 562. 51 ROXIN, Claus; ARZT, Gunther; TIEDEMANN, Klaus. Introduo ao direito penal e ao direito processual penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 52 Citado por GUIMARES, Isaac Sabba. Dogmtica penal e poder punitivo. Curitiba : Juru Editora, 2000.50

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ROXIN relembrado dentro desta temtica, sobre o que aponta:Maus-tratos so uma leso grave ao bem-estar corporal, e no qualquer leso; da mesma forma, libidinosa no sentido do Cdigo Penal s uma ao sexual de alguma relevncia; e s uma violenta leso pretenso de respeito social ser criminalmente injuriosa. Por violncia no se pode entender uma agresso mnima, mas somente a de certa intensidade, assim como uma ameaa deve ser sensvel, para adentrar no campo da criminalidade.53

Segundo Cezar Roberto Bittencourt para incidir o princpio, deve haver uma anlise contextual do fato e do ordenamento jurdico, verificando-se o que ter maior danosidade social, a conduta ou sua perquirio criminal. Considera-se ento a importncia do bem jurdico e a intensidade da leso.54 o que afirma tambm Luiz Flavio GOMES: para o reconhecimento da insignificncia e, em conseqncia, da infrao bagatelar prpria, muito importante a anlise de cada caso concreto, da vtima concreta, das circunstncias do fato, local, etc.55 Damsio de JESUS por sua vez, em antigo artigo, inclui ainda a considerao do patrimnio da vtima, sugerindo, quanto a delitos patrimoniais, que se deve considerar furto ou apropriao indbita insignificante, aqueles cujos objetos sejam iguais ou inferiores a R$1.000,00, ressalvando apenas as situaes em que a vtima seja de muito pequeno poder aquisitivo.56 No tocante considerao do patrimnio da vtima, pondera novamente Luiz Flavio GOMES:O furto de uma garrafa dagua, em princpio, absolutamente insignificante. Mas para quem est no deserto do Saara no o . Como se v, ser insignificante ou no o fato, depende de cada situao concreta. Uma bicicleta para um grande empresrio absolutamente insignificante. A mesma bicicleta para quem ganha R$50,00 por ms pode no ser. Cada caso um caso. No existem critrios apriorsticos que definem o que 57 insignificante.

Por outro lado, afirma-se tambm que analisar a culpabilidade quando se tem em vista o Princpio da Insignificncia, subverso da ordem sistemtica e

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ROXIN, Claus. Poltica criminal e sistema jurdico-penal. p. 48. BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibio. p. 32. 55 GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. p. 304. 56 JESUS, Damasio Evangelista de. Crime de bagatela: reconhecimento do princpio da insignificncia no delito de descaminho e seu efeito nos tipos privilegiados do furto e da apropriao indbita. Disponvel em http://www.amperj.org.br/port/damasio2.htm. Acesso em 07.04.2001. 57 GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. p. 304. Segundo o autor, isto tem total ligao com uma viso moderna do magistrado, que tem muito maiores condies da fazer justia no caso concreto. Porm aqui j de se perguntar: entre os critrios definidores do que seja crime encontrase a vtima? O carter criminoso da conduta est na prpria conduta ou na vtima a quem ela se volta?

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do carter seqencial da teoria geral do delito.58 Portanto o princpio tem carter objetivo, sendo erro procedimental a anlise de elementos subjetivos no momento da valorao do princpio. No momento da verificao da tipicidade, o Direito Penal direito do fato e no do autor, sendo indevida qualquer anlise de personalidade59. Esta a posio de Luiz Flvio GOMES, afirmando que o princpio se ocupa do fato objetivo, verificando-se que ele pode ser tpico na aparncia, mas no o materialmente. As consideraes pessoais (culpabilidade, vida anterior, antecedentes, restituio/ressarcimento do dano, ocasionalidade da infrao) ficariam para o mbito da irrelevncia penal do fato.60 Em trabalho anterior, verificou-se que:Convencem tais argumentos, pois veja-se: as descries tpicas so descries de fatos, de aes (matar algum, subtrair coisa alheia, constranger mulher, etc.). Em nenhum momento uma caracterstica do autor considerada na descrio tpica, o que seria um grande absurdo: indivduo reincidente, com personalidade voltada para o crime matar algum homicdio; indivduo de maus antecedentes e de pssima conduta social, se no ressarcir o prejuzo vtima, subtrair para si ou para outrem coisa alheia mvel furto. Obviamente tais circunstncias particulares do agente traro as suas influncias jurdico-penais, mas ao vislumbrarmos a subsuno do fato norma que nos dada, no cogitamos tais dados. Para verificar a ocorrncia de homicdio, nos serve o Laudo Pericial comprovando a morte, para que a prtica seja um homicdio no importam as condies do homicida. Para verificar a ocorrncia de um furto procuramos a leso patrimonial vtima, autos de apreenso, avaliao e entrega (se sua lavratura foi possvel), ou seja, para que consideremos a prtica um furto, no nos importam as condies do ladro.61

Efetivamente, no de se considerar questes especficas da pessoa do ru, quando da anlise da tipicidade da conduta, tais questes sero observadas quando for tratada a culpabilidade, esta entendida como o grau de reprovabilidade do autor. Tambm mantm-se a colocao de que os tipos penais descrevem comportamentos, aes, mas hoje entende-se que justamente por isto que o principal fator a ser observado no o desvalor do resultado e sim da conduta descrita no tipo e realizada materialmente, o que analisaremos mais adiante.PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A objetividade do Princpio da Insignificncia. Boletim do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, So Paulo, n. 109. 59 Aqui percebemos ento a clara incompatibilidade da adoo do princpio por um ordenamento jurdico-penal que claramente adota a Teoria Finalista da Conduta, e que portanto admite a existncia de elementos subjetivos no tipo. 60 GOMES, Luiz Flavio. Delito de Bagatela: Princpios da Insignificncia e da Irrelevncia Penal do Fato. Boletim do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, So Paulo, n. 102, maio 2001. 61 MELHEM, Patricia Manente. O princpio da insignificncia no direito penal. 2002. 108 f. Monografia (Graduao) - Curso de Direito, Departamento de Direito do Estado, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2002. p. 19.58

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Ainda entre os critrios para a aplicao do princpio, evidente que no deve ter influncia tambm a eventual miserabilidade do autor da conduta. Qualquer circunstncia desta natureza poder talvez ser considerada no momento da anlise da antijuridicidade, ainda assim atentando-se sempre para no se julgar um indivduo pelo que ele e no por algo que fez62. A pobreza eventualmente poder caracterizar estado de necessidade, porventura a circunstncia atenuante do motivo de relevante valor social, o que ter incidncia em momento diverso e no no juzo de tipicidade sobre a conduta, o que tambm ser tratado com maior cuidado adiante. Claro ainda que no se deve considerar os antecedentes criminais do indivduo autor de delito insignificante. redundante dizer que cada crime deve ter sua anlise individualizada e que ser o autor de uma, ou de vrias condutas no o que lhes confere tipicidade63. Exceto se o fato configurar crime continuado, quando, de forma alguma, ser considerado insignificante. Diante de tais incertezas, so buscados critrios mais objetivos para a aplicao do princpio, ao menos para os delitos patrimoniais. Uma das tentativas valer-se de legislaes do mbito do Direito Tributrio para se obter um parmetro relacionado a que valores o Estado considera suficientemente significantes para ensejar aes de execuo fiscal. Muitas decises vm buscando fundamento na Lei 10.522 de 2002, que no 1 de seu artigo 18 afirma: Ficam cancelados os dbitos inscritos em Dvida Ativa da Unio, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais). Cite-se como exemplo a seguinte deciso:62

Jescheck salienta ser indiferente, na proibio do furto, ser o agente rico ou pobre, ... J o mesmo no ocorre quando se trata de apreciar os mesmos fatos no mbito da culpabilidade, a nvel do juzo de reprovao, (...) Embora considere as caractersticas do agente, no deve desligar-se dos limites objetivos do fato, contidos na conduta criminosa, para penetrar no terreno inseguro do julgamento do homem pelo que ele , pelo seu carter, pela sua deciso ou conduo de vida. (apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal. p. 88). 63 Porm, nem sempre assim entendem nossos tribunais. Veja-se os seguintes exemplos: Afirma o acrdo n. 6672 da 5 Cmara Criminal do Tribunal de Justia do Paran: "O Princpio da Insignificncia preceitua que a lei no deve preocupar-se com infraes de pouca monta insuscetveis de causar o mais nfimo dano coletividade. Entretanto, imprescindvel aferir em cada caso, o desvalor da culpabilidade, da conduta e da leso sofrida, por isso o pequeno valor da "res furtiva" por si s, no desconfigura o delito perpetrado." E o acrdo 6098, da 4 Cmara Criminal: Apelao criminal - Crime de furto (art. 155, caput, do CP) - Sentena condenatria - Pretenso absolutria fundada no princpio da insignificncia, afirmando o ru a ocorrncia da hiptese de crime de bagatela - Impossibilidade Benesse desaconselhvel na espcie dos autos - Existncia de apontamentos sinalizando para o envolvimento do acusado com delitos patrimoniais - No preenchimento dos requisitos para o merecimento do benefcio almejado.

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Agravo regimental em agravo de instrumento. Direito penal. Descaminho. Princpio da Insignificncia. 1. A jurisprudncia desta Corte Superior de Justia firme no sentido de que subsume-se na insignificncia, em se cuidando de descaminho, os tributos em valores que o prprio Estado expressou o seu desinteresse pela cobrana. 2. Agravo regimental improvido. (STJ. Agravo regimental no agravo de instrumento. UF: Paran. rgo julgador Sexta Turma. Data da deciso 22/03/2005. DJ 1/07/2005, p. 64 647).

tamanha a dvida acerca do que seja ou no significante, que os julgadores so levados a construir seus prprios limites:APELAO. FURTO. PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. APLICAO AFASTADA. VALOR DO BEM. PSSIMA CONDUTA SOCIAL DO RU. Para reconhecimento do crime bagatelar, esta Cmara tem considerado que o valor do bem subtrado no deve ultrapassar um dcimo do salrio mnimo. Alm disso, as circunstncias pessoais de ru e vtima, bem como o contexto da prtica delitiva tambm devem ser analisados. Verificado que a atividade criminosa o meio de vida do ru, invivel o reconhecimento do crime de bagatela. Recurso improvido. (TJ-RS. Apelao crime n 70023334220. rgo julgador Quarta Cmara Criminal. Relator: Gaspar 65 Marques Batista, Julgado em 03/04/2008). Violao de Direito Autoral. Caracterizao Apelante confesso. Prova vocal e pericial induvidosas acerca de autoria e materialidade delitivas. A alegao de dificuldades econmicas no aproveita o apelante, visto que o apertado aflitivo auto-sustento, por pior que seja, no atinge a inevitabilidade do comportamento lesivo, permanecendo ntegra a ilicitude da conduta e a culpabilidade do agente. Carecedora de amparo legal a argumentao quanto aplicao no caso em anlise do princpio da bagatela ou insignificncia, uma vez que no se pode admitir a atipicidade do presente fato criminoso, sob o argumento do valor irrisrio do bem, visto que no Direito brasileiro o princpio aludido ainda no adquiriu foros de cidadania, de molde a excluir tal evento de moldura da tipicidade penal. Recurso improvido. (TJ-SP. Apelao crime n. 11616253000. rgo julgador 7 Cmara de Direito Criminal B. Relator Nidea Rita Coltro Sorci. Julgado em 17/04/2008. Data de registro 29/04/2008).66

H situaes em que se leva em considerao o salrio mnimo vigente poca do fato e as condies scio-econmicas da populao brasileira, aventando ainda a possibilidade da admisso do princpio mesmo em relao a crime que pressupe violncia contra a pessoa, tal como a leso corporal. Como se fora possvel aferir economicamente (partindo do parmetro do salrio mnimo e das condies financeiras da maior parte dos brasileiros), um dano integridade fsica de algum. o que se v na deciso a seguir exposta:

Disponvel em: http://189.11.195.50/pesquisaunificada/jsp/consulta/Detalhes.jsp?id=7 Acesso em 24/04/ 2008. 65 Disponvel em: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php. Acesso em 29/04/2008. 66 Disponvel em: http://cjo.tj.sp.gov.br/esaj/jurisprudencia/consultaCompleta. Acesso em 29/04/2008.

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HABEAS CORPUS. PENAL. ARTS. 155 E 129, 1, DO CP. PRETENSO DE APLICAO DO PRINCPIO DA INSIGNIFICNCIA. FURTO. NOINCIDNCIA. OBJETO MATERIAL QUE NO PODE SER CONSIDERADO DESPREZVEL. LESO CORPORAL. NECESSIDADE DE DILAO PROBATRIA. IRRELEVNCIA DA LESO QUE NO H COMO SE AFERIR DE PLANO. ORDEM DENEGADA. 1. Segundo a melhor doutrina, o princpio da insignificncia surge como instrumento de interpretao restritiva do tipo penal que, de acordo com a dogmtica moderna, no deve ser considerado apenas em seu aspecto formal, de subsuno do fato norma, mas, primordialmente, em seu contedo material, de cunho valorativo, no sentido da sua efetiva lesividade ao bem jurdico tutelado pela norma penal, o que consagra o postulado da fragmentariedade do direito penal. 2. Indiscutvel a sua relevncia, na medida em que exclui da incidncia da norma penal aquelas condutas cujo desvalor da ao e/ou do resultado (dependendo do tipo de injusto a ser considerado) impliquem uma nfima afetao ao bem jurdico. 3. Diante da inexistncia de regra expressa definindo, para a finalidade em apreo, o que seja "valor insignificante", aplicvel, em sua teleologia, a diretriz resultante do art. 335 do Cdigo de Processo Civil, a saber: "Em falta de normas jurdicas particulares, o juiz aplicar as regras de experincia comum subministradas pela observao do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experincia tcnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial". 4. Considerando a nossa realidade scio-econmica, em que metade da populao ocupada do Brasil tem rendimento (mdio mensal de todos os trabalhadores) de 1/2 a 2 salrios mnimos (dados do IBGE indicadores sociais de 2002), no se pode admitir que o furto de um alicate, concomitante com o de um celular, seja considerado um valor irrisrio, nfimo. 5. Quanto leso corporal, no h como aferir-se de plano a irrelevncia da leso sofrida pela vtima, exigindo, assim, dilao probatria, o que se afigura invivel na estreita via eleita, marcada por rito clere e cognio sumria. 6. Ordem denegada. (STJ. HC 2006/0206853-4. rgo julgador 5 Turma. Ministro Relator Arnaldo Esteves Lima. Data do julgamento 07/11/2006. DJ 27.11.2006. p. 67 301).

Os tribunais admitem a aplicao do princpio, mesmo em caso de ato infracional, considerando apenas o resultado da infrao:Estatuto da Criana e do Adolescente. Atos infracionais. Furto qualificado (CP Art. 155, 4, IV). Embora medida socioeducativa objetive ressocializar o adolescente infrator, possvel a aplicao do princpio da insignificncia nos atos infracionais e no s na estrita esfera do direito penal, segundo orientao do STJ. Considerando o valor de bem furtado (R$80,00), deve ser aplicado referido princpio. (TJ-RS. Apelao crime n. 70022983167. rgo Julgador Oitava Cmara Cvel. Relator Claudir Fidelis Faccenda. Julgado em 10/04/2008. DJ 16/04/2008).68

SANTORO FILHO cr ter encontrado a resposta na prpria legislao penal:67

Disponvel em http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=+%28princ%EDpio+da+insignific%E2ncia+Ie s%E3o+corporal%29&&b=ACOR%p=true&t=&l=10&i=2. Acesso em 2.06.2008. 68 Disponvel em: http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php. Acesso em 29/04/2008.

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Com efeito, o legislador fixou como mnimo relevante, tanto para a aplicao, como, conseqentemente, para a execuo da pena, o montante de 1(um) dia-multa, no valor de 1/30(um trinta avos) do salrio mnimo vigente quando do fato. Este quantum , em direito penal brasileiro o piso patrimonial conhecido, pois eventuais fraes, nos termos do art. 11, do Cdigo Penal, no so computadas e, portanto, devem ser desprezadas. Ora, se o legislador penal fixou como critrio do relevante ou do nodesprezvel o valor de 1/30 do salrio mnimo, entendemos que deve ser este critrio e no o de legislaes administrativas ou tributrias, que se orientam por finalidades evidentemente distintas , o marco do princpio em questo. Logo, sendo o dano patrimonial efetivado ou visado inferior a 1/30 do salrio mnimo, h de se reconhecer a atipicidade material da conduta, por ausncia de lesividade ao bem jurdico patrimnio tutelado pelo tipo; se superior, caracterizada restar a tipicidade, embora possa o 69 fato configurar, eventualmente, delito patrimonial privilegiado.

Atualmente, de acordo com o critrio sugerido pelo autor, a partir R$13,83 (treze reais e oitenta e trs centavos), um delito patrimonial adquiriria suficiente significncia para ser considerado tpico. Destaque-se do comentrio acima exposto, o que autor afirma quanto utilizao de normas de outros sistemas jurdicos (como o Tributrio e Administrativo) como critrios para a atuao do Direito Penal, verificando que as finalidades de cada sistema so diferentes. Ainda, independente da razoabilidade da sugesto oferecida pelo autor, esta seria cabvel apenas diante de delitos contra o patrimnio, ou cuja relevncia possa ser mensurada em termos patrimoniais. Porm, o princpio da insignificncia, conforme alguns defensores, aplicvel tambm a outros crimes, como leses corporais leves, crimes contra a honra, chegando at mesmo absurda aplicao em caso de crime de atentado violento ao pudor, o que ser comentado mais adiante. Desta forma, por mais que jurisprudncia e doutrina esforcem-se para delimitar critrios de aplicao do princpio, estes ficaro sempre ao dito prudente arbtrio do aplicador. Verifica-se ento que apesar dos defensores do princpio sustentarem que a anlise para a aplicao do mesmo, deve ser sempre objetiva, no considerando o patrimnio da vtima, ou circunstncias subjetivas do ru, de fato no existe qualquer critrio que possa orientar o julgador.

SANTORO FILHO, Antnio Carlos. Princpio da insignificncia nos crimes patrimoniais: proposta de um critrio para a sua aplicao. Boletim Jurdico, Uberaba/MG, a. 3, n 171. Disponvel em: Acesso em Acesso em: 25 abr. 2008.

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Seguramente, tal flexibilidade decorre justamente de se tratar de um princpio, que tem como principal caracterstica a possibilidade de amoldar-se aos mais diferentes casos concretos. Veja-se ainda que apesar da visualizao da possibilidade de aplicao do princpio, ser mais evidente quando tratamos de questes patrimoniais, a elas ele no se restringe, como inclusive se verificou em decises supracitadas. importante frisar-se ento que desarrazoado aplicar o princpio quando o crime tiver sido praticado mediante o uso de qualquer tipo de violncia. Desta forma, profundamente criticvel a posio adotada por juiz da comarca de Santa Luza do Paru (MA). Aplicou o magistrado o princpio da insignificncia a delito de atentado violento ao pudor, em que o agente, aps agarrar e arrastar a vtima at uma casa abandonada, l, portando um pedao de madeira e uma p, a teria ameaado de morte e de agresses fsicas, obrigando-a a praticar e permitir que com ela se praticassem atos libidinosos diversos da conjuno carnal. Inclusive procedeu-se ao exame de leses corporais e foram apreendidos os objetos utilizados para o constrangimento da vtima.70 Inaceitvel tal entendimento, no sendo jamais a hiptese de se considerar o bem jurdico superficialmente afetado, apenas porque revelou-se que a vtima se prostitua. O que porventura poderia ocorrer seria considerar o comportamento da vtima quando da anlise das circunstncias judiciais previstas pelo artigo 59 do Cdigo Penal71. Como j mencionado, existindo violncia no poder ser considerado insignificante o crime. Como j teve oportunidade de reconhecer nosso extinto Tribunal de Alada:Por unanimidade de votos, negaram provimento. Apelao Criminal - roubo qualificado por concurso de agentes - art. 157, 2 , inc. II do Cdigo Penal deciso condenatria - recurso - pleito absolutrio - impossibilidade - autoria e materialidade demonstradas - depoimento da vtima - validade - principio da insignificncia - inaplicabilidade - sentena e apenamentos mantidos. Em delitos como os de roubo, manifesta a relevncia probatria da palavra da vtima, especialmente quando descreve com firmeza o fato criminoso e reconhece, com igual segurana, os seus algozes. inaplicvel o princpio da insignificncia, visto que quando se trata de roubo qualificado, e

LOUVEIRA, Leopoldo Stefano Leone; DALLACQUA, Rodrigo. Atentado violento ao pudor, aplicao do princpio da insignificncia. Boletim do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais, So Paulo, n. 128, ano 11 jul/2003. p. 713-715. 71 dever no entanto destacar que esta posio se toma a despeito do desconhecimento do inteiro teor dos autos, mas apenas a partir do contedo da sentena que deu fim aos mesmos, conforme transcrio feita pelo referido peridico.

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irrelevante o valor da coisa subtrada. Recurso improvido. (TA-PR. Apelao Criminal n. 0189243-7 Relator: Juiz Rafael Augusto Cassetari. 31 out. 2002)

O princpio tambm aplicvel a delitos contra o meio ambiente, da mesma forma que em relao a outros crimes:No basta que a pouca valia esteja no juzo subjetivo do juiz. preciso que fique demonstrada no caso concreto. dizer, o magistrado, para rejeitar uma denncia ou absolver o acusado, dever explicitar, no caso concreto, por que a infrao no tem significado. Por exemplo, num crime contra a fauna no basta dizer que insignificante o abate de um animal. Precisa deixar claro, entre outras coisas, que este mesmo abate no teve influncia no ecossistema local, na cadeia alimentar, analisar a quantidade de espcimes na regio e investigar se no est relacionado entre os que se acham entre os ameaados de extino.72

No tocante s infraes relacionadas ao trfico ou uso de substncias entorpecentes, os tribunais superiores tm reiterado o entendimento de que, em se tratando de crime que tem como bem jurdico a sade pblica, classificado como de perigo abstrato, a pequena quantidade da substncia apreendida no conduz aplicao do Princpio da Insignificncia73. Por fim, concluindo este tpico que se referiu aplicao prtica do princpio, ainda necessrio um breve comentrio sobre quem est legitimado ou detm a competncia para tal aplicao. Entende-se que a autoridade policial, ainda em fase de investigao preliminar, no est autorizada a aplicar o princpio. Assim afirma nossa Constituio Federal:Nossa Constituio Federal de 1988, em seu artigo 5, inciso XXXV deixa evidente: a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou ameaa a direito. Desnecessrios maiores comentrios no tocante a tal matria, enquanto o fato encontra-se ainda na fase policial, trabalha-se com indcios, com dados objetivos e no est prevista ao Delegado a possibilidade de abrir mo da perseguio criminal, seja por que motivo for. Tambm o devido processo legal estaria sendo atacado ao se conceder 74 este poder autoridade policial.

FREITAS, Vladimir Passos; FREITAS, Gilberto Passos Crimes contra a natureza. p. 42. Efetivamente seria invivel qualquer raciocnio contrrio. Veja-se: a pequena quantidade justamente um dos detalhes que permitem diferenciar o uso do trfico, logo, se por ser pequena a quantidade o crime pudesse ser considerado insignificante, no existiria o crime de uso. Por outro lado, o que a nova legislao anti-drogas fez no foi descriminalizar tal conduta, e sim apenas prever uma nova modalidade de pena substitutiva em tais casos, que seria o tratamento do usurio. No poderia ento o Estado abrir mo de tratar o ru, quase o incentivando a permanecer no vcio, em razo da pequena quantidade de substncia entorpecente, isto iria contra a inteno poltico-criminal da lei. 74 MELHEM, Patrcia Manente. O princpio da insignificncia no direito penal. p. 26.73

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Trata-se de fase ainda meramente indiciria e aquilo que pudesse ao Delegado de Polcia parecer insignificante, no decurso da Ao Penal poderia assim no se revelar. Neste tocante, aduz Luiz Flvio GOMES:Na fase preliminar investigatria cabe autoridade policial apurar os fatos e registrar os fatos. No lhe cabe fazer juzos valorativos conclusivos. Sua tarefa a de registrar os fatos, para que eles sejam valorados conclusivamente pelo juiz. [...] O que se deve evitar, quando presente uma causa de excluso da tipicidade material, a prtica de qualquer ato de constrangimento (indiciamento, v.g.).75

Pelo ainda precrio conjunto probatrio no seria adequada a aplicao do princpio pelo Delegado de Polcia, cabendo ao Ministrio Pblico o parecer pelo arquivamento do Inqurito Policial, do que, conforme as regras processuais penais, poder discordar o magistrado, enviando o procedimento Procuradoria Geral de Justia. A aplicao do princpio assim melhor fiscalizada e controlada. Conclui-se ento pela inexistncia de critrios seguros ao aplicador do Princpio, cabendo apenas ao seu bom senso a apreciao do caso concreto e seu contexto, para decidir quanto aplicao, ou no, do princpio. 1.4 INSTITUTOS RELACIONADOS Anteriormente afirmou-se que o Princpio da Insignificncia uma das propostas includas no que se chamou Direito Penal Mnimo, porm, evidentemente, no a nica soluo apontada na inteno de evitar os possveis efeitos nefastos do crcere. Entre as demais solues sugeridas encontra-se por exemplo: dar-se maior ateno ao Princpio da Interveno Mnima e da Adequao Social, s caractersticas de fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal, aos chamados substitutivos penais e institutos atravs dos quais se evitariam a ao penal e at mesmo a pena, tal como o sursis, a suspenso condicional do processo, progresso de regime de cumprimento de pena, etc. Seguramente so bastante assemelhados e de maneira geral demonstram a tendncia a um direito penal um tanto mais flexvel e humanizado. No

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GOMES, Luiz Flavio. Direito penal: parte geral. p. 252.

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entanto, so bastante diferentes, seja em seu contedo, seja no momento de sua considerao, como veremos adiante. Conforme ROXIN, considerando que o poder outorgado ao Estado, pelos cidados, atravs do contrato social, foi apenas o estritamente necessrio para manter uma convivncia pacfica, os comportamentos s devem ser punidos quando no houver outra forma mais branda de os corrigir. o que se verifica em todas as propostas que sero aqui verificadas, afirmando o mesmo autor que a tendncia de substituir as sanes penais por formas mais brandas de preveno e de compensao dever ser levada ainda mais longe no futuro.76 Ainda, uma anlise mais cuidadosa do tema, revela inclusive a eventual desnecessidade do Principio da Insignificncia, tamanhos so os filtros para a criminalizao de uma conduta e de uma pessoa, e tamanhas as alternativas pena e penas alternativas. Nas linhas a seguir sero abordados outros princpios do Direito Penal que so tambm originados na inteno de reduzir o mbito de atuao deste ramo do Direito, e que j serviriam de filtro suficiente para a criminalizao de condutas e pessoas. Posteriormente, no captulo mais diretamente relacionado anlise da real necessidade do Princpio da Insignificncia, sero abordados outros institutos, de natureza material e principalmente processual, que constituem verdadeiras medidas despenalizadoras e podem ser respostas mais adequadas mesmo a fatos que vm sendo considerados insignificantes. 1.4.1 Princpio da Subsidiariedade e Fragmentariedade do Direito Penal Ao iniciar a abordagem das caractersticas do Direito Penal, Luiz A