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Passagens sobreposições de tempo e lugares nos livros de artista
LUISE WEISS
“Viagem nunca feita”
Foi por este crepúsculo de vago outono que eu parti para
essa viagem que nunca fiz.
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
RESUMO
Fotografias de paisagem, cartas, cartões postais familiares remontam aos anos de 1925 a 1950,
época nas quais as viagens de navio preponderavam. Levas de emigrações que iam e vinham. As
famílias mantinham contatos com os parentes residentes na Europa; com a minha família não foi
diferente. Visitei em viagens curtas de pesquisa essas paisagens que já não pertenciam à família,
eram espaços não vividos por mim, mas registrados por fotografias. A partir delas, iniciei uma
investigação poética incorporada na produção de livros de artista. Iniciando pelo manuseio das
fotografias, produzi material com sobreposições, ampliações/reduções, incorporando-os à
narrativa visual. A questão do tempo, da memória, estava amplamente impregnada nas
fotografias e no folhear dos livros, página após página.
Palavras-chave Fotografia, Livro de Artista, Memória, Tempo, Espaço.
ABSTRACT
Landscape photos, letters, family postcards date back to the years 1925 to 1950, a time when ship
travel preponderated. Immigration leavies came and went. Families had contacts with relatives
living in Europe; with my family it wasn´t different. I visited in short research trips those
landscapes that no longer belonged to the family, were spaces not lived by me, but recorded by
photos. From these images, I began a poetic investigation incorporated into the production of
artist's books. Starting with the handling of photos, I produced material with overlaps,
UNICAMP, livre docente em Poéticas Visuais.
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enlargements / reductions, incorporating them into visual narratives. The question of time, of
memory, was largely impregnated in the photos and leafing through the books, page after page.
Keywords: Photos, Artist’s Book, Memory, Time, Space
Introdução
Como falar, ou melhor, representar a passagem do tempo, as memórias e os
esquecimentos? O presente texto, como reflexão, como depoimento, acompanha a produção
artística. As questões acima assinaladas nortearam o percurso da trajetória artística, na qual as
fotografias constituem-se como matéria-prima da trajetória artística.
A partir das obras de alguns artistas, que utilizam material fotográfico na construção de
seus livros de artista, e posteriormente observando a produção do ateliê, no qual, a partir do
doutorado – In Memorian, defendido em 1998 na ECA-USP – na qual a presença da fotografia
se destaca através de cópias fotográficas xerox, transparências fotográficas, separei alguns
exemplares, que irão nortear a reflexão do texto, onde fotografia se livros de artista se encontram.
Trata-se de um relato, um depoimento a partir da prática artística, na qual ocorre uma
integração na produção dos livros de artista. Envolvida com as questões da memória que as
próprias fotografias evocam (fotografias familiares e anônimas), retiradas dos álbuns
fotográficos, integram-se nos livros de artista. Dados específicos se esvaem, não interessam
definições de paisagens, embora elas permaneçam: nomes de ruas, nomes de pessoas. Elas dizem
de um passado que não me pertence; porém, as fotografias atuais, que eu produzi recentemente,
se destacam talvez pelas cores, pelos recortes. Mas igualmente se deslocam para um passado
recente. Já foram. Esta noção de um tempo que se esvai, algumas fotografias trazem marcas do
desgaste, da deteriorização, porém, ai está a força: marcas de um tempo.
Os álbuns fotográficos possuem formatos de livros, entre as páginas o papel de seda
intercalado. Nos livros de artista, os formatos podem variar, criar sugestões de novas leituras,
novas interrogações. Que tempo é este? Como ler estes livros de artista?
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Fotografias e paisagens
Embora a história da não seja dependente da história do
livro (do códice, especificamente), ou vice-versa, existem
muitos momentos de sobreposição ou mútua interferência.
Paulo Silveira. A fotografia e o livro de artista.
O dicionário define nostalgia como melancolia pelo
afastamento da terra natal ou anseio de algo muito distante
ou que ficou no passado. A palavra é composta pelos termos
gregos: nostos = lar e algos = dor. O significado primário de
nostalgia tem a ver com a irreversibilidade do tempo: algo
do passado deixa de ser acessível.
Andreas Huyssen. Culturas do Passado-Presente.
A origem das fotografias avulsas ou em álbuns, sendo familiares ou anônimas, registram
lugares, paisagens brasileiras e estrangeiras. As fotografias, em formatos pequenos, em preto e
branco, foram retiradas de álbuns fotográficos, cujos papéis mostravam sinais de deteriorações.
Havia também inúmeros cartões postais, frutos de intercâmbio entre os países de origem,
como exemplo: São Paulo/Rio de Janeiro e Ratibor, Fraudstadt1 e Viena. Correspondências,
cartas, cartões postais trazem o testemunho de paisagens, cidades europeias (enviadas da Europa
para cá) e cartões postais (paisagens brasileiras) do Brasil para a Europa. Os motivos foram
1 Ratibor e Fraustadt, cidades que pertenciam à Alemanha, e após II Guerra Mundial passaram para a Polônia com os
nomes: Ratibor – Racibórz | Fraustadt – Wshowa.
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diversos: doenças, parentes afastados que ainda ficaram no outro continente, e talvez pudesse
falar da nostalgia, uma espécie de sentimento ambíguo que acompanhava muitos: sentir saudades
da Europa, das cidades, da origem, e quando estavam lá, aparecia a saudade do Brasil. Este
sentimento de um duplo pertencer, muitas vezes evocava uma indagação: afinal, as
correspondências são testemunhos de uma época precisa. Não se tratam de paisagens idílicas,
idealizadas: há cartões postais da época da I Guerra Mundial, mostrando fotografias de cidades
em ruínas. Ruínas não originárias da ação do tempo, porém da ação do homem. Ruínas de guerra
se transformando e cartões postais. Fragmentos da história impregnadas nas fotografias dos
álbuns familiares. As cidades acima mencionadas indicam um roteiro de viagens ou vivências,
que desconheço, porém habitam a memória pela contemplação de fotografias emolduradas,
pinturas retratando paisagens, desconhecidas/conhecidas.
Com o auxílio das fotografias consegui encontrar algumas residências na Europa, em
Viena, em Rattenberg (Tirol), Munique. Porém, o que fazer com estas fotografias as antigas e as
minhas atuais? Seguindo estas indagações comecei a investigar a possibilidade de criar álbuns
fotográficos, livros de artista. Desenvolvi alguns experimentos com fotomontagens e
sobreposições.
Onde fotografias e livros de artista se encontram
Os fotolivros não deixam de ser um território imagético que
ultrapassa a noção de álbum – com o qual o consumo mais
comercial aposta e se encaminha para uma interface de
criação, para uma narrativa visual de ponti luminose.
Adolfo Montejo Navas. Fotografia e Poesia.
As fotografias, quando retiradas do contexto álbum, sendo registros documentais,
históricos, sem dúvida, continuam trazendo impregnada uma imagem. Uma imagem que evoca
uma leitura.
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Em relação às fotografias, poderia pensar em fotolivros, quando a utilização dos livros de
artista passa a incorporar as fotografias. Não se trata mais de um álbum fotográfico, embora possa
ter semelhanças. Poderia ser pensado um lugar híbrido, entre os livros de artista, ou livros
ilustrados, e o universo fotográfico?
No meio de inúmeros artistas e ilustradores, utilizando o material fotográfico, escolhi três
livros de autores diferentes, os quais gostaria de mencionar: um livro infanto-juvenil, dos anos de
1960, O conto de Nils Holgerson, da autora Selma Lagerlöff, no qual, pela primeira vez
vislumbrei um conto ilustrado com fotografias e fotomontagens. O livro foi impresso em 1962.
Evidentemente, há inúmeros livros de artista, livros ilustrados utilizando fotografias. Um
percurso que sucede álbuns fotográficos.
O livro Memórias de você, de Lúcia Mindlin Loeb, evoca de maneira lúdica as quatro
gerações de mulheres, a mãe, a filha, a avó e a autora, que intercaladas e com recortes permitem
embaralhar as gerações, misturando fragmentos das gerações, em passagem.
Finalmente, uma reprodução do livro FAIT, de Sophie Ristelhueber. Ela atua como
fotógrafa de vistas aéreas e neste livro, num primeiro momento, percebemos fotografias de
paisagens, desertos... porém ao olhar mais atento, percebemos detalhes de crateras, bombas, áreas
queimadas... Um livro no qual o aspecto terrível da guerra é revelado aos poucos.
Imagem 1 Imagem 2
Cartões postais, 13 x 9 cm. Arquivo Pessoal.
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Exemplos dessas imagens encontram-se em cartões postais (Imagem 1 e Imagem 2) de
paisagens europeias e brasileiras pertencentes à familiares. Ambas paisagens são desconhecidas,
pelo tempo, pelo espaço. Algumas das fotografias voltam a aparecer em projetos de livros de
artista.
Imagem 3 Imagem 4
Cartões postais, 13 x 9 cm. Arquivo pessoal.
Outro exemplo são os cartões postais da cidade de Fraudstadt (Imagem 3 e Imagem 4),
hoje polonesa; na época, antes da II Guerra Mundial, pertencia à Alemanha. O verso dos cartões
trazem registros de endereços, nomes das pessoas no Brasil, os cartões traziam algumas
informações breves, recados, meios de comunicação fundamentais, e que chegaram a mim. Numa
fração de minutos penso: como serão os arquivos no futuro? Trata-se de uma questão em aberto.
Imagem 5 Imagem 6
7
Livro de artista “BRASIL-ALEMANHA”, 15 x 10 cm, 2017. Coleção da artista.
Nas imagens 5 e 6, o Livro de cartões postais intitulado BRASIL-ALEMANHA. No
projeto deste livro elaborei e separei de um lado os cartões postais da Alemanha enviados para o
Brasil, e vice-versa: uma interlocução intensa de intercâmbios entre os dois continentes.
Imagem 7 Imagem 8
“Tempo congelado”, 13 x 9 cm, 1952/53 – 2012. Coleção da artista.
Duas fotografias com tempos diferentes (Imagem 7 e Imagem 8): a mesma paisagem, com
uma distância de 65 anos entre uma e outra. Ao sobrepor as duas imagens, surgiram pistas
diferenças. A casa-albergue fica a 2.000m de altura, a vegetação cresce devagar, poucas
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mudanças são visíveis. Ao avistar pessoalmente a paisagem da casa-albergue, um estranho
pensamento ocorreu: aqui o tempo parou.
Imagem 9 Imagem 10
Livro de artista “Passagens”, 35 x 30 cm, 2017. Coleção da artista.
O livro de artista Passageiros de 2016 (Imagem 9 e Imagem 10) contém recortes de
fotografias em xerox e montadas em folhas de acetato transparentes; remetem a uma trajetória,
um caminho atravessando gerações e lugares/paisagens. Passageiros remete aos passageiros de
viagens como também aos passageiros do tempo, simultaneamente.
Imagem 11
“Sobreposições de idades”, 13 x 15 cm, 2005. Coleção da artista.
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Em Sobreposições de idades diferentes (Imagem 11), o intuito foi pensar na passagem
de tempo da vida, reunir em uma imagem as diversas etapas da vida de uma pessoa. Utilizando o
processo de fotografia analógica, comecei a sobrepor fotografias da mesma pessoa, sem registro
preciso: como capturar em fracção de minutos uma vida inteira, se isto fosse possível?
Imagem 12
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“Paisagens sobrepostas”, 13 x 15 cm, 2011. Coleção da artista.
Nesta imagem 12, igualmente realizada com o processo fotográfico analógico, foram
criadas justaposições de fotografias de paisagens de autoria própria, com as fotografias de álbuns
antigos. Nada havia sido planejado, tampouco havia registros. Um pensamento percorreu este
trabalho: mais do que fantasmagorias, uma vontade de trazer os retratados para a atualidade
mesmo que fictícios.
Imagem 13 Imagem 14
Livros de artista “Marchas do Tempo”, 27 x 36 cm, 2015. Coleção da artista.
Imagem 15 Imagem 16
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“Dilatação do Tempo”, 27 x 36 cm, 2015. Coleção da artista.
As imagens acima pertencem a livros de artista, produzidos a partir do ano de 2015.
Sobras de fotografias e cópias xerocadas nestes exemplos remetem ao movimento; sugerem pela
repetição movimentos, afastamentos ou aproximações, fragmentos de imagens. A fotografia pela
cópia xerografada, pode ser repetida, manipulada. Criar a ideia de movimento pela repetição onde
não há mais o movimento congelado pela fotografia. O movimento está na própria imagem
fotográfica e também no formato de livro de artista.
Imagem 17 Imagem 18
Imagem 19 Imagem 20
12
“Paisagens fotográficas”, 13 x 9 cm, 2013. Coleção da artista.
Esta série produzida na cidade de Marianowo (imagens acima), norte da Polônia, durante
um workshop, consta de frames (recortes) de uma filmagem dos anos de 1930 e 1940, de cidades
do Leste Europeu, mais especificamente dos bairros judeus. Usando tinta nanquim, comecei a
desenhar detalhes de paisagens de Marianowo, pedras, árvores e pequenos objetos. Há uma
continuação desta série com os fotogramas antigos e detalhes recortados de fotografias recentes
de minha autoria. Ou seja, o trabalho continua no seu desdobramento.
Entre memória e esquecimento nos livros de artista considerações finais
O historiador de arte não deveria apenas contemplar, deveria
também recordar.
Aleida Assman. Espaços da Recordação.
Eu parti? Eu não vos juraria que parti. Encontrei-me em
outras partes, vi outros portos, passei por cidades que não
eram aquela ...
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.
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O título Passagens: sobreposições de tempos e lugares nos livros de artista surgiu no
encontro de fotografias de paisagens/lugares de épocas diferentes: passagens, atravessando
lugares e tempos. A relação temporal, assim como a noção de lugares e paisagens, se encontra
nos livros de artista. As fotografias contêm lugares e tempos; os livros, ao serem folheados,
manipulados evocam caminhos, de um lado ao outro atravessando páginas. Este ato de folhear o
livro contém um tempo físico. Por outro lado, há o tempo impregnado da fotografia: da criação
dos livros, ambos se fundem. O tempo da fotografia, o tempo do livro, ficam amalgados nos
trabalhos artísticos. As fotografias revelam um lugar, um tempo, que não me pertence. Como
criar uma fusão do tempo passado e presente, apontando para um futuro vago. Como apressar
este amalgamento num projeto artístico?
As fotografias trazem referências inseridas na própria imagem: temáticas de paisagens,
fauna, flora, passagem do tempo, memória, morte, vida e outros. Estas temáticas sugerem
períodos históricos, texturas, monocromias ou policromias; ou seja, devem ser observadas
também como questões de sintaxe visual, composição, enquadramento, recortes espaço-
temporais; porém, no universo do livro de artista, estas questões devem ser integradas no formato
do livro, caso contrário estaríamos vendo álbuns fotográficos ou livros de fotografia. Esta reunião
da fotografia e do livro tornou-se o eixo fundamental da pesquisa, a descoberta do exato lugar
onde o livro encontra a fotografia.
Para finalizar como bem disse Jorge Luís Borges, no seu livro Cinco Visões Pessoais:
“Pegar um livro e abri-lo conte´m a possibilidade do fato estético. Que são as palavras impressas
em um livro, se não o abrimos? É, simplesmente, um cubo de papel e acontece uma coisa rara:
creio que ele muda a cada instante” (BORGES, 1985: 11)
Referências bibliográficas
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Paulo: Boitempo, 2018.
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FABRIS, Annateresa. Fotografia e Arredores. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009.
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HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
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LOEB, Lucia Mindlin. Memória de Você.
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RISTELHUEBER, Sophie. FAIT. New York: Books and Books 3, 2005.
SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas: Editora UNICAMP, 2012.
SILVEIRA, Paulo. A fotografia e o livro de artista. In: SANTOS, Alexandre; SANTOS, Maria
Ivone de (orgs.). A Fotografia nos processos artísticos contemporâneos. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2004.