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Magda Zanoni Gilles Ferment (Organizadores)

TRANSGNICOS PARA QUEM?Agricultura Cincia Sociedade

Ministrio do Desenvolvimento Agrrio Braslia, 2011

LUIZ INCIO LULA DA SILVA Presidente da Repblica GUILHERME CASSEL Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrrio DANIEL MAIA Secretrio-Executivo do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio ROLF HACKBART Presidente do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

ADONIRAM SANCHES PERACI Secretrio de Agricultura Familiar ADHEMAR LOPES DE ALMEIDA Secretrio de Reordenamento Agrrio JOS HUMBERTO OLIVEIRA Secretrio de Desenvolvimento Territorial JOAQUIM CALHEIROS SORIANO Diretor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural VINICIUS MACRIO Assessor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural CAPA Leandro Celes PROJETO GRFICO E DIAGRAMAO Pedro Lima

PRODUO EDITORIAL Ana Carolina Fleury REVISO E PREPARAO DE ORIGINAIS Cecilia Fujita

Srie NEAD Debate 24 Copyright 2010 MDA MINISTRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRRIO (MDA) NCLEO DE ESTUDOS AGRRIOS E DESENVOLVIMENTO RURAL (NEAD) SBN, Quadra 2, Edifcio Sarkis Bloco D - loja 10 sala S2 Cep: 70040-910 Braslia-DF / Telefone: (61) 2020-0189 Z359t Zanoni, Magda Transgnicos para quem? Agricultura, Cincia e Sociedade/ Magda Zanoni ; Gilles Ferment (orgs.) ; Braslia : MDA, 2011. 538p. (original impresso); 16x23cm 520p. (verso digital) Srie NEAD Debate 24 ISBN 978-85-60548-77-4 1. Agricultura. 2. Agronomia. 3. Biossegurana. 4. Biotecnologias. 5. Cincias Biolgicas. 6. Ecologia. 7. Transgnico. I. Zanoni, Magda. II. Ferment, Gilles. III. Ministrio do Desenvolvimento Agrrio. IV. Ttulo. CDD 631.52

Gostaria de recorrer mitologia e citar Ddalo que , no meu ponto de vista, o exemplo tpico do engenheiro de hoje para ilustrar o mito do Progresso. Minos tomou emprestado um touro de Zeus e no o devolveu. Zeus, para puni-lo, infunde em Pasfae, a esposa de Minos, uma paixo pelo touro. Pasfae quer copular com o touro. Minos, que um homem declaradamente muito aberto, concorda e chama seu engenheiro Ddalo. Este fabrica uma vaca de couro e madeira (mais ou menos do jeito que se utiliza hoje nos centros de inseminao artificial) e Pasfae copula com o touro. Dessa unio, nasce o Minotauro. Novamente Ddalo solicitado para solucionar o problema. Ddalo inventa seu famoso labirinto para ali confinar o monstro, mas o Minotauro devora alguns e algumas atenienses a cada ano. preciso, portanto, livrar-se dele. Encarregam Teseu de matar o Minotauro, mas permanece uma dvida: como Teseu sair do labirinto aps ter cumprido sua misso? Ariane, a filha de Minos, que est apaixonada por Teseu, pergunta a Ddalo como proceder. Ddalo indica-lhe a tcnica do fio. Teseu mata o Minotauro e sai graas ao fio de Ariane, mas infelizmente esquece Ariane no caminho. Minos, furioso, acha um bode expiatrio na pessoa de Ddalo, que ele encerra no labirinto com seu filho caro. Para escapar, Ddalo, que declaradamente tem f nas solues tcnicas para resolver os problemas apresentados por suas prprias tcnicas, fabrica asas e foge com seu filho; mas este se aproxima muito do sol e morre, para desespero de seu pai. Esta histria mostra como, a partir de uma necessidade ilegtima salva pela tcnica, o recurso sistemtico soluo tcnica somente causa novos problemas. PIERRE-HENRY GOUYON

SUMRIOAPRESENTAO INTRODUO UM CONVITE LEITURA: NDICE DETALHADO DO LIVRO

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PARTE 1 - OGM: Sair do reducionismo cientfico visando uma cincia aberta para a sociedade 1. TRANSGNICOS, PODERES, CINCIA, CIDADANIA* Gilles-Eric Sralini

31 39

2. CINCIA PRECAUCIONRIA COMO ALTERNATIVA AO REDUCIONISMO CIENTFICO APLICADO BIOLOGIA MOLECULAR * Rubens Onofre Nodari* Pierre-Henri Gouyon

3. O MITO DO PROGRESSO

63 67 82 93

4. EUCALYPTUS GENETICAMENTE MODIFICADOS E BIOSSEGURANA NO BRASIL* Paulo Kageyama e Roberto Tarazi

* Arnaud Apoteker

5. CINCIA E DEMOCRACIA: O EXEMPLO DOS OGMs

6. ANLISE DE RISCO DAS PLANTAS TRANSGNICAS: PRINCPIO DA PRECAUO OU PRECIPITAO?* Gilles Ferment

PARTE 2 - Transgnicos: O necessrio enfoque multidisciplinara) Os embates agronmicos e ecolgicos dos transgnicos

227 140 170

7. ELE SEMEOU, OUTROS COLHERAM: A GUERRA SECRETA DO CAPITAL CONTRA A VIDA E OUTRAS LIBERDADES* Jean-Pierre Berlan

*Christophe Bonneuil, Elise Demeulenaere, Frdric Thomas, PierreBenot Joly, Gilles Allaire e Isabelle Goldringer

A pesquisa ante o surgimento de um novo regime de produo e regulamentao do conhecimento em gentica vegetal

8. OUTRA FORMA DE INOVAR?

9. PLANTAS TRANSGNICAS: INTEIS E PERIGOSAS* Jacques Testart

221 239

10. OS RISCOS PARA A BIODIVERSIDADE DESENCADEADOS PELO EMPREGO DAS PLANTAS GENETICAMENTE MODIFICADAS* Marc Dufumier

b) Os embates polticos, institucionais e jurdicos: dos contextos nacionais ao contexto internacionalBIOSSEGURANA: LIES DE UMA EXPERINCIA

11. O BIORRISCO E A COMISSO TCNICA NACIONAL DE

244

* Magda Zanoni, Leonardo Melgarejo, Rubens Nodari, Fabio Dall Soglio, Paulo Kageyama, Jos Maria Ferraz, Paulo Brack, Solange Teles da Silva, Luiza Chomenko, Geraldo Deffune*

* Produo coletiva: Fundao Cincias Cidads e Aliana pelo Planeta

12. QUAL A PROTEO PARA OS EMISSORES DE ALERTA?

277 286 294

* Eric Meunier

13. A INCRVEL HISTRIA DO MILHO MON 810

14. A INFORMAO SOBRE ALIMENTOS TRANSGNICOS NO BRASIL* Andrea Lazzarini Salazar

15. OGMs E O PODER DOS CONSUMIDORES: OS DESAFIOS DA ROTULAGEM* Jean-Yves Griot

309 318 323

16. TESTEMUNHO DE UM PREFEITO DE MUNICPIO RURAL DA FRANA* Yves Manguy

17. A IMPORTNCIA DA PARTICIPAO DA CINCIA JURDICA NO DEBATE SOBRE AS BIOTECNOLOGIAS E SUA CONTRIBUIO CRTICA ANLISE DA UTILIZAO DA TRANSGENIA NO MODELO AGRCOLA-ALIMENTAR* Bruno Gasparini

18. A CONVENO SOBRE DIVERSIDADE BIOLGICA DA ONU: O CENRIO INTERNACIONAL E AS AGENDAS INTERNAS DO BRASIL* Marco Aurlio Pavarino

345

c) Os embates sociais e econmicos

19. OS ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS (OGMs) PODERIAM ALIMENTAR O TERCEIRO MUNDO?* Marc Dufumier

368 394 400

20. OGM: AS EMPRESAS COLHEM OS DIVIDENDOS DA FOME* Christophe Noisette

21. A CONFERNCIA DOS CIDADOS: UMA FERRAMENTA PRECIOSA PARA A DEMOCRACIA* Jacques Testart

PARTE 3 - Atores sociais: Resistncias e cidadania 22. PEQUENOS AGRICULTORES E MARGINALIZADOS RURAIS EXPRESSAM-SE SOBRE A AGRICULTURA E OS OGM* Michel Pimbert, Tom Wakeford e Periyapatna V. Satheesh

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23. A EXCLUSO DOS OGMs NAS BOAS REFEIES DA AGRICULTURA SUSTENTVEL: UM FALSO PROBLEMA E UM VERDADEIRO SUCESSO!* Fabio Sarmento da Silva

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24. CAMPANHA POR UM BRASIL ECOLGICO LIVRE DE TRANSGNICOS E AGROTXICOS: O BALANO DE 10 ANOS* Gabriel Fernandes

426 432 448

25. VIOLAO DE DIREITOS E RESISTNCIA AOS TRANSGNICOS NO BRASIL: UMA PROPOSTA CAMPONESA* Marciano Toledo da Silva

26. O MOVIMENTO ESTUDANTIL NA LUTA CONTRA OS TRANSGNICOS* Produo coletiva: Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab) e Associao Brasileira de Estudantes de Engenharia Florestal (Abeef)

27. OGM: SEGREDO DE ESTADO OU SEGREDO ATRAVS DO ESTADO* Corinne Lepage

456 459 473

28. AS LOJAS DE CINCIAS: OUTRA MANEIRA DE PRODUZIR E DIFUNDIR OS CONHECIMENTOS CIENTFICOS* Claudia Neubauer

29. SEGUNDO GUIA DOS PRODUTOS DA REGIO BRETANHA SEM OGM* Produo coletiva: Reseau Cohrence pour un Dveloppement Durable et Solidaire [Rede Coerncia para um Desenvolvimento Sustentvel e Solidrio]

* Associao Nacional dos Ceifadores Voluntrios

30. CARTA DOS CEIFADORES VOLUNTRIOS A desobedincia civil em face dos transgnicos: porqu? 31. INFOGM VIGILNCIA CIDAD 32. CRIIGEN

476 484 490 500 507

* Christophe Noisette

* Frderic Jacquemart

33. FRANCE NATURE ENVIRONNEMENT (FNE)PERFIL DOS AUTORES

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Apresentao

APRESENTAOA adoo de um novo modelo tecnolgico em determinado ramo econmico sempre implica impactos positivos e negativos a serem absorvidos pela sociedade, sendo que a distribuio dos benefcios e prejuzos resultado da correlao poltica, econmica e social entre os setores envolvidos. Essas novas tecnologias, cujo domnio geralmente se restringe a crculos bastante restritos da comunidade cientifica, no podem prescindir da construo de legitimidade social que justifique sua implementao, e quanto maiores so os impactos negativos e as resistncias, maior a necessidade de investir na propaganda do modelo. Nas ltimas dcadas, o desenvolvimento e a utilizao dos organismos geneticamente modificados, ou simplesmente transgnicos, em larga escala na agricultura tm se sustentado sob trs argumentos principais: a preservao do meio ambiente, o aumento da produo para combater a fome e a reduo dos custos de produo. Em cada um desses eixos depreende-se um enorme esforo para demonstrar como os transgnicos geram resultados positivos, e que no h risco para o meio ambiente e em particular para o consumo pelos seres humanos. Ainda que os estudos que defendem a ausncia de risco sejam constantemente contestados, importante que a discusso sobre os aspectos particulares e predominantemente cientficos estejam inseridos em um debate mais amplo sobre o modelo de produo agrcola no mundo. No h dvida de que a agricultura est inserida no modelo globalizado, e um exemplo concreto foi a influncia da crise mundial sobre os preos dos alimentos; investidores que participavam da ciranda financeira de ativos virtuais foram em busca das commodities agrcolas, gerando impactos nos preos negociados nas bolsas de valores. Nesse modelo, os mercados sofrem forte concentrao, pois as empresas se tornam global players, uma forma simptica de dizer que elas passam a ter condies de controlar ativos (insumos, capital, terras) importantes em vrias partes do mundo, podendo exercer grande influncia sobre os mercados. E como sempre, poder econmico sinnimo de poder poltico. Portanto, o debate sobre a possibilidade de transferncia horizontal de sequncias genmicas entre OGMs e bactrias no pode estar descolado do

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fato de que trs empresas de sementes Syngenta, Monsanto e DuPont controlam a produo de sementes transgnicas e outras poucas controlam o mercado de cereais. a partir da anlise crtica sobre a adoo dessas tecnologias que o livro Transgnicos para quem? se insere, ao estimular uma reflexo sobre a necessidade de derrubarmos as barreiras disciplinares, que condicionam a cincia e a produo em caixas estanques, estimulando a especializao exacerbada e resultados autocentrados. Todos os lados envolvidos na disputa em torno dos OGMs admitem que essa tecnologia envolve riscos. Nessa medida preciso que as decises relativas a essa matria no se restrinjam aos crculos cientficos. Seus impactos podem afetar a sade de milhes de pessoas ao redor do mundo, logo, o conjunto da sociedade deve avaliar se os impactos positivos compensam os riscos e as incertezas. Esperamos que esse livro sirva de estmulo a essa reflexo. Boa leitura! Joaquim Calheiros Soriano Diretor do Ncleo de Estudos Agrrios e Desenvolvimento Rural do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio

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Introduo

INTRODUONestes ltimos anos, o aumento da rea agrcola plantada com lavouras transgnicas e o nmero de Plantas Geneticamente Modificadas (PGM) liberadas comercialmente reforam a necessidade de estar atento evoluo do uso das biotecnologias e s suas consequncias. O Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA), envolvido em vrios domnios desse debate, prope, por intermdio do seu Ncleo de Estudos Agrrios e de Desenvolvimento Rural (NEAD), essa publicao intitulada Transgnicos para quem? Agricultura, Cincia e Sociedade. Trata-se de uma edio sobre questes biolgicas e sociais ligadas biossegurana dos transgnicos, num contexto nacional e internacional, com autores franceses e brasileiros. O objetivo deste livro trazer uma reflexo acerca da anunciada capacidade dos transgnicos de resolver as dificuldades atuais e futuras com as quais nossas sociedades e, particulamente, os agricultores familiares e camponeses do mundo esto confrontados. Ele tambm o resultado das reflexes de certos pesquisadores, at ento minoritrios, que por meio da participao e vivncia em comisses nacionais de engenharia gentica (Frana) e em comisses tcnicas nacionais de biossegurana (Brasil) no tiveram o poder de expressar sua oposio e tampouco interromper (em razo do voto sempre minoritrio) as liberaes comerciais de sementes transgnicas solicitadas pelas empresas multinacionais, embora a avaliao do risco e o respeito ao Princpio da Precauo fossem determinados no Brasil pelas leis nacionais (Lei de Biossegurana) e internacionais (Protocolo de Cartagena). A discusso se adensa com enfoques diversos sobre as limitaes do reducionismo cientfico (at mesmo entre as prprias cincias biolgicas), sobre a pertinncia e a contribuio

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das cincias sociais, humanas e naturais articuladas e exigidas na abordagem de uma realidade complexa. Os artigos oferecem, assim, uma grande diversidade de anlises e de pontos de vista de atores sociais: agricultores familiares, cientistas internacional e nacionalmente reconhecidos, estudantes, associaes, cooperados, ativistas. Pensamos ser imprescindvel relatar a posio da sociedade civil, tanto no Brasil como em outros pases, sobre essa nova tecnologia. Ela apresenta uma particularidade que no das menores cria e transforma seres vivos. De fato, os movimentos de resistncia aceitao dos transgnicos pelos consumidores europeus esto abrangendo setores da sociedade cada vez mais amplos, preocupados com a alimentao e a sade e apoiados em vrias situaes, cuja pertinncia no mais necessrio demonstrar, j que os riscos evoluram para catstrofes ditas naturais... Assim, a sociedade civil manifesta suas preocupaes e organiza-se para pesar sobre as decises do mundo da cincia. As inovaes so consideradas por numerosas associaes de pesquisadores, cidados, grupos de informao, fundaes, sindicatos como devendo ser apropriadas quando trazem benefcios para a sociedade e para a democracia. Refutam as teses da implicao linear da cincia com a inovao, desta com a tecnologia e desta, por sua vez, com o progresso. Tambm defendem posies crticas em relao s escolhas definidas pelas polticas cientficas, fortemente reduzidas s necessidades da tecnologia e transformadas no que hoje se desenvolve aceleradamente como tecnocincia. Esses grupos reivindicam a articulao dos saberes cientficos e populares entre si, no objetivo de um enriquecimento recproco. Felizmente, o monoplio das discusses sobre a cincia no pertence exclusivamente aos adeptos do progresso cientfico e tecnolgico e tecnocincia. Alis, as controvrsias cientficas sempre fizeram parte da cultura da cincia.

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Introduo

J na dcada de 1950, Jacques Ellul, filsofo francs, abordava essa discusso (Le systme technicien, Paris: Calman-Levy, 1977):Mais o progresso tcnico cresce, mais aumenta a soma de efeitos imprevisveis. Certos progressos tcnicos criam incertezas permanentes e em longo prazo [...] Processos irreversveis foram j implementados, particularmente no campo do meio ambiente e da sade. Os problemas ambientais so exemplares. Criados pelo desenvolvimento tecnolgico desenfreado e irrefletido, necessitam sempre de novos instrumentos e tcnicas para resolv-los. Os problemas de sade pblica ou de segurana alimentar so sistematicamente reformulados de modo que possam receber solues tcnicas ao invs de solues polticas. [...] O sistema tcnico gera mecanismos de excluso social devido prpria Tcnica. Ele marginaliza um nmero crescente de homens e mulheres que perdem progressivamente a capacidade de se adaptar sofisticao das tcnicas, de seguir o ritmo do trabalho e da vida social na sociedade tecnicista (Lhomme qui avait presque tout prvu [O homem que havia previsto quase tudo], Paris: Le Cherche Midi, 1977). A Tcnica no suporta o julgamento moral [...] no domnio da tecnologia, tudo o que da ordem do possvel ser um dia realizado, para o melhor ou para o pior; manipulaes do genoma humano, insero de chips eletrnicos no homem, armas destruidoras [...]. A nica questo de saber em que escalas essas realizaes sero conduzidas e em que medida as foras sociais conseguiro limit-las.

Temos que nos congratular com a bem-vinda intromisso dos filsofos, mas no menos com a intromisso dos socilogos: Regina Bruno, no artigo Transgnicos, embates de classes? (Um Brasil ambivalente, Rio de Janeiro: Edur; UFRJ, 2009), situa no curso das transformaes da agricultura e da sociedade brasileira das ltimas dcadas novos modos de conflituosidade entre classes e grupos sociais dominantes e subalternos no campo. Assim, concebe os transgnicos como espao de conflito, de disputas e de embates entre os empresrios do agronegcio, os proprietrios de terra, os agricultores familiares e os trabalhadores rurais sem-terra.

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Desse modo, este livro destina-se tanto formao de pesquisadores e professores como de tcnicos e extensionistas agrcolas, produtores e consumidores preocupados com a necessidade de um modelo de desenvolvimento agrcola sustentvel que, na prtica, sob formas de controles sociais do saber, permita a reproduo das sociedades e dos ecossistemas por elas utilizados.MAGDA ZANONI e GILLES FERMENT

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Um convite leitura: ndice detalhado do livro

UM CONVITE LEITURA: NDICE DETALHADO DO LIVROPrimeira Parte OGMs: sair do reducionismo cientfico visando uma cincia aberta para a sociedadeAs biotecnologias modernas so ferramentas de grande potencial de reprogramao dos seres vivos. Contudo, o maior problema na anlise de risco desses organismos gerados pela biotecnologia que seus efeitos no podem ser previstos em sua totalidade: existem de fato numerosas incertezas cientficas. Os riscos sade humana incluem, muitas vezes sem o conhecimento da causa, aqueles inesperados, alergias, toxicidade e intolerncia. No ambiente, as consequncias so a transferncia de genes entre espcies distintas, a poluio gentica e os efeitos prejudiciais aos organismos no alvo. O princpio da equivalncia substancial, at agora utilizado, deveria ser abandonado em favor de uma concepo cientificamente fundamentada. Embora na prtica caiba aos cidados e cidads o enfrentamento e a resoluo de todos os riscos dos transgnicos, sua participao nesse debate ainda muito reduzida. Somente noes bsicas de biologia permitiriam ao cidado posicionar-se objetivamente sobre sua deciso de aceitar ou no correr esses riscos. Ora, no lugar de informar os cidados, assistimos na maioria do tempo uma desinformao por parte da comunidade cientfica, que tem como consequncia confundi-los e facilitar a aceitao de fatos pr-decididos. Conforme os autores desta primeira parte, o momento chegou para resgatar uma cincia democrtica, o que significa sua apropriao pelos cidados para fins de interesse e uso comum. Gilles-Eric Sralini, bilogo molecular, prope sair do reducionismo cientfico. Cientista internacionalmente reconhecido, aponta em sua ltima1 publicao os riscos diretos1 SPIROUX DE VENDMOIS, J.; ROULLIER, F.; CELLIER, D.; SRALINI, G.-E. A comparison of the

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sobre a sade humana da liberao comercial de trs milhos transgnicos. Alm de suas atividades de pesquisa cientfica, realiza permanentemente reflexes sobre a cincia e seu papel para a sociedade. nessa linha que foi disponibilizado esse texto: i) alertando os cidados sobre as verdades cientficas veiculadas nas mdias ou nos discursos polticos, e ii) analisando os poderes tcnicos, cientficos, mdicos, sociais, jurdicos, militares, econmicos e polticos como sendo orientados para que a gentica os utilize a seu modo. Rubens Onofre Nodari, agrnomo e geneticista, antigo membro da Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana, trata do reducionismo cientfico e da diviso por ele provocada na comunidade cientfica, especialmente no domnio da biologia molecular. Complementa sua anlise fundamentando o reducionismo pela instaurao de um dogma central que o embasa, isto , um nico gene define uma s protena que, por sua vez, responsvel por uma nica funo. Finalmente, convida os pesquisadores a adotar uma cincia precaucionria como alternativa ao reducionismo. Utilizando a metfora do caso de Ddalo, personagem da mitologia grega e com um tom bastante humorstico, Pierre-Henry Gouyon, agrnomo e geneticista, convida-nos a uma reflexo sobre a noo de progresso. O mito do progresso ressalta a parte de relatividade do progresso cientfico. Como atual membro da Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana, representando o Ministrio do Meio Ambiente, Paulo Kageyama nos faz parte da sua experincia sobre as decises e atitudes pr-indstria da CNTbio, no que diz respeito aos eucaliptos transgnicos. No artigo intitulado Eucalyptus geneticamente modificados e biossegurana no Brasil, escrito em colaborao com Roberto Tarazi, os autores ressaltam a importncia de determinar as distncias de isolamento das arvores transgnicaseffects of three GM corn varieties on mammalian health. International Journal of Biological Sciences, n. 5, p. 706-726, 2009. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2010.

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a partir de informaes cientficas pertinentes, demonstrando, por pesquisa de natureza metodolgica, os impactos ambientais que ocorreriam em caso de fluxo gnico de eucaliptos geneticamente modificados para rvores no transgnicas. O artigo de Gilles Ferment, bilogo, visa esclarecer alguns amlgamas e fatos cientficos frequentemente encontrados nas informaes disponibilizadas pelo lobbie pr-biotecnologia. De fato, h uma tendncia em confundir os cidados sobre as possibilidades e os limites da cincia, o que dificulta sua participao proativa nos raros debates pblicos sobre OGMs. Alm disso, o artigo ressalta que grande parte dos riscos e incertezas das plantas transgnicas para a sade e o meio ambiente permanece aps os processos governamentais de anlise do risco. Arnaud Apoteker, da seo internacional do Greenpeace France encarregada da campanha sobre transgnicos, descreve no seu artigo os aspectos sociais ligados expanso dos transgnicos. Para tanto, o autor escolheu cincos casos emblemticos em que os organismos geneticamente modificados foram liberados comercialmente, com mais ou menos facilidade, analisando a negao de democracia que acompanha esses processos.

Segunda Parte Transgnicos: o necessrio enfoque multidisciplinarA temtica dos transgnicos cobre um conjunto de domnios e aspectos sociais, econmicos culturais e ambientais. Desde o incio do desafio ao qual alguns autores-membros da CTNBio foram confrontados quando da elaborao das avaliaes e pareceres referentes biotecnologia, surgiu a necessidade de fundamentar a anlise utilizando o conceito de objeto hbrido, que prope a articulao de vrios objetos cientficos disciplinares para abordar temticas e realidades complexas. Assim, deveriam entrar em cena as cincias biolgicas, sociais, agrrias, jurdicas, econmicas, polticas no intuito de elaborar uma problemtica bem mais complexa do que aquela que seleciona a gentica e a biologia

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molecular como cincias dominantes. Indubitavelmente, so necessrios olhares cruzados para integrar questes decorrentes do universo das biotecnologias. Por conseguinte, justificase o necessrio dilogo entre as diferentes disciplinas, j que a biotecnologia contempla temas bastante diversos: a qualidade dos alimentos, a segurana alimentar, a proteo legal dos agricultores, a contaminao de seus cultivos, a contaminao de seres vivos no alvo, a utilizao excessiva de agrotxicos, a concentrao da terra, a concentrao da produo e da distribuio de sementes, a apropriao e o modo de uso da biodiversidade, os riscos sobre a sade humana e animal, o uso sustentvel dos recursos genticos e as polticas agrcolas. a) Os embates agronmicos e ecolgicos dos transgnicos Os fatos so esmagadores e bem conhecidos: todos os anos, dezenas de milhes de pessoas no mundo vm aumentar o nmero de indivduos passando fome ou vtimas de carncias nutricionais diversas. Entretanto a produo de alimentos no falta na escala mundial e, paradoxalmente, grande parte dessas populaes de camponeses que apenas dispem de sua prpria fora de trabalho para produzir. Nesse contexto, cabe questionar quais benefcios as Plantas Geneticamente Modificadas (PGMs) podero trazer para resolver o problema da fome no mundo, sabendo-se que as reais dificuldades so o acesso ao crdito, s sementes, aos meios de produo e de comercializao, bem como o acesso terra, que na maioria das vezes lhe so negados. Cabe ressaltar que a maior parte das PGMs est geneticamente modificada para acumular um herbicida que no as destri, mas deve destruir as ervas adventcias que as cercam e que reduzem o rendimento dos cultivos. Esse herbicida, vendido em associao com as sementes patenteadas, sob forma de um pacote tecnolgico, est fora de alcance para a maioria dos camponeses e agricultores familiares de baixa renda. Por meio dos transgnicos, todo um modelo agrcola que est sendo imposto aos agricultores do mundo. Na continuidade da

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revoluo verde, a revoluo dos genes orienta a pesquisa agrcola inspirada em um paradigma reducionista, tornando a biodiversidade um impecilho, adverso explorao dos agrossistemas. Ao contrrio do que foi anunciado pelas multinacionais de biotecnologia, assistimos, com o desenvolvimento em grande escala das plantas transgnicas pesticidas, a um aumento do consumo de agrotxicos sem que seja observvel um aumento significativo do rendimento. Em Ele semeou, outros colheram: a guerra secreta do capital contra a vida e outras liberdades, Jean-Pierre Berlan, agrnomo e economista, relata a histria do melhoramento gentico clssico dos dois ltimos sculos e nos revela como a noo de variedade evolui nesses contextos. Da seleo de variedades de alto rendimento at os transgnicos, ou mais exatamente os Clones Pesticidas Quimricos Patenteados, como so chamados pelo autor, a lgica industrial que orienta a pesquisa agronmica permanece a mesma. Outra forma de inovar? A pesquisa ante o surgimento de um novo regime de produo e regulamentao do conhecimento em gentica vegetal trata de uma anlise de Christophe Bonneuil, agrnomo e historiador de cincia, e colaboradores sobre o mercado das sementes, ou da passagem de uma economia da oferta para uma economia da demanda, economias caracterizadas por governanas altamente diferenciadas. As exigncias de qualidade por atores-chave do mercado, que se concretiza pela rejeio dos transgnicos pelos consumidores, vm adicionando tenses entre os dois tipos de modelos de produo. Os autores refletem tambm sobre a pesquisa pblica e seu posicionamento ante o crescimento de um novo modelo de produo. Plantas transgnicas: inteis e perigosas, escrito por Jacques Testart, pioneiro mundial na realizao da fecundao in vitro, traz informaes pertinentes sobre os diferentes tipos de OGMs usados por nossas sociedades e sobre seus limites em termos de resultados. Desmistifica as promessas das terapias gnicas e das futuras plantas transgnicas produtoras de remdios para qualquer tipo de enfermidades. Conclui apontando para a necessidade

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urgente de a democracia retomar seu poder de deciso diante das tecnocincias que o mercado quer impor a qualquer custo, em nome do progresso. Com Marc Dufumier, agrnomo e gegrafo com slida experincia em pesquisas sobre a agricultura camponesa e um dos pioneiros em criticar internacionalmente os prejuzos causados pela Revoluo Verde, principalmente quando implementada em pases em desenvolvimento em substituio aos modos de produo adaptados s condies socioambientais locais, encontra-se o tema Os riscos sobre a biodiversidade desencadeados pela utilizao de plantas geneticamente modificadas, no qual o autor ressalta a extrema simplificao do agrossistema requerida pelo uso de transgnicos, destacando alguns dos impactos ambientais das plantas geneticamente modificadas sobre os insetos auxiliares da propagao e reproduo vegetal (entomofauna no alvo), inimigos naturais das pragas agrcolas. b) Os embates polticos, institucionais e jurdicos: dos contextos nacionais ao contexto internacional A anlise de risco das Plantas Geneticamente Modificadas representa a nica barreira entre o desejo lucrativo das grandes multinacionais lderes na venda de pesticidas e o bem-estar das populaes e a conservao dos ecossistemas. Segundo a opinio de uma parte da sociedade, os marcos jurdicos e institucionais, nacionais e internacionais, no permitem conduzir atualmente uma anlise de risco que leve em considerao todos os desafios, inditos e especficos maior parte dos transgnicos. Considerando o carter anticientfico do conceito internacionalmente aceito da equivalncia substancial, os riscos para a sade e o meio ambiente so aspectos centrais nessa crtica. Alm disso, os riscos socioeconmicos para os camponeses e pequenos agricultores so, na prtica, desconsiderados na maioria dos casos de liberao comercial dos cultivos transgnicos. No entanto, situaes paradoxais ocorrem em diferentes pases do mundo: enquanto o milho transgnico Mon 810 que

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sintetiza um inseticida em suas clulas alvo de moratria em vrios pases da Europa devido aos riscos e incertezas a ele associados, esse mesmo milho acabou de ser liberado comercialmente no Brasil. Cabe ressaltar que essa deciso foi tomada com base em dados ambientais obtidos em zonas temperadas, em total contradio com o marco jurdico brasileiro. E como assegurar os desejos dos cidados europeus de no consumir transgnicos, enquanto a Europa dependente das exportaes de milho e soja de pases onde no existe a rotulagem? O Protocolo de Cartagena e a aplicao do Princpio da Precauo so indubitavelmente elementos-chave do respeito democracia e liberdade de consumir e produzir alimentos livres de transgnicos. O primeiro texto, O Biorrisco e a Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana: lies de uma experincia, analisa o marco regulatrio para a liberao de transgnicos no pas. De fato, foram dados a esse colegiado os poderes legais e as ferramentas institucionais para analisar e autorizar o cultivo e o consumo de plantas e outros organismos geneticamente modificados no territrio nacional. Teoricamente, a anlise do risco baseada na multidisciplinaridade das cincias e na aplicao do princpio da precauo permitiria minimizar a hiptese de danos graves e irreversveis desses OGMs para o meio ambiente e a sade humana. Por meio do artigo, os autores que so ou foram membros do colegiado apresentam a Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana (CTNBio) como uma instncia caracterizada por conflitos de interesse e falta de transparncia, na qual a Cincia representada exclusivamente como o motor do progresso. Nesse contexto, os processos de avaliao do risco so conduzidos de forma limitada s fronteiras disciplinares das cincias duras, concebidas naquele contexto como hierarquicamente superiores ao restante do universo cientfico atual. Qual a proteo para os emissores de alerta? diz respeito a esse conjunto de encontros polticos, organizados na Frana em outubro de 2007, que tiveram como objetivo elaborar

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metas e aes pblicas favorveis proteo do meio ambiente e ao desenvolvimento sustentvel. Do evento participaram representantes do governo, de associaes de profissionais e de ONGs da sociedade civil, a Fundao Cincias Cidads, membro do coletivo Aliana pelo Planeta. O texto focaliza-se sobre uma necessria proteo jurdica dos chamados whistleblowers, lanadores de alerta, que avisam a opinio pblica sobre aspectos cientficos polmicos sem, porm, o consentimento de seus institutos de pesquisa e em nome da cidadania. ric Meunier, fsico, responsvel pela associao InfOGM, que vigia a atualidade crtica sobre os transgnicos, ressalta as polmicas judiciais, ticas e cientficas que permanecem no entorno do Mon 810, alguns meses antes da sua reavaliao pela Comisso Europeia. nico milho geneticamente modificado a ter sido cultivado na Unio Europeia, o Mon 810 hoje objeto de vrias moratrias nacionais devido aos riscos e incertezas que ele apresenta em relao sade humana e ao meio ambiente. Por isso est no centro do debate sobre transgnicos na Frana, bem como no Brasil. A informao sobre alimentos transgnicos no Brasil, aqui apresentada pela advogada do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Andra Lazzarini Salazar, introduz consideraes a respeito da legislao vigente sobre proteo do consumidor e demonstra o indiscutvel direito rotulagem de alimentos. Evidencia assim a vontade legtima dos cidados em exercer sua liberdade de escolha e em incluir-se no debate sobre OGMs, ainda restrito esfera governamental, a um pequeno grupo de cientistas integrantes da CTNBio e s empresas de biotecnologia. Jean-Yves Griot, agricultor, ressalta em OGM e o poder dos consumidores: os desafios da rotulagem a importncia da rotulagem dos produtos transgnicos ao longo das cadeias alimentares. A identificao clara desses produtos representa uma das nicas maneiras de a sociedade civil poder proteger-se do consumo de alimentos geneticamente modificados, j que ela est sistematicamente excluda do debate prvio liberao comercial

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destes. Segundo o autor, parece que as empresas de biotecnologia e seus aliados na disseminao de produtos transgnicos para a alimentao humana no o entendem dessa maneira. Yves Manguy, agricultor, prefeito de um pequeno municpio rural do interior da Frana, posicionou-se ante os parlamentares antes da votao de uma lei nacional que condicionaria boa parte da legislao sobre cultivos transgnicos e de sua possvel coexistncia. Trata-se de um testemunho surpreendente, em que expe o seu ponto de vista sobre os males que afetam a agricultura e sobre as dificuldades dos camponeses em conseguir sobreviver dessa atividade nobre de produo de alimentos saudveis. A partir da anlise da contribuio de diferentes disciplinas jurdicas propeduticas (sociologia jurdica, filosofia do direito, cincia poltica, teoria geral do Estado, antropologia jurdica e histria do direito) e de disciplinas dogmticas (como o direito constitucional, administrativo, econmico, ambiental, civil, penal, agrrio, tributrio e direito do consumidor), que emprestam seus conhecimentos, reconfiguram e compem a cincia jurdica, Gasparini mostra-nos a necessidade da interdisciplinaridade para a compreenso das interaes e relaes na sociedade quanto introduo das tecnologias em geral e, especificamente, de biotecnologias. De forma clara, apresenta o modo complacente como o Estado brasileiro trata o tema no processo de introduo da transgenia na produo agrcola e alimentar nacional, em relao aos instrumentos de participao do cidado e da iniciativa privada. Apesar das mazelas polticas e judicirias, com decises tomadas margem do interesse pblico, o autor aponta o pluralismo jurdico, comunitrio e participativo, como forma pela qual a cincia jurdica pode contribuir num processo mais democrtico para a regulamentao da transgenia no sistema alimentar e agrcola brasileiro. O Brasil, por suas caractersticas de riqueza em termos de diversidade especfica, gentica e ecossistmica, tem um papel peculiar na proteo do meio ambiente no nvel internacional. A conveno sobre diversidade biolgica da ONU, o cenrio

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internacional e as agendas internas no Brasil, artigo escrito pelo assessor do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA) Marco Pavarino, expe as adaptaes do marco poltico-legal do Brasil em relao Conferncia da Diversidade Biolgica (CDB). Relata tambm as posies do pas em discusses multilaterais, em particular no que diz respeito ao Grupo de Trabalho em ABS (Access and Benefit Sharing), no aspecto de pas detentor de enorme diversidade biolgica, e ao Protocolo de Cartagena, como pas que se utiliza fortemente de recursos genticos exticos em sua produo agrcola. c) Os embates econmicos e sociais Cada ano, o ISAAA (International Service for the Acquisition of Agri-biotech Applications), organizao de promoo das biotecnologias agrcolas, elabora um relatrio de sntese das reas cultivadas no mundo com Plantas Geneticamente Modificadas (PGM), usando clculos bastante enigmticos, estimaes e extrapolaes, com a finalidade de demonstrar suas vantagens sociais e econmicas, em particular para os camponeses e agricultores familiares dos pases em desenvolvimento. Entretanto, dados independentes tendem a mostrar que os reais beneficirios das PGM so as prprias empresas multinacionais de biotecnologias. De fato, pode-se elaborar paralelos entre o crescimento do preo das sementes patenteadas, dos herbicidas associados tecnologia HT (plantas tolerantes a um herbicida total) e o bem-estar financeiro da indstria da biotecnologia. Todos esses dados esto interligados pelo aumento das reas plantadas de PGM. De outro lado, a FAO realou recentemente o aumento do nmero de pessoas passando fome no mundo (cerca de um bilho, entre os quais a maioria camponesa), e os pases-partes da Conveno da Biodiversidade no param de constatar o aumento da eroso da biodiversidade e suas consequncias ecolgicas e sociais, especialmente nos pases em desenvolvimento. Privatizao da vida, endividamento dos agricultores

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e concentrao do capital alimentar nas mos de algumas empresas multinacionais do setor qumico merecem ser levados em considerao na anlise dos desafios econmicos e sociais aos quais os transgnicos pretendem responder. Em seu segundo artigo disponibilizado para esse livro, Marc Dufumier critica o modelo de produo ligado aos transgnicos como sendo inaptos a contribuir de maneira significativa para a reduo da fome no mundo. De fato, uma anlise dos sucessos e erros da Revoluo Verde e a caracterizao socioeconmica das principais vtimas da fome no planeta apontam para possibilidades de agravar a situao da alimentao precria ou insuficiente nos pases em desenvolvimento. Isto , segundo o autor, devido substituio dos modos de produo tradicionais por pacotes tecnolgicos incompatveis com a cultura agrria e as condies ambientais locais. Em Os organismos geneticamente modificados (OGM) poderiam alimentar o Terceiro Mundo? o autor refora a necessidade de valorizar e apoiar as tcnicas e o saber-fazer dos pequenos agricultores e camponeses para enfrentar as questes de fome e subnutrio. Com Christophe Noisette, membro da associao InfOGM de viglia democrtica, obtm-se uma anlise das estratgias das principais empresas de biotecnologia para conquistar os mercados das sementes e da alimentao mundial. Em OGM: as empresas colhem os dividendos da fome, o autor mostra como os dados referentes expanso das superfcies cultivadas com plantas geneticamente modificadas so manipulados no sentido de facilitar a aceitao dos transgnicos pelas sociedades civis. Nos embates a propsito de plantas transgnicas, como modelo de produo de alimentos e escolha de polticas agrcolas, Jacques Testart destaca as possibilidades reais de a sociedade civil participar ativa e eficientemente de um debate dessa envergadura. De fato, o contraste marcante entre a opinio pblica sobre o consumo de transgnicos e o rpido desenvolvimento desses cultivos no exclui interrogaes sobre a representao democrtica da sociedade civil. A Conferncia dos Cidados: uma

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ferramenta preciosa para a democracia fornece informaes histricas sobre esse mtodo participativo e apoia a necessidade de seu uso no tratamento da questo dos transgnicos.

Terceira Parte Atores sociais: resistncias e cidadaniaO debate sobre os transgnicos, inicialmente provocado por alguns whistleblowers (difusores de alertas), penetrou amplamente no seio da populao. De uma tmida reao inicial, a sociedade civil manifesta de forma crescente seu descontentamento, sobretudo quando a inovao remete-a s incertezas e riscos precedentes (a doena da vaca louca, a contaminao dos hemoflicos pelo HIV, a clonagem da ovelha Dolly, o acidente de Chernobyl, frangos com dioxinas, vitelos com hormnios etc.). Camponeses e agricultores familiares no esto protegidos das contaminaes de seus cultivos no transgnicos; consumidores no esto protegidos dos problemas de sade ainda no identificados. Assim, vrias alternativas do espao s organizaes da sociedade civil. Na resistncia aos riscos, agrupa-se uma grande diversidade de atores: atores sociais-chave nas questes de desenvolvimento rural, produtores orgnicos, associaes agroecolgicas, sindicatos, movimentos de trabalhadores rurais, movimentos de pequenos agricultores e outros. Convm ressaltar ainda que, neste processo de construo de uma cincia democrtica e cidad, encontram-se cientistas independentes, que tambm assumem a condio de atores sociais ao divulgar publicamente seus resultados cientficos crticos. Numerosos mtodos participativos foram elaborados com vistas em mobilizar o potencial dos cidados e promover sua evoluo, de simples receptor passivo das polticas de desenvolvimento ou de simples consumidor, a fim de consolidar uma fora poltica com grande possibilidade de ao. Incitam a uma reflexo sobre as alternativas s biotecnologias para resolver problemas sociais.

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Na ndia, na frica e na Amrica do Sul, experincias de democracia deliberativa permitem que marginalizados rurais pequenos agricultores, agricultores sem-terra, operrios agrcolas e pequenos artesos e consumidores deem seu ponto de vista sobre o futuro da agricultura e sobre os organismos geneticamente modificados (OGM). Michel Pimbert e colaboradores descrevem, em Pequenos agricultores e marginalizados rurais expressam-se sobre a agricultura e os OGMs, quatro dessas experincias, entre as quais uma em Belm. Todas convergem para a rejeio dos OGMs atualmente comercializados. A excluso dos OGMs nas Boas Refeies da Agricultura Sustentvel: um falso problema e um verdadeiro sucesso! um relato de Fabio Sarmento da Silva sobre uma experincia francesa cujos resultados merecem ampla difuso. Trata-se de fornecer uma alimentao sustentvel em escolas e colgios, com o objetivo de sensibilizar os jovens a um consumo de alimentos responsvel e valorizar os produtos locais, sazonais e que respeitem o meio ambiente. Nessa experincia, organizada em cooperao estrita e equitativa com agricultores, a obteno de outro resultado significativo consistiu na eliminao da soja GM da alimentao dos bovinos de aproximadamente 50 agricultores. Campanha por um Brasil ecolgico livre de transgnicos e agrotxicos: o balano de 10 anos traz ao conhecimento de todos as inmeras aes de lutas e de resistncias que parte da sociedade civil brasileira est dirigindo via Campanha Nacional para um Brasil Ecolgico, Livre de Transgnicos e Agrotxicos. Assim, apesar da liberao comercial de uma dezena de transgnicos que apresentam riscos e incertezas para o meio ambiente, a sade pblica e as condies socioeconmicas dos camponeses e agricultores familiares, essas lutas permitiram exigir dos poderes pblicos a realizao de medidas de coexistncia, de monitoramento e da rotulagem dos produtos transgnicos. Marciano Toledo da Silva, do Movimento dos Pequenos Agricultores, no artigo intitulado Violao de direitos e resistncia aos transgnicos no Brasil: uma proposta camponesa, aborda

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a histria da introduo dos transgnicos no Brasil como um procedimento que desafia o modo de produo de alimentos pelos camponeses. O autor afirma a identidade camponesa como titular de direitos e relata as ameaas que os transgnicos representam ao modo de vida tradicional e agrobiodiversidade, meios de resistncia camponesa. O movimento estudantil na luta contra os transgnicos, assinado conjuntamente pela Federao dos Estudantes de Agronomia do Brasil (Feab) e pela Associao Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal (Abeef), apresenta as diferentes aes, com forte contedo pedaggico, desenvolvidas sobre o tema dos OGMs. Na condio de atores centrais desse debate, como futuros agrnomos e gestores de polticas agrcolas e ambientais, levam ao conhecimento do pblico universitrio suas reivindicaes e as modalidades de sua organizao. Corinne Lepage, antiga ministra francesa do Meio Ambiente e atual presidente do Criigen, conta nesse artigo intitulado OGM: segredo de Estado ou segredo atravs do Estado como o governo pode tornar-se defensor das empresas de biotecnologia, principalmente quando recusa levar ao conhecimento pblico os estudos que comprovam a segurana sanitria dos transgnicos. Denuncia a maquinaria gigante que tenta impor a qualquer custo os cultivos transgnicos aos campos e aos alimentos, sem permitir contraperitagens nem debates contraditrios, apesar de serem legtimos, ferindo os princpios de base da democracia. O debate sobre transgnicos est relacionado tambm a uma srie de discusses sobre as noes de progresso, de cincia e de tecnologia, de efetiva participao nas decises. Nesse sentido, Claudia Neubauer expe As lojas de cincias: outra maneira de produzir e difundir os conhecimentos cientficos. Como permitir aos cidados expressar-se de maneira livre e clara sobre assuntos tcnico-cientficos que dizem respeito a escolhas da sociedade? O Segundo Guia dos produtos da Regio Bretanha sem OGM, produzido pelo Rseau Cohrence pour un Dveloppement Durable et Solidaire [Rede Coerncia para um Desenvolvimento

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Sustentvel e Solidrio], foi elaborado no intuito de fornecer aos consumidores um meio simples de identificar os produtos provenientes de animais alimentados com Organismos Geneticamente Modificados (carne, leite, ovos, peixes). Por meio dessa iniciativa, a Rede tambm reuniu vrios atores locais de cadeias agrcolas, industriais e sociais que recusam os transgnicos. Por fim, os quatro textos seguintes so apresentaes de associaes e ONGs francesas que tm papel central no debate sobre transgnicos, pesquisa cientfica e democracia: Ceifadores Voluntrios; InfOGM (Vigilncia Cidad); Criigen (Comit de Pesquisa e de Informao Independente sobre a Engenharia Gentica); FNE (Frana Natureza Meio Ambiente). Nesses textos esto apresentadas suas linhas de atuao, suas formas de funcionamento e seus estatutos.

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TRANSGNICOS, PODERES, CINCIA, CIDADANIA1

Gilles-Eric Sralini

Os poderes tcnicos, cientficos, mdicos, sociais, jurdicos, militares, econmicos e polticos so todos, em um momento ou outro, inclinados para que a gentica os utilize a seu modo. Atualmente, focalizam-se diretamente sobre os genes. O balano provisrio inquietante. Os poderes tcnicos criam genes artificiais na integralidade a partir de construes quimricas que permitem transpor as barreiras das espcies. As mesmas tcnicas permitem ainda clonar ou detectar um trao nfimo de gene sobre uma maaneta de porta ou em um alimento. Os poderes cientficos asseguram o domnio da biologia molecular sobre os diferentes aspectos das cincias da vida. Ela mais vida de crditos e de cargos que as outras especialidades e pode at mesmo influenciar comits de tica. Orienta as pesquisas, os desenvolvimentos prticos ou industriais. Aliada informtica, a biologia dominar a vida do cidado do sculo 21. Os poderes mdicos favorecem as grandes arrecadaes de fundos pblicos para a gentica, sem que isso possa trazer, desde muitos anos, resultados altura das promessas, como a terapia gnica, por exemplo. Os poderes sociais, as seguradoras, os empregadores e os banqueiros se apropriam da gentica para fins duvidosos. Os poderes jurdicos, como a Corte Suprema nos Estados Unidos ou a Corte da Justia Europeia, decidiram aceitar as1 Traduzido do livro Gntiquement incorrecte [Geneticamente incorreto], de Gilles-ric Sralini, Captulo Concluso (Paris: Flammarion, 2003).

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patentes sobre os genes, e obviamente sobre os organismos vivos, o que uma revoluo incomensurvel, e, alm disso, so esses poderes jurdicos que autorizam ou no, no final, em caso de conflito, os Estados a plantarem os OGMs. Apelam por vezes a toda onipotncia dos testes genticos para tomarem suas decises. Os poderes militares apontam suas armas e defesas utilizando os genes, menos caros, mais fceis de serem manipulados do que as armas nucleares e capazes de se reproduzir. Da luta contra o bioterrorismo ao controle agrcola ou gentico, h apenas um passo. A caixa de Pandora das armas biolgicas est aberta. Os poderes econmicos vibram de prazer: o ser vivo ser patenteado graas aos genes dos quais se tornaro proprietrios privados; seus bens se estendem agricultura, aquicultura, aos animais de criao e, certamente, farmcia. As empresas, pela primeira vez, tornam-se donas de direitos de reproduo de organismos vivos. Sem contar que oferecem as modificaes genticas e a clonagem a la carte. Os poderes polticos subservientes aos interesses econmicos ditam regulamentaes que apresentam atraso em relao aos avanos das tcnicas; eles autorizam a disseminao dos OGMs no meio ambiente, a clonagem das clulas embrionrias e so, sobretudo, responsveis pelo maior ou menor rigor nos controles. Esto esses poderes sendo inocentemente aconselhados pelos poderes cientficos, cujos interesses econmicos cruzam com as biotecnologias? Os polticos de todas as partes vm estimulando h tempos esse casamento ilegtimo.

Cincia reducionista ou integrativa?Mas qual concepo da cincia anima esses conselheiros dos prncipes? A que integra a fisiologia dos organismos inteiros, a toxicologia em longo prazo, o meio ambiente, as propriedades complexas dos genes? Em resumo, a ecogentica? Ou uma cincia

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de bolso, reduzida tcnica, que prope uma concepo da gentica preparada em kit, aquela que veiculam sobretudo as pginas em papel glac das revistas de grandes firmas, os lobbies nos parlamentos e os colquios muito fechados? O conjunto representa supostamente a cincia oficial, em relao aos que so frequentemente considerados como apenas vulgares mdias exageradas, ou, pior, perante um cidado que se supe irracional aquele que apreende, portanto, com bastante bom-senso a imensido das interaes nas redes do reino vivo. Os slogans so repetidos pelos economistas e associados: Um gene, uma protena, uma funo; Com os OGMs, fazemos cirurgia molecular com muita preciso; ou, ainda, o que a natureza sempre realizou; Escolha, em suma, o que lhe d mais segurana, subentende a publicidade cientfica; Tudo para proteger o meio ambiente, certamente; Os OGMs no tm nenhum impacto negativo sobre a sade, alis, no mataram ningum nos Estados Unidos; E alimentaro os mais pobres; A clonagem dar possibilidade de se reproduzir aos casais que no o puderam fazer. E poderamos continuar com a lista por um longo tempo. O que mais grave: todas essas afirmaes ou so reducionistas, ou so falsas, ou representam apenas um aspecto muito reduzido do conhecimento. No que se refere aos genes, estes se multiplicam de clula em clula, de pai para descendente, ou por vezes por meio de transferncias muito particulares. Eles se espalham, pulam nas clulas e, conforme as condies do meio ambiente, por vezes se modificam. Envelhecem, se poluem, trabalham em rede, tm interaes positivas ou negativas e, sobretudo, de forma diferente segundo seus contextos. Nascem, morrem2 extinguemse lentamente3 ou se suicidam4. Tm efeitos completamente inesperados, cujas regras nos escapam. Existe uma verdadeira ecologia dos genes que ainda conhecemos bastante mal.2 3 4 Estes dois fenmenos, quando da transposio, por exemplo (ativaes, mutaes). Por metilaes, um dos casos. DNA degrada-se ativamente no transcorrer do apoptose, morte celular programada.

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No compreendemos as sutilezas genticas das espcies vivas que modificamos ou clonamos. Alis, no conhecemos, afinal, tanto assim. No sabemos, por exemplo, por que, nas mos dos cientistas, essas tcnicas no funcionam na maior parte dos casos, ou apresentam resultados bizarros. Fica claro que nossos dados sobre os genomas, ainda que bem parciais, correspondem somente nfima ponta emersa do iceberg. Ora, alguns declaram conhecer todo o genoma humano, para fazer com que as aes subam na Bolsa, desorientando at mesmo outros cientistas que neles acreditam momentaneamente. uma cincia reducionista, e no integrativa, com muito pouco esprito de sntese, que destinada aos tomadores de deciso. O desequilbrio entre as cincias no poder tambm contribui para essa abordagem, mas outros parmetros entram no jogo. Observa-se frequentemente uma defasagem assustadora entre a realidade do saber (nossas noes ficam bem frgeis diante da complexidade surpreendente da vida) e o que por vezes afirmado publicamente por certos grupos cientficos ou econmicos, e retomado pelos polticos com a nica finalidade de explorar a credulidade e a generosidade da populao, agitando os chocalhos milagrosos. Evoquemos, por exemplo, as promessas da luta contra a seca graas aos transgnicos; ou o anncio da descoberta de genes de doenas raras; e, ainda, os falsos avanos sobre as clonagens humanas. Para que servem essas quase mentiras? Para evitar os regulamentos ou os controles aprofundados? Para apoiar a ausncia de rotulagem? Para os lucros comerciais de determinado poder econmico? Para a recuperao de doaes generosas das grandes arrecadaes pblicas? A menos que certo poder procure assentar sua autoridade sobre o gentico-total, nada est claro. Mas alguns se aproveitam da opacidade e da falta de transparncia nas verdadeiras realizaes e em sua avaliao.

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A cincia serve tcnica e economia antes de servir ao cidadoTodas as liberdades pblicas so limitadas por outras liberdades pblicas, inclusive a liberdade de expresso. Mas no a liberdade da pesquisa5, surpreende-se a jurista especialista em domnio de biotecnologia, Marie-Angle Hermitte. A pesquisa fundamental como a arte, uma criao magnfica, e sua morte seria a morte do homem. Mas preciso ainda saber impor um prazo entre as descobertas e suas aplicaes prticas, a fim de se avaliar sem restrio os verdadeiros progressos e os riscos. Ser preciso talvez inventar espaos de liberdade pblica que permitam que as aplicaes da pesquisa em biologia no sejam sempre decididas sem a consulta ao cidado. Deve-se impor os OGMs como divindades celestiais se ningum os quer? Mas a informao severamente controlada pelas agncias de comunicao das empresas, ou pelo sistema da cincia em festa uma vez que esta agora se habituou a celebrar a si mesma. Conheo os que recusam o selo de qualidade dessas manifestaes que parecem, portanto, abertas. Tm por vezes mais publicaes ou referncias bibliogrficas que outros, mas no correspondem to bem ao discurso oficial do desenvolvimento econmico e do Tudo est sob controle, a includa tambm a tica. Ser necessrio realizar plebiscitos, como o Criigen (Comit de Recherche et dInformation Indpendantes sur le Gnie Gntique) os reclama, sobre as decises que mudam o mundo, como as autorizaes de plantio em grande escala dos OGMs ou como a clonagem? Tornemos os pesquisadores independentes dos fundos privados, auxiliando-os ainda mais, caso os julguemos teis, e organizemos a contraperitagem urgente dos dossis que modificaro a alimentao, a sade, o meio ambiente e a reproduo humana. Nada ser realizado sozinho.5 HERMITTE, M.-A. Libration, 23-24 mar. 2002. M.-A. Hermitte diretora de pesquisa no CNRS e na Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais.

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Porque, efetivamente, no presente, a cincia serve muito mais e objetivamente tcnica e economia do que sociedade; ora, a tcnica e a economia podem se desconectar dos interesses societais em curto, mdio e longo prazo, como atestam exemplos mltiplos6, simplesmente para os benefcios de algumas empresas. No existe sindicalismo da informao cientfica e isso lamentvel.

Como ser o futuro?A longo prazo, na realidade, a inteligncia artificial e a engenharia gentica representam um perigo para a supremacia do esprito humano, assegura F. Dyson, laureado com o prmio Templeton em 20007. Se isso for verdade, a vontade democrtica ser ento, infelizmente, a primeira a ser imolada no altar do sacrifcio organizado pelos diferentes poderes, pois ser um obstculo. J hoje, diversos tomadores de decises querem impor os transgnicos, custe o que custar, acreditando em promessas no verificveis. A clonagem para fins teraputicos um fato j aceito. As patentes sobre o ser vivo no sero mais verdadeiramente discutidas. E tudo isso pelos belos olhos da gentica, ou da cincia? Certos polticos e industriais raciocinam, de acordo com o princpio da bola de neve: se os americanos o fizeram, ser impensvel no correr atrs deles. pergunta: necessrio ter medo da cincia?, Corinne Lepage, que trabalha tanto para que a aplicao do princpio da precauo seja um princpio de ao e escolha, responde: A6 Cf., por ordem alfabtica e notadamente: BOV, J.; DUFOUR, F. Le monde nest pas une marchandise: des paysans contre la malbouffe. Paris: La Dcouverte, 2001; DI COSMO, R.; NORA, D. Le hold-up plantaire. Paris: Calmann-Lvy, 1998; FORRESTER, V. Lhorreur conomique. Paris: Fayard, 1996; Idem. Une trange dictature. Paris: Fayard, 2000; GEORGE, S. Le rapport lugano. Paris: Fayard, 2000; LEPAGE, C. On ne peut rien faire, Madame le ministre... Paris: Albin Michel, 1998; LUNEAU, G. Les nouveaux paysans. Paris: d. du Rocher, 1997; PASSER, R. loge du mondialisme par un anti-prsum. Paris: Fayard, 2001; SAINT-MARC, P. Lconomie barbare. Paris: FrisonRoche, 1994; SHIVA, V. Le terrorisme alimentaire. Paris: Fayard, 2001. 7 DYSON, F. Le soleil, le gnome et Internet. Paris: Flammarion, 2001, p. 119.

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cincia retornar conquista por essncia do esprito humano quando tiver aceitado substituir o progresso tecnolgico pelo progresso humano8. Porque a precauo o verdadeiro motor do progresso. No se trata de parar tudo, mas de se assegurar uma progresso inteligente. O princpio da precauo permite repensar a economia, o crescimento e o comrcio em funo dos interesses superiores da sade e do meio ambiente. Portanto, a cincia estava destinada quase que de forma natural a esses belos avanos, essas snteses, essas precaues, por sua natureza e pelos conhecimentos multifatoriais e apaixonantes que ela desperta sobre a complexidade da vida, sempre inspirando o respeito ao maravilhoso. Reduzimo-la, sequestramo-la, confinamo-la em vista de aplicaes desorganizadas e no controladas, para maiores benefcios de alguns com o risco de se colocarem como refns a sade humana, os equilbrios sociais, o planeta e seu futuro. tempo de se criar a ecogentica e de deixar a cincia respirar, a fim de se estimularem os estudos a respeito dos efeitos do meio ambiente sobre os genes e dos OGMs sobre a sade e a biosfera. O trabalho de pesquisa, o verdadeiro, na realidade, no se limita a desenrolar uma bola dourada, sob o controle das multinacionais. A cincia deve manter-se em p, sem a restrio nem a obsesso de ser imediatamente rentvel, mantendo, tal como uma sentinela, o cuidado sobre o ecossistema e sobre a humanidade.

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Entrevista com Franoise Monier, em LExpress, 3 out. 2002.

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CINCIA PRECAUCIONRIA COMO ALTERNATIVA AO REDUCIONISMO CIENTFICO APLICADO BIOLOGIA MOLECULARRubens Onofre Nodari

IntroduoO sculo 20 foi marcado por muitos fatos. Um deles foi o aumento da manipulao do mundo fsico com o avano cientfico e tecnolgico. Particularmente na rea da biologia, a influncia de fsicos e da viso reducionista promoveu uma verdadeira corrida para transformar uma cincia complexa e plena de interaes em poucas e fortes foras. Um dos resultados foi o avano tecnolgico. Outro foi a grande contribuio que essas tecnologias promoveram para o desastre ambiental que estamos presenciando. O reducionismo como mtodo cientfico consiste em decompor o todo em suas partes constituintes, at suas ltimas e menores partes possveis. Tradicionalmente, o reducionismo determinista vai mais longe, pois isola do ambiente exterior estas menores partes, que compem um todo, alm de lhes atribuir propriedades e poderes, tais como explicar fenmenos complexos ou ser soluo para problemas globais centenrios. H muitos exemplos de reducionismo cientfico, mas apenas dois deles sero objeto de anlise deste artigo: o poder e as propriedades dados ao DNA1 e o uso da tecnologia do DNA recombinante (tambm chamada de engenharia gentica) como ferramenta de solues de muitos problemas.1 Macromolcula presente nas clulas do mundo animal, vegetal e bacteriano. o suporte da informao gentica.

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O incio da biologia molecular e a engenharia genticaAs tcnicas do DNA recombinante foram desenvolvidas no incio dos anos 1970, decorrentes de vises, tcnicas e descobertas da biologia molecular. Por sua vez, uma significativa parte da biologia molecular, teve seu desenvolvimento muito antes, baseado na viso reducionista e determinstica de Max Mason e Warren Weaver, da Rockefeller Foundation (REGAL, 1996). Hoje, consegue-se entender que esses pesquisadores usaram os recursos financeiros e polticos da Rockefeller Foundation para tornar moda e promover uma nova filosofia e novas prticas para a biologia. Segundo Philip Regal, esta nova biologia deveria ser baseada em agendas filosoficamente reducionistas, j sugeridas anteriormente por Hermann Muller e Jacques Loeb. Para esta viso, a biologia deveria tornar-se a qumica do gene. Para tanto, Max Mason e Warren Weaver refugiaram-se da fsica quntica. Eles transplantaram os sonhos reducionistas/ deterministas que consideravam ser cincia verdadeira para a nova biologia. Assim, eles no somente patrocinaram tcnicas analticas novas e poderosas para encontrar e caracterizar o material hereditrio. Tambm encorajaram a comunidade cientfica a usar o reducionismo/determinismo e termos utpicos nos discursos quando da submisso de projetos (ABIR-AM, 1987; REGAL, 1989). Desde ento, dois grupos principais de cientistas biologistas se formaram. O primeiro grupo, de cientistas biolgicos tradicionais, caracteriza-se por ter uma viso holstica e realiza investigaes em estrutura, fisiologia, evoluo, comportamento, adaptao e ecologia, entre outros, de diversas formas de vida. A concepo intelectual e filosfica baseia-se nos anatomistas, melhoristas, naturalistas e fisiologistas dos sculos 18 e 19, que estudavam os organismos em seus hbitats naturais e nos laboratrios (REGAL, 1996), ou seja, a pesquisa cientfica pode ser conduzida sob um pluralismo de estratgias, no apenas aquelas

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que se encaixam na abordagem descontextualizada, mas outras que permitem investigao emprica que levam completamente em conta as dimenses ecolgicas, experimentais, sociais e culturais de fenmenos e prticas (como a agroecologia). Esta a reivindicao do pluralismo metodolgico (LACEY, 2005). O segundo grupo, formado por bilogos moleculares, conduz pesquisas na natureza qumica da gentica e sntese de protenas, e prometem que um dia a biologia tradicional tornarse- obsoleta e a biologia ser reconstruda por eles. As razes da concepo intelectual remontam, em sua grande parte, na qumica e na fsica. Estes cientistas advogam que usam a verdadeira estratgia para estudar a vida (REGAL, 1996). Tambm advogam que o conhecimento reside nos argumentos reducionistas e que desenvolvem conhecimento relacionado qumica da substncia bsica da vida. Neste caso, essas metodologias descontextualizam os fenmenos, ignorando os seus contextos ecolgicos, sociais e humanos, e (no caso dos fenmenos biolgicos e humanos) os reduzem s suas estruturas e aos seus mecanismos fsico-qumicos subjacentes (LACEY, 2005). O autor chama-as de metodologias descontextualizadas/reducionistas. Pelo sonho da filosofia reducionista espera-se que um dia todo o conhecimento seja unificado e reduzido a conceitos das cincias fsicas e limitado a simples modelos determinsticos preditivos que permitiro o controle da natureza fsica, orgnica e humana. Para tal, esta tentativa inclui a reduo das cincias sociais biologia e esta qumica, que por sua vez ser reduzida fsica, que, sim, pode prever precisamente, com simples modelos determinsticos, todos os nveis da vida e sua organizao. Esta filosofia reducionista foi difundida em muitas partes do mundo. Os laboratrios apoiados pela Rockefeller Foundation no estavam s nos Estados Unidos. Para citar apenas um pas fora os Estados Unidos, trs casos foram detalhadamente estudados na Inglaterra: fisiologia celular, no Molteno Institute em Cambridge;

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estrutura de protenas, no Cavendish Laboratory, tambm em Cambridge; e biofsica, no Kings College, Londres. Todos estes estiveram ligados ao surgimento da biologia molecular e ilustram os impactos e os limites da filantropia na inovao cientfica (ABIR-AM, 2002). Sistematicamente, desde h muito tempo, os promotores e praticantes do reducionismo/determinismo prometeram determinar a estrutura do gene e usar esta informao para corrigir problemas sociais e morais, incluindo crime, pobreza, fome e instabilidade poltica. Nesse contexto da teoria reducionista, seria lgico que problemas sociais poderiam simplesmente ser reduzidos a problemas biolgicos e, assim, corrigidos por meio de manipulaes de DNA, rgos e solo, por exemplo. Dentre os muitos, dois exemplos so emblemticos de que o reducionismo/determinismo no resolve os problemas da humanidade. O primeiro refere-se s promessas sequenciais de resolver problemas de sade humana com o uso de tcnicas de biologia molecular. O segundo o no cumprimento da promessa de diminuir a fome do mundo com a produo de plantas transgnicas, uma das aplicaes da engenharia gentica.

Promessas no cumpridas pelo determinismoPara ilustrar quo eficiente o uso de estratgias reducionistas/determinsticas na soluo de problemas complexos, sero abordados dois exemplos. A promessa de cura da fibrose cstica foi feita em 8 de setembro de 1989, quando cientistas descobriram o gene que causaria esta doena. Tal feito, contemplado com trs artigos cientficos, mereceu tambm a capa da Revista Science (v. 245, n. 4922, 1989), considerada uma das mais respeitadas do mundo. No vigsimo aniversrio desta promessa, um novo artigo na mesma revista Science faz um balano da evoluo do conhecimento

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sobre a doena (Science, 19 jun. 2009, p. 1504-1507). Mesmo aps muito trabalho, nem mesmo uma nica terapia baseada no gene da fibrose cstica, descoberto 20 anos antes, alcanou o mercado. Alguns tratamentos promissores na viso dos cientistas, especialmente os de terapia gnica, demonstraram ser extremamente desencojaradores. O esforo de cientistas que procuraram aplicar a terapia gentica conseguiu resposta em apenas 1% das clulas provocadas. O artigo da Science (2009) ilustra ainda que distintas pessoas com uma mesma mutao para a doena apresentavam sintomas diferentes. Mais do que isso, estima-se que mais de 1.500 tipos de mutaes diferentes podem causar a mesma doena. Alm disso, outros genes que igualmente produzem os mesmos sintomas foram descobertos, bem como a associao com outras doenas. O fato de ter ocorrido um conjunto significativo de avanos cientficos com a fibrose cstica tem dois significados principais. O primeiro o de que no possvel generalizar: uma doenaum gene. Segundo, em biologia as interaes so uma regra e a complexidade, e no a simplificao, embora difcil de ser estudada, deve ser tomada como premissa bsica. Apostar no reducionismo/determinismo gentico leva a outras consequncias dramticas, inclusive de natureza econmica. Na ltima semana de novembro, tanto a Science (v. 326, p. 1172, 2009) como a Nature (v. 462, p. 401, 2009) e os principais jornais internacionais reportaram a falncia da empresa deCODE Genetics Inc., criada em 2003 para procurar mutaes causadoras de doenas em humanos, usando a populao da Islndia como base de estudos. Seis anos depois, nenhum produto havia sido comercializado. O fracasso da empresa sugere que a promessa de aplicaes mdicas para o genoma humano est levando mais tempo do que seus patrocinadores esperavam. Porm, independentemente de qualquer erro da deCODE em sua estratgia de negcios, a principal razo para sua derrocada foi

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cientfica a natureza gentica de doenas acabou se revelando muito mais complexa do que se imaginava. Na verdade, muitos pensadores bilogos tm alertado sistematicamente a respeito da inadequao de estratgias reducionistas na abordagem de doenas em humanos (ex.: LEWONTIN, 2000), j que pouqussimas dessas doenas tm base puramente mendeliana2 (JABLONKA e LAMB, 2006). A outra promessa foi o aumento de rendimento e de produo para diminuir a fome do mundo, feita nos anos 1990, como uma das justificativas para o uso da engenharia gentica no desenvolvimento de plantas transgnicas. Decorridos 15 anos desde os primeiros cultivos com plantas transgnicas a situao da fome no mundo agravou-se. O nmero de pessoas com fome, no mundo, passou de 850 para 925 milhes em 2007, comparativamente ao perodo 2003-2005 (FAO, 2008). E o nmero de famintos est aumentando, pois a FAO estimava que esse nmero alcanaria a cifra de 1.020 milhes em 2009. Transformar um problema complexo caracterizado por muitos fatores como acesso, distribuio, custo ou mesmo preferncia de alimentos em um ou dois genes inseridos em plantas no poderia chegar a outro resultado que no o fracasso no cumprimento da promessa.

A quem interessa a dominao da fsica sobre a biologia?Existem muitas diferenas entre o mundo da fsica e o da biologia. Na fsica, poucas foras muito fortes dominam os fenmenos. Na biologia ocorre o contrrio, pois o organismo o nexo de um grande nmero de vias de causalidade, fracamente2 Mendel foi o primeiro a lanar os fundamentos matemticos da gentica, os quais vieram a ser chamados Mendelianismo. Entre outras Leis de Mendel h a Lei da Uniformidade, que afirma que as caractersticas de um indivduo no so determinadas pela combinao dos genes dos pais, mas sim pela caracterstica dominante de um dos progenitores. Nas Leis de Mendel as influncias do meio ambiente sobre a expresso do genoma ainda no eram levadas em considerao.

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determinveis, tornando extremamente difcil fornecer explicaes completas (LEWONTIN, 2000). A viso reducionista/determinstica, introduzida na biologia pela viso dos fsicos qunticos, considera que os organismos so preponderantemente consequncia dos genes que herdaram. Assim, segundo Lewontin (2000), diferenas e similaridades entre organismos so decorrentes de diferenas e similaridades dos seus genes. Segundo seus interlocutores, esta premissa mais cientfica que as demais vises da biologia. Mas a viso holstica da biologia assume que muitas perguntas so praticamente impossveis de responder. Outras, difceis de mensurar, como, por exemplo, na biologia evolutiva, em que no h possibilidade de medir as foras seletivas que operam na maioria dos genes, porque tais foras so geralmente fracas, mesmo que a evoluo do organismo seja por elas governada. A viso holstica da biologia decorre tambm de suas articulaes com a antropologia, a sociologia, a psicologia, a cincia poltica, a economia, a lingustica e, particularmente, a gentica e a evoluo. Por que ento utilizar o reducionismo? Serviria aos interesses conservadores? (REGAL, 1996.) Segundo este autor, a viso reducionista vem servindo aos interesses dos fsicos e qumicos, j que servem como um plano que os coloca no topo da hierarquia social/intelectual, o que os ajudaria a obter apoio para seus projetos de pesquisa. Este cenrio serve tambm aos bilogos moleculares, j que adotam a mesma viso. Bilogos ou geneticistas moleculares entusiasmados com o uso de certas biotecnologias, como, por exemplo, a engenharia gentica, no raro utilizam sua autoridade para legitimar o desconhecido. So raros os casos em que as previses, na forma de promessas ou benefcios, se confirmaram. Mas, na realidade, legitimar o desconhecido no papel de cientistas. Ao contrrio, o papel dos cientistas ir diminuindo as incertezas.

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No Brasil, centenas de projetos de transformao gentica foram financiados. J foi prometido, por exemplo, desenvolver vacina em alface. Quase uma dcada depois, a referida vacina ainda no foi desenvolvida. Mas o pas ainda dependente de importao de mudas de moranguinho micropropagadas do Chile. E a micropropagao para a produo de mudas via cultura de tecidos consiste de um conjunto de tcnicas biotecnolgicas apropriadas para o estado de desenvolvimento do pas e uma necessidade para o processo evolutivo. Este episdio ilustra o paradoxo das polticas pblicas brasileiras em relao s biotecnologias: pouco incentivo ou investimento naquelas biotecnologias apropriadas e importantes para o desenvolvimento do pas, com pouco ou nenhum impacto ambiental e sade humana. Por outro lado, grande investimento em tecnologias cujo valor real de uso pela sociedade ainda altamente duvidoso. O reducionismo que tambm est expresso nos editais pblicos ilustra esta inverso de valores. Exemplo disso o Edital MCT/CNPq/ CT-AGRO BICUDO N 043/2009 () que tem por objetivo o desenvolvimento de variedades de algodo geneticamente modificadas para controle do bicudo-do-algodoeiro. Ao invs de financiar a investigao de diferentes alternativas para obter a soluo, como recomenda o princpio da precauo, rgos governamentais preferiram o reducionismo e apoio a alguns poucos cientistas, certamente no aqueles que tm a viso holstica. Parte da comunidade cientfica e dos gestores pblicos no raro deixam de reconhecer fracassos, como o caso da adoo de variedade de algodo transgnico por fazendeiros chineses, que de um lado permitiu controlar certas lagartas que eram uma das principais pragas, porm, fez com que outros insetos inofensivos, ou que eram pragas secundrias, se tornassem pragas primrias. O primeiro alerta foi dado em 2006 (WANG et al., 2006), mas no foi levado em considerao. Como em muitas situaes, o alerta

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foi agora comprovado recentemente (LU et al., 2010). Mesmo assim, no mbito das polticas pblicas do governo brasileiro, o MCT baixou o edital para financiar a transgenia em algodoeiro, que se configura descontextualizada/reducionista, a mesma que fracassou na China, porque gerada em laboratrios e fora do contexto de um agroecossistema.

Dogma central, cdigo dos cdigos? muito frequente livros de gentica ou artigos referirem-se ao DNA, molcula que contm o cdigo gentico, de uma forma hierrquica. Trata-se do que denominado de Dogma Central da Gentica. Com a descoberta da estrutura do DNA nos anos 1950, o dogma central foi estabelecido e assim permaneceu, estando o DNA no topo. E nesse dogma, o DNA considerado uma molcula autorreplicvel que, quando transcrita3, origina um RNA4; este, quando mensageiro e traduzido5, origina uma protena (Figura 1A). O avano do conhecimento cientfico foi aos poucos introduzindo modificaes no Dogma Central da Gentica, que do suporte inclusive para sua contestao. Agora o entendimento de que um conjunto de protenas, cidos nucleicos e enzimas esto envolvidas na replicao do DNA, cuja regulao inclui estmulos externos (ambiente), indicando a dependncia do DNA em relao a outras molculas e ao ambiente. Distintos RNAs tambm transcritos de sequncias de DNA, mediado igualmente por enzimas, particularmente virais, no so traduzidos em protenas, sendo alguns deles incorporados ao prprio genoma, indicando a fluidez do DNA. Mais recentemente, os avanos nos estudos dos RNAs vm proporcionando outras modificaes no dogma central.3 A transcrio um processo biolgico que permite passar de uma molcula de DNA de dupla fita a uma molcula de RNA, mensageiro ou no, de fita simples. 4 Molcula, na forma de fita simples, que embasa a produo de protenas e tem um papel de regulao gnica, entre outras funes biolgicas. 5 A traduo o processo biolgico que permite passar de uma molcula de RNA mensageiro a uma protena.

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Exemplo disso so as descobertas relativas s propriedades de certas molculas de RNA que so capazes de regular ou interferir na expresso de genes. Aos poucos, com o avano cientfico das distintas reas do conhecimento (protemica, metabolmica e outras) valida-se cada vez mais a enorme complexidade (Figura 1B) da expresso gnica, o suficiente para rejeitar o modelo reducionista do dogma central at ento vigente. De acordo com a viso reducionista do dogma central (Figura 1A), o DNA: (i) passa cpias aos descendentes e, ento, seria autorreplicvel e (ii) responsvel pelas propriedades dos organismos, ou seja, age autonomamente. Segundo Richard Lewontin (2000), o DNA: (i) no autorreplicvel; (ii) no faz nada e (iii) organismos no so determinados por ele! Para o autor, nenhuma molcula do reino da vida autorreplicvel; o DNA pode ser extrado de tecidos fsseis ou congelados e analisado; nenhum vulo fertilizado desenvolve um organismo na ausncia da clula ou de ambiente que tenha componentes celulares, e componentes celulares tambm passam para a prognie! Ento, o que DNA, afinal? Segundo Lewontin (2000), uma molcula que carrega informao e lida pela maquinaria celular no processo produtivo. Seria ento uma molcula morta? necessrio estabelecer um novo dogma central? Como garantir que um transgene inserido em um organismo vai de fato ser expresso de acordo com o esperado? A.tRNA DNA rRNA mRNA RNA transportador RNA ribossomal Protena Ribossomas Fentipo

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B.Protena

snRNA, siRNA, miRNA, hnRNA, outros tRNA RNA transportador RNA ribossomal Protena

Regulao gnica

DNA

rRNA mRNA

Ribossomas Metablito Fentipo

Genmica Transcriptmica Protemica MetabolmicaFenmica

Gentipo

Ambiente + Gentipo x Ambiente

Figura 1. Dogma Central da Gentica. A Dogma Central da Gentica proposta nos anos 1960. B Relaes entre cidos nucleicos, protenas e meio ambiente.

Reducionismo leva a impreciso e falta de controle dos produtosFrequentemente, os bilogos moleculares reivindicam que a transformao gentica um mtodo mais preciso que o melhoramento gentico convencional, porque neste ltimo, a partir dos cruzamentos entre duas variedades ou raas, sempre sequncias de DNA, alm daquelas desejadas, acabam permanecendo nos indivduos selecionados, o que no ocorreria com a transgenia. No entanto, os procedimentos para produzir plantas geneticamente modificadas pela insero de um transgene com o uso das tcnicas de DNA recombinante esto associados absoluta impreciso e falta de controle do transgene. Existem fartas evidncias para concluir que a impreciso muito maior do que nos mtodos de melhoramento convencionais. Seno, vejamos.

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A presena de genes de resistncia a antibiticos como parte do transgene inserido, aumenta dramaticamente a quantidade desse gene na natureza, por consequncia no solo e nos alimentos, aumentando assim a possibilidade de sua transferncia para outros organismos, incluindo as bactrias associadas aos humanos. No entanto, a transferncia horizontal ainda no est devidamente elucidada, e tampouco seria fcil monitorar (HEINEMANN e TRAAVIK, 2004). Embora no admitido, a tecnologia do DNA recombinante ainda no tem acmulo suficiente para inserir um transgene num determinado lugar do genoma em um organismo. Esta imprevisibilidade do stio de insero do transgene indica, de um lado, que a tecnologia do DNA recombinante no precisa, caracterizando um processo de tentativa, acertos e erros, e, de outro lado, exige a produo de centenas ou milhares de produtos transformados para que seja selecionado um ou uns poucos. Igualmente, a impreciso da tecnologia ocorre tambm na quantidade de sequncias de DNA inseridas no processo de transformao. Por exemplo, na soja RR, sequncias extras de diferentes tamanhos (ex.: 534 pares de bases), alm do transgene, foram detectadas por cientistas independentes (WINDELS et al., 2001). Outros tipos de rearranjamentos mais complexos igualmente ocorrem. No evento GA21, em vez de uma, o processo de transformao resultou em seis cpias do transgene, sendo duas idnticas ao transgene contido no vetor de transformao; uma cpia com mutao Citosina no lugar de Guanina em uma posio; uma cpia com mutao Citosina no lugar de Guanina em uma posio e uma deleo de 696 pares de bases no promotor6 na regio 5; uma cpia incompleta, contendo os primeiros 288 pares de bases e outra cpia incompleta contendo o promotor e o primeiro exon7. Rearranjamentos esto presentes em praticamente6 Regio do DNA que facilita a transcrio de um ou vrios genes especficos. Os promotores podem ser localizados prximos ou no dos genes que eles regulam. 7 No momento da transcrio, existe um processo biolgico chamado de exciso (ou splicing),

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todas as plantas transgnicas em cultivo (HERNANDEZ et al., 2003; WILSON et al., 2004). Outra forma de verificar a impreciso da tecnologia com base na ocorrncia de efeitos pleiotrpicos8 imprevisveis. Por exemplo, Zolla et al. (2008) constataram que o transgene Cry1Ab inserido em milho (Mon 810) causou a alterao na expresso de 43 protenas. Os autores constataram ainda que o efeito pleiotrpico foi diferente para diferentes protenas: sete foram novas, 14 tiveram a expresso reduzida, 13 tiveram expresso aumentada e nove foram completamente reprimidas. Uma das novas protenas expressadas (SSP 6711) corresponde a 50 kDa gama zena, uma protena alergnica bem conhecida. Outros efeitos constatados no mesmo estudo: vrias protenas de armazenamento em sementes (como globulinas e outras similares s vicilinas expressas no embrio) exibiram formas truncadas, apresentando massas moleculares significativamente menores que as protenas nativas. Os efeitos imprevistos (ou pleiotrpicos) do transgene contendo a toxina Cry1Ab tambm foram marcantes em organismos aquticos no alvos (ROSI-MARSHALL et al., 2007). Outros exemplos de efeitos no previstos porque no estudados em inimigos naturais de insetos pragas so listados por Lovei et al. (2009). Igualmente, a tecnologia imprecisa tambm na expresso do transgene inserido. Assim, o mesmo transgene se expressa de maneira e em taxas diferentes dependendo do rgo da planta ou do ambiente de cultivo. No caso dos milhos transgnicos, a concentrao da toxina de genes Bt varivel, dependendo dos tecidos ou rgos analisados.durante o qual segmentos de DNA sero conservados para a sntese de protena (os exons), e outras partes no (introns). Assim, numa molcula de mRNA, um exon pode codificar aminocidos de uma protena, em outras molculas de RNA maduro como tRNAs e rRNAs, o exon constitui parte estrutural. 8 A pleiotropia a influncia de um nico gene sobre vrias caractersticas fenotpicas. Assim, uma mutao no gene poder afetar vrias caractersticas simultaneamente.

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Do ponto de vista da sade humana, em razo da falta de estudos de avaliao de risco e da pouca familiaridade com esse tipo de alimentos, o principal risco sade humana referese aos efeitos no esperados (BRITISH MEDICAL ASSOCIATION, 1999), porque desconhecidos. A propsito, existe uma omisso contnua das pesquisas com relao sade humana (TRAAVIK e HEINEMANN, 2007). Enfim, o argumento de que a tecnologia do DNA recombinante era mais precisa que os mtodos de melhoramento gentico clssico no s no se confirmou, como o tempo e os cientistas independentes se encarregaram de demonstrar que inserir um transgene em um genoma que vem evoluindo a milhes de anos sem tal transgene no simples, nem precisa e, muito menos, possvel prever o que ir acontecer. Mais uma vez, os fatos acima ilustrados indicam tambm que o reducionismo no deixa mais seguros os organismos ou melhora a agricultura ou diminui os riscos sade humana.

O reducionismo na avaliao de riscos realizada pelos interessadosAs empresas que desenvolvem plantas transgnicas para fins comerciais realizam de fato estudos cuja qualidade cientfica discutvel. Exemplo disso so os estudos aportados CTNBio para a liberao do milho transgnico Mon 810 (Processo 01200.002925/99-54). Dois dos estudos, um com a vespa Brachymeria intermdia (Himenptero) e outro com a joaninha (Hippodamia convergens), foram feitos com apenas duas repeties de 25 insetos. O primeiro com sete dias e o segundo com nove dias de durao de exposio toxina produzida pelo gene Cry1Ab (NODARI, 2009). Este caso exibe um duplo reducionismo. De um lado, o reducionismo cientfico e descontextualizado, por meio de um ensaio com apenas duas repeties de 25 insetos expostos

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a um perigo por 7 ou 9 dias, de modo isolado e no no mbito de uma cadeia trfica. Isto impede que qualquer resultado seja considerado conclusivo do ponto de vista cientfico. De outro lado, a no publicao dos resultados impossibilita que a comunidade cientfica tome conhecimento dos resultados ou mesmo os valide ou rejeite, por meio da realizao de novos ensaios. Contudo, rgos governamentais (ex.: CTNBio) tm aceito como cientficos tais tipos de estudos que dificilmente estudantes de iniciao cientfica teriam coragem de realizar. A simplificao nos estudos uma das principais caractersticas dos estudos das proponentes da tecnologia, que permite levantar a hiptese de que uma clusula ptrea para as empresas. Para ilustrar o fato, foi feita uma pergunta pela CTNBio proponente de uma tecnologia: A empresa conduziu estudos sobre o potencial de citotoxicidade ou genotoxicidade, humana ou animal, do ncleo inseticida da protena Cry1Ab expresso em plantas Mon 810? Em caso afirmativo, aportar os dados. A empresa proponente apresentou, como parte de sua resposta: No possvel realizar testes de citotoxicidade e mutagenicidade para alimento no processado como o gro, em funo da complexidade da composio dos alimentos e da impraticabilidade de concentrar as fraes alimentares de uma forma consistente para que as mesmas sejam testadas. O reducionismo na avaliao de risco tambm se manifesta pela quantidade dos estudos e suas abrangncias, bastante reduzidas. Neste mesmo processo, devido ao fato de o milho Mon 810 produzir uma toxina, substncia semelhante ao agrotxico, um estudo foi solicitado empresa proponente: Apresentar estudos de exposio repetida com roedores (30 dias com animais recm-desmamados e 90 dias com animais adultos) tratados com raes preparadas com o gro inteiro, levando-se em considerao a porcentagem de carboidratos, lipdeos e vitaminas normalmente empregadas nas raes animais, com intuito de se verificar a

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possvel expresso de outros componentes txicos consequentes da manipulao gnica. Na resposta, a empresa afirmou que estudos de toxicidade oral subcrnica de 30 e 90 dias com roedores, utilizando raes no processadas ou pouco processadas do milho Mon 810, no so normalmente requeridos pelas agncias de regulamentao de plantas geneticamente modificadas, uma vez que a protena Cry1Ab tem um histrico de uso seguro, assim como outras protenas Cry. Ou seja, se este estudo no exigido nos Estados Unidos, porque deveria s-lo aqui no Brasil? A segurana alimentar tambm vtima da viso reducionista. Numa busca realizada em 2008 utilizando-se as expresses transgnicos ou OGM, na base de dados da Capes e do Scielo, no perodo de 1987 a 2008, foram encontrados 716 estudos, sendo 80 artigos e 636 teses ou dissertaes (CAMARA et al., 2009). No entanto, apenas oito estudos abordaram a Segurana Alimentar dos transgnicos, exposio a riscos e incertezas para a sade e para o meio ambiente oriundos desses produtos. As avaliaes de risco dos diversos pedidos de liberao comercial de plantas transgnicas no Brasil tm essas marcas de simplificao, de baixa qualidade cientfica (NODARI, 2009), de amplitude reduzida, de no publicao de resultados, enfim, de pouca cincia. A histria da biologia molecular ajuda a explicar por que seus promotores no fizeram nada para preparar seus empreendimentos para eventuais preocupaes ou situaes de riscos srios quando a engenharia gentica se tornaria possvel um dia (REGAL, 1996). Assim, apreende-se nos l