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OS RETRATOS DE C.L. E M.B. QUANDO COISA1
Marcos Antônio de Oliveira (DAC/UFMS – PIBIC/CNPq) 2 Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco (DLE/UFMS – CNPq) 3
Um retrato não é apenas um documento de identidade; é sobretudo a curva de uma emoção. Joyce, apud Borelli. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato
RESUMO: Desde o título, que faz alusão ao livro do poeta Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa, e às iniciais dos nomes da escritora Clarice Lispector e do próprio poeta, este trabalho pretende traçar uma relação de proximidade entre a escrita manoelina, no referido livro, e a pintura/escritura de Clarice Lispector no livro Água viva. Palavras-chave: Clarice Lispector; Manoel de Barros; Biografia. ABSTRACT: From the title, which refers to the book by the poet Manoel de Barros, Retrato do artista quando coisa, and the initials of the names of writer Clarice Lispector and the poet himself, this work aims to draw a link of proximity between the writing manoelina, in that book, and painting/writing of the book Clarice Lispector Água viva. Keywords: Clarice Lispector; Manoel de Barros; Biography.
1 Este trabalho é parte de uma pesquisa maior que o autor desenvolve como Bolsista da Iniciação Científica – PIBIC/CNPq – desde agosto de 2006 – sob o título de O figurativo inominável: a art pictures de Clarice Lispector, onde analisa a produção pictural da escritora Clarice Lispector. 2 Graduando do 3º ano do Curso de Artes Visuais – Licenciatura – Habilitação em Artes Plásticas – DAC/UFMS. 3 Orientador da pesquisa – Professor dos Programas de Pós-Graduação em Letras DED/CPTL e DLE/CCHS da UFMS.
2
1 NÃO SER É OUTRO SER
A citação/passagem do também poeta Fernando Pessoa como epígrafe ao livro
Retrato do artista quando coisa nos parece traduzir bem a idéia do autor Manoel de Barros ao
elaborar seu livro, ou seja, o poeta usa o não ser de Pessoa com o propósito de denegar tudo o
que ele realmente é: um autor de vários livros publicados, que tem uma escrita reconhecida
nacional e até internacionalmente. Já o resto da frase pessoana é outro ser pode ser a vontade
e preocupação do artista Manoel de escrever desgarrado de toda aquela trajetória do “não
ser”: é ser as coisas que não têm importância enquanto coisas que são. Ou seja, o escritor não
pode se preocupar apenas em ser um autor de best seller, deve dar importância também à
simplicidade das coisas.
O mesmo vale também para a escritora Clarice Lispector. A epígrafe que abre o livro
Água viva nada mais é do que uma passagem do crítico de arte Michael Seuphor, onde se lê:
“tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura — o objeto — que,
como a música, não ilustra coisa alguma, [...]”4. Pouco importando se Clarice leu ou não o
livro do referido crítico (apesar de ela dizer que não o leu), o que importa é a vontade
entendida de forma semelhante à de Manoel de Barros, ou seja, ser um objeto que não ilustra
a si própria, escritora de grandes obras publicadas e de reconhecimento nacional e
internacional. Como se vê, ambos os artistas querem, cada um a seu modo, ser coisas e
objetos sem importância notória, querem “[...] inventariar todas as lembranças possíveis (e
impossíveis) de todas as coisas vistas, lidas, experimentadas e imaginadas ao longo de uma
vida”5.
4 A parte aposta como epigrafe em Água viva vem na contracapa do livro de Seuphor, ver: SEUPHOR, Michel. Abstract Painting: fifty years of accomplishment from Kandinsky to Jackson Pollock. New York: A Laurel Edition, 1964. 5 BORGES, apud MACIEL. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, p. 13.
3
Sobre a importância da citação, seja ela de uma obra “alheia” literária ou não,
Compagnon, em seu livro o Trabalho da citação, diz que tal apropriação do texto do outro é,
grosso modo, uma ilustração da vida/obra em que esta é inserida:
A citação é uma cirurgia estática em que sou ao mesmo tempo o esteta, o cirurgião e o paciente: pinço trechos escolhidos que serão ornamentos, no sentido forte que a antiga retórica e a arquitetura dão a essa palavra, enxerto-o no corpo de meu texto (como as papeletas de Proust). A armação deve desaparecer sob o produto final, e a própria cicatriz (as aspas) será um adorno a mais6.
A vida de Manoel e Clarice para os dois artistas serve também para construir todo
um cenário para suas obras. Não se trata mais apenas da vida de grande escritor ou intelectual
e, sim, das vidas vividas antes dessas carreiras brilhantes de escritores. Detalhes pequenos,
pormenorizados da infância, tanto de Barros como de Lispector, colaboram para a construção
de seus personagens coisas/objetos de suas referidas obras. Água viva, publicado pela
primeira vez em 1973, e Retrato do artista quando coisa, em 1998, dentro da galeria de obras
de seus respectivos autores, bem como de projetos intelectuais diferentes, podem ser
compreendidas como um “exercício criativo das taxonomias”7, ou seja, um exercício que
classifica fatos das vidas cotidianas de seus autores como importantes na construção de tais
obras. Se houve êxito ou não, na empreitada de ambos, não vem ao caso aqui, posto que o que
importa mesmo é que “o livro se contenta em ser a reescrita de uma citação inaugural que por
si só seria suficiente”8. Desse modo, o trabalho de utilizar-se dos artifícios das epígrafes para
relatar ou simplesmente rememorar fatos de suas vidas pode ser traduzido a partir dos
referidos textos-alheios, quando estes se abrem para o texto-pessoal e que cortam a escrita dos
que a utilizam.
6 COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 37-38. 7 MACIEL. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, p. 15. 8 COMPAGNON. O trabalho da citação, p. 42.
4
Nossa leitura está embasada no que propõe Eneida Maria de Souza quando adverte
que o crítico da crítica biográfico-cultural não deve ater-se tão-somente aos fatos históricos
documentais, mas também, e, principalmente, aos pormenores, aos acontecimentos e às
insignificâncias que também fazem uma vida. Nessa direção, Souza afirma que “cenas
domésticas dos fatos aparentemente inexpressivas para a elucidação dos fatos históricos
passam a compor o quadro das pequenas narrativas, igualmente responsáveis pela construção
do sentido subliminar da história”9.
2 DOIS RETRATOS – VIDA X OBRA
Ressalvadas as diferenças, há muito se discute sobre a presença da “vivência” de
ambos os autores aqui estudados em suas respectivas obras. A poética de Manoel de Barros, e
isso por mais que o poeta tenha viajado pelo mundo afora, de alguma forma, grosso modo,
volta-se para, digamos, o “entorno” do Pantanal, de onde retira parte significativa do estofo
que contamina a sua poesia. Embasado no que propõe a crítica biográfico-cultural, diríamos
que aí reside um traço biográfico de fundo na poética de Barros que a enriquece de forma
singular em toda a literatura brasileira. Já no caso de Clarice Lispector, sua escrita assinala, na
sua forma mesmo de construção, a condição em trânsito, em diáspora que está na origem da
vida da escritora. Ou seja, em ambos os escritores, vida e obra deixam-se ler de forma
metafórica, suplementar, na medida em que uma corrobora a compreensão da outra, e vice-
versa.
Se, por um lado, podemos afastar um escritor do outro, quer seja pelo gênero
privilegiado por cada um, quer seja pela distância de publicação que separa os livros de cada
um aqui em discussão; por outro lado, tal distanciamento desaparece completamente quando
9 SOUZA. Crítica cult, p. 115.
5
os aproximamos pelo olhar “bio”, que marca a poética de ambos os escritores. Tal estofo
biográfico que os aproxima, além de aproximar cada um deles de sua poética, é recorrente em
ambos os projetos intelectuais. No caso de Manoel de Barros, por exemplo, lemos:
4. Folhas secas me outonam. (Folhas secas que forram o chão das tardes me transmudaram para o outono? Eu sou meu outono.) Gosto de viajar por palavras do que de trem10.
Aqui, podemos inferir metaforicamente que o poeta se “transmuta” para a paisagem
outonal de sua região de vivência na infância, a região do Pantanal, que no outono transborda
de águas vindas das chuvas. Poderíamos dizer, poeticamente na esteira de Barros, que o
Pantanal se torna, apesar de toda sua planície, quase que totalmente monótono, o fundo do
“poço” Terra que se transborda com as águas que escoam para si vindas pelos rios,
transformando a paisagem em um verdadeiro alagado, onde o gosto de viajar pelas palavras
se faz melhor que o de viajar de trem, como diz o próprio poeta.
Já em Clarice Lispector, colhemos um exemplo aleatório: “faz calor de verão.
Navego na minha galera que arrosta os ventos de um verão enfeitiçado. Folhas esmagadas me
lembram o chão da infância”11. Podemos dizer que os dias tropicais quentes da infância do
Nordeste brasileiro permeiam a obra clariciana, pois, na infância, sabe-se que a escritora
primeiro morou na cidade de Maceió, em Alagoas, e depois em Recife, no Estado de
Pernambuco, região de muito calor com verões intensos. Afora tais comparações metafóricas,
reiteramos que o calor intenso dos trópicos é o que mais vai incomodar a escritora pela vida
afora. Tais passagens, mesmo que metafóricas, tornam-se insuficientes, principalmente
quando se constata que ambos os escritores valem-se do estofo da vida para sua criação.
10 BARROS. Retrato do artista quando coisa, p. 15. 11 LISPECTOR. Água viva: ficção, p. 24.
6
Tais comparações entre vida e obra nas passagens citadas são feitas com base no que
diz Maciel que, apesar de não se valer da crítica biográfica em sua leitura, serve para ilustrar o
que estamos querendo dizer, quando afirma que o artista elege o que ou quem, ou ainda, com
qual coisa vai dialogar em sua obra, mesmo que estas “coisas” ou “objetos”, ou “recordações
de infância”, não condizem com o que boa parte dos estudiosos diz valer para construir o
universo de uma obra. Segundo Maciel, o artista
[...] rompe com a obviedade das disposições pretensamente regulares ou reguladoras, aliando-se a uma espécie de investimento afetivo do artista no gesto de selecionar e aproximar [de sua obra] os objetos anônimos [ou não] que coleciona12.
Com base no que propomos até aqui, podemos perceber que os retratos, de Manoel
de Barros e Clarice Lispector, se fazem ora de fragmentos da infância, ora de pedaços de
memórias inventadas e reais, ora de esquecimentos, ora de imagens familiares que se
descentram, e ora de grafias do desejo que resistem à representação pela palavra. Nessa
direção, reportamo-nos às palavras de Eneida Maria de Souza sobre a natureza da crítica
biográfica:
A crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção13.
É por meio dessa “construção de pontes metafóricas”, ao qual se refere Souza, que
podemos reconstruir os retratos-biográficos dos escritores aqui em discussão, assim como
propor uma leitura da produção intelectual de cada um que vai além do campo restrito do
ficcional. Uma leitura de fundo biográfico-cultural mostra, desde seu primeiro momento, o
quanto as obras Retrato do artista quando coisa e Água viva estão imersas no “bio” de seus
respectivos autores, posto que ambos se valem, para a construção das mesmas, menos de sua
12 MACIEL. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas, p. 18. 13 SOUZA. Crítica cult, p. 112.
7
“experiência” do que de sua “vivência”. Fica por conta de tal prática recorrente em ambos
uma forma, inclusive, de os reaproximar criticamente, principalmente se levarmos em conta
que “[...] sujeitos fraturados compartilham da construção de biografias e se disseminam na
rasura das assinaturas e no embaralho dos textos”14.
3 A NATUREZA DAS COISAS
Já dissera Manoel de Barros, em “seu” Retrato do artista quando coisa, da
necessidade do artista deixar de ser, para assumir a forma de uma outra qualquer coisa,
mesmo que esta seja uma coisa sem muito valor ou importância:
Há um cio vegetal na voz do artista. Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto de alcançar o murmúrio das águas nas folhas das árvores. Não terá mais o condão de refletir sobre as coisas. Mas terá o condão de sê-las15.
Para o autor, o artista deve se desgarrar, como dissemos antes, de sua personalidade,
aqui no caso a de um intelectual e escritor renomado, para ser um outro ser, uma coisa,
porque somente assim ele poderá perceber a simplicidade com que são feitas as coisas. Não
muito diferente dessa simplicidade encontrada em Barros, Clarice já vaticinara em Água viva:
“No âmago onde estou, no âmago do É, não faço perguntas. Porque quando é — é. Sou
limitada apenas pela minha identidade. Eu, entidade elástica e separada de outros corpos”16.
Clarice Lispector, limitada à identidade que lhe fora imposta, ou seja, à de uma
escritora reconhecida e renomada, ainda assim soube construir um lugar de escritora amadora
para si, ao se considerar uma entidade elástica que consegue transitar entre o ser ou não ser
das coisas.
14 SOUZA. Crítica cult, p. 113-114. 15 BARROS. Retrato do artista quando coisa, p. 17. 16 LISPECTOR. Água viva: ficção, p. 26.
8
Como se vê, os dois escritores partilham de idéias semelhantes, de desejos comuns,
quando propõem desfazer, por meio de seus projetos intelectuais, a figura de grandes
intelectuais que na verdade são. Conscientes de seu projeto e do uso da linguagem, ambos
valem-se, cada um a seu modo, de imagens do “bio”, como “menino pantaneiro” (Manoel de
Barros), “menina nordestina” (Clarice Lispector), como forma de des/naturalizar aquela
imagem aurática de grandes intelectuais brasileiros. Daí que, para se chegar ao perfil do
intelectual que realmente são, a crítica deve passar necessariamente por aquelas imagens
insignificantes pensadas por eles sobre eles mesmos. A crítica biográfica sabe disso.
Tal inserção do sujeito escrito no “bio” da letra se dá à revelia de seu conhecimento.
Então pouco importa à crítica biográfica as afirmações reiteradas dos escritores de que não
estão presentes em sua produção. A inscrição, ou a assinatura (presença), de cada um em seu
trabalho se dá de forma diferente, posto que passa por um “pacto referencial” que cada um
propõe, muitas vezes à sua revelia inclusive. Entre Manoel de Barros e Clarice Lispector,
podemos dizer que ambos se relacionam de forma completamente diferente
“biograficamente” falando. No caso de Barros, tal presença dá-se mais por uma afirmação do
ser; enquanto em Clarice, por uma denegação (não sou). Ou seja, Manoel não é, por ser;
Clarice é, por não ser. Não é por acaso que Clarice, no livro aqui em estudo, afirma: “muita
coisa não posso te contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser “bio””17, apesar de o livro ter
por subtítulo “ficção”, o que, a seu modo, dificulta detectar a presença do biográfico em sua
escritura.
Valer-se de um gesto transferencial que permite ler a vida na obra, e esta naquela,
mesmo que metaforicamente, assim como ler os traços ficcionais e os referenciais na mesma
condição de importância, só enriquece a produção cultural de um determinado artista. Nesse
17 LISPECTOR. Água viva: ficção, p. 33.
9
sentido, mais uma vez são esclarecedoras as palavras de Eneida Maria de Souza, quando
constata:
Os fatos da experiência, ao serem interpretados como metáforas e como componentes importantes para a construção de biografias, se integram ao texto ficcional sob a forma de uma representação do vivido. [...]. Ao se considerar a vida como texto e as suas personagens como figurantes deste cenário de representação, o exercício da crítica biográfica irá certamente responder pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a crítica cultural e a literatura comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força teórica inserida em toda ficção18.
Com base na passagem, podemos dizer que o fato dos dois autores estarem inseridos
como figurantes de suas próprias estórias corrobora sobremaneira os postulados da crítica
cultural biográfica. Deve-se ressaltar que aquela visada binária, que se estendia, num afã
psicologizante, da vida em direção à obra ou até mesmo o contrário, não se sustenta mais, ou
pelo menos a crítica biográfico-cultural não partilha de tal olhar. Antes, como já se salientou,
esta toma vida e obra nas mesmas proporções, e as lê uma na outra suplementarmente.
Gostaríamos de lembrar aqui, por mais que não partilhe diretamente da crítica
biográfica, do recente livro Clarice Fotobiografia, da biógrafa da escritora Nádia Battella
Gotlib. Nele, Gotlib, além de basear-se em fotos da própria escritora para construir a
fotobiografia, utiliza-se de fotos/documentos. Importa ressaltar que os estudos historicistas
reconhecem as fotografias como documentos comprobatórios dos fatos, que não são de fato
da escritora, mas são fotos que remetem a períodos e situações que provavelmente a escritora
tenha passado. Ao agir assim, a autora, a nosso ver, ficcionaliza o documental, o que
enriquece muito seu livro.
A biógrafa, ao ficcionalizar os documentos, ao usar fotos que não são da “persona”
Clarice para inscrever e dizer que esta passou e viveu tudo aquilo, (re)cria e (re)inscreve a
escritora Clarice Lispector em uma biografia ficcionalizada e ampliada. Ou seja, cria um
18 SOUZA. Crítica cult, p.119-120.
10
documento ancorado na ficção, para criar metáforas que expliquem a trajetória da escritora,
desde sua saída, em criança, da Ucrânia, até sua morte no Brasil como escritora consagrada. O
livro traz mais de 700 fotos que ilustram desde a família, antes do nascimento da escritora, até
fotos do funeral da mesma.
Entendemos ainda que o mesmo possa ser feito com outros escritores. Valer-se de
metáforas para criar uma fotobiografia, ancorada ou não no documental, como faz Nádia
Battella Gotlib, ao unir o ficcional e o documental, só enriquece o projeto de um intelectual.
Apesar de entendermos que não se precisa, necessariamente, ficcionalizar os documentos,
pelo menos quando se olha por meio daquilo que propõe a crítica biográfica.
4 OS RETRATOS QUE SE COISIFICARAM
Na aba do livro Retrato do artista quando coisa, Fausto Wolff já sinalizava a sua
preocupação com o autor ser desinventado pelo poder do status de grande poeta e intelectual.
Diz que o poeta fora seu amigo “[...] antes que o poder o houvesse desinventado”19. Sua
preocupação é pertinente quando pensamos em um Manoel de Barros que não escrevesse
sobre as coisas simples e para as coisas simples do seu regional, e se tornasse um poeta que
não se valesse das coisas normais de um retrato cotidiano: “Não agüento ser apenas um
sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da
tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc.”20.
Para a felicidade de seu leitor, não foi o que ocorrera com o poeta, pois como garante
e prefere: “mas eu preciso ser Outros./ Eu penso renovar o homem usando borboletas”21. A
referência ao texto de Fausto Wolff é aqui aludida na intenção de mostrar que o desejo do
19 WOLFF apud BARROS. Retrato do artista quando coisa, aba do livro. 20 BARROS. Retrato do artista quando coisa, p. 79. 21 BARROS. Retrato do artista quando coisa, p. 79.
11
autor do texto da aba do livro se faz o desejo dos leitores de Manoel de Barros, ou seja, que
sua poesia se coisifica e se mantenha como as poesias de sua estréia em Poemas concebido
sem pecado, de 1937.
A desinvenção de que fala Wolff com relação à poesia de Manoel de Barros, a nosso
ver, também vale para a obra da escritora Clarice Lispector. Porque, durante toda sua
trajetória como escritora, Clarice manteve uma linha de criação literária que não se permitia
alterar. Ou seja, ela não abriu mão de seu processo de escrita nem mesmo pela família; sabe-
se que Clarice Lispector escrevia com a máquina datilográfica no colo, sentada no sofá da
sala, e com os dois filhos à sua volta. Assim, acreditamos que nenhum dos dois escritores abre
mão de seus processos de criação literária para agradar a gosto específico nenhum. Estudos
comprovam que a escritora desde sempre (re)escrevia suas obras, “costurando-as” umas às
outras, como se fosse uma colcha de retalhos. Nessa direção, podemos dizer que a escritora
não corria o risco de ser desinventada, já que não alterou o seu processo de escrita para
atender a uma demanda ou a um poder qualquer, como mostra toda a sua obra literária.
Quando o fez, é porque fora obrigada, e mesmo obrigada o faz dentro dos seus padrões de
escrita, como são os casos das inúmeras traduções, adaptações, e até (re)escrever alguns livros
de literatura estrangeira22. Também vale o caso do livro de contos eróticos A via crucis do
corpo. Nele, atende à demanda de sua escrita e não a um poder específico, mesmo que este
tenha sido feito sob encomenda. Talvez porque “Clarice Lispector jamais assumiu uma vida
verdadeiramente intelectual e jamais se considerou uma profissional, de certa forma
desmitificando a imagem aurática de escritora”23.
22 Sobre isso ver: NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector tradutora. In: Cerrados: Revista/ do Programa de Pós-Graduação em Literatura. – Vol. 1, N. 1 (1992)-. – Brasília, DF: Universidade de Brasília, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 1992-. v. Semestral, Tema especial: Literatura e presença: Clarice Lispector. Editor: André Luís Gomes. Descrição baseada em: Vol. 16, N. 24 (2007). p. 263-272 23 NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 25.
12
A passagem reitera que a escritora não seria desinventada em nenhuma condição de
sua obra. Vale dizer o mesmo para o poeta Manoel de Barros, já que este continua escrevendo
sobre e para as coisas desimportantes. Nessa direção, recorremos mais uma vez às palavras de
Wolff:
Agora em seu Retrato do artista quando coisa, na contente em descoisificar o mundo, Manoel se coisifica e de poeta passa a ser, ele mesmo, parte integrante da poesia. Como naquele jogo de descobrir o bicho oculto num desenho, podemos descobrir o Manoel no poema24.
A passagem contribui no sentido de mostrar que vida e obra se misturam na poesia
manoelina e no texto clariciano, o que só corrobora sobremaneira o estudo proposto aqui em
torno da biografia dos escritores. Os artistas se transvestem e se coisificam: ora de poemas e
paisagens pantaneiras da infância dentro das poesias, ora de paisagens nordestinas da infância
dentro dos romances. Nos dois casos, os artistas propõem um (auto)retrato de si, mesmo que
as vezes pelo avesso.
Quanto ao retrato de Lispector, podemos dizer que ele sempre esteve esboçado em
suas obras. No livro Água viva não foi diferente: declinado no feminino, ou seja, narrado em
primeira pessoa por uma mulher-pintora que tenta converter seu processo em escrita. Mais
uma vez, percebe-se aí a vida imitando a ficção, ou seja, é curioso pensar que primeiro Clarice
Lispector escreve o livro Água viva (1973), que tem uma personagem pintora que quer
escrever. Depois (1975/76), Clarice acaba por pintar um total de 18 quadros25. Torna-se mais
curioso ainda quando pensamos que Clarice Lispector pinta alguns dos quadros antes
24 WOLFF apud BARROS. Retrato do artista quando coisa, aba do livro. 25 Existem algumas controvérsias sobre a quantidade desses quadros. Até aqui, nós, em estudos anteriores, notamos um total de 16, apoiados no que Vasconcellos afirma no Inventário que organiza sobre a escritora, que hoje está na fundação casa Rui Barbosa, quando fala em um total de 16 quadros. Já Nádia Batella Gotlib no recente lançado Clarice Fotobiografia (2008) e no Caderno de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles (2004), fala em 18 quadros.
13
pintados/descritos no livro Água viva pelo “Eu” personagem. É a vida que imita a obra e a
obra que imita a vida. Não é por acaso que Nolasco já afirmara:
Nessa escrita-arquivista não são apenas pedaços de textos e de escritas, notas, papéis pessoais e alheios, citações com e sem aspas que circulam compondo a criação, mas também retratos e retratos da autora (pessoais e ficcionais) que se encenam, multiplicam-se na tentativa insana de ludibriar o outro, o leitor26.
Podemos dizer que o mesmo vale para os dois autores. Mas também podemos dizer
que a intenção deles não é a de ludibriar apenas o leitor, mas também a crítica, ou parte dela,
já que, ainda hoje, alguns críticos se valem apenas dos fatos reais/documentais para construir
a biografia de um intelectual. O que não é o caso da crítica biográfico-cultural, porque esta,
além de se valer dos documentos padrões, fotos, registros, papéis etc., ainda se vale do
ficcional para ler criticamente ambas. Aliás, “como a vida que se apropria da ficção, e esta
daquela, a crítica biográfico-literária se apropria das duas”27.
5 RETRATOS INACABADOS
Ancorando-nos sempre no que propõe os estudiosos sobre a crítica biográfica
cultural, a exemplo de Eneida Maria de Souza e de Edgar Cézar Nolasco, podemos dizer que
os retratos dos autores aqui estudados estão inacabados. E mais: que talvez por serem retratos
sempre estariam inacabados. Talvez porque, e isso a crítica biográfica também nos ensina, ao
pensar que estamos retratando o outro, acabamos mesmo é esboçando nosso próprio auto-
retrato. De acordo com Nolasco “[...] escrever a escrita biográfica é remontar uma vida que
não é necessariamente a vida daquele ser apaixonante (o escritor) e histórico, mas de um
outro, inventado, e não menos histórico, marcado por um gesto transferencial”28. Ou seja,
26 NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 24. 27 NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 83. 28 NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p. 85.
14
nosso esforço aqui talvez não tenha passado do desejo de esboçar os contornos do retrato do
outro de nós mesmos.
Entendemos que os dois retratos-biográficos esboçados neste pequeno ensaio passam
pela relação transferencial de que fala Nolasco, entre as obras e os dois autores. No caso de
Lispector, trata-se de objeto de uma pesquisa maior nossa, que desenvolvemos há quase dois
anos29. No caso de Barros, tal proximidade poética se dá por conta de uma “poética da
infância”, que faz nossa a “infância” original de qualquer pessoa.
29 Ver a nota de número 1 deste trabalho.
15
REFERÊNCIAS BARROS, Manoel. Retrato do artista quando coisa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice Fotobiografia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de literatura brasileira: Clarice Lispector Edição especial, números 17 e 18 – Dezembro de 2004. LISPECTOR, Clarice. Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1973. _____. Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MACIEL, Maria Esther. A memória das coisas: ensaios de literatura, cinema e artes plásticas. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004. (Coleção o grão da voz) NOLASCO, Edgar Cézar. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004. SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 177p. – (Humanitas) VASCONCELLOS, Eliane (Org.). Inventário do arquivo Clarice Lispector. Rio de janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. Centro de Memória e Difusão Cultural. Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, 1993. (Série CLB, 5)