Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    1/350

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    2/350

    OS ANNALES E AHISTORIOGRAFIA FRANCESA:

    Tradies crticas de Marc Bloch a Michel Foucault

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    3/350

    Editora da Universidade Estadual de Maring

    Reitora: ProfaM. Sc. Neusa AltoVice-Reitor: Prof. Dr. Jos de Jesus Previdelli

    CONSELHO EDITORIALPresidente: Prof. Dr. Gilberto Cezar Pavanelli. Coordenador Editorial:

    Prof. Dr. Thomas Bonnici. Membros:Prof. Dr. Antonio Cludio Furlan, ProfaDra Astrid Meira Martoni, Profa Dra Celene Tonella, Profa Dra Celina MidoriMurasse, Prof. Dr. Celso Luiz Cardoso, ProfaDraClarice Zamonaro Cortez, Prof.

    Prof. Dr. Gentil Jos Vidotti, Dr. Jos Adalberto Mouro Dantas, ProfaDraLizete

    Shizue Bomura Maciel, ProfaDraMaria de Ftima P. da S. Machado, Prof. Dr.

    Osvaldo Ferraresi Filho, Prof. Dr. Renilson Jos Menegassi. Comisso deReviso em Lngua Portuguesa e Inglesa: Profa M. Sc. Eliana AlvesGreco, ProfaM. Sc. Jacqueline Ortelan Maia Botassini, Prof. Jorge Jnior do Prado,

    Prof. Jos Hiran Salle, Prof. M. Sc. Manoel Messias Alves da Silva, Prof. Dr.

    Salvador Piton, Prof. Dr. Silvestre Rudolfo Bing. DiretoriaGeral: ProfaDraSilvina Rosa. Secretria:Maria Jos de Melo Vandresen.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    4/350

    CARLOS ANTONIO AGUIRRE ROJAS

    OS ANNALES E AHISTORIOGRAFIA FRANCESA:

    Tradies crticas de Marc Bloch a Michel Foucault

    Traduo e Reviso TcnicaJurandir Malerba

    Maring2000

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    5/350

    FICHA TCNICA

    Diviso de Editorao. Marcos Kazuyoshi Sassaka

    . Marcos Cipriano da Silva

    . Juliano Rodrigues Lopes

    Capa. Frontispcio do n. 2 da revista

    Annales(1930) sobre detalhe da Carta-

    portulano de Diogo Homem (c. 1566)

    Universidade de Coimbra

    Arte Final Capa. Marcos Kazuyoshi Sassaka

    . Jurandir Malerba

    Diagramao

    .Marcos Cipriano da Silva

    Tiragem

    . 500 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Biblioteca Central UEM, Maring

    A284A

    Aguirre Rojas, Carlos Antonio

    Os Annales e a historiografia francesa: tradies crticas de Marc Bloch a

    Michel Foucault / Carlos Antonio Aguirre Rojas ; Traduo e reviso tcnica

    de Jurandir Malerba. - Maring : Eduem, 2000.

    344p.

    ISBN 85-85545-59-3

    ISBN 968-6996-79-6 (edio original)

    1. Hitoriografia francesa Annales. 2. Marxismo. 3. Histria Sculo XX.

    4. Teoria da histria. I. Ttulo.

    CDD 21. ed. 907.2

    907.202

    CIP-NBR 12899

    Ttulo original mexicano

    LosAnnales y la historiografa francesa: tradiciones crticas de Marc Bloch a Michel Foucault

    Copyright1996 para Carlos Antonio Aguirre Rojas

    Copyright2000 para Jurandir Malerba

    Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, mesmo parcial, por qualquer

    processo mecnico, eletrnico, reprogrfico etc., sem a

    autorizao, por escrito, do autor.

    Todos os direitos reservados desta edio2000 para Eduem.

    Endereo para correspondncia:

    Eduem - Editora da Universidade Estadual de MaringUniversidade Estadual de Maring

    Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduao/Diviso de Editorao

    Av. Colombo, 5790 - Campus Universitrio - 87020-900 - Maring-Paran-Brasil

    Fone: (0XX44) 261-4527/261-4394 - Fax: (0XX44) 263-5116

    Site: http://www.ppg.uem.br - E-mail: [email protected]

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    6/350

    SUMRIO

    PRLOGO EDIO BRASILEIRA.................................................... 1

    INTRODUO................................................................................... 9

    I. DOS ANNALES, MARXISMO E OUTRAS HISTRIASDos Annales, marxismo e outras histrias: uma perspectivacomparada sob o ponto de vista da longa durao............................ 25

    Dos Annales revolucionrios aos Annales marxistas: algumasconsideraes sobre a relao entre a corrente dos annales e omarxismo............................................................................................... 51

    Fazer a histria, saber a histria: entre Marx e Braudel...................... 79

    Convergncias e divergncias entre os Annales de 1929 a 1968 e omarxismo: ensaio de balano global................................................... 137

    II. ABORDAGENS E CONTRIBUIES DA CORRENTE ANNALISTA

    Os eixos principais do debate contemporneo em torno dachamada escola dos Annales............................................................. 181

    Nas fontes tericas da histria quantitativa: o impacto da escolados Annales sobre a quantificao em histria................................. 199

    Os Annales dentro do universo da crtica............................................ 215

    Os Annales na encruzilhada.................................................................. 261

    Marc Bloch: in memoriam ..................................................................... 273

    Fernand Braudel: perfil intelectual...................................................... 287

    Michel Foucault no espelho de Clio...................................................... 303

    BIBLIOGRAFIA.................................................................................. 323

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    7/350

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    8/350

    PRLOGO EDIO BRASILEIRA

    Tem um sabor todo especial para mim poder entregar aoleitor brasileiro o conjunto de artigos que compe a presente

    compilao. E j que se trata de um pblico novo, bemconhecedor dos temas aqui abordados, vale a pena explicar umpouco o carter e a inteno geral que animam esteempreendimento acadmico.

    Os ensaios que o leitor tem agora em mos foram escritosentre 1985 e 1994, ou seja, ao longo de uma dcada marcada noapenas por este acontecimento histrico fundamental que foi aqueda do muro de Berlim, com todas as suas enormes

    conseqncias, mas tambm de uma dcada de mudanasprofundas no panorama dos estudos histricos em todo omundo.

    Por isso, e segundo o momento diverso de sua publicao expressa sempre no incio de cada artigo que os distintostextos aqui reunidos vo modificando e matizando alguns doselementos que se referem situao e ao contextohistoriogrfico imediatos, ao mesmo tempo em que procuram

    incorpora-se, progressivamente e conforme foram processadosintelectualmente, s novas tendncias e aos novos sintomas queaparecem dentro das distintas realidades que eles buscamabordar e explicar. Assim, por exemplo, no se fala do possvelprojeto de uns supostos quartos Annales nos artigos anterioresa 1989, enquanto que, ao contrrio, naqueles imediatamenteposteriores a essa data j nos aventuramos propor esse conceitode quartos Annales, que depois ganhou difuso e legitimidade

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    9/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    2

    dentro do debate historiogrfico mundial e que a experincia dosanos 1989-1999 parece ter vindo a confirmar.

    Do mesmo modo, se os primeiros ensaios se concentrammajoritariamente apenas na comparao entre as duas correntesfundamentais do sculo XX, que so Annalese marxismo, j nosseguintes se abre mais francamente a tica de considerao,para se situar a estas duas correntes e sua complexa relaodentro do horizonte mais global de toda a curva dos estudoshistricos ao longo do ltimo sculo.

    Tratando de acompanhar de maneira viva ao movimento de

    transformao da historiografia atual, e buscando captar osentido profundo de suas mudanas de curso com uma explcitavocao desta empresa como um exerccio de histria imediata-, estes ensaios querem ser tambm um termmetro datransformao da historiografia dos anos que abarcam o ltimolustro dos anos 80 e o primeiro dos anos 90 do sculo XX. Umexerccio que se alimentou dos debates que estes mesmos textossuscitaram e das polmicas nas quais eles pretendiam intervir,reagindo para matizar ou rechaar certos argumentos, ao mesmotempo em que incorporavam as novas descobertas e publicaes.

    Por isso, no quisemos modificar aqui a forma original destestextos.1

    1. De qualquer maneira, o leitor interessado em obter um ponto de vista mais

    atualizado sobre essas matrias pode remeter-se leitura de nosso ltimolivro: Carlos Antnio Aguirre Rojas. La escuela de los Annales. Ayer, hoy,maana. Barcelona: Montesinos, 1999. Ali abordamos em um captuloespecial histria dos quartosAnnales, desde 1989 at 1999. Igualmente seinclui todo um captulo onde se aprofunda a questo da matriz do quechamamos os annalistas marxistas.

    O que implicar para o leitor algumas poucas repetiesde alguma idia ou esquema de periodizao, que embora sereiterem no argumento principal, apontam sempre para objetivosdiscursivos distintos.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    10/350

    Prlogo edio brasileira

    3

    Se, por um lado, o esquema de apreenso do que foram osAnnales, e a relao diversa, cambiante e complexa quemantiveram com os sucessivos marxismos, se matiza no detalhe ese enriquece a partir do debate circundante, agregando algunsnovos elementos em cada novo artigo, tambm certo, poroutro lado, que suas teses fundamentais principaispermanecem.

    O tema central que estes distintos textos abordam, o darelao dos vrios Annales com os diferentes marxismos, foiabordado aqui, desde o primeiro artigo redigido o que serefere comparao dos aportes essenciais de Karl Marx eFernand Braudel -, numa perspectiva geral e histrica, perspectivaque no foi modificada em suas linhas essenciais pordesenvolvimentos e aprofundamentos posteriores.

    significativo que um tema to crucial como o desta relaoentre o marxismo e os Annales tenha sido to pouco abordadoantes. Da que, em nossa opinio, esta seja talvez a maiorcontribuio deste livro: a de pr no centro do debatehistoriogrfico o esclarecimento da tal relao, sem a qualdificilmenteseria possvel chegar-se a uma compreenso adequadado que foi a histria da historiografia no sculo XX.

    Uma relao completamente marginalizada, quando nosimplesmente ignorada, pela imensa maioria dos estudiosos dosAnnales, que ao ser estudada com cuidado revela surpresas echaves de interpretao essenciais e imprescindveis para seentender no apenas a evoluo e o prprio destino destesmesmos Annales, mas, para alm disso, os itinerrios de muitashistoriografias nacionais.

    Entre elas, sem dvida, a do Brasil, pois certo que estedebate da relao entre os Annales e o marxismo no umsimples debate histrico j superado, mas, ao contrrio, umdebate vivo e aberto, que se coloca no centro dos destinos atuaise futuros de todas as historiografias do mundo ibero-americano,incluindo-se desde a Espanha e Portugal at o Brasil e toda a

    Amrica espanhola. Um debate que se tornou fundamental

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    11/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    4

    dentro deste espao devido ao fato de que, nos ltimos cinco ouseis lustros, tanto na Pennsula Ibrica como em todos os pasesda Amrica Latina, aclimataram-se e prosperaram com fora tantoas diferentes interpretaes, tendncias e escolas marxistas dosculo XX, como tambm as vrias heranas dos diferentesautores dosAnnales.

    Ao mesmo tempo, este debate define-se tambm, embora demaneira mais indireta e mediata, mas no por isso menos central,como um dos debates fundamentais das demais historiografiasdo planeta. Porque resulta evidente a centralidade que possuiesse debate da relao entre o marxismo e os Annalesem todosaqueles pases, como a China e os da Europa Oriental, que vmde uma experincia socialista, de claro predomnio de uma visomarxista especfica a despeito do tipo de marxismo que alitenha se consolidado com os anos, e que se adulterouprofundamente em relao s verses originais, medida emque se convertia em simples ideologia dominante e em limitadocredo repetido mecanicamente -, e que nos ltimos lustros tm-se aberto recuperao da herana de toda a historiografia do

    sculo XX, onde marcante a presena e o papel fundamentaldosAnnales.

    Ainda, clara a relevncia deste mesmo debate em outrashistoriografias como a francesa, a alem ou a norte-americanaonde, junto a suas tradies historiogrficas nacionais, tmsurgido vastas ondas de difuso do marxismo e dosAnnales. A talponto que, no conjunto das historiografias nacionais depraticamente todo o planeta, uma das maiores interrogaes

    justamente a destas complexas relaes de dilogo e de variadasinterconexes que vo desde relaes de aliana e estreitacolaborao at situaes de mtua hostilidade e evidentedesconhecimento recproco - entre os diferentes projetosannalistas e as diversas variaes do marxismo.

    Se isso vlido no mbito da historiografia mundial, o ainda mais no contexto da historiografia latino-americana. Aqui,

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    12/350

    Prlogo edio brasileira

    5

    entre muitos e mui saudveis efeitos que teve a profundarevoluo cultural de 1968 sobre nossas cincias sociais e sobrenossas historiografias, est sem dvida o de haver aberto asportas, como j mencionamos antes, a uma vasta difuso tantodos diversos marxismos como dos trabalhos representativos dasucessivas geraes da corrente dosAnnales.

    Assim, no arriscado afirmar que foi depois de 1968, que ashistoriografias de todos os pases da Amrica Latina vo conhecerum duplo impulso, difundido em escala macia, e que invadedesde as editoras e as revistas at as ctedras de histria e decincias sociais, passando pela cultura em geral e at pelas artese as humanidades. Duplo impulso da difuso dos muitosmarxismos do sculo XX e tambm dos mais que heterogneos edesiguais aportes dos Annales, representados pelos slidos einteressantes trabalhos da histria econmica e social de MarcBloch e de Ferdnand Braudel ou at os amorfos e indefinveistrabalhos de uma francamente ambgua histria dasmentalidades.

    Cremos que, para alm da queda do muro de Berlim, e contracertas avaliaes superficiais e muito vnementielles da situaoatual, at hoje o marxismo segue permeando profundamente ahistoriografia e as cincias sociais de toda a Amrica Latina.

    Assim, tambm os Annales - e de maneira mais forte que acultura francesa de cincias sociais vm reatualizando a slidatradio secular de forte presena e influncia que tem exercido aFrana em toda a Amrica Latina e fazem-se presentes hoje comocomponentes essenciais, tanto dos nossos modos de exercer oofcio de historiador, como de nossas modalidades especficas noconcerto das disciplinas ou cincias sociais que buscamapreender essa complexa trama dos homens no tempo.

    * * *

    Se 1968 a data simblica que abre, para toda a AmricaLatina, junto com a popularizao ampla do marxismo, tambm a

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    13/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    6

    difuso em larga escala dos Annales, claro que, em torno destaltima, o pas que mais se destaca entre todos no mundo latino-americano sem dvida o Brasil.

    Pois se certo que os contatos com a historiografia francesados Annalesexistem tambm no Mxico e na Argentina desde osanos trinta, tambm claro que tais vnculos no alcanam ograu de sistematicidade e de organicidade que atingem no casodo Brasil, onde as clebres misses francesas ajudaram aconstruir, de modo fundamental, as cincias sociais no mbitodas novas universidades, que se criavam tanto em So Pauloquanto no Rio de Janeiro na primeira metade do sculo XX.

    Deste modo, afirma-se claramente uma excepcionalreceptividade cultura francesa de cincias sociais no Brasil. Fatoque se ilustra, para usar apenas alguns exemplos anedticos, masevidentes nesse sentido, na constatao de que o nico pas da

    Amrica Latina visitado por Michel Foulcault tenha sidojustamente o Brasil. Ou tambm na cifra de formandos brasileirosque estudaram na Frana nos ltimos trinta anos, a qual semdvida a mais alta de todos os pases da Amrica Latina. Ainda, nasurpreendente rapidez com que se traduzem os livros francesesno Brasil, testemunhada, por exemplo, com o caso da auto-biografia de Louis Althusser, que surgiu na Frana em Abril e emnovembro do mesmo ano no Brasil.

    Por isso, quando nos dirigimos ao leitor brasileiro, falandodos Annales e do marxismo, ou das obras de Marc Bloch,Foulcault ou Braudel, estamos cientes de estarmos referindo atemas que lhe so familiares e prximos, e de referentesintelectuais que constituem parmetros habituais de sua prpriaformao profissional ou de seu trabalho e leituras cotidianas.

    Essa historiografia brasileira bom lembrar -, que construiuas bases de sua profissionalizao como disciplina contando coma enrgica atividade e colaborao de um dos maioreshistoriadores de todo o sculo XX, como foi Fernand Braudel, sem dvida uma historiografia que no poderia ter permanecido

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    14/350

    Prlogo edio brasileira

    7

    alheia evoluo e aos impactos da equivocadamente chamada escola dosAnnales. 2

    Com tudo isso, a publicao deste livro em portugus

    3

    Uma clara aposta que deriva da polmica que este livropretende suscitar, em torno do tema fundamental das relaes

    entre marxismo eAnnales, tema que consideramos crucial dentrodo necessrio balano do que seja a historiografia latino-americana hoje, assim como da urgente discusso sobre os rumosfuturos que esta historiografia dever seguir, neste novo milniocronolgico no propriamente histrico que agora se inicia.

    aomesmo tempo um sintoma e uma clara aposta. Um sintoma, namedida em que mais uma manifestao dessa excepcionalreceptividade da historiografia brasileira que j mencionamos, arespeito da cultura e da historiografia francesa, e igualmentedaqueles trabalhos que a ela se referem.

    Um balano e uma discusso que so, ademais, pr-condiesobrigatrias para definir-se qual ser a contribuio particularque a Amrica Latina dar no concerto da historiografia mundial.

    Uma contribuio que, colhendo o melhor da herana tanto dosAnnalesquanto do marxismo, junto a outras influncias externas

    2. Por esta razo, resulta surpreendente que at hoje no exista um trabalhode maior alento sobre o captulo brasileiro da biografia intelectual deFernand Braudel, assim como sobre esta rica e complexa relao deintercmbio entre aquele e o Brasil, experincia cuja riqueza ele prpriogostava de repetir e de reconhecer reiteradamente. A esse respeito, talvezno seja demais lembrar suas declaraes, afirmando que Converti-me em

    algum inteligente ao ir para o Brasil. O espetculo que tinha frente a meusolhos era um espetculo de histria a tal ponto... que compreendi a vida deuma maneira completamente diferente. Sobre esta questo, ver nossoartigo Fernand Braudel, Amrica Latina y Brasil, includo na coletneaBraudel a debate(Caracas: Tropykos/Buria, 1998), artigo que est no prelo noBrasil. Sobre os aportes de Braudel, de forma mais ampla, veja-se nosso livroFernand Braudel y las ciencias humanas. Barcelona: Montesinos, 1996).

    3. Na cuidadosa traduo de meu colega e amigo, o Prof. Jurandir Malerba, aquem agradeo publicamente.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    15/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    8

    importantes, seja capaz de projetar igualmente a especificidade ea singularidade das lies que derivam de nossa identidadecivilizatria especificamente latino-americana.

    Pois se a cincia universal, e se no h contribuio originalpossvel sem o suporte de um prvio e vasto cosmopolitismocultural, tambm verdadeiro que o mundo segue sendo rico einteressante graas a sua imensa diversidade cultural e grandemultiplicidade de suas formas de identidade civilizatria.Portanto, graas s manifestaes, cada vez mais difundidas, deum genuno e aberto dilogo multicultural e planetrio.

    Por isso, se este conjunto de ensaios lograr suscitar em seusleitores alguns elementos de reflexo para esse balano e essadiscusso em torno do estado atual e da futura contribuio dahistoriografia latino-americana ao panorama dos estudoshistricos no mundo todo, ele j ter cumprido um de seusobjetivos principais.

    Carlos Antonio Aguirre Rojas

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    16/350

    INTRODUO

    OSANNALESNA HISTORIOGRAFIALATINO-AMERICANA*

    O programa de trabalho de Lucien Febvre, estabelecido em 1929,encontrou incidentalmente na criao da Faculdade de Filosofia,Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, em 25 de janeirode 1934, uma matria-prima excepcional para sua realizao.

    Jacques Chonchol e Guy Martinire. LAmrique Latine et lelatinoamericanisme en France.

    Sob os olhos atentos de uma grande parte dos historiadoresdo mundo todo, o movimento dos Annales encontra-se hojenovamente na encruzilhada. Isso acontece no apenas porque acorrente francesa, designada sob esse termo emblemtico ainda que equvoco de escola dos Annales, continua sendouma referncia bsica dos estudos histricos contemporneos,mas tambm porque a histria e as cincias sociais em geralentraram numa situao de redefinio e de redimensionamento

    de suas perspectivas globais e modalidades prticas, aps o anomarcante de 1989.

    Qualquer cientista social ou historiador srio que sepropuser, nessa virada de milnio, quelas redefinies e

    *. Este artigo foi publicado originalmente em Ojarasca, Mxico, n. 25,out./1993.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    17/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    10

    redimensionamentos, estar obrigado a considerar o legadointelectual da corrente dos historiadores franceses que atuouentre 1930 e 1970, historiografia de vanguarda situada entre aderrocada da historiografia de lngua alem do primeiro quarteldo sculo e o florescimento recente das historiografias italiana eanglosax dos ltimos trinta anos.

    O exerccio da profisso de historiador resulta, hoje em dia,impossvel sem se haver cumprido a leitura sistemtica de algunsttulos, dentre os quais as principais obras de Henri Pirenne, MarcBloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, para no citar mais quealguns dos primeiros annalistas. Pois que os Annales, nos diasatuais, deixaram de ser simplesmente uma correntehistoriogrfica de espectro internacional para tornarem-se numaherana intelectual que, atravs de complexos processos derecuperao e resgate, levados a cabo por experinciashistoriogrficas as mais diversas, converte-se num movimento

    vivo, plural e internacional, movimento que mediante essadiversa aclimatao e refuncionalizao em diversos pases,encontra-se hoje presente como personagem de primeira ordem

    dessas mesmas historiografias nacionais.Conhecer, discutir e recuperar criticamente osAnnales, pois,

    uma das tarefas obrigatrias das cincias sociais contemporneas.Compromisso que se impe a historiadores e cientistas sociais domundo todo, essa tarefa ganha maior importncia para osseguidores de Clio e investigadores do social dentro da realidadelatino-americana, no apenas em funo da necessidade, tambmuniversalmente compartilhada, de estarmos altura dos desafios

    e avanos intelectuais contemporneos, mas igualmente pelahistria e pelas condies especficas das atmosferas culturaisdos pases da Amrica Latina.

    Porque, como sabido, e a partir de nossa raiz "latina", quenos d justamente sobrenome e singularidade diante da Amricainglesa, a influncia da cultura e do pensamento francs tem sidosempre importante dentro de nossas respectivas paisagens

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    18/350

    Introduo

    11

    culturais. Exercendo assim uma presena que no tem sido nemlinear nem isenta de mudanas e acidentes, a cultura francesalogrou influenciar de maneira relevante os desenvolvimentosliterrios, artsticos, cientficos e humansticos das distintasregies latino-americanas.

    Essa presena da Frana explica tambm a rica e complexarelao que osAnnalespuderam manter com a historiografia e ascincias sociais de nosso continente. Relao de mtuainfluncia que, analisada com mais cuidado, se apresenta comomais intensa e relevante do que poderia parecer primeira vista,e cujos elementos e dimenses merecem ser investigados emdetalhe. Pretendendo, com este esforo inicial, contribuir para odesenvolvimento desta linha de reflexo problemtica,trataremos de esboar algumas das principais coordenadas deste

    vnculo importante entre a corrente annalista e o universointelectual latino-americano.

    * * *

    No Brasil, descobri o que no conhecia, de uma maneira at certo

    ponto violenta ... Em todo caso, no Brasil que eu me converti noque agora sou.

    Fernand Braudel. Entrevista revistaMagazine Litteraire, 1984.

    Se ento nos transportamos para o ano de 1929, ano dolanamento oficial dos Annales dHistoire conomique et Sociale 1

    1. Sabe-se que o projeto que vai derivar finalmente nesses Annales vinha

    amadurecendo desde dez anos antes, a partir do encontro e colaborao emEstrasburgo entre Marc Bloch e Lucien Febvre, projeto que se apoiava emparte nos intentos renovadores de Henri Berr, os quais, curiosamente,tambm tiveram seus ecos dentro da historiografia argentina dessa mesmapoca. Cf. Pelosi. Historiografia y sociedad, captulo 9. [Nota do Tradutor: asreferncias completas encontram-se na Bibliografia, ao final].

    ,nos encontraremos com uma Amrica Latina que passa porimportantes rearranjos geopolticos, resultantes da I Guerra

    Mundial. Logo em 1919, os Estados Unidos se lanaram

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    19/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    12

    conquista orgnica de todo o continente, e sob o lema mais queevidente da Amrica para os americanos, ensejaram umaofensiva que, no plano cultural, significou um certoarrefecimento da influncia que at ento haviam exercido asdiversas culturas europias sobre o continente latino-americano,acompanhado, por sua vez, de um esforo por difundir umaainda incipiente e pouco definida cultura norte-americana(cultura esta ltima, a rigor, muito mais tcnica do quehumanstica). Deu-se, ento, uma retrao geral do rol dasculturas europias frente presena cultural norte-americana,que se apresentou de maneira muito diferenciada e desigual,

    conforme as distintas regies e pases latino-americanos.Assim, enquanto no Mxico o perodo do entreguerras viu

    desenvolver-se efetivamente um claro refluxo das influnciasculturais francesa e alem no obstante a temporada parisiensede Diego Rivera, os fortes vnculos de Alfonso Reyes com acultura do hexgono ou as importantes visitas de renomadoseuropeus ao Mxico, que podem ser tomadas como excees queconfirmam a regra , na Amrica do Sul, ao contrrio, parece ser

    muito menor este mesmo refluxo, aparecendo como muito maiscontnua e relevante esta relao e influncia cultural da Europasobre a Amrica Latina, antes e depois da ruptura da I GuerraMundial (19141918).

    Por isso, resulta curioso o fato de que, junto ao manifestointeresse de Lucien Febvre por esse campo privilegiado deestudos que era a Amrica do Sul 2

    2. Cf. seu artigo Un champ privilgi dtudes..., 1929.

    , e apesar do carter marginalque dentro da prpria Frana tm ento os prprios Annales,

    estabelecem-se j desde essa poca alguns vnculos importantesentre os Annales, ainda em vias de constituo, e algunsexpoentes da historiografia e das cincias sociais da AmricaLatina.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    20/350

    Introduo

    13

    Assim foi que, entre 1935 e 1937, a recm-fundada Faculdadede Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo teveFernand Braudel como um de seus professores titulares, nactedra de Histria das Civilizaes. Ainda que quela altura eleno fizesse parte do ncleo rgido do grupo dirigente dosAnnales, j se encontrava, de qualquer maneira, muitoinfluenciado pela revista de Marc Bloch e de Lucien Febvre, sendoademais um defensor ativo das novas linhas da histriaeconmica e social, ento reinvidicadas dentro do projetoannalista.

    Plantando ento, nestes anos 30, uma importante sementedentro da historiografia brasileira, Braudel preparou a enorme epermanente receptividade dos cientistas sociais brasileiros spropostas dos Annales, que se manifestar depois da II GuerraMundial de mltiplas maneiras 3

    A pioneira influncia no mbito cultural brasileiro daqueleque ser mais adiante o dirigente dos segundos Annales, serreforada e completada com a permanncia de Henri Hauser ento membro do Comit Diretor dos Annales, na Universidadedo Rio de Janeiro, durante os anos de 19361939

    .

    4

    O Brasil se situa, ento, nesta primeira etapa da vida dosAnnales, como o territrio privilegiado do vnculo entre a

    e com os ecosdas ctedras de professores como Emile Connaert ou PierreMonbeig, pessoas que tambm gravitavam, em maior ou menormedida, nas rbitas do nascente universo annalista.

    3

    . Por exemplo, na fundao do que ser a revista de histria mais importantedos anos 50 e 60 no Brasil, a Revista de Histria, dirigida por EurpedesSimes de Paula, que foi aluno, discpulo e depois auxiliar docente doprprio Braudel. Simes de Paula declarou as filiaes diretas da Revista deHistriacom osAnnalesem seu artigo O nosso programa, de 1950. Sobre opapel desta revista na histria da cultura brasileira veja-se Carlos GuilhermeMota.Ideologia da cultura brasileira.

    4. Cf. JeanPaul Lefebvre. Les professeurs franais des missions universitairesau Brsil (19341944).

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    21/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    14

    corrente historiogrfica francesa e a Amrica Latina, pois, apesarde a Argentina e o Uruguai receberem a visita acadmica dequase dois meses do prprio Lucien Febvre em 19375

    Imediatamente aps a II Guerra Mundial, visando firmar-secomo uma possvel terceira via entre os caminhos propostos erepresentados pelas duas grandes superpotncias daquelapoca

    , indubitavelmente no Brasil onde se encontra a maior, mais

    variada e duradoura projeo da influncia dosAnnales, o que fazdesse pas, no contexto americano, tradicionalmente o maisreceptivo e mais atento seguidor da cultura francesa, em suas

    variadas manifestaes.

    6, a Frana lana uma iniciativa institucional importantecom o objetivo de voltar a aproximar o mundo latino-americanode sua prpria cultura. Em 1944, funda-se no Mxico o InstitutoFrancs da Amrica Latina (IFAL), ao que seguiram o InstitutoFrancs de Santiago do Chile (1947) e o Instituto Francs deEstudos Andinos (1948), sediado em Lima7

    Assim, no Mxico, Paul Rivet que dirigiu um dos tomos daEncyclopedie Franaise coordenada por Lucien Febvre ser um

    . Conjunto significativode iniciativas oficiais do governo francs para recuperar epotencializar o papel da Frana deste lado do Atlntico, que de

    maneira chamativa ser protagonizado, mais uma vez, por algunspersonagens ligados mais ou menos diretamente com as linhasde irradiao annalista, os quais, beneficiando-se destasiniciativas ou do novo marco por elas criado, vo desempenharum importante papel dentro dos desenvolvimentos culturais dosdistintos mbitos latino-americanos.

    5. Sobre as circunstncias particulares em que se decidiu por Lucien Febvrepara esta visita, veja-se Peter Schoettler.Lucie Varga.

    6. Sobre este ponto, veja-se Immanuel Wallerstein. Braudel, los Annales y lahistoriografia contempornea, p. 99111.

    7. Cf. Jacques Chonchol e Guy Matinire. LAmrique Latine et lelatinoamricanisme en France.Para o caso especfico do Mxico e o Ifal, veja-seFranoise Bataillon e Franois Giraud.Ifal. 19451985.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    22/350

    Introduo

    15

    dos protagonistas do processo de fundao do IFAL, instituioque mais adiante seria dirigida por um perodo de treze anos(19481962), por Franois Chevalier, discpulo de Marc Bloch,cujo primeiro projeto intelectual importante que se props foi ode tentar reeditar o modelo e os ensinamentos do grandetrabalho blochiano de Caractres originaux de lhistoire ruralefranaise, agora aplicado ao caso da histria rural mexicana 8

    Com isso, criava-se no Mxico um clima que nos permitecompreender certos fatos profundamente significativos para aprpria histria dos Annalese de sua projeo fora do hexgonofrancs: por exemplo, a traduo espanhola, pela Fondo deCultura Econmica, da grande obra braudeliana O Mediterrneo e omundo mediterrnico na poca de Felipe Segundo, traduo que sepublica no Mxico apenas quatro anos aps seu aparecimento naFrana e imediatamente depois da visita acadmica do prprioBraudel ao Mxico, para conferncias no Colgio do Mxico, naFaculdade de Filosofia e Letras e na Escola de Economia daUnam

    .

    9. Ou tambm, a publicao em 1952, da edio mexicanado livro Apologie pour lhistoire ou Mtier dhistorien, de Marc

    Bloch, editado na Frana em 1949. Ou, finalmente, a traduopara a lngua de Cervantes do artigo fundamental de BraudelHistria e cincias sociais: a longa durao, artigo que a equipeda revista mexicana Cuadernos Americanospublicou apenas algunsmeses depois do original francs nos Annales. conomies. Societs.Civilizations.10

    8. E que precisamente seu livro, dedicado justamente a Marc Bloch, e

    intituladoLa formacin de los grandes latifundios en Mxico

    , publicado emespanhol pela Fondo de Cultura Econmica, obra influente dentro dosestudos da historiografia mexicana. Sobre o trabalho de Franois Chevalier,

    veja-se Norma de los Ros. Conversaciones con Franois Chevalier yFranoisXavier Guerra.

    9. Cf. oAnnuaire du Collge de France. Anne 19531954.10. Sobre o significado mais global que tm estas tradues espanholas de

    centenas de textos dosAnnales, veja-se nosso artigo DeAnnales, marxismo yotras historias..., includo na presente coletnea.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    23/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    16

    Presena, pois, considervel das obras e ensinamentosannalistas no meio intelectual mexicano dos anos 50 e 60, quehaveria de se intensificar e ampliar-se ainda mais depois dagrande ruptura de 1968 e suas seqelas. Porque, sobre a basedos antecedentes acima referidos, onde o IFAL funcionou comoum dos polos de atrao cultural de um setor importante dosintelectuais mexicanos 11

    E seriam esses jovens professores, membros da gerao 68mexicana e marcados duplamente por uma influncia annalista epela irradiao do marxismo, os que garantiriam o xito e areceptividade do meio acadmico mexicano a trabalhos como osde Antonio Garca de Len ou Enrique Florescano, para no citarmais que dois dos representantes dessa clara influncia dosAnnales no Mxico.

    , e a partir das afinidades lingsticas domexicano e do francs, que se explica a forte migrao deestudantes e intelectuais mexicanos, que por razes polticasexilaram-se na Frana, aps o movimento de 1968. Assim, depoisde permanncias mais ou menos longas no hexgono, e com

    mestrados e doutorados conquistados durante esses anos, seriamesses mesmos jovens soixantehuitards mexicanos os que, aoretornar, impulsionariam a popularizao dosAnnalesno Mxico,introduzindo as obras de Pierre Vilar e Marc Bloch, de FernandBraudel e Pierre Chaunu nos programas das novas cadeiras dehistria, estruturalmente modificadas sob o impacto domarxismo latino-americano, o qual tambm florescia naquelesanos.

    Essa mesma projeo se repete no Brasil12

    11. Sobre esta funo, veja-se o testemunho de Carlos Fuentes e outros ali

    includos, no livro j citado,Ifal. 19451985.

    e na Argentina,

    tomando apenas os dois maiores pases da Amrica do Sul. Noprimeiro, como se viu, o peso da cultura francesa foi sempre maisforte; a semente plantada nos anos 30, com as misses francesas Universidade de So Paulo e ao Rio de Janeiro, germinou e

    12. Cf. Guy Martinire. Principales orientations...

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    24/350

    Introduo

    17

    cresceu durante os anos 50 e o primeiro lustro dos 60, mas agoraatravs dos discpulos brasileiros dos mestres franceses. quando comea a surgir regularmente a Revista de Histria,inspirada de modo confesso no modelo da revista Annales,e queacolheria regularmente, por exemplo, o textos e as colaboraesde Lucien Febvre e Fernand Braudel.

    Com a segunda estada de Braudel no Brasil, que passououtros cinco meses em So Paulo em 1947 junto USP, osAnnalesreforariam sua influncia no meio acadmico brasileiro,agora atravs da brilhante gerao de historiadores nucleada emtorno de Eurpedes Simes de Paula e da Revista de Histria, naqual colaboraram pessoas como Eduardo d'Oliveira Frana, AliceCanabrava, Astrogildo de Melo e Olga Pantaleo, tidos como osfundadores da escola uspiana de histria. Seu impacto ser toimportante dentro da cultura brasileira, que mesmo pessoasoriundas de outros horizontes intelectuais como no caso deOctvio Ianni, discpulo de Florestan Fernandes e membro dosrenovadores da sociologia brasileira dessa poca, ou CelsoFurtado, autodidata genial se viram influenciados, em maior ou

    menor medida, pelos ensinamentos da escola francesa dosAnnales e pela obra de Fernand Braudel.

    Deste modo, e numa curiosa evoluo que valeria a penaestudar mais de perto, as duas dcadas imediatamenteposteriores II Guerra Mundial so, no Brasil, dcadas de uminteressante intento de abrasileirar os estudos histricos e asperspectivas das cincias sociais, intento que sem renegar suamatriz francfila lembre-se das visitas ao Brasil de Charles

    Mozar e Frderic Mauro13

    13. Vejase, a respeito, a meno no artigo de Maria Helena Rolim Capelato e

    Mara Ligia Coelho Prado. A lorigine de la collaboration universitairefrancobrsilienne...

    , ensaia um movimento dereconstruo a partir de perspectivas e referncias maisespecificamente brasileiras.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    25/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    18

    Este original empreendimento intelectual interrompidocom a crise brasileira de 19641968. O fechamento aopensamento crtico e o exlio de uma parte significativa daintelectualidade para o exterior onde, mais uma vez, a Frana

    vai ocupar um lugar de destaque, chegando inclusive a proverctedras a professores como Milton Santos e Celso Furtado rompe em parte a continuidade do processo anterior, ainda quesimultaneamente radicaliza essa intelectualidade brasileira,aproximando-a do marxismo e das posies de esquerda emgeral, que naqueles anos comeariam a medrar pela AmricaLatina, quando surgiram novas teorias latino-americanas da

    dependncia, cujos mentores mais importantes sero justamenteintelectuais brasileiros.

    Finalmente, e com a crise dos regimes autoritrios no finaldos anos 70 e incio dos 80, deu-se o retorno daquelesintelectuais ao Brasil e, com isso, uma retomada da influnciadosAnnalesneste pas. Influncia recuperada tambm no Mxico,agora sob ticas acentuadamente marcadas pela difuso dopensamento marxista, que colocava o Brasil, mais uma vez, como

    o pas latino-americano mais receptivo e atentamente sensvel, demodo geral, aos desenvolvimentos do pensamento social dohexgono francs e, por fim, tambm dos Annales, que seconverteriam nesses mesmos anos 80 em parte da cultura oficialfrancesa, do establishement acadmico reconhecido e atexportado por sucessivos governos dessas duas dcadas.

    O caso argentino , por fim, marcado por uma histria muitomais acidentada e moldada pelas vicissitudes da sua histria

    poltica. Aqui, e apesar da frutfera permanncia forada de RogerCaillois entre 1939 e 1945 que reforar sensivelmente osvnculos entre Frana e Argentina no mbito literrio 14

    14. Cf. Silvia Baron Supervielle. La traduction rciproque.

    , ainfluncia forte dos Annales sobre a historiografia e as cinciassociais argentinas s se faria sentir de forma mais ampla eorgnica a partir de 1955, aps a queda de Pern e da

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    26/350

    Introduo

    19

    emergncia de vrios grupos renovadores dentro daquelecontexto.15

    Retomando, ento, a influncia exercida pelo pequeno gruponucleado em torno do historiador Jos Luis Romero queentabulou relaes com Braudel desde os anos 50, organizandoparte de sua visita acadmica a Buenos Aires em 1947, erecebendo do prprio Braudel um captulo redigido para a obracoletiva Histria Americana (obra, alis, jamais publicada

    16

    Introduzindo em suas ctedras, assim como em seustrabalhos de investigao, as obras metodolgicas clssicas dosautores dos Annales

    ) , ogrupo de renovadores mencionado iria implantar-se em diversasuniversidades argentinas, fomentando a histria econmica esocial numa clara e assumida perspectiva annalista.

    17

    Esse grupo renovador no cenrio intelectual e acadmico, porseu lado, receberia a influncia do pensamento marxista,ademais, como todos os outros pases latino-americanos, o quepermitiu que setores importantes deles viessem a radicalizar-sedepois de 1966, fragmentando a anterior unidade vivida duranteo perodo 19551966 e comeando a recolocar em discusso, ao

    , e abrigando-se diretamente sob o mantodesta viso annalista que ser ento dominante em seu seio, osgrupos renovadores vo marcar uma profunda ruptura dentro dosestudos histricos argentinos, deixando como herana uma obraque, sem dvida, um dos referentes importantes dos cientistassociais argentinos contemporneos.

    15. Cf. o mapa geral da colocao dentro e fora das universidades argentinas

    destes grupos renovadores, que consta em Tulio Halperin Donghi, Uncuarto de siglo de historiografia argentina.

    16. Conseguimos recuperar o original francs e a traduo espanhola destecaptulo escrito por Fernand Braudel e intitulado La vida europea y susproyecciones en Amrica (15301700). Ambos os materiais devem serpublicados muito em breve.

    17. Cf. Carlos Korol. Los Annalesen la historiografia argentina de la dcada del60.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    27/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    20

    mesmo tempo e sob uma tica marxista, os ensinamentos eaportes principais da corrente dosAnnales.

    Todo esse processo interromper-seia at os anos 19731976 quando, fechando o perodo aberto em 1955, aconteceria oimportante exlio de intelectuais argentinos na Europa e emoutros pases da Amrica Latina exlio que, diferentemente deoutros processos migratrios igualmente forados, foi maisprolongado e em alguns casos mesmo definitivo , criando entoum vazio considervel dentro das cincias sociais argentinas, ques comear a ser sanado, muito lentamente, durante a dcadade 80.

    * * *

    Congratulemo-nos, finalmente, ao observar tal quantidade deolhares que se voltam a esse mundo sul-americano, to rico emensinamentos. , como vimos, um mundo prenhe de liesfecundas. Tudo est em sab-las extrair.

    Lucien Febvre. Un champ privilgi dtudes: lAmrique du Sud,Annales dHistoire conomique et Sociale, n. 3, maio de 1929.

    Ao impactar, por esses vrios caminhos, as historiografias ecincias sociais latino-americanas, osAnnalespuderam deixar suamarca, de maneira importante, sobre os espaos culturais denosso continente. Uma marca que, ademais, e vista num contextohistrico mais amplo, se apresenta como uma clara e bem traadacurva que, para l de suas vicissitudes particulares, constitui uma

    verdadeira linha de vnculo permanente e decisivo dentro dacultura latino-americana contempornea.

    Vnculo e presena relevantes na Amrica Latina que, aocompararmos com os mbitos intelectuais da segunda Amrica,a Amrica dos Estados Unidos e Canad e salvo a evidenteexceo da provncia do Qubec, desse Canad francs catlico ede clara matriz mediterrnea 18

    18. Cf. Alfred Dubuc. The influence of theAnnalesschool in Qubec.

    , se apresentam no por acaso

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    28/350

    Introduo

    21

    ainda mais nitidamente como traos singulares de nossa culturalatino-americana. Porque, enquanto os autores centrais dosAnnales e dos ncleos imediatos de sua nebulosa na Frana sefizeram presentes, como vimos, nas universidades e nos meiosacadmicos brasileiros, mexicanos e argentinos desde os anos 30ou 40, no caso da Amrica de matriz norteeuropia e anglosax, ao contrrio, essa influncia da corrente annalista teria queesperar at os anos 70 para chegar a ser plenamente reconhecidae popular dentro dos correspondentes ambientes intelectuais dosEstados Unidos e do Canad ingls.19

    Reproduzindo mais uma vez e agora no plano dasatmosferas culturais das cincias sociais a velha e ordinriadiviso do territrio americano em duas grandes Amricas, umade matriz mediterrnea e outra norteeuropia 20

    19. Sobre este ponto, veja-se o artigo de Sam Kinser. Braudel en Amrique. Na

    introduo dosAnnalesnos Estados Unidos, foi importante o papel pioneiro

    representado pela Universidade de Princeton e do grupo ali alocado enucleado em torno de Natalie Zemon Davies.

    , a influnciadosAnnalesse bifurca claramente, em torno dos enormes espaoscivilizatrios construdos deste lado do Atlntico durante o longopercurso da modernidade capitalista, que j conta mais de cincosculos. Porque, com a nica exceo do caso italiano, tambmno casualmente parte do mundo mediterrneo, a Amrica Latina

    se apresenta como a zona de influncia mais pioneira, constantee efetiva da corrente annalista, sobretudo antes dos anos 70, emque, por outras circunstncias, deflagrou-se o processo da

    verdadeira irradiao e difuso planetrias desse mesmomovimento annalista.

    20. Idia que j Fernand Braudel havia colocado claramente em seu Civilizacinmaterial, economa y capitalismo. Sobre a referncia concreta destas duas

    Amricas, que reproduzem deste lado do Atlntico as oposies da prpriaEuropa, principalmente o vol. 3, p. 345. [Nota do tradutor: muitas obrasestrangeiras encontram-se traduzidas; porm, optamos por manter as

    verses originalmente utilizadas pelo autor para respeitar as numeraes depgina citadas.]

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    29/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    22

    Se seguirmos esta linha de raciocnio, a Amrica Latina sedestaca como uma das zonas mais antigas de recepo eaclimatao do projeto annalista, apenas superada pelo espaoeuropeu-ocidental mediterrneo21

    Reler, estudar e recuperar criticamente esta herana dosAnnales constitui, assim, uma das tarefas mais importantes doshistoriadores e dos cientistas sociais sul-americanos. Tarefa que,para alm de permitir compreender melhor a complexa culturalatino-americana atual, abrir o vasto e rico horizonte dasincertezas, mas igualmente das enormes possibilidades dodebate historigrfico contemporneo e dos desafios das cinciassociais hoje. Seguindo as lies dos Annales, e situando-os emperspectiva crtica e histrica, vale a pena o esforo daexperincia.

    , e muito anterior, nessesaspectos, tanto ao espao da Amrica do Norte, como de muitasoutras regies do planeta, que apenas nos ltimos vinte e 25anos comearam a conhecer mais sistemtica e organicamente olegado dosAnnales.

    21. Como procuramos explicar em nosso artigo j citado, DeAnnales, marxismoy otras historias.... O que no impede, de outra parte, a possibilidade decomparar este discurso annalista, de matriz predominantementemediterrnea, com outros discursos de origem norteeuropia, como nocaso do prprio marxismo. A respeito, nosso artigo Between Marx andBraudel....

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    30/350

    I. DOSANNALES, MARXISMO E OUTRAS HISTRIAS

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    31/350

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    32/350

    DOSANNALES, MARXISMO E OUTRAS HISTRIAS:UMA PERSPECTIVA COMPARADA SOB O PONTO

    DE VISTA DA LONGA DURAO*

    No presente buscamos, sempre luz do passado, ver o quepertence longa durao e o que s momentneo.

    Entrevista a Fernand Braudel.LExpress, novembro de 1971.

    Os Annales j completaram 70 anos de idade. Com uma

    considervel histria construda por trs (muitos dizem mesmoquatro) geraes de historiadores e com um renome mundial estacorrente historiogrfica francesa acabou convertendo-se elamesma em objeto de estudo de muitos historiadores. Nosltimos vinte anos se produziu abundante literatura que tratoude caracterizar a evoluo e a situao atual desta corrente;questionando-se sobre os diferentes perodos do fenmeno

    *. Este artigo constitui-se em um resultado parcial da investigao de psdoutorado Los Annales, lo marxismo y la obra histrica de Fernand Braudel,desenvolvida no Centre de Rchrches Historiques da cole des Hautestudes en Sciences Sociales de Paris entre 1988 e 1989, sob a orientao doDr. Andr Burguire e financiada pelo Conacyt. As idias aqui desenvolvidasforam apresentadas e discutidas no Colquio Internacional Les Annales. Hieret aujordhui, realizado em Moscou de 3 a 8 de outubro de 1989. Agradeo asobservaes do Prof. Bolvar Echeverra feitas para uma primeira versodeste ensaio.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    33/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    26

    Annales, se esfora por definir os mltiplos aportes especficosque nos planos metodolgico, terico, problemtico ehistoriogrfico desenvolveram os distintos autores pertencentes larga trajetria annalista.1

    Na busca de uma compreenso adequada do problema, odebate se entabulou em torno da elucidao de uma srie depontos que hoje so muito familiares queles que se aproximamdo estudo do movimento dos Annales: quando comeou,estritamente, o enfoque annalista da histria? Quais so suasfiliaes e antecedentes intelectuais principais? Em que consisteseu verdadeiro aporte e sua novidade em relao a formasanteriores de se fazer histria?

    Uma vez esclarecidas essas origens e fundamentos, ainvestigao prossegue no itinerrio dos prprios Annales: quaisteriam sido as principais etapas ou fases deste longo movimentohistoriogrfico? Existe entre elas continuidade ou descontinuidade?So similares ou diversos os Annalesde hoje e os de ontem?Quando fixar esse hoje e esse ontem? Em torno de quaisparadigmas metodolgicos, aportes tericos e universosproblemticos ou desenvolvimentos historiogrficos concretos sefixa?

    Finalmente e esse se constitui no objetivo central dasindagaes anteriores , o questionrio dirige-se situao atuale sobretudo ao futuro da corrente: j teria cessado o alentofinal dos Annales? Depois de setenta anos de existncia, quepapel representam na historiografia francesa e mundial osAnnales de hoje? Que falta abordar em termos histricos ehistoriogrficos? O que , em suma, num momento de balano

    1. Vejase, a ttulo indicativo, nossa bibliografia final. A respeito, chama aateno o fato de que a grande maioria dos trabalhos dedicados ao estudodo fenmeno Annales so trabalhos curtos, artigos ou ensaios breves, oque indica a novidade e o carter ainda aberto do problema. Excees a estamaioria so os trabalhos de Dosse.LHistoire en Miettes...; Stoianovich.FrenchHistorical Method, e Gerard Mairet.Le Discours et lHistorique.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    34/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    27

    global, que os historiadores contemporneos podem esperar e oque devem desejar da produo dessa corrente?

    Em torno de alguns destes problemas, a historiografiarecente sobre o fenmeno dos Annales logrou alguns avanosconsiderveis. Hoje, sem dvida, conhecemos muito melhor queh vinte anos algumas respostas quelas diferentes questes. Maschama a ateno, nos estudos sobre osAnnales, uma inexplicvellacuna: apesar da variedade de aproximaes ao problema e daacuidade de algumas dessas investigaes, pouqussimasparecem remontar mais alm da prpria temporalidade intrnsecaao fenmeno estudado a temporalidade da conjuntura ou dotempo mdio como a chamaria Braudel e menos ainda parecemhaver ensaiado uso do mtodo comparativo para uma melhorcompreenso do ponto em questo.

    De outra parte, talvez decorrente do que poderia ser umrespeito espontneo em relao geografia da origem dosprimeiros Annales, so igualmente escassos os estudiosos que setm aventurado a indagar sobre a presena e difuso dofenmeno Annales fora do espao do hexgono francs. O queno deixa de parecer um paradoxo.

    Assim, os investigadores dos Annales, leitores atentos dasgrandes obras de Bloch, Febvre e Braudel em funo de seuprprio objeto, fizeram at agora pouco uso do mtodohistrico, comparativo, to praticado por esses mesmos autores,na explicao da evoluo da corrente: incursionaram pouco emsuas vises fora da experincia francesa e evitaram praticamenteo esforo de situar seu problema levando em conta asrealidades culturais de longa durao dentro das quais tal estudose inscreve.2

    2. Exceo interessante a este espectro dominante constitui o artigo de

    Wallerstein. Lhomme de la conjoncture, trabalho que valeria a pena seraprofundado e discutido mais em detalhe.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    35/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    28

    Quais so os estudos que comparam a evoluo dos Annalescom a histria e os aportes de outras correntes historiogrficas,contemporneas ou anteriores?3Quais os estudos que tentaramsituar a contribuio dosAnnalesdentro do contexto mais amploda historiografia francesa e das cincias sociais na Frana, e emrelao com a histria global desse pas? 4

    Mas o paradoxo apenas aparente e atesta a realcomplexidade de alguns aportes metodolgicos centrais dosautores dos Annalesacima mencionados: setenta anos depois doaparecimento das primeiras lies annalistas em torno do ofciodo historiador, mesmo depois do que ensinou Braudel, a anlisevnementielle e a anlise do tempo mdio ou da conjunturacontinuam ainda prendendo os historiadores. Da mesmamaneira, as contribuies dos primeirosAnnalessobre o mtodo

    comparativo e sobre a histria global se mostram muito maisdifceis de aplicar e de concretizar na prtica historiogrficasobre o objeto Annales, do que sua clara e reiterativa exposioque os trabalhos de Bloch e Febvre pareciam implicar.

    Quais as investigaesque tm procurado estabelecer, do ponto de vista da longadurao, o que significou e o que explica o surgimento e aprogressiva difuso do movimento dos Annales, primeiro dentroda prpria Frana, depois em pases da Europa mediterrnica e,mais recentemente, no resto da Europa e do mundo?

    Conscientes das dificuldades e dos riscos que surgem ao setrilhar esses novos caminhos, e apenas como uma modesta

    3. A respeito e para ter uma viso das diversas aproximaes ao problema,

    veja-se Burke. Reflections on the historical revolution in France...; e TheAnnales in global context; Cedronio. Profillo delle Annales attraverso lepagine delle Annales e Aguirre Rojas. En las fuentes tericas de la historiacuantitativa..., tambm includo nesta coletnea.

    4. Nesta linha, apenas esboada, torna-se til consultar os trabalhos de Dosse.Les habits neufs du prsident Braudel, e Le paradigme des Annales.Igualmente, ainda que mais diretamente referidos ao perodo pr-annales,so interessantes os estudos de Romano. Fernand Braudel II, Allegra eTorre.La nascita della storia sociale in Frana... e Gemelli. Tra due crisi....

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    36/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    29

    contribuio que sirva para animar a outros investigadores aseguir esses mesmos caminhos, que trataremos aqui deredimensionar o fenmenoAnnalespara alm do espao francs eenquadrando-o dentro das linhas das sensibilidades culturaiseuropias de longa durao. Ao mesmo tempo, compararemosseu desenvolvimento e seus aportes com a corrente deinterpretao histrica e historiogrfica, talvez a nica mais

    velha que os Annales, que permanece ainda uma correnteatuante: a concepo materialista da histria iniciada h mais de150 anos por Karl Marx.5

    I

    Estas permanncias as constatamos do mesmo modo na vidacultural, descobrindo, por exemplo, a persistncia de certos temasou de certas linhas de sensibilidade atravs das geraes.

    Entrevista a Fernand Braudel.LExpress, novembro de 1971.

    Atualmente, conhecemos bem as etapas da progressivadisfuso da corrente dosAnnalesno seio da intelectualidade e dascincias sociais francesas. Sua histria, desde o pequeno eexcepcional laboratrio de idias que foi a Universidade deEstrasburgo, at o momento de sua atual configurao comonebulosa hegemnica dentro da cultura oficial da Frana (nocampo das cincias sociais) foi traada e repetida inmeras vezes.Sabemos, ento, o que foi essa corrente historiogrfica desde sua

    primeira fase, no perodo entre guerras quando os primeiros5. Um fato que chama a ateno , precisamente, a permanncia e difuso

    cada vez maior destas duas correntes de interpretao histrica: os Annalese o marxismo. Outras escolas histricas ou movimentos de interpretaohistoriogrfica foram ou mais efmeros ou muito mais locais, ou ambas ascoisas a um s tempo. Um dos objetivos deste ensaio o de indagar sobreas razes profundas da excepcional irradiao e durao destas duascorrentes histricas.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    37/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    30

    Annales foram lidos marginalmente na Frana por uma minoria(no contavam mais que 500 os subscritores regulares), minoriaarrojada que, fora do establishment, paga o preo de haver levadoa cabo uma verdadeira revoluo dentro do campo dos estudoshistricos de lngua francesa, contra a hostilidade da Sorbonne eda historiografia oficial em geral.6

    Annales, de incio, essencialmente herticos e particularmenteinovadores que, depois da II Guerra Mundial e mais ainda apartir da morte de Marc Bloch por mos nazistas em 1944 iriamconquistar pouco a pouco e durante todo o perodo braudelianoda revista, a maior parte dos historiadores franceses e inclusive aum setor importante da intelectualidade francesa, para acabarpor firmar-se, durante o perodo dos terceiros Annales, comouma das perspectivas dominantes dentro das disciplinascientficas que na Frana versam sobre o estudo do social, emsuas mltiplas vertentes.

    No entanto, se a evoluo dos Annales dentro do territriofrancs foi j tantas vezes evocada, sua evoluo fora da Frana

    6. Atualmente-se discute sobre a real ou suposta marginalidade e sobre ocarter inovador e revolucionrio ou no destes primeiros Annales. importante destacar o fato de que, neste caso, no se trata de marginaisou revolucionrios, nem no plano de suas vidas pessoais, nem muitomenos na ordem prticopoltica, mas apenas e exclusivamente no plano dateoria da histria. O que est em jogo aqui o carter crtico erevolucionrio dos paradigmas metodolgicos e dos aportes tericos destesprimeiros Annales,em relao aos modos dominantes de abordar a histriadentro da historiografia francesa. Sobre as distintas posturas em torno deste

    ponto, vejase, por exemplo, Braudel. En guise de conclusion e Les 80 ansdu Pape des historiens; Wallerstein. Beyond Annales? (Audel desAnnales?); Idem. The Annales as resistance; Fontana. Ascens i decadenciadelescola dels Annales e Historia. Anlisis del pasado y proyecto social; Dosse.Lhistoire en miettes: des Annales militantes aux Annales triomphantes eLHistoire en Miettes...; Guerreau. Elfeudalismo. Un horizonte terico; Aymard.The Annales and french historiography; Aguirre Rojas. Hacer la historia,saber la historia... e Dix theses sur les paradigmes mthodologiques desAnnaleset le marxisme. Tambm a coletneaAu berceau des Annales.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    38/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    31

    um tema muito menos investigado7

    Se nos aventurarmos para alm das fronteiras francesas eadotarmos uma viso em perspectiva, poderemos dar-nos contade que osAnnalestm tido, praticamente desde seu incio, certosespaos privilegiados, particularmente receptivos a seustrabalhos e aportes. Simultaneamente, em outras zonas, acontribuio dosAnnales histria e historiografia permanecempraticamente ignoradas.

    . Qual ter sido a difusodestes mesmosAnnales, no perodo de 70 anos de sua existncia,no contexto da Europa ocidental? Em que pode ser esclarecedoro desenho de um mapa da irradiao do movimento annalista naEuropa ocidental, com relao perspectiva de comparao como marxismo e de sua explicao na longa durao? Vejamo-locom cuidado.

    Assim, resulta interessante que, dos 400 ou 500 leitoresregulares dos primeiros tempos, aproximadamente uma centenafoi de leitores italianos 8. Em nossa opinio, isto significa que,para alm dos signos evidentes, ainda que escassos, da presenados Annales na Itlia dos anos 309

    7. Por isso so importantes os trabalhos includos no nmero 34 daReview, de

    1978, que incursionam nesta linha de investigao. Em particular, vejam-seos ensaios de Maurice Aymard, Peter Burke, Alfred Dubuc, Halil Inalcik eKrzysztof Pomian, ali includos.

    , a verdadeira influncia queexerceram dentro dos estudos histricos italianos (hoje tofacilmente detectvel na historiografia italiana contempornea)

    8. Este dado foi referido vrias vezes por Braudel. Vejase, por exemplo,Fernand Braudel. Les 80 ans du Pape..., p. 75 e En guise de conclusion,p. 247.

    9. Nos referimos, por exemplo, resenha do livro de Marc Bloch sobre Lahistoria rural francesa, que fez Gino Luzzato em 1933, na Nuova RivistaStorica; resenha de Morandi de um artigo de Febvre, publicada em CivilitModernaem 1930; ou colaborao do mesmo Luzzatto no primeiro nmerode 1937 dos Annales dHistoire conomique et Sociale. A este respeito,Cantimori. Prefazione, p. IXXXIX; Treppo. La libert della memoria, p.

    VIILI, e Luzzatto. Lopera storica di Marc Bloch.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    39/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    32

    pode remontar suas origens ao mesmo perodo do nascimento dacorrente dentro da prpria Frana. Desse modo, ainda que asmanifestaes principais deste impacto annalista sobre oshistoriadores italianos s tenham aparecido abertamente duranteo perodo dos segundos Annales, a historiografia da pennsulaitlica pareceria ser fortemente tributria da corrente francesa jdesde algumas dcadas antes10

    Por isso, no estranha que a Itlia seja, junto com a Espanha,um dos pases onde osAnnalesbraudelianos do psguerra (entre1956 e 1968) haveriam de difundir-se com mais fora. Porque,

    junto com o importante trabalho levado a cabo por certoshistoriadores ligados mais ou menos diretamente com osAnnales Frederico Chabod, Armando Sapori, Delio Cantimori, GinoLuzzato e posteriormente Ruggiero Romano, Franco Venturi e

    Alberto Tenenti, entre outros h que se considerar tambm nos o malogrado intento, desde 1948, de se publicar em italiano(mesmo antes que em francs) o manuscrito blochiano daApologie pour lHistoire ou Mtier dHistorien,

    . Em todo caso, dentro de nossalinha de raciocnio, cabe destacar o fato de que se os primeirosAnnaleseram uma corrente marginal, revolucionria e minoritriadentro da Frana na dcada anterior II Guerra Mundial, o seriamtambm, ainda que em menor medida, dentro da Itlia na mesma

    poca.

    11

    10. Independentemente da interpretao que se possa dar a estes dados

    especficos, algumas questes permanecem abertas: quem eram esses cemleitores italianos, regulares e assduos, dos primeiros Annales? Seriamhistoriadores, economistas, cientistas sociais ou pessoas cultas em geral?

    Acaso desapareceram sem deixar vestgio algum na historiografia italiana?Ou, pelo contrrio, prepararam veladamente o terreno onde floresceriamdepois os Annales na Itlia? Tema interessante para se pesquisarulteriormente.

    bem comoacontecimentos to significativos quanto a publicao em italianode O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Felipe IIem

    11. Sobre este empreendimento falido, ver Vivanti. Editoria e storiografia. eMastrogregori. Le manuscrit interrompu:Mtier dHistoriende Marc Bloch.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    40/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    33

    1953 (apenas dois meses antes que a publicao da traduoespanhola e quatro anos mais tarde que sua edio original emfrancs) ou a seleo de textos de Marc Bloch,Lavoro y tecnica nelMedievo em 1959, entre outros.

    Com esse importante trabalho editorial, claro sintoma docrescente interesse dos historiadores e intelectuais italianos pelofenmeno Annales, no apenas se impulsionou a popularizaodosAnnalesdentro do meio intelectual francs, como tambm secriaram, na prpria Itlia, as bases da atual popularidade dacorrente 12

    12. Outro eco indireto desta difuso do fenmeno Annales na Itlia foi o

    projeto da Storia dItalia, dirigido por Ruggiero Romano e Corrado Vivanti,no qual colaborou diretamente Braudel. Est ainda por ser estudada acomplexa e multifacetada relao de Braudel com a Itlia que, para alm dacolaborao citada, inclui: a elaborao do guia sobre Veneza, ascontribuies no Corriere della Sera, as diversas consultas aos arquivositalianos, a atividade no Instituto Francesco Datini, de Prato, os vnculos comcolegas e discpulos italianos e, tambm, a constante e recorrente reflexoterica sobre a histria da Itlia, que reaparece e se depura tanto noMediterrneo...como em Civilizacion material...Nesta linha, deve tambm ser

    considerado seu trabalho em co-autoria com Romano sobre o porto deLivorno (Navires et marchandises...). Sobre a difuso em geral dos AnnalesnaItlia, veja-se Treppo. La libert della memoria; Cantimori. Prefazione;Luzzatto. Lopera storica di Marc Bloch; Aymard. Impact of the Annalesschool in Mediterranean countries; Romano. Encore des ilusions eMastrogregori. Le manuscrit interrompu:..., alm do conjunto de ensaiosreunidos no livro Braudel e lItalia. Sobre o vnculo BraudelItlia vejamse,de Fernand Braudel, o Mediterrneo...; Venise; Civilizao material...; Il secondorinascimento...; e Aymard. LItaliamondo nellopera de Fernand Braudel.

    . Difuso importante fora das fronteiras francesas,realizada durante os anos 50 e 60, que no um dado exclusivodo espao italiano, mas que parece encontrar-se igualmentedentro da Espanha franquista dessa poca. Assim, os intelectuaisespanhis e de lngua castelhana contaram desde 1952 com atraduo da Apologie pour lHistoire (Introduccin a la Historia, emespanhol) e, desde 1953, com a de El Mediterrneo y el mundomediterrneo en la poca de Felipe II) anteriormente mencionada.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    41/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    34

    Mais ainda, ante impossibilidade de estudar e desenvolverabertamente uma historiografia crtica, de carter marxista, se

    voltaram de maneira generalizada aos ensinamentos da correntefrancesa.

    Discpulos ento, entre outros, de J. Vicens Vives (cujasconvergncias alcanadas por sua prpria via com o enfoquedos Annales no so casuais, mas testemunham sobre asexigncias gerais que a poca levanta aos historiadoresdaqueles tempos), os historiadores espanhis receberam, desdeento, e com muita aceitao, o enfoque annalista. Como no casoda Itlia, se mantem ainda hoje como um enfoque de primeiraordem dentro das perspectivas da moderna historiografia dapennsula Ibrica.13

    Dessa maneira, o mapa da difuso dos Annales comea aconfigurar-se ante nossos olhos: so basicamente os pases dazona mediterrnica da Europa ocidental dessa Europa latinacuja comunidade de um certo tipo de discurso e desensibilidade cultural parece esboar-se de maneira mais oumenos clara , pases que desenvolveram ou acolheram demaneira privilegiada o conjunto de aportes da corrente francesa.

    Do ponto de vista contrrio, e igualmente numa perspectivade conjunto, resulta notoriamente claro o fato de que os pasesda Europa ocidental setentrional foram basicamente refratriosou simplesmente ignorantes dos Annales. Observando asprimeiras quatro dcadas da corrente, no perodo quecompreende os primeiros e os segundos Annales, veremos quesua presena ou influncia praticamente nula tanto na

    Alemanha quanto na ustria, ou no outro lado do canal daMancha.

    13. Sabemos ainda pouco sobre o desenvolvimento da historiografia espanholadurante o perodo do governo franquista. No obstante, os escassosindcios com os quais contamos parecem ir no sentido de confirmar ahiptese aqui aventada. Esta questo merecer pesquisa ulterior.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    42/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    35

    Enquanto isso, no mundo germnico floresciam as maisdistintas escolas e o debate se entabulava em torno das velhasobras dos mestres: Otto Ranke, Karl Lamprecht, Max Weber,

    Alfons Dopsch e, mais adiante, sobre a viso desencantada deOswald Spengler; na Inglaterra, Alfred Toynbee dava luz seusimensos trabalhos com pretenses de grandes explicaesglobais. Na Ilha, os desenvolvimentos e aportes daquela que maistarde seria chamada de Escola dos Annales caracterizavam-sepor sua total ausncia 14

    A velha fratura entre a Europa ocidental mediterrnica e aEuropa ocidental setentrional volta a ser presente, agora emfuno do modo com que em uma e outra regio se acolheufavoravelmente a corrente annalista ou foi-se indiferente e alheio mesma.

    . Assim, ser apenas nos ltimos seis ousete lustros, e s pela via indireta de sua popularizao e difusona Amrica do Norte, que osAnnalescomearam a estender-se e a

    serem conhecidos dentro dos meios intelectuais da Inglaterra edos pases de fala germnica do Norte da Europa ocidental.

    15

    14. Com uma notvel exceo que a obra de Bloch. Mas, curiosamente, se

    Bloch alcana j desde os anos trinta uma certa fama em toda Europa, maiscomo medievalista de primeira ordem e no como dirigente ourepresentante conspcuo da corrente dos Annales. Sobre este ponto, veja-seBurke. Reflections on the historical revolution....

    Claro est que esta receptividade acolhedora e esta

    15. O que seria, sem dvida, apenas um primeiro corte vasto e muito geral doespao europeu ocidental. Para uma anlise mais particular do problemaseria necessrio recompor, com maior cuidado, o mapa das distintassensibilidades culturais de longa durao que tm lugar neste espao da Europa

    ocidental. Ento, encontraramos ali, possivelmente, uma Europa do Nortedonde o nrdico se apresenta quase puro na pennsula escandinava e naInglaterra; com outro Norte mais sensvel ao Sul e a Leste, maiscontaminado por outras influncias, que o mundo de fala germnica.Igualmente, ao reconhecer mais de perto o mundo mediterrneo europeu,poderamos separar um Sul muito mais puro e radicalmente latino emediterrnico na Itlia, Espanha e Sul de Frana, de um Sul mais eminterao e permevel ao Norte, no Norte de Frana. Assim, poderamosento compreender, talvez, porque os Annales nasceram na Frana, e

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    43/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    36

    suposta fria indiferena no se explicam exclusivamente, nemmesmo centralmente, por causas ou motivos gerados na mesmapoca em que este projeto dos Annales se desenvolveu.Remontam suas razes profundas e suas razes a um perodo quedata, pelo menos, de meio sculo antes e possivelmente aindamais. necessrio seguir o fio do tempo para perguntarmo-nos:o que aconteceu, no plano da histria das idias, com estas duasEuropas que se opem em sua atitude frente aosAnnalesduranteos 60 anos anteriores ao nascimento da corrente historiogrficafrancesa?

    A reconstruo da histria do marxismo, entre 1870 e 1930,poder fornecer uma pista comparativa muito sugestiva pararesponder a essa questo.

    II

    O bakunismo encontrou apoio (...) na Itlia e na Espanha, onde ascondies reais do movimento operrio esto todavia poucodesenvolvidas (...) e sua conspirao foi apoiada at certo pontopelos proudhanistas franceses, especialmente no Sul da Frana.

    Karl Marx. Carta a Frederich Bolte de 23 de novembro de 1871.

    inclusive explicar o dado curioso, mas no casual j assinalado por FernandBraudel em seu artigo Personal Testimony, de que a grande maioria dasprincipais cabeas dos Annalese de seus antecedentes nasceram justamenteno noroeste de Frana: Henri Berr, Lucien Febvre, Marc Bloch e o prprio

    Braudel provm desta zona, desse Sul europeu ocidental mais prximo econtaminado pela Europa nrdica. Lamentavelmente, no h muitostrabalhos a respeito deste mapa complexo das diversas sensibilidades culturaisde longa durao presentes na Europa ocidental, problema que permaneceaberto e ainda por resolver. Para os fins desta investigao, nos contentamoscom o corte mais geral aqui esboado (omitindo, ademais, a considerao deuma parte dessa Europa mais nrdica, da Dinamarca e da pennsulaescandinava), conscientes, contudo, das limitaes que implica e do carterapenas aproximado de nossa hiptese de trabalho.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    44/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    37

    Se projetamos agora ao perodo 18701930 o duplo mapaque descobrimos a respeito da forte difuso ou da ausnciapraticamente total do enfoque dos Annales causar surpresa aexata coincidncia, ainda que invertida, com o mapa do dbildesenvolvimento ou importante florescimento do marxismo. Queaconteceu, ento, com a difuso do marxismo neste perodo queantecede ao nascimento dosAnnales?

    Sobre o incio desse perodo de que agora nos ocupamos,temos disposio as informaes que deixaram os prpriosMarx e Engels. Sabe-se que, logo aps a derrota da Comuna deParis, a Frana deixou de ser a vanguarda poltica do movimentooperrio europeu, tendo seu centro se deslocado para a

    Alemanha16

    Se recordarmos a histria da Primeira Internacional e seusconflitos internos, estaremos previnidos do fato altamentesignificativo de que so justamente Itlia, Espanha, o Sul daFrana (o famoso midi francs) e a Sua latina, as zonas onde o

    , na opinio de Marx. Este recentramento do eixo dosmovimentos da classe operria na Europa ocidental e as seqelasdo desenvolvimento anterior do anarquismo europeu so pontoschave para se reconhecer o mapa igualmente desigual deirradiao da concepo marxista da histria nestes diferentespases.

    16. Cf., por exemplo, Engels. The workingmen of Europe in 1877, v. XXIV, p.211 e 221222. Neste trabalho, escrito em 1872, Engels traa um primeiromapa do desigual futuro previsvel do movimento operrio nos distintospases da Europa. Ainda que aqui no nos interessa tanto o problema da

    histria do movimento operrio em si, mas sobretudo a histria da difusodo marxismo na perspectiva comparativa de um problema de histria dasidias, tambm verdade que h uma certa correlao, mediada e complexa,mas real e operante, entre o maior desenvolvimento do movimento operrioe a mais fcil e florescente adoo da concepo marxista. No a toa queos historiadores do socialismo e do marxismo, seguindo neste ponto asidias de Marx e Engels, vinculam o florescimento do anarquismo naEspanha, Itlia e Frana ao carter ainda fortemente agrrio das economiasdestes pases.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    45/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    38

    anarquismo de Bakunin arraigou-se de maneira verdadeiramentepopular. Ao contrrio, praticamente nulo na Alemanha, ustriae Inglaterra.17

    A Primeira Internacional se divide na mesma poca em que aComuna de Paris levava a cabo seu herico intento de tomar ocu de assalto, dando assim expresso concreta s diferenasque existiam nos pases da Europa ocidental quanto ao grau dematuridade para se adotar e desenvolver criativamente omarxismo, que a essa altura iniciava a aventura de sua primeirairradiao geral dentro da Europa.

    Assim, esta forte difuso do anarquismo nos pasesmediterrnicos da Europa ocidental, vinculada ao grande pesodas estruturas agrrias dentro de suas respectivas economias,seria s uma primeira expresso (no plano da histria dasidias) da atitude pouco receptiva que essa parte da Europa terdo marxismo ao longo de todo o perodo considerado. Por outrolado, aqueles pases do Norte da Europa onde nasceu e firmou-se o marxismo desde os primrdios da Primeira Internacional sero tambm aqueles onde a doutrina marxista haveria deflorescer e se arraigar mais profundamente durante as seisdcadas que agora nos ocupam. Vejamos isso em detalhe.

    Entre 1870 e 1930, como se sabe, o marxismo mais rico ediversamente desenvolvido, dentro dos marcos do Ocidenteeuropeu pois o marxismo russo tambm, para os critrios dapoca, altamente sofisticado o alemo. Os mais interessantesdebates nos planos filosfico, histrico, econmico e poltico tmcomo cenrio o mundo intelectual alemo, no qual confluem noapenas vrios dos tericos marxistas alemes, mas tambm

    17. Marx, Engels e Lafargue traaram muito bem a histria desta difuso dobakuninismo na rea mediterrnea da Europa ocidental em seu artigo Uncomplot contra la Asociacin Internacional de Trabajadores. Veja-setambm os trabalhos de Engels. El Consejo General a todos los miembrosde la Asociacin Internacional de Trabajadores e Los bakuninistas enaccin.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    46/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    39

    personalidades to notveis como a polonesa Rosa Luxemburgoou os austracos Karl Kautsky, Rudolf Hilferding e Otto Bauer.

    Ainda que seja correto que o marxismo alemo tenha falhadoem suas estratgias diante da crise revolucionria da I GuerraMundial, tambm no h dvida de que foi o marxismo maisdesenvolvido daqueles tempos, tendo a seu crdito no apenas olegado intelectual de Marx e Engels, mas tambm uma pliade depersonagens que, de acordo com as condies da poca,trataram de aprofundar e assimilar a herana dos fundadores domaterialismo histrico.18

    Marxismo florescente que teve tambm outro espaoprivilegiado de difuso na parte austraca da monarquia dupla doimprio Austrohngaro. Porque a ustria, nessa poca, no eraapenas uma regio que intercambiava fluidamente as influnciasdo marxismo alemo com os aportes de sua prpria cultura, masque tambm, e a partir de sua situao peculiar s vsperas da IGuerra

    19

    18. O fato de que muito poucos marxistas (entre os quais se destacam Rosa

    Luxemburgo e Karl Liebknecht) tenham estado altura das tarefas quelevantava a guerra de 19141918, por si j aponta para a estaturaintelectual enorme da concepo marxista da histria e das dificuldades parasua real assimilao, vinculandas a fatores polticos e sociais que nopodemos abordar aqui.

    , constitua-se num espao que lograva produzir seusprprios pensadores marxistas, portadores de um nvel terico ede uma originalidade em relao a seus desenvolvimentos

    19. A ustria no somente um pas formalmente permevel e receptivo aos

    influxos culturais da Alemanha, tambm um pas que possui uma altacomplexidade intelectual intrnseca, derivada em parte das muitasnacionalidades que nela confluem e dos diversos problemas e perspectivasque aquelas colocam em sua cultura. No casual que junto ao marxismoaustraco, hoje pouco conhecido, porm muito rico e complexo, sedesenvolva tambm o movimento psicanaltico freudiano, ou Crculo de

    Viena na filosofia, e a bem conhecida exploso literria e artstica daquelapoca. Sobre o marxismo austraco, ver Cole. Historia del pensamientosocialista, cap. XII.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    47/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    40

    especficos que no desmerecem em nada a seus pares alemes.Enfrentando o problema de um Estado onde conviviam vriasnacionalidades as que formaram a pequena internacionaldentro da Segunda Internacional e estimulado duplamente peloinfluxo do marxismo alemo e pelas conseqncias profundas,imediatas e previsveis das duas revolues russas de 1905 e1917, este marxismo austraco encontra em Bauer, Renner ouHilferding os seus representantes mais conspcuos, completandoassim o mapa da difuso continental do marxismo dentro daEuropa ocidental (setentrional).

    Curiosamente, e como que uma exceo a esse mapa dadifuso do marxismo que procuramos esboar, a Inglaterra d aimpresso de permanecer alheia a esta irradiao. Pois ainda quetenha sido o pas onde Marx e Engels desenvolveram suaatividade terica e parte de seu trabalho poltico durante longosperodos de suas vidas, tambm parece claro que logo aps suamorte a Gr Bretanha no conheceu importantes continuadoresou pensadores que difundiram o enfoque marxista neste lado docanal da Mancha.

    Desta maneira, parece evidente o fato de que a Ilha semantm margem, tanto da difuso do marxismo, como maisadiante da irradiao dos Annales, vinculando-se maispossivelmente neste plano da histria intelectual tanto a umuniverso especificamente anglosaxo que contemplaria a

    Amrica do Norte, como ao Norte mais puro da Europaocidental, dinamarqus e escandinavo, que aqui ficou de fora denossas consideraes.20

    20. Dizemos possivelmente pois seria, em nossa opinio, um tema ainda a ser

    aprofundado e para o qual, como dissemos, as investigaes so aindainsuficientes. De qualquer modo, interessante constatar que, tanto omarxismo como a viso annalista, chegam de maneira relativamente tardiaa este espao intelectual ingls. O marxismo se firma e expande apenas atos anos 50, e os Annalesat apenas uns trs ou quatro lustros no mximo.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    48/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    41

    Visto ento o problema em seu conjunto, o mapa da Europaocidental setentrional, que era a zona de mais dbil ou nuladifuso do fenmeno Annales, confunde-se, durante os seisdecnios imediatamente anteriores existncia da correntefrancesa, com o mesmo mapa da forte difuso e florescimento domarxismo. Ao mesmo tempo, e de forma complementar, os pasesmediterrnicos que haviam conhecido o auge do bakuninismoanarquista seriam os pases em que o marxismo alcanaria apenasuma dbil presena e limitada difuso, perdendo-se praticamentedentro dos diversos espectros intelectuais destas naesmediterrnicas.

    Chegando a este ponto, quase podemos adivinhar a resposta pergunta sobre a difuso do marxismo na Frana, Itlia eEspanha entre os anos 1870 e 1930.

    A Frana no conheceu, exceto os trabalhos originais einteressantes (ainda que um tanto limitadas em sua perspectivaglobal) de Paul Lafargue, quase nenhum debate ou novodesenvolvimento criativo que pudesse qualificar-se de marxista.Submersa na elaborao das teorias anarcosindicalistas deGeorges Sorel, ou reunida em torno das vises socialistas (masno comunistas) de Jean Jaures, a Frana de antes e depois docaso Dreyfus, apresenta-nos um quadro de uma historiografiadentro da qual o marxismo se acha realmente ausente.21

    Nesta perspectiva, parece que o estigma com que Marxmarcou o marxismo francs que lhe era contemporneo e queo levou a pronunciar a frase clebre: a nica coisa que eu sei que no sou marxista se manteve vigente ao longo de todo operodo 18701930, desembocando num marxismo a tal pontoalheio ao pensamento de Marx, que muito pouco teria que dizer

    Sobre a relao de Marx com o socialismo ingls, veja-se G.D.H. Cole.Historia del pensamiento..., tomo II, p. 356357 e 368375.

    21. A este respeito, ver o interessante artigo de Suratteau. Les historiens, lemarxisme et a naissance desAnnales....

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    49/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    42

    em relao ao projeto crtico e verdadeiramente inovador dosprimeirosAnnales.22

    Assim como na Frana a figura de Paul Lafargue aparececomo um osis no deserto, assim tambm Antnio Labriola elogo depois Antnio Gramsci representam, dentro do meiointelectual italiano, as excees isoladas que confirmam a regra, medida em que ambas testemunham, igualmente, o minoritrio eescasso papel do verdadeiro marxismo no seio desta Itliatragicamente prfacista. Sem interlocutores de sua invergadura,sem um debate rico em idias que os alimentassem e que osestimulassem a ir alm, e imersos num meio que parecia maishostil que receptivo a seus prprios esforos, os dois Antniosmarxistas da Itlia, no fim do sculo XIX e incio do seguinte, seperderam dentro de um movimento que, fortemente influenciadopelo pensamento social francs, se ramificou entre os catlicos,os anarcosindicalistas, os socialistas do centro e da direita. E,finalmente, um socialismo de esquerda que, s vsperas da IGuerra Mundial, se achava representado por um personagem queseria mais adiante sombriamente famoso, como o foi Benito

    Mussolini.Carregando ainda por seis dcadas as seqelas de ter sido o

    pas predileto de Bakunin (como disseram Marx e Engels), aItlia conheceu um s empreendimento infelizmente abortadopelo facismo de desenvolver um verdadeiro marxismo, originale criativo, que foi o grupo do Ordine Nuovo, fundado em 1919.Mas preso Gramsci e todos os comunistas ligados a seu grupo,abortou-se a nica possibilidade sria de gestao de um

    22. A figura de Jules Guesde emblemtica deste peculiar marxismo francs.Tendo sido primeiramente bakuninista, transformou-se em seguida em ummarxista empedernido e trabalhou ao lado de Lafargue, para terminar, noobstante, participando em um ministrio burgus aps a primeira guerramundial. Sobre esta errtica histria do marxismo e do socialismo franceses,

    ver Vranicki. Storia do marxismo..., tomo l. p. 266 e 273278 e tomo II, p. 8487; Cole.Historia del pensamiento..., tomo II, p. 302308 e 410411, tomo III,p. 354355, tomo VI, p. 21, 2832 e 42 e tomo VII, p. 116117.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    50/350

    Dos Annales, marxismo e outras histrias

    43

    marxismo conectado s exigncias do momento na Itlia 23.Finalmente, sabe-se que a Espanha o pas europeu onde oanarquismo prosperou mais que em qualquer outra parte. Desdea ciso da Primeira Internacional, a maioria dos trabalhadorestomaram o partido dos bakuninistas, como reconheceu o prprioEngels 24

    Assim, o duplo mapa da desigual difuso do marxismo secompleta e se encaixa perfeitamente com o mapa daassimtrica irradiao dos Annales. A correlao inversa seestabelece de maneira totalmente coerente e nos mostra que ospases que no perodo 18701930 conheceram somente um dbildesenvolvimento ou presena do marxismo, so justamente ospases onde puderam propagar-se as obras e propostas da

    corrente dos Annales. E, inversamente, os pases da Europa doNorte que aqui contemplamos, onde o marxismo floresceu eganhou fora e presena intelectual (com a mencionada exceoda Inglaterra), foram os pases daquela zona que permaneceusubstancialmente alheia e indiferente ao fenmenoAnnales.

    e, em 1873, com a derrota do movimento dirigido poresses mesmos anarquistas, o proletariado espanhol caiu numaletargia da qual s foi se livrando posterior e muito lentamente.Durante o perodo que nos ocupa, o anarquismo e o anarcosindicalismo permanecem predominantes no panoramaintelectual espanhol, que no conheceu praticamente nenhum

    marxista ou grupo marxista de verdadeira importncia.

    Trata-se, assim, de uma senda ou corte da Europa ocidentalque no remonta ao sculo XIX e nem ainda aos albores damoderna sociedade capitalista no sculo XVI, mas que finca suas

    razes na verdadeira longa durao. Fernand Braudel j haviaassinalado a curiosa coincidncia entre a linha que divide, poca das Reformas (com o plural febvriano), a Europa catlica e

    23. Sobre o caso italiano. Vranicki. Storia do marxismo, tomo I, p. 278284, tomoII, p. 7273 e tambm Cole. op. cit., tomo IV, p. 176, 187188 e 191 e tomo

    V, p. 351355.24. Veja-se a respeito, Friedrich Engels. Los bakuninistas en accin.

  • 8/12/2019 Os Annales e a Historiografia Francesa Aguirre Rojas

    51/350

    Os Annales e a historiografia francesa

    44

    a protestante, com a velha linha do limes romano, que separavaos povos do imprio romano e os habitantes da antigaGermnia.25

    Fernand Braudel seguramente sorriria, com um pouco demalcia e bom humor, frente a formulao destas hipteses sobresua prpria corrente.

    Trata-se, pois, de uma fronteira cultural de l