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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CARTOGRAFIA DE GOIÁS: PATRIMÔNIO, FESTA E MEMÓRIAS Keley Cristina Carneiro Prof. o orientador: Dr. Élio Cantalício Serpa Goiânia 2005

Original CARNEIRO Keley Cristina

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    Keley Cristina Carneiro Prof.o orientador: Dr. lio Cantalcio Serpa

    Goinia

    2005

  • KELEY CRISTINA CARNEIRO

    CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em Histria, da Faculdade de Cincias Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Gois, para obteno do ttulo de Mestre em Histria. rea de concentrao: Histria, Memria e Imaginrios Sociais. Orientador: Prof. Dr. lio Cantalcio Serpa

    Goinia

    2005

  • KELEY CRISTINA CARNEIRO

    CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    Dissertao defendida e aprovada em____ de ________ de 2005,

    pela Banca Examinadora constituda pelos professores:

    ____________________________________

    Prof. Dr. lio Cantalcio Serpa Presidente da Banca - FCHF - UFG

    _____________________________________

    Prof. Dr. Libertad Borges Bittencourt FCHF - UFG

    _______________________________________

    Prof. Dr. Marlon Jeison Salomon FCHF - UFG

    _________________________________________

    Prof. Dr. No Freire Sandes FCHF UFG

    (suplente)

  • Sofia,

    Que desde a prova da seleo do mestrado estava em meu ventre sem que eu soubesse, passamos por tudo, juntas, disciplinas, seminrios, orientaes, idas e vindas. Ao Suerley, Companheiro, cmplice, amante, incentivador, colaborador... s mulheres, Que so esposas, mes, filhas, donas de casa, profissionais, e ainda, estudantes, guerreiras, que lutam pelos seus direitos, pelo seu espao e so felizes.

  • AGRADECIMENTOS

    A voc que esteve comigo nesta caminhada contribuindo de uma forma ou

    de outra. Os nomes so vrios: Sofia, Suerley, Odete, Oscar, Gracielly, Frank,

    Alysson, Elizabeth, Silene, Suelina, Lucyene, Marielle, Rogrio, Guilherme,

    Gabriel, Leidimar, Geralda, Madalena, Divina Clia, Enery, Ben, Maria das

    Graas, Leosmar, Regina, Maria Elisete, Ivany, Mnica, Ftima Canado, Martha,

    Clovis, Viviane, Leandra, Robson, Osmar, Jorge, Lvia, Tomaz, Clio, Elder,

    Antnio, Maria...

    Agradeo especialmente:

    Aos professores: Libertad, No, Marlon, Cristina, Andra, Pedro Paulo

    luzes no meu caminho;

    Ao Prof. Dr. lio Cantalcio Serpa distante e to presente;

    A eterna amiga, in memoriam, Eliana Aparecida Sersocima - ausente e to

    prxima.

  • SUMRIO

    LISTA DE ILUSTRAES 06 RESUMO 07 ABSTRACT 08 INTRODUO 09 1. GOIS: CARTOGRAFIAS DE FUNDAO E

    MONUMENTALIZAO 15

    1.1. O cartgrafo em Gois: histrias e ressentimento 15 1.2. Suportes de Memria: o passado e o futuro 27 1.2.1. Passado: Produo de Monumentos 27 1.2.2. Futuro: Valor ao Turismo 40 2. GOIS: CARTOGRAFIA DE UMA TRADIO 51 2.1. Uma Tradio: A Festa da Procisso do Fogaru. 52 2.1.1. A Procisso uma festa. 56 2.1.2. A (re)inveno da tradio. 61 2.1.3. Dramatizao e trajeto 66 2.1.4. Um ritual dentro do Ritual 71 2.1.5. A imagem do farricoco 74 2.1.6. O ritual entre o sagrado e o profano 77 3. POLIFONIA DA CIDADE DE GOIS: FRAGMENTOS DA MEMRIA 87 3.1. Olhares diferentes sobre o mesmo objeto: a Procisso do Fogaru

    sob a tica de uma folclorista e de um historiador. 88

    3.1.1. Regina Lacerda e A Procisso do Fogaru 88 3.1.2. Paulo Bertran e A Procisso do Fogaru 92 3.2. As Memrias: outro lado da histria 95 3.2.1. As Memrias e o Patrimnio da Humanidade 96 3.2.2. As Memrias da Procisso do Fogaru 100 CONCLUSO 108 BIBLIOGRAFIA 113 ANEXOS

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  • LISTA DE ILUSTRAES Foto 01 - Casa de Cora Coralina dia 45 Foto 02 - Casa de Cora Coralina noite 46 Foto 03 - Artesanato farricocos de barro 48 Foto 04 - Artesanato panelas de barro 48 Foto 05 - Artesanato pinturas nas pedras 48 Foto 06 - A Procisso do Fogaru 66 Figura 01 - Roteiro da Procisso do Fogaru 71 Foto 07 - Os farricocos 76

  • RESUMO

    A finalidade desse estudo compreender por que parte da populao da cidade de Gois, aps a transferncia da capital para Goinia, tornou-se ressentida e por que algumas pessoas pertencentes a determinadas entidades ou associaes ou instituies amenizaram seus ressentimentos, buscando uma valorizao do seu passado histrico e de suas tradies a ponto de tornar a cidade Patrimnio da Humanidade. , tambm, objetivo desta pesquisa mostrar uma das grandes festas de Gois, que atrai inmeros turistas, a Procisso do Fogaru, inserida nos rituais da Semana Santa. Os resultados obtidos mostraram que no a cidade toda que se tornou Patrimnio da Humanidade, mas apenas o centro histrico, enquanto outras partes da cidade ficam deriva. E, tambm, como concluso desta pesquisa, percebem-se as vozes dissonantes no que se refere s tradies. Gois se apresenta, diante do mundo, como Patrimnio da Humanidade, contudo, h uma outra histria, no-dita pela histria oficial.

    Palavras-chave: Patrimnio, Tradio, Turismo, Festa, Memria.

  • ABSTRACT This study aims at understanding why part of people of Gois city felt resentful after the transfer of the capital to Goinia and why some people who belong to certain entities, or associations, or institutions softened their resentments by seeking for the valorization of their historical past and of their traditions that became the Gois city a Patrimony of the Humanity. This research also aims to show one of the great religious celebrations that attract many tourists: the procession of the Little Flame, inserted in the Holy Week rituals. Its results showed that the whole city didnt become Patrimony of the Humanity, but just only the downtown did, while other areas of the city adrift. To conclude, its possible to perceive the dissonant voices that refer to the traditions. Gois comes out to the world as a Patrimony of Humanity, however, there is another history that isnt recognized by the official history.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    INTRODUO

    A pesquisa se desenvolver em forma de cartografia1, no no sentido de

    mapa, mas no sentido de descrio/mapeamento da histria de uma cidade, cujas

    tradies se fazem marcantes. Rolnik (1989, p. 68/69) caracteriza o papel do

    cartgrafo,

    ...o cartgrafo absorve matrias de qualquer procedncia. (...) Todas as entradas so boas, desde que as sadas sejam mltiplas. Por isso o cartgrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes no s escritas e nem s tericas (...) O que ele quer se colocar, sempre que possvel, na adjacncia das mutaes das cartografias (...) o que quer apreender o movimento que surge da tenso fecunda entre fluxo e representao: fluxo de intensidades e escapando do plano de organizao de territrios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas representaes e, por sua vez, representaes estancando o fluxo, canalizando intensidades, dando-lhes sentido...

    O cartgrafo aquele que acompanha todas as transformaes da

    paisagem, enquanto produz sua representao.

    Para produzir a cartografia a documentao pode ser vasta ou escassa.

    Cabe ao historiador saber aproveitar informaes, manuse-las, ousar, interrogar

    e lapidar, trazendo tona tudo que considerar importante para resolver sua

    problemtica de pesquisa. Le Goff (1994, p. 107) deixa claro que a matria-prima

    para a escrita da histria deve ser os documentos escritos, mas se estes no

    existirem, a escrita pode tambm ser feita com tudo que a engenhosidade do

    historiador permite utilizar...

    Esse trabalho de pesquisa uma cartografia produzida por meio de

    bibliografias e documentos variados como jornais, cartas, dossis, artigos e

    1 A idia de trabalhar como cartografia veio do livro: ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. SP: Estao Liberdade, 1989.

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    outros. Entraro na composio dessa narrativa histrica as lembranas de

    pessoas da cidade de Gois, por meio da histria oral. Vale ressaltar que o

    recurso utilizado para a coleta de dados foi a entrevista, gravada em fita k-7,

    posteriormente transcrita e analisada. Montenegro (1994, p.19) mostra o valor da

    oralidade e da construo da narrativa, dizendo que:

    a histria se refaz, se reformula, a partir de novas perguntas realizadas pelo historiador ou mesmo da descoberta de outros documentos ou fontes. A histria opera sempre com o que est dito (...) Desses elementos o historiador constri sua narrativa, sua verso, seu mosaico.

    Por muito tempo, s se fazia a histria por meio de documentos escritos, os

    quais registravam apenas aquilo que consideravam grande acontecimento para a

    histria, a dos vencedores, a histria oficial. A partir da Nova Histria2 ou do

    grupo dos Annales3 da Frana, surgiu uma nova historiografia que abriu espao

    para novos campos da pesquisa, valorizando a histria dos que no tem voz.

    Preocuparam-se em enfatizar a Histria Social, a Histria das Mentalidades e a

    Histria Oral, alm de outras Histrias. A chamada micro-histria, as minorias, os

    excludos, a vida cotidiana, as representaes, a cultura do povo, as festas, enfim,

    a histria que estava silenciada passa, a partir de ento, a ser estudada. Le Goff

    (1994, p. 109) mostra mais uma vez como se deve fazer a Histria:

    Fao tambm notar que a reflexo histrica se aplica hoje ausncia de documentos, aos silncios da histria. Michel de Certeau analisou com sutileza os desvios do historiador para as zonas silenciosas (...) a feitiaria, a loucura, a festa (...) Falar dos silncios da historiografia tradicional no basta; penso que preciso ir mais longe: questionar a documentao histrica sobre as lacunas, interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaos brancos da histria. Devemos fazer

    2 Esta expresso foi popularizada por Le Goff. A Histria Nova passou por 3 geraes : A primeira teve como fundadores Lucien Febvre e Marc Bloch, que sentiram a necessidade de uma nova abordagem historiogrfica. Na segunda, destaca-se Braudel, que delineia a Escola dos Annales, nesta fase novos mtodos como o tempo da longa durao, a estrutura e a conjuntura so definidos. A terceira gerao engloba mulheres historiadoras e figuras conhecidas na histria contempornea: Duby, Le Goff, Philipphe ries, Michel Volvelle e outros. 3 Revista criada por Febvre.

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    o inventrio dos arquivos do silncio, e fazer a histria a partir dos documentos e das ausncias de documentos.

    A idia inicial deste trabalho foi descrever o evento da Procisso do

    Fogaru, desde sua origem em Gois at a atualidade. Por meio das pesquisas foi

    possvel perceber que era praticamente impossvel realizar tal tarefa pela

    inexistncia de fontes, inclusive a oral. Muito pouco se sabe sobre o incio da

    Procisso e como ela era at 1967, quando foi (re) inventada pela Organizao

    Vilaboense de Artes e Tradies - OVAT.

    Diante das dificuldades, decidiu-se investigar sobre a referida Procisso

    apenas a partir de 1967. Do decorrer das pesquisas, as fontes foram mostrando

    uma srie de tramas, ressentimentos, jogos de interesse e bairrismo, fatos que

    fizeram o objeto de estudo se alargar, a traar rumos que at ento eram

    impensveis, redefinindo a problemtica de pesquisa.

    O que levou Gois, ps-transferncia da capital a valorizar o seu passado

    histrico e evocar tradies? Por que Gois se tornou, a partir da dcada de 60,

    um repositrio de tradies? Dentre tantas tradies por que se destaca a

    Procisso do Fogaru? Essas so algumas perguntas que sero respondidas, na

    medida do possvel, a partir da pesquisa.

    Esta dissertao tem o intuito tambm de envolver o ritual da Procisso do

    Fogaru e os seus sujeitos na paisagem da cidade de Gois com suas histrias,

    suas imagens, seus encantos e desencantos, seu patrimnio arquitetnico e

    natural, em meio a jogos de poder na luta para a manuteno e produo de

    tradies e do turismo vilaboense, delineando uma outra histria ao fazer uso das

    fontes orais, cujos estilhaos de memria trazem tona os silncios que denotam

    adeso ou no s ditas tradies de Gois.

    O trabalho divide-se em trs captulos: No primeiro, a Cidade de Gois, a

    cartografia de sua fundao e monumentalizao de sua cultura ganharo

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    relevncia. No segundo, Gois: Cartografia de uma Tradio. No terceiro,

    Polifonia da Cidade de Gois: Fragmentos da Memria.

    No primeiro captulo, ser mostrado que a cartografia da cidade de Gois

    traz alguns estigmas. O principal deles vem da transferncia da capital para

    Goinia. Goinia surgiu em 1937. Era considerada, de acordo com o discurso dos

    progressistas da poca, como o esplendor da modernidade, cidade planejada,

    nova capital com os padres do progresso, o oposto de Gois.

    Em Gois, aps a mudana, ficou o abandono, a economia desestruturada,

    as famlias que pertenciam ao grupo anti-mudancista, o inconformismo das

    pessoas que permaneceram na cidade, traumas, mgoas, enfim, restou vrios

    sentimentos negativos geradores de ressentimentos. preciso considerar os

    rancores, as invejas, os desejos de vingana (...), pois so exatamente estes os

    sentimentos e representaes designados pelo termo ressentimento (Ansart,

    2001, p.15).

    Nietzsche elaborou a noo de ressentimento, o qual seu conceito

    enigmtico, evocou a redefinio do bom e do mau, do bem e do mal, que se

    operam no ressentimento. As vtimas que foram prejudicadas por outros indivduos

    so pessoas boas, justas e inocentes, que ficam sempre procurando o culpado

    pelo seu sofrimento, so ressentidos, desejam vingana, mas ficam na

    passividade, sem ao.

    Ansart (2001) faz uma abordagem sobre o ressentimento partindo de

    Nietzsche, baseado na obra A Genealogia da Moral. Mas vai alm do que diz

    Nietzsche, propondo e incorporando as reflexes de Max Scheler e Robert K.

    Merton4. Max Scheler se ope ao niilismo de Nietzsche, para ele o ressentimento

    4 Obras citadas por Ansart: SCHELER, Max. LHomme du ressentiments (Vom umsturz der werte [1912] ). Paris: Gallimard, 1958. MERTON, Robert K. Elements de thorie et de mthode sociologique. [1953]. Paris: Librairie Plon, 1965.

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    cria valores, sendo assim os indivduos ressentidos e com o desejo de vingana

    partem para a ao em busca da autoridade perdida e da auto-estima.

    Em Gois, algumas dcadas depois da transferncia da capital, para

    atenuar os ressentimentos e para vingar a humilhao experimentada, grupos

    elitizados da cidade partiram para a ao, buscaram revalorizar o passado

    histrico e as tradies da antiga capital. Isso a fez tornar-se Patrimnio e cidade

    turstica, ser mostrado como se deu todo o processo no decorrer do captulo.

    Cora Coralina, poetisa da cidade, previa o futuro de Gois ao dizer que uma nova

    esperana acena no horizonte. Com a expanso de Goinia, (...) Gois ser, sem

    dvida, um centro de turismo, dos mais interessantes do pas. (Coralina, 1983,

    p.476).

    No segundo captulo, ser feito um estudo sobre a Procisso do fogaru.

    Por que a Procisso do Fogaru? Por ser uma das mais famosas tradies em

    Gois, a nica realizada no Brasil. A Procisso do Fogaru um exemplo

    concreto de (re) inveno das tradies, de criao de valores culturais, de

    estratgias, de articulaes, de jogos de poder que as permeiam. o marketing

    de Gois. Sua imagem representa Gois - Cidade e Estado - pelo Brasil e pelo

    mundo. o orgulho da elite vilaboense, a menina dos olhos do grupo

    organizador.

    A Procisso do Fogaru uma festa de aspecto paralitrgico que acontece

    todos os anos no decorrer da Semana Santa. Sua representatividade a Paixo

    de Cristo, cuja celebrao apresenta os principais protagonistas, homens

    encapuzados, os farricocos, que acompanham a procisso, tocando trombeta de

    vez em quando e com tocha na mo. Estas figuras enigmticas so destaques do

    cortejo. Ser abordado como a Procisso foi (re) inventada, como organizada,

    pois para a realizao do ritual h todo um cenrio, onde se destacam as

    tradies, para que a festa seja apresentada e vivenciada como uma tradio na

    era da imagem, do vdeo e do simulacro... (Flores, 1997, p. 14). Ser destacada,

    tambm, a importncia do trajeto da Procisso para a cidade e para os fazedores

    da festa e o sentido sagrado e profano do evento que suscita jogos de poder.

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    O terceiro captulo abordar as vrias vozes a respeito de Gois. Sero

    apresentadas, inicialmente, apenas duas vozes na forma de escrita, cartografias

    da Procisso do Fogaru, da folclorista Regina Lacerda e do historiador Paulo

    Bertran.

    Posteriormente, sero delineadas as memrias do povo vilaboense e o

    outro lado da histria, depoimentos de cidados de nome e sem nome da

    Cidade de Gois. Diversas vozes sobre a cidade, em especial sobre: o Patrimnio

    e a Procisso do Fogaru, que provavelmente revelaro dados omitidos pela

    histria escrita. A memria ser o fio condutor, via Histria Oral, visto que, de

    acordo com Amado; Ferreira (1996, p. XV), na histria oral, o objeto de estudo do

    historiador recuperado e recriado por intermdio da memria dos informantes, a

    instncia da memria passa, necessariamente, a notar as reflexes histricas...

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    1. GOIS: CARTOGRAFIAS DE FUNDAO E MONUMENTALIZAO

    1.1. O cartgrafo em Gois: histrias e ressentimento

    Realizar pesquisa sobre a cidade de Gois significa explorar territrio.

    Explorar no sentido de buscar, de mexer, de aventurar nas coisas de Gois, que

    para algumas pessoas da cidade so consideradas intocveis.

    Vrias cartografias registram que a colonizao de Gois iniciou com a

    descoberta da regio que j era habitada pelos ndios Goyazes, os quais foram

    explorados e exterminados. A terra dos ndios foi Arraial de SantAnna e

    transformou-se em vila, Vila Boa de Gois. A capitania de Gois foi criada em 1739,

    dez anos depois Vila Boa de Gois tornou-se a capital da capitania de Gois, quando

    foi empossado o primeiro governador de Gois, Dom Marcos de Noronha, futuro

    Conde dos Arcos. O encantamento dos bandeirantes pelo lugar veio por causa do

    brilho do ouro surgido s margens do Rio Vermelho.

    Cartografias afirmam que Gois formou-se como regio a partir do ouro.

    Segundo Sandes (2002, p. 24), pensar a formao de Gois como regio exige um

    movimento de sntese capaz de compactar a experincia social e poltica que

    organizou a regio em torno da descoberta do ouro (...) do sculo XVIII. Gois

    passou a existir para o centro da nao, a partir da minerao e em funo da

    minerao.

    Existem cartografias que registram decadncia e atraso. Com a decadncia da

    minerao, a capitania passou por uma crise em sua economia. As atividades

    agrrias, em alguns momentos da fase mineradora, foram estimuladas como forma

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    CARNEIRO, K. C.

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    de ajudar a manter a populao da regio. A economia agro-pastoril coexistiu com a

    minerao, sem predominncia de uma delas.

    Diversos historiadores5 mostram que a escassez aurfera levou Gois a ser

    denominada cidade decadente e atrasada. Tais denominaes vm desde o caminho

    dos viajantes europeus que ao passar por este territrio, fizeram relatos baseados no

    progresso do mundo que conheciam, sobre o desenvolvimento, sobre a mquina a

    vapor e a alta produo. Gois ficou sendo o lugar distante dos centros comerciais,

    de difcil acesso e considerada sem condies propcias sade pblica. Chaul

    (1999, p. 288/9) afirma que problemas de toda a ordem, mazelas de todos os tipos,

    doenas em todos os cantos, falta total de crditos no banco esperana, espao sem

    crescimento. Da a idia de atraso, de isolacionismo, presentes na historiografia

    goiana. Nesse enfoque, Gois ficou marcada como uma cidade precria para se

    viver e com o estigma do atraso. De acordo com Sandes (2001, p.20-21), no h

    razo para duvidar dos cronistas que insistem em descrever estradas abandonadas,

    (...) receitas em queda. O imaginrio da crise est colado ao movimento de refluxo,

    refazendo, sob a imagem de runa, o desejo de insero na esfera da economia.

    Chaul (1997, p.21) ope-se as cartografias do atraso e da decadncia,

    ...aponta para outro rumo: quer construir uma outra histria... Para ele, realmente

    houve a escassez aurfera, mas a sociedade subsistiu com a economia agro-pastoril.

    Ele mostra que a discusso do atraso era estratgia poltica de alguns grupos que

    desejam o progresso.

    O referido autor aborda tambm como os progressistas rotulavam Gois e

    desejavam o moderno. o que mostra em seu artigo na revista ICOMOS BRASIL:

    5 BERTRAN, Paulo. Formao Econmica de Gois. Goinia: Oriente, 1978. CAMPOS, Francisco Itami. Mudana da Capital: uma estratgia de poder. Cadernos do Indur, estudos urbanos e regionais, Goinia, n.2, nov. 1980. _________. Coronelismo em Gois. Goinia: Cegraf, 1982. PALACIN, L. Fundao de Goinia e desenvolvimento de Gois. Goinia: Oriente, 1979.

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    CARNEIRO, K. C.

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    Gois no foi apenas o bero de nossa histria, terra e inspirao de Cora Coralina; foi tambm a pedra no p de Pedro, contra ela uma torrente de argumentos pesaram para lhe tirar a primazia de ser a capital. Gois era smbolo dos Caiado, como se fosse possvel que tivesse dono ou no fosse de todos ns. Era acusada de falta de progresso como se este fosse to desejado mais do que havia (...) Goinia seria o espelho inverso. Mas Gois resistiu, reclamou, quase inviabilizou a mudana. Mas as foras dos poderes eram maiores que sua vontade e tudo era enorme, tudo era desfavorvel (...) Foram muitas as lutas, difceis os caminhos, refutveis os aceites. Saa a capital, ficava a cidade histrica...(Chaul, 1997, p. 288-9).

    Os polticos progressistas, como cartgrafos, em seus discursos, justificavam,

    tambm, que a Cidade de Gois estava impossibilitada de crescer em funo de sua

    posio geogrfica, por isso, a necessidade de construir uma nova sede poltica para

    o Estado. Cora Coralina (1987, p.15) afirmou que Gois era encravada s margens

    do rio Vermelho, num vale cercado por colinas, impossibilitada fisicamente de

    expandir-se, a cidade acabou por assumir um ar romntico imposto por

    contingncias histricas e por fora de sua situao geogrfica. A cidade

    localizada no fundo de um vale, cercada pela Serra Dourada, tem sua topografia toda

    acidentada.

    De acordo com Arrais (2003, p.100), as notcias, os boatos comearam a

    circular pela cidade de Gois sobre a construo da nova capital, a ttica encontrada

    pela velha capital foi ignorar o assunto, no comentar nada a respeito, a lgica era

    simples: o que no se fala, se esquece, se perde e desaparece... Os jornais da

    cidade, tambm passaram a no publicar nada que se referisse nova capital, no

    noticiaram a aprovao do projeto e nem o local escolhido. A estratgia adotada no

    funcionou, Goinia estava sendo construda. Arrais (2003, p.107) mostra ainda como

    a antiga capital se sentiu ameaada e de que forma foi a construo,

    ... tudo de uma forma to brusca, to inslita que a populao da antiga Vila Boa s se dera conta da importncia do ocorrido quando as obras j estavam iniciadas. Os privilgios advindos do status de centro poltico regional, de capital de estado estavam agora ameaados.

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    CARNEIRO, K. C.

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    Goinia considerada, pelo discurso dos mudancistas e por diversos

    historiadores, como o contrrio de Gois. Nascia com ruas largas, terreno plano,

    justamente para garantir a sua expanso. Foi projetada nos anos trinta do sculo

    passado, por Pedro Ludovico Teixeira, para ser a nova capital, simbolizando o

    progresso e a modernidade para o Estado, conforme afirma Chaul (1997, p.208):

    Pedro Ludovico rotulava Gois de centro oligrquico, decaden-

    te e atrasado. Goinia seria seu inverso. Decadncia e atraso eram, ento, argumentos recuperados no momento para reforar a neces- sidade do novo. O estigma da decadncia, que permeou a Provncia de Gois na poca da ps-minerao, e do atraso, que simbolizava Gois ao longo da Primeira Repblica, foram retomados para refor- ar a representao de sua anttese, ou seja, a modernidade ex- pressa na construo de Goinia.

    A capital foi transferida para Goinia, de acordo com Gomide (2003, p.39),

    porque no havia mais espao para as conversadeiras, pois o tempo lento das

    ruas no servia mais de modelo para um projeto poltico progressista. No havia

    espao para o projeto poltico progressista, da a necessidade da mudana, de

    partir para um lugar diferente, para uma capital nova e distante, que no era to

    distante assim, que fugisse das amarras dos polticos tradicionais, dos domnios da

    famlia Caiado6.

    No sentido de ter sido planejada e em relao sua estrutura arquitetnica,

    Goinia era moderna para a poca, porm, dizer que havia uma distncia extrema

    entre as duas cidades e que era o inverso uma da outra so idias produzidas

    socialmente, no h nenhum abismo entre as duas cidades, visto que a distncia

    entre Gois e Goinia cerca de 140 Km. Como poderia Goinia, em 1937, ser o

    esplendor da Modernidade? Para a construo utilizaram carros de boi, as ruas eram

    6 O percurso poltico dos Caiado sempre esteve vinculado aos setores conservadores a que pertencem, defendem e, sempre que possvel, compem a direo poltica. (...) Quando falamos em Caiado, a qualquer tempo, a marca registrada a defesa dos interesses do latifndio e de seus aliados... ( Ribeiro, 1998, p.317).

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    19

    de terra, em que tudo se encobria de poeira. Goinia foi colocada como se

    aparecesse de forma estrondosa. Houve um exerccio de exagero.

    Mesmo tendo clareza de que as diferenas entre Gois e Goinia no eram

    to acentuadas, sabe-se que se produziu um discurso memorvel. Nos vilaboenses7

    que no se mudaram para Goinia restou o incorfomismo, o sentimento de perda, o

    trauma causado pela forma como se deu o processo de mudana. Isso resultou em

    grandes dificuldades polticas, econmicas e sociais para os que permaneceram na

    cidade. Era como se tivessem perdido tudo, no s pelo fato de ser sede poltica,

    mas o poder, o status de capital, o comrcio, a mudana de parentes e amigos. A

    transferncia foi, enfim, um drama para a populao, ferida em seu orgulho e

    mutilada em seus interesses, Gomide (2003, p.40) afirma que no foi possvel evitar

    a transferncia da capital e, (...) os moradores que permaneceram na antiga Vila Boa

    se sentiram ressentidos com a deciso e efetivao da mudana.

    Transferir a capital para Goinia demandou um esforo hercleo, por parte

    dos progressistas. Tal transferncia exigiu que os rgos pblicos tambm se

    mudassem. Alm disso, houve presses de formas variadas, como mostra Arrais

    (2003, p.105), ... o governo decreta aumento do salrio dos funcionrios pblicos

    que se transferissem para Goinia... E ainda, Arrais (2003, p.112), a resistncia,

    entretanto era grande. Principalmente aquela advinda dos funcionrios federais que

    tiveram que ser convencidos atravs da ordem direta do prprio presidente da

    Repblica...

    Ainda hoje a transferncia da capital faz parte da memria coletiva dos

    vilaboenses. Cada um dos que vivenciaram aquele momento histrico tem sua

    histria para contar, mesmo os que no presenciaram o fato histrico contam

    histrias ouvidas pelos seus pais ou avs. O abandono, o descaso por Gois, o

    marasmo em que Gois se transformou uma das mgoas descritas por quase todos

    os entrevistados dessa pesquisa, os quais afirmam que a economia foi

    7 Denominao dada ao povo nato da Cidade de Gois - antiga Vila Boa, da o termo vilaboense. Grande parte da populao vilaboense bairrista.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

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    desestruturada, que o comrcio virou um caos e que os comerciantes possuam

    poucos consumidores. Assim, os depoentes mostram seu ressentimento por meio de

    entrevistas, poemas, msicas.

    Pelos fragmentos das memrias transcritos a seguir, percebe-se nitidamente o

    ressentimento das pessoas, o choro, a tristeza, quando falam sobre a transferncia

    da capital:

    Querida Cidade Crucificada!! Tiraram tudo de sua vida to cheia de significao!! Homens insensatos soprando arrotos de indigesto poltica. Ambos os lados no pensavam que Vila Boa no merecia aquele tratamento. Brigaram, brigaram!! Mataram uma cidade para a construo de outra, dentro do pauperismo da primeira. (Daher apud Delgado, 2003, p.403).

    O discurso dos mudancistas em relao Cidade de Gois ficou impregnado

    em cada mente. Com isso, uns preferiram mudar, mas a idia de mudar no to

    simples assim, aqueles que se mudaram foram por medo do pauperismo a que

    Gois estava sujeita ou por imposio.

    A cidade ficou vazia, os ricos foi quase tudo embora, a famlia dos Caiados ficou, porque eles era contra a mudana, contra Pedro Ludovico. Os outros que tinha a situao mais ruim, alguns foram tambm em busca de emprego, o meu irmo e minha irm mais velha foram tambm, eles ganharam um lote e foi, porque l tudo era novo, eles queriam trabalhar e ter uma vida melhor.8 Eu me lembro do caminho levando tudo do Frum, eu vi tudo daqui de casa: os caminhes saindo, o povo chorando e a banda da msica tocando o dobrado. Eu tinha 19 anos. Eu me lembro bem. Teve uma decadncia muito grande.9

    Alguns moradores de Gois preferiram mudar para fazendas, outros

    preferiram at mesmo destrurem seus bens, pois tinham a certeza de que seus

    8 Joaquim Peixoto dos Santos Sobrinho - 85 anos entrevista feita pela autora em 15 de maro de 2003. 9 Olmpia de Azeredo Bastos entrevista feita por Andra Delgado em 15 de novembro de 2001. In: DELGADO, A. F. Op. cit. p. 403.

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    imveis no mais lhes dariam lucros, ento, para eles, no havia mais motivo para

    permanecer em Gois, a descrena pairava pela cidade.

    Muita gente quase morreu de raiva quando Goinia passou a ser a capital. O meu marido quis ir para o stio que ele comprou, porque Gois no ia prestar mais, porque ele gostava de fazer negcios (...) Chorei muito. Teve muitas velhas chorando no dia da festa da mudana.10 Eu sou filha daqui. Nasci e me criei aqui, meu pai era portugus, ele possua 113 casas aqui. Ele alugava, e uma casa era a residncia dele, ele transformou em hotel, hoje a Pousada do Sol, l era nossa residncia. Ento, com a mudana (...) estas casas ficaram desocupadas, e para no pagar impostos delas, ele era muito genioso, ele derrubou, doou, jogou fora, acabou com tudo, com quase todas. Ele teve convite do Dr. Pedro para ir construir l em Goinia, ele no quis (...) Eu me lembro tambm, quando (...) minha me chorando acompanhando o caminho at l na sada, sabe, chorando, (...) no precisava ter feito isso, tirou tudo, acabou com a cidade.11

    A maioria dos vilaboenses que foram para Goinia deixou Gois, inicialmente,

    com um certo pesar. Isso pode ser percebido no lirismo presente no texto a seguir:

    Eu vou contar nestes versos um caso sentimental Que fez sofrer muita gente l da velha capital Que vivia to contente at o dia fatal Quando saiu da cidade a capital do Estado Deixando a velha Gois de glorioso passado O povo ficou to triste que at hoje tem chorado. Eu ainda bem me lembro da dor que todos sentiam Os funcionrios saindo, de tudo se despediam Gois inteira chorava por seus filhos que partiam (...) Cada casa abandonada, que ficou l na cidade Recorda um tempo passado, de amor e felicidade(...) Adeus terra to querida, vou separar-me de ti Levo minhalma ferida, meu corao deixo aqui Hei de viver sempre amando a terra onde eu nasci.12

    As pessoas que mudaram de Gois diziam estar em busca de melhores

    condies de vida, sentiam que em Gois seria complicado continuar residindo.

    10 Dona Nomia 104 anos entrevista feita pela autora dia 18 de setembro de 2003. 11 A entrevistada no quis ser identificada. Entrevista concedida a Odiones de F. Borba. 12 VEIGA JARDIM, Henrique Csar da e CURADO, Moacir Fleury. A Mudana da Capital. In: O Popular. Caderno 2. Goinia, 05-jul de 1997.

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    Diante do fato consumado, no lhes restava outra sada seno defender os

    interesses dos mudancistas. o que mostra Arrais (2003, p.122): Desabitada por

    muitos, destituda de seus privilgios, amaldioada pelos ex-moradores que agora

    viviam na nova capital, Vila Boa tornara-se alvo de crtica de todos aqueles que

    desejavam ser agradveis aos olhos do interventor.

    H excessos ao se tratar da Antiga Vila Boa. Brigas, disputas polticas

    existiram, mas no a ponto de declarar a morte de Gois para a construo de

    Goinia. Gois no morre, pelo contrrio, mesmo diante de um estado catico, que

    no se pode negar como mostraram os depoimentos a Cidade de Gois estava

    viva, com pessoas resistentes a mudanas: por questes polticas, por falta de

    condies financeiras ou por falta de coragem para encarar o que parecia ser o novo.

    Alguns jornais da poca publicaram reportagens e textos variados em defesa

    da antiga capital, tentavam estimular os moradores que ficaram. O jornal A RAZO,

    por exemplo, foi um peridico que comeou a circular dizendo-se portador de certa

    neutralidade, depois se declarou anti-mudancista, sempre defendendo a antiga

    capital. Era necessrio, naquele momento, defender e honrar a antiga capital, mostrar

    que mesmo diante de tanta humilhao e maus pressgios, seria uma cidade

    honrada.

    ...Despojada violentamente de suas vestes de capital e de suas prerrogativas de municpio livre, Gois de hoje, [restrita] aos seus prprios recursos continuar impvida e serena o seu caminho dentro da vida coletiva do Estado, tudo fazendo dentro da sua maior felicidade e crescente grandeza. A Cidade se ergue, entretanto, nas chapadas de Campinas, bem poderia ter colhido, para argamassa de seus alicerces, as energias harmoniosas e no as lgrimas de uma gerao humilhada! (A RAZO, 18-07-1937).

    Por meio da expresso As lgrimas de uma gerao humilhada, percebe-se

    que, mesmo em busca do consolo, impossvel no enfatizar o choro, representante

    da tristeza e da humilhao.

    A cada comentrio e boato que surgiam a respeito de Gois sobre crise

    econmica e decadncia, os jornais publicavam imediatamente algum artigo

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

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    encorajando seu povo, dando esperana, tentando tirar a descrena que estava

    arraigada em cada habitante da cidade,

    O tempo, supremo e mximo catalizador das cousas e dos fenmenos

    sociais econmicos encarregou-se de desmentir o pessimismo exagerado e nos mostrou que em Goiz tudo ainda est virgem no terreno das possibilidades econmicas.

    Tudo h renovado. (...) As casas comerciais abrem-se em novos ramos, num desdobramento

    compensador. (...) Goiz caminha ligeiro na sua e para a sua curva ascencional!

    (CIDADE DE GOIS, 26-05-1940).

    Mesmo diante da tentativa de reconstituir a honra e o orgulho da cidade, Gois

    passa a ser denominada de Gois Velha, expresso que no muito bem aceita

    pelos moradores da cidade. Os depoimentos mostram que a no aceitao do nome

    pelo qual a cidade conhecida, tambm, em razo do rancor pela perda da capital.

    o que se pode perceber nos depoimentos abaixo:

    No concordo de jeito nenhum com o Gois Velho, o Velho foi criado na poca da mudana da capital, pejorativo e para a Cidade de Gois ficou somente o velho, o ultrapassado. (Hercival de Castro) No concordo com Gois Velho, onde est a Gois Nova? At que se falasse a capital velha, eu concordaria. (Arthur da Costa Ferreira) 13

    Para Nora (1993, p.9), a memria a vida, sempre carregada por grupos

    vivos e, nesse sentido, ela est em permanente evoluo, aberta dialtica da

    lembrana e do esquecimento. A memria um fenmeno sempre atual, um elo

    vivido no eterno presente. Alm de Nora, Gondar (2001, p.41) tambm mostra a

    relao do esquecimento com a memria: ... entre a lembrana e o esquecimento

    que se instala o desejo da memria. O silncio, o esquecimento e at os

    ressentimentos fazem parte da memria. Esta fica guardada, s se desperta quando

    de interesse, principalmente particular, ou quando provocada, mas pode ficar

    13 Jornal O Vilaboense, Gois, ano de 1985, pg. 03.

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    eternamente silenciada ou esquecida. O esquecimento facilita prosseguir em busca

    do novo, da felicidade. Segundo Nietzsche (1978, p. 47-48), eis a utilidade do

    esquecimento, espcie de guardio da porta, de zelador da ordem psquica, da paz,

    da etiqueta: como o que logo se v que no poderia haver felicidade, jovialidade,

    esperana, orgulho, presente, sem o esquecimento. Mas, o no esquecimento gera

    ressentimentos, como mostra Gondar (2001, p.43),

    Nietzsche valorizar mais radicalmente esta dimenso criadora do esquecimento. Sem ele, a memria se reduz a uma doena que paralisa a atividade, incentivando o ressentimento14(...) Sem o esquecimento o homem estaria acorrentado s suas feridas passadas e, presa de suas prprias ruminaes, se encontraria impossibilitado de agir. A memria s poderia favorecer a ao e a criao ao combinar-se com o esquecimento. Sem ele, nos diz Nietzsche, a memria se torna uma funo odiosa, e a lembrana uma chaga purulenta.15

    Em Gois, o trauma da mudana da capital desperta a memria, s vezes, traz

    tona o que est guardado no inconsciente: os sentimentos de inveja, mgoa, dio,

    rancores, desejo de vingana, enfim, o ressentimento, pois, ficou apenas o mito da

    cidade degradada, conforme Gomide (2003, p. 39).

    Para o cartgrafo que trabalha tambm o campo da sensibilidade cabe a

    questo: Como definir a categoria ressentimento? Nietzsche (1978) define

    ressentimento como um conceito enigmtico, a palavra ressentimento fornece uma

    indicao rigorosa: a reaco deixa de ser agida para se tornar qualquer coisa de

    sentido. Deleuze (s/d, p.168) se apropria dos conceitos de Nietzsche para explicar o

    ressentimento dizendo que o ressentimento uma reaco que, simultaneamente,

    se torna sensvel e deixa de ser agido. Afirma, tambm, que o ressentimento est

    ligado diretamente a moral judaico-crist de culpa, ...o homem do ressentimento,

    essencialmente doloroso, procura uma causa para o seu sofrimento. (...) O

    ressentimento dizia por culpa tua (...) o seu objetivo que toda a vida se torne

    reactiva ... (Deleuse, s/d, p.197-98)

    14 Grifo meu. 15 GONDAR, J.Op Cit. p. 43.

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    Nessa perspectiva, o ressentimento dos moradores de Gois est associado

    culpa tua, isto , a culpa de uns e de outros. Por culpa dos outros: decadncia,

    atraso, mudancistas ou progressistas e transferncia da capital, da o

    ressentimento. como se o devir histrico estivesse ligado a essa questo.

    Para Nietzsche, o ressentido passivo, no cria valores, prefere ser vtima, se

    julga o melhor, puro, ntegro, no luta e deseja uma vingana que no sai do

    imaginrio. Ansart (2001, p.19) tambm se baseia em Nietzsche para explicar que o

    ressentimento reforado pelo desejo de reencontrar a autoridade perdida e vingar

    da humilhao experimentada Ansart (2001, p.21) deixa claro como difcil saber

    qual a manifestao do ressentimento: a questo essencial, s vezes de difcil

    resposta, a necessidade de compreender e explicar como o ressentimento se

    manifesta, a quais comportamentos serve de fonte e que atitudes e condutas inspira,

    consciente ou inconscientemente.

    O devir histrico de Gois est relacionado ao ressentimento no sentido de

    vingana da humilhao experimentada, no resgate da autoridade perdida, do

    amor-prprio ferido e da auto-estima em baixa. Entretanto, foi uma vingana que saiu

    do imaginrio, se opondo a teoria nietzschiana. Ansart (2001, p.18), mostra que h

    outras definies que ampliam a de Nietzsche:

    ...pela desconstruo do conjunto de teses nietzschianas, que se dedicaram autores que procuraram reter apenas a significao do conceito de ressentimento.(...) Max Scheler separa-se, no essencial, das teses nietzschianas, opondo ao niilismo de Nietzsche sua filosofia de valores.

    Max Scheler (apud Ansart, 2001, p.21) se ope a Nietzsche: Max Scheler

    assinala esta dinmica do ressentimento como criadora de valores, ou seja, de

    finalidades sentidas como desejveis pelos indivduos e que eles buscam realizar.

    Em Gois, determinadas pessoas da populao local demonstram no ter ficado na

    passividade, o que ocorre exatamente ao contrrio, ocorrem reaes e delas se

    criam valores. O incio da reao pode ser percebido nos depoimentos abaixo:

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

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    A cidade sempre sofreu o trauma, a sndrome da mudana. Os que ficaram, os que permaneceram, foi por opo. Os que ficaram, ficaram por amor, aqueles que permaneceram passaram a dedicar grande amor pela cidade. Aps o trauma da mudana, eles elegeram a cidade como principal referencial cultural. Permaneceram grandes intelectuais. 16 Depois do perodo da mudana da capital, quando teve um resfriamento com a mudana da capital, a que a cidade cresceu mais culturalmente, eu acredito que para amenizar o sofrimento da mudana. (...) Foi o perodo que teve os carnavais mais animados, com marchas de carnaval compostas aqui. (...) Na parte cultural foi criado o Gois Clube, uma associao de moas e senhoras. Foi reao da mudana.17

    Outras reaes so visveis. A partir da dcada de 50, do sculo XX, alguns

    monumentos histricos em Gois comearam a ser tombados pelo IPHAN18, mas foi

    somente a partir da dcada de 70 que alguns moradores comearam obter lucros de

    bens imveis, devido ao tombamento centro histrico de Gois. Inconscientemente,

    como foras reativas do ressentimento, os vilaboenses se apegam ao seu passado

    colonial, na valorizao de seus monumentos, nas tradies, na ritualizao do

    poder. Gois deixa de ser capital, mas passa a ser o repositrio das tradies. De

    acordo com Delgado (2003, p.419) Categorias como tradio, arte, cultura e histria

    so arroladas para compor o passado que o discurso prope que seja resgatado

    para construir o futuro da Cidade de Gois.

    Gois, que parecia ter cado no esquecimento - esquecimento que,

    ironicamente, a preservaria o suficiente para ser de novo lembrada, mas, agora, no

    mais s pelos goianos, mas por e para toda a humanidade,19 torna-se, uma cidade

    turstica e, em 2001, Patrimnio da Humanidade, sendo assim, alguns moradores, os

    elitizados, grupos, famlias tradicionais, reencontram a autoridade perdida e vingam

    da humilhao experimentada.

    16 Hercival Alves de Castro. Entrevista concedida Andra Delgado em 14/11/2001. In: DELGADO, A. F. Op. cit. p. 404. 17 Elder Camargo dos Passos. Entrevista concedida Andra Delgado.In: DELGADO, A. F. Op. cit. p.418. 18 Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. 19 Extrado do texto: Cidade de Gois: Patrimnio da Humanidade. Sem autoria.

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    As mgoas, os ressentimentos e os estigmas ficam atenuados, silenciados,

    pois a vida, o cotidiano do povo20, praticamente em nada se altera, pelo contrrio, a

    maioria das pessoas passa a sentir o peso de carregar um ttulo de Patrimnio da

    Humanidade. Tm conscincia de que so explorados, mas aceitam com

    passividade.

    1.2. Suportes de Memria: o Passado e o Futuro

    1.2.1. Passado: Produo de Monumentos

    Ser analisado nesta sub-seo um breve histrico do IPHAN, , do Patrimnio

    Histrico e Artstico da Humanidade e do FICA21. Este breve histrico tem o objetivo

    de mostrar como foi resgatado o passado histrico em Gois.

    Segundo Magnani (1986) apud Borba (1998, p.26) O termo patrimnio

    significa, etimologicamente, herana paterna, o que evoca a idia de transmisso e,

    no caso de uma coletividade, transmisso no de pai para filho, mas de uma gerao

    a outra. Fonseca (s/d, p.58) considera que "a idia de posse coletiva como parte do

    exerccio da cidadania inspirou a utilizao do termo patrimnio para designar o

    conjunto de bens de valor cultural que passaram a ser propriedade da nao, ou

    seja, do conjunto de todos os cidados.

    No Brasil, os bens de valor cultural, que foram tombados tornaram-se

    Patrimnio da nao a partir da Revoluo de 30, com o Estado Novo.

    20 Ver o terceiro captulo. 21 Festival Internacional de Cinema e Vdeo Ambiental, que acontece anualmente na cidade de Gois.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

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    Tombamento um conjunto de aes realizadas pelo poder pblico com o objetivo de preservar, atravs de aplicao de legislao especfica, bens culturais de valor histrico, artstico, arquitetnico, arqueolgico e ambiental de interesse para a populao, impedido que venham a ser demolidos, destrudos ou mutilados.22

    Em 30 novembro de 1937, pelo mesmo Decreto que rege o tombamento no.

    25, amparado pela Constituio Federal em seu artigo n. 216, foi criado um rgo

    federal responsvel pela preservao do patrimnio histrico artstico brasileiro,

    denominado Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN. A criao

    desse rgo foi decorrente da ao de intelectuais modernistas, entre eles Mrio de

    Andrade, que se preocupavam com a conservao da cultura brasileira, inclusive j

    havia preocupao com o Patrimnio Imaterial. Sobre a criao do SPHAN, Fenelon

    (1992, p. 30) afirma: ... a poltica de preservao deste rgo constitui talvez o

    exemplo mais fecundo de interveno governamental na rea da cultura, empenhada

    em construir uma memria e uma identidade nacionais. Desde a sua criao at a

    dcada de 60, o SPHAN ficou sob a direo de Rodrigo Melo Franco de Andrade.

    Em 1946, o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN

    tornou-se Diretoria, passando a ser denominado DPHAN, perodo em que foram

    tombados alguns bens isolados na Cidade de Gois. Em junho de 1970, pelo

    Decreto n. 66.967, passou a ser Instituto23 IPHAN as modificaes no vieram

    apenas na sigla, mas numa nova medida de tombamento, que no seria mais de

    bens isolados, mas de conjuntos arquitetnicos e urbansticos. Borba (1998, p.27/8)

    afirma que a criao do instituto ... culminou numa srie de reavaliaes de

    diretrizes e prticas deste rgo. (...) Reconstruo das Cidades Histricas (...)

    restaurao de stios, monumentos e cidades histricas com a finalidade de

    implementar a explorao turstica destas reas. A realidade, porm, foi outra.

    Poucos eram os recursos financeiros, muita burocracia e raras restauraes. 22 O tombamento federal regido pelo Decreto-Lei no. 25 de 30 de novembro de 1937, pelo decreto-lei no.3.866 de 29 de novembro de 1941 e pela Lei no. 6.292 de 15 de dezembro de 1975. In: PATRIMNIO CULTURAL..Boletim Informativo Bimestral da 14a. coordenao Regional do IBPC. Ano I , no 2 , nov/dez 1991, p. 2. 23 SPHAN/Pr-Memria. Proteo e Revitalizao do Patrimnio Cultural no Brasil: uma trajetria. Braslia: MEC, 1980, p. 31.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

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    Em 1979, retornou a sigla SPHAN, sendo extinta em 1990, nesse perodo foi

    criado o Instituto Brasileiro de Patrimnio Cultural - IBPC - at 1994. Em 1994

    retorna24 o Instituto do Patrimnio Histrico e artstico Nacional mais uma vez

    IPHAN, que ainda hoje conserva esta sigla.

    Pode-se dizer que o incio da consagrao de Gois como Patrimnio foi a

    partir do tombamento de alguns bens imveis e monumentos, que se iniciou em

    195025, pela Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (DPHAN), neste

    ano foram tombados: Igreja de N. Sra da Abadia, Igreja de N. Sra do Carmo, Igreja de

    Santa Brbara26, Igreja de So Francisco de Paula27, Imagem de N. Sra do Rosrio,

    Igreja de N. Sra da Boa Morte (Museu de Arte Sacra da Boa Morte28) e Casa do

    Antigo Quartel da II Companhia (Quartel do XX Batalho de Infantaria). O

    tombamento continuou em 1951 com a Casa de Cmara e Cadeia (Museu das

    Bandeiras29), Palcio Conde dos Arcos30, inclusive as armas de Portugal e dois

    bustos de pedra.

    O tombamento na dcada de 50 no foi visto com bons olhos pela populao

    local, que ainda no aceitava a idia da transferncia da capital. Para eles, Gois

    poderia tornar-se uma cidade grande, desenvolvida. No era fcil aceitar a idia de

    que seus prdios pblicos se tornariam meramente museus, imveis a serem

    preservados e que suas casas no poderiam ser modificadas sem autorizao. Tudo

    isso seria atraso para Gois e no progresso.

    Os depoimentos31abaixo mostram a resistncia ao tombamento:

    24 Setembro de 1994 - Medida Provisria no. 610. 25 Consta na publicao dos Bens Mveis e Imveis inscritos nos Livros do Tombo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Rio de Janeiro, 1994. 26 Ver foto no Anexo A 27 Ver foto no Anexo B 28 Ver foto no Anexo A 29 Ver foto no Anexo C 30 Ver foto no Anexo A 31 Trechos extrados da entrevista concedida Andra Ferreira Delgado, em 19/08/1999.

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    CARNEIRO, K. C.

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    ... o termo tombamento simbolizava o atraso, Gois ficaria estagnada, impedida de se desenvolver, impedida de crescer, impedida de progredir . O IPHAN tombar a cidade, voc no poder construir (...) a viso que se tinha de tombamento era essa, estaramos permanentemente condenados. O sonho de Gois era asfalto (...) era se igualar a Goinia. (Hercival Alves de Castro) Eu fui contrrio ao tombamento nos primeiros anos, liderado por um grupo que no via a preservao com estmulo ao futuro de Gois. Seria um atraso para a cidade, voc no poderia mudar a fachada (...) voc no mandaria na sua casa. (...) Inclusive o termo tombamento liga queda, deteriorao. (Elder Camargo dos Passos)

    O tombamento em Gois, inicialmente dos bens isolados, em quase nada

    alterou a vida cotidiana dos vilaboenses, no atraiu a visitao pblica, no chamou

    ateno dos turistas. A preservao no teve muito significado, os bens no foram

    restaurados, inclusive o Quartel do XX Batalho de Infantaria teve fins diversos, em

    maro de 1950 foi arrendado, passando a funcionar como hotel Hotel Carrascoza.

    At setembro de 1976 serviu ao Hospital Dr. Brasil Caiado...32

    Somente na dcada de 70 que alguns grupos de vilaboenses, principalmente

    da elite33, passam a perceber o valor do Patrimnio para a cidade e a contribuir na

    sua preservao. Fundaram entidades civis - como a Organizao Vilaboense de

    Artes e Tradies (OVAT) e Fundao Educacional da Cidade de Gois (FECIGO),

    criada por Frei Simo Dorvi - com intuito de defender a identidade cultural

    vilaboense. Os fundadores da OVAT e da FECIGO perceberam a importncia do

    tombamento e do Patrimnio para a cidade de Gois, conscientizaram-se de que o

    passado conservado no seria atraso. De acordo com o Boletim Informativo do

    IPHAN (1995, p.2): sempre bom lembrar que o tombamento no traz apenas

    restries aos proprietrios de imveis e usurios da cidade... como pensavam

    muitos moradores de Gois na dcada de 50. O tombamento pode trazer, tambm,

    benefcios econmicos, sociais e financeiros, contribuindo inclusive para o

    crescimento e desenvolvimento da cidade.

    32 SPHAN/Pr-Memria .Quartel do vinte. Gois-Go. Memrias de Restaurao, s/d, no 5, p.3. 33 Elite intelectual, financeiras, filhos das famlias tradicionais.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    31

    Uma das formas encontradas para gerar riquezas no municpio foi

    desenvolver o turismo. Atravs do turismo cultural34 e ecolgico, por exemplo

    desde que bem planejado e organizado (...) tm aumentado a arrecadao e

    ampliado o ndice de emprego, entre outras vantagens.35

    Apenas em 1978, foram tombados: a Praa Brasil Caiado, Largo do Chafariz,

    rua da Fundio e Conjunto Arquitetnico e Urbanstico (extenso de tombamento)

    do centro histrico da Cidade de Gois, que foi tombado como monumento

    histrico.36 Logo, torna-se Patrimnio Histrico e Artstico Nacional.

    Com a Lei Estadual no 8915, de 13 de outubro de 1980, os bens tombados

    como Patrimnio do Brasil passam a ser protegidos pelo Estado. A partir da dcada

    de 80 do sculo XX, Gois foi contemplada com recursos federais, estaduais e de

    iniciativas privadas, destinados a restaurao dos bens tombados, privilgio de

    poucas cidades brasileiras.

    Percebe-se que os bens tombados, os monumentos que passaram a ser

    preservados em Gois fazem parte da memria do Estado: palcio, cmara e cadeia,

    centro da cidade, o qual era a sede administrativa do Estado; da Igreja Catlica,

    enfim da elite econmica, a conservao de ordem simblica que expressam uma

    ritualizao do poder. Para serem mantidos como tal, h todo um trabalho de

    manuteno, conscientizao e resgate do Patrimnio que feito pelo IPHAN.

    O escritrio do IPHAN37 se instalou em Gois em 1983, sob a direo do

    arquiteto Gustavo Coelho at 1986. A atuao do IPHAN em Gois resguardada

    pela 14a. Superintendncia Regional, com sede em Braslia. Na cidade,

    representado pela 17a. Sub-Regional II, que realiza a fiscalizao, a anlise e o

    34 O turismo cultural motivado pela busca de informaes, de novos conhecimentos, de interao com outras pessoas, comunidades e lugares, da curiosidade cultural, dos costumes, da tradio e da identidade cultural. 35 PATRIMNIO CULTURAL..Boletim Informativo da 14a. coordenao Regional/IPHAN. Ano 5 , no 5, dez/1995, p. 2. 36 Tombado pela Unio conforme Processo 345-T-42. Livro: Belas Artes. Vol.I . No da folha:97. No de Inscrio: 529. Data:18/09/1978. 37 Ver foto no Anexo C

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    32

    acompanhamento dos processos de interveno arquitetnica e urbanstica na rea

    tombada.

    Apenas parte da populao local - elite intelectual - havia se conscientizado do

    valor do patrimnio, tanto que um dos trabalhos iniciais do IPHAN em Gois foi de

    conscientizao da populao que habitava o centro histrico e seu entorno. De

    acordo com Delgado(2003, p.444) as pessoas,

    ...passavam a ter que respeitar a legislao federal que regula a proteo do patrimnio e impe aos proprietrios que qualquer modificao dos imveis deva ser previamente discutida e aprovada pelo IPHAN, estando sujeita a uma srie de restries a fim de evitar a descaracterizao do bem tombado.(...)

    Diante da indignao das pessoas que chegavam lhe dizendo que a casa minha, porque no posso mexer ? Gustavo Coelho considera que o fundamental foi mostrar disposio para dialogar, explicar as razes das restries e negociar at chegar num consenso.

    A arquiteta Maria Cristina Portugal assumiu a direo da 17a. Sub-Regional

    do IPHAN em 1986 at 1997. Na sua gesto, destaca a implantao do projeto de

    educao patrimonial Conhecer para Preservar, Preservar para conhecer, com o

    objetivo de estimular a difuso e a apropriao do conhecimento contido e gerado

    pelo patrimnio cultural (Delgado, 2003, p.446). Este projeto realizado todos os

    anos em parceria com a Secretaria de Educao do Estado de Gois. O pblico alvo

    so alunos da 1a. fase do Ensino Fundamental, so desenvolvidas vrias atividades

    artsticas e de pesquisa que levam os alunos no s a valorizar, como tambm

    conhecer tudo que se refere ao Patrimnio: passeio pelo centro histrico, visitao

    ao museus, oficinas, exposies em sala de aula, etc.

    Dentro deste Projeto foi desenvolvido o Projeto Fogareuzinho38 (rplica da

    Procisso do Fogaru) pela Escola Letras de Alfenim, que tambm tem como lema a

    Educao Patrimonial que visa conhecer para valorizar e preservar a histria e a

    cultura local.

    38 Ver Anexo H.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    33

    Salma Saddi Waress de Paiva, vilaboense e historiadora, em 1997, assumiu

    a direo da 17a. Sub-Regional do IPHAN. Salma passou a ter, alm das

    responsabilidades normais do cargo, o compromisso de lutar pela causa da

    conquista do Patrimnio da Humanidade para Gois, fazendo parte do Movimento

    Pr-Cidade de Gois Patrimnio da Humanidade. O Movimento Pr-Cidade de Gois

    foi formado por pessoas interessadas em transformar Gois em Patrimnio da

    Humanidade, composto por 40 entidades vilaboenses, como: igrejas catlicas e

    evanglicas, maonaria, grupos de jovens, museus, IPHAN, prefeitura e governo do

    estado, foi concretizado em novembro de 1998. Brasilete Caiado foi aclamada

    presidente, vice-presidente o empresrio Leonardo Rizzo, Antolinda Baa Borges

    com Joo Domingos Pereira, os tesoureiros e Jane de Alencastro Curado, a

    secretria.

    No incio da dcada de 90, do sculo XX, o ex-prefeito da cidade de Gois,

    Joo Batista Valim, teve idia de transformar Gois em Patrimnio da Humanidade.

    Posteriormente, o escritor Bernardo lis, com a mesma idia entregou um ofcio ao

    ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, numa visita que o ento

    presidente fez a Gois. Bernardo Elis solicitou que o presidente abraasse a causa.

    Tanto o prefeito quanto Bernardo Elis tiveram iniciativas mais isoladas, contrariando

    a elite local, os empresrios, membros de Entidades que resgatam as tradies

    locais e que no abraaram a causa, por isso, no obtiveram sucesso.

    Suzana Sampaio, representante do Conselho Internacional de Monumentos e

    Stios (ICOMOS)39 no Brasil, visitou Gois, em 1997, sugerindo diretora do IPHAN,

    Maria Cristina Portugal, que fizesse uma campanha em prol de Gois, com o objetivo

    de torn-la Patrimnio da Humanidade. A idia foi acatada e Suzana foi considerada

    a fada madrinha do Movimento Pr-Cidade de Gois. Em 1998, o ento governador

    39 O ICOMOS uma associao civil, no governamental, ligada a UNESCO, Com sede em Paris, conta com 5.480 associados em 87 pases, organizados em 89 comits nos cinco continentes. No Brasil o ICOMOS atua desde 1978. Nos pases membros, o ICOMOS desenvolve ampla atividade nos campos doutrinrios formao, publicaes, turismo cultural e arqueologia, entre outros -, alm de desenvolver tcnicas, princpios e polticas de conservao, proteo e reabilitao do patrimnio Cultural.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    34

    do Estado de Gois, Marconi Ferreira Perillo Jnior, solicitou formalmente ao ministro

    da Cultura, a candidatura de Gois na UNESCO. Neste mesmo ano:

    1. Foi realizado em Gois o 1o. Seminrio Cultural, turstico e

    Ambiental, o qual considerado o embrio do Movimento Pr-Cidade de Gois. O

    objetivo do seminrio foi conscientizar as pessoas da Cidade de Gois sobre as

    potencialidades tursticas, culturais e artsticas da antiga capital e tambm apontar os

    pontos negativos que deveriam ser corrigidos.

    2. Em dezembro de 1998, Siron Franco criou a logomarca do

    Movimento Pr-Cidade de Gois Patrimnio da Humanidade, que simbolizava a

    Serra Dourada nas cores da Bandeira do Estado.

    Em 1999, liberada para Gois uma verba de R$ 140 mil reais, pelo

    Ministrio da Cultura e R$ 100 mil reais pelo governo do Estado, por meio da

    Agncia Goiana de Cultura, para elaborao de um Dossi, exigncia do ICOMOS,

    com inventrio dos bens mveis e imveis da Cidade de Gois. O documento,

    Dossi - Proposio de Inscrio da Cidade de Gois na Lista do Patrimnio da

    Humanidade foi um trabalho realizado com a sociedade vilaboense e a participao

    institucional da Prefeitura Municipal, do Movimento Pr-Cidade de Gois Patrimnio

    da Humanidade, do Governo do Estado de Gois e da 14a. Superintendncia

    Regional do IPHAN.40 Maria Cristina Portugal diz que a comunidade colabora muito,

    preocupa-se com a preservao e tudo isso contribui para a cidade manter-se como

    est.41 Na realidade, sabe-se que no bem a sociedade vilaboense ou que a

    comunidade colabora muito, pois, sociedade, significa a populao no geral e

    comunidade pressupe toda a sociedade que tem a mesma identidade e que

    comunga as mesmas idias. No foi o que aconteceu com a Cidade de Gois,

    quando do projeto, o qual tornou-se um discurso laudatrio, j que as pessoas da

    periferia e mesmo do centro histrico, no sabiam sequer o que estava se passando

    na Cidade.

    40 Folder: Gois, um Patrimnio da Humanidade. 14a. Sub-Regional do IPHAN, 2000. 41 Depoimento extrado do Jornal O Popular. Goinia, 28-jun-2001.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    35

    Mesmo assim, os grupos da Cidade prepararam e formalizaram, junto

    UNESCO, o pedido para obteno de ttulo Patrimnio Histrico e Cultural da

    Humanidade, sendo entregue ao rgo Mundial os seis volumes do Dossi em junho

    de 1999 pelas mos do ex-superintendente regional do IPHAN, Marco Antonio

    Galvo.

    O Dossi documento-relatrio abordou diversos aspectos da cidade de

    Gois: histricos, culturais, geogrficos, cartogrficos, religiosos, patrimoniais,

    memoriais. Conforme (Delgado, 2003, p.447), No Dossi de Gois, (...) configuram-

    se diversas sries discursivas que compem o campo do patrimnio e circunscrevem

    a ao do IPHAN em Gois. Apresenta-se no seu menu principal:

    1o. Formulrio da UNESCO

    2o. ANEXO I: A - Cartografia antiga e atual;

    B - Zona Tampo Paisagem Serra Dourada

    C - A Vila Fotos Antigas e Atuais

    3o. ANEXO II: A - Gois e a ocupao do Brasil Central;

    B - Gois: histria e cultura

    C - Evoluo urbana da Cidade de Gois

    D - Viajantes

    E - Legislao

    F - Bibliografia

    4o. ANEXO III: A - Inventrio dos bens imveis

    B - Inventrio dos bens mveis e integrados

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    CARNEIRO, K. C.

    36

    5o. ANEXO IV: Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    Neste ltimo anexo Inventrio Nacional de Referncias Culturais, esto 13

    entrevistas das 90 que foram realizadas sobre o contexto scio cultural da cidade.

    No apresentam o critrio da escolha, mas os escolhidos so membros de alguma

    Entidade ou Instituio ou Associao da Cidade, como OVAT, Associao dos

    artesos, Igreja Catlica, da Educao, Associao Beneficente de Santa Luzia,

    alm de uma moradora da antiga casa de Bartolomeu Bueno, um mdico e um

    historiador (que no vilaboense e nem reside na cidade). Os entrevistados foram:

    Frei Marcos, Dr. Aderson Coelho, Brasilete Caiado, Jaime Costa, Paulo Bertran,

    Elder Camargo, Maria Abadia, Marlene da Veiga, Seila M Vieira, Marlene Vellasco,

    Alice Noronha, Evandira da Glria e Goiandira do Couto. Muitos destes so os

    gestores das Organizaes Culturais da Cidade. Cada entrevistado mostrou a sua

    verso sobre Gois, fazendo com que o Dossi apresentasse alguns valores

    culturais em detrimento de outros que no consideram importantes. Os

    entrevistados relatam sua vivncia cotidiana de costumes, tradies, as histrias e

    lendas que guardam na memria, os sentimentos e opinies sobre a rea tombada e

    o ambiente natural.42

    Em meio as entrevistas selecionadas, est a figura de uma grande artes da

    cidade, Dona Alice Noronha, que responde a pergunta do entrevistador sobre o

    Patrimnio:

    _ Acha que a cidade deve ser Patrimnio Mundial da UNESCO? Por qu? _ Eu acho sim, (...) o povo daqui t tendo conscincia que ser uma boa pra cidade. S que eu acho que tem que ser mais divulgado. O pessoal que est trabalhando pra que Gois receba este ttulo tem que sair e conversar com o pessoal mais humilde e falar o valor deste ttulo...43

    42 Dossi Proposio de Inscrio da cidade de Gois na Lista de Patrimnio da Humanidade. IPHAN e FUPEL. CD- Room.1999. Inventrio Nacional das Referncias Culturais - Apresentao, p. 01. 43 Dossi Op. Cit. Inventrio Nacional de Referncias Culturais Entrevistas Selecionadas Alice Noronha. p. 15/16.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    37

    com muita sensatez e clareza que Dona Alice Noronha comenta que os

    grupos organizadores precisam divulgar os acontecimentos, principalmente, ao

    pessoal mais humilde, com isso, mostra que as pessoas no tm tanta conscincia

    da importncia do ttulo de Patrimnio da Humanidade. Mas o mais interessante do

    dilogo perceber que o pessoal que est trabalhando corresponde aos grupos

    que cuidam da cultura vilaboense , ou seja, da cultura da elite vilaboense.

    Sobre a concentrao do projeto nas mos de grupos elitizados, Cancline

    (1997, p.160/1) afirma:

    ... o patrimnio o lugar onde melhor sobrevive hoje a ideologia dos setores oligrquicos (...) Foram esses grupos (...) os que fixaram o alto valor de certos bens culturais: os centros histricos, a msica clssica, o saber humanstico. Incorporaram tambm alguns bens populares sob o nome de folclore.

    Para obter o ttulo de Patrimnio da Humanidade, alm do Dossi, outras

    exigncias tiveram que ser atendidas pela Cidade de Gois, tais como: sinalizao

    urbana e turstica, fiao subterrnea, aplicao de polticas de conscientizao

    ambiental, e acolhimento, atravs de eventos, de uma quantidade mnima de turistas

    e visitantes a cidade.

    Como forma de atender todas as exigncias da UNESCO, foi criado um

    evento para atrair um nmero considervel de turistas, ento, em 1998, foi pensado

    e projetado O Festival Internacional de Cinema e Vdeo Ambiental o FICA, fruto do

    projeto idealizado por Lus Felipe Gomes, Jaime Sautchuk e Adnair Frana.

    Colocado nas mos de Nasr Chaul, o ento presidente da Agncia Goiana de

    Cultura, que fez questo de transformar a idia em realidade, num verdadeiro painel

    multicultural de Gois. Esse se tornou um dos projetos prioritrios do Governo do

    Estado de Gois.

    O projeto foi apresentado comunidade vilaboense 30 dias antes da

    realizao do evento, em reunio na secretaria Municipal de Cultura, da qual

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    38

    participaram representantes da comunidade e da equipe indicada para trabalhar em

    sua produo. Apesar de no ter havido um trabalho de envolvimento e divulgao

    junto comunidade, o primeiro FICA acabou gerando expectativas no comrcio e no

    meio cultural local. Mas aconteceu, meio alheio populao local tornando a Cidade

    de Gois apenas um palco de apresentaes artsticas.

    A primeira edio do Festival foi realizada no inicio do ms de junho de 1999,

    durante as comemoraes da Semana do Meio Ambiente. O Festival fomenta a

    criao cinematogrfica voltada para a preservao do meio ambiente e, ao mesmo

    tempo, estimula a criao regional na rea de cinema e vdeo.

    O FICA mais que um evento, um verdadeiro encontro das aspiraes humanas:o talento da alma e o respeito pelo ambiente em que vive. Por isso, o cinema que tem como temtica o meio ambiente uma arte diferenciada, de compromisso, de responsabilidade atual e de futuro.44

    No dia 27 de junho de 2001, na sede da UNESCO, em Paris, foi feita a

    concesso para Gois receber o ttulo de Patrimnio Artstico e Cultural da

    Humanidade. A proposta foi avaliada por 8 membros, em reunio fechada. Neste

    mesmo dia, deram o parecer favorvel Gois recebeu o to esperado ttulo.

    No ano de 2004, na VI edio do FICA, foi estabelecida uma parceria entre a

    AGEPEL e o IPHAN com a finalidade de delinear regras para evitar a poluio visual

    do Patrimnio da Humanidade, mantendo a integridade visual do Centro Histrico da

    Cidade de Gois critrios como o tamanho e os locais para fixao de material

    publicitrio. Esse acordo ficou estabelecido em legislao.45 Alm disso, o teatro So

    Joaquim tambm recebeu melhorias. Nele foi instalado um novo projetor que

    pertenceu ao Palcio das Esmeraldas e ao cinemo, o espao foi ampliado para

    comportar 800 pessoas.

    44 FICA e cidade de Gois so patrimnios nossos. Jornal O Popular. Goinia, 6-jun-2001, p.2. 45 AGEPEL:Agencia Goiana de Cultura publicado em seu caderno de imprensa.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    39

    Enfim, O festival inaugurou uma nova era para o Estado e tambm para a

    cidade de Gois, tendo como foco central o cinema com carter ambiental, mas

    tambm um acontecimento de mltiplas dimenses. Mobilizam todas as ramificaes

    da cultura, tornando-se um amplo espao onde circulam informaes, arte e muita

    gente que vive uma rotina, de modo que a histria e o presente se encontram em

    uma prazerosa ebulio,46 tornando mais visvel a insero da Cidade de Gois no

    mundo globalizado. Isso fez que o sonho de alguns vilaboenses de se tornarem

    modernos como Goinia se realizasse confrontando o passado com a modernidade,

    o lento com o rpido, o velho com o novo.

    O Festival atingiu vrios objetivos, como:

    Completar dois dos quesitos exigidos pela UNESCO para pleitear o ttulo

    de Patrimnio da Humanidade: trazer para Gois um grande nmero de

    turistas e visitantes e concretizar a populao da proteo ambiental.

    Valorizar a Cultura do povo vilaboense e goiano.

    A citao abaixo destaca a importncia do FICA:

    Se no fossem todas as questes de necessidade de conscientizao acerca do problema ambiental no mundo, sobre o quanto os impactos ambientais nos afetam cotidianamente, (...) ainda assim teramos n motivos para a realizao do Festival Internacional de Cinema e Vdeo Ambiental (FICA). O investimento ultrapassa o Festival porque se trata de investimento em gente. (...) Pessoas que respeitam o passado, gostam e preservam suas razes.

    E, a cada vez que a sua cultura manifesta, pode-se perceber quem essa gente. Por isso o FICA no s um festival. de vdeo e de cinema. artstico. ambiental. Mas ainda mais... mais um caminhar no rumo do crescimento intelectual e humano. (...)

    O FICA , sem dvida, um grande feito, mas tem sido realizado mediante uma poltica (...) que se desenvolve em duas frentes: cultural e ambiental47. (...) prev o resgate das razes culturais, o investimento no potencial cultural, a interiorizao e descentralizao da cultura, incentivos culturais, preservao do Patrimnio Histrico e Artstico, respeito e preservao dos costumes e tradies...48

    46 AGEPEL op cit. 47 As partes em negrito so grifos meus, para que se perceba a importncia do valor cultural durante o FICA. 48 IDENTIDADE e a vida de um povo. Jornal O Popular. Goinia, 6-jun-2002, p.2.

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    40

    1.2.2. Futuro: Valor ao Turismo

    Turismo vem do latim tournos dando a idia de giro, viagem circular, de

    algum que sai e volta ao ponto de partida. A palavra turismo foi empregada pela

    primeira vez na Inglaterra por volta de 1760. A esta, foram acrescentadas os sufixos

    ISTA, para designar pessoa e ISMO, para movimento, conforme consideraes

    de Leandro (1996, mimeo).

    Os turistas viajam de um lado para outro por motivos diversos, desde que no

    seja para exercer atividades remuneradas. O que hoje se chama de turismo surgiu a

    partir da Revoluo Industrial. O caos provocado pela industrializao, no sc. XIX,

    nas grandes cidades europias, como Londres e Paris, levou no s a burguesia,

    mas tambm o operariado a buscar o descanso, o lazer nas frias longe de suas

    residncias.

    Estamos na era da Globalizao, que tem transformado o mundo. De acordo

    com Harvey (1992), houve uma compresso do tempo e do espao, significando

    que as distncias e o tempo se encurtaram, pois em alguns segundos podemos

    comunicar em qualquer parte do mundo ou at mesmo atravessar o mar em algumas

    horas.

    A globalizao, as inovaes tecnolgicas e as comunicaes sociais so

    motivadoras e/ou facilitadoras atividade turstica, ou seja, um mundo com fronteiras

    diludas, transnacionais, facilita aos turistas atuais deslocarem-se para outros locais

    do mundo. O turismo representa 13% dos gastos dos consumidores de todo o

    mundo, uma das atividades do setor tercirio que mais cresce no planeta,

    movimenta cerca de U$ 3,5 trilhes. Alguns pases perceberam o potencial do

    turismo como gerador de emprego e renda. Conforme Dutra (2003), o meio lcito

    que mais movimenta dinheiro(...). Tal ramo de fundamental importncia para o

    profissionalismo do setor turstico e necessrio para a economia do Brasil, pas com

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    41

    excelente potencial Turstico. Desse modo, o turismo poder ser uma das principais

    atividades humanas deste novo sculo.

    As pessoas saem em busca da natureza, onde encontram ambientes naturais,

    o verde, a montanha, os rios, as cachoeiras, o mar, as trilhas ecolgicas e muitos

    outros atrativos. Hoje h grande procura pelos hotis fazenda. Este tipo de turismo

    pode ser denominado de turismo rural ou ecolgico. Buscam no s a natureza como

    outras cidades, principalmente do interior, fugindo dos centros urbanos e atrados

    pelo extico. Ainda conforme Dutra (2003), a tendncia da humanidade, nos ltimos

    sculos, de se concentrar nos grandes ncleos urbanos, e, assim, criou-se a (...)

    procura de uma fuga do cotidiano catico das cidades em busca de uma paisagem

    paradisaca ou buclica...

    Mesmo em um mundo globalizado ainda sobrevive a cultura de cada lugar e

    cada vez mais se pensa no local, nos diferenciais, sendo uma das formas de manter seus costumes e de resistir modernidade. Canclini (1998) apud Maia (2001, p.148),

    afirma que nem a modernizao exige abolir as tradies, nem o destino dos grupos

    tradicionais ficar fora da modernidade.

    Nas cidades, os turistas buscam cada vez mais um produto diferenciado, a

    cultura. De acordo com Castroggiovanni (2001, p.7), as cidades,

    ...so espaos privilegiados quanto concentrao de atraes, servios, simbolismos e produes culturais. O papel que assumem na etapa ps-industrial e da globalizao econmica tem possibilitado (...) revitalizao de reas adormecidas, mas com grande expressividade na formao histrica dos lugares.

    Trabalhar o trinmio: cidade, cultura e turismo, segundo Gastal (2001, p.38),

    envolve aspectos que levam a cidade de Gois, uma cidade histrica a valorizar a

    sua cultura, suas tradies e que, como j foi dito, em 2001, tornou-se Patrimnio da

    Humanidade. ...cada cidade singular, oferece um espetculo diferenciado,

  • CARTOGRAFIA DE GOIS: PATRIMNIO, FESTA E MEMRIAS

    CARNEIRO, K. C.

    42

    centraliza uma srie de possibilidades que criam um grande poder de seduo. E a

    cidade como ...integrao de produtos tursticos responde ao crescente interesse

    pelas questes culturais e patrimoniais.(Castroggiovanni, 2001, p.8). Assim,

    percebe-se o carter turstico da Cidade de Gois, foi se desenvolvendo lentamente

    ps-transferncia da capital.

    Em 1965, na cidade de Gois, um grupo de amigos, mais especificamente de

    alguns estudantes, filhos de famlias tradicionais, elite, alunos da professora e artista

    Goiandira Aires do Couto, faziam reunies para discutir os costumes da cidade, as

    tradies, queriam que a cidade fosse realmente reconhecida, precisava

    (re)conquistar espao nacionalmente e atrair turistas. De acordo com depoimento da

    referida professora, a formao do grupo foi pela amizade e pelo idealismo. Mas por

    trs desse idealismo existem os prprios interesses econmicos -. O grupo tomou

    forma e foi denominado de Organizao Vilaboense de Artes e Tradies OVAT

    entidade civil, estatutria e privada. Conforme Delgado (2003, p.418), os fundadores

    da OVAT consideram-se herdeiros do movimento antimudancista e a concebem

    enquanto institucionalizao do movimento de ao cultural organizado na esteira

    da reao da mudana da capital para Goinia. Como j foi destacado

    anteriormente, pode-se dizer que no inconsciente dos vilaboenses est o desejo de

    reencontrar a autoridade perdida e vingar da humilhao experimentada com a

    transferncia da capital.

    Um dos principais fundadores da Organizao, Elder Camargo dos Passos49,

    registrou em uma de suas obras o papel da OVAT, que valoriza as tradies em

    funo do turismo e da renda que gera.

    Em 1965, juntamente com outras pessoas devotas cultura, criamos a OVAT, (...) com objetivo de estudar, levantar, realizar e divulgar as tradies de Vila Boa, visando tornar nossa cidade um plo turstico, explorando a parte histrica e cultural que somente ns detemos, por ter sido o incio da colonizao de nossa terra e ter sido capital at 1937. Com isso tudo

    49 advogado, segundo Delgado: ...notabilizou-se como historiadorda cidade ao proferir palestras, escrever livros, organizar folders tursticos, alm de fornecer informaes para trabalhos a respeito da Cidade de Gois.(Delgado, 2003: 421)

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    permanecia intacto, precisando apenas organizao e explorao, propiciando uma nova arrecadao com base no turismo e promovendo uma maior comercializao do artesanato e gastronomia, criando uma nova fonte de renda para o municpio e seus habitantes (Passos, 1997, p.18).

    O Departamento de turismo da Prefeitura de Gois, espcie de secretaria do

    governo municipal, foi criado em 01/03/1967, com objetivo de explorar as vastas

    potencialidades tursticas daquela regio. O sr. Sebastio Peleja foi designado diretor

    do Departamento e o sr. Octo Marques seu secretrio.50 Antes mesmo de Gois se

    tornar Patrimnio Nacional j havia a preocupao com o turismo local. Alguns bens

    isolados tinham sido tombados na dcada de 50, mas somente no final da dcada de

    60 e incio da dcada de 70, que membros da populao local, como a OVAT, se

    despertaram para o interesse ao turismo, perceberam que poderiam aproveitar das

    riquezas arquitetnicas e culturais da antiga Vila Boa e transform-la em cidade

    turstica, o que mostra Borba (1998, p. 89),

    Enquanto cidade histrica, o turismo veio como conseqncia do processo de resgate da arquitetura colonial a existente. Associado ao aspecto arquitetnico, as festas tradicionais da cidade (o carnaval, a Semana Santa, entre outras) completam o atrativo para o desenvolvimento do turismo.

    O ano em que foi implantado o departamento de turismo em Gois o mesmo

    ano em que se inicia, aos moldes atuais, a famosa Procisso do Fogaru, ser

    trabalhado com maiores detalhes no decorrer dos prximos captulos, que uma das

    encenaes que ocorre na Semana Santa da cidade, sobre a Paixo de Cristo, (re)

    inventada pela OVAT e que foi amplamente divulgada pelos meios de

    comunicao51. Com isso, pode-se dizer que o turismo em Gois est amplamente

    50 Jornal O Popular. Goinia: 02-mar-1967. 51 Foi publicado em 1967 nos diversos jornais do Estado, consegui cpia de O Popular e Folha de Gois, divulgando que a Semana Santa em Gois ter comemoraes em nvo estilo. Inclusive em um dos jornais com a matria intitulada Gois prepara histria ao vivo da Paixo para a Semana Santa, diz que dois dos organizadores da Procisso do Fogaru falariam naquele dia na TV Anhanguera. (O Popular 02/03/67) significa que membros da OVAT estariam divulgando a Procisso do Fogaru e a cidade.

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    relacionado questo patrimonial e cultural, tanto no que tange ao Patrimnio

    Material como Imaterial.

    Gois se insere num contexto nacional, quando, justamente, na dcada de 70,

    houve uma mudana na idia que se tinha de Patrimnio, que no seria apenas os

    monumentos, o material, mas tambm a cultura do povo, o imaterial. Conforme

    mostra Mariani (1999, p. 165/6),

    A partir dos anos 70, as manifestaes populares, culturais e artsticas, passam a figurar entre o conjunto de bens representativos da identidade nacional, e selecionados pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. .......................................................................................................................... Com a mesma perseverana com que na fase herica do Patrimnio se perseguia a proteo dos monumentos arquitetnicos, nesse novo momento partiu-se para a mobilizao dos sujeitos sociais portadores das tradies e dos fazeres populares que, em sua diversidade, construiriam a nao. (...) Um projeto pela mobilizao, conscientizao das comunidades em torno de seus valores e tradies e, finalmente, pela insero dessas prticas na vida social e econmica, tornando-as vivas e duradouras.

    A OVAT passou a se responsabilizar por tudo que envolvesse as artes e as

    tradies da cidade. Dessa forma concretizariam seus sonhos de preservar a cultura

    e impulsionar o turismo. Como destaca Delgado (2003, p.404) ...os membros dessa

    instituio aparecem como pioneiros das iniciativas de fomentar o turismo,

    disputando com o IPHAN o poder de instaurar os efeitos materiais e simblicos da

    instituio do patrimnio da Cidade de Gois. o que diz o ex- presidente da OVAT:

    E assim foi, uma srie de (...), comemoraes, centenrio (...) da morte de Veiga Valle (...) de um artista tal. E ns fomos comeando a mostrar, trazia recitais, pessoal para apresentar nas igrejas e isso foi dinamizando tudo, foi criando essa ambincia que hoje temos a: a cidade como plo turstico, cultural, bem desenvolvido, bem, bem mostrado...(Passos apud Delgado, 2003, p. 426)

    Outro referencial, smbolo da cultura vilaboense e goiana, de atrao turstica

    em Gois a Casa de Cora Coralina. A partir de 1985, ano da morte de Cora

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    Coralina, foi criada a Associao Casa de Cora Coralina, entidade civil e privada,

    assim amigos, familiares e admiradores da poetisa mobilizaram-se para manter viva

    sua memria, suas idias e sonhos.52 Cora Coralina foi poetisa, escritora, doceira.

    Reconhecida nacionalmente, recebeu diversos prmios, inclusive da Unio Brasileira

    de Escritores.

    A Casa de Cora Coralina, a Casa velha da Ponte, foi restaurada em 1989, no

    ano do centenrio de Cora Coralina, tornando-se um museu e um grande centro

    cultural da cidade, ...os valores culturais atribudos Casa de Cora Coralina, (...)

    so heterogneos. (...) valores ao acervo da Casa de Cora, aos eventos culturais que

    nela acontecem, s obras da poetisa, poesia que ela escreveu e casa em que ela

    viveu(Moraes, 2002, p.109).

    Aps a sua inaugurao, a Casa de Cora Coralina em um ano recebeu mais

    de 150 mil pessoas.53 Alm de todo seu valor cultural, a Casa em si, ao lado da

    ponte, e quase dentro do Rio Vermelho tem uma esttica especial, que atrai muitos

    olhares.

    52 Dossi Op. Cit. Histria e Cultura, p. 60. 53 Ibidem.

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