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OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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Page 1: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA / ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

SANDRA TRINDADE MASCARENHAS

OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ! O FOGO TRANSATLÂNTICO DO ENCONTRO DE XANGÔ COM A

DANÇA DO BUGARABU

Salvador / Bahia 2007

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SANDRA TRINDADE MASCARENHAS

OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ! O FOGO TRANSATLÂNTICO DO ENCONTRO DE XANGÔ COM A

DANÇA DO BUGARABU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas das Escolas de Dança e de Teatro da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Fernando A. de Paula Passos Banca Examinadora: Prof. Dr. Renato Ferracini Prof.ª Dr.ª Suzana Martins

Salvador 2007

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Biblioteca Nelson de Araújo – UFBA

M395 Mascarenhas, Sandra Trindade. Okutá orun iná otá : o fogo transatlântico do encontro de Xangô com a dança do bugarabu / Sandra Trindade Mascarenhas. – 2007. 253 f. ; il. Orientador : Profº Drº Fernando Antonio de Paula Passos. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.

1. Dança 2. Etnografia. 3. Performance. I. Universidade Federal da Bahia.- Escola de Teatro / Escola de Dança. II. Título.

CDD – 793

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Dedico essa dissertação a Xangô - Kawo-Kabiyesilé! - por guiar meus passos; para meus pais, Gersy e Tácito, que intuitivamente apóiam estes passos e trânsitos desde sempre; para minha filha, Iana, companheira e parceira nos movimentos e trajetos da carreira profissional, no Brasil, na Holanda e na África.

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AGRADECIMENTOS

Aos Orixás! À Mãe Stella de Oxossi, Iya Odé Kayodê, por sua altivez, estabilidade e flexibilidade da flecha de Oxossi que lhe conferem atitudes inovadoras de adaptação entre o universo religioso, o feminino e a sociedade. Às admiráveis senhoras do Ilê Axé Opô Afonjá, pela amizade, disponibilidade e confiança. Dona Naná que me apresentou à Mãe Stella e Dona Detinha (Obá Gesin), que sugeriu para o trabalho de campo, a observação do ciclo das festas de Xangô. Ao Fayee Diona, companheiro dessa experiência em cruzamento, pelo tanto que este encontro nos ensinou a desfrutar das nossas diferenças e afinidades culturais. Ao Prof, Dr. Fernando Antonio de Paula Passos por lançar teorias desestabilizadoras e instigadoras de reflexões - os Estudos da Performance, os Estudos Pós-Coloniais e os Estudos Culturais – colaboração pertinente para a composição da escrita desse estudo crítico, enquanto memória e etnografia. Ao Lau Santos, parceiro na trajetória de vida transcultural, por me fazer perceber a arte e a teoria em um só caldeirão de ebulição e dirigir, com sua singular competência, minha performance na ocasião da defesa. Ao Prof. Dr. Vivaldo da Costa Lima pelas contribuições bibliográficas relacionadas à história do candomblé na Bahia e a fonográfica sobre o ritual do Bugarabu. Aos amigos e colegas de mestrado pelo carinho, atenção e contribuições pontuais, entre eles: Makarios Maia, Mônica Mello, Solange Miguel, Yolanta Rykawek, Edyala Iglesias, Wlad Lima, Ana Karine Jansen de Amorin, Adailton Santos, e particularmente à Nadir Nóbrega quem possibilitou o primeiro contato para o trabalho de campo no Ilê Axé Opô Afonjá. Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, em que destaco: O prof. Dr. Sérgio Farias pela dedicação incansável; Eliana Rodrigues, amiga, profissional paciente e ética, pelos conhecimentos e apoio concedido sempre que necessário; Suzana Martins, pelos esclarecimentos, contribuições bibliográficas e o testemunho do meu trabalho com Fayee na Holanda; Armindo Bião e Antonia Pereira pelas suas contribuições bibliográficas que abriram portas para um entendimento e percepção mais ampla da pesquisa acadêmica. Aos amigos incentivadores do meu interesse pela cultura negra; Rosângela Silvestre, centelha deste processo de identificação profissional; Mamour Ba, pela chama que acendeu e despertou o desejo de atravessar mares; e Augusto Omolu, com quem compartilhei os conhecimentos da Antropologia Teatral, em terras alheias. À Fundação de Auxílio à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), por tornar este projeto possível. À Banca Examinadora: Prof. Dr. Renato Ferracini e Prof.ª Dr.ª Suzana Martins.

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As pessoas de teatro sempre foram nômades; elas sempre viajaram com seus palcos nas costas, as exceções eram aquelas companhias contratadas por reis ou príncipes. Estas pessoas estavam imbuídas desta profissão, engajadas na relação com o espectador. Isto não é uma idéia de nação, nem tampouco de pátria, nem de sangue, nem de terra, nem de ideologias ou de crenças que dão sentido à sua profissão. Graças aos atores, o teatro sempre foi um lugar precário que mostrou as aflições da época, da sociedade e deles mesmos. Graças aos atores, o teatro foi o espaço paradoxal da liberdade que desmascarou a ilusão de que “nós somos uma cultura, nós somos uma nação”. (BARBA, Le training de l’acteur, 2000, pp. 89,90 Tradução Lau Santos)

Xangô é fogo, é ritmo, é movimento.

Mãe Stella de Oxossi

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RESUMO

O cruzamento que identifiquei entre as duas manifestações dançantes, o Xangô e o Bugarabu, atuou como impulso, ou melhor, como ‘fogo’ para a composição do presente trabalho, observado, percebido e vivenciado pelo meu corpo, a partir das experiências no Brasil, na Holanda e em Gâmbia.

Análises comparativas deste encontro revelaram, além das semelhanças rítmicas e gestuais, o que estas manifestações culturais têm em comum, o fogo da performance, metáfora fundamental para o desenvolvimento da hipótese do caráter transcultural dessas danças. Portanto, fogo e transculturalidade são aqui os focos principais. A transculturalidade será ressaltada, oportunamente, em dois aspectos no decorrer do texto: tanto no que se refere aos deslocamentos culturais que compõem o meu trajeto de vida, quanto às possibilidades de associações transculturais entre as danças de Xangô e do Bugarabu.

A pesquisa tomou corpo no diálogo entre este sujeito/objeto transcultural e as teorias escolhidas, que em seu entorno geraram problematizações, complexidades e urgências desse sujeito/objeto à procura ‘permanente’ de um lugar. Que corpo em trânsito é este?

A importância acadêmica da pesquisa requer um distanciamento tanto para a produção de conhecimento como para o fazer artístico. Logo, memória, etnografia e performance foram as abordagens que se evidenciaram, ‘gritaram’, na intenção de expor e dar voz às (trans)ligações e interconexões da referida experiência.

A fase referente à memória abrange os anos de 1995 a 2003, quando convivi, na Holanda e em Gâmbia, com o músico gambiense Fayee Diona e com a dança do Bugarabu - que leva o mesmo nome do instrumento. Fayee constatou a similaridade rítmica entre o Bugarabu e o alujá de Xangô, ponto de partida para a presente pesquisa. Esta experiência transcultural permeada de obstáculos e satisfações deflagrou nossas diferenças e semelhanças culturais e nos levou a realizar um trabalho singular que, por meio dos nossos alunos e espectadores, conseguiu alcançar culturas distintas na Europa.

O trabalho de campo abrange o ciclo das festas de Xangô no período de 29 de junho a 11 de julho, nos anos de 2005 e 2006, no terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, cujo patrono é Xangô. A ialorixá (mãe de santo) da casa, Mãe Stella de Oxossi foi o grande apoio espiritual para a pesquisa etnográfica.

O fogo, como urgência da memória e da etnografia, resultou na criação da performance, dirigida por Lau Santos, diretor de renome internacional. O movimento está na escrita. O fogo é movimento. A performance é uma atitude. A atitude aqui se expressa no ritmo, no encontro transatlântico de Xangô com o Bugarabu.

Palavras-chave: Xangô, Bugarabu, Fogo, Transculturalidade, Ritual.

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ABSTRACT

The cross between the expressions of dance, Xangô and Bugarabu, contributed as an impulse, or rather, ‘fire’ to the composition of this work, observed, perceived and experienced by and within this scholar’s body, starting from the experiences in Brazil, The Netherlands and Gambia.

Over the similarities of rhythm and gestures, comparative analyzes of this encounter revealed what both dances have in common, the performance’s fire, the fundamental metaphor for the hypothesis’s study of the transcultural character as regards these dances. Therefore, fire and transculturality are the principal focus here. In the course of the text, the transculturality will be emphasized in two aspects: referring to the cultural transits of my life trajectory, as well as referring to the possibilities of transcultural relations between the dances of Xangô and Bugarabu. The researcher’s body was drawn up in the dialogue between this transcultural subject and the theories chosen. This dialogue generated questions, complexities and urgencies about this subject/object that is often looking for a permanent place. Which ‘wanderer’ body is this one?

The academic importance of the research asks for a distancing from the object studied, regarding the production of knowledge, as well as to the artistic creation. Thus, memory, ethnography and performance were the approaches that showed themselves, ‘shouted’, in the intention to expose and give voice to the trans(links) and to the interconnections of such experience.

The memory phase includes the years from 1995 to 2003, when I used to work together with the Gambian musician, Fayee Diona, and the Bugarabu dance - which is called by the same name as the instrument - in the Netherlands and Gâmbia. Fayee noticed the rhythmic similarity between the Bugarabu and the alujá, one of Xangô’s rhythms, the starting point of the actual research. This transcultural experience lived through many obstacles and satisfactions exploded out our cultural differences and similarities, and led us to realize a singular work, which was able to reach different cultures in Europe, through our dance students and spectators.

The ethnographic fieldwork took place during the Xangô Festival, from 29th June to 11th July, in 2005 and 2006, at the Ilê Axé Opô Afonjá, ‘terreiro’, (house of afro Brazilian religion), whose patron is Xangô. The ialorixá (priestess) of the house, Mãe Stella de Oxossi, was the great spiritual support for the ethnographic research. The fire, as urgency of the memory, as well as the ethnography resulted in a performance, directed by Lau Santos, renowned director. The movement is in the writing. The fire is movement. The performance is an attitude. Here, the attitude expresses itself in the rhythm, in the transatlantic encounter between Xangô and Bugarabu. Keywords: Xangô, Bugarabu, Fire, Transculturality, Ritual.

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Ilustrações

Ilustração 1 - Bugarabu, Brikama, Gâmbia, janeiro 1996, Foto: Sandra Mascarenhas 15

Ilustração 2 - Sandra Mascarenhas, divulgação, Amsterdã, 2000. Foto: Fabíola Morales 22

Ilustração 3 - Esquentando o Bugarabu para aula, Almere, Holanda, 1999.

Foto: Sandra Mascarenhas 57

Ilustração 4 - Improvisação numa aula no Centro Cultural DeTulip em Amsterdã,

junho de 2002. Foto: Miryam Zilvold 81

Ilustração 5 - Gebouw Kostgewonnen 99

Ilustração 6 – Fayee na foto do prospecto de atividades artísticas do

Gebouw Kostewonnen exposto na ilustração 5 100

Ilustração 7 - Amarrados nos pulsos vemos os guizos (siwagness) a que me refiro no texto.

Foto do prospecto do Gebouw Kostgewonnen 101

Ilustração 8 – Bugarabu com suportes de madeira na terra, comício, Brikama, Gâmbia,

13/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas 110

Ilustração 9 – Chegada em Gâmbia, aeroporto de Banjul, 04 /01/1996. 111

Ilustração 10 - (a) Kankurang, festa em Bandulging , Gâmbia, 1996 –

foto Sandra Mascarenhas; (b) Oxossi, cartão postal 117

Ilustração 11 – (a) Mamapara, Brikama, Foto Sandra Mascarenhas;

(b) Zambiapunga, Salvador, Caminha Axé, 2000 117

Ilustração 12 – (a) Kumpoo, festa em Bandulging, 1996, foto Sandra Mascarenhas;

(b) Omolu (Verger e Rego, 1993, p.80); (c) Bumba meu boi, Silvio Essinger 118

Ilustração 13 - Apresentação das fotos na chegada de Donsekunda, Candion,

18/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas 121

Ilustração 14 - A referida refeição em Donsekunda, dia 18/01/ 1996. Foto: Sanjaya 122

Ilustração 15 - Local onde Fayee estudava o Bugarabu. Tronco sobre o qual os

instrumentos eram apoiados. Donsekunda, 19/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas 123

Ilustração 16 - Malan confeccionando os claps em Donsekunda, Candion,

20/01/1996. Foto: Sandra Mascarenhas 124

Ilustração 17- Fayee confeccionando o Bugarabu em sua casa, Kanifing,

Gâmbia, 07/01/1996. Foto Sandra Mascarenhas 133

Ilustração 18 (a) comício, Brikama, Gâmbia, 1996, Foto: Sandra Mascarenhas;

(b) Sandra, Dakar, Senegal, 1998, Foto: Iana Mascarenhas 135

Ilustração 19 - (a) Mãe Aninha, primeira ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá em 1909

(b) Mãe Stella de Oxossi, atual ialorixá deste Terreiro. Foto do site do Ilê Axé Opô Afonjá 168

Ilustração 20 - (a) Casa de Xangô e; (b) Barracão de festas do Ilê Axé Opô Afonjá

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Foto do site (2006) http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1322/ 181

Ilustração 21 – Performance no Oosterpark, Amsterdã, 1996. Foto Sandra Mascarenhas 234

Ilustração 22 - Segundo dia do ritual da colheita do arroz – Prospecto CD coleção Prophet 236

Ilustração 23 – Lebounaye: sacrifício do bode. Foto coleção Prophet 265

Ilustração 24 - Lebounaye: mulheres dançam no primeiro dia. Foto coleção Prophet 265

Ilustração 25 - Mapa do Senegal e Gâmbia – região de Casamance, Senegâmbia, site

Kassoumay, 2006 266

Ilustração 26 – (a) Vinho de palma chamado bunnuk. Site Kassoumay, 2006;

(b) Sandra Mascarenhas aprendendo a fazer o funil – kaboonyinak – para retirar o vinho

da palmeira, dia 04/01/1996 268

Ilustração 27 - (a) Sabar, dança tradicional do Senegal; (b) Dança Ekunkun de Casamance.

Ambas do site Kassoumay, 2006. 272

Ilustração 28 (a) Bombolong, instrumento de transmissão de mensagem; (b) Bugarabu. 273

Site Kassoumay, 2006

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SUMÁRIO

Dedicatória 04

Agradecimentos 05

Epígrafe 06

Resumo 07

Abstract 08

Ilustrações 09

1. APRESENTAÇÃO – Àkoberé 16

2. INTRODUÇÃO – O Caminho do Fogo Transatlântico 34

2.1 Caminho antes do Encontro com o Bugarabu 34

2.1.1Mato Grosso, Três Lagoas uma passagem e Bela Vista um rio 42

2.1.2 Rio de Janeiro, Angra dos Reis, um mar 42

2.1.3 Paraná, Londrina uma terra roxa 43

2.1.4 Bahia, o fogo e os Orixás em meio à lua, às estrelas,

aos coqueiros, ao mar e às ladeiras de Salvador 46

2.1.5 Santa Catarina, Florianópolis, “um pedacinho de terra perdido

no mar” e o encontro entre o mar, o rio, a lagoa, a cachoeira, as dunas,

os morros e as pedras 51

2.1.6 Passagem por Londrina, o lago Igapó e depois Körsvag na Suécia 53

2.1.7 Körsvag na Suécia foi como um trampolim para chegar a

Amsterdã 55

2.2 O Encontro com o Bugarabu - Amsterdã: ponto de conexão da

percepção dançante do fogo “transatlântico” entre Salvador e

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Senegâmbia 56

2.3 O vislumbre do encontro da dança de Xangô com a dança

do Bugarabu 58

2.3.1 Amsterdã, Gâmbia e Senegal 58

2.3.2 Bahia, o fogo, o eterno retorno à Salvador, um porto (in)seguro,

uma encruzilhada 60

3. CAPÍTULO I – Da Centelha ao Fogo: Memória 63

3.1 Prenúncios do fogo em diálogo com as considerações teórico-

conceituais sobre: Performance, Antropologia Teatral e Arte

Africana 64

3.1.1O Balé, o rastro da centelha 64

3.1.2 O rastro indígena 67

3.1.3 Os pés descalços e o prenúncio do fogo de Xangô 68

3.1.4 Florianópolis, o fogo, o êxtase, a vertigem na aula com

Mamour Ba 70

3.1.5 Vi o fogo emergir da água no lago Igapó em Londrina 78

4. CAPÍTULO II - Reflexões sobre a Memória do Bugarabu 99

4.1 Amsterdã, o primeiro encontro com o Bugarabu 99

4.2 África - A festa em Kanifing, Gâmbia, 06 de janeiro de 1996 110

4.3 O processo de trabalho com Fayee - 1995 a 2002 131

a) Gâmbia 132

b) A volta para Amsterdã – 1996 a 2002 134

4.4 A experiência do Bugarabu na volta à Bahia 145

5. CAPÍTULO III – A Etnografia do Fogo 153

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5.1 A Fala 153

5.2 Os Orixás atravessam o Atlântico 161 5.2.1 Mãe Stella de Oxossi narra o candomblé em Salvador 161 5.2.2 Mãe Stella de Oxossi conta a história do Afonjá 167

5.2.3 Xangô 168

5.3 Tríade: Dança, Escrita e Feminilidade trazem a memória e a

vivência do fogo 174

5.4 Xangô - Pesquisa de Campo no Ilê Axé Opô Afonjá 178

5.4.1 Dia 25/06/05 - O encontro com Dona Detinha no Ilê Axé Opô Afonjá 179

5.4.2 Dia 28 de junho de 2005 – O dia que acendeu a fogueira de Airá (fogo) 187

5.4.3 ...Um ano depois - Dia 28/06/2006 – Fogueira de Airá 189

5.4.4 Dia 29 de junho de 2005 – Festa Wabogun 190

5.4.5 ...Um ano depois - 29/06/2006 - Festa do Ajerê 192

5.4.6 Dia 02 de julho de 2005 – Festa Etá 195

5.4.7... Um ano depois dia 02 /07/2006 - Festa de Etá (Três dias de Xangô) 195

5.4.8 Dia 05 de julho de 2005 – Festa Efá (seis dias de Xangô) 197

5.4.9... Um ano depois dia 05/07/2006 Festa de Efá (Seis dias de Xangô) 202 5.4.10 Um ano depois dia 11 de julho de 2006 – Festa Iyamassé

(mãe de Xangô-terra) 208

5.4.11 Os encontros com Mãe Stella de Oxossi 220

a) 24/07/2006 – Casa de Xangô 220

b) 28/07/2006 – Casa de Mãe Stella 224

c) 16/03/2007 – Casa de Mãe Stella 227

6. CAPITULO IV - Okutá orun iná otá - O fogo que vem do céu

se trans-forma em pedra - 228

6.1 Nos caminhos da encenação 228

6.2 Estudo crítico da encenação 229

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7. CAPÍTULO V - CONSIDERAÇÕES FINAIS - Àkori 245

7.1 Questões que permearam a pesquisa 245

7.2 Traços e rastros do encontro de Xangô com o Bugarabu 246

8. GLOSSÁRIO 254

9. BIBLIOGRAFIA 257

10. ANEXOS – Fontes Complementares 262

10.1 Ritual da colheita do arroz em Casamance 263

10.2 História de Casamance via site Kassoumay 266

10.3 Senegâmbia via site Wikipedia 274

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Ilustração 2 - Bugarabu, Brikama, Gâmbia, janeiro 1996, Foto: Sandra Mascarenhas

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1. APRESENTAÇÃO – Àkoberé 1

Ago! Kawo-Kabiyesilé!2

Dedicar esse trabalho e pedir licença na apresentação à divindade das terras

iorubanas de Oyó, Xangô, é uma homenagem a este, o rei da justiça e do fogo, além de

ser o motivo que me estimulou a intitular o começo e o fim desta dissertação, com as

palavras em ioruba: àkoberé e àkori. 3

Passeio pelo desenrolar das reflexões de Siegel (1993) a respeito de

críticos, dançarinos, cuja idéia de arte se configura como uma fusão de

técnicas e idéias, verbais e não verbais, imagens, sensações e sentidos. E

o que acontece? A dançarina e a crítica das próprias criações e

aprendizados ficam mexidas. É difícil fragmentar facetas que

delimitariam: onde está a dançarina? Onde está a crítica? Afinal,

observar, dançar, participar e conseqüentemente transformar, requisita

uma atitude crítica que a seguinte reflexão ilustra: antes de tudo, uma

brasileira se sentindo [o (a) outro (a)] ao morar na Holanda, de 1995 a

2003. Depois, ao contrário da timidez do crítico que se esquiva de

aprofundar-se nas coerências ou entendimentos das danças não-euro-

americanas, como nomeia Siegel, eu não sentia timidez. Sentia-me

1 Em ioruba àkoberé significa começo. (FONSECA, 1995, p. 262). 2 Em ioruba ago significa com licença. Kawo-Kabiyesilé! Venham ver o rei descer sobre a terra! (VERGER; REGO, 1993, P.222) 3 Àkori quer dizer conclusão. (FONSECA, 1995, p. 38)

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impulsionada, sem melindres, a ir fundo nas identificações e

desidentificações que saltavam aos meus olhos e demais sentidos ao

observar, experimentar e analisar a dança africana do Senegal e de

Gâmbia, depois daquele primeiro encontro com Fayee. Devo dizer que o

que escrevo hoje é fruto de uma reflexão atual em cima das atitudes e

pensamentos vivenciados no momento da experiência com as danças

referidas, a partir de um fazer próprio da dança brasileira. Ao estar lá

eu vivi, questionei e argumentei, mas só agora reflito acerca daquelas

reflexões e esse fato tem contribuído muito para visibilizar as âncoras e

as transformações ocorridas. Eram danças exóticas de uma cultura

exótica? Sim, lindas. Eu, fruto da colonização da diáspora, aprendera a

olhar a África do outro lado do Atlântico no exotismo de nossos mitos

históricos. Mas com certeza, coisas além do exotismo me arrebataram...

Do deslocamento do gesto na dança surge o rastro. O rastro é a

constatação do desaparecimento e da efemeridade da dança, que trago

para o presente através da escrita. Utilizar os meios formais

acadêmicos torna-se oportunidade e lugar precioso, de onde podem

emergir as impressões transculturais em ebulição, que foram

experimentadas durante os deslocamentos culturais que percorri, em

que destaco as danças do Bugarabu, de Gâmbia, e de Xangô, da Bahia,

transformadas em expressões culturais, simbolizadas pelo fogo no meu

corpo dançante. O lugar do confronto, em outras palavras, as brechas

entre a experiência, a observação e a trans-criação acadêmica é o lugar

que a subjetividade complexa do meu pensamento aspira estar e

corroborar suas valências. Um caminho e não o caminho. 4

Esta dissertação se insere na área de Dança, dentro da linha IV do Mestrado em

Artes Cênicas, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - PPGAC/UFBA –

4 Os parágrafos destacados com a fonte Lucinda Calligraphy referem-se às reflexões da memória, o que será mais bem explicado adiante.

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intitulada Performance e Fronteiras. Fui orientada pelo Prof. Dr. Fernando Antonio de

Paula Passos. Neste projeto, lanço mão de uma abordagem etnográfica da dança de

Xangô em diálogo com a memória da dança do Bugarabu. Esta escrita se compõe desta

apresentação, uma introdução, cinco capítulos, glossário, bibliografia e anexos, tendo

como complemento da performance final da defesa pública, dia 23 de maio de 2007,

uma ‘encenação’.

‘Encenação’ substitui algumas vezes o termo performance no corpo do texto.

Este foi um termo utilizado pelo Prof. Dr. Fernando de Paula Passos durante a disciplina

que ele ministrou no segundo semestre de 2006 no PPGAC (UFBA), intitulada:

Ence/nação: “Escrituras Subalternas e os Estudos Pós-Coloniais”. O primeiro motivo de

sua utilização nesta escritura diz respeito à encenação que a performance encerra e em

segundo lugar, pelo fato de ter detectado que a palavra ‘nação’ oferece um leque

diversificado de enfoques na ‘cena’ deste estudo. Aqui nação engendra a própria cena

das experiências que vivi, das observações que fiz e do imaginário que criei. As nações

culturais foram vividas em cada deslocamento e tempo do trajeto feito primeiramente

entre as cidades brasileiras, em que destaco, Campo Grande (MS), Londrina (PR),

Salvador (BA) e Florianópolis, (SC); em seguida, entre as cidades européias,

particularmente Amsterdã, na Holanda, e a região de Senegâmbia no oeste da África,

mais especificamente, a cidade de Serekunda e a vila de Donsekunda em Gâmbia, e a

capital do Senegal, Dakar. Entre esses trânsitos assinalo algumas idas e vindas para o

Brasil, oportunidades de intercambiar as danças experimentadas na Bahia, em Londrina

e Florianópolis. Além disso, tais deslocamentos propiciaram experimentos entre

distintas nações religiosas desde a infância, que variaram do Catolicismo ao

Espiritismo Kardecista e ao Candomblé. Lembro ainda que, em 1997, quando viajei

para o Senegal tive a oportunidade de presenciar a cerimônia das práticas rituais de um

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Natal entre os muçulmanos em Dakar, fato que acrescentou esclarecimentos às

observações que fazia da religião muçulmana ao conviver com gambianos e senegaleses

em Amsterdã. As referidas nações culturais e religiosas mencionadas acima são

inevitavelmente permeadas de questões políticas que conjuntamente conferem

especificações à minha vivência, as quais eu passo a chamar nesta cena de nação corpo.

Ao considerar esses acontecimentos que portam influências políticas localizadas no

tempo, ou seja, entre passado, presente e futuro associo a proposição de Benedict

Anderson, no livro Nation and Narration, de Homi Bhabha para pensar em nação. Para

Anderson, o nacionalismo é entendido como um sistema amplo de significação cultural

que o precede, visto que a expressão política de um estado nação está sempre ligada a

um passado e desliza num futuro sem limites. (ANDERSON apud BHABHA, 1990)

Além disso, faço uma associação à noção de Bhabha no capítulo Disseminação, do livro

O Local da Cultura, quando o autor propõe que a localidade da cultura, a nação, gira

mais em torno do seu tempo do que da sua história. (BHABHA, 1998) A noção de

nação de Anderson e Bhabha relacionada ao tempo, é apropriadamente aplicável aos

tempos específicos de cada trânsito que percorri, e sob este ponto de vista são

considerados como nações específicas que fazem parte do conjunto de elementos

analisados neste estudo - cultura, ritual e corpo.

A escrita e a performance destacaram os dois focos principais do trabalho: a

transculturalidade das duas danças e do meu percurso, assim como o elemento

simbólico comum a elas, aqui percebido como fogo. Os dois focos foram desenvolvidos

no decurso das análises comparativas e auto-reflexivas da pesquisa que partiram das

semelhanças rítmicas e gestuais das referidas danças, e indicaram as possíveis

ingerências entre si e no meio que circulam, sob uma interpretação própria enquanto

pesquisadora, em dois cortes temporais: de 1995 a 2003 na Holanda e na Gâmbia e

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2005 e 2006 no trabalho de campo no Ilê Axé Opô Afonjá. Entre demais fatores éticos e

estéticos, foi em função do aspecto transcultural que caracteriza meu percurso de vida

que as análises evidenciaram a hipótese do caráter de transculturalidade das duas

manifestações performáticas. E vivenciar estas danças aguçou a percepção simbólica de

fogo através da sensação permanente de nuances térmicas no meu corpo.

Deste modo culminou o objetivo geral da pesquisa: analisar, a partir de uma

vivência transcultural, a transculturalidade das danças (Xangô e Bugarabu), pela

percepção simbólica do fogo. Este fogo gritou a necessidade de escrever e refletir sobre

a dança que surge a partir daí. O suporte teórico para esta necessidade da escrita

emergiu das reflexões feitas sobre o pensamento de Lepecki e Derrida a respeito das

imbricações escorregadias que envolvem as questões da escrita (linguagem), do

movimento (corpo) e da feminilidade (LEPECKI, 2004), a serem tratadas ao longo da

dissertação. Em primeira instância, pensar na dinamicidade da escrita ficou evidente

uma ligação estreita entre escrita e movimento. No decorrer da análise crítica do

movimento, foi inevitável perceber o quanto é influente a questão de gênero nestas

manifestações culturais, particularmente no que diz respeito à condição da mulher e de

sua feminilidade. Estas constatações afloraram tanto como agente, quanto como

observadora das referidas culturas. Sendo assim, a feminilidade fatalmente se fez

presente em ambas as formas de expressão e comunicação, ou seja, na escrita e no

movimento.

Assim, na tarefa de analisar essa experiência transcultural e viabilizar a

execução da escrita, realizei desdobramentos metodológicos específicos que

propiciassem diálogos, comparações, reflexões e constatações. Em primeiro lugar,

comparei a ação ritualística que se manifesta no Bugarabu durante o festival que

acontece principalmente em Senegâmbia (Casamance), com o trabalho desenvolvido

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com Fayee Diona de 1995 a 2003, iniciado em Gâmbia com prosseguimento na

Holanda. A seguir, analisei as especificidades rítmicas, coreográficas e mitológicas da

dança de Xangô percebidas durante o trabalho de campo no terreiro de candomblé do Ilê

Axé Opô Afonjá, em diálogo com o aprendizado anterior das danças do Bugarabu e de

Xangô. Com esses aportes foi possível comparar as particularidades percebidas no fogo,

símbolo metonímico comum às duas manifestações dançantes. Similaridades e

diferenças foram detectadas ao longo do processo de análise da pesquisa. Ao destacar e

refletir sobre a influência da feminilidade para este estudo, eu tinha em mãos as

ferramentas úteis para a criação da encenação transcultural que em si é uma afirmação

do fogo imanente ao meu corpo dançante que traz os locais, os tempos, as vozes e os

‘eus’ vividos e observados.

O conhecimento incorporado, a restauração do comportamento e o corpo

dilatado são sustentos teórico-práticos e metodológicos oportunos às identificações

legítimas deste corpo dançante adquiridas durante a experiência vivida. Além disso,

garantiram a convergência dos dois principais focos deste estudo descritos acima.

Incorporated Knowledge, Conhecimento Incorporado, é o título do livro

editado por Thomas Leabhart, no qual a matéria de Kirsten Hastrup tem o mesmo título.

Além disso, o conhecimento incorporado é um termo utilizado na Antropologia Teatral

e tem uma relação estreita com o conhecimento cultural que adquirimos através de

nossas experiências e pesquisas. Neste livro Hastrup diz: “meu trabalho de campo me

ensinou que muito do conhecimento cultural é transmitido pelo corpo (mais do que

palavras). É o corpo em vida, a pessoa viva, que é o locus da experiência”. (HASTRUP

apud LEABAHART, (orgs) tradução minha, 1995, p.3).

No livro A Arte Secreta do Ator, de Eugênio Barba e Nicola Savarese, no

capítulo Restauração do Comportamento, Richard Schechner diz:

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[...] O comportamento restaurado tem “vida própria”. A ‘verdade’ original ou ‘fonte’ do comportamento pode estar perdida, ignorada ou contrariada, mesmo quando está sendo respeitada. Como a seqüência de comportamento foi feita, achada ou desenvolvida pode ser desconhecida ou ignorada, elaborada, distorcida pelo mito e tradição. Originando-se como um processo, usada no desenvolvimento dos ensaios para fazer um novo processo, uma representação, as seqüências de comportamento não são processos em si, mas coisas, itens, ‘material’. (BARBA; SAVARESE, 1995, p. 205)

A partir desta noção de restauração do comportamento, expressão surgida do

pensamento associativo de Schechner entre teatro e antropologia, eu detectei a

percepção deste corpo dançante descrita nas seguintes palavras que a foto abaixo ilustra:

Nas pernas, ficou a leveza do pulo; no tronco a concentração da

expressividade e a pulsação, na medida exata de energia que explode,

mas não se desperdiça, porque cabe aos braços e, com efeito, às mãos,

soltar o último resquício do movimento, como labaredas de fogo, para o

qual a cabeça responde (co/responde), se solta.

Ilustração 2 - Sandra Mascarenhas, divulgação, Amsterdã, 2000. Foto: Fabíola Morales

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Barba, o criador da Antropologia Teatral, colocou suas idéias e cartas na mesa

para serem engolidas, digeridas, transformadas ou expelidas pelos curiosos e

interessados. Dentre outras noções, o corpo dilatado é uma expressão polêmica no

campo das artes cênicas que adotei em minhas investigações por perceber no plano

sensório-motor enquanto danço as palavras de Barba quando se refere àquela

“desorientação que me faz sentir vivo, aquela repentina dilatação dos sentidos”.

(BARBA, 1994, p.119). É quando, em especial com a dança de Xangô e do Bugarabu,

percebo o fogo no acelerar do coração, no aumento da temperatura do corpo em

intensidade crescente até alcançar a sensação de dilatação de todos os meus sentidos.

O valor dessas noções não é único, nem absoluto, mas indubitavelmente elas

estão arraigadas à especificidade inicial desta experiência e serão desenvolvidas no

decorrer desta escrita após sua contextualização nessa trajetória transcultural. As

constatações dialéticas dessas expressões culturais iniciaram com as sensações da dança

de Xangô aprendidas na Bahia, que correspondiam à nova experiência com a dança

oeste africana do Bugarabu, pulsando no meu corpo que recém chegava à Amsterdã, na

Holanda, em agosto 1995. Nessa mesma época passava por um aprofundamento nas

teorias e práticas da Antropologia Teatral, iniciado durante a participação na XIX ISTA

(Escola Internacional de Antropologia Teatral), em Korsväg, na Suécia, em maio do

mesmo ano, depois da ISTA de Londrina no ano anterior, em 1994. Era um caldeirão de

experimentos complementares em ebulição! Pelos princípios indicados por Eugênio

Barba, pude reconhecer o conhecimento incorporado, presente na expressão do meu e

de outros corpos, em especial os africanos de Gâmbia e Senegal, com quem mantinha

maior contato.

Com este percurso reingressei no universo acadêmico, tomando como ponto de

partida uma abordagem transdisciplinar para este estudo. Busco aporte no meu percurso

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em dança e nos aprendizados baseados na Antropologia Teatral, e amparo nos recentes

conhecimentos adquiridos nos Estudos da Performance, que abriu portas para outras

áreas do conhecimento como os Estudos Culturais, a Teoria Crítica e os Estudos Pós-

coloniais. Por sua vez, a Etnografia foi uma das contribuições mais diretamente ligadas

ao trabalho de campo realizado no Ilê Axé Opô Afonjá para a execução desta pesquisa

teórico-empírica.

O horizonte filosófico complementar à abordagem transdisciplinar que lanço

mão é a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty - uma teoria que enfatiza a

relação vivida do sujeito com o mundo:

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras. (Merleau-Ponty, 1999, p.18)

Ainda no reino da filosofia busco apoio, na simbologia de Jacques Lacan 5, uma

aplicação e desafio da lingüística saussuriana percebida em duas funções: paradigmática

e sintagmática consideradas por Lacan como metáfora e metonímia, respectivamente, e

cujo efeito se torna poético. Estes horizontes filosóficos foram fustigados pela

subjetividade das associações simbólicas e das reflexões vislumbradas pela experiência

vivida de dança em cruzamento com o trabalho de campo realizado no Ilê Axé Opô

Afonjá e o ritual da colheita do arroz de Senegâmbia que se manifesta no Bugarabu.

Com a simbologia de Lacan utilizo o efeito poético de uma analogia que se

refere ao Real, onde a performance primeira que aconteceu no instante inesperado de

sua execução se transformou em pesquisa. Depois ao Imaginário das culturas 5 [Lacan] fala de três registros de subjetividade: o Real, o Imaginário e o Simbólico [...] [O Real] é a experiência primeira de tudo, anterior à tentativa de representá-la em qualquer sistema de símbolos [...] O registro do Imaginário não é só o reino de imagens ou de fantasia, embora seja definitivamente associado com ilusão. Ele é aproximadamente equivalente à experiência diária, mas a ilusão é que trata do Simbólico (cuja função é ordenar a experiência diária) como se ele fosse real e natural. (LACAN apud PALMER, tradução minha, 1997, pp. 82, 83)

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transatlânticas, da Bahia à esquerda e da Senegâmbia à direita, com o oceano Atlântico

‘entre’ elas, assim como eu da mesma maneira me insiro ‘entre’ elas. Oceano esse, que

foi o caminho da legitimação dos povos da diáspora negra trazidos para o Novo Mundo,

lugar com culturas subalternas em constante movimento e, portanto entrecruzadas e

transcriadas indefinidamente. E por último ao elemento Simbólico do fogo. Uma

associação simbólica, produto de associações abertas. De um lado, Xangô é considerado

na mitologia do candomblé como a divindade do fogo, do calor, da determinação, do

vigor, da justiça. Do outro, o Bugarabu é o ritual da colheita do arroz do povo djola em

Casamance chamado lebounaye, que se prolonga por três dias e se realiza ao redor da

fogueira. ‘Entre’ os dois, existiu a vivência empírica com os ritmos das duas

manifestações dançantes que deixou uma sensação corpórea de calor que se repete na

efemeridade da dança. Metaforicamente, chamei essa sensação de fogo. Nesse instante

efêmero, os canais sensitivos se abrem na percepção do calor e da força energética que

os movimentos e a aceleração rítmica do Xangô e do Bugarabu trazem.

Como estratégia de organização da dissertação urgida pela transdisciplinaridade,

optei por manter um diálogo contínuo com os autores desde a apresentação e a

introdução, até os anexos e as considerações finais, incluindo os quatro capítulos

anteriores. A intenção foi a de garantir o suporte teórico e as auto-reflexões ao longo

do corpo do texto. Eles estão diluídos na concepção de toda a criação da escrita. Essas

ferramentas foram relevantes para o exercício de reflexão crítica, necessário à

composição desta pesquisa.

Aspectos que caracterizam esta escritura foram se desenrolando durante as

investigações teóricas, as experimentações corporais, a análise de material fotográfico e

do trabalho de campo e os ensaios. Nos entremeios da análise de dados percebi que

confrontos e comparações entre as duas danças saltavam diante dos meus olhos e se

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faziam presentes. Este fato confirmou a urgência de viajar na memória do Bugarabu,

observar e etnografar a dança de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá e por fim, expressar essa

mescla na encenação para então fazer as considerações finais.

A chama do fogo se mantém viva e permeia toda a pesquisa, logo, de acordo

com essa constatação, a introdução recebeu o nome de – O caminho do fogo

transatlântico. Ela traz consigo momentos pontuais da minha vida, relacionados com o

trajeto na dança e na vivência transculturais, onde ressalto algumas passagens que

prenunciaram a existência do fogo, elemento que justifica os motivos e os objetivos

deste trabalho.

Por esta razão, num segundo momento, isto é, no Capítulo I (Da Centelha ao

Fogo: Memória) elas foram esmiuçadas, a partir do grau de sensação de calor no corpo

que esses momentos específicos trazem na memória, desde sua condição

simbolicamente chamada de centelha (no balé) até culminar no fogo, característica das

danças aqui estudadas. Tais prenúncios do fogo foram úteis para a criação de um

diálogo com pontuais considerações teórico-conceituais sobre: Performance,

Antropologia Teatral e Arte Africana. Ao narrar essas passagens, percebi que estava

diante de um embate entre a complexa subjetividade da pesquisa e a objetividade que o

‘modelo’ de dissertação acadêmica prescreve. Com o propósito de manter uma relação

coerente com o estilo acadêmico e conciliá-lo com as criações (trans) subjetivas da

escritura que ora proponho, às vezes não adaptáveis ao manual de 2003, adotei uma

prática. Conforme indicado anteriormente, utilizei a fonte Lucida Calligraphy,

semelhante à minha letra manuscrita, sempre que transportei para o momento presente,

passagens deste trajeto, assim como em momentos de reflexões acerca das mesmas.

Ao mesmo tempo, a auto-reflexão sobre a memória e a tentativa de presentificá-

la na escrita, foi um recurso metodológico que fustigou uma análise teórico/crítica no

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decorrer da pesquisa e do trabalho de campo, levantando outra das questões cruciais a

ser vasculhada sobre o sujeito/objeto que aqui represento: ora sujeito, ora objeto, ora

sujeito/objeto. Uma problemática a ser abordada na apresentação, introdução, nos

capítulos, na encenação, inclusive nos anexos e indubitavelmente nas considerações

finais do trabalho.

O segundo capítulo foi intitulado Reflexões da Memória do Bugarabu.

Sinalizei a memória do Bugarabu e a percepção da experiência vivida com esta dança,

na Holanda, na Gâmbia, no Senegal, e na volta a Salvador, cujo trajeto, desvelou

transformações marcantes inscritas e transcriadas no meu corpo dançante. Além disso,

fotos, diários, elementos da dança e do instrumento do Bugarabu como os claps,

mensagens pela internet e telefonemas com Fayee Diona foram comparados aos anexos

finais que contêm visitas ao sites Kassoumay e Wikipedia. Estes anexos trazem

informações históricas e culturais pontuais de Senegâmbia, desde o tempo do tráfico de

escravos no século XVI até hoje. Todos estes componentes ilustraram e renderam

suporte ao exercício de ‘lembrança da memória’ e análise de dados do estudo. Desta

maneira pude fazer uma análise comparativa, entre minha percepção e vivência

específicas com a cultura onde o Bugarabu está inserido, em diálogo com as ‘trans-

formações’, adaptações, os pontos convergentes e divergentes que a investigação

histórica da região de Senegâmbia desvelou.

Para complementar a referida experiência, o horizonte teórico do Pós-

colonialismo e da Teoria Crítica foi de suma importância para este segundo capítulo.

Nem só branca, índia ou negra, mas um cruzamento cultural. Uma pessoa nascida no

Mato Grosso que traz consigo rastros indígenas, identifica-se com as culturas baiana e

africana na arte da dança, e deflagra nesse território ‘entre’, um objeto de estudo que

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denuncia em sua singularidade uma complexidade que abrange o pensamento atual a

respeito das identificações em constante movimento.

A etnografia do fogo compõe o terceiro capítulo da dissertação. Devo dizer que

a divisão dos capítulos feita nas categorias crítico-reflexivas de memória, etnografia e

encenação foi uma idéia incentivada pela disciplina Etnografia e Estudos da

Performance ministrada pelo Prof. Dr. Fernando Passos, em 2005, no PPGAC.

Nesta etnografia, lanço mão das articulações teóricas de James Clifford com a

prerrogativa de revisar as formas e efeitos da tradição no Ilê Axé Opô Afonjá,

considerando os deslocamentos culturais que marcam a história desse terreiro. Faço

então uma reinterpretação, uma tradução cultural articulada por um pensamento

dialético, em que reconheço simbolicamente o fogo de Xangô que ressoa no Bugarabu,

a partir da consideração de suas diferenças e proximidades. O trabalho de campo no Ilê

Axé Opô Afonjá, localizado no bairro de São Gonçalo em Salvador, foi realizado

durante os anos de 2005 e 2006, no período de 28 de junho a 11 de julho, quando

acontece ali o ciclo de festas de Xangô. Tal escolha aconteceu por motivos

complementares: primeiramente, esta foi a primeira casa de candomblé que visitei na

Bahia, em 1980; em segundo lugar, porque é uma casa de Xangô, por sinal

conseqüência de uma separação da Casa Branca, reconhecida como sendo a mais antiga

da Bahia, cujo desdobramento resultou no Ilê Axé Opô Afonjá e no Gantois; e

finalmente por ser apresentada por Nadir Nóbrega, colega de mestrado, à Dona Detinha,

filha de Xangô, o primeiro contato que tive nesta casa.

Além da observação dos rituais festivos em homenagem a Xangô, abertos ao

público, busquei participar de outros eventos proporcionados pelo Afonjá, como é

chamado entre os seus freqüentadores o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá. Entre os

principais eventos estão: as quartas-feiras de Xangô, um ritual semanal da casa; as festas

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destinadas a outros Orixás; o Alaiandê Xirê em 2005 - um encontro de alabés (músicos)

de comunidades de religião africana nacional e internacional; e finalmente o projeto -

Afonjá Aragbogbô: O corpo da diversidade - realizado de 31 de março a 02 de abril de

2006.

É importante salientar os diferentes aspectos abordados para a feitura da

pesquisa etnográfica. Primeiramente, foi utilizada uma bibliografia pertinente. O intuito

foi ampliar o leque de informações acerca do candomblé na Bahia. Para tanto,

evidenciei aspectos relacionados - ao terreiro do Ilê Axé Opô Afonja, ao orixá Xangô e à

marcante atuação da ialorixá Mãe Stella de Oxossi no universo religioso -

inevitavelmente embrenhados às esferas política, social e cultural de Salvador.

A vasta gama de autores estudados trouxe muitas contribuições e fustigou outras

tantas reflexões críticas que podem ser relacionados com esta etnografia e que a

dissertação não os comportaria a todos. Fiz então uma triagem entre os mais instigantes

e pertinentes ao assunto desenvolvido, a exemplo de James Clifford, Maya Deren e

Barbara Browning, Vera Campos, Nelson Pretto, Richard Schechner, Jacques Derrida,

André Lepecki, Vivaldo da Costa Lima, Ildásio Tavares, Lüdke e André, entre outros.

Ainda, de suma importância são considerados os laços de amizade alcançados pela

permanente atenção de Dona Naná, integrante do Afonjá e a assiduidade com que

freqüentei esta casa desde 2005, questões que intensificam o caráter da vivência.

Reconheço que tais observações foram de muita valência para instigar possibilidades

dialógicas entre o Bugarabu e o Xangô.

E finalmente, o dado mais melindroso e importante para a composição deste

terceiro capítulo. O fato de não ser permitido fotografar, gravar, filmar ou até mesmo

escrever durante os rituais sagrados constituiu a ferramenta principal do método

utilizado no trabalho de campo, a observação. Desse modo, o recurso metodológico para

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a escrita foi invariavelmente baseado no exercício da memória, mesmo que, ao chegar

em casa ainda quente, simbolicamente em fogo, instantes depois de finalizados os

rituais religiosos de Xangô, me debruçasse no papel para escrever. Este estado me

remeteu ao seguinte pensamento filosófico:

É este êxtase da experiência que faz com que toda percepção seja percepção de algo [...] Considero meu corpo, que é meu ponto de vista sobre o mundo, como um dos objetos desse mundo. (MERLEAU-PONTY, 1999, P. 108)

A observação do ritual e da dança de Xangô suscitou estados emocionais, a

memória do Bugarabu e, por conseguinte a criatividade coreográfica, além de inspirar a

elaboração de seu registro no sentido de transformar esse imaginário transatlântico

numa escrita performativa. Um corpo que na observação, entra num estado de vertigem

e se desterritorializa. Nesse estado ‘além’, irrepresentável, as diferenças embutidas nas

designações simbólicas que elegi se sobressaem. Tentei captá-las e como estratégia, eu

costurei a reflexão teórico-crítica com o ato de escrever. Dessa maneira, trouxe para a

escrita o valor político e a autocrítica da minha memória pessoal. Uma escrita e teoria

constitutivas da experiência etnográfica que, em trânsito com a encenação, se localizam

no corpo. Com a escrita performativa foi possível transpor a idéia de que posso cobrir o

universo que estou investigando, pois na percepção fronteiriça, nesse lugar in-between,

é onde se situa a minha prática. O texto foi um lugar para observar e perceber,

interpretar e coreografar essa percepção do meu corpo em movimento, como objeto

desse mundo.

No quarto capítulo escrevi sobre a encenação, parte constitutiva da performance

da defesa pública, em articulação com o horizonte teórico-crítico dos Estudos da

Performance e da Antropologia Teatral, levantados durante a pesquisa. A partir do fogo

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de Xangô, a encenação tem o título – Okutá orun iná otá,6 O fogo que vem do céu se

trans-forma em pedra - que foi inspirado no livro Xangô de Ildásio Tavares. Segundo

o autor, no caso específico de Xangô, a pedra (otá) em que se assenta esse Orixá

condensa sua energia no iniciado, em basicamente dois tipos: a pedra do raio ou um

meteorito. No início deste capítulo, questões que abrangem a relação simbólica de fogo

entre a pedra do raio de Xangô, o meteorito e a dança do Bugarabu serão destrinchados

sob uma investigação que vai dialogar com a lei da gravidade de Newton pelas

associações conceituais e empíricas de peso, energia e ritmo.

Para tanto, esboço o diário do processo criativo da encenação recheado pelas

auto-reflexões a respeito das duas danças, inscritas e posteriormente transcriadas no

meu corpo pelo viés rítmico e pela percepção simbólica de fogo. Recolho as

trans(ligações) da referida experiência, enquanto memória e etnografia, e dou voz à

percepção que tive do encontro das duas danças.

É importante salientar que esse encontro rítmico e dançante detectado pelo

músico Fayee Diona de Gâmbia e eu, funcionou como impulso de futuras inovações

artísticas que no caso da presente pesquisa, é constituída de novos

encontros/reencontros. Desta feita, para dar continuidade à descontinuidade dos fatos da

vida, aconteceu um reencontro com o diretor carioca Lau Santos, parceiro em alguns

trabalhos anteriores, além de ser o introdutor dos primeiros contatos adquiridos com a

Antropologia Teatral, em 1988. Discutimos sobre nossos conhecimentos e

procedimentos peculiares, a fim de intercambiar e dar expressão à forma e ao conteúdo

da encenação.

6 Dicionário Yorubá (nagô) – Português, Eduardo Fonseca Junior, 1993. Okutá – pedra em ioruba, tirado no vulgar nagô brasileiro como sendo otá; Okutá Orun – pedra do céu; Okutá Orixá – pedra de assentamento de Orixá; Otá – pedra de assentamento do Orixá; Iná – fogo.

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A composição cênica foi feita através de um processo criativo dividido nas

seguintes fases: um encontro inicial com Sandra (dançarina), Augusto (percussionista) e

Lau (diretor) para estabelecermos as metas e cronogramas da encenação, e deliberarmos

as investigações teóricas e práticas para cada um dos três; uma fase que compreendeu a

criação e o treinamento individual, ensaios com Augusto e Lau; e sob a orientação de

Ana Rita de Almeida realizamos um trabalho mais minucioso de preparação corporal, a

fim de atender às necessidades detectadas por mim e por Lau durante todo o processo de

concepção cênica e ensaios realizados na Escola de Teatro da UFBA e na própria Casa

do Benin. Nos ensaios nesta casa até a performance de defesa pública, tivemos o imenso

prazer de trabalhar com o músico e criador de instrumentos Julio Góes.

Reflexões que justificam esse estudo foram somadas à finalização do capítulo.

Afirmo que ao transpor as referidas danças criei com a escrita e a encenação, um

terceiro elemento pós-dança de Xangô, pós-dança do Bugarabu, uma (trans) penetração

de experiências deste corpo dançante. Este foi um dos impasses desse estudo. Uma

situação que embaraça a pesquisadora e o objeto de estudo em questão como já dito.

Pois meu corpo é o instrumento que, a um só tempo, usufruiu da oportunidade de

observar, vivenciar, incorporar, identificar percepções e características das referidas

danças e agora tenta se distanciar dessa vivência, na tentativa de abandonar os visgos

embebidos pela proximidade empírica. Lembro: um trajeto transcultural entre danças

transculturais. Uma urgência que propiciou a transformação da experiência vivida em

expressão artística, como mais uma contribuição para o universo científico acadêmico.

Um desafio! Um estímulo! Uma chama! Um terceiro elemento que se expressa como

fruto da desestabilização das âncoras desse corpo, além de estar inserido numa época

caracterizada por subjetividades, ambigüidades e fragmentações individuais e coletivas.

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Não posso deixar de mencionar que as dificuldades que ressurgem destas

desestabilizações foram e ainda são entendidas como pontos de reflexão e inspiração

para uma intervenção criativa, para o imprevisível. E é também esse fato real de estado

de torpor que os percalços instigam, o que confere a esta encenação, um caráter

performativo. Como dançarina e pesquisadora, eu admito essas sensações corporais de

desestabilização, arrisco o terreno que se apresenta e, a partir daí, deixo aflorar com o

novo encontrado a percepção dessa experiência que não é alheia, mas vivida em sua

realidade efêmera.

Assim, nas considerações finais, quinto capítulo deste trabalho, eu reafirmo os

objetivos e desafios da pesquisa. Deixo traços e rastros do encontro de Xangô com o

Bugarabu sob uma estratégia metodológica narrativa, analítica, auto-reflexiva em que

alinhavo memória, etnografia e performance com o tecido poroso desta vivência,

sustentado pelas contribuições teórico-críticas que possibilitam ecoar outras vozes

transculturais inspiradas nas particularidades e potencial de observação da minha voz.

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2. INTRODUÇÃO – O Caminho do Fogo Transatlântico

A própria identidade pode desenvolver-se sem contrariar a própria natureza e a própria história, mas dilatando-se além das fronteiras que a aprisionam mais do que a definem. Eugênio Barba 1

2.1 Caminho antes do Encontro com o Bugarabu

Dentro dos Estudos da Performance, dos Estudos Culturais e da Teoria Crítica, a

preocupação com o discurso ocidental hegemônico e generalizado, tem sido algo

recorrente entre os sujeitos interessados em experiências específicas e pertinentes a um

contexto, a uma história. Por esta razão, experiências que de uma forma ou de outra

contribuíram para esta pesquisa, reivindicaram no desenrolar desta escrita um lugar para

1 Muitos são os pensadores, atentos à complexidade do conceito de identidade, que têm contribuído para as minhas reflexões. Contudo, considero relevante trazer um dos primeiros momentos que me debrucei sobre essa questão de maneira mais reflexiva e sistemática. Naquele instante me identificava com o ponto de vista de Eugênio Barba que considera a identidade sob três aspectos: “o étnico, o cultural e o profissional”. (BARBA, 1994, p. 68). Somado aos conhecimentos que adquiri posteriormente, dialogo no decorrer do texto com outros pensadores que integram outras noções em torno de raça, gênero e cultura aplicáveis à identidade e que são importantes constatações para a análise desta pesquisa. Entre eles estão: Edgar Morin com a complexidade (1996); Stuart Hall com a fragmentação do sujeito e a globalização, (2003); Paul Gilroy com as identidades inacabadas (1993), Maffesoli com a identificação (1988); Hommi Bhabha aplicando raça e cultura como agentes complicadores da identificação; e mais recentemente Emily Apter com a conexão entre a história feminista e a performance (1996).

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dar sua voz, uma vez que a especificidade de cada sujeito em seu contexto, faz história,

estende sua história e interage com a alteridade.

Proponho nessa dissertação a tarefa de colocar em jogo a nervura entre a

experiência vivida e a escrita, deslocadas e transformadas e ainda, abertas a discussões

críticas acerca de vivências transculturais, manifestadas na representação de uma

encenação. Meu objetivo é subjetivo, minha exposição aspira flexibilizar e possibilitar a

auto-reflexão de outras vozes. Um discurso reinventado a cada reflexão, a cada

observação e a cada ato de escritura em que urge a pretensão de se ‘localizar’ nesse ‘não

lugar’, por meio de um discurso múltiplo, aberto e reticente. Vejamos como articular

essa proposição discursiva com a idéia que Michel Foucault propõe em ‘A Ordem do

Discurso’:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1970, pp. 08, 09)

Para complementar, o autor explica que há no discurso um jogo entre três tipos

de interdição: “Tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privilegiado ou

exclusivo do sujeito que fala”. (FOUCAULT, 1970, p. 09) Isto acontece como um jogo de

entrecruzamento, reforço e transformação dessas interdições que formam uma grade

complexa, onde o discurso se localiza e exercita o seu poder, predominantemente no

terreno da política e da sexualidade. É nesse terreno que a ligação entre desejo e poder

mostra sua evidência, pois o discurso é o próprio objeto de desejo que traduz as lutas e

sistemas de dominação sejam eles ocultos ou evidentes. O discurso é o motivo da luta, é

o desejo de ter o poder. (FOUCAULT, 1970)

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Nos estudos acadêmicos desta pesquisa entrou em cena uma urgência de

transformar essa experiência em discurso-escrita-encenação-performance. Esta urgência

é o motivo desta luta. Entrou em cena a pretensão de transpor barreiras de objetividades

limitantes e reconhecer associações teóricas e comparações que corroborassem

cientificamente essa vivência. As dificuldades estão localizadas na articulação de

processos interiores subjetivos da minha vida pessoal a fim de atravessar o sentido

oculto de conexões percebidas anteriormente, externá-las e finalmente, transformar tais

processos em discurso no decurso da escrita, ou seja, numa linguagem de ficção

coerente. Com o apoio das palavras de Foucault a seguir, meu discurso se viabiliza:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo de seus próprios olhos. E, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 2005, p.49)

Foucault ainda acrescenta:

Pede-se que o autor preste contas da unidade de texto posta sob seu nome: pede-se-lhe que revele, ou ao menos sustente, o sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua vida pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção, suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real. (FOUCAULT, 2005, pp. 27, 29).

Nessa luta discursiva, acatei os quatro princípios sugeridos por Foucault como

prevenção à logofobia ensurdecedora dos discursos dominantes: o princípio da

inversão, em que ao contrário da procura da verdade, farei um jogo de recorte e

rarefação do discurso, mais poroso. A rarefação nos leva a considerar o princípio da

descontinuidade de suas práticas que podem se cruzar, se ignorar ou se excluir. A

descontinuidade, por sua vez, nos atenta para o princípio da especificidade, onde o

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37

mundo não é legível, não está pronto e, portanto nos requisita a prática de não se impor.

Por quê? Porque na prática uma regularidade ao discurso é imposta, e esta nos

transporta ao quarto princípio, o da exterioridade, ou seja, o da condição de

possibilidades externas, às quais é sensato nos abrirmos. A cada discurso,

procedimentos internos acontecem de formas distintas, apontando para outras faces de

um deslocamento inevitável, de tempo, de lugar, de percepções, de olhar.

(FOUCAULT, 2005) Com esse fio de inversão, descontinuidade, especificidade e

exterioridade, eu arrisco tecer o discurso da minha escrita...

Nasci em Três Lagoas, no sul do Mato Grosso, oeste do Brasil, em 1956 e tenho

uma trajetória de vida marcada por mudanças geográficas e, conseqüentemente, por

transformações culturais constantes caracterizadas por rastros de diferentes contextos

sociais, econômicos e políticos. Trago comigo um conhecimento universitário de

Engenharia Civil atravessado por uma convivência assídua com a arte, em especial, a

música e a dança. Estudei violino dos cinco aos quatorze anos, mesma idade em que

iniciei o balé clássico, a partir de quando mantive contínuo contato com outros tipos de

dança. Dessa maneira, transformei a dança em profissão.

Significativamente, meu nascimento acontecia poucos anos antes do

ressurgimento das atitudes anarquistas, em paralelo, particularmente ao movimento

feminista nos EUA durante os anos 60 e seguido do movimento tropicalista no Brasil,

no período da minha adolescência. Venho de uma família majoritariamente de

mulheres, entre irmãs e sobrinhas. Esse é um fato significativo para essa convivência

singularmente feminina, pois exige uma firmeza de todas nós a fim de aprendermos a

lidar com a vida sem estarmos atreladas a uma proteção masculina em nosso cotidiano,

como assegura o pensamento machista que apaga a mulher e subestima sua autonomia.

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38

Por isso, acabamos por cultivar com meu pai uma relação de confiança em meio aos

riscos que nos responsabilizamos em correr.

Dessa maneira, constituí uma vida em meio às desestabilizações do referido

período histórico, enquanto mulher, mutante e dançarina, que agora me fazem pensar

nessas gretas que caracterizam esse estado que identifico como: uma mulher dançarina

em permanente deslocamento. Refletir sobre isso me remete à Derrida, com seu tributo

à dança na entrevista com C.V. Mc. Donald (capítulo Choreographies do livro Bodies

of the Text) quando escreve a respeito de questões onde a mulher e a dança estão

entrelaçadas:

[...] Em francês a palavra dança,“la danse”, é um nome feminino e requer um pronome feminino ‘elle’. [...] Como você descreveria o ‘lugar da mulher’? (DERRIDA, 1995, pp. 142) [...] Por que deveria ter um lugar para a mulher? E por que somente um, um singular, completamente lugar essencial? [...] No meu ponto de vista, não há um lugar para a mulher. [tradução minha] (DERRIDA, 1995, 143).

Ao vasculhar esse caminho de fronteiras e limites embaçados, percebi quando

me mudei para a cidade cosmopolita de Amsterdã, em 1995, que estas imbricações não

eram simplesmente características da minha vida particular. Encontrei naquela cidade,

entrecruzada de numerosos canais que conectam ruas e gente com pequenas pontes de

passagem, um hibridismo cultural que se dilatava ao processo histórico dos povos

colonizados e transatlânticos da Diáspora. Assim, interligávamos nossas culturas. E este

fato contribuía para notarmos que eram exatamente nossas idéias etnocêntricas que

enunciavam a diversidade de nossas histórias, de nossos deslocamentos naquela

migração pós-colonial. Inspirada nas articulações de Bhabha, eu estava diante de um

embate cultural, que segundo o autor, admitem antagonismos ou afiliações que são

produzidos performativamente: “a articulação social da diferença, da perspectiva da

minoria, é uma negociação complexa que procura conferir autoridade aos hibridismos

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culturais que emergem em momentos de transformação histórica”. (BHABHA, 1998,

p.21)

Foi preciso muito jogo de cintura, na vida e na dança. Desse modo, percebi que

a dança era uma ferramenta diluída em minhas atitudes para lidar com as diferenças

encontradas no caminho, como um meio de expressão de urgências e escolhas, em

tempos e espaços deslocados. Ademais, com intensa evidência, o sistema de governo

matriarcal, marcado pela presença da Rainha Beatriz, incorpora nas mulheres

holandesas ‘em geral’, um comportamento determinante, de grande visibilidade. Fato

que, indiretamente conferiu maior visibilidade aos rastros de fragilidade feminina, se é

que podemos chamar assim, do meu processo cultural latino. Conviver com a alteridade

é uma maneira de nos enxergamos pelas identificações e particularmente pelas

diferenças.

Passo agora a discorrer sobre meu percurso na dança e na vivência transcultural,

com o propósito de justificar os fundamentos e objetivos desta pesquisa. Como um fio

condutor, levo o leitor a desenhar, coreografar uma imagem, do que antecedeu e fez

brotar a percepção desse corpo dançante acerca das danças de Xangô e do Bugarabu.

Para tanto, tratarei a seguir da repetição, fator fundamental para apreensão dos

movimentos das respectivas danças e estímulo para novas criações.

Entrelaço a idéia de Ferracini no que diz respeito à repetição orgânica enquanto

memória, com a restauração do comportamento (Schechner) e o conhecimento

incorporado (Barba), aplicados a esta experiência. A repetição anos a fio, carimbou no

corpo dançante uma qualidade específica de movimento que desaparece ao término da

execução da dança, mas que deixa rastros de um conhecimento incorporado

transformado em um comportamento restaurado, termos desenvolvidos anteriormente.

Em outras palavras, ficou impresso na memória corporal um comportamento cênico

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orgânico, que se deu pela repetição de movimentos das danças - do oeste africano

(Senegal e Gâmbia) e da Bahia (orixás). 2 Essa prática repetitiva resultou no

conhecimento que adentrou o corpo, a que chamo de conhecimento incorporado, de

acordo com Shechner e Barba, e ainda acrescento. Tais léxicos corpóreos, reconstituídos

pela percepção e subjetividade que então vivencio, se transformaram num

comportamento restaurado, específico eu diria, sublinhado pela abertura às

possibilidades externas da vivência transcultural já mencionada. (SCHECHNER;

BARBA, 1995)

Escrever sobre as percepções dessa memória, sensório-motor, foi o próximo

passo desta jornada. A escrita. Efêmera, tanto quanto esse exato instante que teclo as

letras do meu pensamento. A escrita. Instante que fala por si só. A escrita. A tentativa

escorregadia de tornar uma ausência, presente. A escrita. Um exercício de rearticulação

da memória. Constatei a existência de mais uma relação estreita entre a escrita e a

dança, a linguagem e o movimento, caracterizada agora pela efemeridade de ambas e

pelo caráter intraduzível da dança na escrita. Para explicar essa efemeridade apresento a

idéia de Noverre, que segundo Lepecki, tem um entendimento de dança como:

“presença evasiva, traço fugaz de um movimento irrecuperável, nunca totalmente

traduzível, nem em notação, nem na escrita”. (LEPECKI, 2004, p.127)

O primeiro recurso que possibilitou a escrita sobre os traços fugazes e

movimentos irrecuperáveis das danças aqui pesquisadas, foi o fogo metaforicamente

percebido no meu corpo, produzido pela fruição de suas semelhanças rítmicas. O fogo é

também o primeiro recurso para a criação da encenação. Como diz Mãe Stella: Xangô é

fogo, é vida, é movimento. Sendo assim, propus uma performance aberta, com tropeços,

2 Empresto as palavras de Ferracini para dizer que ambas as danças são moldadas de especificidades de “codificação e sistematização de um léxico corpóreo que é passado de geração a geração”, encontradas nos seus respectivos mestres. (FERRACINI, 2001, p.123)

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permeada por uma auto-reflexão crítica constante sobre as identificações culturais

sentidas pelo movimento do fogo no decorrer da minha vida.

Como observadora-participante dessa vida em trânsito - de tantas andanças e

vivências em diversas comunidades culturais, sociais e políticas – pactuo a noção de

identidade de Maffesoli (1988) que a considera infindáveis identificações, com a noção

de sujeito pós-moderno de Stuart Hall (2003), como lugares onde inevitavelmente me

situo. Uma pessoa que carrega identificações deslocadas e fragmentadas sendo,

portanto, complexo e impossível, oferecer afirmações conclusivas a respeito de sua

identidade. Acrescento às duas noções anteriores o desejo de Paul Gilroy (1993), em seu

livro The Black Atlantic, contra o fechamento das categorias com as quais nós

conduzimos nossas vidas políticas quando insiste na entrega a um rumo de lições

instáveis e mutáveis de identidades as quais são sempre inacabadas, são sempre refeitas.

Daí a noção de identificação atuando como ponto de interconexão e compatibilidade de

pensamento entre Maffesoli, Hall (2003) e Gilroy. Pois, como já dito, segundo

Maffesoli, identidade é um conceito mais fechado, já estabelecido enquanto que

identificação está aberta a modificações.

Sob o enfoque e a reflexão acerca dessas noções de Hall e Gilroy asseguro que

enquanto pessoa e artista, guardo em meus deslocamentos identitários que por ora,

variam espacialmente do Mato Grosso do Sul, Paraná, Bahia, Santa Catarina, Holanda,

Senegal e Gâmbia, um leque de ‘identificações’ permeáveis e descontínuas. Como

conseqüência da própria condição de trânsito uma identidade aberta e mutável,

deslocada e interconectada se compõe e encena.

Com a percepção deste corpo dançante, passo a narrar os passos que instigaram a

fundamentação teórica dessa trajetória entrecruzada de saltos, confrontos e trocas, em

variáveis de tempo e espaço. Com este processo de análise fiz as observações que

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contribuíram para a realização deste trabalho constituído da escrita de uma memória,

uma etnografia e da encenação - OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ.

2.1.1 Mato Grosso, Três Lagoas uma passagem e Bela Vista um rio.

Nasci durante a passagem de meus pais pela cidade de Três Lagoas, numa breve

temporada de seis meses, ou seja, brotei nesse mundo em ‘trânsito’. A família é mato-

grossense, em sua maioria mora em Campo Grande, razão pela qual o vínculo, as idas e

vindas com essa cidade ainda são recorrentes. Contudo, morei com meus pais e irmãs

até os quatro anos em Bela Vista. Cantava Paloma Branca em castelhano, brincava e

tomava banho nas ‘águas doces’ do rio Apa, um divisor das terras do Brasil e do

Paraguai, muito próximo à casa que morávamos naquela cidade. Línguas mescladas e

(in) delimitações fronteiriças já faziam parte da vida.

2.1.2 Rio de Janeiro, Angra dos Reis, um mar.

Assim, no imaginário de infância, as fronteiras, os limites espaciais se

apresentavam facilmente transponíveis, pois que, aos quatro anos, fomos conviver com

as ‘águas salgadas’, límpidas e transparentes, onde do barco podíamos admirar os

peixes do oceano Atlântico em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. De cantar Paloma

Branca e ouvir os acordes da harpa com a polca paraguaia, muito freqüente naquela

região do Mato Grosso, passei a conviver ludicamente com a escola formal, as primeiras

letras, números e desenhos, o Jardim de Infância. Além de uma declarada

responsabilidade para com os afazeres escolares, marcada por um temperamento forte

Page 44: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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que agradecia ajuda de qualquer pessoa, guardo na memória um temporal, em frente à

escola, na orla de Angra.

O mar está revolto enaltecendo suas ondas, mas apesar de

embaçar o horizonte azul e infindo de uma travessia que faria depois de

muitos anos, esse mesmo mar amplia a percepção intuitiva de um

horizonte interno e desconhecido. Com medo, eu contemplo aquela

paisagem majestosa e perigosa do mar, aconchegada no abraço da

professora, no portão da escola...

2.1.3 Paraná, Londrina uma terra roxa.

Tenho por volta dos oito anos de idade. É 1964. Estou no clube com

minhas irmãs, Eliana de onze e Taninha de quatro anos, rolando morro

abaixo. A terra é bem roxa e o prazer dessa façanha enorme. Quando

chegamos em casa, também roxas dos pés à cabeça, minha mãe Gersy,

fala: “meninas, vão tomar banho no tanque lá fora antes de entrarem no banheiro”. Só

então me recordo que até cinco anos, quando morava no Mato Grosso,

eu não precisava tomar banho de tanque depois de voltar do “rio” Apa,

a uma quadra de minha casa em Bela Vista. A terra era até aquele

momento, na minha cabeça, marrom, uma só cor, uma só terra.

Era o começo de muitas reflexões a partir dali...Veja eu ali, compreendendo que

cor de terra pode diferir de um lugar para outro, experimentando a diferença entre um

banho de rio e um banho de piscina no clube. Paralelo a essa questão havia um outro

fato. Ingressei no vasto universo do movimento daquela cidade pequeno burguesa, onde

o campo da imaginação ficava vulnerável às restritas fontes locais culturais. Ali, dançar

significava pura e simplesmente, diversão e balé.

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E foi com o balé que, em 1961, inaugurei meus passos no mundo da dança, dos

cinco até os dezesseis anos, a partir de quando comecei a ter contato com outros tipos de

práticas corporais, entre elas, dança moderna, jazz, ioga, dança contemporânea, natação,

ginástica rítmica e tênis.

A dança já era a paixão, porém vinha vestida de balé, e eu, mais um fruto do

colonizador, ou seja, a colonizada, uma subserviente que absorveu categorias de

comportamentos induzidas por um suposto ser ‘superior’. E esse ‘fato histórico’ da

colonização européia interferiu e constituiu os povos colonizados. Um processo que

sedimentou nas entranhas de muitas pessoas que integram o contexto brasileiro um

desapreço à sua história, configurando durante séculos um ‘tempo histórico que

originou um ‘sujeito histórico’ adormecido nesse distanciamento de uma identificação

pessoal fadada a embranquecer seus valores, mais veementemente no sul do país, onde

eu morava. Um reflexo? Certamente!

Proponho uma associação entre esse processo de vida particular e um dos

exemplos de projetos manipuladores de colonização. É o método de notação de Raoul-

Auger Feuillet, um dos primeiros a conferir à Academia Royal da França uma

centralização de poder e a impor a influência francesa em nações estrangeiras. Um

método cuja escrita era criada no papel, enviada para ser julgada e classificada pela

academia para somente depois ser colocada em execução. A manifestação desse corpo

tinha como ponto de partida uma geometria plana, racional, linear, manipulável como

uma máquina (LEPECKI, 2004). E esse corpo máquina, enquadrado em movimentos

rigidamente codificados, espalhou-se pelo mundo através do pensamento colonizador

ocidental, chegando a Londrina, na sede velha do Country Clube, onde encontrei o balé.

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1966... Junto com minha mãe, eu desbravo o caminho de terra

roxa levando na mão uma sombrinha, o elemento cênico da coreografia

a ser ensaiada, Polca das Sombrinhas. A chamada sede velha do

Country Clube de Londrina serve de sala de dança, cuja barra é

incorporada à sua total estrutura de madeira rústica. Ao subir os

degraus da varanda meu coração pula e atravessar a porta de entrada

é para mim, descortinar meu imaginário, minhas fantasias.

No conforto da cidade pródiga de Londrina, passei a infância e a adolescência

desfrutando de uma vida pequeno-burguesa. Fazia muitas das novidades em matéria de

cursos de dança e movimento que ali surgiam. Viajar continuava sendo parte importante

da vida. Mato Grosso, São Paulo e Santa Catarina eram os trânsitos mais corriqueiros.

Ao me tornar estudante universitária, em 1974 na UEL (Universidade Estadual

de Londrina), o Rio de Janeiro capital, Cabo Frio e Búzios, passaram a ser os lugares de

reposição de energia nas férias além de instigarem um desejo de transgredir barreiras, de

ir além, ‘sem lenço e sem documento’. De quando em quando, fatos pontuais

cutucavam meus pensamentos e sensações. Contemporânea dos movimentos da

contracultura na adolescência, eu cresci rebelde, romântica, fã dos Beatles, dos Rolling

Stones, Pink Floyd e Janis Joplin. Do Brasil, chamando-o carinhosamente de quintal de

casa, aprendi a amar Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Elis Regina, entre

outros nomes na época da Tropicália, movimento do: ‘é proibido proibir’. Escutava

essas músicas, recebia as mensagens de suas sonoridades e letras e sentia saudade de

outros brasis. Que pulsavam no batuque? Sim, entre outras particularidades da cultura

brasileira, o ‘calor’ da percussão, era uma das repercussões musicais que mais me

arrebatava.

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O calor se expande pelo meu corpo... É o efeito da pulsação

cardíaca num ritmo crescente, quando ouço músicas que instigam o

desejo de um dia chegar à Bahia, ‘passar uma tarde em Itapoã’, ir à mãe

Menininha do Gantois, saber mais sobre Iansã, ‘a rainha dos raios e das

tempestades’, 3 e outros orixás 4 como: Xangô, Ogum, Iemanjá, Omolu!

E assim começou meu interesse pela cultura baiana... Logo após tomei

conhecimento que, até então, Salvador era a única cidade brasileira que contava com

uma Universidade de Dança e com esse incentivo concluí o curso de Engenharia Civil

em 1978. E...

2.1.4 Bahia, o fogo e os orixás em meio à lua, às estrelas, aos coqueiros,

ao mar e às ladeiras de Salvador.

...É Verão de 1979. É uma hora da manhã quando desembarco no

aeroporto Dois de Julho em Salvador, na Bahia e tenho a primeira

sensação em terra: o bafo quente, úmido e acolhedor do ar

soteropolitano. É a festa de Itapoá na madrugada do dia 08 de fevereiro.

Salvador está coberta por um céu estrelado. Uma lua majestosa reflete a

sombra dos coqueiros na areia e ilumina o mar azul que eu avisto de

dentro do ônibus, no trajeto pela orla da cidade. Subimos a ladeira da

Barra e o horizonte transforma-se em ladeiras, em caminhos sinuosos

contornados por árvores grandes, praças, igrejas, travessas, becos e ecos

3 Autores das frases: Sem lenço e sem do documento, (Alegria, alegria) de Caetano Veloso; É proibido proibir, música de mesmo nome de Caetano Veloso; Tarde em Itapoá e Mãe Menininha, de Vinicius de Moraes e Toquinho. 4 Orixá: original em iorubá Orisa. Etmo: ORI = cabeça e SA = guardião – guardião da cabeça, divindade elementar da natureza. (JÚNIOR, 1993, p. 311)

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quando ouço pela primeira vez, ao vivo, soando como um canto: Oh

mainha!...

Pela primeira vez sentia o que poderia chamar de estrangeira. Sentia na pele

mais um dos brasis dentro do Brasil. Com 22 anos, mais um deslocamento geográfico,

determinante estréia em outras esferas distintas do conforto familiar, fazendo

descobertas de um eu mais livre das amarras da educação recebida, percebendo ao vivo

e a cores, as identificações e desidentificações com a seara baiana dentro do grande

território brasileiro. Tempo de vasculhar diálogos entre pensamentos conflituosos e suas

reverberações em atitudes irreverentes. Saía pela manhã para ir à praia, sem lenço e sem

documento. Às vezes, voltava só no dia seguinte. Era uma maneira de deixar que as

ondas do destino me deslocassem a mares não navegados. Um caminho em busca de

uma personalidade, de desejos e de urgências, a fim de transformar as valências da

educação familiar recebida. Desfrutei uma sensação gostosa de encontros. Outras vezes

de desencontros, tropeçando corriqueiramente em ambigüidades e ambivalências,

labutando entre antagonismos na feitura de um caminho.

Em 1980, início do ano seguinte, ingressei na Escola de Dança da Universidade

Federal da Bahia, em Salvador. No ano de 1983, com Rosângela Silvestre, colega da

universidade e professora da Fundação Cultural do Estado da Bahia, coloquei pela

primeira vez os pés em contato com a dança local. Dançar descalça, em contato com o

chão foi uma identificação. Rosângela foi a primeira mestra no campo das

manifestações culturais da cultura negra, um marco de buscas na vida cotidiana e na

profissional. Ela ajudou a ampliar e colocar para fora, algumas questões da vida até

então pequeno-burguesa que, de certa forma, inibiam a energia contida nos movimentos

e pensamentos da dança que aprendera. Na cidade de maior população negra fora do

continente africano, Salvador, foi onde experimentei uma identificação gestual. Por que

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seria? Pelo imaginário das danças e dos ritmos dos Orixás que eu desenhava ao cantá-

los na sacada de casa em Londrina? Talvez.

A certeza é que dançar com Rosângela instigou em mim a ‘inquietude’ de uma

auto-reflexão acerca das etapas da vida. Entre elas a ‘quietude’ da família ou a não

preocupação em relação aos traços indígenas e negros esboçados em nossas feições, aos

costumes alimentares e aos comportamentos culturais incorporados em nossa maneira

de ser. Essa preocupação veio surgir através do meu campo de interesse, ou seja, a

dança na universidade, a dança ‘afro’5 e consequentemente os traços de memória. É

pertinente trazer a discussão que Leda Martins, doutora em Literatura Comparada pela

UFMG, apresentou no Painel sobre Memória e Referência Cultural (Identidade e

Negritude), no dia 12 de junho de 2006 no Auditório da Fundação Pedro Calmon, em

Salvador. Martins trata da memória como ‘uma relação entre lembrança e

esquecimento’ e eu reitero: nós guardamos na memória com o intuito de não esquecê-la.

Como complementação dessa noção, trago o pensamento que Leda Martins desenvolve

em seu livro, Afrografias da Memória. Ali, ela afirma que a transmigração de escravos

para as Américas e a divisão do continente africano em guetos europeus não conseguiu

apagar os signos culturais de seus corpos e “toda a complexa constituição simbólica”

que os caracterizou e barrou o esvaziamento de suas memórias. (1997, pp. 25, 59) E

ainda, como nos alerta Pierre Nora, na revista “Percevejo”, “a memória do

conhecimento além dos lugares de memória (arquivos, museus, etc.), se recria e se

transmite pelos ambientes de memória, ou seja, pelos repertórios orais e corporais,

gestos, hábitos, como meio de passagem, criação e reprodução de saberes”. (NORA

apud MARTINS, 2003, p. 69)

5 Abro essa nota para questionar e justificar o uso da palavra ‘afro’ entre os brasileiros. Sei da amplitude do termo afro-brasileiro, da existência de inúmeras danças brasileiras com traços africanos neste país, assim como do uso do termo conciso afro que é recorrente até hoje no cotidiano de Salvador para mencionar as danças dos Orixás e que adoto neste texto.

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As valências dessas reflexões geraram uma relação mais próxima com a arte,

instrumento de expressão e comunicação através do qual os traços multiculturais

brasileiros eram mais visíveis. A nossa diversidade cultural instigou um forte desejo de

vislumbrar novos horizontes. A partir daí, passei a dançar interessada no que havia por

trás do movimento da dança reconstituída na Bahia, uma expressão de resistência e

transculturação entre diversas culturas predominantemente dos continentes africano e

europeu, com a cultura indígena local. E entre 1983 a 1988, eu tive uma convivência

bem próxima com a religiosidade da cultura baiana, sua maior fonte de expressão de

resistência.

Concluí o Curso de Licenciatura em Dança na UFBA, na mesma época que casei

com um dançarino e percussionista baiano. Como demandam os fundamentos da

religião do Candomblé, ele foi escolhido para participar do processo de iniciação, o rito

de passagem ou a ‘feitura de santo’6. Através desse ritual ele se tornou filho de santo de

um neto de mãe Menininha, uma casa da nação Ketu, ramificação do Gantois, situada

no bairro de Portão, em Salvador. 7 Durante o ano de 1986 assisti ao ciclo de festas e

6 Não menciono nomes do terreiro e do pai de santo, por questão de respeito ao candomblé e ao referido filho de santo dessa casa. Ele preferiu deixar os participantes desta experiência reservados aos seus direitos de sujeitos ausentes em suas histórias presentes, muito embora não negasse a revelação dessa história importante e pertinente no desenrolar da presente pesquisa. Ao mesmo tempo, o segredo, é um dos fundamentos do Candomblé, ou seja, é concentração de força, de axé, de seu poder de realização - uma atitude de calar em certos momentos para não dissipar a concentração de forças através do som da palavra. Vale ressaltar as palavras de Ildásio Tavares: “Inúmeras distorções epistemológicas têm sido perpetradas por falta de um simples entendimento literal de frases ou de palavras em iorubá, que, além do mais, vêm gravadas de uma carga iniciática, portanto pejadas de segredo, awô, palavra básica na complexa religião, tantas vezes folclorizada, tantas vezes mal entendida pela ferramenta pobre do olho eurocêntrico, a enxergar tudo pela lente do preconceito e da incompreensão [...] Tenho ouvido e lido as mais inomináveis asneiras proferidas sobre o candomblé a partir de uma pesquisa falsamente científica porque peca, por base, nos seus métodos, tentando submeter um mundo holístico e não cartesiano a um racionalismo positivista e estéril... Já no seu primeiro grau, a iniciada recebe o nome de iyàwó, freqüentemente resolvido em português para iaô, literalmente mãe do segredo, aglutinação de iyà + awó. O segredo é, sem dúvida, o voto básico de uma religião iniciática”. (TAVARES, 2002, pp. 36, 37, 38) 7 Saliento neste parágrafo o profundo respeito e admiração que tenho para com o antropólogo Dr.Vivaldo da Costa Lima, quem tive a oportunidade de conhecer no Seminário dos seus 80 anos, dia 28 de julho de 2005 na antiga Escola de Medicina no Terreiro de Jesus em Salvador. Como pesquisador específico e competente das Ciências Humanas e Sociais com bibliografias de fácil acesso para o leitor se aprofundar, o autor apresenta entre outros, o termo nação, em sintonia com a noção de Bhabha, já dita. Nação, focado mais nos padrões religiosos no lugar de geográficos; fundamento como força, axé; Candomblé como

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rituais em homenagem a todos os orixás do referido terreiro, o que me deu mais

intimidade com o corpo dançante, com a qualidade de energia do dançarino e com o

corpo dilatado, explicado anteriormente, frente a energia do orixá.

Nesta experiência, vivenciei, então, a sensação de incandescência que a dança de

Xangô possibilita. Fogo que se dá de forma crescente, conforme demanda o seu ritmo,

chamado alujá, o qual impele a aceleração dos movimentos até sua expressão máxima

de rapidez e vigor, representando o trovão, o raio e seu caráter tempestuoso de justiça

como Orixá. Sensação que se espalha pelo barracão e toma todos os corpos presentes

saudando Xangô, o Alafin de Oyó (o rei de Oyó) com palmas e a louvação: Kawo-

Kabiyesilé!! “Venham ver o rei descer sobre a terra”!!

Dessa maneira, os contornos daquilo que, como dançarina se transformaria em

profissão, tomavam pouco a pouco rumos mais visíveis. Desembaçavam os horizontes

de um interesse que me atraía mais e mais, a ir atrás da descendência indígena que trago

por parte de pai e a conhecer o continente africano, características do processo cultural

brasileiro mestiço, do qual faço parte. A procura de um lugar! Que lugar é esse? A

procura de se localizar. Só não imaginava que não alcançaria conclusões definitivas,

nem a meu respeito, nem a respeito dessas congruências culturais. Através desses

processos de investigação cultural, eu tenho a oportunidade de contextualizar na história

mais um corpo, um corpo em trânsito, mutável e inacabado.

Hoje, olhando para trás percebo que essas inquietações contribuíram para

manifestar instabilidades surgidas no ambiente familiar predominantemente feminino

onde crescera. Instabilidades que causavam certo conforto ao me sentir em trânsito, num

‘não lugar’, onde pudesse arriscar uma atitude crítica. A indefinição da cor mestiça e a

sistema de crenças que o leitor poderá conferir em seu livro A Família de Santo nos Candomblés Jejes-Nagôs da Bahia (um estudo de relações intra-grupais), Salvador, 2003, cap.I).

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convivência cotidiana em um universo familiar eminentemente feminino contribuíram

para entender que este espaço ou lugar da mulher era para ser conquistado, uma luta

constante dentro de uma sociedade que está no encalço de apagá-la e subjugá-la. Nesse

estágio da vida, com as noções e sensações daquele momento voltei para o sul do país,

desta vez para a ilha de Florianópolis. A ilha e o frio propiciaram um ‘olhar para dentro’

e reflexões sobre essa condição de feminilidade.

2.1.5 Santa Catarina, Florianópolis, ‘um pedaçinho de terra perdido no

mar’ 8 e o encontro entre o mar, o rio, a lagoa, a cachoeira, as

dunas, os morros e as pedras.

Morei em Florianópolis, de 1988 a 1994 e ali comecei a desenvolver a carreira

de professora e coreógrafa. Parti das experiências anteriores na Bahia enquanto

dançarina de grupos como o Corpo e Magia e o Reticências, e como aluna da Escola de

Dança da UFBA e da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Intuitivamente, eu unia a

consciência corporal e a improvisação com os aprendizados da cultura afro-baiana, em

especial as danças dos Orixás, aprendidas com Rosângela e observadas nos candomblés

de Salvador. Em 1990, criei o Grupo Omalagô 9 que levou à fundação do Espaço

Omalagô, o único da capital catarinense na época, dedicado ao estudo da dança afro,

fomento de reflexões sobre a transculturalidade da cultura brasileira e sua influência nos

projetos de cursos e nas performances ali criadas.

8 Esta é uma frase da música do Hino Oficial do Município de Florianópolis. Zininho é o autor do "Rancho de Amor à Ilha", canção vencedora de um concurso promovido pela Prefeitura Municipal, em 1965. (site: www.paginadojairo.pop.com.br/ponte.htm) 9 Omalagô é uma conjunção nominal entre Omagulê, uma prece que Mamour ensinou de pedido de força aos ancestrais com lagô que vem de lagoa (Lagoa da Conceição) local onde criamos o grupo.

Page 53: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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O grupo Omalagô era uma homenagem a Mamour Ba, dançarino e músico

senegalês formado pela Universidade de Dança Mudra de Dakar, Senegal, e com

mestrado em Música pela Universidade de Versailles, França. Mamour foi o primeiro

africano 10 a me mostrar a complexa simplicidade que, sob meu campo de percepção,

faz da arte africana uma arte bela e envolvente, em especial a dança do Senegal, de

Gâmbia e de Guiné, com as quais mantive contato e ligação, a partir de então. Meses

antes, havia conhecido o diretor de teatro Lau Santos, com quem adquiri as primeiras

noções de Antropologia Teatral, instigando a remoção de aspectos latentes de um jeito

de ser, caracterizado por um espírito de observação de comportamentos, gestos e

movimentos em situação espetacular (extracotidiana) ou no cotidiano.

Significativamente, os primeiros contatos com a cultura do Senegal e a

Antropologia Teatral aconteceram no mesmo momento. Esse dado é determinante e de

muita valência para os estudos do movimento e de outros elementos constitutivos e

fundantes do corpo dançante dessa pesquisa, situados no não lugar da mulher parda que

sou, amante de atitudes reflexivas e da atividade de vasculhar. E depois, sentir-se livre

para criar, a partir dos movimentos rituais, sem invadir suas âncoras ou especificidades

intocáveis.

Com esse suporte ético e uma dose de ousadia, eu pude descobrir através de

Mamour Ba o que seria ultrapassar os supostos limites físicos até atingir um estado de

êxtase, quente, fogo. É quando o corpo alcança uma sensação de completude, os níveis

sensitivo-corporais se entrelaçam dentro dessa massa condensada, o corpo dançante.

Faço uma analogia simbólica entre esta sensação que alcancei com Mamour e o estado 10 Usar o termo africano é um tanto generalizado, no entanto, uma vez dito que Mamour é senegalês, não o isenta, pelo contrário, o insere no continente africano. Por isso, autorizo-me a usar o termo africano nesse momento, exatamente para expressar a idéia generalizadamente equivocada que naquela época, entre outras pessoas, eu ainda fazia de uma África homogênea, muito embora fosse ciente da diversidade dos países que compõem esse continente.

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liminar dos rituais de passagem assim denominado por Van Gennep, em 1909. (VAN

GENNEP apud RIVIÈRE, 1996; TURNER, 1974) Por quê? Esse estado liminar das

experiências com Mamour Ba foi como um rito imprescindível de transição para a

posterior convivência com a cultura de Senegâmbia abrindo as portas do odu 11 para um

estágio além... A ialorixá Mãe Stella tem uma definição de odu que entrelaça mito, fé e

vida:

Olorum 12 já sabe quem vai nascer, então você pega essa pessoa que vai nascer e manda que ela escolha o Ori (o Ori é a cabeça). No lado físico, onde nós pensamos e no lado espiritual, que é a fonte de energia para gente. É como se dissesse assim: ‘Você vai nascer, então escolha seu futuro, escolha seu caminho’ e deixa lá o lugar onde cada um faz a escolha, a depender de como queira. Nisso, a pessoa nasce. Depois de pesquisas de uma forma adivinhatória, é que se vai descobrir quem é o Odu, qual é o caminho e qual é o orixá da pessoa, mas a pessoa já vem com seu destino traçado. O destino ninguém muda, se dá uma mãozinha, se cortam as arestas, cresce e preenche com qualquer coisa. (MÃE STELLA apud PRETTO e SERPA, 2002, p.41)

Alguns anos mais tarde, desprovida de tal suposição, encontrei no meu odu o

músico Fayee Diona da Gâmbia e a dança do Bugarabu, objeto do presente estudo...

2.1.6 Passagem por Londrina, o lago Igapó e depois Körsvag na Suécia

Além da disciplina rigorosa e da intensidade de horas em que nos debruçávamos

sobre as demonstrações artísticas da VIII ISTA, em Londrina, em 1994, o intuito de

todos os participantes era estudar minuciosamente o movimento. Ali, pude refletir sobre

11 Odu é o nosso caminho, nosso destino na língua ioruba, reinscrita no Brasil pelos africanos nagôs da região da Nigéria que para cá foram trazidos na época da escravidão. 12 Olorum é a Divindade Suprema.

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a complexidade do termo ‘tradição’ além de lidar com outros campos do movimento,

em que destaco: (1) a qualidade da energia empregada no movimento, (2) as diferentes

tradições (da arte de ator/dançarino) e (3) os fundadores de tradição, tema daquela

sessão da ISTA. Um turbilhão de descobertas sintetizadas num grande espetáculo no

lago Igapó. Era a apresentação do Theatrum Mundi, resultado do tema desenvolvido

com atores-bailarinos asiáticos e do Odin Teatret,13 além de artistas locais, durante a

sessão interna daquela ISTA. Uma performance transcultural. Era o símbolo do que

tínhamos ouvido e pesquisado durante aqueles dias em forma de espetáculo, como

resultado do trabalho da equipe artística (Índia, Japão, Bali – Indonésia, Brasil e

Dinamarca) e da intelectual (Cuba, Dinamarca, França, Itália e Alemanha), que

compuseram e renderam um suporte mútuo na realização daquela sessão. Foi um

encontro com a infância e com a adolescência, com tradições. Um encontro com a

Bahia, através do barco dos atabaques e de Augusto Omolu 14, espalhando com sua

dança, o fogo e o vigor de Xangô. De maneira envolvente, sem perceber, a tradução

daquelas formas de tradição tinham definido e reinventado um sentido, ou seja, uma

nova tradução de mim.

Algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de “Tradição”, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou ‘puras’; e essas, conseqüentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins (acompanhando Homi Bhabha) chama de “Tradução”. (HALL, 2002, p.87)

13 OdinTeatret é o grupo dirigido por Eugênio Barba, com sede em Holstebro, na Dinamarca, local que visitei após a ISTA. 14 Augusto Omolu é um dançarino nascido em Salvador. Cresceu na religiosidade do Candomblé, onde é um ogan (assistente cerimonial). Entre outras passagens, como por exemplo, dançarino solista do Balé do Teatro Castro Alves, em Salvador. Augusto é representante do Brasil na ISTA e por ser atualmente membro integrante do Odin Teatret, reside em Holstebro e vem freqüentemente para a Bahia. Somos amigos e em algumas oportunidades, companheiros de trabalho. Os dados aqui apresentados sobre a trajetória profissional de Augusto não estão escritos em livros, eles advêm da nossa amizade e, portanto são de minha inteira responsabilidade.

Page 56: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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2.1.7 Körsvag na Suécia, foi como um trampolim para chegar a Amsterdã.

No decorrer dos dias vividos em Körsvag, eu estava envolvida numa atmosfera

de pessoas com interesse nas transformações do pensamento onde pude, através das

palestras de Patrice Pavis, Jean-Marie Pradier e Kirsten Hastrup, constatar que a arte, os

estudos antropológicos e as ciências sociais são associáveis.

Depois desta experiência durante a ISTA, eu estava alimentada com as

inquietações despertadas e os conhecimentos que adquiri, fato que, conseqüentemente,

despertava uma maneira nova de lidar com a arte. Constatava uma relação evidente

entre o campo prático e teórico que desfrutava. Entre a arte voltada para as culturas do

Senegal e de Gâmbia e os princípios criados por Eugênio Barba (1994) ou ‘bons

conselhos’, explicados anteriormente. Entre eles, acomodei alguns à nova experiência

que desfrutava em Amsterdã: a) a pré-expressividade, entendida como o estudo prático

dos níveis de organização funcionais - o impulso, a intenção e o modelar da energia -

para a execução efetiva de uma determinada ação; b) a dilatação do corpo, ou seja, dos

sentidos; c) aprender a aprender – que significa observar e fazer da referência um

elemento criativo para ser utilizado na arte; d) o treinamento para o teatro ou a liturgia

para os rituais, análogos no que concerne à repetição e à disciplina; e) o ritual

individual como apoio para o processo criativo. Narro a seguir o primeiro encontro em

que vislumbrei essa possibilidade de diálogo entre o campo teórico e prático da arte do

movimento.

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56

2.2 O Encontro com o Bugarabu - Amsterdã: ponto de conexão da

percepção dançante do fogo transatlântico entre Salvador e Senegâmbia.

Um dia, ao andar pelos canais da cidade, sigo o som de uma

percussão e encontro a sala de onde ressoa a música vibrante. Na

grande sala, pessoas de vários lugares da Europa, e do mundo, dançam

juntos com o professor Lamim Touray, acompanhados e estimulados por

Fayee Diona, um etnomusicólogo com PhD na Universidade de Boston,

ambos da Gâmbia. Esse último está atrás de quatro grandes

instrumentos de percussão, e com uma espécie de guizos amarrados nos

pulsos performa aquela música percussiva extasiante.

A atmosfera é uníssona e transmite através da música e da dança

uma justaposição de corpos que se expressam para além de qualquer

fronteira. Portanto, repercute uma atitude frente às diferenças. Uma

percepção afirmativa de alegria e de felicidade, sem pátria. Viver

momentos intensos e compartilhar com todos que os circundam é a

filosofia que emana daqueles quatro instrumentos. Suar, confraternizar,

sentir o ritmo, são formas de sentir a vida, atuante, quente, rompendo o

frio humano e o frio aterrador que forma a atmosfera de Amsterdã. A

percussão e o calor, o fogo, fazem com que eu me aproxime mais e mais

daquela que é a dança do Bugarabu.

O Bugarabu é uma dança e é também o nome deste instrumento que Fayee

Diona manipula. Acabou por se tornar um festejo popular muito importante para o povo

da região de Casamance, no sul do Senegal, oeste da África e de toda a Senegâmbia,

nome de uma confederação entre Senegal e Gâmbia, sobre a qual me debruçarei no

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Capítulo I. Sua origem vem do ritual da colheita de arroz que acontece nessa região

durante três dias, numa temporada de dois meses, em torno de uma fogueira.

Ilustração 3 - Esquentando o Bugarabu para aula, Almere, Holanda, 1999. Foto: Sandra Mascarenhas

A dança do Bugarabu é a partitura, a escritura do seu próprio ritmo no espaço.

Depois de viver a dança do Bugarabu descobri que quando mais eu digo é quando eu

danço, quando atravesso os limites de esforços corporais e tenho aquela sensação de

completude narrada anteriormente. O corpo dilatado. Eu poderia dançar horas e horas...

Foi assim, com o Bugarabu, com Fayee Diona, que senti como anos antes, com Ba

Mamour, em Florianópolis, como também no lago Igapó, com o barco da Bahia e o som

dos atabaques. Sempre quente, sempre fogo, como as danças dos orixás no Portão,

quando há tantos anos via um inesquecível filho de Xangô, dançar nos rituais festivos.

Com estas convivências transculturais, percebia que as fronteiras entre a dança, a

cultura, as histórias e estórias humanas estavam embaçadas. Eu estudava enquanto

Page 59: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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vivia, enquanto trabalhava, enquanto curtia, enquanto pesquisava, enfim, tinha

encontrado assim, um sentido muito forte para aquele momento da vida: viajar para

Gâmbia e viver todos esses “enquantos”, em seus antagonismos e afiliações.

2.3 O vislumbre do encontro da dança de Xangô com a dança do

Bugarabu

2.3.1 Amsterdã, Gâmbia e Senegal.

Numa idéia imaginária relaciono o Brasil e a América Latina comigo,

Senegâmbia e a África com o Fayee. O Oceano Atlântico nos separa. Estar em

Amsterdã, na Europa era uma facilidade a mais para chegar na terra do Bugarabu. Na

condição transitória desses “entres” pré-sentia, uma possibilidade maior de me

posicionar enquanto mulher latino-americana. Exatamente ali, eu encontrara meios de

dar voz a sonhos expressos pelo ritmo, pelo fogo, enfim, pela dança e atitudes enquanto

professora e dançarina. A África parecia mais próxima.

Cheguei em Gâmbia, em janeiro de 1996. Fui conhecer de perto a tribo djola

localizada em Donsekunda, região de Candion, na Gâmbia, local onde Fayee iniciou

seus estudos de Bugarabu. De volta a Amsterdã fui convidada por Fayee Diona a

ministrar aulas desta dança. Fiquei lisonjeada pelo convite, por saber que era um

reconhecimento do meu trabalho, contudo, acreditava que esta seria uma tarefa para

alguém daquela região. Por outro lado, intuía uma possibilidade de criarmos um

trabalho singular, e por isso sugeri ao Fayee que, em experimentos e aulas

performáticas, uníssemos a dança afro com os ritmos do Bugarabu.

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Seria um desafio a ser enfrentado, cuja dificuldade girava em torno do choque

cultural inevitável, uma vez que Fayee era arraigado à sua tradição cultural, 15 e por esse

motivo relacionava a dança diretamente a um ritmo específico, e vice-versa. Quanto a

mim, eu era e sou, fruto de uma diversidade mais evidente, ao lado de travessias e

convivências distintas, cujo rumo profissional foi apontado na Bahia, local embebido da

cultura afro-descendente, onde misturar é corriqueiro. Então, lembrei do dia que

mostrava para Fayee os ritmos dos orixás, quando ao ouvir o alujá de Xangô, ele disse:

“This rhythm sounds like the Bugarabu!” (Esse ritmo parece com o Bugarabu!) E foi a

partir daí que, passo a passo, fizemos sete anos da nossa dança na Europa.

Nem Xangô, nem Bugarabu, uma composição nossa, transformada, a quatro

mãos, com traços e rastros das duas manifestações dançantes. Empresto as palavras de

Eugênio Barba, para explicar com que percepção nós (Fayee e eu) traçamos nossa

composição. Sinalizo que abordamos a tradição sob o enfoque precioso de suas

especificidades, portanto, as nossas âncoras eram exatamente as ferramentas que

rendiam suporte para uma criação trans-formada, uma tradução de nós.

As tradições estratificam e refinam nas suas formas o saber de sucessivas gerações de fundadores e permitem a cada novo artista começar sem ser obrigado a recomeçar do início. As tradições são heranças preciosas, nutrição espiritual. A centelha da vida, na arte, é a tensão entre o rigor da forma e o detalhe rebelde que internamente a abala e a faz assumir um novo valor, um aspecto irreconhecível. (BARBA, Prospecto da programação da VIII ISTA, 1994).

15 Tratarei da questão da tradição cultural de Fayee no capítulo I que será colocada numa posição de relatividade com a história de Senegâmbia que remonta séculos e evidencia a improvável condição de pureza dos gambianos e senegaleses.

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Ao lado de Mamour Ba, Issa e Pape Assane Sow (Senegal), Youssouf

Koumbassa (Guiné), Fayee, um dos poucos conhecedores deste remanescente

instrumento de percussão, foi um dos colaboradores mais significativos para o

conhecimento que adquiri, além de aumentar meu interesse pela cultura oeste africana,

especialmente a música e a dança. Construímos naquela articulação de pessoas vindas

dos mais variados lugares, uma nação cultural singular durante aqueles anos até 2003,

quando a cada três meses intercalados entre Bahia e Holanda finalizei meus

compromissos em Amsterdã e voltei para morar no Brasil.

2.3.2 Bahia, o fogo, o eterno retorno à Salvador, um porto (in)seguro, uma

encruzilhada.

Desde aquela noite quente de fevereiro de 1979, ao aportar no aeroporto Dois de

Julho, criei identificações com Salvador, sua cultura e sua gente que mesmo depois de ir

embora, em 1988, não parei mais de retornar. Um porto (in)seguro. Lugar das

encruzilhadas, o ponto de encontro entre mares, rios, cachoeiras, terras (roxa, marrom,

areia), lagoas, lagos, morros, dunas, praias, luas, estrelas, ladeiras e pedras. Tudo

inscrito na memória e expresso na dinâmica híbrida destas encruzilhadas em

movimento, tão bem explicado por Leda Martins:

[...] Na tentativa de melhor apreender a variedade dinâmica desses processos de trânsito sígnico, interações e intersecções, utilizo-me do termo encruzilhada como uma clave teórica que nos permite clivar as formas híbridas que daí emergem. (cf.MARTINS, 1995) A noção de encruzilhada usada como operador conceitual, oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas,

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concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim (MARTINS, 2003, p.70).

E ainda:

Na concepção filosófica de muitas culturas africanas, assim como nas religiões afro-brasileiras, a encruzilhada é o lugar sagrado das intermediações entre sistemas e instâncias de conhecimentos diversos, sendo freqüentemente traduzida por um cosmograma que aponta para o movimento circular do cosmos e do espírito humano que gravitam na circunferência de suas linhas de intersecção. (MARTINS apud cf. THOMPSON. R. 1984; MARTINS, L. 1997, 2003)

O fogo transatlântico está localizado entre: (1) as águas que separam a América

do Sul da África (continentes), geograficamente unidos no passado; (2) o Brasil e a

Gâmbia (países); (3) a Bahia e Senegâmbia (estados); (4) Salvador e Banjul (capitais);

(5) o Ilê Axé Opô Afonjá e Candion (comunidades); (6) a dança de Xangô e a dança do

Bugarabu (manifestações culturais); (7) Sandra e Fayee, (manifestação artística). Todo

esse movimento é circular. Re-tornar a Salvador para re-lembrar, re-viver, re-aprender,

re-ciclar, re-criar. Um re-torno análogo à circularidade rítmica, que volta sempre ao seu

ponto de partida e, através de um novo impulso mantém acesa a chama, o calor que gera

novos movimentos, novos deslocamentos. Estes traços mnemônicos e diacrônicos

surgem do saber em constante trans-formação. 16

Aponto a seguir, três aspectos pertinentes para esta pesquisa, que ressurgiu do

movimento circular e da encruzilhada entre ambas as danças. O primeiro aspecto é

concernente ao ritmo: a cada pisada ritmada no chão e a cada suspensão dos pés no ar,

um gesto de prontidão resiste e se pré-para. Nesse pré-para existe uma energia suspensa,

uma imobilidade em movimento. Refiro-me à energia no seu sentido físico, ou seja, a

16 Essas questões analógicas e metafóricas da relação que trago entre círculo, ritmo, movimento, deslocamento, calor, fogo, ou seja, as percepções de espaço, tempo, memória, transcriadas serão tratadas mais minuciosamente na continuidade da dissertação. A intenção por enquanto é apontar o diálogo que proponho entre o tempo e o espaço no ritmo e no movimento, com as possibilidades que tais trânsitos e retornos da vida, (os ‘trans’ e os ‘re’), sugerem para que um corpo recrie uma performance.

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capacidade de um corpo para realizar trabalho. O ritmo acelera, gera calor, fogo, e se

materializa em movimentos vigorosos que expressam uma atitude quando o corpo se

posiciona. Eugênio Barba toma o termo norueguês sats para tratar dessa energia. É uma

força suspensa no ar, pronta para ser liberada no espaço. No momento em que o ator-

dançarino experimenta essa energia, ele está pronto para a ação, ao ponto de produzir

trabalho. Há um empenho muscular, nervoso e mental dirigido a um objetivo específico,

à ação em que já está decidido a executar. (BARBA, 1994).

Outro aspecto relevante são as expressões transculturais, que em vez de

obstáculo podem emergir como uma oportunidade e um lugar precioso para a utilização

dos meios formais. O lugar do confronto, as brechas entre a experiência, a observação e

a trans-criação acadêmica.

O deslocamento condensa o movimento e dá vida à dança que por sua

efemeridade, ao terminar desaparece e deixa rastros na memória. O desejo de retorno da

presença dissipada instiga a escrita e a performance que a partir daí se tornam co-

dependentes e ilustram o terceiro aspecto relativo a esta criação.

A experiência vivida ficou no corpo e possibilitou o mergulho reflexivo que

viabilizou o anteprojeto que apresentei para este programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da UFBA. Anteprojeto ontem, projeto hoje. O fogo de Xangô quando encontra

o fogo da dança do Bugarabu é uma possibilidade a mais para reflexões em torno da

dança como instrumento de escrita e de discurso, prenunciado no capítulo que se segue

por um exercício de memória.

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3. CAPÍTULO I – Da Centelha Ao Fogo: Memória

Esse corpo que é meu. Esse corpo que não é meu. Esse corpo que é, portanto meu. Esse corpo estrangeiro. Minha única nação. Minha casa. Esse corpo a ser readquirido. Odette Aslan 1

O presente capítulo tem como foco principal o trajeto da centelha ao fogo na

memória do meu corpo dançante. Relembrei, narrei e refleti sobre momentos anteriores

ao encontro com o Bugarabu como exercício de memória e entrelaçamentos,

exatamente pela condição de vulnerabilidade a outros padrões de dança, que enxertaram

a compreensão e interpretação peculiar da dança do Bugarabu durante este trajeto. São

questões pertinentes à delimitação e investigação do estudo em questão. As principais

delas estão relacionadas com o elemento metafórico fogo, presentes na dança de Xangô

e do Bugarabu, e com dois parâmetros da transculturalidade que por um lado,

perpassa e caracteriza a trajetória que percorri e por outro lado é identificada nas danças

entre si. Esta experiência de intensivas práticas corporais ficou inscrita no corpo e foi

transformada pelo corpo com o passar do tempo, com o deslocamento de espaço e com

a interação com outros corpos.

Na complexa tarefa de trabalhar com a memória e com as questões

multiplicadoras que o esforço de reflexão faz ressurgir, eu abordei neste primeiro

1 ASLAN, Odette; HYVRARD, Jeane. Les corps em Jeu. Trad. Lau Santos. Paris: Editions de Minuit, 1977.

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capítulo o prenúncio do fogo que teve seu início com o balé, passou pelo meu rastro

indígena e pelo calor da dança de Xangô até chegar no Bugarabu. Nesse percurso,

mantive um diálogo constante com algumas considerações teórico-conceituais

desenvolvidas a seguir. Foi a maneira escolhida para anunciar o capítulo seguinte, onde

trago reflexões sobre a memória do encontro e vivência com o Bugarabu, num corte

temporal que vai de 1995 a 2003. Tal exercício apontou a necessidade de elaborar os

anexos, para os quais fui beber em outras fontes que tratam dos rituais do Bugarabu e

dos aspectos históricos que o envolvem. Dessa maneira foi possível obter uma coleta de

dados mais ampla e, ao mesmo tempo, alheia à minha experiência singular, o que

possibilitou criar comparações, desdobradas em semelhanças e diferenças.

3.1 Prenúncios do fogo em diálogo com considerações teórico-

conceituais sobre: Performance, Antropologia Teatral e Arte

Africana

3.1.1 O Balé, o rastro da centelha

Início dos anos 60... Vestir a roupa de balé é vestir-se do

personagem da bailarina que eu chamo de “ritual da sapatilha”... Por

quê? Primeiro, por ela representar, naquele imaginário, o ápice na

construção do personagem: a meia calça rosa, o collant de manga “três

quartos” preto, a minissaia evasé (envelope) preta e então a “sapatilha

de meia ponta”. Segundo, porque só o alcance da técnica básica e alguns

anos de dedicação e disciplina permitem a passagem para o degrau

acima, marcado pela introdução da “sapatilha de ponta” e das piruetas,

associadas a uma meia “três quartos” com várias dobras calçando o

metatarso para proteger os dedos...

Page 66: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

65

Eu, mais uma entre as muitas bailarinas do século vinte influenciada pela técnica

do balé que adquirira uma estética global, depois do período romântico. Uma luta em

relação ao refinamento físico e à purificação que originou códigos de civilidade corporal

na corte da Renascença Européia. Foster coloca no texto, “The ballerina’s phalic

pointe”, que a técnica e os critérios do balé indicam um padrão universal de realização

física na dança e prenuncia um meio de homogeneizar a expressão cultural. Oferece

uma técnica global cujas pretensões asseguram, ao mesmo tempo, o acesso de cada

comunidade a um status mundial, e a capacidade de particularizar-se. Isso se aplicava às

condições de Londrina, uma pequena e jovem cidade do interior do Paraná, com apenas

30 anos.

Ainda neste texto Foster aborda o comportamento distinto entre dois corpos no

balé e evidencia uma relação específica entre os gêneros masculino e feminino que se dá

pelos olhares, figurino, gestos, movimentos e funções de cada um durante a execução da

coreografia. Quatro traços de ordem patriarcal são indicados: a união heterossexual; a

superioridade auto-suficiente do caráter masculino como fantasia carismática que ela (a

bailarina) aprova; a potência masculina e o direito a governar; e a competição capitalista

na sociedade de consumo. (FOSTER, 1996)

Hoje percebo que as indicações de Susan Foster permeavam o subtexto das

relações que o professor Luis Villarejos estabelecia conosco, suas bailarinas. Não havia

sequer um homem dançando. Seria o tipo de cidade pequeno burguesa, onde a

sociedade heterossexual e machista imperava? Seria o preconceito forte quanto a um

homem como bailarino, porque balé era coisa de mulher? Seríamos nós, as bailarinas,

um alvo onde o professor reprimido pela sociedade local, pudesse se colocar para

satisfazer seu desejo enquanto espectador daquela atmosfera fantasiosa, e que por outro

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lado, lhe garantisse o exercício de poder, ao manipular e dominar a situação enquanto

professor, diretor e coreógrafo de nossas coreografias? Por qualquer dessas razões ou

por tudo junto, o importante é constatar e refletir sobre essa questão hoje, para a qual

naquela época, eu não estava atenta... Contudo, sofrer fazia parte; a meta era dançar,

custasse o que custasse!

Bailarina gosta de sofrer... Ah, eu quero dançar como a Fernanda

Carnio, não importam as dores nas coxas, nos dedos dos pés, nem mesmo

a dor quando o professor Villarejos bate com a varinha na ‘bunda’ da

gente. Mas essa hepatite assolou meu coração, tenho que parar de

dançar por um tempo... Alguns meses depois... O auge da minha emoção

infantil de palco, antes, durante e depois da performance, com a música

Noturno, de Chopin. 2

Estou sozinha no palco pela primeira vez: vou para a coxia, meu

coração acelera, a emoção e o calor interno chegam à superfície da pele.

A música começa quando eu finalmente entro “na ponta” deslizando,

toda de branco, de tutu, segurando uma rosa vermelha na mão à altura

do peito, preenchida com a emoção forte de realização daquele sonho.

Um sonho de consumo muito comum entre as meninas deste lugar, desta

época. O coração acalma e a emoção transborda na execução da

coreografia, até finalmente quando o tronco, a cabeça, os braços e as

mãos ainda segurando a rosa vermelha repousam na minha perna

direita completamente escalada no chão. 3

3 Esta percepção senso-corpórea de calor em interconexão com a intensidade rítmica e o movimento, marcou traços que hoje são reconhecidamente importantes para o recorte e para os argumentos do discurso transcultural sobre as duas danças aqui estudadas e transcriados no fogo da performance.

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67

3.1.2 O rastro indígena

Tenho 10 anos. Depois do festival de balé em Londrina, como de

costume, nas férias escolares eu vou para a casa de minha avó “Mili”,

em Campo Grande, no Mato Grosso. Nesse dia ela está usando um

vestido de fundo branco com estampa nas nuances do marrom, mais

claro que o tom marrom avermelhado de sua pele, olhos puxados e

cabelo grisalho ondulado. A cena é inesquecível. Sentada em sua cadeira

de balanço, ela chacoalha o pé que ressoa um estalido no contato com o

chinelo, e eu penso: Por que minhas tias fazem isso, sempre? Hoje já

acostumei com a idéia, faço o mesmo ainda que não saiba o motivo, tão

somente como apreensão de comportamento corporal familiar. Debaixo

daquele calor seco da varanda, vovó sacode o vestido e faz aquele som

peculiar com seus lábios...

- “Pprruuu... Tá demais quente! Sandra minha filha, me alcança o

abanico, por favor?”

Eu entrego o abanico (uma influência do castelhano para dizer

leque). Sento na rede e mergulhada em devaneios, observo: A mão de

unhas pintadas com a costumeira cor rosa abana o leque indígena de

palha em direção ao seu rosto, aliviando o calor. O quintal é decorado

por corredores de flores e plantas, orquídeas de todas as cores e espécies

alimentando sua paixão.

Lááá nos fundos dessa perspectiva verde que as plantas desenham,

vejo a oficina de meu avô, onde a confecção de guaraná em bastão e

trabalhos com osso, como cabo de guarda-chuva, preenchem o tempo de

vida que lhe resta... De longe vejo aquele homem imponente, nem negro

nem índio, uma mistura comumente encontrada neste lugar. Um

homem robusto de pele avermelhada, ralando o bastão marrom de

Page 69: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

68

guaraná para transformá-lo em guaraná em pó. Seu cabelo que um dia

foi cacheado hoje alisou, assim como o de meu pai.

A título de curiosidade, em meio às cores em nuances de

vermelho e marrom das nossas peles, da nossa família, eu pergunto:

- Vó, nós temos índio na família?

- Sandra, minha tataravó era índia, é o único que sei... E balança

a cabeça

- Vó, por que, vira e mexe chamam a gente de bugre?

- Minha filha, bugre é um jeito carinhoso de chamar e também é

quem tem mistura de índio com caboclo, e o caboclo é a mistura

de índio com negro. Como sua tia Zininha e sua tia Lurdes, que

têm a pele dum marrom avermelhado, entendeu?

Pensei: entendi, mas não compreendi, mesmo porque toda Campo

Grande, não tão grande assim na época, era parente, quando não de sangue, a fisionomia

cabocla, indígena, avermelhada, era semelhante. Com o passar do tempo, essas

perguntas e dúvidas internas criaram um ‘jeito de ser’ também mato-grossense em mim.

Entre outros aspectos, o costume alimentar (sopa paraguaia, muito uso de milho na

culinária, aipim com churrasco...) e valores éticos como, solidariedade e autonomia,

alimentavam sutilmente meu interesse e gosto por resquícios daquela “cultura”, da

minha brasilidade.

3.1.3 Os pés descalços e o prenúncio do fogo de Xangô

Era a primeira aula com Rosângela Silvestre.

Page 70: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

69

- Sandra, vou começar um curso livre de dança afro na Fundação Cultural do

Estado da Bahia. Venha experimentar a minha aula! Eu fui. Não foi a primeira vez que

dancei de pé descalço, sem as amarras da sapatilha de balé, mas definitivamente pela

primeira vez sentia os pés descalços, o corpo descalço.

Que sensação gostosa dos meus pés tocando e desenhando o som da

percussão no chão. Que bom poder soltar os ombros e estar com a coluna

reclinada suavemente para frente sobre meus joelhos dobrados. O poder

soltar o corpo na dança é poder soltá-lo na vida, longe dos quadris

presos do balé e longe da supervisão paterna e materna de vida. Uma

oportunidade de tirar os véus desse comportamento de menina-mulher

que deseja escorregar, vencer receios e ousar. Sou menina ou mulher?...

Como é difícil ter a iniciativa de entrar no círculo no final da aula e

improvisar com os músicos. O calor invade o corpo, esboço um

contratempo nos pés atuando como um impulso que sobe pelas pernas

soltando os quadris para um lado e para o outro e se espalha pelos

movimentos incertos dos braços como as fagulhas do fogo desenhando o

ar, quando Rosângela me segue e insiste: “Vai, você pode mais”. E eu vou...

Desenhar o som da percussão no chão insinua uma tentativa de deixar a sensação

daquele momento efêmero da dança inscrita em algum lugar. Momento da performance,

que segundo Peggy Phelan garante a sua presença única no presente. Por conseguinte,

escrever nesse instante sobre essa tentativa de inscrever a dança afirma a intenção de

tornar presente o que está ausente, guardado na memória. Dar visibilidade àquela

sensação que desapareceu na invisibilidade ou nebulosidade da memória, escapando ao

controle de definição. Phelan diz que “a descrição não reproduz o objeto, mas nos ajuda

Page 71: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

70

a reencenar e rederterminar o esforço para lembrar o que foi perdido”. (PHELAN, 1993,

p. 147, tradução minha)

É urgente lançar esta reflexão sobre esse lugar das brechas, que os movimentos e

as percepções da dança, já não mais restrita ao balé, reverberavam, desde então, em

outros terrenos do pensamento do meu corpo dançante.

‘Entrar no círculo’ significava transpor limites internos. Como diz a expressão

‘dançar conforme a música’, a atitude de ‘entrar’ desencadeava três níveis de extensão:

primeiro na roda, era uma questão de distribuição espacial, cujo ponto de convergência

energética, o centro, é o foco das atenções, local de exposição da menina-mulher

adentrando um ambiente desconhecido; segundo no ritmo, era adentrar uma dinâmica

contínua de agregação, de concentração de energia que serve de impulso para a

sustentação de sua característica imprescindível, ou seja, a circularidade rítmica; e, por

último, no circulo social, uma atitude de afirmação de pertencimento à comunidade

baiana, manifestada na execução dos movimentos da performance, focando aqui seu

sentido de desempenho. 4

3.1.4 Florianópolis, o fogo, o êxtase, a vertigem na aula com Mamour Ba

O processo de criação artística do Grupo Omalagô brotou durante uma aula na

Academia Condor, localizada na beira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Foi

inspirado pelo canto de Mamour Ba, chamado Omagulê e a música do chileno Pancho

4 Destaco nesses três níveis de extensão da atitude de ‘entrar no círculo’, a palavra concentração comum à situação acima e a outras danças. Por sua pertinência e importância dentro deste estudo, enfatizarei mais do que uma vez durante a dissertação, a circularidade: do xirê, (a dança dos orixás em círculo quando, de acordo com ritmos específicos, as entidades são evocadas para se manifestarem através dos corpos de seus filhos durante os rituais abertos do terreiro); do ritual de celebração da colheita de arroz com a dança do Bugarabu em Senegâmbia; e do ritmo, propriamente definida por Fayee Diona como ‘roundness’.

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Blanca, com percussão, flauta e efeitos sonoros acústicos. Omagulê é uma prece de

pedido de força aos seus ‘ancestrais’, aos familiares mortos de sua tribo, como Ba

Mamour dissera naquele ano, em um dos workshops de ritmos e danças senegalesas,

quando de suas costumeiras vindas a Florianópolis, durante o início dos anos noventa.

É uma noite escura de outono, toda a cidade está sem energia, um

black-out total. Para não perder a aula, a cantora e aluna Ana dá uma

idéia: Vamos dançar a luz de velas! Acendemos as velas e começamos

um diálogo envolvendo os corpos das dançarinas, entre si, com a música

de Pancho. Um convite para eu entrar. O fogo das velas, o calor da

pulsação da música na interação com os murmúrios e improvisações do

canto Omagulê, aquecem nossos corpos e aceleram nossos movimentos

magnetizados pelo chão, durante duas horas. Segundo Mamour, manter

uma relação com o chão é uma maneira de interagir com as forças da

terra e ‘carregar as baterias’ (expressão muito usada por ele) para

tocar, dançar, cantar, elementos relevantes para seu entendimento de

vida.

Rolar, estender, contrair, tocar, olhar, impulsionar, arrastar,

torcer... O chão é o suporte. O canto, a música, as folhas, as velas são a

inspiração. Brincar com o som das nossas vozes, dos nossos toques no

chão com as mãos e das folhas secas como experimentamos antes com

Mamour é muito bom. Terminamos. Todos ainda estão deitados no chão.

Coloco em palavras toda a estrutura recém-nascida para o nosso

primeiro trabalho, gerado pelo calor, pelo fogo desta improvisação. O

desejo de falar é forte, significa dividir com todos o que meus sentidos

vislumbram.

A rigor, esse desejo de registrar o momento era uma tentativa de perpetuar

aquela sensação, pois ele (o momento em si) ficou vivo somente na memória de quem o

Page 73: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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vivenciou. Cabe novamente aqui uma referência ao conceito de performance de Peggy

Phelan quanto à existência única da mesma, sem possibilidade de reprodução. A vida da

performance para Phelan está no presente, ela não pode ser salva, registrada,

documentada, senão participa da representação da representação, trai sua própria

ontologia e se torna outra coisa. Relaciono ao conceito ontológico de performance

proposto por Phelan, esse aspecto da improvisação, no qual sua única vida está no

presente. (PHELAN, 1993, p. 146)

Por isso reitero. A urgência de falar era uma tentativa de conseguir agarrar e

‘eternizar’ aquela improvisação, um acontecimento cênico, uma encenação. Na tentativa

intangível de reproduzi-la na íntegra, ela foi recriada e transformada, mas o momento da

improvisação guardou uma sensação singular para todos nós. Legitimou uma

experiência única e dinâmica, influenciada por fatores distintos de espaço, precisão,

momento, energia, integração espectador/performer/grupo, a cada encontro, a cada

ensaio, a cada apresentação.

Um grupo coincidentemente só de mulheres. O único homem, o único músico

era Pancho que de sua postura de pavão, vaidoso e orgulhoso, emanava uma posição

eminentemente manipuladora. No entanto, ao considerar a dança enquanto feminina, a

proposição de Derrida estabelece uma relação estreita entre mulher e dança, em que o

caráter feminino de ambas possibilita “a percepção de dança como uma ameaça à

masculinidade”. (DERRIDA apud LEPECKI, 2004, p. 124) Nessa interação com as

dançarinas e a dança, não tivemos alternativa. A solicitação circunstancial e espaço-

temporal de integração de grupo em prol da criatividade artística, sobrevinha às nossas

questões de gênero e dos transtornos que o cenário composto por aquele “pavão” e as

várias “gaivotas” ocasionou.

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A dança impunha sua resistência através de sua fugacidade e efemeridade

inalcançáveis, questões com as quais, inevitavelmente o músico interagia, ora

submetido aos nossos impulsos, ora por nos submeter aos seus impulsos, outras vezes

criando juntos. Enfim, a composição coreográfica se deu diante de um comportamento

cênico conjunto, onde o rastro efêmero, o caráter feminino de apagamento da dança e o

desaparecimento da improvisação emergiram exatamente como uma possibilidade de

criação, de orquestração das vozes do grupo para gerar a performance. (DERRIDA,

1995, pp. 141 a 147; LEPECKI, 2004, pp. 124 a 130)

As especificidades temperamentais de cada uma de nós tornavam-se visíveis

através das variações dinâmicas dos movimentos que expressavam distintas qualidades

entre: suavidade, doçura, vigorosidade, sinuosidade, cortes, pausas, continuidade,

descontinuidade, rapidez, lentidão, etc. No difícil papel de dançarina e coreógrafa, diga-

se de passagem, eu perscrutava nessas identificações, características evidentes das

qualidades de movimento encontradas nas danças dos orixás, que unidas à composição

musical foram utilizadas em Omagulê. Engatinhando nas teorias da Antropologia

Teatral eu colocava na prática o exercício da observação do movimento. A questão não

era dançar o orixá e sim trabalhar com a qualidade de movimento dele. Como exemplo,

aponto: a coragem de Ogum, a majestade e suavidade das ondas do mar ou de Iemanjá,

a astúcia de Oxossi, a perseverança de Oxumaré, a ambivalência de Exu, a graciosidade

e elegância de Oxum, a vigorosidade de Xangô e a audácia de Iansã.

No final daquele ano, 1990, depois de uma temporada de seis meses de ensaio,

Mamour veio de Belo Horizonte para a estréia de Omagulê, na mesma sala de sua

criação, na Lagoa da Conceição, em Florianópolis. Outro momento, outra cena, outra

encenação. Um tempo depois, em um dos workshops que Mamour ofereceu naquela

cidade, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o percussionista

Page 75: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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contratado não compareceu. Ba Mamour se vira para mim e diz: “eu toco e você dá a

aula”. Um desafio irrecusável! Ao mesmo tempo eu penso: Será que dou conta de

corresponder a esse diálogo sonoro? Vou...

Em Presença Africana, Oralidade e Transculturação, Montiel explica que os

tambores são como um elo com o passado. São os guardiões da memória-recordação.

Um meio de comunicação, de acompanhamento de danças, de transmissão de

mensagens sagradas ou mesmo cotidianas. A dança é a escritura do som que o

dançarino deve acompanhar ao ler, ouvindo, seu ditado. A escritura do tambor pode

difundir as notícias mais rapidamente que a escritura gráfica. Em outras palavras, o som

é um transmissor de mensagens. 5 Acrescenta que para compreender o valor semântico

do tambor, é necessário remeter-se às línguas africanas, que são sistemas fônicos com

estratos sonoros que dão às palavras um significado diferente, conforme a gravidade

sonora das vogais. Os sistemas de escritura são pouco adequados para escrever os tons

graves, agudos e intermédios, sobretudo estes últimos. Em nenhuma escritura existem

signos que possam representá-los. Em troca, o tambor reproduz com fidelidade a

linguagem tonal das línguas africanas. As coreografias, portanto, são códigos escritos

com a linguagem corporal, porém nada acontece sem a oralidade, quer seja falada, quer

seja cantada. (MONTIEL, 1999)

A linguagem do tambor é, portanto, a reprodução imediata e natural da língua: é

uma ‘escritura’ inteligível para qualquer pessoa que tenha a prática suficiente, só que,

ao invés de se dirigir à vista, está destinada ao ouvido. O europeu jovem aprende a

relacionar, na escola, os sinais óticos com os sentidos; do mesmo modo, outrora, o

5 No workshop de dança e percussão em Toubab Dialow, Senegal, em 1998, o professor Issa Sow apresentou numa palestra, uma performance que narrava através de diferentes células musicais de percussão, mensagens de um lugarejo a outro que comunicavam nascimento, morte, guerra, etc.

Page 76: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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africano jovem tinha que aprender a arte de captar os sinais acústicos do tambor.

(JANHENZ apud MONTIEL, 1999)

Na tentativa de ler sua ‘escritura sonora’, criamos

paulatinamente um diálogo engajado. Lá pelas tantas, sem interrupção

da música, meu corpo alcança certo limite. Sinto meu corpo

transbordado de calor. Meus olhos pedem a ele: por favor, pare! Ele

responde com os olhos fixos e com as mãos, que não cessam: não! Segue

adiante. Eu insisto. Sigo adiante. Minhas pernas tremem. O corpo dói.

Não vou agüentar. Mas eu persisto. O suor escorre. Estou de frente para

os alunos. Nossos olhos estão mutuamente fixos. Um movimento

alternado de pernas e braços surte como efeito criativo daquela

interação mútua. Um improviso. Atinjo um êxtase quando a exatidão,

os detalhes que acompanham meus movimentos escapam do meu

controle, estão apagados na minha lembrança. Um estado de vertigem.

Ultrapasso as fronteiras do racional e entro num campo de percepção

da subjetividade daquela que foi uma atitude performativa de

resistência. Eu não posso perder a força, a ética e a postura.

Acabava de perceber o que Mamour dizia tantas vezes: “Temos que

atravessar essa ponte do limite para desfrutar o depois”. Correr seis quilômetros em

silêncio na praia da Joaquina em um de seus cursos, depois de subir as

dunas de cócoras e de costas, foi um pré-requisito para conduzir com ele

essa aula. Um exercício de resistência física, emocional, psicológica,

social. Essas imagens estavam funcionando como suportes da minha

resistência até que...

Mamour levanta as duas mãos do couro do djembé e volta com

elas juntas, num só toque final. Eu me joguei no chão, ele chegou com

aquele rosto grande, os dentes bem brancos num sorriso largo com os

olhos fumegantes sobre mim! E eu disse: Ba Mamour, eu quero ir pra

África!

Page 77: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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Naquele instante, eu nem vislumbrava a convivência assídua que teria nos

próximos anos com esse tipo de break e com diversas variações rítmicas afins. Não

imaginava essa convivência como um tipo de prazer único, a cada vivência única,

mesmo que esboçasse os mesmos movimentos. Em outras palavras seria: compreender a

repetição como algo que ontologicamente desvela a diferença entre a efemeridade

imanente a cada instante da dança.

Outra reflexão. Ba Mamour, eu quero ir pra África! Ou melhor, uma

auto-reflexão acerca desse pensamento, constituído por um parâmetro ocidental

homogêneo, caracterizado por uma visão exótica do negro. Apesar de saber que o

discurso ocidental dominante, que exotizou a imagem de nações e culturas, está

arraigado no inconsciente coletivo do assim chamado terceiro mundo, de onde sou, não

posso afirmar categoricamente que essa visão era preponderante ali. Contudo, com toda

certeza o que me encantava e encanta em Mamour, em primeiro lugar, é sua capacidade

de brincar com o ritmo, com a voz e com o corpo, assim como a maneira de lidar com a

vida, e não o seu visual exótico. Meus interesses musicais e gestuais embaçavam essa

visão direcionada ao exotismo. Através do ritmo, argumento principal daquele encontro,

eu começava a entender sua ‘linguagem sonora’ que abrange uma melodia que a

‘linguagem escrita’ não consegue abarcar, como Montiel explica acima.

Repensando aquele tempo, percebo que minhas reflexões a respeito das

diferenças e das minorias estavam ainda num processo interno mais brando e

dissimulado, todavia, em constante efervescência em direção a uma atitude crítica

sujeita a deslizes, a transformações. É confortante saber que não preciso estar e que

nunca estarei pronta. Sou vulnerável exatamente por admitir quem sou, em cada espaço

e tempo determinado. Sou dinâmica como a história, o tempo e a palavra. Transito em

Page 78: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

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situações diversas entre culturas e teorias. Desfruto da cadência de cada momento

presente entendendo que a ação se encontra no aqui e no agora. O som, a dança e a

escrita reverberam a efemeridade de cada instante.

Revivi essa sensação ‘única’ várias vezes em momentos subseqüentes com a

dança africana do Senegal, da Guiné e em especial com a dança do Bugarabu. Devo

dizer que até então minha posição e questionamentos em relação ao nosso passado

histórico brasileiro ainda não tinha ultrapassado limites ao ponto de discernir as

especificidades da África, como um continente cheio de países com elementos em

comum, porém distintos, nem tampouco de observá-lo ficcionalmente como a um filme.

Meu interesse se refere aos efeitos do ritmo que compõem aquela música-dança,

inseparáveis também da vida. A partir dali comecei a desbravar caminhos por onde

pudesse aprofundar questões de identificação e desidentificação com a cultura do

Senegal demonstrada por Mamour, que inevitavelmente passaram a implicar com minha

maneira de ser e de agir na cena da vida.

Posteriormente, em Londrina, na Holanda, em Gâmbia, no Senegal e de volta à

Bahia, esta trajetória mostrou, passo a passo, um objeto da vida atuando como sujeito de

iniciativas. Podia perceber características de movimentos meus espelhadas em

movimento alheio. Cabeças girando sem parar, pulos exaustivos, resistência,

identificação. Nesse momento, a questão é refletir sobre esse lugar específico e legítimo

que ocupo, imprescindível para a composição da escrita desta pesquisa, que serão

deixadas para quem dança, observa, ou escreve, ou para quem interessar ler e saborear.

Page 79: OKUTÁ ORUN INÁ OTÁ!

78

3.1.5 Vi o fogo emergir da água no lago Igapó em Londrina

Para chegar ao fogo e às águas do lago Igapó, introduzi a seguir, alguns

pensamentos específicos da Antropologia Teatral e dos Estudos da Performance.

Destaquei elementos pontuais de algumas referências bibliográficas de Barba e

Schechner, e entrecruzei com associações próprias, a fim de contextualizá-las

teoricamente. Das reflexões, enquanto pesquisadora e artista, sobre algumas questões

indicadas por tais estudiosos, ressurgiram associações entre as manifestações de cunho

ritualístico, artístico e religioso úteis para este estudo.

Parti do livro By means of Performance, um passo a mais no processo que Victor

Turner e Schechner (1990) desenvolveram por um tempo, sobre a intercomposição do

ritual com o teatro. Começou com o convite de Turner para a participação de Schechner

num simpósio em 1977, Burg Wartenstein Symposium Nº76, on “Cultural Frames and

Refletcions, Ritual, Drama and Spetacle”, e culminou com duas conferências em 1981

no Arizona e em 1982, em Nova York.

O objetivo intelectual das conferências e da preparação do livro era abordar

gêneros de teatro, dança, música, esporte e ritual como performance, em interações que

variassem do ritual sagrado ao teatro experimental, um grupo de “link people”, portanto

“ in between”. Além disso, a intenção era unir academicamente e na experiência ao vivo

intelectuais e artistas, a partir da noção de Turner (1990) a respeito do ‘drama social’ ou

‘conflito social’, que, por sua vez, é encarado como performance do cotidiano segundo

Erving Goffman (1990). Turner explica que a performance é uma forma de expressão

da singularidade de uma cultura em particular e compreende uma gramática, um

vocabulário e um código. Schechner considera esse trabalho como “Performing

Anthropology” - o estudo do homem em seu contexto - e o de alguns nomes do teatro

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como Eugênio Barba chama “Theatre Anthropology”, o estudo do comportamento

cênico do ator no nível pré-expressivo em situação de uma representação extra

cotidiana.

A questão básica das conferências seria então lidar com gêneros e culturas

distintas e para tanto propuseram alguns princípios gerais divididos em seis áreas

específicas de interesse, assunto desenvolvido no capítulo I, “Points of contact between

Anthropological and theatrical thought” do livro de Schechner, Between Theater and

Anthropology (1985). O percurso percorrido por Schechner ao abranger os seis pontos

de contato entre o pensamento antropológico e o teatral, predispôs um diálogo

instigador das inquietações que afloraram nesta pesquisa.

O primeiro ponto de contato é a transformação do ser. É possível que a

transformação da consciência seja medida no nível de atividade cerebral? Não obstante

a impossibilidade desse discernimento, a percepção de uma transformação tanto na

audiência como no performer é evidente.

Com a transformação do ser, deparei com muitos “eus” vivenciados durante os

deslocamentos da própria experiência transcultural, o que justifica aqui o uso do termo

proposto por este autor - somewhere in between: nem Bugarabu, um ritual cotidiano,

nem Xangô, um ritual sagrado, nem um eu anterior, mas algum lugar ‘entre’ a favorecer

uma constante transformação na performance.

Observo Xangô através de seu filho, quando este se encontra em ‘estado de

transe’. Junto com a platéia estou em ‘estado de êxtase’. Observo o Bugarabu através

dos dançarinos, músicos, a platéia e eu, todos juntos em ‘estado de êxtase’. Outras

vezes, danço movimentos de Xangô e do Bugarabu. Por fim, nas duas condições, seja

de observadora ou de atuante, alguns estudiosos nomeiam esse estado de sensações

equivalentes através de diversas expressões. ‘To get there’ ou ‘in between’ segundo

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Schechner; ‘estado liminar’ para Turner; estado de dilatação dos sentidos se me refiro a

Barba; e estado do ‘to be there’ na visão de Kirsten Hastrup, (1995). Acrescento a esse

estado, mais um ‘link’, desta vez com a Etnomusicologia6. Dentre outros

etnomusicólogos, destaco aqui o estudo de Edilberto Fonseca, intitulado - O toque da

Campânula: Tipologia preliminar das linhas – guia do candomblé Ketu-nagô no Rio de

Janeiro (Colóquio 2002 p. 65) - para quem o ritmo é algo percebido como expressão de

diferentes domínios da vida da comunidade de santo, assumindo variadas e

significativas formas de realização. Essa visão de ritmo de Fonseca aproxima-se do

modelo conceitual traçado por Kofi Agawu 7 quando este define cinco domínios básicos

de “modos rítmicos de significação”: o gestual, o oral/aural (com atributos tonais e

rítmicos); o da música vocal (ritmo livre e estrito); o da música instrumental (linguagem

dos tambores e ritmos de dança); e o coreográfico (inter-relacionada). Em “O toque da

campânula” citado na nota acima, Fonseca dá o exemplo de um tipo de rítmica gestual

relacionado ao músico. Esta rítmica do músico narrada no exemplo da citação a seguir,

tem uma relação direta com a rítmica gestual da ilustração 4 da dançarina (Sandra

Mascarenhas) e do percussionista (Fayee Diona), em uma aula em Amsterdã. A foto

perpetua o instante efêmero a ser estudado aqui quando na mesma temporalidade o

braço de Fayee e o meu corpo ficam suspensos no ar, que a partir das considerações

associativas entre autores acima, percebo esse instante como um estado de corpo

dilatado. A condição desse estado está diretamente relacionada com o desenrolar rítmico

de suspensão do gesto e do movimento, e, além disso, com a condição sensitivo-

corporal explicada anteriormente por diferentes estudiosos da antropologia e da arte,

compreendido como os muitos “eus”, no percurso deste estudo.

6 A Etnomusicologia é definida por Merrian como sendo “o estudo da música na cultura” (CARDOSO apud MERRIAN, Alan.P. The Anthropology of Music, Evanston: North Western University, 7ª ed, 1978. p. 6.) Esse estudo da música não é um objeto autônomo, ele está inserido num contexto e o objetivo do etnomusicólogo é tentar entender isso. 7 FONSECA apud Agawu, Kofi. African Rhythm. Londres: Cambridge University Press, 1995.

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Ilustração 4 Improvisação numa aula no Centro Cultural DeTulip em Amsterdã, junho de 2002. Foto: Miryam Zilvold.

A citação de Fonseca em seu estudo explica e afirma a minha associação:

Observando esses domínios de expressão rítmica, vemos que a prática instrumental dos tambores está intimamente ligada a formas específicas de configurações gestuais e posturais; a rítmica gestual é, assim, a materialização tridimensional do fenômeno sonoro. Quando um tocador eleva o braço para executar uma batida, no atabaque ou no agogô, esse ato configura-se também como um evento rítmico dotado de temporalidade estrita. Dessa forma a percepção da articulação instrumental do som musical passa não só por sua captação sonora, ou seja, como ele é ‘ouvido’, mas também pelo entendimento de que sua realização se dá num tempo e num espaço determinados; em outras palavras, a percepção de ‘como’ ele é articulado. (FONSECA, Edilberto José de Macedo. Toque da Campânula: Tipologia preliminar das linhas-guia do Candomblé Ketu-nagô no Rio de Janeiro, Cadernos do Colóquio 2002, p. 03)

Prossigo com os outros pontos de contato entre Antropologia e o Teatro

indicados por Schechner.

A intensidade da performance, o segundo ponto de contato, está diretamente

associado ao primeiro. Embora imensurável, a transformação do ser é claramente

perceptível pela audiência. Nesse momento, o grau de intenção da performance

aumenta. Usando as palavras de Schechner, a platéia ‘decola’, o tempo se dissolve. A

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presença do performer toca a audiência que colabora então para o nascimento de uma

vida teatral coletiva e especial. A explicação de Schechner para a atmosfera que se

instala, onde o tempo não tem tempo e o corpo se dilata, reitera as associações teóricas

que anunciei anteriormente entre os pontos de contato deste autor com Turner, Barba,

Hastrup e Fonseca. Tais proposições foram inferidas na observação e na execução das

danças aqui estudadas, e fustigadas pelo estado de corpo que provocam, estejam elas

inseridas no contexto cultural religioso ou artístico. Uma questão é a percepção em si

deste estado, de transformação do ser e da intensidade da performance. Outra questão é

escrever sobre tal percepção. É um momento marcante que me lança no seguinte vôo: o

papel de quem se encontra nessa brecha, entre a cena e a escrita, é atuar como

mensageira e transformadora dessas percepções em palavras. Há aí um embaraço, e ele

se instaura no anseio de localizar o olhar contemplativo em torno de um conhecimento

no corpo e através do corpo, para o papel. Enfrentar esse desafio é uma das maiores

razões que justificam esse estudo. De tal modo, afirmo que as danças e as respectivas

situações analisadas no corpo desta escrita estão imbuídas e apoiadas pelas proposições

de Schechner:

As performances reúnem suas energias quase “como se” tempo e ritmo fossem coisas concretas, físicas, flexíveis. Tempo e ritmo podem ser usados como texto, figurino, o corpo dos performers e a audiência [...] A acumulação-repetição levanta os performers, e freqüentemente os espectadores também, a um transe extasiante. [...] A alta intensidade da performance é ergo trópica: a velocidade do coração e a pressão do sangue aumentam e as pupilas se dilatam. Há um alto nível de emoção e despertar [...] Quem determina o que os olhos do nativo vêem ou o que seu coração sente? Eu prefiro deixar os nativos falarem por si mesmos. Da minha parte, eu reconheço que estou vendo com meus próprios olhos. (Schechner, 1985, pp.11 a 13).

O terceiro ponto, a interação entre audiência e performers depende do

contexto, da participação, do conhecimento e da intenção da platéia, e ainda, da função

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da performance ou seja, ritualística, comercial, etc. O traço religioso inerente aos rituais

festivos de Xangô reafirmados no trabalho de campo, não existe nos eventos festivos

que vivenciei com o Bugarabu. Contudo, ambos estão permeados por uma interação

evidente compartilhada entre: observadores e observados, quando o assunto é pesquisa,

integrantes e assistentes, em se tratando de religião e, finalmente, espectadores e

artistas, quando nos referimos à arte. De qualquer modo, identifico que embora sejam

situações distintas em suas funções, posso encontrar nelas, aspectos comuns que me

permitem numa análise reflexiva chamá-las, de acordo com Schechner, de audiência e

performers. Como exemplo, utilizando o termo, cito a intensa interação entre audiência

e performers nos rituais de Xangô e nos eventos do Bugarabu. A interação é perceptível

em ambos. O canto conjunto, as palmas, a evidência dos atuantes - orixás, mãe de

santo, ekédes (cargo das mulheres que ajudam a cuidar dos filhos de santo quando estão

incorporados) ogãs , alabés (ver glossário) no candomblé e, dançarinos e músicos,

também cantores no Bugarabu – e dos espectadores da comunidade. A transformação

do seres atuantes (performers) penetra a atmosfera local, interage com os espectadores

(audiência) e provoca a intensidade da performance, uma decolagem. Vale ressaltar que

o ponto alto dessa interação tem uma ligação direta com a aceleração rítmica da

cadência, equivalente nas duas manifestações dançantes, expressas pelo alujá de Xangô

e pelo ritmo básico do Bugarabu, metaforicamente simbolizadas aqui pelo fogo.

A seqüência da performance como um todo é o quarto ponto de contato eleito

por Schechner abrangendo sete partes: a formação, as oficinas, os ensaios, o

aquecimento, a performance, o cool-down ou acalmar-se e, por fim, a avaliação

(interferências, conferências e livros) e as conseqüências (the aftermath) consideradas

como parte da performance. Em diferentes culturas, essas fases não são enfatizadas

igualmente. Dentre elas, me aterei ao cool-down, concordando com Schechner ser esta

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uma fase importante e, portanto parte da performance. Para entrar na atmosfera da

performance preciso do relaxamento, da concentração e do aquecimento. E para sair

dela, preciso de um tempo de retorno daquele estágio ao qual fui impulsionada (get in

and get out). Curioso foi perceber que a maneira de abrandar a excitação depois de

dançar no Brasil acabou sendo a mesma vivenciada na Europa, com os europeus e com

os africanos, ou seja, saindo para beber e comer, em cujas oportunidades

experimentava-se depoimentos, sensações, avaliações (o aftermath) do trabalho

executado, fosse este performance ou aula. Tal procedimento é recorrente nos rituais

festivos do Candomblé incluindo os de Xangô, assim como nas performances e aulas

das danças do oeste africano, em especial, no caso do Bugarabu com Fayee na Holanda.

O quinto ponto de contato é a transmissão de conhecimento da performance

que pode ser passado por meio de textos, pela imitação ou pela oralidade, cumprindo as

etapas da absorção, da prática, da lapidação e da transformação. Levantarei alguns

elementos abordados pelo autor que provocaram relações de similaridade e diferença

com as manifestações dançantes deste objeto. Entre eles, saliento primeiramente a

manipulação do corpo, considerado equiparadamente como um instrumento de

transmissão do conhecimento da performance; em segundo lugar, o respeito pelo

‘aprendizado do corpo’, distinto do “aprendizado da cabeça” (Schechner, 1985, p.23),

uma questão de importância para o texto da performance, considerado como um

trançado de várias linguagens, sem a primazia de nenhuma delas.

Quando o autor fala de não primazia, devo pontuar um aspecto distinto para com

o objeto de estudo em questão. Substituo aqui a palavra ‘primazia’ esvaindo dela seu

teor de superioridade pela expressão ‘traço marcante’. Traço que identifica meu corpo

dançante pela intensa relação com a diversidade de linguagens de dança oeste africana e

com a dança afro-brasileira. Outro ponto seria que sob meu ponto de vista, o

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aprendizado do corpo não está dissociado da cabeça, uma vez que essa é parte do corpo

e, além disso: como dançar sem pensar? Como parar de pensar para dançar? Para

ilustrar a discordância com a visão ocidental de Schechner a esse respeito conto a

seguinte situação: certa feita no Senegal, Pape Assane, nosso professor, considerando

que minha filha dançava bem comentou comigo: “Iana é inteligente!” Para reiterar o

pensamento distinto entre Pape Assane e Schechner, acerca do que vem a ser a

inteligência, introduzo algumas palavras do pesquisador Kabengele Munanga. Ao

destacar uma distinção entre as visões ocidentais e não ocidentais, ele instigou para esta

pesquisa uma reflexão crítica mais abrangente acerca do conceito de “estética africana”

e da noção de inteligência, para a arte africana e para a arte afro-brasileira.

Estamos vivendo num mundo onde o imaginário é racista. A arte africana analisada por um filtro ocidental é equivocada. A arte é produto do seu tempo. Ela tem uma função que se transforma no tempo e no espaço, é dinâmica. Para entender a forma tem que colocar a arte em seu contexto para então entender seu conteúdo. (MUNANGA, Kabengele. Curso de Introdução ao(s) Estudo(s) da(s) Arte(s) da África Tradicional, 21/11/2006, Antiga Escola de Medicina do Terreiro de Jesus, Salvador, Bahia). 8

Retomo o sexto ponto de contato de Schechner para ressaltar outro aspecto da

transmissão de conhecimento, ou seja, as trocas de técnicas que se tornam difíceis de

serem localizadas como desta ou daquela cultura. Esse diálogo diz este autor,

relacionado com elementos modernos, tradicionais e pós-modernos pode se localizar

como sendo uma nação em particular. (Schechner, 1985, p. 24). Na multiplicidade da

cultura brasileira, de onde surgiu o trajeto deste objeto e deste estudo calcado na

transculturalidade, a localização da decorrência de certos traços, assim como acontece 8 Ainda nesse capítulo, de necessária importância para este estudo, dedicarei algumas páginas para tornar perceptível esse confronto de visões artísticas, não ocidental de Munanga e ocidental de Schechner. Ao realizar tal feito entre dois pesquisadores que trafegam entre as Ciências Humanas e a Arte, estarei acrescentando a essa exposição de visões distintas o intercâmbio entre Antropologia e Arte sugerido por Schechner.

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com diversas manifestações artísticas e/ou religiosas, torna-se desnecessária e ineficaz.

O que não significa deixar de empreender esforços para pesquisar as questões históricas

e culturais referentes ao Orixá Xangô, ao candomblé de Salvador e ao Bugarabu de

Casamance.

Para finalizar este ponto de contato Schechner considera que as técnicas de

transmissão de conhecimento da performance empreendem uma base forte para um

intercâmbio entre o povo de teatro e os antropólogos. O povo de teatro entende da

formação de atores, diretores, cenógrafos, etc. E os antropólogos são treinados como

observadores e algumas vezes também participantes. Logo, entre outras questões, o

povo de teatro pode ajudar os antropólogos a identificarem o que procurar numa

situação de performance e estes podem ajudar os primeiros a localizar a performance

dentro do contexto de sistemas sociais específicos. (Schechner, 1985, p.25).

E finalmente, o sexto ponto de contato. Questões para reflexões. Como as

performances são geradas e avaliadas? Neste momento Schechner indaga: e existe

uma forma específica? Para o grupo, para espectadores leigos ou para especialistas?

Que seja uma forma de interesse crítico ou de interesse comercial, entre outros, em que

a performance avança ou regrida?

Vale salientar que, essas indagações relacionadas com a rememoração das

danças durante a leitura deste texto de Schechner, Between Theater and Anthropology,

me levou a um momento de epifania, quando me peguei com o lápis entre os dedos

escrevendo no verso do papel as seguintes palavras:

Sim, as manifestações culturais estudadas na Antropologia

convergem em muitos pontos com o fazer teatral. É um leque imenso de

informações que antes eram pontuais e estavam dispersas, portanto

menos visíveis no cenário da minha imaginação. Refletindo sobre esses

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pontos visualizo, nesse exato momento, uma aproximação de tais pontos

dispersos, convergindo agora para um cenário de entrelaçamentos entre

uma gama de teóricos e práticos que são contemplados em aspectos

fundamentais no decorrer da pesquisa. Entre alguns deles, eu citaria:

Gilroy (afrocentrismo), Barba (corpo dilatado), Schechner (antropologia

e teatro), Bhabha (cultura), Savigliano (descolonização), Browning

(sagrado e profano), Deren (arte e etnografia), Turner (estado liminar),

Maffesoli (razão e imaginação) Phelan (presença e ausência), Butler

(performatividade), Clifford (atividade etnográfica) etc.

Envolvida por esse fogo do pensamento eu associo a imagem do “se dar conta” -

em outras palavras, o novo entendimento, a nova percepção – às noções desses

pensadores e pesquisadores e esboço na mente um desenho semelhante ao cenário do

espetáculo, em Londrina, que descreverei a seguir. Os pensamentos são representados

por barcos dispersos que convergem para o palco do meu pensamento compreendendo

certas identificações de paradigmas como pontos de partida em aberto. Nem fechados,

nem engessados, nem esgotados, mas sim como estímulos, impulsos a outros mares ou

lagos, compreendidos como outros fluxos de pensamento.

De repente, apontam luzes da esquerda, um tempo depois, da

direita, e assim por diante. Cada barco/país/tradição reluz um a um, na

distância. São os montinhos de terra de cada grupo de países diferentes

formando pequenas ilhas que flutuam na instabilidade das águas em

direção ao palco, à beira d’água. É a apresentação do Theatrum Mundi

no encerramento da oitava sessão da ISTA (International School of

Theater Anthropology), em 1994. A platéia está espalhada na grama,

numa ribanceira. Eu e meu pai estamos assistindo juntos. Em meio a

tantas imagens inebriantes, de vários barcos, países, de vários sabores e

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sensações, os devaneios me aproximam de mim mesma, das lembranças

da juventude em Londrina, ali, naquele lago.

Em um dado instante, lentamente, um barco se aproxima com um

grupo de homens vestidos de branco e o som de atabaques. O som se

aproxima, aumenta, esquenta. Sinto minha ‘presença alargada’, sinto

estar num estado de dilatação dos sentidos. O tempo pára. Os fogos de

artifício que anunciavam cada barco também param. A presença de

Augusto Omolu explode de dentro do barco e invade as dimensões do

palco. A cena se alarga diante dos meus olhos e invade os outros sentidos

dilatando-os. Sinto o cheiro de grama úmida e o gosto da terra roxa. O

som do atabaque ecoa dentro de mim. Danço internamente junto com

Augusto. Ele dança Xangô. Os pés seguem o contratempo do ritmo 6/8 e

os braços, alternadamente num ângulo de 90 graus, exibem

simbolicamente, o machado de duas lâminas de Xangô demonstrando o

seu caráter de justiça. 9O movimento é brusco, de corte; o corte da

madeira da lenha da fogueira. Sinto o fogo e o vigor de Xangô. Ah!

Tenho uma sensação de retorno, de memória que não quer esquecer e

lembro de Rosângela, lembro da Bahia.

Eu ainda relaciono essa imagem dos barcos com algumas proposições de Barba -

compatíveis com muitas noções sobre o fazer artístico, que têm traçado meu trajeto

imigratório e transcultural - desenvolvidas nos livros: Além das Ilhas Flutuantes (1991)

e Canoa de Papel (1994). Em Além das ilhas flutuantes Barba navega pelas águas que

percorreu como profissional e amante do teatro à margem, e enfatiza o Grupo Odin

Teatret desde sua fundação, em 1964, fazendo uma valiosa apreciação das suas criações

9 Ildásio Tavares faz uma relação importante entre as simbologias referentes a Xangô para uma maior compreensão do caráter de justiça de Xangô expresso na sua dança. Xangô é o dono do fogo, um símbolo solar, um símbolo de vida. Portanto, “Xangô é o fogo da vida e por extensão o fogo da justiça, do equilíbrio, da resolução da polaridade. Por isso ele é vermelho (vida) e branco (paz), e seu símbolo maior é o oxé, o machado de dois gumes, ora corta para o bem, ora para o mal, ora na paz, ora na guerra, mas sempre resolvendo o enigma bipolar, nunca sectarizando”. (TAVARES, 2002, p. 51)

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de 1965 a 1991. Navega pelos espetáculos. Barba discorre sobre suas reflexões a

respeito do teatro, encarando-o como viagem, troca, emigração. Sua proposta de

treinamento incorre em métodos cujos resultados nascem de processos flutuantes

específicos marcados por desestabilizações, estímulos, oposições, disciplina e ritmo

individual. Com pertinência e conhecimento, o historiador de teatro Ferdinando Taviani

fala sobre o trabalho de Barba:

O fogo que anima a atividade artística e científica de Eugênio Barba nesses anos parece se concentrar na necessidade de corroer os pilares que mantêm “cada coisa em seu lugar”. Empenha-se contra os limites que separam o masculino do feminino, o real do irreal, o físico do mental, a tradição ocidental da oriental, uma história da outra, um personagem de outro, o povo dos mortos da multidão dos vivos. Este elenco de oposições, negadas ou postas em dúvida, pode fazer pensar em um impulso criativo sem regras. Ao contrário, é um método: implica, na certa, uma forte expressão criativa, mas antes de tudo é práxis teatral. [...] Falo de um método e não de uma idéia ou de um sistema estético. Também neste caso a etimologia ajuda a imaginação e a compreensão: “método” vem do grego, que, traduzido ao pé da letra, significa “caminho que conduz mais além”. (TAVIANI apud BARBA, 1991, p. 263)

Essa corrosão de pilares que enraízam para desarraigado ir mais além é o que

Barba acaba por considerar os atores do Odin e outros grupos que passaram não mais a

receber o teatro, mas sim, a fazer teatro. Ele se inclui e chama esses grupos diferentes e

sonhadores, que não pertencem a uma linha ou uma tendência teatral única de: Terceiro

Teatro. E pergunta:

Qual pode ser a imagem de um sonhador? Uma pessoa que se afasta da terra e vai sobre a água. Mas não o faz para descobrir ou para chegar a outras regiões. Alguns que parecem isolar-se no meio da água, querem, no entanto, permanecer unidos entre eles. Tentam construir em cima do lago fragmentos de terra. São as ilhas flutuantes. As ilhas flutuantes não constituem um projeto para tornar férteis e úteis as extensões de água... São um meio para sobreviver. A propriedade das terras flutuantes não se pode transmitir, nem aos próprios filhos: assim que você cessa de construí-lo, seu campo não existe mais. É um pequeno jardim vacilante que dá frutos, mas cuja

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dimensão e existência estão condicionadas pelas correntes. Nasce da exigência de fincar raízes. Mas em uma realidade desarraigada. (BARBA, 1991, p.154)

E ainda:

O significado do Odin está somente em parte nos seus resultados teatrais. Encontra-se em sua própria existência, em sua sobrevivência como sinal tangível de que um grupo de pessoas excluídas, de diferentes países, de diferentes religiões, de diferentes línguas – na realidade um grupo de desadaptados -, teve a coragem de deixar a terra firme onde os homens parecem trabalhar utilmente a terra. Sobre uma balsa levaram seu próprio saco de terra e a trabalharam obstinadamente, sem seguir a cultura do continente, adaptando-se às correntes que os empurravam para longe. É este o valor do Odin, de outros grupos, de outras pessoas que, até hoje, passaram quase uma vida inteira semeando sobre a água. (BARBA, 1991, p. 155)

Em Canoa de Papel, Eugênio Barba faz um tratado sobre a Antropologia

Teatral expondo seus princípios, alternando entre um olhar científico e o olhar que

apaixonadamente viaja por histórias suas e de outros atores e teóricos do século XX.

Preocupado em estudar e trabalhar o que precede a expressão artística se ocupa com o

seu nível pré-expressivo, que dilata o corpo do ator e torna eficaz sua presença cênica,

atraindo a atenção do espectador. Tal visão se aplica ao ator e ao dançarino,

intimamente ligados em diversas culturas, como acontece com as danças aqui

pesquisadas.

As canoas são para Barba as palavras escritas por pessoas de teatro, com a

intenção de serem pontes de ligação entre a teoria e prática, entre a experiência e a

memória, entre os atores e os espectadores. Então diz:

As leves canoas lutam contra as correntes, atravessam o rio, podem alcançar a outra margem, mas nunca se pode ter certeza de como acolherão e usarão sua carga. Escrevemos com o desejo de um bom artesão e relemos incredulamente nossos textos já distantes das

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tensões que o geraram. As canoas navegam nas correntes dos mal-entendidos. Gostariam de ser páginas estáveis de livros e, em vez disso, são cartas que não sabemos se e quando chegarão ao seu destino, nem como serão entendidas se vierem a ser lidas e por quem. As palavras estáveis possuem a fragilidade de sua estabilidade. Para cada afirmação clara existe um equívoco. (BARBA, 1994, p. 193)

Faço uma intervenção nesse espaço da dissertação reservado às considerações de

Barba para indicar o encaixe de suas palavras com o trajeto de vida que venho

discorrendo nesta escrita. Na maioria das vezes é com meu próprio punhado de terra

que empenhei esforços intuitivos para, sozinha ou em grupo, semear nas águas dos

lugares que naveguei até esse momento. É muito confortante quando, ao não

encontrarmos meios de expressar exatamente o que sentimos e pensamos, conseguimos

nos ver nas palavras de outra pessoa. Aí se encontra um dos grandes valores da teoria.

Nesse sentido a Antropologia Teatral tem sido um material que muito contribuiu para

minhas reflexões teóricas num momento em que eu semeava em terras estrangeiras e me

identificava com certas noções de Barba, enquanto seu fazer teatral, e com sua condição

permanente de estrangeiro. De certa forma, estávamos no mesmo barco, sonhando e

semeando sobre outras águas.

Assim, este projeto nasceu de uma instabilidade ancorada na intuição, na

vontade de se lançar e de correr riscos, proporcionada pelo caminho que trilhei e que

configurou o meu trajeto artístico. Portanto, o que está em jogo nesse processo é a

especificidade de uma experiência transnacional a fim de cultivar o poder re-criativo da

performance, da escrita. Beber em fontes que ilustram os primórdios do candomblé na

Bahia e sua relação com o Orixá Xangô, assim como a ritual da colheita do arroz em

Casamance quando se dança o Bugarabu, serve para estimular recriações e

reinterpretações. Mostram ainda, a impossibilidade de conclusões absolutistas de um

‘verdadeiro’ e autêntico Xangô ou de um ‘verdadeiro’ e autêntico Bugarabu. O

propósito deste trabalho é colocar a cultura em movimento, ritmo e espaço diversos, a

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fim de estimular reflexões a respeito das estruturas de manipulação e controle desta

cultura, que restringem os campos de ação das manifestações culturais alheias aos

interesses do poder. Sim, muito embora de maneira dia a dia mais suave, a sociedade

ainda se ressente de conviver assumidamente com o viés ‘afro’ ou indígena da cultura

brasileira, mesmo sabendo o quanto esses elementos são inerentes à nossa história e

conseqüentemente permeiam nossa criação artística.

Essa é uma questão de manipulação e controle que caracteriza as forças agentes

colonizadoras sobre todos os povos da diáspora, transladados de suas terras africanas e

aportados, entre outras, em terras posteriormente chamadas de Brasil. Assim se teceu a

nossa história, o povo brasileiro, que como estratégia de resistência à imposição cultural

civilizatória européia, dispunha quase que unicamente da religião-arte trazida na

bagagem dos escravos de diferentes lugares e também encontrada nos índios, até então

donos da terra. Uma bagagem de valores que mesclados nesse encontro provocaram a

emersão de novos valores, oriundos de uma urgente adaptabilidade e conseqüente

diversidade. Tais valores eram expressos em forma de arte e acompanhados de uma

função religiosa. Em outros termos, forma e função estavam associadas. Parafraseando

Kabengele Munanga,10 “no contexto tradicional africano, as artes eram praticadas

funcionalmente por membros especiais da comunidade, que, acreditava-se, teriam

aprendido o ofício dos espíritos, e não dos mortais”. Na continuidade dessa linha de

pensamento, uma mudança nos africanos trazidos para o Brasil fica perceptível. De

posições de destaque, de ordem religiosa ou social, na comunidade a qual pertenciam,

passaram à condição de escravos. E foi exatamente desse poder simbólico de

presentificação das divindades africanas que tiraram forças para resistir, sobreviver e

10 As referências e citações de Kabengele Munanga são transcrições das aulas do curso, Introdução ao(s) Estudos da(s) Arte(s) da África Tradicional, em novembro de 2006; e reflexões sobre o texto, Arte Afro-Brasileira: o que é afinal? Onde, como curador, fala da exposição de rememoração dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil no Ibirapuera em São Paulo, 2000.

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recriar uma nova condição, um novo campo de influências entre culturas,

estrategicamente dissimulado pela crença dos seus donos católicos, no começo de sua

história.

Puxo esse fio que constitui os primórdios da nossa história para reafirmar a

urgência de um comportamento adaptável que resultou numa diversidade cultural e

artística que deixa rastros e traços no nosso fazer artístico. Ao colocar-me de acordo

com Kabengele, qualificar a expressão africana, uma das vertentes da arte brasileira

como “arte negra no Brasil seria cair num certo biologismo”. Afinal, a familiaridade

com certa técnica ou estilo, reflete o trajeto do artista e a estrutura social na qual ele se

insere e não é, necessariamente, uma conseqüência de sua condição biológica. Ressalto

suas palavras:

Numa sociedade como a brasileira [...] seria raro encontrar um artista da chamada arte afro-brasileira que manipulasse estrita e exclusivamente os critérios formais, estilísticos e temáticos oriundos do universo africano. Ou que empregasse uma linguagem estética exclusiva de uma África, aliás, muito diversa, sem lançar mão de alguns elementos provindos desse universo nacional mais amplo, no qual as diversas culturas que aqui foram trazidas dialogam e se influenciam, apesar do contexto histórico colonial e escravista, caracterizado pela assimetria, no qual se encontraram. (MUNANGA, 2000, p.108)

O professor Munanga explica que a variedade de estilos, formas e técnicas da

arte brasileira, inspirada na tradição artística africana, se caracteriza por obras que não

necessariamente integram sua temática, iconografia e universo simbólico e por outras

que recriam e reinterpretam esta arte dentro de outros estilos. Ele questiona o anseio de

alcançar uma arte afro-brasileira autêntica, pela impossibilidade de sua delimitação por

meio das seguintes palavras: “seria ignorar as ambigüidades da sociedade brasileira,

sociedade na qual, as cercas das identidades vacilam, os deuses se tocam, os sangues se

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misturam, na qual as identidades étnicas nada têm a ver com as leis da ‘pureza’”.

(MUNANGA, 2000, p.108)

Munanga sugere uma visão mais ampla, e com este propósito considera a arte

afro-brasileira como um sistema fluido e aberto composto de um centro, de uma zona

mediana e de uma periferia. No centro estão os artistas ditos religiosos ou rituais, de

origem étnica africana e conhecida. Na zona mediana o autor localiza o nascimento da

arte afro-brasileira, com características africanas em constante processo de criação,

recriação, reinterpretação movidas pelo processo histórico de integração cultural que

ultrapassa fronteiras. E por último, a zona da periferia.

Na periferia do sistema, situamos obras e artistas que, sem reunir todos os atributos essenciais das artes africanas tradicionais, receberam algumas de suas influências, obras cujo imaginário artístico pode, de uma maneira ou de outra, remeter ao mundo africano, embora integrando nitidamente características da arte ocidental, indígena ou outras, que formam o mosaico e o pluralismo da arte brasileira. A periferia configura um terreno mais fluido, confuso, onde as identidades se confundem mais, as linhas das fronteiras se apagam, uma espécie de areia movediça na qual o pesquisador escorrega facilmente, principalmente na escolha e na classificação das obras e autores a serem colocados nessa parte do sistema. (MUNANGA, 2000, p.108)

Nas citações acima o professor Kabengele Munanga de Congo, fala enquanto

curador da exposição no Ibirapuera em 2000, que foi uma rememoração dos 500 anos

de “descobrimento” do Brasil, a Mostra de Redescobrimento. Contudo, suas reflexões

críticas apontam para várias direções, impulsionadas por sua capacidade de associação

enquanto perfil pessoal e, além disso, como: professor titular de Filosofia, Letras e

Ciências Humanas FFCLH USP, vice-diretor do Museu de Arte Contemporânea MAC

USP e vice-diretor do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História

da Arte. No final do ano passado, 2006, tive a oportunidade de fazer o seu curso

anunciado anteriormente - Introdução ao(s) Estudos da(s) arte(s) da África Tradicional -

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programado pelo CEAO, Centro de Estudos Afro-orientais, que aconteceu na antiga

Escola de Medicina em Salvador.

Esse estudo introdutório sobre a arte da África Tradicional consistiu em

pertinente contribuição para possíveis análises comparativas ao longo desta pesquisa,

uma vez que desenvolvo meu trabalho artístico a partir de danças oriundas de regiões

africanas: a dança do Bugarabu de Gâmbia, de cunho ritualístico e cotidiano, que tenho

o prazer de entrelaçar com a dança de Xangô, reinterpretada religiosamente na Bahia.

Considero importante para este estudo, a visão e a reflexão crítica de Kabengele

Munanga, residente há 30 anos no Brasil. Julgo significativa a forma como este

pesquisador transita entre suas próprias circunstâncias e experiências de vida, no Congo

e no Brasil, em diálogo e reflexão crítica com as concepções ocidentais a respeito da

arte. Por estas razões optei por relacionar seu pensamento com o de Schechner. O

professor tratou de questões de suma importância para a introdução da arte africana no

universo da dimensão estética ocidental. Questões deflagradoras de problemas

epistemológicos e da inevitável submissão desta arte ao conceito, o mesmo movimento

que o nascimento da estética no Ocidente experimentou.

Kabengele Munanga propôs três abordagens para o estudo da arte negro-

africana, tendo como ponto de partida que a arte é um produto dinâmico e, portanto, se

transforma no espaço e com o tempo. A primeira é a etnológica, uma arte comunicativa

que não imita e sim significa, uma arte de presentificação. O artista africano da arte dita

“primitiva” – escultor, dançarino, ator, pintor ou cantor – trabalha com uma finalidade

primeiramente ritual. Sua arte é funcional e ligada às suas crenças. É daí que ele tira

toda sua força expressiva.

A segunda é a etno-estética, com a qual os estudiosos constataram um problema

epistemológico causado pela dificuldade de desvincularem a forma do conteúdo, o

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formalismo do funcionalismo. Os defensores da etno-estética não foram capazes de

definir a natureza dessa estética, ou seja: qual seria seu conteúdo? Sua noção de belo?

Sua sensibilidade a essa noção? Considerações acerca deste fato estético foram

levantadas e culminaram na seguinte polêmica. Antes de discutir sobre a questão da

crítica artística há uma outra questão: as sociedades ocidentais e as sociedades africanas

teriam uma mesma noção do que se considera ser uma produção artística?

E por último, em terceiro lugar, ele explica a abordagem estética. Por muito

tempo, a arte negro-africana foi excluída da história universal da arte tal como foi

ensinada na Europa. Picasso e Matisse, entre outros, foram os primeiros a perceberem

um sentido artístico na arte africana. Munanga convoca pensadores ocidentais e Roger

Somé de Burkina Faso e estabelece um diálogo entre opiniões diversas a respeito da

existência ou não da estética na arte negro-africana. Brevemente, discorro a seguir sobre

os principais nomes e suas idéias chave, escolhidos por Munanga para realizar esse

confronto.

Frans Boas afirmou a existência do sentimento estético entre os povos não

ocidentais e a complexidade desta questão; Robert Farris Thompson criou critérios para

julgar o que chamou de estética yorubá; Walter Benjamim trata do acesso às obras a

pessoas especializadas e iniciadas, “o valor estético de exposição das obras”; Ottenberg

diz que “consagrada e colocada no altar, a escultura ioruba não pode mais ser criticada”;

Alexander G. Baumgarten, criador da primeira formulação teórica da disciplina

filosófica da estética a considera: “mais ou menos uma teoria do conhecimento a partir

da apreensão do sensível”; para Hegel a estética não é nada mais que um discurso

conceitual sobre a arte; para Heidegger a obra de arte deve aparecer independentemente

de qualquer interesse, ela não deve ser submetida a nenhuma necessidade do sujeito, a

nenhuma necessidade pragmática; Kant destaca a sensibilidade como domínio da

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expressão estética, que deixa de ser conhecimento para enunciar um sentimento que o

sujeito pode formular na presença de uma obra de arte.

Um ponto comum entre os acordantes desta abordagem é a existência de uma

estética entre os povos da África Negra. E as noções fundamentais da estética clássica

advêm da beleza, ou outra palavra que expresse um sentimento, dito estético. Há de se

considerar que a principal fonte de informação para os etnólogos foi a tradição oral, fato

que os forja a interrogar a população e relacioná-la com o meio, o que significa que

empregam a tese funcionalista que acaba por se opor à corrente formalista, a concepção

de uma arte puramente contemplativa, base dos argumentos da estética clássica

ocidental. São os paradoxos que atingem a dimensão estética da arte africana e que

fazem emergir indagações.

Lanço, portanto, as principais questões decorrentes de sua reflexão crítica: (1)

desconstruir a idéia de que na África é tudo igual, desconstruir a idéia de que na África

é tudo diferente, pois a unidade e a diversidade do continente africano fazem parte de

uma realidade empírica; (2) a controvérsia entre os estudiosos ocidentais, acerca da

dimensão estética da arte negro-africana tradicional, advém das diferentes metodologias

e da dificuldade de tirar conclusões a respeito dela; (3) a tentativa de entender uma arte

que tem raízes numa visão do mundo diferente da ocidental a partir do filtro da visão da

estética da arte ocidental; (4) a ligação, que é um fato, mas não pode ser generalizada,

entre as artes ditas “primitivas” e a religião que as engendra e, além disso, interfere na

maneira de tentar conceituá-la; (5) Julgar um objeto é uma atitude inconciliável ao

julgamento estético que pensando no rigor do termo, ele supõe uma possibilidade de

apreciação de um objeto com liberdade total.

Contudo, no texto e durante o curso, o professor Munanga recorre com maior

freqüência aos importantes questionamentos do filósofo Roger Somé, de Burkina Faso,

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a respeito da dimensão estética da arte africana. Entre outras, introjetadas na opinião de

Munanga, optei por uma das questões de influência para este estudo. Em outros termos,

uma questão que esbarra na flexibilidade reflexiva necessária para transitar entre o viés

religioso do candomblé na cultura da Bahia em diálogo com a cultura de Gâmbia,

entrelaçados e observados a partir da minha experiência e visão artística. Os desafios de

adaptação enfrentados na elaboração da pesquisa, principalmente no trabalho de campo

no Ilê Axé Opô Afonjá, desembocaram numa reflexão crítica referente aos possíveis

problemas metodológicos e conclusivos que engendram tanto esta investigação

científica como o discurso que dela decorre a dissertação. A questão de Somé é:

Saber a que condições os objetos produzidos pelos africanos, que pertencem a um contexto cultural não ocidental, podem ser objeto de um discurso que respeita as regras de uma disciplina ocidental? Quais os limites dessa estética clássica ocidental e por que todas suas categorias não são aplicáveis à arte africana? (SOMÉ apud MUNANGA, 2003, 2004, p.36)

Ao refletir sobre o discurso que componho sob a incidência das palavras e

reflexões de Somé e Munanga, abro um parêntese para apontar o que considero ser meu

papel, como artista e pesquisadora brasileira. Identificada com a concepção dinâmica,

não biologizada da arte afro-brasileira e localizada na periferia do sistema proposto por

Munanga anteriormente, escorrego enquanto pesquisadora e artista, na intenção de

contribuir para a produção artística e científica, baseada num dos segmentos étnicos

mais excluídos da vida nacional brasileira. O crescente interesse da sociedade e do

governo em considerar a participação negra em vários momentos da história brasileira,

demonstra seu poder de influência e a crescente evidência de sua importante

contribuição na construção da vida nacional desde a escravidão até os dias de hoje. Com

este intuito prossigo na memória da centelha ao fogo.

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4. CAPÍTULO II - Reflexões sobre a Memória do Bugarabu

4.1 Amsterdã, o primeiro encontro com o Bugarabu

É um dia frio de agosto. Estou perambulando pelos canais que

embelezam e criam a atmosfera peculiar de Amsterdã. Ao atravessar o

canal do Kosteverlorenkade 1, ouço o som de uma percussão vindo do

outro lado da rua. Retorno e sigo em direção à música que se aproxima

a cada passo que dou em direção àquela construção antiga. O som

intensifica seu volume e invade os meus sentidos. No lago Igapó o som

vinha ao meu encontro, aqui eu vou à procura dele, ao seu encontro. Ao

abrir a grande e antiga porta de madeira do Gebouw Kostgewonnen 2,

encontro a sala onde ecoa a música contagiante da percussão.

Ilustração 5 – Gebouw Kostgewonnen 1 Kost verloren kade é o nome deste canal. 2 Gebouw Kostgewonnen = edifício residencial/cultural de ocupação alternativa (Tradução minha)