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.. © Agries Guimaraes Rosa do Amaral, \/ilma Guimaraes Rosa e-Nonada Cultural Ltda. Direitos de edicao da obra em lingua portuguesa edquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Todos os dircitos reservados. Nenhuma p,lrte dcsta obra pocic scr apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma au eletrontco, de Iotocopia, ctc., scm a permisseo do detcntor do copirraite. EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A, Rua Bambina, 2S -- Botafogo 22251-050 Rio de Janeiro - RJ Brasil T,L, (21 )2131· 1111 Fa" (21) 2286·6755 http://www.novafronteira.com.br e-mail: [email protected] Bibliotcca do Estudante Ctl--Brasil. Catalopacao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. R694r Rosa, Joao Outmarses, 1908-1967 () recado do morro! [oao Gutmaraes Rosa. - Rio de Janeiro: Nova Frcnteira, 2007. (Biblioteca do estudante) ISBN 978-85--209-1977,,{ 1. Canto brasileiro. L'Tttulo. II. Scr-ie, CDD: 869.93 CDU, 811.134.3(81)·3 ---,- Morro alto, morro Brande, me conta a ten padecer. Pro baixo de tuim, ndo olho; p'ra cima, nao posso "VeL .. (ContraCQl'lYClo. Peca pseudofolcku-ica.} o recado do morro em que bern se saiba, conseguiu- se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte, extraordinariamente comum, ,que se armou com o enxadeiro Pedro Orosio (tambem acudindo por Pedrao Chabergo ou Pe-Boi, de alcunha), e teve aparente principio e lim, num julho-agosto, nos fundos do municipio onde ele residia; em sua raia noroestea, para dizer com rigor. Desde ali, 0 ocre da estrada, como de costume, e um S, que comec;:a grande frase. E iam, serra-acima,

O Recado Do Morro

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Guimarães Rosa

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    Agries Guimaraes Rosa do Amaral, \/ilmaGuimaraes Rosa e-Nonada Cultural Ltda.

    Direitos de edicao da obra em lingua portuguesa

    edquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

    Todos os dircitos reservados. Nenhuma p,lrte

    dcsta obra pocic scr apropriada e estocada em

    sistema de banco de dados ou processo similar,em qualquer forma au meioj_(~j~ eletrontco, de

    Iotocopia, grava~:ao ctc., scm a permisseo do

    detcntor do copirraite.

    EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A,

    Rua Bambina, 2S -- Botafogo 22251-050Rio de Janeiro - RJ Brasil

    T,L, (21 )2131 1111 Fa" (21) 22866755

    http://www.novafronteira.com.br

    e-mail: [email protected]

    Bibliotcca do Estudante

    Ctl--Brasil. Catalopacao-na-fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    R694r Rosa, Joao Outmarses, 1908-1967

    () recado do morro! [oao Gutmaraes

    Rosa. - Rio de Janeiro: Nova Frcnteira,

    2007.

    (Biblioteca do estudante)

    ISBN978-85--209-1977,,{

    1. Canto brasileiro. L'Tttulo. II. Scr-ie,

    CDD: 869.93CDU, 811.134.3(81)3

    ---,- Morro alto, morro Brande,

    me conta a ten padecer.

    Pro baixo de tuim, ndo olho;

    p'ra cima, nao posso "VeL ..

    (ContraCQl'lYClo. Peca pseudofolcku-ica.}

    o recado do morro

    em que bern se saiba, conseguiu-

    se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte,

    extraordinariamente comum, ,que se armou com

    o enxadeiro Pedro Orosio (tambem acudindo por

    Pedrao Chabergo ou Pe-Boi, de alcunha), e teve

    aparente principio e lim, num julho-agosto, nos

    fundos do municipio onde ele residia; em sua raia

    noroestea, para dizer com rigor.

    Desde ali, 0 ocre da estrada, como de costume, eum S, que comec;:a grande frase. E iam, serra-acima,

  • cinco homens, pelo espi~ao divisor. Dia a muito

    menos de meio, solene sol, as sombras deles davam

    para 0 lado esquerdo.

    Debaixo de ordem. De guiador - ape, des-

    calco - Pedro Ofbsio: moyO, a nuca bcm-Ieita,

    grallda membradura; e marcadamente erguido: nem

    lhe laltavam cinco ceutimetros para ter urn talhe de

    gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer

    terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em

    cruz os ossos da cabeca de WTI marruas, com urn soco

    em sua cabdoura, e de levantar do chao urn jumento

    arreado, carregando-o nos braces por meio quilo-

    metro, esqui vando-se de seus cokes e mordidas, e

    sem nem par isso afrouxar do f()lego de ar que Deus

    empresta a todos.

    Seguindo-o, a cavalo, tres patr6es, entrajados e

    de limpo aspeeto, gente de pessoa, Urn, de fora, a

    quem tratavam por seo Alquiste ou 0 lquiste - espi-

    go, alernao-rana, com raro cabelim barba-de-milho

    e cara de barata descaseada. 0 sol faiscava-Ihe nos

    aros dos oculos, mas, tirados os oculos, de grossas

    lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul,

    inocente e terno, que ate por si semblava rir, aos

    poucos se acostumando com a forte Iuz daqueles

    altos. Calcava botas cor de chocolate, de urn novo

    o RECADO DO MORRO ~ 7

    feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-p6 de

    linho, para verde; traspassava a tiraeol as correias

    da codaque e do binoculo; na cabeca urn chapeu-

    de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na

    roca, Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto

    enxergava dava urn mesmo engra

  • acharia cavalgadura que Ih\' assentasse. Mas ele cra

    urn sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e Ii-

    geiro, e, tao forcoso, de corpo nunca se cansava. Por

    mais, aqueles ali nao estavam apurados, iam jornadaI

    vagarosa. 0 lourara, sea Alquiste, parecia (luerer

    remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas,

    os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato.

    Par causa, esbarravam a tada hora, se apeavam, meio

    desertavam desbandando da cstrada-mestra.

    De feito, diversa ea regiao, com belezas, mara-vilhal. Terra longa e jugosa, de montes p6s montes:

    morros e corovocas. Serras c serras, por prolonga-

    cao. Sernpre urn apique bruto de pedreiras, enormes

    pedras violaceas, com matagal ou lavadas. Tudo cal-

    carea. E elas sc roern , nao raro, em farmas -.- que

    nem pontes, torres, colunas, alpendres, chamines,

    guaritas, grades, campanarios, parades animais,

    destrocos de estatuas ou vultos de criaturas. Por la,

    qualquer voz volta em bela eco, e qualquer chuva

    suspcnde, no ar de cristal, todo tinto arco-iris, cor

    par cor, vivente longo ao solsim, feito urn pavao.

    Umas redondas chuvas acidas de grande diametro, . . ,chuvas cavadoras, recalcantes, que cacm fumegando

    com vapor e empurram enxurradas mao de rios,

    se engolfam descendo par funis de furnas, antros e

    o RECADO no MORRO 9

    grotas, com tardo gorgolo musical. Nos rochedos,

    as bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus

    se foram. Pelas abas das serras, quantidades de ca-

    vcrnas - do teto de umas poreja, solta do tempo,

    a agiiinha estilando salobra, minando sem-fim num

    gotejo, que vira pedra no ar, se endureee e dependu-

    ra, por toda a vida, que nem renda de torroezinhos

    de amendoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera

    santa, e grossas lagrimas de espermacete; enquanto

    do chao sobem outras, como crcscidos dentes, como

    que aquelas scjam goelas da terra, com boca para

    morder. Criptas onde 0 ar tern corpa de idade e a

    agua forma pele muito fria, e a escuridao se pega

    como uma coisa. Ou lapinhas cheias de morce-

    gas, quc juntos chiam, guincham, porfiam. Largos

    ocos que servem de malhador ao gado, no refrio

    das noites, ou de abrigo durante as tempestades.

    Lapas, com salitrados desvaos, onde assiste, rodeada

    de silencios e acendendo globos olhos no escuro, a

    coruja-branca-de-orelhas, grande mocho, a estrige

    cor de perolas -- strix perlata. Cafurnas em que as

    andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho,

    pondo e tirando cria, depois se somem em bandos

    por este mundo, deixaram Ia dentro s6 a ruiva mo-leja, as rumas, e sua ardida cheiracao. Fim do campo,

  • 10 JOAo GUIMARAES ROSA

    nas sarjetas entremontas d~s bacias, um ribeirao de

    repente vem, desenrodilhado, ou 0 fiume de um

    riachinho, e da com 0 emparedamento, entao cava

    um buraco e por ele se soverte, desaparecendo num

    emboque, que alg1!lt'is ainda tern pelo nome gentio,

    de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrao, travessando

    para 0 outro sope do morro, ora adiante, onde re-

    brota desengulido, a agua ja filtrada, num bilo-bilo

    facil, logo se alisando branca e em leves laivos se

    azulando, que qual polpa cortada de caju. E mesmo

    c6rregos se afundam, no plao, sem razao, a nao ser

    para poderem cruzar intactos por debaixo de rios,

    C remanam do tunel , ressurtindo, longe, e depressa

    se afastam, seguindo por terern escolhido de afIuir

    a um rio outro. E lagoazinhas, em pontos elevados,

    sao ao contrario de todas: se enchem na seca, e

    tempo-das-ajjuas se esvaziam, delas mal se sabe. E

    nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice,

    de bichos scm estatura de regra, assombracao deles

    ----- 0 megaterio, 0 tigre-de-dente-de-sabre, a proto-

    pantera, a monstra hiena espelea, 0 paleo-cao, 0 lobo

    espeleo, 0 urso-das-cavernas '--"--, e homenzarros,

    duns que nao ha mais. Era so cavacar 0 duro chao, de

    laje branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos,

    de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou

    o RECADO DO MORRO ~ It

    que massas d'agua afogaram, quebrando-os contra

    as rochas, quando as manadas eles queriam fugir,

    se escondendo do Diluvio, Agora, pelas penedias,

    escalam cardos, cactos, panlsitas agarrantes, gravatas

    se abrindo de Hores em azul-e-vermelho, azagaias

    de piteiras, 0 pau-d' oleo corn raizes de escultura,

    gameleiras manejando como alavancas suas sapope-

    mas, rachando e estalando 0 que acham; a brornelia

    cabelos-do-rei, epifita; a ehita--- uma orquidea; e a

    catleia sofredora rosissima e roxa, que ali vive no, ,rosto das pedras, perfurando-as. Papagaios rouco

    gritam: voam em amarelo, verdes. Vez em vez, se

    esparrama um grupo de anus, coracoides, que piam

    pingos choramingas. 0 caracara surge, pousando

    perto da gente, quando menos se espera -- um

    gaviaoao vistoso, que gutura. Por resto, 0 mudo

    passar alto dos urubus, rodeando, recruzando -~;

    pela gnisa esses sabem 0 que-ha-de-vir.

    Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo

    nao se governava bern. Tomava nota, escrevia na ca-

    derneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande

    esta estrangulando com as raizes a paineira pequena!

    - ele apreciava, a exclama. Colhia com duas maos a

    ramagem de qualquer folhinha campa sem serventia

    para se guardar: de marroio, carqueja, sete-san-

  • 12 -JO;;':O GUIMAItAES ROSA

    grias, amorzinho-seco, pe-de-perdiz, joao-da-costa,

    unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo-cl'aqua,

    Iingua-de-tucano, Iingua-de-teiu. Uma hora, rcvirou

    a correr arras, agachado, feito pegador de galinha,

    tropecando no ban'iburral e espichando tombo, so

    por ter percebido de rclance, inho e zinho, fugido no

    balango de entre as moitas, 0 orob6 de um nharnbu.

    Outramao, de desenhava, desenhava: de tudo tirava

    traco e Iigura leal. Daquelas cumeeiras, a vista vai

    de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze,

    vinte, trinta leguas lonjura.--~ "Da acoite de se

    ajoelhar e rezar ... " -- ele falou. Dava. E sorria de

    ver, singular, elas trepando pela reigada da verten-

    tc, as labaredas verdes dum eanavial. Saudou, em

    beira de capao, urn tamandua longo, saido em seu

    giro incerto; se nao 0 segurassem, ia la, aceitava 0abraco? Mas bastantemente assentava no caderno,

    it sua satisfacao, Quando nao provia melbor coisa,

    especulava perguntas; frei Sinfrao, que se entendia

    na Iinguagem dele, rcpetia:

    -- Quer saber donde voce e, Pedrao. Se voce

    nasceu aqui?

    Nao. Pe-Boi era de mais afastado, catrumano,

    nato num povoadim de vereda, no sertao dos cam-

    pos-gerais. Homem de brejo de buritizal entre cha-

    o RECADO DO MORRO - 13

    padas arenosas, terra de rei-trovao e gado bravo. E,

    mesmo agora, so se ajustara de vir com a comitivaera porque tencionavam chegar, mais norte, ate ao

    eome

  • ou uma montanha. Aquelemesmo Ivo, que evinha

    ali, e clue de primeiro tao seu amigo fora, andava

    agora com ele estremecido, por conta de uma mo-

    cinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam.

    E, a causa de outra!;:' delas nern se lembrava, ali em

    Cordisburgo tinha 0 Dias Nemes, famanaz, virado

    contra ele no vii frio de uma inimizade, capaz de

    tudo. Com frequencia, Pedro Orosio tirava do bol-

    so urn espelhinho redondo: se supria de se mirar,

    vaidoso da constancia de scu rosto.

    E quando e que voce toma juizo, Pedro, e

    se casa?

    Todos riam. Ate 0 Ivo, que ria fazia, destornado.

    Seu Alquiste quis bater uma fotografia de Pedro

    Orosio: reeomendou que ele ficasse teso, descidos

    os braces. -"Grande ... Muito grande ... " -falou.

    -"Born para soldado!" De por si scm acanhamento

    nenhum, antes saido, e mais ainda sc espiritando

    com aquele regozijo geral, 0 Pedro prosapiou gra9a

    de responder, sem quebra de respeito- que per

    guntassem ao outro se na terra dele as m09as eram

    bonitas, pois gostava era de se casar com uma assim:

    de cara rosada, cabelo amarelo e olho azul. ..

    Seo Alquiste, quando 0 frade a entendeu para

    ele, apreciou muito a parlada, e mesmo disse urn

    o RECADO DO MORRO IS

    ditado, la na lingua: que urn quer salada fina e

    . outro quer batata com a casca ... Porque de, seo

    Olquiste, premiava para si, se pudesse, era casar

    com uma mulata daqui, uma dessas quase pretas de

    tao roxas ... E cntao 0 Ivo, la de tras, encolhido na

    sela mas forcejando por espevitar boa-cera, arefal-sa, tambem disse: "A born, amigo Pedro, quem

    sabe ele havera de querer te levar, por conhecer a

    cidade dele?"

    E Pedro Orosio, subido em sua fiuza, dava

    resposta de claro rosto. Tinha medo de ninguem,

    assim descarecia de Hgado ou peso de cabeca para

    guardar rancor. Contentava-o ver 0 Ivo abrir paz;

    coisa que valia neste mundo era se apagarem as

    duvidas e quizilias. 'Ioda desavenca desmanchava 0

    agradavel sossego simples das coisas, rendia ate pre

    gui9a pensar em brigar. Nunca desgostara do Ivo, e,

    quando mesmo, ali era 0 Ivo 0 unico de sua igualha,

    a proprio, e a gente sentia falta de algum compa

    nheiro, para se entreter presen9a de conversa; do

    contrario a viagem fieava aborrecida. Outros eram

    os outros, de born trato que fossem: mas, pessoas

    instruidas, gente de mando. E urn que vive de seu

    trabalho bracal nao cabe todo avontade junto eom

    esses, por eles pago.

  • 16 ~ JOAO GU1MARAE5 ROSA

    De qualidade tambem,que, os que sabem ler e

    escrever,a modo que mesmo 0 trivial da ideia deles

    deve de ser muito diferente. 0 seo Alquiste, por

    urn exemplo, em festa de entusiasmo por tudo, que

    nem uma crianca ,rio brincar; mas que, sendo sua

    vez, atinava em por na gente urn olbar ponteado,

    trespassante, semelhando de feitieeiro: clue divul-

    gava e discorria, ate adivinhava sem ficar sabendo,

    Ou 0 frade frei Sinfrao, sempre rezando, em hora

    e folga, eom 0 terce ou no missalzinho; mas rezava

    enorrnes quantidades, e assim atarefado e alegre,

    como se no lucrativo de urn trabalho, produzindo, e

    nao do jeito de que as pessoas comuns podem rezar:

    a eurto e com distracao, ou entao no per-socorro

    de uma tristeza ansiada, em momentos de aperto,

    Por isso tudo, aqueles a gente nem conseguia bern

    entender. Mesmo 0 seo Jujuca do Acude, rapaz

    m090 e daqui, mas com seus estudos da Iida certa

    de todo plantio de cultura, e das doencas e remedies

    para 0 gado, para os animais. Pois seo Jujuca trazia

    a espingarda, cacava e pescava; mas, no mais do

    tempo, a atencao dele estava no comparar as terras

    do arredor, lavoura e campos de pastagem, saber

    de tudo avaliado, por onde pagava a pena comprar,

    barganhar, arrendar -- negociar alqueires e novi-

    o RECADO DO MORRO ~ 17

    Ihos, madeiras e safras; seo Jujuca era urn m090

    atilado e ambicioneiro.

    Do CJue eles tres falavam entre si, do muito que

    achavam, Pedro Orosio nao acertava compreender, a

    respeito da beleza e da parecen9a dos territorios. Ele

    sabia para isso qualquer urn tinha alcance--- que

    Cordisburgo era 0 lugar mais formoso, devido ao

    ar e ao ceu, e pelo arranjo CJue Deus caprichara em

    seus morros e suas vargens; par isso mesmo, la, de

    prirrieiro, se chamara Vista-Alegre. E, mais do que

    tudo, a Gruta do Maquine ~ tao inesperada de

    grande, com seus sete saloes encobertos, diversos,

    seus enfeitcs de tantas cores e tantos formatos de so-

    nho, rebrilhando risos na luz-- ali dentro a gente se

    esquecia numa admiracao esquisita, mais forte que

    o juizo de cada urn, com mais gloria resplandecente

    do que uma Iesta, do que uma igreja.

    Nao, bronco ele nao era, como 0 Ivo, que nern

    tinha querido entrar, esperara cit fora: disse que ja

    estava cansado de conhecer a Lapa. Mas, daquilo,

    daquela, ninguern nao podia se cansar, Ah, e as es-

    trelas de Cordisburgo, tambem 0 sea Olquiste

    falou eram as que brilhavam, talvez no rnundo

    todo, com rnais agarre de alegria.

  • 18 ~JOAO GUIMARAES ROSA

    Pedro Orosio achava do mesmo modo Iindeza

    comum nos seus campos-gerais, por saudade de lit,

    onde tinha nascido e sido criado. Mas, outras coisas,

    que seo Alquiste e 0 frade, e seo Jujuca do Acude

    referiam, isso ficavf por ele desentendido, fechado

    sern explicacao nenhuma; assim, que tudo ali era

    uma Lundiana ou Lundlandia, desses nomes. De

    certo, segredos ganhavam, as pessoas estudadas; nao

    eram para 0 usn de um lavrador como cle, so com

    sua saude para trabalhar e suar, e a protecao de Deus

    em tudo. Um enxadeiro, sol a sol debrucado para a

    terra do chao, de orvalho a sereno, e puxando toda

    forca de seu corpo, como e que hit de saber pensar

    continuado? E, mesmo para entender ao vivo as

    coisas de perto, cle so tinha poder quando na mao da

    precisao, au csquentado ~ -- par odio ou par amor.

    Mais nao conscguia.

    Agora, a clue 0 tirava, era a garantido de voltar

    par um pouco aos Gerais, ate lit iam, para lit guiava.

    E chegariam aos Gerais quase scm necessidade de

    se apear das serras em seu avan

  • .

    20 ~JOAO GUIMARA.ES ROSA

    ro com esse? Em todo a c,aso, melhor estava que a

    Iva retornasse as boas. A vida era curta para nela se

    trabalhar e divertir; para que tantas dificuldades?

    Prazia caminhar, isto sim, e estava sendo bern

    gratificado. Cantavlou assoviava, e, pe-dobro, puxa-

    va estrada. Ajeitava a calca preta de zuarte, desbotada

    mas bern arrepacada, por nao pair a barra da roupa;

    dobrava-a para dentro, para nao ajuntar poeira. E,

    as pes de sola grossa, experimentava-os firme em

    qualquer chao.

    o ceu nao tinha fim, e as serras se estiravam,sob a esbaldado azul e enormes nuvens oceanosas.

    Ora as cavaleiros passavam par urn socalco, entre

    uma quadra de pedreira avancante, pedra peluda,

    e 0 despenhadeiro, uma fra altissima. Eles seguiam

    Pedro Orosio; era vaqueao , nele se fiavam. la bern

    na dianteira. Aquele elevado m090, sem paleto , a

    camisa furada, urn ombra saindo par urn buraco ;

    terminando, de velho, seu chapeu-de-palha: copa

    e drculo, com a rego concave; e acintura a garru-cha na capa, e urn facao; ia, a longo.- "Sansao ... "

    - disse sea Alquiste. Fazia agrado ver sua boa co-

    ragem de pisar, seu decidido arranque.

    E assim seguiam, de urn ponto a urn ponto, por

    brancas estradas calcareas, como por uma linha va,

    o RFCAD() DO MORRO 21

    uma linha geodesica. Mais au menos como a gente

    vive. Lugares. Ali, 0 caminho esfola em espiral uma

    laranja: au e a trilha escalando contornadamente

    a morro, como urn laco jogado em animal. Que-

    riam subir, ever. 0 mundo disforme, de posse das

    nuvens, seus grandes vazios. Mas, eom brevidade,

    desciarn outra vez. Sairam a onde a estrada ereta,born estirao. Ate que, a pouco trecho, enxergavam,

    adiaute uma pessoa caminhando.

    Urn homenzinho terem-terem, ponderadinho

    no andar, todo arcaico.

    ~~- "0 0 Gorgulho ... " - 0 Pe-Boi disse.Quem? Um velhote grimo, esquisito, que mo-

    rava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e

    gratas - uma urubuquara --- casa dos urubus, uns

    lugares com pedreiras. 0 nome dele, de verdade,

    era Malaquias.

    E ia 0 Gorgulho.direito bern no meio da estrada,

    pareeia urn garatujo, urn desses calungas pretos, ou

    carranquinha escoradora de veneziana. Tinha urn

    surrao a tiracolo, e se arrimava em bordao au man-

    guara. Como quase todo velho, andava com maior

    afastamento dos pes; mas sobranceava comedimento

    c esturdia dignidade.

  • Devia de ouvir poueo, pois a eomitiva ja quase

    o alcancara e ele ainda nao dera pOl' isso. Ora, pela

    calada do dia, ali e lugar de muito silencio. Assim

    que, 0 Gorgulho caJyava alpercatas, sua roupa era

    de sarja Fusca, for;'ato antigo ~- casacao compri-

    do demais, com gualdrapas; uma borjaca que de

    certo tiuha sido de dono outro-- mas Iimpa, sem

    desalinho nenhum; via-se clue ele fazia questao de

    estar composto, sem em ponto algum desleixar-se.

    E 0 que empunhava era urna bengala de alecrim, a

    madeira roxo-escura, quase preta.

    E, nisso, de arranco, ele esbarrou, se desbracan-

    do em gestos e sestros, brandindo seu cacete. Fazia

    espantos. Falou, mesmo, voz irada, logo ecfOnico:

    _ Eu?! Naol Nao comigo! Nenhum filho de

    nenhum ... Nao tou somando!

    Tomou fOlego, deu um passo. Sem sossegar:

    mmm Nao me venha com 10XIas! Conselho que nao

    entendo, nao me praz: e agouro!

    E mais gritava, batendo com 0 alecrim no chao:

    __~__ or, judengo! Tu, antao, vai p'r ' as profun-

    das!. ..

    De tanta maneira, sincera era aquela luria. Silen-

    ciou. E prestava atenyao toda, de nariz alto, como se

    o RECADO no MORRO 2)

    seu queixo Fosse um aparelho de escuta. Ao tempo,

    enconchara mao aorelha esquerda.Alguem tambcm algo ouvira? Nada, nao. En-

    quanto 0 Gorgulho estivera aos gritos, sim, que

    repercutiam, de tornavoz, nos eontrafortes e pa-

    redoes da montanha, perto, que para tanto sao dos

    melhores aqueles lances. Agora e antes, porem, tudo

    era quieto.

    ~-"Que foi que foi, seu Malaquia?"- ja ao lado

    dele Pedro Orosio indagava.

    Apenas no instante 0 Gorgulho percebia-os.

    Volrou-se . Mas nao respondeu. Empertigou-se,

    saudando circunspecto; tudo nele era formal. Ate a

    barba branco-amarela , so na orla do rosto, chcgan-

    do ao cabelo. Pedro Orosio teve de apresenta-lo, a

    cada um, e de cumpria serio 0 cumprimento, eom

    vagal' a frei Sinfrao beijou a mao, mencionando

    Jesus Cristo. Se deseobrira e segurava 0 chapeu,

    pigarreando e aprovando, com lentos anuidos, a

    boa presenya daquelas pessoas, Mas a gente notava

    quanto esforco ele fazia para se conter, tanta per-

    turbacao ainda 0 agitava.

    "H'h Q' -- um... ue e que 0 morro nao tem

    preceito de estar gritando ... Avisando de eoisas ... "

    -~ disse, pOl' fim, se persignando e rebenzendo, e

  • 24 ~ JoAo GU1MARAES ROSA

    apontando com 0 dedo no rumo magnetico de vinte

    e nove graus nordeste.

    La -~ estava 0 Morro da Carca: solitario, escalc-

    no e escnro, feito uma plramide. 0 Gorgulho mais

    olhava-o, de arrevi/ar bogalhos; parecia que aqneles

    olhos seus dele iam sair, se esticar para fora, com

    pedunculos, como tentaculos.

    "P . I havid aI ')" Irei- ossrve ter aVI 0 gnma coisa: ..- rei

    Sinfrao pergnntava..- "Essas serras gemem, ron-

    cam, as vezes, eom retumbode longe trovao, 0 chao

    treme, se sacode. Serao descarregamentos subter-

    ranees, 0 desabar profundo de camadas calcareas,

    como nos terremotos de Born-Sucesso ... Dizem que

    isso acontece mais e por volta da lua-cheia ... "

    Mas, nao, ali ilapso nenhum nao ocorrera, os

    morros continuavam tranquilos, que e a maneira de

    como entre si e1es conversam, se conversa algnma

    se transmitem. 0 Gorgulho padeceria de qualquer

    alucinacao; e1e que ate era meio surdo. E Pedro

    Orosio,

  • com 0 nariz e revolvendo as magras bochechas,

    Dele, oi, ningucm zombava gracejo, que era homem

    se prezando, forte zangadi

  • 28 '"JOAO GUJMARAES ROSA

    depois de matutar seu pouco, retorcendo 0 nariz e

    bufando fraco, A fala dele era cjue nao auxihava 0 se

    entender - as vezes urn engrol fanho, ou baixandoem abafado nhenhcnhem , mas com partes quase

    gritadas. Em cada ;v.omento, espiava, de reves, para

    o Morro da Garca, posto la, a nordeste, testemunho.

    Belo como uma palavra. De uma feita, 0 Gorgulho

    levou os olhos a ele, abertamente, e outra vez se

    benzeu, tirado 0 chapeu, depois, expediu um escon-

    juro, com a mao canhota. Frei Sinfrao recomendava

    a seo Alquiste que agora deixasse de tomar notas na

    caderneta.

    Passando-se assim estas coisas, discorriam de

    ficar sabendo, melhor, que 0 Gorgulho residia, havia

    rnais de trinta anos, na dita furna, uma caverna a cis-

    morro, no ponto mais brenhoso e feio da serra gran-

    de. Lapinha antes anonima, ou "Lapa dos Urubus",

    mas agora chamada a "Lapinha do Gorgulho". Santo

    de sozinho de santo: nunca tivera vontade de se easar

    "0 hor saib . .,--- ssen or Sal a: nem CODJO, nern conJa -- mea

    razao sera esta ... "Mesmo omotivo dessa sua viagem

    era ir de visita ao seu irrnao Zaquias, morador tao

    jontao, tambem numa gruta pequena, pegada com

    a Lapa do Breu, rumo a rumo com a Vaca-em-Pe.

    Porque tinha tido sabenca de que 0 Zaquia andava

    o RECADO DO MORRO" 2')

    imaginando se casar. E entao ele achava obriga9ao

    de aviso de deixar seus trabalhos, por uns dias, e vir

    reconselhar irrnao, tivesse juizo, considerasse, aspaciencias, nao estava mais em era de pensar em

    mulher. E, de sse modo, pondo em efeito.

    Afora causa tao precipitada, so de longes meses,

    nao mais de uma vez na roda do ano, era que urn

    doles resolvia, deixava sua gruta, e espichava estrada,

    por mol' de vir ver 0 outro irmao lapuz. "Mas, por

    . ')" "0 h d' ? "que nao moram Juntos. - ssen or isse ....

    - e 0 Gorgulho fitava 0 frade, espantado com 0

    desproposito,

    Porern seo Olquiste queria saber como era a

    gruta, por fora e por dentro? Soria boa no tamanho,

    confortosa, com tres comodos, dois deles clareados,

    por altos suspiros, abertos no paredao, 0 salao der-

    radeiro e quc era sempre escuro, e tinha no rneio do

    chao um buraco redondo, sem fundo de se escutar

    o fim duma pedra cair; mas 1 a gente nao preci-

    sava de entrar - so um casal de suindaras certos

    tempos vinha, ninhavam, esse corujao faz barulho

    nenhum. Respeitava ao naseente. A boca da entrada

    era estreita, um atado de feixes de capim dava para se

    fechar, de noite, mode os bichos. E tinha ate trastes:

    urn banco, urn taco de arvore, urn caixote e uma

  • 30"jO,\0 GUIMARAES ROSA

    barrica de bacalhau. E tinha pote d' agua. Dorrnir,

    ele dormia numa esteira. Vivia no seu sossego.

    E de que vivia? Plantava sua roca, colhia: __ u __ "A

    gente planta milho, arroz, Ieijao, bananeira, abo-

    bra, mandioca, rm~ndobi,batata-doce, melancia ... "

    Roca em terra geradora, ali porto, sem possessao de

    ninpuem, chao de eal, dava de tudo. Que ele tinha

    sido valeiro, de protissao, em outros tempos ...

    -- emendava baixinho Pedro Orosio. Abria valos

    divisorios. Trabalhava e era pago por vams: preyo

    por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares todos.

    "I' h '1" I I" C-- "'ec eL - e e mesma (1218.. ontavarn que

    ainda tinha guardado born dinheiro, enterrado, por

    isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas

    e quarentas, moedoes de cobre zinhavral. Com a

    mudanca dos usos, agora se fazia era cerea-de--ara-

    me, ninguem queria valos mais; ele tcve de mudar

    de rumo de vida. Cultivava seu de comer. E punha

    esparrclas para caya, sabia cavar mjo grande; por

    redondo ali, dava muita paca: nem bern ve uma

    semana, tinha pegado em munden uma paca ama-

    rela, dona de gorda. So pelo sal, e por se servir de

    mercf de alguma roupa ou chapeu velho, era que

    ele surgia, vez em raro, em Iazenda ou povoado.

    Trazia frutas, tambem fazia os balaios , mestre no

    o RECADO DO MORRO 31

    intcrteixo. Dizia: -- "Tambem faco balaio ... Os-

    senhor fica com 0 balaio ... Tambcm faco balaio ...

    TambCm faco balaio ... "

    Mas nesse entremcio, baixando 0 lancante ,,chegavam a urn lugar sombroso, sob muralha, e

    passado ao fresco por urn riachinho: cis, cis. Urn

    regato f1uifim, que as pedras olham. Mas que mais

    adiante levava muito sol. Do calcareo corroido subia

    e se desentortava ve1ha gameleira, imensa como urn

    capac de mato, Espacados, no chao, havia cardos,

    bromelias, urtigas. Do mundo da gameleira, vez Clue

    outra se ouvia urn trinco de passarinho, Ali fizeram

    estacaopara a hora de comer., ,Dado urn lombo aos cavalos, estes pegavam a

    pastar, nas bocainas do barranco, urn me!oso ressal-

    vado da seca e entrancado, cheirando born, com seus

    oleos e seus pelos. Pedro Orosio ia ajuntar galhos de

    graveto, acola , debaixo dos pes de itapicuru; acendia

    a foguinho, coava cafe. Dava prevencao: de repente,

    uma laje daquelas, da trempe, podia estalar, rachada

    se esqucntando, com bruto rumor. Tinharn queijo,

    biscoitos, farinha, e carne de porco nevada na banha,

    numa lata. Todos se assentavam, mesmo no solo, au

    em blocos e lascas de pedra, so 0 Gorgulho como

    que teimava em fiear de pe firme em seu proprio

  • lil

    I

    32. JO.~O GUIMAR.4.ES Ros"

    todo respeito e escoradoem seu alecrim. Rcjeitou

    de tudo, com breves mesuras de cortesia: - "A

    Deus sejam dadas! E a melhor sustancia paraVossen-

    cias ... N6s matulamos inda agorinha ... " --- falou.t

    "E 'I" d berba?" J'--- .stara e e JeJuan a sua so er _a. - -- sea uJUcaperguntou, baixo. Mas Pedro Or6sio sussurrou es

    clarecimento, que alguns velhos diziarn "nos" assim ,

    que de certo era par eles mesmos e de cada urn seu

    anjo-da-guarda, por mais de.

    Par ai, caso e coisa, e ja que ele morava dito

    numa urubuquara, queriarn poder saber a respeito

    de companhia tal, dos urubus, qual era a regimento

    d "A I" - I 'esses. ON rre. - que naa era - e e renuia, vez

    vezes. Nao em sua gruta de vivenda, onde assistia.

    Llrubu nenhum la nao entrava, nenhonde. - "Mas,

    ?" "p "Q 'par perto. -- or perto, par perto... ue e que

    ele podia fazer, par evitar? Urubu vinha la, zuretas,

    se ajuntavam, chegavam por de longe, muitos todos,

    gostavam mesmos daquelas covocas. Que eque eleia fazer? Ossenhor diga ... Amem que, urubu, de

    seu de si, nao arruma perjuizo p'ra ninjmem , mais

    menos p'ra ele, que nao tinha criacao nenhuma,

    tinha s6 lavouras ... E a Gorgulho calcava com a

    ponta da bengala em terra, e grave, de cabeca,

    afirmava, afirmava.

    o RECADO DO MORRO G 33

    Todo mesmo, percebeu como reperguntavam, e

    botou silencio, desengracado com isso, nao enten-

    dendo como pessoas de tao alta distincao pudessem

    perder seu interesse, em coisa, E so manso a manso

    foi que Pedro Or6sio e frei Sinfrao conseguiram tirar

    dele noticia daqueles passaros, 0 geral deles.

    Assaz quase milhares. Que passam tempo em

    enormes voos por cima do mundo, como par cima

    de urn deserto, parque so estao vendo 0 seu de-

    comer. Por isso, despois, preeisam de urn lugar

    sinaladamente, que pequeno seja. Para eles, ali era 0

    mais retirado que tinham, fim-de-rnundo, cafund6,

    ninpuern vinha bulir em seus ovos. --- "Arubu tirou

    heranca de alegre-tristonho ... "Tinha hora, subiam

    no ar, urn chamava os outros, batiam asa, escure-

    eiam 0 recanto. Algum ficava quieto, descansando

    suas penas, 0 que costuravam em si, com agulha

    e linha preta, parecia. Careca ..-- mesmo a cabe-

    ca e a pesco

  • 34- Jo A 0 G U I !Hi\.. RAE S Ro S 1\

    existentes, todos rodeados, Pretos, daquele preto

    de dar cinzas, urn preto que se esburaca.e que rouba

    alguma coisa de vida dos olhos da gente. A chibanca,

    de quando vinham. Chegavam no sol-se-por. Vinham

    magros, vinhanf gordos ... Botavam seus ovos, sem

    ninho nenhum, nos solapos, nas grotas, nas rachas

    altas dos barrancos, nos buracoes, nas arvores do

    mato lajeiro. Cada preeipicio estava cheio de nichos,

    dentro eles chocavam, punham para fora as cabecas e

    os pescoyos, pretos, de latao. Era ate urgente, como

    espiavam pra urn e pra outro lado. Dai, tiravam os

    filhotes. Entao, fediam muito, os lugares.Cada par

    com seus dois filhos, danados de bonitinhos, primei-

    ro eram plumosos, branquinhos de algodao, pOl' logo

    iam ficando lilas. Quando viam a gente, gomitavam:

    - "Arubu pequeno rumita 0 tempo todo, toda a

    vida ... " Tambern e dessa Ieicao assim que pai e mae

    botam comida no bico de cada urn. Eh, arubuzinho

    pia como pinto novo: pintos pios ...

    Se nao tinha medo de serem tantos, e ali encos-

    tados? Ah, nao, eh, des tambem tern ate regra: uns

    castigam os outros. Dao pancada, dao urn assorto

    de gUincho, de repreensao. Eh, e urn reino deles.

    Tal que, ali no esconso, uns podiam se apartar para

    morrer, morriam m090s, morriam velhos, doenca

    o Rl'CII.PO DO MORRO' 35

    mereciam? Uns escondiam os pes, daros, e abriam

    as asas, iam encostando as asas, no chao, tempo-

    de-chuva chovia em cima, urubu virava monturo,

    se acabava, quase ... Mais morre, au nao rnorrc?

    "Iiu nunca "vi arubu morto ... Eu nunca vi arubu

    morto ... "

    E se tinha, sc era verdade , urn urubu todinho

    branco, sempre escondido pelos outras, mas que

    produzia as ordens? Nao, disso 0 Gorgulho nunea

    tinha vislumbrado. Pudesse em haver, 56 se sendo

    o capeta ... Tesconjurava. E a fala delcs, uns com

    os outros? Conversavam? 0 seu Malaquias cnten

    dial 0 Gorgulho mais se endireitava, cismado; sua

    cara era tao suja, sarrosa. Que nao nem que sim:

    nunca tinha vislumbrado. Mas falava. Pela feitura,

    talvez ele nao pudesse tel' toda a mao em seu dizer,

    porquanto tanto esforco punha em nao bambear 0

    eorpo. Se esdruxulou:

    -"Vao pelos mortos ... Oficio deles. Vao pelos

    mortos ... Dai em vante. Este morro e born de veri-

    to ... Eu sou velho daqui, bruaca velha daqui. A lui

    morar Ia, rna de me governar sozinho. Tenho nada

    eom arubu, nao. Assituamento deles. POl' este e este

    cotovelo! Vossemcce ossenhor sabe. Carcco de ir

    dereitamente, levar conselho de corrigimento pra

  • meu irrnao Zaquia. POl' conta de coisa que se diz ,

    que ele cluer se casar.Tira meu assossego. Careco de

    desdizer que nao ease. Ta frouxo de juizo? Viagem

    desta muito me cansa, estou de graneles dias fora dec. '

    Iorca, maltreito. 56 pOl' ele ser 0 meu irrnao, mais,I

    novo. Arreside corn ruins vizinhos perto, aprende

    o mal, ideias, Se casa, casa scm rneu agrado: seu

    quis, seu seja ... Vou indo de forasta, tendo minhas

    obriga ~- e sea Alquiste se levan-"LJ ,1\, di A.," , ta t,r" eletava. --_.- norn est lZ XOIZ Imm pOl' n . --- - -;

  • 38 e J O.A 0 G U 1M" R A F S R 0 S ,,\

    lalou,brumbrum. S6,se pelo acalorde voz do Gor-

    gulho ele pressentia. E ate se esqueceu, no ala, deu

    apressadas frases ao Gorgulho, naquela lingua sem

    as possibilidades. 0 Gorgulho meio se arregalou, e

    defastou urn passo. Mas se via que algum entendi-

    mento, como que de palpite, esteve correndo entre

    ele e 0 estranjo: porque ele ao de leve sorriu, e foi a

    unica vez que mostrou um sorriso, naquele dia. Os

    dois se remiravam. Seo Olquiste reconheceu que nao

    podia; e olhou para frei Sinfrao. -. "Chois' muit'. , t -os . Iimrn por ant! --- me agou.

    Nao, nao era nada importante, 0 frade explicou,

    o quanto pode. No mais, que 0 Gorgulho disse, que

    foi breve, se repetia menosmesmo, continuativo,

    nao havia pOI' onde se acertar, --- "13 do airado ... ".- disse seo ]ujuca. Nem cram coisas do mundo

    entendivel. De certo 0 Gorcrulho pOI' sua maniab' ,

    estava transferindo as palavras. Mais achou, como

    de relance, que seo Alquistc era capaz de pegar 0

    sentido escogitado; e entao afiou boca. Mas, nesse

    al()go, falando muito depressa, embrulhava tudo, nao

    vencia se desembargar. S6 Pedro Or6sio as vezes ca-

    piscava, e reproduzia para frei Sinlrao, que repassava

    revestido pra sco Olquiste. E seo ]ujuca tarnbern

    auxiliava de falar estrangeiro com frei Sinfrao -_. mas

    o RECADO DO MORRO .~ 39

    era vagaroso e noutra toada diferente de linguagem,

    isso se notava. Mas, depois, todaa resposta de seo

    Alquiste retornava, via 0 frade e Pe-Boi. Por tanto,

    todos entao estavam nervosos, detanta conconversa.

    E 0 Ivo, que no meio daquilo era 0 sern-prestimo,

    glosou qualquer tolice -- nem era chacota -, e 0

    Gorgulho expeliu nele um olhar de grandes raivas;

    e dai esbarrou: quis nao falar mais nada nao.,., .Ao lim de tanto transtorno, 0 rosto de seo AI-

    quiste se ensombreceu, meio em decepcao; e ele

    desistiu, foi se sentar outra vez no pedaco de pedra.

    S6 se ouvia 0 resume de uma mosca-verde, que pas-

    sava; 0 tertere dos animais boqueando seu capim; e

    o avexo cm chupo do r iachirn , que estarao frigindo.

    Tambem 0 passaro da copa da gameleira fufiou. E 0

    outro, a passarinho anonimo, hi em baixo, no morrode ar vores pretas do ribeirao: Toma-a-ben,iio-ao-

    seu-ti-io,Jo-iio! 0 resto era 0 calado das pedras, das

    plantas bravas que crescem tao demorosas, e do ceu e

    do chao, em seus lugarcs. 0 Gorgulho riseava 0 ter-

    reno com a bengala; pigarreou, e perguntou sc seo

    Olquistc nao seria algum bispo de outras eomareas,

    de longes usancas, vestido assim de cidadao?

    Mas seo Alquiste pegava no lapis e na eaderne-

    ta, para lancar os assuntos diversos. Do Gorgulho

  • 4oeJoko GUIMi\.RAES ROSA

    ningwhn queria escarnir, mas todos estavam risaos,

    porque ele tiuha quebrada seu encanto, agora chega

    caceteava. Ai ele mesmo de via de ter sentido isso, ou

    notou clue 0 tempo do sol iaavancando, Caso que

    tirou 0 chapeu e bfertou as despedidas: carecia de

    seguir, alcancar de noitinha no seu irmao Zaquias.

    -- "Ver 0 outro espeleu, em sua outra espelun-

    ca ... " - 0 frade pronunciou. E 0 Gorgulho pensou

    que era algum abencoado, e fez 0 em-nome-do-

    padre. Seo Olquiste entiou a mao no .bolso, tirou

    a carteira de dinheiro.- "Olhe, que ele vai nao

    aceitar, com ma-criacao!" - seo Jujuca observou.

    Mas,jeito nenhum: 0 Gorgulho bern recebeu a nota,

    nao-sei-de-quantos mil-rcis, bern a dobrou dobra-

    dinho, bem melhor guardou, no fundo da algibeira.

    "0 d' b' . I ".- eus vos e a oa paga, por esta esportu a ...

    -- disse merce.

    A terrno que, depots de outra reverencia, deles

    se quitou, subindo por urn sernideiro, carninhando

    scm se voltar, firme com 0 alecrim. Aformiga, suomiu-se na ladeira, tapado por uma aresta de rocha

    e urn gravata - panoplia de muitas espadas presas

    pelos punhos, Ainda tornou a aparecer, urn instante,

    escuro como urn gregotim, que muito sol alumiava,

    no patamar da serra, E, de vez, se foi.

    o RECADO DO MORRO e 41

    Trastanto, seo Olquiste se estendeu nos pelegos,

    para sestear, segundo uso. 0 .frade desembolsou 0

    rosario, tecendo uma pouca de reza, ali na borda

    do riacho, cuja agua, alegrinhaem frio, nao espera

    por ninguem.-"Voce sabe 0 que 0 lugar aqui esta

    d ' dro?" I' "P .aconselhan 0, 0 Pe ro (_. e e pos. -' 01S para

    fazer arrependimento dos pecados, p'ra se confes-

    sar. .. Hemr Voce esta reeordado do catecismo? .. "

    Frei Smfracse fazia muito ao gracejar com a gente,

    dava gosto. Rezava como se estivesse debulhando

    milho em paiol, ou rocando mato. Aquele exemplo

    aumentava qualquer Fe. 0 Iva tinha botado as gar-

    rafas de eerveja debaixo da eorrenteza d' agua, para

    refrescarem; entre uma oracao e outra, frei Sinfrao

    bebia urn copo cheio.

    Mas, porclue havia de ter amcacado com aquilo,

    de contricao e conhssao? PeBoi restava perturbado,

    seu pensamento desobedeeia .. Aquela hora, nem

    que quisesse, nao podia dar balanco em pecados

    nenhuns. Frei Sinfrao podia ter comecado pelo Ivo.

    o Iva que nao perdia vaza de adular: fora cortarcapim para calcar por baixo dos pelegos, sempre

    na esperan

  • 4 2 lokoGUIMARAES ROSA

    tau as ordens ... "~.. a Iva respondia. A bern dizer,

    ele nao era rna pessoa. Ia cuidar dos cavalos.

    E Pedro Orosio nao podia parar quieta. 0 es-

    tatuto de seu corpo requeria sernpre movimentos:

    tinha de estar; -trabalhando, au eaminhando, au

    cacando como se divertir. Sea Jujuca tinha pegado

    a binoculo do outro, e vinha ate ao fim do lanco da

    escarpa-- onde razoavel tempo esteve apreciando:

    no covao, urna boiada branca espalhada no pasto.

    Por ali, a gente avistava mais trilhos-de-vaca do que

    veiazinhas nas orclhas de urn coelho. No macio do

    ceu, seria born passar 0 dedo.. -.- "Voce entendeu al-

    guma coisada estoria do Gorgulho, ei Pedro?" ".--A

    pois, entendi nao senhor, seo Jujuca. Maluqueiras ... "

    Claro que era, poetagem. E seo jujuca emprestava

    a Pedro Orosio 0 binocul; para uma espiada. Ele

    havia a linha das serras desigualadas, a toda lonjura,

    as pontas dos morros pondo 0 ceu ferido e baixo.

    Olhou, urn tanto. Depois, esbarrado assim, sem que-

    fazer, sem ser para prosear ou dorrnir, desnorteava.

    Prazivel era se estivesse com companheiros, jogar

    urna mao de truque. 0 riachinho, revirando, todo

    se cuspia, E foi contentamento para Pedro Orosio,

    quando se arrumaram para continuar de seguida.

    E, indo eles pelo caminho, duradamente se

    avistava 0 Morro da Garca, sobressainte. 0 qual

    o RECADO DO MORRO 43

    taram Pedr o Orosio bern sabia dele, de ouvircomen .

    di . b . d . os Esses quc tocavam coma que iziam as ora elf " -' ,

    boiadas do Serrao, vinham do rumo da Pirapora,

    contavam ---~ que, par dias e dias, caceteava enxcr-

    gar aquele Morro: que sempre dava ar de estar nu~

    mesmo lugar, scm se aluir, parecia que a viagelTI nan

    progredia de render, a presenya igual do Morro era

    o que mais cansava. ., I

    E voltou a mente 0 querer se deixar ficar la,

    em seus Gerais, nao havia de faltar onde plantar a

    . terreola: era urn born oressentimento.lllela, uma . , 1

    I .d' leou e se dispersou ele naoMas ogo a I eta ra

    tinha passado par estreitez de dissabor au sofrimen-

    to nenhum , capaz de impor saudades. Assim, era

    como se minguasse terra, para dar sustento aquela

    sementezinha.

    Agora estavam torando para a fazenda do Jove,

    por pernoite. Depois, desde a manha seguinte,

    sempre para 0 norte, la onde agora se fechava urn

    falso-horizonte de nuvens, a sobre. Caminhar era

    itoso Aqui ca atras os outros conversavam eprovel ., " , .

    riam - sea Alquiste e frei Sinfrao cantavam canti-

    m rompante na lingua de outras terras, quegas eo , .

    nao se entendia; seo Jujuca acompanhava-os. E run-

    guem se lembrou nem disse mais do Gorgulho, nem

  • 44 Q ]OAOGulMARAJ!S Ros.,

    da serra que ficou la. Tardeava, quando chegaram no

    Jove, a casa de Irentc dada para uma lagoa. Marre-

    cos voavam pretos para a ceu vermelho: que vao se

    guardar junto com a sol.

    Adiante, hmlve dias e dias, dado resumo.

    A onde queriam chegar, ate Ia chegaram, a co-mitiva en} fins.

    Mas, quando vinham vindo, terminando a torna

    viagem, ja a ceu de todas as partes se enflllua,ava

    cinzento, pOl' conta das muitas queimadas que nas

    encostas Iavravam. 0 sol atarde era uma bola car-mesim, em lisa, nao obumbrante. A barba do Ivo

    igualava, apontando cavanhaque em feio corncco,

    E Pedro Or'osio, espiando no espelhinho, se achava

    meio carecido de cortar 0 cabelo, que pOl' sabre as

    orelhas caracolava.

    Variavam algum trajeto, a rnor evitavam agora os

    espinhacos dos morros, pOl' causa do frio do vento

    -- castigo de ventanias que nessa curva do ano

    roclam da Serra Geral. Mas quase todas as rnesmas,

    que na ida, eram as moradias que procuravam, para

    hospedagem de janta ou alrnoco, au em que ficavam

    de aposento. As quais, sol a sol e val a val, mapeadas

    par modos e caminhos tortos, nas principals tinham

    sido, rol. a do Jove, entre 0 Ribeirao Maquine e 0

    o RECADO DO MORRO ~ 45

    Rio das Pedras -- fazenda com espa,o de casarao

    e sobrefartura; a dona Vininba, aprazivel , ao pe da

    Serra do Boiadeiro -- - ai Pedro Orosio principiou

    namoro com uma rapariga dc muito quilate, pOl'

    seus escolhidos olhos e sua fina alvura; 0 Nb8 Hermes,

    abeira do Correyo da Capivara onde acharamnoticias do mundo, pOl'meio de jornais antigos e seo

    Jujuca feehou compra de cinquenta novilhos curra-

    leiros; a Nnd Selena, na ponta da Serra de Santa Rita

    -- onde teve uma festinha e frei Sinfrao disse duas

    missas, contessou mais de umas duzias de pcssoas:

    a Marciano, na fralda da Serra do Repartimento, seu

    contraforte de mais cabo, mediando da cabeceira do

    Corrego da Onca para a do Corrego do Mcdo la

    o Pedro quase tevc de aceitar malajuizada briga com

    urn campeiro morro-vermelhano; e, assaz, passado 0

    Sao Francisco, 0 Apolinario, na vertente do Formoso

    -- ali ja cram as campos-gerais, dentro do sol.

    Medido, Pedro Orosio guardara razao de orgu-

    lho, de ver 0 alto valor com que seo Alquiste can-

    templara 0 seu pais natalicio: 0 chapadao de chao

    vermelho, desregral, 0 frondoso cerrado escuro

    feito urn mar de arvores, e os brilhos risonhos na

    grava da areia, 0 ceu urn sertao de tao diferente

    azul, que nao se acreditava, 0 ar que suspendia toda

  • 46 0 J 0 A 0 G U 1M!\. R Ii E S R 0 S A

    c1aridade, e OS brejos compridos desenrolados em

    dobras de terreno montanho -- veredas de atoleiro

    terrivel, com de lado e Iado 0 enfile dos buritis, que

    nem plantados drede por maior mao: por entre

    o voar de araras?e papagaios, e no meio do gemer

    das rolas e do assovio limpo e carinhoso dos sofrl's,

    cada palmeira semelhando urn bem-querer, eoroada

    verde que mais verde em todo 0 verde, abrindo as

    palmas numa ligeireza, como sois verdes ou estrelas,

    de repente.

    Ah, quem-sabe, trovejasse, se ehovesse, eomo

    Iembrando longes tempos Pe-Boi talvez tivesse re-

    pensado mesmo sua ideia de parar para sempre por

    la, e fieava. Mas, ele assim, ali, a saudade nao tinha

    presa, que ela e outro nome da agua da distancia

    - se voava embora que nem passaro alvo acenando

    asas por cima de uma lag6a secavel. Eo que de mais

    via era a pobreza de muitos, tanta mingua, tantos

    trabalhos e difieuldades. Ate lhe deu certa vontade

    de nao ver, de sair dali scm tardanca, .Mesmo,senso reconhecia, no que estavam

    praticando os tres donos viajantes. -- "Eu estou

    em ferias, descanso ... " --- frei Sinfrao explicava.

    E carregava pedras --- confessando, doutrinando,

    pondo 0 povo para rezar conjunto, onde estivessem,

    o RHCADO DO MORRO 047

    todas as noites; e terminou uma novena no Marcia-

    no, e ja na Nha Selena come9ava outra. E seo Jujuca

    aprendia tudo de seu interesse -- tirava conversa

    com os sitiantes e vaqueiros, ja tracava projeto de

    arrendar por Iaurn quadradao de pastagens, que aliterra e bezerros formavam mais em conta. E 0 seu

    olquiste estudava 0 que podia, escrevia a monte emseus muitos cadernos, num lugar recolheu a ossada

    inteira limpa de uma anta-sapateira, noutro ganhou

    uma pedra enfeitosa, em Formato de fundido e cores

    de bronze, noutro comprou para si urn como de

    dez metros de sucuri macha.--- "Cada urn e d6ido

    de sua banda!" -- definia 0 Ivo, a respeito. E em

    combinavam no rir, Pedro Orosio e eIe.

    Porque, desde dias, estavam outra vcz compa-

    nhciros, a amizade concertara. Ao que 0 Ivo era

    urn rapaz correto, obsequioso. -- "Mal-entendido

    que se deu, s6... Ma estoria, que urn born gole

    bebido junto desmancha... " Nisso que 0 Ivo peIos

    outros respondia tambem: 0 Jovelino, 0 Veneriano,

    o Martinho, 0 Helio Dias Nemes, 0 [oao Lualino, 0

    Ze Azougue- que, se ainda estavam arredados,

    ressabiando, no rumo nao queriam outra coisa seniio

    se reconciliar. Deixasse, que eIe, Ivo, logo chegassem

    de volta no arraial, arreunia todos, Iestejavam as pa-

  • 4 8 J 0 AoG U 1M A RAE S ROSA

    zes. ~"O Nemes tambem?!"~Pe-Boi perguntou,

    duvidoso, q'Uase naocrendo. -- "Pais ele! Voce vai

    vel'. No sirn pOI' mim, velho! ... " Eesse Ivocra urn

    sujeito de muita opiniao,

  • palet6 ecalca, um camaradamuito comprido, rna-

    grelo, com cara de sandeuv-c- custoso mesmo se

    acertar alguma ideia de donde, que calcanhar-do-

    judas, um sujeito .sambanga assim pudesse ter sido

    produzido. 0 pal'i',t6 era tao grande clue nao se aca-

    bava, abotoados tantos.botoes, mas a calca chegava

    s6, estreitinha, pela meia-canela. Os pes tambem

    marcavam por descomuns no comprimento, calca-

    dos com umas alpercatas floreadas, de sola do sertao.

    Ao que, com tudo isso, prasapio assim, mas ele era

    dos desses vaidosos. Caminhava com defeitos, e, das

    pernas ao pesco90, se alceava em tres curvas, como

    devia de ser uma cobra em pe. Viu um banco vazio,

    e confiou 0 corpo as nadegas. Nao cumprirnentara

    ninguem. Mas todo se ria, fechava nunca a boca.

    -- Eo 0 Catraz! -- 0 menino joaozezim logo

    disse. --Apelido dele e Qualhacoco, Mas, fala nao,

    que ele da 6dio ... Ele cursa aqui. Eo boc6.

    o Catraz tinha vindo berganhar milho por fuba,condizia 0 conteudo do saco, Mas nao mostrava

    nenhuma pressa. Ver tanta gente reunida, para ele

    mudava as felicidades. - "A-ha.ha ... Pessoas de

    criacao ..."- ele disse, espiando os viajantes. ----"0Catraz, conta alguma novidade! Voce viu 0 arioplae?"

    "- A pois, inda ontem, ele torou avoando pra a

    o RFCADO DO MORRO ,,!

    banda de baixo ... Passarao de pescoyo duro ... "Mais

    o menino Joaozezim perguntava: ~-"E a mOya da fo-

    lhinha, CatrazrVocc guardou?"~-; qual era uma es-

    tampa de calendario de parede, a figura de urna moca

    eivilizada, com urn colar de sete voltas, 0 Catraz pelo

    retrato pegara paixao, e tanto pedira, tinham dado

    a ele. -- "Ha-de, ha-de, que esta lao Fremosura! ...

    Ah, 56, a rna de coisa que ela e tabaquista, e ficou

    com aquela pintinha preta de rape, na cara ... Ainda,

    ainda, que eu conseguisse de casar com ela, ah, ah .

    Fiz promessa de nao casar com mulher feiosa "

    o Catraz suspirava com 0 saco. -- "Mal que foramcontar pra 0 meu irrnao Malaquia que eu estava

    tratando casorio ... Meu irrnao Malaquia entonces

    veio me ver, de passar pito. Ele e casmurro, e muito

    apichicado ... Malaquia me apertou, ei , tive de dar

    juramento, de ao menos nao me casar nesses prazos

    de dez anos. A escapula que tive. Me vali com aguas

    "mornas ..._~_ "Este Catraz tern urn dinheirinho. Ele ate

    engorda porco ... " -~ alguem dizendo. Mas Pedro

    Orosio disfarcara e saira a chamar seo Jujuca, 0

    frade, seo Alquiste: estava ali 0 irrnao do Gorgulho,

    e tambem grotesco. Aqueles acorreram. Explicado,

    seo Olquiste cxclamouzao: -~- Ypperst! E 0 Catraz,

  • 52" J 0 .Ii; 0 G II 1 MAR A n S R 0 SA

    falanfao, nao se acanhaya com as altas presen

  • 54 "Loe o GU1M,\RAFSRoSA

    sentado de coc'ras, na beira da grota. Gosta mais de

    sol claque jacare ... Mas eseria pessoa, meu irmao

    . lh "" J " C t ?"" Eh . I Omars ve 0... --. acare, 0 a raz. -- ,pOlS. '--jacare fica de hi na moira, com seu olhao dele?Tiro

    em cabeca de jat~re nao adianta nada ...

    Mas 0 Malaquia conversava eom ele eoisas de

    religiao, tambern. Tinha falado num lugar, no lugar

    muito estranho _. onde tern a tumba do Salomao:

    quase que ninguem nao podia ehegar ate la. Reeanto

    limpo e fundo, entre desbarrancados, tao sumido que

    pareeia a gente estar vendo ali em sonho; e so eom

    umas palmeiras e umas grandes pedras pretas; mas

    o melhor era que la nem urubu nao tinha licenca de

    ir ... -"A bom, agora e que eu estou alembrado, you

    eontar a que foi que meu irmao Malaquia dixe ... "

    Mas, por essa altura, so a menino JoaozeziIn l

    que se chegou mais para perto, era quem 0 ouvia.

    - "Dixe que ia andando par um caminho, rom-

    pendo par espinhaco dessas scrras ... " Porque seo

    Jujuca se entendia com seu Nhoto, assunto dumas

    vacas e novilhas - massa de negocio provavel. Frei

    Sinfrao abrira a breviario e lia suas rezas. 0 Ivo fora

    ate la, no curral, sempre inquietamente. Dona Vi-

    ninha entrava para a casa, decerto dar uma vista no

    apreparo do almoco. Seo Olquiste agora desenhava

    o Rl;CADO no MORRO 5-5

    na caderneta as alpercatas do Catraz, era a que ele

    portava de mais imponente. E Pedro Orosio mesmo

    se esquecia, no meio-lembrar de uma coisa au outra,

    fora do que a Catraz cstivesse dizendo.

    - "... E urn morro, que tinha, gritou, enton-

    ces, com ele, agora nao sabe se foi mesrno p'ra ele

    ouvir, se foi pra alguns dos outros. Eque tinha unsseis ou sete homens, por tudo, caminhando mesmo

    juntos, par. ali, naqueles altos ... Eo morro gritou

    foi que nern satanaz. Recado dele. Meu irmao Ma-

    laquia falou del-rei, de tremer peles, nao querendo

    ser favoroso ... Que sorte de destine quem marca

    e Deus, seus Apostolos, a toque de caixa da morte,

    coisa de festa ... Era a Morte. Com a caveira, de

    noite, feito Historia Sagrada ... Morte a traicao,pelo semelhante. Malaquia dixe. A Virgem! Que e

    que essa estoria de recado pode ser?! Malaquia meu

    irrnao se esconjurou, rccado que ninguern se sabe

    di "se pe lU ...

    De repente, frei Sinfrao ergueu os olhos do

    breviario: - "Voce como e que anda com Deus,rneu filho?"- docemente perguntou---- "Voce sabe

    rezar?""-- Ah, isso, rezo. Rezo p'ra as almas, toda

    noite, e de menha rezo p'ra mim... Pego com Deus.

    A gente semos as criacaozinhas dele, que nem as

    I h "ga m as e os porcos ...

  • 5'6 aJOAO GUIMARi\ES ROSA

    E 0 Catraz botava 0 s~co ao ombro, se dispunha

    a puxar embora, caminho de suaIapa, lapinhaperto

    pegada corn a Lapa do Breu, rumo a rumo corn a

    Vaca-em-Pe, ern partes terrentas de pedreiras e

    rocha nua, num ponto diante do qual outra serra

    vai ingreme, talhada como urn queijo. Disseram-

    lhe clue retardasse urn pouco: aproveitasse cafe e

    almoco. E ele concordou, mas tinha apuro -- desceu

    a escadinha da varanda, e beirou a casa indo para a

    porta da cozinha. Falando, perguntando, 0 menino

    joaozezim 0 acompanhou.

    Assim. Tanto que alm09aram, sua vez os viajantes

    iam tambem partir. Nem viram mais 0 Catraz, nele

    nem pensavam. Ate certa distancia ate ao Pantano,. ,porem, ern compensacao, teriam outro companhei-

    ro, da mesma vaza.

    Esse urn ~- 0 Guegue --- clueoutro nome nao tinha;

    e nem precisava, 0 Guegue era 0 bobo da Fazenda.

    Retaco, grosso, mais para idoso, e papudo --- urn papo

    em tres bolas meando emendas, urn tanto de lado.

    Nao tirava da cabeca urn velho chapeu-de-couro de

    vaqueiro, preso por barboqueixo. Babava sempre urn

    pouco, nos cantos da enorme boca corn urn ou dois

    tocos amarelos de dentes. Uma faquinha, ele nao es-

    tando trabalbando, figurava com a dita na mao. E tinha

    intensas maneiras diversas de resmungar. Mas falava.

    o RECADO DO MORRO 57

    Ah, era urn especialmente, 0 Guegue! --- dona

    Vininha e seu Nhoto contavam, para se rir. Tratava

    dos porcos de ceva, levava a comida dos camaradas na

    roca, e cuidava a contento de todo servicode terreiro,

    prcstava muito zelo. Derradeiro, a Lirina, filha de dona

    Vininha e seu Nhoto, se casara, fora morar no Pantano,

    dali a legua imperfeita. Quando se carecia, mandavam

    Ja 0 Guegue -- com recados, ou doces, quitandas,

    objetos de emprestimo, Principalmente, era ele por-

    tador de bilhetes, da mae ou da filha, rabiscados a lapis

    em quarto de Iolha de pape!. Mais pois, ele apreciava

    tanto aquela viajinba, que, de algum tempo, os bilhetes

    depois de lidos tinham de ser destruidos logo; por-

    que, se nao Ihe confiavam outros, 0 Guegue apanhava

    mesmo urn daqueles, ja bem velhos, e ia levando, 0

    que produzia confusao, A outros lugares, 0 Guegue

    nem sempre sabia ir. Errava caminho sem erro, e sedesnorteava devagar. Levavam-no a qualquer parte, e

    rccomendavam-lhe que marcasse atcncao, entao ele ia

    olhando os entressinados, forcejando por guardar de

    cor: onde tinha aquele burro pastando, mais adiante

    tres montes de bosta de vaca, urn anu-branco chorro-

    chorro-cantando no ramo de cambarba, uma galinha

    ciscando com sua roda de pintinhos. Mas, quando

    retornava, dias depots, se perdia, xingava a mae de

  • :;8'OJOAO GUIMARAHS ROSA

    todo 0 mundo .-- porque, nao achava rnais burrinho

    pastador,nem trampa, nem passaro, nem galinha e

    pintos. 0 Guegue era urn homem serio, raciona1.

    Reconforme, viria junto 0 Guegue, pois passa-

    yam pelo PantilnolEle devia de trazer urn boiao com

    dike de limao em calda,mais urn bilhete para a Nha

    Lirina. E ja estavam arreando os cavalos, quando 0

    Guegue aparecia, rico de seus movimentos setn-cen-

    tro, saindo dos fundos de uma grave manha: tinha

    estado a amarrar, por simpatia, urn barbante na cerca

    da horta, para 0 xuxu crescer depressa; ele estava

    sempre querendo fazer alguma coisa de utilidade .

    A mais, limpara, ja pronta, uma saboneteira, feita

    da concha de urn cagado. A bern dizer, seu trabalho

    nisso fora lange e simples: pegara 0 cagado na rede

    do rego, matara-o a pontadas de faca no entre-casco,

    depois 0 coloeara par cima de urn formigueiro - as

    formiguinhas, devorando, eonsumiram 0 glude,

    fabriearam a saboneteira, a qual ele presenteava ao

    menino [oaozezirn. Era so lavar, no rego -.. 0 Gue-

    gue vivia it sua beira, 0 rego era 0 rio dele.

    Par modo, quem ia por atencao no Guegue?

    Quem, no menino joaozezim? Onde foi assim que

    este ultimo achava de contar ao outro aquilo que ou-

    vira e the soara tao importante por esquipatico , e

    o REC'\OO DO MORRO _~9

    . mais aeeitaria de comentar. N enhumque mnguem . . _ . . ,

    d I Tmbem por ardicao que trvesse , 0dos autos. a. .,

    . .J ~ imnao conferira 0 assunto commemu oaozez

    I.pelo siso desgostariam de se es-

    aque es -- - que" "

    te 0 silendo que vem antes da per-clarecer, consoan. lados J'it estao nao-respondendo.

    gunta: e que, ca ,cc Urn morro, que mandou reeado! Ele

    d. C'; 'traz 0 Qualhacoco ... Esse Catraz, Qua-lsse,O a-, , _

    lhacoco, ql)e mora na lapinha, foi no Salomao, ele

    J' . E tinha sete homens la, com 0 irrnao dele,cnsse. . . ' 1\." ~"

    . h d . tos pelos altos ... Voce aered.'ta!eamln an 0 jun os,. Jo"aozezimprimeiro quis olhar deEo menmo .

    . bai () Guegue' nao podendo, por serpe-elma para arxo ,1

  • 60 J 0 Ii: 0 G U 1 MAR A E S Ro S A

    o menino joaozezim falava desapoderado, comose tivesse aprendido so na memoria 0 ao-eomprido

    da conversa. E queria uma confirmacao de resposta,

    saber do Gucgue. Mas, en'luanto a esperava, nao

    podia deixar de rriexer os labios, continuasse are.

    produzir tudo para si, num sussurro scm SOITI.

    Mas 0 Gucgue nao sabia dar opiniao, apenas repe

    tia, alto, as palavras; c, no intervale, imitava com 0

    cochicho de bcicos. Representando por gestos cada

    verdade que 0 menino dizia: sungava as maos aalturade um homem, ao ouvir do rei; e apontava para 0

    morro, e mostrava sete dedos pelos setc homens,

    e alongava 0 brace pOl' diante, para ser a espada, e

    formava cruz com dois dedos c beijava-a, ao nome de

    Deus; e batia caixa COIn as maos na barriga, e COIn

    uma careta e um esconjuro figurava a aparicao da

    Morte. Tudo, por seus meios, cle recapitulava, e

    pontuava cada estancia com um feio mcio-jjuincho.

    Mas Pedro Orosio , que via e ouvia e nao entendia,

    achava-lho muita graqa.

    -",---- Voce tern medo nao, Gucgue? -- a menino

    Joaozezirn perguntava, ao cabo.

    Entao 0 Gucgue foi apanhar no telheiro do enge

    nho 0 seu bom cacete, um calaboca, que levava preso

    debaixo do braco, mesmo quando earregando a boiao

    o /

  • 62 JOAO GllIMAlt,~l;S ROS,'1.

    trilhas escalavradas, OS caponetes nas dobras, sempre

    o sempre. Mesmo seo Jujuca se queixava: -"Como e

    que um pode conhecer esses espigoes? Eo tudo igual,

    e tudo igual. .. Eo 0 mesmo diHcil que se campear em

    lugares de vargem t ';."

    Frei Sinfrao rezava ou se queixava do mali comodo

    na sela. Seo Olquiste quase nao davamais ar de influen-

    cia: por falta de pratica, ja se via que ele estava cansado

    de viagem; e com soltura de disenteria, pelos bons de-

    comer nas fazendas. 0 jenipapeiro grande, na curva

    do Abelheiro, calvo de toda fofha. Menos afastado,

    trafegou um carro-de-bois. cantando muito bonito,

    grosso- devia de estar com aroda bem apcrtada,

    e 0 eixo seria de madeira de itapicuru. Passou um

    casal de pica-pans, de pervoo, de belas cores. A gente

    agora ouvia 0 pipio seriado ciacodorna. Ulna res vcio

    ate ca - um boi pesado de ossos secos.

    - Bom rapaz, esse Pedro... dizia seo Ju-

    juca.

    - Par uns assim, castuma rezar mais ... -- frei

    Sinfriio respondeu.

    Mas seo Olquiste agora so dava atencao a algum

    passaro. 0 pitangui, escarlate, sangue-de-boi , Mes-

    mo voava um urubu-cacador, de asas preto e prata.

    o mais eram joaos-de-barro. A viuvinha-do-brejo

    o RECAI)O DO MORRO' 6J

    tentava cantar melhor: 0 macho se dirigindo it fe-

    mea, no apelo de reunir, Depois, vendo 0 espiralar

    de gavioes, soltou 0 grito-pio de alarme.

    E 0 Guegue a cacetadas matou uma cobra vene-

    nasa: -"Voce Ioi vir, agora morre!" Ese voltava para

    os outros: -"Eh, cobra anda em toda parte ... "

    - Olha 0 boiaol Olha 0 boiao, Gueeue! ~- (eleC'

    depusera 0 boiao no chao).

    E Pedro Orosio se incomodou: tinham errado 0

    caminho? Por certo, alguma errata dera, havia mais

    de hora-c-meia caminhando, por uma estrada de

    carros-de-bois e por lim de trilha em trilha, e nao

    chegavam it fazendola do genro de donaVininha. Per-

    guntou ao Guegue, 0 Guegue demorou explicacao.

    Que tinha favorccido essas voltas, de extravio, pelo

    agrado de se passear, em tao prezadas condicoes. 0

    que fosse um ter confianca em mandadeiro idiota!

    Onde vinham parar era no rasa da Vargem-do-

    Morro, seu paredao, e 0 Sumidor do Sujo. Ali, re-

    conhecia, aquele plaine pardo, poeirante, lugar de

    malhador de gado selvagem, um ermo sem vivalma,

    nem bananeiras, nem telhado de gente residindo

    perto. Pastos do Modestino. S6 os grupos de gran-

    des pedras, lajes amarelas, espalhadas. Um cocho

  • 64- J 0 k 0 G U 1M" RA ES ROSA

    velho, abandonado, asombra de um pau-d' oleo. E,asombra de uma faveirae de um jacaranda-cabiuna,a lagoinha de agua salgada e turva. Motivo desse

    bebedouro, sempre rodeavam por la numerosas

    manadas, e na e~sea das ar vores havia riseas de

    afio das pontas dos touros. Mas, aquela hora, so se

    enxergava uma vaea, angulosa, mal podendo com

    seus enormes chifres. Desde que cessou 0 pipar

    de dois gavi6es que se !ibravam circunvoantes, no

    silencio daquela solidao podia-se escutar 0 sol. Era

    uma planicie morta, que ia vazia ate longe, na barra

    escura do Capao-do-Gemido. Ca, no reconcavo da

    bocaina, a serra !imitava um quadrante, 0 paredao

    arcade, uma ravina com sombrias bocas de grutas.

    Trepava-se caminho acima, contornado, de desvio,

    segurando no cipo-nepro e no cipo-escada, aprovei-

    tando uma grota scca, muito funda e apertada, eheia

    de calhaus. Quiseram ir acola, para ver, em cerro

    terraplem, um salte-d'agua, barbadinho, surtido da

    pedra fouta e logo desaparecido em ocos, gologolao.

    Mais um cruzeiro em que 0 raio desenhara a quei,

    mado umas figuras bem repartidas, sobreditas como

    milagrosas. Mas disseram a Pedro Orosio que os

    esperasse, ficando vigiando as animais, e 0 Guegue,

    par eonta do boiao de dace.

    o RECADO DO MORRO ~ 6~'

    Ficaram.

    E entao grande foi 0 susto dos dais, quando uma

    voz solene e cavernosa proc!amou de la, falafrio:

    ~~_ Bendito! que evem em nome em dho-

    mem...

    Ai, virarn. Quandao, clande viera a rna VO?', sesoerguia do chao uma cabeyona de gente. Era um

    homem grenhudo, magro de marte, arregalado,

    seus olhos espiando em zanga, requeimava. Deitado

    debaixo duma paineira, espojado em cima do esterco

    velho vaeum, ele estava proposto de nu so tapado

    nas partes, com urn pano de tanga. E assim tornou

    a arriar a cabeca e estirado de semelhante feiyao

    continuou, por nao querer se levantar.

    Bendito, quem envem em nomindome!

    E solevava numa mao uma comprida cruz, de

    varas amarradas a cipo _ ..~~. brandia-a, com autorida-

    de. Era um doido. 0 Guegue nao the tirava de riba

    os olhos, satisfeito, uma coisa de tanto feitio ele

    [amais tinha avistado, Por 11m, se voltou para Pedro

    Or6sio, e perguntou:

    -- to logro?Mas foi 0 proprio sujeito serninu do chao quem

    entrou com a resposta:

    _ to logro? to virtude? Em nome do Pai, doFilho, do Espirito,Santo -- quem esta vos pergun'

  • 66" 101\0 GUIMARAES ROSA

    tando SOU eu, me declarem: voces dois sao criaturas,

    ou sao figurados do Inimigo?! Entao, me sigam no

    sinal sagrado!---- e tracou em testa e boca e peito

    o da Cruz. Pedro Or6sio e 0 Guegue 0 imitaram,I

    com 0 gue de pareceu se abrandar. ---- Se vos sois

    anjos, mandados pelo Divino, para refrigerar minha

    fe no duro da penitencia, dizeis! vos rogo, porgue,

    se forem, entao me levanto do estrume dos grandes

    bichos do campo, limpo minha cara e meus cabelos,

    C vos reecbo ajoelhado, loas e salmos entoamos ...

    Aceitou 0 gue 0 Pedro Or6sio disse: gue era

    apenas urn sitiante conium, com sua lavourinha

    para tras da Serra do Cuba; e gue ali 0 Guegue

    era acostado na dona Vininha, fazenda do B6amor;

    e gue vinham transeuntes, jornalados, service de

    comitiva,

    -- Faz mal nao. Bendito 0 gue vern in nomine

    Domine! ... Todo service pode ser de Deus, meus

    filhos. Se corrijam! Ainda nao completei meus nove

    dias de jejum e reforco, gue vim preeneher aqui

    neste deserto, entre penhas e fragas brabas ... Mas

    estou em acabamento----- depois-d' amanha tenho de

    tornar a sair pregando, pois 0 lim-do-mundo esta

    apressado, nao dou por mais tres meses, se tanto. A

    humanidade ve? Nao vel Nao sabe. Cada um agar-

    o RECADO DO MORRO" 67

    rado com seus muitos pecados ... Mas hei de gritar

    fOgo e chorar sangue, ate converter ao menos uma

    boa partel Vao rezando, vao rezando: vao se conver-

    tendo logo, por si, pra me poupar trabalho ... Mas,

    olhem 0 Arcanjo! Silencio, ajoelhem ai em ponto,,

    rezem urn rosano .. .

    E depos a cruz do lado do eorpo, fechou os olhos,

    as maos no peito, feito gente morta. A gente podia

    admirar e achar Clue as delicias e Clue estavam

    com cle.

    Em seguimento disso, porem, Pedro Or6sio se

    afastou, cacando um lugar melhor, para se sentar.

    Por seguran

  • b

    68 QJO.40 GU1MAR,4ES RosA

    encosta, urn rente grito: urn casal de maitacas saiu

    pelo ar. A gente olhava para 0 ceu, e esses unibus.

    Vez em quando, batia 0 vento -- girava a poeira

    brancada, feito moido de gesso ou mais cinzenta,

    deb se formam vllltos de seres, que a pedra copia: 0

    goro, 0 onho e 0 saponho, 0 osgo e 0 pit6sgo, 0 nha-a,

    o zambezao, 0 quibungo-branco, 0 morcegaz, 0

    regonguz, 0 sobre-lobo, 0 monstro homem.

    o Guegue, pOI' lim, perguntava:-_. Oce e da procissao? Vai dan sal' no Rosario?

    A nhum? Mundo vai se acabar? Oce disse ... Oce

    sabe?

    Silencio, mais silencio! Me deixa, a hora e

    de Deus. Nao embargando, voce e urn pobre filho

    dele, se ve que tern 0 espirito simplorio ... Quer

    ver 0 lim do mundo? Que vern vindo redondando

    ai, rodando feito pe-d 'agua, de temporal e raios: os

    querubins ja estao com as brasas bentas, amontados

    em seus trapes cavalos! Tu, treme ...

    - Ue ... Como e que oce sabe? Oce e padre

    algum?

    - Enche tua boca de bosta, p'ra nao carecer

    de blasfemar! Como que seir Tu tambem vai saber,

    refiro que nao seja tarde: assentado de dentro da

    panela de breu, tu entao sabe ... Arrepende, treme

    o RECAJ)O 00 MORRO 69

    e reza, e te prostra, cara no chao, intieis publicano!

    Olha a trombeta! De profundos, eu escuto: olha a

    morte, atencao:

    . Uai, entao e! Eo que nem 0 Menino ...

    .. _. 0 menino? 0 menino? De uns assim foi dito,

    que entram no Reino-do-Ceu dansadamente ... Que

    menino?

    - A born, no Boamor: foi que 0 Rei isso do

    Menino- com espada na mao, tremia as peles, nao

    queria ser favoroso. Chegou a Morte, com a caveira,

    de noitc, falou assombrando. Falou foi 0 Catraz,

    Qualhacoco: 0 da Lapinha ... Fez sinosaimao ... Mas

    com sete homens, caminhando pelos altos, disse clue

    a sorte quem marca e Deus, seus Doze Apostolos,

    e a Morte batendo jongo de caixa, de noite, na festa,

    feito Historia Sagrada ... Querendo matar a trai-

    9ao ... Catraz, 0 irmao dum Malaquia ... Oce falou:

    a caveira possui algum poder? Eo fim-do-mundo?

    - Eo 0 comeco dele, e 0 corueco v-> alvorada de

    toda a Gloria! Urn arcanjo sabe 0 poder de palavras

    que acaba de sair de tua boca ... Ajoelha, as gra9as,

    ajoelha, ja!

    o Guegue obedecia, se ajoelhava. Mas aqueleestapaiurdio - 0 esturdio homem, pronto nu e

    espichado no sempre do chao, lazarado por seu

  • ..

    proprio querer, ali entre 0 verde e 0 preto do gado

    solteiro do Modestino --- agora mandava que ele

    botasse fora 0 caeete. E 0 Guegue hesitava.

    -- Se e vossa vez, encosta aqui comigo, para um

    resto de jejum e remissao aspra: que de hoje a dia-e-

    rncio podemos pegar este mundo pelas alcas ...

    Ue, eu nao posso. Tcnho de levar recado

    e boiao de dace, nha Dona Vininha mandou ...

    Posso nao.

    - Nao pode, pela salvacao dessa humanidade

    sacana, em vesperas de inferno geral?! Que e de seu

    companheiro?

    - A, ali, atras do joao,- Surso! Surge!

    Mas 0 homern se solevava e virava, via 0 que via

    atras da moita de mentrasto, e iracundo abominou:

    --- "Caifaz! Isso e direito? Eo respeito?! Raca de

    viboras, cambada de pagaos, obrando! Te aparta ,

    maldito! Raca de viboras! ...

    Nenhuma cortesia ou desculpa para ele tinha

    valor: se levantou de todo, sacudiu aquele corpo

    mujo de magro e nuelo, segurou muito a cruz e foi

    desertando, audaz, se caminhando para longe -- ain-

    da prometia que ia para 0 beira-mato, prosseguir em

    seu forte dever de penitenciacao. Ao que bramava e

    o RECADO DO MORRO '])

    escarceava, scm olhar para tras. Com uma gaforina

    de cabelo assim, devia de ter ate piolho,

    o Guegue queria ir tendo algum medo, aeari-nhava seu grande papo. Mas Pedro Orosio veio e lhe

    entregou de novo 0 boiao de dace, sem parlandas.

    Dava 0 vento, outra vez, suspendia maos daquela

    esponjosa poeira, que tem gosto de agua de pote e

    de comida cozinhada. Aquele lugar era muito feio.

    - us, uai, eh ... - 0 Guegue se manifestava.- ... Hornern zuretado! ... Sera que 0 mundo

    acaba?

    Que nada e nao, assegurava Pedro Orosio. Aca-

    bava nunca. E aquele inesperado homem era leso do

    [uizo, no que dizia nao fazia razao, Ca, sc tivesse 0

    mundo de se acabar, outros, de mais poder e estudo,

    era que antes haviam de obter sua noticia, E bern

    veio que, por essa altura, justo 0 pessoal estavam

    retornando.

    Dali sairam , rearrumando rumo, modo de

    conduzir 0 Guegue ao Pantano, de nha Urina e sia

    Duque, seu marido, Constando que era urna bonita

    fazenda branca, entre arvores; la tomaram cafe combiscoitos, e lit deixaram 0 Guegue e 0 boiao.

    Dai, acima carninho, ainda Pedro Orosio se

    lembrou de dar parte ao frade do que no raso do

  • Modestino se passara, e do extraordinario daquele

    homem por nu - 0 Nomindome - ameacador de

    tantas prosopopeias, Embora, ficou calado. Expor

    tudo nao era convinhitvel, ele nao sabia Iacil passar

    a ideia de comd'tinha sido, e eles podiam fazer

    maiores perguntas cansava sua cabeca distribuir

    a pessoas cidadas um caso de tanto comprimento.

    Guardou consigo. S6, ja quase chegavam no Jove,

    de tardinha, cruzou numa porteira com um velho,

    das Lajes, um Torontonho ou Toront6e, que vinha

    ate no joao Salitreiro, comprar fogos para as festas

    do Rosario. Tal velho conhecia 0 N omindome: re-

    portou que ele era doido varrido, mas tinha passado

    bons anos no Seminario de Diamantina. Seu nome

    em Deus, ninguem nao sabia, portanto. S6 era co-

    nhecido por apelativo de [ubileu, ou Santos~6leos.

    - Faz tempo que esse Santos-Oleos, ou Jubileu,

    o que seja, que nao aparece por arrabaldes. Ninguem

    sabe donde ele assiste, nao tem pouso nenhum. Vara

    por este mundo todo: some daqui, vai se apresentar

    jajao em longes beiradas, diz-se que testemunha

    ate nos Fcchos-do-Funil, numa tapera de capela,

    em Oestes, mais la de la da capital do Estado ... De

    uns dez anos que ele sobrevive as feitas carreiras,

    d' acola p'r' alem, enfiando por dia muitos Iugares, e

    o RECADO DO MORRO 73

    pronunciando brados do fim-do-mundo -.~ estreito

    prazo de tres meses ... Bom, desse jeito, assim, nao

    e vantagem: algum dia ele acerta ...

    o veIho Tront6io riu, de si, e se tocou avante,Iambando no cavalo baio a tala do chicote. Ao que

    de era tic-avo de uma mocinha, das Jindas, cha-

    mada Quiteria, ai Ribcirao-da-Onca abaixo. Born

    homem.

    --"Sera que foi, a respeito de quem era cJuevoce

    estava perguntando?"--0 Ivo quis se informar.ja no

    Jove, depois que tinham jantado e faziam redondo

    de conversas no patio da Irente, junto com algum

    pessoal de Ia.

    - "Falando do Rosario, da festa ... " - Pe~Boi

    preferiu atalhar, por preguivas de depor a verdade,

    tao tola.

    __ Ah, pois isso. A festinha, vamos ter e no

    Azevre, domingo de noite, na certa. Sem faIta, voce

    vem ... Alegria da palavra!

    Nissa, outros vinham. Eram, ver e nao ver, 0

    Joao Lualino e 0 Veneriano - e nao despraziam de

    se eneontrar com ele, Pedro Orosio, por contrario

    riam amistosos, e se chegavam. - "Pais, ei, Croni-

    co ... Ei, Pc! Salve essa bizarria ... " Saudavam com

    palmadas de abraco. E 0 Ivo tornava a gerencia da

  • 74 ~ JOAO GUIMARAES ROSA

    conversa, avindador, queria que todos mais compa-

    nheiros estivessem, fora de lembranca de qualquer

    injuria passada. ~.,,- "A mais ea festa, hem, hem?" T" . "I" bi d" d--- a inteira. a com Ina os ... ,--~ respon iam.

    ?o Veneriano era urn preto jeitoso, impapavcl emtoda Iestanca, pelo que melhor dansava -.- nem

    se imagina: mesmo com aqueles pes de inhauma,

    dedoes abertos e enormes, e 0 calcanhar muito

    salientado, cabo de cacarola. 0 Joao Lualino ,

    pardaz, sempre muito luxo no vestir, botava ate

    agua-de-cheiro na cabeca; diziam que era sujeito

    muito mau, e sangrador, faquista. -"A ser, quand'

    e que voces ficam Iorros de pajear essa gente de

    ambulante?" -_. 0 Joao Lualino perguntou. Arre,

    era amanha, estavam no arraial , de volta ~'- 0 Ivo

    cxplicava.v-i- "Eh, Cronh' co ._.. falava 0 Veneriano

    -: Voces foram arranjar urn carcamano mais es-

    tranhavel. Hum, que zanza por ai itgarimpa, mo de

    atestar amostra de pedrinhas e folhas d' arvor-cs ...

    Que e que estara percurando, de verdade?" E 0

    Lualino: -"Alto cidadao Vai ver, e cristaleiro,

    mais salado que os outros Botar preso em cadeia,

    mode se dizer de ser. .. " Por urn meio-pensamen-

    to, Pedro Orosio se comparava: aqueles pareciam

    homens mais seguros de si, com muita capacidade.

    o RECADO DO MORRO ~ 7)'

    Estavam rindo, falando por brincadeira, mas mes-

    mo assim a gentc via que, eles, cada urn queria ser

    sem chefe, sem obriga9ao de respeito, alforrtados

    de qualquer regra. Talvez ele, Pe-Boi, dava apre90

    demais aos patroes, resguardando a ordem, lhe

    faltava calor no sanguc, para debicar e dizer ditos

    maldosos. Outramente, admirava seu tanto a vivice

    do Lualino , mesmo do Iva Cronico. Por mais que

    virasse e vivesse, ele ficava diferente daqueles: era

    sempre 0 homem dos campos-gerais, ser-io festivo

    para se decidir, querendo bern a tudo, vagaroso.

    Agora, tinha estado la, ate nas veredas do Apoli-

    nario, onde papagaio bravo revoando passa, a qual-

    quer parte do dia. Ao que fora, imaginando de ficar,

    e nao tinha ficado. Mesmo no momento, se queria

    par a rumo 0 pensamento, de lembranca de la, nao

    conseguia, sern sensatez, scm paz. Faltava a sauda-

    de, de sope. Toda aquela viajada, uma coisa logo de-

    pois de outra, entupia, entrincheirava; so no fim,

    quando se chega em casa, de volta, e que urn pode li-

    vrar a ideia do emendado de passagens acontecidas.

    Mais valia a boa amizade , companheiragem

    -- 0 Ivo Cronico , 0 [oao Lualino , 0 Veneria-

    no ~- e a festa, por ser, ja clue ocasiao dela: nas

    cafuas, perto de estradas, em casas quase de cada

  • ]6 ~JOA(J GUIMARAES ROSA

    negro se ensaiava, tocando caixas, com grande

    ribombo. Agrado de festar, isso sim, as mocinhas

    mocas, tinha desejos de umas.Ao depois, carecia de

    retomar seu trabalho costumeiro, ir dando preparo

    para 0 plantio das'rocas, reconhecia falta dessa Iida,

    mesmo que nern igual de dormir, tomar cafe, Corner

    e beber. --"Ouve, Pedro: alcm do que foi ajustado,

    voce aeha que eles van gratificar a gente com mais

    um pouco mais? Ah, 0 carcamao de cerro da, Ele e

    frouxo de rnunheca... " 0 Ivo, no Ialar, pegara mao

    no braco dele; 0 Ivo era amigo, supria confianca,

    Pedia para ver a arrna: ~,--- "Oi, Pe, essa sua garru-cha e mcsrno boa, mandadeira?" "--- Regularzim.

    Tiver um dinheiro, compro outra. Revolver, feito

    es " " A d b f." cse seu... - ra, na a, ozoqe ... 0 Ivo tazia

    questao de encarar bem a gente, corn uma firrneza

    de ser sincero, e falava falas de afei9aO. Unico defei-

    to dele era um cismo destruido no jeito de olhar e

    falar, parecendo coisa que estivesse reparando uma

    res vistosa, um boi gordo.- "A bern, Pe, tu disse

    que estava pensando ern querer voltar pra la, pra os

    Gerais altos ... " 0 Ivo, falante assim, a gente tinha

    um gostinho de rebater os conselhos dele: - "A

    ja, Cronhco velho, aquilo era aragem de fantasia

    atoa, 56. Eu fico, mas fico aquirnesmo ... "A mais,

    o RECADO DO MORRO.]]

    outro gosto, de arreliar adiante 0 amigo, que estava

    sernpre volteando e se queixando no mesmo assun-

    to, de que ele Pedro devia de nao querer namorar

    corn as mocas todas, mas escolher uma, ou as duas

    au tres, s6, e deixar a cada um outro a de amor de

    cada um: --- "Voce sabe, Cronhco, 0 remelhor e ir

    narnorando namoriscando, enquanto elas quiserem ,

    Mocidades ... " Entao 0 Ivo arriava a crista, demu-

    dava de conversacao. Ali no Jove tinha luz-eletrica,

    o povo escutava radio, se ia dormir mais tardado. E

    se comia uma ceia boa: de sopa-de-batatinha com

    bastante sal, com folha verde de cebola picada, e

    broa de milho; depois, leite frio no prato fundo, com

    queijo em pedacinhos e farinha-de-munho. Ca fora,

    as estrelas belezavam, e a lua vinha subindo cedo,

    ja bern: dali a uns tres dias, era 0 dado da lua-cheia,

    conforme se sabe.

    De vez, ora assirn foi que, no outro dia, em

    vez de torarem para 0 arraial, ainda inventaram de

    enrolar caminho para asTrairas, por mostrar ao seu

    Alquiste 0 rio das Velhas - seus matos montoados,

    suas belas varzeas, seus passaros vazanteiros. Urn

    aborrecimento. Tino foi 0 do frade, que disse nao

    podia vadiar mais, se separou e desviajou deles. Seo

    Jujuca determinou que, se 0 Ivo quisesse, podia 'ir

  • 780 JOAO GU1MARAIo:S ROSA

    tambem, acompanhar frei Sinfrao, agora 0 movi-

    mento era mais resumido, tao perto. 0 Iva nao quis

    ~--- por esperanc;:ade maior dinheiro, sarnava de ficar

    ate ao fim. Pedro Orosio mesmo, pelo sim pelo

    certo, tratava de z6lar mais agradador e prestativo.

    Mas achava mais grac;:a nenhuma, no seo Olquiste,

    senlpre nas manias de rernexer ever, e perguntar,

    e tomar 0 mundo por desenho e cscr'ito. 0 que, a

    partir dali, esclarecia aos tantos seu coracao, era 0

    palpite da festa. E foi 0 proprio Iva que uma hora

    careceu de ter mao nele: - "Modera essa inlluen-

    cia, Pc, que ainda nao e hoje. Mas vai ser festa pra

    toda a vida... " E Pedro Orosio, pelo que tinha de

    esperar, repensava na Laura, filha do Timberto, do

    Saco-do-Mato; e na Teresinha e na Joana Joaninha,

    do arraial; e em todas. A~prazer~deque nao queria

    deixar de pensar tambem na Maria Melissa, do

    Cuba, por causa do Iva ele sentia uma qualidade

    de remorso; descontente com isso, do Iva mesmo

    era que entao comec;:ava quase a ter raiva. Andava,

    d "M ' , I' P' S I'an ava. ~,,- as voce e gera ista, e ... , ua terra, a,

    . 'b ' b ll "" U I Poi .eu VI, e em que e oa... - rna osga.. DIS val

    p'ra lit,voce ... Pra ver como e que 0 sertao e pai de

    born ... ""~--A bern, falei por falar. Azanga comigo

    nao, Pe..."Ate escarrnentava a paciencia cia gente,

    o RECAllO DO MORRO 79

    aquele lazer do Ivo. Ao que tinha interesse nenhum,

    de cabimento, aqucla andacao, para deletrear ao seo

    Alquiste os recantos do rio das Velhas. Poetagem.

    o trivial estava indo, sem pior; mas 0 que havia eraque a vida toda se retardava.

    Ao em seguimento disso, so na sexta-Ieira de

    tardinha foi que chegaram no arraial, terminada a

    viajacao. Aquela hora mesma, Pedro Orosio e olvo

    tocaram suas pagas e agrados 0 gratisdado, em

    boas ccdulas. "Gastar atoa, nao gasto. Ebaixo! Nemfroi "P I "A'entro em rOJoca ... -- ec I'O se constou. - m~

    da, olha, amanha de noite e a festa, oe? Melhor a

    gente ir junto, em az. Viro, venho te buscar ... " 0

    I di A "U . "A' P I 0"vo ISpOS. ----- ai, ara... 1, ec ro rosie passou

    para a casa de seo Tolendal, que tinha venda. A de

    satisfez 0 resto de umas dividas, 0 restante Ihe pediu

    que guardasse. Cobre seu, nao-ve, era para bern-

    baratar no justo e certo. E seo Tolendal homem

    entendido em confianca e inteligencia mandou

    arrumar uma cama para 0 Pedro repousar aquela

    noite. Dormiu em born colchao com lencol e colcha,

    em cima do balcao.

    E Iaz e acontece que, sabado, de manha, cedinho

    ate demais, 0 povo todo morador naquela rua prin-

    cipal teve de se acordar debaixo duma continuacao

  • 80 JOAO GU1MARAES ROSA

    de gritos grados, que nao achavam suspensao. Pedro

    Orosio se levantou, abriu em fresta a porta da venda.

    Que viu? Era 0 homem doido - aquele Nomine-

    domino! Em bern que ele accra estava vestido deb '

    algum jeito. E tinKa enrolado uma ruma de panos

    em cada pe, em guisa de servir de calcado: aquilo

    parecia 0 sujeito pisando poeira enliado em dois

    travesscirocs, frouxoso. Estafermo mesmo assim ,arava 0 passo, pernas tantas, ate cada lim da rua, e

    retornava, estroso, ardente, cachorro cacado, sete

    fOlegos. Abria peito: -- ".,.1': a Voz e Verbo ...I': a Voz e 0 Verbo ... Arreunam, todos, e me escu-tern, que Iim-do-mundo esta pendurando! Siso,que minha predica e curta, tenho que muito ir e

    converter ... "

    Da casa-de-venda do Hor, do outra lado da

    esquina, urn moco cometa se chegava it janela et ",r 1\ I C . , ,pergun ava:- voce e nsto,mesmo,ouesoJoao

    Batista? .. "

    E 0 vira-rnundo malucal, que ja ia se afastado, se

    revirau, rente, por sobre 0 deseompasso de suas altas

    pernas, que nem umas andas, e levantou os braces,

    bern escancarados - feito precisasse de escorar a

    queda do ceu. E deu exclama:

    - Bendito 0 que vern in nomine Domine! ...

    o RECADO DO MORRO 8!

    Se via que ele estava no ultimo ponto de escar-

    nado, escaveirado, 0 sol queimara aquela cara, de

    descascar pe1e. Mas perdera a gaforina devia

    de tel' pedido a alguem para the rapar a cabeca. E

    os olhos frechavam, resumo de brasas. Dava pena.

    De segura, teria terminado 0 traquejo de jejum e

    rezas no malhador de gada do raso do Modestim, e

    nem esperara por mais nada, para executar 0 danado

    avanco, de deu em deu, em nome de Deus. So podia

    ser clue tivesse navegado a madrugada inteira, para

    vir chegar agora a esta hora. Em algum sitio podia

    ser que tivessem dado a ele urn cafe?

    _ ... Sua pergunta e do rago da Fe, e nao da

    carne, nao, moco, 0 senhor e homem gentil, tern ga~

    lardaol Tem galardao ... Mas eu sou 0 zerinho zero,

    malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem

    sou aVoz... Vinde, povo: senvergonhas, pecadores,

    homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim pOl'

    vosso service, Deus enviou pOl' mim, ele requer

    o vosso remimento, Dele tenho 0 praz~me. Olha 0

    aviso: evem 0 lim do mundo, em fOgo, fOgo e fogo!

    o mundo ja comecou a se aeabar, e vos semprandona safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma!

    Olha 0 enquanto-e-ternpo ... Vamos, vamos: p'r' a

    igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papa!

    Aquidel ~presidente!

  • Desabalou de vez, olho da rua a longe, quase cor-

    rendo, feito pulando rego, tinha de alargar tambem

    as pernas - aqueIes rolos de pano nos pes dele foi-

    cavam por~ao de poeira, Por urn vago, a gente estre-

    mecia, salteado delaflecho comandante daquela voz,

    que instava calafrios: quase que se ia acreditando. As

    mulheres se benziam. Ai ja havia pessoas em pra~a

    - .. - pois era vespera de festa, 0 arraial se apostava

    com limpezas e arcos embandcirinhados, estando

    cheio de Iorasteiros; por maior, pretos. Outros, que

    acordaram com a latomia do Nominedomine em seu

    ir e desvir, durado em mais de quarto-de-hora, ja

    tinham vestido roupa, e saiam como publico. Que

    era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? 0

    doido, direto para a igreja do Rosario, era capaz de

    obrar muitos desatinos. Devia-sc de ir para lao Pedro

    Orosio tambem ja estava pronto, lora de portas.

    AqueIe dia-de-sabado principiava bern.

    E de repente 0 sino do Rosario se tangeu _. col

    a col, cantaro!' Ah, quem batia, sabia: tantoava em

    repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas,

    foi logo a forte, dez maos peIo badalo, pegou a be-

    delengar a torto, dla e dlem, parecia querer romper

    de vez a forma de seu caroco dele. Virgem! -- 0

    Norninedomine tinha alcancado de chegar atorre,

    O RECADO DO MORRO 83

    a igreja estava entregue aos mascaras, carecia de 0

    pessoal todo do arraial correr para lao 0 homem

    dava rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal.

    Depois, perdia quajquer estilo. Era so aquela furia:

    dladlava, dlandoava, 0 sino tambem