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O LÉXICO ROMÂNICO HERANÇA LATINA NAS LÍNGUAS OCIDENTAIS Bruno Fregni Bassetto (USP e ABF) Léxico é o conjunto de todas as palavras pertencentes de alguma forma a um idioma, passíveis de serem empregadas em seus vários níveis lingüísticos. O léxico constitui um inventário aberto, em parte mutável por representar a Weltanschauung, a visão do mundo e a cultura do povo que o usa. Essa mutabilidade, porém, observa-se mais nas palavras ditas de significação externa, como substantivos, adjetivos e verbos, que nas de significação interna, tais como advérbios, preposições e conjunções, cujo inventário é geralmente fechado. As mudanças léxicas acompanham as alterações sociais, econômicas, políticas e culturais da comunidade, conforme atestam os resultados da aplicação dos métodos da Geografia Lingüística, Wörter und Sachen, Onomasiologia e mesmo o Histórico-Comparativo. Modificações sociais mais rápidas aceleram também as do léxico, conforme se verificou no século XX e no nosso com a rápida evolução tecnológica e seus numerosos neologismos. Contudo, uma parte considerável do tesouro vocabular de uma língua resiste às mudanças quase tanto como sua gramática, conforme se verifica nas línguas românicas em relação a seu léxico fundamental, herdado do latim. Um estudo mais aprofundado do léxico deve ter, como ponto de partida, o conhecimento da etimologia ou mesmo da biografia da palavra, segundo recomendava Kurt Baldinger. Desse modo, será possível conhecer sua origem, suas modificações semânticas por ampliação ou restrição, além das relações entre linguagem e cultura. Importa ainda relacionar a história interna com a externa, ter presente a importância do substrato, do superstrato e do adstrato, pois é no léxico que a influência desses diversos estratos é mais atuante e sensível. Esse inter-relacionamento explica os diferentes empréstimos às línguas românicas, como as palavras eslavas, albanesas, turcas e húngaras no romeno, não encontradas, v. g., nas línguas da Ibéria, da mesma forma que não se usam, no romeno, os empréstimos francos ao francês. Levadas para regiões diferentes, as línguas, românicas ou de outros troncos, sofrem a inevitável influência do meio; nesse sentido, basta considerar os milhares de empréstimos tupis ao português do Brasil, em grande parte desconhecidos em Portugal e em outras regiões de fala portuguesa. Por outro lado, dentro do próprio léxico latino das línguas românicas é conveniente distinguir os vocábulos comumente denominados herdados, semi-eruditos e eruditos. Os herdados são aqueles que provieram diretamente do latim através da fala corrente dos usuários, apresentando as mutações fonéticas e semânticas características de cada língua; esses constituem o vocabulário básico inicial. Os semi-eruditos são introduzidos na língua por via culta; ao entrarem, porém, no uso corrente, sofrem mudanças segundo os padrões e as tendências características da língua, que podem afetar tanto sua forma como seu conteúdo semântico. Os eruditos são os transportados do latim para a língua românica sem qualquer adaptação fonética e com conteúdo significativo igual ou muito semelhante ao latino. Exemplificando: lat. macula > port. mancha, através dos metaplasmos > macla (síncope da pós-tônica) > mãcla ou mancla (prolação, característica do português, que consiste na nasalação da vogal seguinte pela nasal

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O LÉXICO ROMÂNICO

HERANÇA LATINA NAS LÍNGUAS OCIDENTAIS

Bruno Fregni Bassetto (USP e ABF)

Léxico é o conjunto de todas as palavras pertencentes de alguma forma a um idioma,

passíveis de serem empregadas em seus vários níveis lingüísticos. O léxico constitui um

inventário aberto, em parte mutável por representar a Weltanschauung, a visão do

mundo e a cultura do povo que o usa. Essa mutabilidade, porém, observa-se mais nas

palavras ditas de significação externa, como substantivos, adjetivos e verbos, que nas de

significação interna, tais como advérbios, preposições e conjunções, cujo inventário é

geralmente fechado. As mudanças léxicas acompanham as alterações sociais,

econômicas, políticas e culturais da comunidade, conforme atestam os resultados da

aplicação dos métodos da Geografia Lingüística, Wörter und Sachen, Onomasiologia e

mesmo o Histórico-Comparativo. Modificações sociais mais rápidas aceleram também

as do léxico, conforme se verificou no século XX e no nosso com a rápida evolução

tecnológica e seus numerosos neologismos. Contudo, uma parte considerável do tesouro

vocabular de uma língua resiste às mudanças quase tanto como sua gramática, conforme

se verifica nas línguas românicas em relação a seu léxico fundamental, herdado do

latim.

Um estudo mais aprofundado do léxico deve ter, como ponto de partida, o

conhecimento da etimologia ou mesmo da biografia da palavra, segundo recomendava

Kurt Baldinger. Desse modo, será possível conhecer sua origem, suas modificações

semânticas por ampliação ou restrição, além das relações entre linguagem e cultura.

Importa ainda relacionar a história interna com a externa, ter presente a importância do

substrato, do superstrato e do adstrato, pois é no léxico que a influência desses diversos

estratos é mais atuante e sensível. Esse inter-relacionamento explica os diferentes

empréstimos às línguas românicas, como as palavras eslavas, albanesas, turcas e

húngaras no romeno, não encontradas, v. g., nas línguas da Ibéria, da mesma forma que

não se usam, no romeno, os empréstimos francos ao francês. Levadas para regiões

diferentes, as línguas, românicas ou de outros troncos, sofrem a inevitável influência do

meio; nesse sentido, basta considerar os milhares de empréstimos tupis ao português do

Brasil, em grande parte desconhecidos em Portugal e em outras regiões de fala

portuguesa.

Por outro lado, dentro do próprio léxico latino das línguas românicas é conveniente

distinguir os vocábulos comumente denominados herdados, semi-eruditos e eruditos.

Os herdados são aqueles que provieram diretamente do latim através da fala corrente

dos usuários, apresentando as mutações fonéticas e semânticas características de cada

língua; esses constituem o vocabulário básico inicial. Os semi-eruditos são introduzidos

na língua por via culta; ao entrarem, porém, no uso corrente, sofrem mudanças segundo

os padrões e as tendências características da língua, que podem afetar tanto sua forma

como seu conteúdo semântico. Os eruditos são os transportados do latim para a língua

românica sem qualquer adaptação fonética e com conteúdo significativo igual ou muito

semelhante ao latino. Exemplificando: lat. macula > port. mancha, através dos

metaplasmos > macla (síncope da pós-tônica) > mãcla ou mancla (prolação,

característica do português, que consiste na nasalação da vogal seguinte pela nasal

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anterior) > mancha (palatalização do grupo /-cl-/ não intervocálico > /-ch-/);

semanticamente, mancha é equivalente a macula do latim. Da forma macla, sem

prolação (/-cl-/ intervocálico > /-lh-/), do fr. maille ou do prov. malha, proveio malha,

com vários significados relacionados com o primitivo latino, como em “cavalo

malhado”, isto é, “manchado”. Essas duas formas são herdadas. No séc. XV, o uso

popular da forma latina macula resultou em mágoa, por metaplasmos diferentes em

relação às duas herdadas (mancha e malha) devido à época diversa: macula > magula

(sonorização da surda intervocálica /-c-/ > /-g-/) > magua > mágoa (síncope do /-l-/

intervocálico); semanticamente, mágoa entende-se como uma espécie de “mancha” no

espírito de quem sofreu agravo ou decepção. Essa forma é considerada semi-erudita. Por

fim, com o Renascimento, introduziu-se a forma erudita macula, sem qualquer

modificação fonética; apenas o uso restringiu seu significado a “mancha moral”,

enquanto “mancha” apresenta um significado mais amplo. Nesse contexto, percebe-se

claramente a presença constante do denominado “adstrato permanente” do latim,

primeiramente clássico e depois eclesiástico e medieval, como fonte de empréstimos

léxicos às línguas românicas e também não românicas, até nossos dias. Por isso convém

examinar, ainda que resumidamente, esses aspectos.

1. Consideram-se herdadas, portanto, as palavras transmitidas às línguas românicas

diretamente do latim vulgar pelo falar do povo. Incluem-se nesse rol também as

palavras não latinas (pré-românicas, gregas, germânicas, eslavas, ibéricas etc.) que o

latim vulgar havia assimilado, v. g., gr. pevtra > lat. petra (que substituiu totalmente lat.

lapis), base de todos os correspondentes românicos. Estatisticamente, segundo

levantamento de A. Graur, em que foram consideradas apenas as formas simples, não

sendo computadas as derivadas e as compostas, dos 6700 vocábulos latinos do REW

(Romanisches Etymologisches Wörterbuch), cerca de 1300 são panromânicos (20%),

3900 foram herdados por algumas línguas românicas (60%) e 1500 (20%) por apenas

uma. A mesma obra registra ainda 1621 empréstimos no latim vulgar de línguas

estrangeiras, dos quais 25 são ibéricos, 70 bascas, 780 gregas, 746 de várias origens:

celtas, lígures ou simplesmente “pré-românicas” quando a origem é incerta. Esse

inventário, Manual, vol. II, p. 101), o autor não incluiu os empréstimos ilíricos e trácios,

encontrados no romeno e no dalmático, e que não é clara a cronologia dos empréstimos

gregos, desde os tempos da Magna Grécia. De qualquer forma, os dados mostram a

permeabilidade do latim vulgar a empréstimos. Cumpre lembrar que o léxico do latim

vulgar nunca será totalmente recuperado, uma vez que se trata de uma língua

eminentemente falada, cujas fontes são incompletas e incoerentes. Por isso, os dados

sobre o vocabulário herdado românico são relativos e aproximados.

Entretanto, é latino o fundo específico do léxico românico, abrangendo particularmente

as palavras que indicam ações comuns e necessárias, objetos de uso constante, partes do

corpo, moradia e seus componentes, parentesco, entre outros, embora não haja

coincidência formal e semântica senão bastante relativa. São também de origem latina

os adjetivos mais comuns, os numerais, o sistema pronominal, a conjugação verbal, os

principais advérbios, as preposições e as conjunções. Em relação ao latim literário,

porém, como observou Therodoro Henrique Maurer (Gramática do Latim Vulgar, p.

232), muitas palavras correntes no latim literário eram desconhecidas ao vulgar,

enquanto outras persistiram na língua falada, como arcaísmos, não se encontrando mais

na língua escrita.. Desse modo, explicar-se-iam as palavras isoladas em algumas

variedades românicas. Por outro lado, o adstrato permanente do latim eclesiástico e

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medieval, continuador do latim literário, subministrou os empréstimos posteriores,

muitas vezes com significado diverso do herdado correspondente.

2. Termos eruditos ou de caráter poético eram certamente desconhecidos no latim

vulgar, como aequor, audere, cruor, crus, entre muitos outros. Apesar de seu conteúdo

semântico concreto, desapareceram da língua popular ou nunca lhe pertenceram.

Faltaram-lhe também termos abstratos, culturais e os de caráter genérico, fato

comprovado pelas formas eruditas e foneticamente fora dos padrões evolutivos normais

naqueles poucos encontrados, denunciando introdução posterior, sem dúvida de cima

para baixo, isto é, da forma culta para a popular.

Parte do léxico foi sendo substituída com o tempo, da qual restaram apenas vestígios

nas diversas regiões da România. Freqüentemente, porém, os correspondentes

românicos assumiram outra acepção, seja por polissemia ou metáfora, seja por analogia.

Contudo, tais alterações mantêm sempre alguma relação semântica com a base latina,

embora nem sempre visível de modo imediato. Considerem-se, por exemplo, lat. raptus,

“arrebatado” ou “rapto” e cast. rato, “instante”, cujo ponto de convergência é

certamente a idéia de “rapidez”; ou innocuus, “inofensivo”, e log. innokidu, “tolo”, em

que a inoperância ou o alheamento aparente ou real do que é inofensivo rupes,

“rochedo”, e mác. –rom. arup, “abismo”, em que o elemento rochoso geralmente se faz

presente. Em todo caso, o meio ambiente e a cultura são elementos que influem nas

alterações semânticas, uma vez que a língua em geral e o léxico em particular são

reflexos da cultura.

3. Por outro lado, o latim vulgar utilizava palavras desconhecidas ou raras no literário.

Levando-se em conta o fato de o latim vulgar ter sido uma variante eminentemente

falada, sem dúvida muitas se perderam, sem deixar traços nas línguas românicas. Há

casos de ampliação ou de restrição semântica, de substituição total ou parcial, inclusive

por locução, como em bassus por humilis, bellus por pulcher, bilancia (ocid.) por libra,

bucca (gura e rostrum) por os, bucina por tuba, caballus por equus, capsa por arca, por

onerare, casa por domus, causa (ocid.) por res, comparare por emere, corrigia por

lorum, coxa por fêmur, (de)gannare por deludere, ficatum por iecur, filare por nere,

“fiar”, “tecer”, grandis por magnus, grossus por crassus, gula por fauces, hiberno

tempore por hiems, longo (multo) tempore por diu, infirmus por aeger ou aegrotus,

manducare (e comedere) por edere, pisinnus por parvus, plorare por flere portare por

ferre, praestare por commodare, prima vera por ver, siccus por aridus, spissus por

densus, taliare por caedere, testa por caput, toccare por tangere, tostare por torrere,

vadere por ire, venter por alvus e muitos outros. Nota-se sempre o caráter concreto do

vocabulário vulgar, como também a busca de maior audibilidade, fator importante na

comunicação oral.

4. Com elementos do sistema latino, o latim vulgar criou e usou uma série de palavras

não encontradas nos textos literários nem nas fontes indiretas do latim falado, mas que

constituem o ponto de partida das correspondentes românicas. São as formas

reconstituídas, ainda não documentadas por fonte escrita e por isso indicadas por

asterisco, como no Romanisches Etymologisches Wörterbuch de Meyer-Lübke. Nessa

obra básica para a Filologia Românica foi feito levantamento para comprovar a

criatividade do latim vulgar e sua importância para o conhecimento do léxico românico.

Não foram elencadas as palavras que se arcaizaram, as que designam algo regional

específico, técnico ou rural e as provenientes de empréstimos de qualquer origem. Foi

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dada preferência a termos comuns e usuais nas línguas românicas. Esse levantamento

restringiu-se a cerca de 120 palavras, das quais seguem apenas alguns exemplos:

abbiberare, “abeberar”, (lit. aculeus), “aguilhão”, alapa, “aba”; alleviare, “aliviar”;

alluminare, “alumiar”; altiare, “alçar”; amicitas, “amizade”; apparescere, “aparecer”,

burrula, “borda”; caesellum, “cinzel”; cepulla, “cebola”; costatum, “costado”; crassia,

“graxa”; excappare, “escapar”; excarnare, “escarnar”; exmagare, “esmagar”;

extravagare, “estragar”; fallia, “falha”; figicare, “ficar” e “fincar”; fortia, “força”;

fortiare, “forçar”; imbuccare, “embocar”; ingannare, “enganar”; insignare, “ensinar”;

lusciniolus, “rouxinol” (< prov. rosinhol); maneana, “manhã”; mantaica, “manteiga”;

mordacia, “mordaça”; muscus, “musgo”; natica, “nádega”; novius, “noivo”; palumbus,

“pombo”; parescere, “parecer”; pariare, “pairar”; passare, “passar”; pettia, “peça”;

piliare, “pilhar”; pottus, “pote” (< prov. pot); pugnale, ”punhal”; putatoria, “remolere,

“remoer”, remolinare, “remoinhar”; remussicare, “resmungar”; ruptiare, “roçar”;

sappus, “sapo”; sessicare, “socegar”; sucidus. “sujo”; superculus, “sobejo”; tardivus,

“tardio”; tegella, “tigela”; tirare, “tirar”; to(n)sare, “tosar”; traginare, “treinar”;

tribulare, “trilhar”; truncus, “tronco”; truppicare, “tropicar”; tuscus, “tosco”; usare,

“usar”; vagativus, “vadio” (só port.); veranum (tempus), “verão; voltare, “voltar”, além

de outros comentados mais abaixo.

Um exame desses exemplos do léxico do latim vulgar confirma as características do

latim falado. O caráter mais simples do latim vulgar se manifesta na redução das

declinações, pois nesse pequeno corpus é total a ausência de palavras da 4ª e da 5ª

declinações. Mesmo a rica e importante 3ª está pouco representada: amicitas

(amicitatem > port. amizade, cast. ant. amizad, mod. amistad, cat. e prov. amistad, fr.

amitié, eng. mustet, it. amistà) e acúleo, cujo sufixo bem popular, mais visível no

acusativo, geralmente tem caráter depreciativo. Os verbos depoentes da norma literária

são substituídos por formas regulares: uti por usare, imitari por (de)imitare, scrutor por

scrutiniare; da 4ª conjugação há apenas florire (florere, 2ª conj. clássica), panromânico,

menos port. e cast. que têm o incoativo florescer. Aliás, a forma incoativa, característica

de boa parte dos verbos da 2ª conjugação românica, está também em parescere e

apparescere É notável que a grande maioria dos verbos pertence à 1ª conjugação, a

mais simples e regular, característica dos verbos românicos. Da 2ª há apenas remolere,

de conteúdo bem popular.

O analitismo do latim vulgar no vocabulário é patente em veranum (tempus), “verão”,

originariamente um adjetivo. Um rápido exame do conteúdo significativo dos termos

selecionados mostra seu caráter eminentemente concreto, designando ações do

cotidiano, objetos de uso comum, elementos da fauna e da flora, emoções; nada de

abstrações. A expressividade se manifesta nos diminutivos, nem sempre com

correspondentes literários: aviolus por avus, caesellum por caelum, cepulla por caepa

(cepa), molinum por mola, natica por nates (gen. natium), supercullus, tegella.

Numerosas são também as geminações expressivas, freqüentemente sem fundamentação

etimológica: excappare, ingannare, muccus, pettia, puttus, pullitus, sappus,

subgluttiare, truppicare. A verificação desses fatos característicos ajuda a entender a

natureza do léxico românico.

6. As fontes do latim vulgar, sobretudo as inscrições, constituem importante ponto de

referência para o conhecimento do léxico românico, sobretudo em relação às mutações

do latim vulgar mais antigo. Sendo datáveis e localizáveis com relativa segurança,

fornecem dados dificilmente encontráveis em outras fontes escritas. Nessa perspectiva,

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Meyer-Lübke, W. von Wartburg, G. Rohlfs, Väänänen, entre tantos outros, apresentam

valiosos subsídios. Dada a grande extensão do léxico românico, vejamos apenas dois

exemplos bem esclarecedores da criatividade românica: o campo semântico de

esquecer. O latim literário tinha o depoente obliviscor, oblitus sum, oblivisci, cujo

correspondente vulgar não depoente obliscere está documentado no papiro 304 do CPL

(Cavenaile) e substituído no latim tardio por oblitare, que os gramáticos latinos

considerariam um verbo freqüentativo. Derivado do particípio oblitus como tantos

outros (como ausare, jactare, junctare, pictare, tutare, unctare, usare) foi

previsivelmente incorporado à primeira conjugação, mais homogênea e de uso mais

fácil. De oblitare > cast. olvidar, cat. oblidar, prov. oblidà (< ant. oblidar, além de

emblidar e omblidarn <* inoblitare), fr. oublier, rét. emblidar (< *inoblitare), rom.

uita. Na Península Ibérica, excadescere, “cair das mãos”, usado metaforicamente como

“cair para fora da mente”, deu port. e gal. esquecer, ast. escaecer, cast. ant. escaecer,

log.. scarésciri (< cast. escaecer, além de olvidare e orvidare no log. literário). Partindo

de mens e cor, a Itália cunhou o neologismo bem popular *exmenticare, com as

variantes *dementicare e *deexmenticare, e *excordare; no norte italiano e na Toscana

há desmentegá > it. lit. dimenticare, > nuor. ismentigare, cors. smenstigá e sminticá; no

centro e no sul a forma dominante é scordare. Note-se ainda a forma desmembrar <

*deexmemorare, corrente em algumas regiões do sul da França. Em todas essas formas

percebe-se o ponto de partida concreto para expressar algo em si abstrato.

Embora de uso muito freqüente, as formas do verbo ire eram curtas demais, com

escassa perceptibilidade dentro do fluxo frasal; além disso, no latim vulgar encontram-

se homonímias, como eo < ego, “eu”, e eo “eu vou”, it, “ele vai” e id, “isto”, além de

numerosas flexões nominais e verbais passíveis de sugerirem homonímia. Mesmo assim

logrou manter algumas de suas formas com o auxílio de vadere, “ir”, “caminhar”; desde

os séc. IV e V, os textos latinos apresentam as seguintes formas para o presente do

indicativo: vado, vadis, vadit, imus, itis, vadunt (port. vou, vais, vai, imos ou vamos,

ides, vão). Note-se que na Vulgata não se encontram is, it nem o imperativo i,

substituído por vade (181 ocorrências), mas o plural ite é usado 68 vezes, fato que

confirma a fuga da homonímia. Da mesma forma, nenhuma forma monossilábica se

encontra na Peregrinatio. As formas resultantes das combinações desses dois verbos

permanecem nas línguas da Ibéria, no rético dolomítico (central) e nos falares italianos

das Marcas até a Sicília (vai, vai, va, imu, iti, vanu). Nas outras regiões, o quadro

românico dos substitutos de ire é complexo. Pode-se supor que, ao lado de ambulare,

“passear”, “caminhar”, usa-se também annare, “passar o ano”, figuradamente com o

sentido de ire. Partindo-se de annare, chega-se regularmente ao cat. e prov. anar. De

ambitare, “rodear”, “ir”, de ambitus, “circunferência”, “circuito”, já no lat. vulg.

admite-se *andare (ambitare > ambidare > ambdare > andare), donde port., cast.

andar, log. e it. andare. Pelo cruzamento com ambulare teriam surgido *amnare ou

*ambnare e *allare, bases do mac. –rom. îmnare, megl. –rom. amnari e fr. aller. De

ambulare, com poucas modificações, provieram fr. ambler, istr. amble, rom. umbla. O

romeno adaptou semanticamente também mergere, “mergulhar”, “submergir”, > merge,

“ir”; da mesma forma, ducere, “conduzir”, > duce, em expressões como eu ma( ,

“vou embora”. Em português, mandar-se é usado nesse sentido. Esse campo semântico

mostra como as ampliações e as restrições semânticas se fazem com muita facilidade. A

partir de um sema comum, no caso o de “movimento”, “deslocamento”, a língua passa a

utilizar as palavras para expressar idéias aparentemente não relacionadas; um exame

atento descobre o caminho seguido. Outro exemplo interessante de que o léxico é um

registro das atividades humanas encontra-se nas expressões românicas para “chegar”.

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Em latim, essa idéia era expressa por advenire, que figuradamente significava também

“suceder”, “acontecer”, passando da idéia concreta de espaço para a abstrata de tempo,

como em Periculum advenit e Dies advenit. Isso facilitou o aparecimento de várias

expressões, dentre as quais se destaca plicare, “dobrar”. Usava-se em linguagem náutica

na expressão plicare vela, “dobrar as velas (do navio)” à aproximação da chegada ao

porto, com que se obtinha que o navio atracasse mais lentamente. Por braquissemia,

dizia-se apenas plicare, logo com o significado de “chegar” (plicare > plegar > port.

chegar, cast. llegar, com a sonorização da surda intervocálica e a palatalização para a

chiante em português e para a lateral no castelhano). Já na Peregrinatio Aetheriae,

plicare significa “chegar” sem ligações com a linguagem náutica: “cum iam prope

plicarent civitati” (10,9); “ut plecaremus nos ad montem” (38,11). Fora da Península

Ibérica, plicare passou a significar “chegar” numa região da Sicília, “chicari” e ao sul

da Calábria, chiicari. Na Dácia, plicare era empregado na expressão plicare tentoria,

“dobrar as tendas” e plicare sarcinam, “dobrar a mochila”, na linguagem militar, com

que se indicava a hora de “partir”, ao se desmontar o acampamento; daí, plicare > rom.

pleca passou a significar “partir”, ao contrário do que se deu na Ibéria. Note-se ainda

que o romeno é a única língua românica que conserva o termo sarcina(, ”mochila”.

Contudo, o romeno conserva também pleca no sentido etimológico de “dobrar”,

“inclinar”, “curvar”. No latim literário, ocorrem expressões com o composto applicare

ou applicari com significado próximo a plicare, “chegar”, como em applicare se ad

flammam, “achegar-se ao fogo”, em Cícero, e naves terrae (e ad terram) applicare,

“chegar os navios à terra”, se ad arborem applicare, “encostar-se a uma árvore”, em

César e Tito Lívio. De applicare provém sic. e cal. agghiicari, também “chegar”. Outro

substituto de advenire é adripare, (< ad + rip(a) + are), “aproximar da margem”, de

possível procedência das populações litorâneas; por sua evolução fonética pode-se

concluir que surgiu na Gália e difundiu-se em outras regiões: fr. arriver, prov. arribar,

cat. arribar, (> sard. arribare), it. arrivare, ingl. arrive. No português, arribar, “chegar

à riba”, “aportar”, já é documentado no séc. XIV. No italiano, encontra-se ainda

giungere, mais como um preciosismo absolutamente não popular; em certas regiões da

Sicília, porém, é corrente juntari (< junctare) no sentido de “chegar”.

5. Entretanto, apenas a base latina não logra explicar a diferenciação léxica das línguas

românicas. Mesmo levando-se em conta a situação privilegiada da filologia românica

em relação ao conhecimento documentado do terminus a quo e do terminus ad quem, é

necessário recorrer a outros meios para explicar aquela diferenciação, verificada mais

no léxico do que nos aspectos fonéticos. Dentre as tentativas de explicação, destacam-se

a de Gustav Gröber, com a “teoria dos substratos do latim vulgar”, a da Lingüística

Espacial de Matteo Bártoli e a mais aceitável, por parecer condizente com os fatos

históricos, é a posição de Gerhard Rohlfs: a diferenciação do latim em geral, e do léxico

em particular, tomou impulso depois da descentralização do Império, a partir do

imperador Adriano (117-138 d. C.), que foi obrigado, entre outras medidas, a retirar as

legiões da Dácia. Sem os estreitos laços com Roma, a grande influência da capital

perdeu força, permitindo que o latim da Ibéria, da Gália e da Dácia seguisse caminhos

diferentes, fragmentando-se mais rapidamente. Sendo a língua expressão da cultura, o

latim adquiriu feições mais locais, expressando novas formas de pensamento com

renovação das referências metafóricas e analógicas. Com o ofuscamento de Roma,

surgem novos centros irradiadores de cultura, como Mediolanum (Milão), Lugdunum

(Lyon), Burdigala (Bordéus), Caesaraugusta (Zaragoza), Augusta Emérita.

Posteriormente, a criação das circunscrições diocesanas eclesiásticas, que de modo geral

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respeitavam as antigas bases étnicas e provinciais romanas, fez surgir novos centros de

irradiação, cujo exemplo mais claro é o de Coira, atualmente Chur, para o rético.

6. Apesar dessas contingências da história externa das línguas românicas, todas

herdaram do latim, ainda que em épocas diferentes, seu repertório léxico básico.

Conforme a predominância política, militar ou cultural, as línguas românicas

influenciam-se mutuamente ao longo dos séculos. Nesse contexto, o francês sempre se

destacou como fonte de empréstimos léxicos a praticamente todas as suas irmãs e, de

modo geral, a todas as línguas do Ocidente. Destaque-se, nesse contexto, a grande

presença do francês como fonte de empréstimos na relatinização do romeno, na segunda

metade do séc. XIX. No Renascimento, foi o italiano o maior fornecedor de

empréstimos ao Ocidente, enquanto o castelhano e o português buscaram em terras

distantes nas grandes navegações, nos séc. XV e XVI, termos exóticos de muitos

idiomas e os introduziram no mundo românico. Contudo, as línguas em adstrato sempre

se inter-influenciam. Encontram-se atualmente numerosos estudos específicos e

recentes no campo dos empréstimos léxicos, reflexo da disputa com o inglês. Um

exemplo esclarecedor é o trabalho de Marjolein van der Berg, L’influence néerlandaise

sur , encontrado na internet, em um sítio interessante também sob outros aspectos

(http://users.belgacom.net/ethesis7/influ_ned/influ_ned_inhoud). Foram levantados 208

empréstimos holandeses ao francês, no período de 1100 a 2000, aplicando os princípios

estabelecidos por Michel Bréal. O maior número de empréstimos é dos séc. XI-XII,

com o pico nos séc. XVIII-XIX. Desses 208, 164 (78,8%) são substantivos, 15, 4% são

verbos, 4,8%, adjetivos, uma interjeição (ploc) e um advérbio de lugar (vrac, usado na

locução en vrac “a granel”), perfazendo perto de 0, 5%. São analisados também os

campos semânticos, denominados setores, desses empréstimos, destacando-se os termos

náuticos, com quase 70%, pois os holandeses sempre foram grandes navegadores,

seguindo-se os nomes de profissões, de botânica e de termos comuns. Sendo alguns

muito antigos, permitem seguir-lhes a história e as alterações semânticas. Alguns

exemplos, com a data da atestação: hol. boeye > fr. bouée (1375), “bóia”; bolwerk,

“baluarte” > fr. boulevard (1327), “obra de defesa”; séc. XVIII > “rua larga com

árvores, fazendo a volta à cidade sobre o lugar das antigas fortificações”; brikke >

brique (1175), “tijolo”; cabret > cabaret (1275), “café”, no valão e no picardo, séc.

XV-XVII, “lugar de reunião para beber e jogar”; séc. XIX, “estabelecimento de

apresentações satíricas, teatrais etc., onde se pode beber, comer, dançar”; kringhelen,

“fazer curvas”, > degringoler (1677), “despencar em quedas sucessivas”; droog, “seco”,

> drogue (1690), “secado”, depois “produto farmacêutico”, “remédio tradicional” feito

com ervas secas (1568), passando a significar um século depois “algo ruim de ser

absorvido” ou “alguém ou algo desprezível”, e no séc. XX passou a designar as

substâncias alucinógenas (1913), além de manter o significado de “ingredientes, cada

uma das matérias primas da fabricação de remédios”; drol (séc. XIV), “traquinas”, >

drôle, “folgado”, “debochado” (séc. XVI) > “pessoa não confiável”, “despresível”

(1718); no séc. XVIII, passou a significar “criança”; em 1635, é usado como adjetivo,

“divertido”, cômico”; o significado atual, “que provoca riso por sua originalidade,

singularidade”, “que é anormal ou espantoso”; manneken, “homem pequeno”, >

mannequin (1467), com a mesma significação: séc. XVI, “figura de madeira ou de

cera”, “escultura”; a partir de 1614, “modelo numa vitrine”, além de outros; maken,

“fazer”, > pic. maquier (1468), “fazer”, “fingir” na gíria, nos séc. XVII e XVIII,

significava “roubar”, e também “trabalhar”; entre 1798 e 1849 voltou a significar

“fazer”; no começo do séc. XIX, entre os jogadores de baralho, “falsificar a aparência

de algo para enganar”; na gíria teatral, “caracterizar-se”, “produzir” (1840) e daí o

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sentido atual de “modificar ou embelezar certos traços do rosto”, “desnaturar”,

“falsear”; mite, “espécie de moeda de cobre” > mitraille (1375), “pedaço de metal”, >

“fragmentos de metal com que se carregavam os canhões” (1872), “descarga conjunta

de artilharia”, “grande quantidade de bombas ou tiros”. Esses exemplos demonstram

como age o adstrato, seguindo caminhos imprevisíveis, facilitados pela flexibilidade dos

conteúdos semânticos. Através da forma francesa, muitos desses empréstimos passaram

às outras línguas românicas e não românicas.

Esses 208 empréstimos holandeses ao francês, incorporados no decurso de quase um

milênio, representam 0, 3% do léxico básico francês, constituído, segundo

levantamentos recentes, por cerca de 60.000 palavras. O ponto de partida do léxico

francês obviamente é o latim, com 10.590 palavras (17%), o grego com 3.785 (6, 3%), o

inglês com 2.451 (4%), o .153 (2%) e outros com contribuições menores. Essas e outras

informações estão no sítio http://users. belgacom. net/ethesis7/influ_ned. Tendo como

ponto de partida um dicionário de uso, com cerca de 35.000 palavras, a enciclopédia

Wikipedia estima em menos de 13% os empréstimos estrangeiros no francês, dos quais

1054 são ingleses, 707 italianos, 550 do antigo alemão (franco), 481 dos antigos falares

galo-romanos, 215 árabes, 164 do alemão, 160 do antigo celta, 159 do espanhol, 153 do

holandês (cf. os mais recentes 208 supra), 112 persas e sânscritas, 101 das línguas

ameríndias, 80 de diversas línguas asiáticas, 56 de diversas línguas afro-asiáticas, 55 do

eslavo e do báltico, 144 de outras línguas diversas. Por outro lado, convém lembrar que

o francês é a língua oficial da França, Bélgica, Suíça, Canadá e 21 outros países e

“largamente utilizada em determinado número de outros”. Uma parte das nações, que

falam o francês, forma a Organisation Internationale de la Francophonie; conforme

cálculos dessa Organização, o total dos falantes “reais” ou “parciais” deve atingir 183

milhões em 2005. (Cf. http://fr.wikipedia.org. /wiki/Langue_fran%C3%A7aise) Sendo

falada nos cinco continentes, em ambientes naturais, culturais e de diferentes visões do

mundo, é claro que haverá muito regionalismo, termos e expressões próprias para

designar algo específico – tudo isso dito à maneira francesa, enriquecendo o tesouro

léxico total. No sentido inverso, o francês tem sido a fonte de empréstimos léxicos para

as línguas ocidentais, sobretudo para as línguas românicas, do português ao romeno,

como ficou dito. Mesmo em relação ao inglês, pesquisas recentes indicam que 29% do

léxico do inglês moderno são de origem francesa. No cômputo geral, ao redor de 70%

do léxico inglês é de origem latina, direta ou indiretamente. Basta conferir a

terminologia computacional, onde são comuns os termos buscados no latim, tais como

bit, abreviação de bi(narius) t(erminus); delete, do supino de deleo, deletum,

delere¸”apagar”; site fr.méd.site < lat. situs, –us, “situação”, “localização”, do verbo

sinere, “colocar”, “deixar”, entre tantos outros.

Não sendo possível, devido às limitações normais deste texto, proceder a comentários

sobre as características lexicais de cada uma das línguas românicas, algo semelhante ao

que se apresentou em relação ao francês, julgamos de interesse alguns dados sobre o

romeno, não muito conhecido entre nós. Seu léxico, porém, apresenta aspectos

particularmente interessantes.

Apesar das vicissitudes históricas, especialmente os fatos de o eslavo ter sido a língua

oficial do país por dois séculos (X-XI), do isolamento em relação às outras línguas

românicas e ao adstrato permanente do latim eclesiástico e medieval, substituído pelo

eslavo com a mesma função, o léxico romeno conservou sua feição românica. Recebeu

empréstimos para as classes de inventário aberto (substantivos, adjetivos e verbos), ao

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passo que inexistem empréstimos nos de inventário fechado, como advérbios,

preposições e conjunções, em que a herança latina é completa. Nessa avaliação, é

necessário levar em conta a época em que se avalia o caráter do léxico romeno. A

relatinização, iniciada em 1860, veio da classe culta, dos escritores e poetas, portanto de

cima para baixo; por isso, trata-se de um processo lento, até que atingisse a população

através das escolas, dos ritos religiosos e dos meios de comunicação. Destarte, o

Dictionnaire d’étymologie daco-romain do moldavo Alexandru de Cihac (1825-1887),

publicado em Frankfurt em 1870, analisa um total de 5765 vocábulos, dos quais apenas

1165 são de origem latina e 4600 são de outra procedência: 2361 eslavos, 965 turcos,

635 neogregos, 589 húngaros e 50 albaneses. Note-se que a relatinização efetiva do

romeno mal havia sido iniciada; muitos empréstimos foram depois substituídos por

termos latinos correspondentes. Além disso, como observou Carlo Tagliavini (Origini,

p. 320-321), faltam na obra muitos termos de origem latina e também de outras origens,

já que a língua sem dúvida contava com mais palavras do que as estudadas. Num

dicionário, todas as palavras, postas no mesmo plano, têm valor apenas unitário,

resultando valor estatístico bastante relativo. De fato, na língua viva a porcentagem de

elementos românicos é muito mais elevada, porque são os mais usados, ficando os de

outras origens, sob esse aspecto, entre 10 a 15%. Também o inglês conta com mais

palavras de origem latina do que germânica, e nem por isso pode ser considerada língua

latina, precisamente porque os elementos germânicos são os mais usados. Uma visão

mais fiel à realidade dos fatos infere-se da análise dos dados do REW de W. von

Meyerlübke, citados acima. No rateio final, cada língua românica conta com umas 2.000

palavras herdadas, sem contar as derivadas e as compostas, freqüentemente muito

numerosas. Especificamente para o romeno, em 1954, A. Graur somou 857 daquele

conjunto geral românico, ou 43%. Levando-se em conta as vicissitudes históricas da

língua romena, a proporção é notável, tanto mais que os empréstimos se distribuem

entre as diversas origens eslavas, bizantinas, turcas, húngaras, neogregas e albanesas.

Contudo, a herança léxica latina é notável pelos termos do latim vulgar conservados só

pelo romeno e algumas poucas encontradas também em uma ou duas outras, devendo a

imensa maioria ser anterior ao fim do século III, quando o Império foi forçado a retirar

suas legiões da Dácia. Tomando o REW como ponto de referência e ressaltando-se que

as últimas edições incorporaram estudos de muitos especialistas (Brogea, Candrea,

Diculescu, Densusianu, Pu]cariu, Papahagi, Petrovici, Procopovici, Titkin), chegou-se,

através de levantamentos sistemáticos, a um número maior de palavras latinas

conservadas apenas pelo romeno. Assim, Iurgu Iordan, partindo de vários

levantamentos até à 3ª edição do REW, fala de cerca de 120 palavras latinas herdadas

apenas pelo romeno. Os últimos levantamentos indicam 141; a continuação das

pesquisas pelos etimólogos romenos indica a possibilidade de que esse número, de fato,

pode aumentar. A seguir, vejamos apenas alguns dos termos latinos herdados com

exclusividade pelo romeno, embora possam ter tomado outros significados: lat.

aduncus, “torto” > rom. adînc, “profundo”; albaster, “esbranquiçado” > albastru,

“azul”; allevatum > aluat, “fermento”; alvina, “colméia”, > albina , “abelha”;

*antaneus > întîi, “primeiro”; *biliatus > biet, “pobre”; blanditia, “adulação” > \e,

“ternura”; , “relampejar”; caucus > cauc, “concha”; cautela >

, “suavemente”, “aos poucos”; ; circitare > cerceta, “revistar”; * combibulus >

curcubeu, “arco-iris”; *cucurbitella > curcubi\ea (- , “abóbora”, “cabaça”; dedare

> a se dada, “entregar-se”; , “arrancar os cabelos”, “desesperar”;

, “abrigo”; *derapinare > da(ra(pa(na, “arruinar-se”; *diffamia

dormitare > durmita, “adormecer”; *escubulare > a se

scuba, “levantar-se”; *experlavare > spa(la, “lavar”; exsudare > asuda, “suar”;

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extemperare > astîmpara, “acalmar”; floralis > florar, “abril”; *fragmentare >

framînta, “quebrar”; *fulgerare > fulgera, “brilhar”; *gibbulus > gheb, “corcunda”;

*hocce > oaoce, “aqui”; horrescere > uri, “odiar”; \, “banquete”;

*infolliare > înfoia, “inchar-se”; innatare > înota, “nadar”; *intemplare > întîmpla,

“acontecer”; intonicare > întuneca, “escurecer”; jugulator > junghetor, “assassino”;

languidus > lînced, “frouxo”, “fraco”; lingula > lingura(, “(a) colher”; manicare >

mîneca, “madrugar”; , “mentira”; miles > mire, “soldado”;

miserare > misereare (ant.), “graça”; neque unus > niciun, “nenhum”; perducere >

preducea, “perfurar”; persecare > , “castigar”; pigritare > pregeta, “demorar”;

placenta > pla(cinta(, “pastel folheado”; * plupea > pleoapa(, “globo do olho”; prae,

“adiante”, > preá, “demais”; praedatio > pra(da(ciune, “saque”; *rapationem,

“colheita de beterraba”, > ra , “setembro”; rorare > rura, “orvalhar”.

“pingar”: signicare > sineca, “persignar-se”.

Dentre esses termos latinos herdados só pelo romeno, conforme registrados pelo REW,

encontram-se 58 substantivos, 56 verbos, 18 adjetivos, 6 advérbios, um ordinal (întîi),

um indefinido e uma interjeição, 141 no total, salvo algum lapso. Há casos em que o

termo latino passa para outra classe, como o substantivo lat. cautela, “precaução” e o

advérbio rom. , “suavemente”, “aos poucos”. Das herdadas pelo romeno e por

uma ou outra língua românica, mais comumente com o dalmático, o italiano e o sardo,

foram encontradas 16: 7 verbos, 4 substantivos, 4 adjetivos e 1 advérbio. Esse

levantamento levou em conta apenas o aspecto formal do daco-romeno; não poucos

termos, embora herdados, apresentam um significado diferente daquele do latim, v. g.

lat. animus ou anima, “espírito”, > rom. inima , “coração”, (

, “batidas do coração”), enquanto

“espírito” é expresso por suflet < suffletus. Registram-se ainda certo número de termos

próprios em outras variantes do balcano-romance, isto é, o megleno-romeno, falado no

vale do rio Meglena ao sul do Danúbio, o mácedo-romeno, encontrado na Macedônia e

várias regiões adjacentes, e o ístrio-romeno, em pequenos territórios da península da

Ístria, nos Bálcãs; por exemplo, lat. corbula > megl. –rom. croabla , “cestinha”. Esses

dados não deixam dúvida em relação à sólida base latina do léxico romeno, preservada

apesar de todas as influências sofridas ao longo dos séculos.

As possíveis contribuições germânicas antigas ao léxico romeno são controversas.

Mesmo os 26 termos gépidas, atribuídas por Gamillscheg ao romeno, podem ser de

outras origens, dado a intrincada confluência de idiomas na região. Empréstimos

posteriores, porém, encontram-se sobretudo na Transilvânia e no Banato; na

Transilvânia, houve contato da população romena com florescentes colônias saxônicas

nos séc. XII e XIII, embora alguns tenham vindo através do húngaro. No Banato,

provieram de colônias suevas no séc. XVIII. Como parte do império austro-húngaro,

tanto a Transilvânia, sob administração húngara, recebeu empréstimos germânicos

através dos húngaros, como o Banato e a Bucovina através dos austríacos,

particularmente termos técnicos e administrativos. Alguns exemplos: sax. fyrdel (al.

Viertel) > rom. os”; sax. korf (al. Korb) >

rom. , “cesto”; al. Strang > rom.]treang, “corda”; sax. purger (al. Bürger) >

húng. ant. purgár > hung. mod. polgar > rom. pîrgar, “conselheiro municipal”; al.

Lade > húng. lada ou esl. lada > rom.

Durante todo o século passado, foi grande a influência francesa sobre o léxico romeno,

levando à substituição de antigos termos, sobretudo eslavos, por termos românicos.

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Dados recentes sugerem que um quinto do léxico romeno provém do francês direta ou

indiretamente, reforçando a relatinização do romeno, iniciada no séc. XIX.. O processo

de globalização, iniciado no fim do séc. XX e aprofundado no corrente séc. XXI,

sobretudo por meio da internete, que alcança diretamente muitos milhões de pessoas em

todo o planeta, aumentou muito a presença da língua inglesa no mundo. O movimento

de uma espécie de autodefesa do léxico da língua materna, emtra essa invasão de

anglicismos, observa-se por toda parte (Alemanha, Brasil, Espanha, França, Itália). Na

Romênia também se trava um constante diálogo nesse sentido em diversos sítios da

internete, sobretudo entre jovens. Na página www.muntealb.com/LimbaRomana-bn.htm

(atualizada em junho de 2005), Alexandru Bogdan Munteanu, no artigo Limba

“A Língua Romena na Época da Informática”,

apresenta resultados do “fórum dos internautas”, em que se debatem questões

lingüísticas. Depois de muita discussão, sugestões e críticas, Munteanu fixou alguns

parâmetros, geralmente aceitos, que devem ser considerados no sentido de vernaculizar

a terminologia da informática, tendo em vista as características do romeno e do inglês.

Vale a pena refletir sobre os pontos propostos, sem dúvida, válidos para todas as línguas

românicas, uma vez que visam a manter a integridade e a compreensão da língua

materna. São os seguintes: a) só adotar um termo para algo novo, quando não houver

correspondente romeno, ou quando não se possa criar um termo adequado com os

elementos existentes no sistema; b) o termo adotado não pode ter o mesmo sentido que

outro já existente na língua corrente; c) respeitar o caráter fonético da língua, de modo

que se leia como se escreve, fazendo para isso as devidas adaptações, como a

eliminação das consoantes geminadas e dos fonemas não pertencentes ao sistema

fonológico próprio; d) levar em conta a facilidade de pronúncia, eliminando-se grupos

consonânticos não tolerados; e) conservar, se possível, o mesmo gênero gramatical da

língua original; f) atender às particularidades do romeno em relação à declinação,

eliminando a necessidade do uso do traço de união. Essas orientações, mutatis mutandis,

podem ser aplicadas a todas as línguas românicas, inclusive ao português; com isso,

evitar-se-iam formas exóticas, incompreensíveis para considerável parcela da

população. Eliminando-se os estrangeirismos desnecessários, preservar-se-á a

integridade da língua e evitar-se-ia o ridículo, conforme já o dissera Cícero em relação

ao grego. Na prática, foram propostas para o romeno na terminologia computacional,

entre outras, as seguintes adaptações ou substituições, segundo os critérios

mencionados: boot, “inicializar” > rom. a buta (neologismo); chip, nome comum,

“cavaco”, “lasca”, rom. a]chie, já que rom. chip significa “imagem”, “rosto”; computer,

rom. calculator; controller > rom. controler, pl. controlere, eliminando a necessidade

do hífen no romeno, e ter origem latina: contra rotulus > fr. desde 1611; core, “caroço”,

“núcleo”, rom. nucleu; driver > rom. draiver, com adaptação na grafia; hard disk, rom.

hardisc, com uso dos fonemas e do processo romeno de composição; link, “elo”,

“conexão”, foi romenizado pelo correspondente a

lega, legat maus,

pl. mausuri, (com adaptação ortográfica e fonética, com a forma plural do neutro

romeno. O Dic\ionarul Explicativ al Limbii Române, 1998, esclarece que é tocmai

dispozitivul de intera\onare cu calculatorul, (“o maus é precisamente o dispositivo de

interação com o computador”), outros preferem soarece, “rato” (designação dada já em

inglês pela semelhança de forma entre o dispositivo do computador e o animal); review,

rom. recenzie, “apreciação”; shortcut, “atalho”, rom. mesmo

significado; site, rom. sit; spammer > rom. (empréstimo, sem correspondente

em romeno); thread, “fio”, rom. fir (< lat. filum, “fio”). Esse esforço dos romenos, que

tentam romenizar a terminologia computacional, demonstra o apreço que têm por seu

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idioma, além de buscarem uma terminologia técnica acessível a todos. A história das

línguas, entretanto, tem mostrado que os vocábulos, que não se enquadram no sistema

fonológico próprio ou apresentam uma relação opaca entre significante e significado,

cedo ou tarde são rejeitados pelos mecanismos internos de autodefesa do sistema.

Exemplo desse fato foi o abandono, em português, da terminologia inglesa referente ao

futebol, substituída por outra vernácula, como goleiro por goalkeeper, escanteio por

korner etc.

Em conclusão, do exposto pode-se concluir com segurança que o lêxico das línguas

românicas manteve e mantém o caráter latino fundamental, apesar dos numerosos

empréstimos incorporados à parte do sistema aberto (substantivos, adjetivos e verbos),

ao longo dos séculos. Na parte do sistema fechado, praticamente não houve

incorporações. Os termos novos geralmente designam algo também novo ou diferente,

uma vez que não existem dois sinônimos totalmente coincidentes no aspecto semântico.

As rápidas modificações no modo de vida dos tempos atuais, com instrumentos,

tecnologias, descobertas científicas aplicadas etc., exigem denominações adequadas,

constituídas seja por recurso às fontes tradicionais seja pela adaptação de termos usuais,

ou ainda através da criação neologismos. Mesmo os neologismos, porém, não são

criações ex nihilo, pois partem de elementos do sistema da língua. O estudo do léxico

permite ver que a língua é de fato a expressão de uma cultura, no sentido mais amplo.

Particularmente o romeno, apesar de todas as circunstâncias políticas, culturais e

lingüísticas adversas, manteve o caráter latino de seu vocabulário juntamente com as

bases da cultura latina. Orgulham-se os romenos de serem descendentes dos dácios e

dos romanos, perceptível até no nome de seu país.

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