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O Eu e o Inconsciente.pdf

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  • ANGELA MARIA LA SALA BAT

    O EU E O INCONSCIENTETraduo

    dePIER LUIGI CABRA

    ScU Poediti & AnteTel: 4436-0602

    Rua Monte Casseros, 131 Centro - Sto. Andr -SP

    BEDITORA PENSAMENTO

    SAO PAULO

  • Ttulo do original:IL S E LINCONSCIO

    Copyright Angela Maria La Sala Bat

    Edio Ano3-4-5--7-8-9 -89-90-91-92-93

    Direitos reservados.JSDITORA PENSAMENTO

    Rua Dr. Mrio Vicente, 374 - 04270 So Paulo, SP - fon e:63-3141Impresso em nossas oficinas grficas.

  • SUMRIO

    ; Prefcioi Captulo I

    O Homem: Entidade Psicolgica e Entidade EspiritualCaptulo IIConscincia e Inconsciente Captulo IIIRelaes Entre Consciente e Inconsciente Capitulo IVO Simbolismo do InconscienteCapitulo V Os SonhosCaptulo VIA Neurose como Sintoma de Crescimento InteriorCapitulo VII O Eu e Sua MscaraCapitulo VIIIPoderes Secretos do Inconsciente Capitulo IXA Tcnica das Sugestes ao Inconsciente

    i Capitulo XA Tcnica do RelaxamentoCapitulo X IEvocao do SuperconscienteCapitulo X II O Despertar

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  • PREFCIO

    A psicanlise, vista com os olhos de quem acredita na essncia espiritual bsica do homem, apresenta-se como uma cincia que pode, aos poucos, atrave's do conhecimento dos nveis mais profundos e autnticos da psique, conduzir descoberta dessa essncia espiritual, o verdadeiro Eu, que ainda , para a maior parte dos homens, latente, velado, inconsciente .

    Esse , a meu ver, o aspecto construtivo, benfico, da psicanlise, cincia ainda jovem, mas que promete tomar-se, no futuro, o meio mais slido, mais concreto, mais confivel de conhecermos, pela experincia direta, a nossa realidade profunda.

    Com este livro, a minha pretenso foi oferecer, a quem deseja se conhecer, aquele pouco que tive possibilidade de experimentar em mim mesma nessa direo, desculpando-me pelas falhas e, talvez, pelas incorrees que possam ser nele encontradas; isso se prende ao fato de que tudo o que escrevi o resultado imediato de reflexes e experincias subjetivas e pessoais que, como qualquer outro resultado desse tipo, naturalmente suscetvel de ampliao, de aprofundamento e de modificaes.

    O campo do conhecimento interior, a dimenso do nosso mundo psquico, apresenta-se investigao de quem pretende entrar em contato com ele como um planeta novo e desconhecido a

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  • ser explorado, com realidades insuspeitas, mistrios a serem descobertos, foras e tesouros a serem utilizados.

    Por esse motivo, quem quer que se inicie no caminho da prpria descoberta pode experimentar somente aquilo que possvel sua capacidade de viso, ao seu grau de penetrao e, sobretudo, sua capacidade de interpretao exata, que proporcional ao seu nvel evolutivo.

    Minha esperana que o que escrevi, mesmo sendo inevitavelmente incompleto, possa ao menos servir para estimular o interesse pelo autoconhecimento e pelo trabalho de harmonizao, e levar a um ulterior aprofundamento desta pesquisa interior.

    Roma, janeiro de 1974Angela Maria La Sala Bat

  • Captulo I

    O HOMEM: EN TID AD E PSICOLGICA E EN TID AD E ESPIR ITU A L

    Se observarmos o mundo com a inteno de entender o que est por trs dos acontecimentos exteriores, das inquietaes, das lutas, dos sofrimentos e mesmo das conquistas e das metas que o homem atingiu em pocas mais recentes, sentiremos que deve haver um impulso, um mvel mais profundo, que leva a humanidade para uma meta de que talvez ela no tenha conscincia.

    Indubitavelmente, o homem est procura de algo, lutando, sofrendo, trilhando por vezes caminhos errados, movido por uma espcie de nsia que no permite descanso ou paralisaes.

    Essa nsia, esse impulso que leva a humanidade para a frente so os sintomas da fora evolutiva.

    Hoje, o conceito de evoluo acha-se universalmente difundido e reconhecido, no apenas no que diz respeito aos reinos inferiores da natureza, mas tambm para a humanidade.

    Todavia, ainda h muitos que duvidam da possibilidade inerente ao homem de progredir, de melhorar, de evoluir.

    Essa dvida surge por vrias causas, entre as quais as principais so duas: 1) a ignorncia do homem em relao sua verdadeira natureza; 2 ) a idia confusa e pouco clara que se tem do conceito de evoluo.

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  • Parece quase absurdo pensar que, numa poca como a atual, de formidveis progressos tcnicos e cientficos, num momento em que se tentam os mais ousados empreendimentos espaciais e em que se comea a conhecer de perto o cosmo, ainda haja tantas pessoas que no conhecem a natureza ntima do homem. Conhecemos o espao exterior, o cosmo, mas no o espao interior, o mundo misterioso mas real da nossa psique, que na verdade assemelha-se a um cosmo, a um universo, pela extenso, profundidade e pelas infinitas e ocultas possibilidades de descoberta que ele esconde em si.

    Entretanto, mesmo que o homem no tenha disso uma conscincia exata, o mundo interior est se aproximando de sua conscincia, e faz sentir a sua presena e a sua vitalidade atravs de sintomas e mensagens que aprenderemos pouco a pouco a decifrar.

    H, por exemplo, alguns estudiosos da psicologia de profundidade que apresentam a sugestiva hiptese de que at mesmo os empreendimentos espaciais escondem um significado muito mais misterioso do que meramente tcnico. A Lua, de acordo com a psicanlise, representa o inconsciente; ento, a aspirao ousada e quase irrefrevel do homem em alcan-la, conhec-la e conquist-la no representaria uma projeo de uma necessidade (ou melhor, de uma exigncia do indivduo de integrar-se com o seu eu mais profundo?).

    Se assim fosse, afirma Emilio Servadio, a corrida espacial no ser, como irracionalmente se teme, uma ulterior manifestao do homem de fugir de si mesmo e de seus problemas, mas exatamente o oposto ( ...] , e continua auspiciando que a conquista do espao poderia tornar-se uma conquista clara e consciente; sobretudo de novas dimenses do espao interior do homem .

    Essa hiptese merece ser levada em considerao, pois evi

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  • dente que o homem procura tomar conscincia de si mesmo; e evoluo significa exatamente isso: tomarmo-nos conscientes e aprofundar e ampliar a conscincia at descobrirmos quem realmente somos.

    Evoluo, portanto, no significa um movimento no tempo visando a um fim exterior, mas um amadurecimento, um crescimento interior do conhecimento rumo auto-realizao.

    O homem progride interiormente e, a seguir, projeta no exterior o seu amadurecimento subjetivo, no campo social, cultural, moral e religioso.

    Eis por que to importante nos conhecermos a ns mesmos e tomarmo-nos conscientes de nossa essncia ntima e real.

    O interesse pelos estudos psicolgicos e sobretudo pela psicanlise demonstra que a humanidade comea a sentir, inconscientemente, a exigncia de conhecer-se a si mesma e de encontrar a realidade dentro de si.

    A psicanlise, ou psicologia de profundidade, uma cincia um tanto recente, mas a sua afirmao e a sua difuso foram rapidssimas, justamente porque ela responde atual necessidade evolutiva do homem, que a de entender, enfim, que a realidade no o que ele percebe com os cinco sentidos, mas algo que est sob, ou melhor, dentro das coisas.

    A descoberta do inconsciente e de suas energias, com as suas misteriosas faculdades, com as suas infinitas possibilidades latentes, foi de um valor inestimvel e acarretou uma espcie de revoluo no conceito psicolgico do homem, abrindo a porta para um mundo desconhecido que talvez possa realmente conduzir-nos para a revelao da realidade.

    Ficou claro que a regio consciente do homem incompleta,

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  • defeituosa e limitada, no passando de uma parcela mnima do homem integral.

    Esta descoberta trouxe muitas conseqncias positivas nos campos social, educativo e moral.

    De fato, como afirma Gerard Lauzun em seu livro Sigmund Freud e a Psicanlise, A nossa sociedade no mais a mesma; em menos de meio sculo, assumiu novas dimenses, deu lugar quelas partes da mente e do corpo que Freud soube reconhecer, restituindo-as a ns, posto que nossas. Os problemas sexuais no mais ficaram em silncio a pedagogia e o ensino renunciaram ao seu carter autoritrio para se tomarem mais compreensivos... a justia procura compreender ou recuperar os indivduos; a doena mental no constitui mais aquela barreira de horror, vergonha e escndalo entre os seres aparentemente sos, os quais, quase de maneira selvagem, tendem a ignor-la, da mesma forma que a subuma- nidade que eles mesmos criam e ao mesmo tempo aprisionam... a idia de felicidade assume um sentido novo; todas essas conquistas so devidas psicanlise, que apontou o caminho correto a ser seguido.

    Tudo isso verdade, mas ainda h mais.A psicanlise, ou psicologia de profundidade, acha-se em

    evoluo, e vai se delineando uma conseqncia ainda mais importante e significativa para a humanidade, em decorrncia das indagaes sobre o inconsciente: est se descobrindo a natureza espiritual do homem.

    Em trinta anos, desde a morte de Sigmund Freud at hoje,o conceito de inconsciente ampliou-se gradativamente, cada vez mais, e se aprofundou significativamente. Ele no mais considerado somente um receptculo de energias sexuais reprimidas , ou de

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  • impulsos instintivos primordiais, mas um amplo e misterioso mundo, repleto de foras latentes, de possibilidades desconhecidas, que se estende, por assim dizer, a todos os nveis, dos mais baixos aos mais elevados.

    No se fala mais apenas de um subconsciente, mas tambm de um superconsciente, para indicar aquela parte do inconsciente de onde provm as inspiraes mais elevadas, os impulsos mais nobres, as intuies mais profundas, as tendncias superiores do homem.

    Ao lado da psicologia de profundidade , vai se formando tambm uma psicologia das alturas , como diz Maslow.

    Esto sendo descobertas exigncias religiosas e espirituais, nas profundezas do homem, to fortes quanto os instintos e capazes de gerar neuroses quando no-satisfeitas.

    Vemos Carl Gustav Jung afirmar que, no inconsciente, encontra-se a imagem de Deus; e Caruso, Daim, Baruk e outros descobrirem que o homem sofre de uma profunda e angustiante nostalgia do Absoluto .

    E todas essas afirmaes no so fruto de fantasias ou de iluses, mas da anlise e das pesquisas efetuadas no s em indivduos tomados por neuroses, mas tambm em indivduos sos.

    De certa forma, Freud foi o pioneiro do mundo do inconsciente. Segundo as palavras de Pfister ele foi o Cristvo Colombo da psique , mas deixou-se envolver e quase se perder pelas primeiras e desconcertantes descobertas que fez. A riqueza, a vitalidade, a poliedricidade das energias subconscientes o estontearam, e ele viu somente aquilo que podia ver, segundo sua natureza, seu temperamento e seus prprios problemas psquicos.

    Sem querer, ele nos forneceu a prova de uma lei fundamental do comportamento do homem: cada um projeta-se a si mesmo em

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  • suas pesquisas e v somente aquilo que o reflexo de sua alma (segundo as palavras de Jung).

    Todavia, os mritos de Freud so muitos e a ele devemos a descoberta do dinamismo das formas instintivas e de algumas importantssimas leis do inconsciente, tais como o mecanismo da represso, da fixao, da transferncia, etc.

    Seus mtodos de anlise ainda hoje so vlidos e seu esprito cientfico, seu af de conhecer eram to autnticos e sinceros que o levaram a admitir, nos ltimos anos de sua vida, que o inconsciente encerrava ainda, escondidas, infinitas possibilidades a serem descobertas, pois ele o considerava como uma misteriosa porta aberta para um mundo desconhecido e lastimava no poder viver por muito tempo ainda para investigar ulteriormente aquelas profundezas.

    Podemos dizer, ento, agora, que a psicologia de profundidade est pouco a pouco se tomando uma cincia dotada de alma, que talvez no tenha sido intil ou prejudicial o homem ter sido colocado, pelas primeiras e desconcertantes descobertas de Freud, frente ao lado mais infernal de sua natureza, e ter tido de admitir a existncia de uma parte obscura em si mesmo.

    No possvel progredir se no se traz tona o mal oculto, a fim de conhec-lo e transmut-lo, e se se quiser ignorar que o homem uma dualidade de matria e esprito, de luz e sombra, de corpo e alma.

    Pascal afirma: perigoso mostrar em demasia como o homem se assemelha aos animais sem mostrar tambm a sua grandeza. tambm perigoso mostrar-lhe a sua grandeza sem a sua baixeza. E mais perigoso ainda deix-lo na ignorncia de uma e de outra. Mas muito vantajoso apresentar-lhe ambas. "

    De fato, o homem o nico ser da natureza que participa de

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  • dois reinos, o terceiro e o quarto, isto , o reino animal e o reino humano, e talvez seja a partir dessa dualidade, transcendida e transformada, que poder emergir um quinto reino, o reino espiritual.

    A filosofia chinesa tambm afirma que o Uno, o Tao, surge da unio dos contrrios, dos opostos que se encontram em todo o cosmo sob infinitos aspectos,

    i No sentido psicolgico, o homem uma dualidade entre oconsciente e o inconsciente, e somente do equilbrio entre esses dois aspectos da psique que pode surgir o verdadeiro homem, o Si, o Selbst, conforme o chama Jung.

    Eis por que, para assumirmos uma atitude equilibrada e sbia, deveramos sempre levar em considerao essa dualidade e essa contraditoriedade fundamental de nossa natureza, sem nos esquecermos de que existe, ao lado de nossas caractersticas humanas e materiais, nem que seja somente a possibilidade hipottica de um lado espiritual e hiperfsico.

    Por que querer negar a hiptese de o homem ser no somente uma entidade biopsicolgica, isto , um composto de corpo e psique, mas tambm uma entidade espiritual?

    Por que querer afirmar com segurana que a realidade somente aquilo que provamos com os nossos cinco sentidos e que no pode haver uma realidade mais profunda e verdadeira?

    Muitos so, todavia, os que hoje comeam a perceber que deve existir algo por trs das aparncias fenomnicas e que sentem a exigncia de procurar esse algo mais.

    O interesse pela psicologia de profundidade, conforme disse acima, um claro sintoma de tudo isso.

    0 eu racional, a parte consciente do homem, sente que deve conhecer a outra face de si mesmo, a parte inconsciente, para tomar-se completo e aproximar-se da verdade.

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  • Todavia, para ser realmente til nesse sentido, a psicologia de profundidade deve ser entendida como uma verdadeira cincia, livre de dogmatismos e sistemas, aberta s novas descobertas possveis.

    Somente se entendida dessa maneira, ela poder oferecer ao homem o caminho e os meios para conhecer e servir de ponte com aquela metade de si mesmo que at agora havia ignorado e que, no entanto, faz-se vitalmente presente e ativa; alm disso, poder fornecer um mtodo concreto para experimentar a realidade substancial do mundo psquico, sob o qual se oculta uma realidade mais profunda e misteriosa.

    Para chegar a essa realidade mais profunda, preciso, porm, passar por todos os nveis do mundo psquico, introverter-se para aprender a olhar dentro de si e descobrir pouco a pouco as energias, as faculdades, as potencialidades do prprio ser psicolgico.

    De certa forma, devemos nos sensibilizar com a complexa, rica e variada atividade da nossa psique consciente e, em seguida, acostumarmo-nos a reconhecer tambm as mensagens e os smbolos que o nosso inconsciente nos transmite.

    Devemos nos considerar exploradores de um mundo desconhecido, com as suas misteriosas leis, as suas regras e os seus precisos caminhos de expresso.

    No podemos tomar conscincia do verdadeiro Homem se antes no nos familiarizarmos com o caminho que leva at ele, e que pode parecer, de incio, obscuro e cheio de inesperadas possibilidades e de sucessos imprevistos.

    Algum poderia perguntar a esta altura: Por que deveria eu me preocupar tanto em conhecer o meu mundo psquico e esforar- me em encontrar um hipottico Si espiritual?

    A resposta muito simples.

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  • A procura de si mesmo no um encargo imposto pela vontade prpria ou de outrem. uma exigncia natural e inata, que cedo ou tarde se manifesta conscincia do homem.

    Mesmo que ele a ignore ou no queira admiti-la, h alguma coisa dentro dele que continuamente o leva frente, em direo a alguma meta.

    Insatisfao, angstia, sensao de vazio e de impotncia sero os sintomas que cedo ou tarde faro com que ele compreenda que no pode haver paz e felicidade na vida se no reconhecer o apelo vital e profundo do verdadeiro Eu, que pede, que grita para ser reconhecido e levado luz da conscincia.

    Somente quando respondermos a essse apelo compreenderemos que evoluir significa tomar-se aquilo que j somos , e reconheceremos, de acordo com as filosofias orientais, que o Verdadeiro Homem cujo smbolo, antiqssimo, uma rvore tem razes no cu: ento poderemos entender o significado das palavras:

    A rvore etema tem suas razes no alto e enterra no cho os seus galhos. {Upanixade, VI-I.)

  • Captulo II

    CONSCINCIA E INCONSCIENTE

    Quando comeamos a olhar para dentro de ns, a fim de nos analisarmos e nos conhecermos, deparamos com algumas dificuldades, pois em geral o mundo psquico , para ns, um territrio desconhecido, uma dimenso misteriosa a que no estamos acostumados.

    Todavia, as dificuldades no devem nos abater, pois a familiaridade e a sensibilidade com os estados subjetivos adquirida pelo exerccio e a constncia. Na realidade, tudo questo de ateno. A ateno como um feixe de luz que podemos dirigir para onde queremos, mas em geral ns o dirigimos para o exterior, para os objetos, as pessoas e a atividade prtica. Mas, se o dirigirmos parao nosso interior, pouco a pouco descobriremos a realidade do mundo psquico.

    A primeira coisa que aparecer, naquilo que inicialmente poder nos parecer um mundo confuso e desordenado, o fato de nossa psique no ser unitria, mas, ao contrrio, muito complexa. De fato, a psicologia reconhece diversos aspectos ou funes da psique, os quais poderiam ser subdivididos em quatro grupos:

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  • 1) sensaes;2 ) sentimentos;3) pensamentos;4) vontades.

    A segunda coisa que aparecer o fato de nem sempre estarmos conscientes de todas essas funes, pois o nosso campo de conscincia limitado, mutvel e variado.

    A esta altura, devemos nos deter no termo conscincia , pois indispensvel entender bem o que se quer dizer com ele, o que nos ajudar tambm a compreender por que acontecem determinadas modificaes, determinadas variaes justamente no campo da conscincia.

    Na realidade, o termo conscincia um dos vocbulos de significao mais incerta e ampla, prestando-se a inmeras definies.

    De qualquer maneira, podemos distinguir trs significados principais: o moral, o espiritual e o psicolgico.

    No que diz respeito ao assunto de que tratamos, interessa-nos sobretudo o significado psicolgico do termo, com o qual por conscincia pretende-se entender o conhecimento dos fatos internos, das modificaes psquicas, em contraposio a todos aqueles estados psquicos de que, ao contrrio, no temos conhecimento.

    Desse ponto de vista, a conscincia poderia ser denominada mais corretamente de o consciente (ou o cnscio), como fazem os psicanalistas. A conscincia, nesse sentido, suscetvel de aprofundamentos e de crescimento, podendo tomar-se cada vez mais sensvel, mais ampla e mais elevada. De fato, de acordo com Ranzoli: Perceber uma determinada modificao que se operou em ns

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  • mesmos somente o aspecto inferior da conscincia, enquanto1 que o aspecto superior se manifesta como distino entre o sujeito

    que sente e o objeto sentido e se toma, dessa forma, autoconscincia, Ento, o grau de conscincia varia de pessoa para pessoa, e

    tambm no prprio indivduo, dependendo do momento, dos estados de esprito do momento e das atividades que esto sendo

    i desenvolvidas.Cada um de ns tem um nvel e uma qualidade de cons

    cincia diferentes, dependendo do temperamento, do grau de maturidade, das tendncias e faculdades prprias e do poder de ateno e concentrao de que somos dotados.

    Um artista, por exemplo, ter uma faculdade de conscincia diferente da de um cientista, e assim tambm uma criana da de um adulto. Um indivduo ativo, extrovertido, prtico, ter um campo de conscincia diferente do de um estudioso de problemas filosficos ou religiosos...

    A conscincia, portanto (ou o consciente), suscetvel de mudanas, de ampliaes e at mesmo de deslocamentos . Este ltimo termo significa que podemos deslocar, conscientemente se quisermos, a ateno para estados psquicos diferentes, pois a ateno o fulcro da conscincia. Dissemos que a ateno como um feixe de luz que podemos concentrar num determinado ponto do nosso mundo subjetivo para percebermos essa rea. De fato, quando nos concentramos num determinado pensamento, ou nos deixamos absorver

    1 por um sentimento, todo o restante da nossa vida psquica tomba napenumbra e se torna, portanto, ainda que temporariamente, inconsciente. Essa parte inconsciente, porm, pode tomar-se facilmente consciente, se deslocarmos a ateno para ela; podemos, portanto, consider-la pr-consciente .

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  • Nessa rea pr-consciente esto todas as funes psquicas de que dotada a nossa personalidade, das quais, porm, no podemos ter uma conscincia total e simultnea.

    Portanto, entrando em contato com a nossa conscincia interior, comeamos a nos dar conta de que ela no pode perceber toda riqueza e amplitude da vida psquica, e comeamos a aceitar a idia de que podem existir em ns reas psquicas que escapam ao nosso conhecimento.

    De fato, a menos que tenhamos feito uma experincia a respeito, consideramos absurdo e estranho que existam processos psquicos, impulsos, sentimentos de que no se tem conscincia, pois, mesmo aceitando teoricamente a idia da existncia do inconsciente, na prtica sentimos uma resistncia e quase uma rebelio quando somos colocados frente a um reconhecimento concreto.

    E por que isso?Talvez justamente porque o inconsciente seja constitudo,

    sobretudo, pelo que o eu consciente no quer reconhecer ou acostumou-se a no reconhecer.

    Eis, portanto, a utilidade de se proceder por etapas, procurando, na medida do possvel, sentir e experimentar aquilo que aos poucos estar sendo exposto, lembrando sempre que a psicologia no uma filosofia, mas uma cincia experimental.

    Voltando agora rea pr-consciente, que envolve, num certo sentido, o nosso campo de conscincia, podemos dizer que ela constituda por funes psquicas e estados subjetivos um tanto recentes, ou mesmo atuais, mas que permanecem latentes, posto que nem sempre utilizados. Essa rea poderia ser definida tambm como inconsciente mdio , para distingui-la de uma parte mais profunda da psique, na qual todo o nosso passado est registrado,

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  • arquivado, estratifcado, por assim dizer, mas no morto e inerte, aocontrrio, ainda pulsante de vida e continuamente desejoso de voltar luz.

    E qual esse nosso passado?O nosso passado formado, antes de mais nada, pelos nossos

    instintos atvicos ocultos no inconsciente, mas sempre vivos e exi-I gentes, os quais constituem as foras vitais do nosso ser, e que,

    mesmo sem aparecerem nossa conscincia, tm uma profunda e inegvel influncia sobre o nosso comportamento e sobre as nossas tendncias.

    Alm do mais, o nosso passado constitudo por todas as experincias, lembranas, eventos, sofrimentos, traumas que se imprimiram indelevelmente no magma sensibilssimo do inconsciente desde a primeirssima infncia.

    Poderamos chamar essa rea do nosso inconsciente de inconsciente inferior ou subconsciente , aquela regio descoberta e estudada por Freud e pelos psicanalistas do primeiro perodo, pois exatamente nela que tm origem os complexos, os distrbios e as manifestaes patolgicas genericamente denominadas neuroses. No podemos esquecer que a psicanlise observa o inconsciente sobretudo nos casos patolgicos, e no o inconsciente das pessoas ss.

    Entre esse inconsciente inferior e a conscincia, no fcil a comunicao, pois h como que um espesso diafragma dificultando

    ' a relao, diafragma esse inconscientemente criado por ns mesmos,1 primeiramente pela represso e, em seguida, por um mecanismo

    automtico de remoo .Sobre esse ponto da represso e da remoo falaremos mais

    detalhadamente no prximo captulo, quando analisarmos as relaes entre o consciente e o inconsciente.

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  • Existem, portanto, uma rea mdia e uma rea inferior do inconsciente; mas no podemos deixar de lado uma outra parte muito importante do inconsciente, que a superior.

    Se existe em ns um passado gravado no fundo do inconsciente, existe tambm um futuro, por assim dizer, do qual, por enquanto, no temos conscincia, mas que potencialmente est sempre pronto a ser anexado nossa conscincia, se soubermos nos elevar em sua direo. Esse inconsciente futuro o Superconsciente, formado por todas as faculdades, as qualidades mais elevadas do homem, as suas possibilidades mais altas que ainda no chegaram superfcie de sua conscincia comum, mas que fazem parte da sua natureza humana pelo seu lado mais nobre, o lado que reflete o divino. A presena dessa rea superconsciente foi postulada por numerosos psiclogos e estudiosos da psicologia de profundidade, pois, s vezes, em momentos excepcionais, esse futuro se torna atual e se revela ao indivduo por impulsos elevados, intuies, inspiraes, sentimentos nobres e altrustas, atos de sacrifcio e de herosmo, estados de conscincia que, em situaes normais do cotidiano, no lhe ocorreriam.

    s vezes, o divino se manifesta ao homem atravs de sua prpria natureza, dando-lhe, assim, a prova de sua presena.

    So essas as experincias das alturas (peak experiences) de que fala Maslow, que elevam a nossa conscincia at a rea que normalmente superconsciente e nos aproximam da nossa realidade, o verdadeiro Si, o Eu espiritual.

    Jung tambm teve oportunidade de observar em diversas pessoas, especialmente nas de meia-idade, a existncia desse lado inconsciente mais elevado, que tendia a manifestar-se e provocar sofrimentos e incmodos, caso no fosse reconhecido. Assim,

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  • IVictor Frankl fala em neuroses nogenas , que derivam da represso das exigncias espirituais.

    Por enquanto, pretendemos fornecer uma descrio simples e sucinta das diferentes regies do inconsciente que, resumindo, poderamos delinear da seguinte maneira:

    a) inconsciente inferior ou subconsciente;b) inconsciente mdio ou pr-consciente;c) inconsciente superior ou Superconsciente.Apresentamos, a seguir, um desenho esquemtico (idealizado

    pelo Dr. Roberto Assagioli, cultor da Psicossntese) muito til para a compreenso da estrutura do inconsciente.

    6

    N\

    \! . . ./ i / i \I ------------------ 7 ---------------- - t 1 . Inconsciente inferior ou/ \ subconscienteI / I n .

    7 j / 4 ' 1 , 2 . Inconsciente mdio ou

    3. Inconsciente superior ou1 Superconsciente // 4. Campo da conscincia

    \ 1 / 7 5 , Eu consciente6 . Eu espiritual7. Inconsciente coletivo

    \ \ /

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  • Com base nesse esquema, verifica-se que existe, alem do inconsciente pessoal, tambm um inconsciente coletivo, cuja presena foi intuda recentemente por Jung e muitos outros.

    Essa descoberta poderia trazer uma confirmao s teorias espiritualistas de que existe uma psique coletiva de toda a humanidade, uma dimenso subjetiva comum que no pode ser percebida a no ser atravs do inconsciente, e que, na realidade, une os homens em um contnuo e misterioso intercmbio de energias, de influncias, de experincias, de mensagens telepticas, em uma unidade vivente.

    O mundo inconsciente , na realidade, um mistrio, uma terra desconhecida repleta de foras, energias, perigos e surpresas que ainda sero totalmente descobertos.

    Sri Aurobindo tambm afirma: O subconsciente de que fala a moderna psicologia somente parte de um mundo quase to amplo como o supraconsciente...

    De fato, ele atribui mxima importncia ao Superconsciente, a que chama supraconsciente, afirmando: O supraconsciente o verdadeiro fundamento, no o subconsciente. No analisandoo segredo da lama de onde nasce o ltus que ser possvel explicar a sua existncia; o segredo do ltus est no arqutipo divino que floresce eternamente no alto, na luz.

    Ns, todavia, para evoluirmos e chegarmos, enfim, a realizar a nossa verdadeira natureza, devemos conhecer os meandros obscuros do inconsciente inferior para nos libertarmos do passado, desmanchar as incrustaes, resolver os conflitos e, sobretudo, libertar as poderosas energias que esto presas e que fervem nele, e canaliz- las em direo a objetivos teis e benficos.

    Ningum pode alcanar o cu se no tiver passado pelo

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  • . inferno. De fato, o Cristo desceu aos Infernos para libertar os; vivos e os mortos antes de subir ao Cu, e essa descida simboliza! exatamente o caminho evolutivo interior do homem, que deve pene

    trar nas profundezas de si mesmo e trazer luz todas as suas nega- tividades e impurezas para transmut-las e sublim-las, antes de subir ao Cu.

    f No incio desta lio, dissemos que a nossa conscincia ! suscetvel de desenvolvimento, e, de fato, medida que progredimos,

    ela se desloca em direo quilo que agora superconsciente, abandonando o passado e tomando atual at mesmo o futuro.

    Na realidade, no exato dizer que se desloca , pois, ao contrrio, o superconsciente que penetra nela, a luz que a permeia pouco a pouco, dispersando toda e qualquer sombra e vencendo toda resistncia.

    o porvir que nos impele, no o passado, a luz do alto que pouco a pouco penetra em nossa noite.

    o nosso verdadeiro Si que nos orienta e dirige, mesmo que ainda no esteja agindo a nvel inconsciente, ou melhor, superconsciente, e aquilo que ora reconhecemos como eu somente o seu reflexo distorcido e limitado.

    Todavia, a verdade destas afirmaes, para ser aceita e acreditada, deve ser experimentada, realizada, e o nico caminho que temos para chegar a essa realizao direta o conhecimento de nosso

    I mundo interior, dos vrios nveis de nossa psique, o contato com arealidade subjetiva, que nos abrir o caminho para aquela camada da conscincia que, por enquanto, parece-nos desconhecida, duvidosa e inalcanvel.

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  • Captulo III

    RELAES ENTRE CONSCIENTE E INCONSCIENTE

    Chegamos, portanto, hoje em dia, a uma concepo pluri- dimensional da psique humana em que todos os aspectos, superiores e inferiores, conscientes e inconscientes, tm a sua funo especfica e a sua importncia.

    0 eu pessoal, com o seu campo de conscincia, j no soberano na psique, mas toma-se somente um ponto de encontro de vrios estmulos, de vrias energias, e o instrumento movido e acionado por impulsos e exigncias a ele inconscientes ou super- conscientes.

    Todavia, devemos no mais ser autnomos, mas donos, no mais marionetes acionadas por foras inconscientes, mas senhores do drama que encenamos nesta vida.

    Devemos passar do estgio em que somos vividos para o estgio do eu consciente e, para tanto, necessrio que conheamos todas as energias e todos os nveis de conscincia que constituem a nossa personalidade, a fim de transformar o nosso eu limitado, condicionado, passivo, em conscincia livre, autnoma e inclusiva do Si, que a nossa verdadeira essncia.

    Tal realizao a meta para a qual tende inconscientemente

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  • todo o nosso ser, o objetivo final de todos os conflitos, de todos os sofrimentos da nossa vida, e a tanto chegaremos somente quando tivermos reunido, numa unidade superior, a anttese entre o consciente e inconsciente, e tivermos estabelecido uma harmoniosa colaborao entre as exigncias e os impulsos desses dois aspectos de ns mesmos.

    Eis por que muito importante que aprendamos a estabelecer relaes entre o consciente e as vrias regies do inconsciente, e que cheguemos a um equilbrio entre esses dois plos para que possa emergir, de sua integrao, a totalidade do nosso ser, o Si.

    Na realidade, entre consciente e inconsciente existe uma relao de polaridade. De fato, representam eles os dois plos opostos de nossa psique: o consciente, com a sua racionalidade, a sua vontade, o plo positivo; o inconsciente, com os seus impulsos, as suas emoes, as suas intuies, a sua carga de vitalidade, a sua ambigidade, o plo negativo. O equilbrio, a harmonia do indivduo, surge de um fluxo harmonioso, livre, rtmico, da energia psquica entre esses dois plos.

    Jung chama a este fluxo e refluxo interior, semelhante ao movimento das sstoles e distoles do corao, de progresso e regresso . A progresso o movimento em direo ao exterior, isto , a adaptao ativa ao ambiente, e a regresso o movimento em direo ao interior, isto , a adaptao s prprias exigncias interiores.

    Esses opostos que esto em ns tm uma funo reguladora e estabilizadora, de acordo com a lei de enantiodromia (j descoberta centenas de anos atrs por Herclito) que se poderia formular da seguinte maneira: Transformao reversvel de condies naturais ou artificiais .

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  • Todavia, o homem, antes de alcanar o equilbrio entre esses dois movimentos interiores da energia psquica, deve passar por um longo processo de amadurecimentos, por vrias fases e tomadas de conscincia.

    A relao harmoniosa entre consciente e inconsciente representa uma meta a ser alcanada, no sem dificuldades, pois muitos so os que, inconscientemente, criam um obstculo, um anteparo entre o eu consciente e as regies profundas de sua psique.

    Esse anteparo foi produzido pela represso , sobretudo no que diz respeito ao inconsciente inferior.

    A remoo um mecanismo inconsciente que se formou pouco a pouco em conseqncia da represso voluntria, repetida e contnua, de impulsos instintivos, desejos, estados de esprito, lembranas que por uma razo ou outra repugnam ao consciente. Essa represso, voluntria num primeiro momento, dada a tendncia inata para formarmos hbitos, toma-se uma reao automtica inconsciente que impede o eu de perceber no somente o impulso ou o estado de esprito, mas tambm a represso, a ponto de acontecer de o indivduo acreditar no ter mais determinados desejos, determinadas emoes, determinadas exigncias.

    Ao contrrio: ainda subsistem nas profundezas do inconsciente, vivos e pulsantes, mas um complexo mecanismo de resistncia os impede de se manifestarem conscincia.

    Esse mecanismo inconsciente de resistncia foi chamado por Freud remoo .

    preciso dizer, no entanto, que, mesmo quando no h remoo, o inconsciente inferior pode ser percebido com certa dificuldade por um processo natural de aparente esquecimento, fazendo-se necessrias associaes para fazer com que se manifeste novamente

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  • conscincia. Sabe-se que o mecanismo psicolgico que normalmente serve para evocar as lembranas a associao de idias.

    A associao de idias o instrumento, seno necessrio, pelo menos ordinrio da memria... Como quer que reaparea, o passado normalmente lembrado atravs de uma mediao, A relao existente entre o passado e o seu mediador aquilo que chamamos associao de idias, diz Maurice Pradines em seu Trait de psychologie. E j que o inconsciente inferior, como vimos, representa sobretudo o passado, necessria a mediao das associaes para fazer que reaparea.

    Essa tambm foi uma descoberta de Freud, que a transformou num mtodo de anlise, e foi justamente atravs deste mtodo que ele se deu conta da resistncia que se ope, em alguns casos, ao reaparecimento de determinadas lembranas, o que ele chamou justamente de remoo .

    Um outro obstculo percepo do inconsciente deriva do fato de sermos quase sempre extrovertidos em demasia, por demais concentrados na ao, no agir, gerando uma hipertrofia do aspecto consciente, virando as costas, por assim dizer, vida inconsciente, que, para poder manifestar-se, necessita de calma, relaxamento, silncio.

    O inconsciente, todavia, mesmo se reprimido, esquecido, ignorado, procura sempre, por tendncia natural, manifestar-se conscincia, e infiltrar-se de mil maneiras nas atividades conscientes.

    Os lapsos, as amnsias, os erros, as aes sintomticas, to bem-estudados e observados por Freud1, so todos tentativas do

    1 Quem deseja aprofundai-se no assunto, deve ler o livio: Psicopatologia da vida cotidiana, de Freud.

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  • inconsciente de fazer com que sintamos a sua presena e que esta transparea na conscincia atravs de mensagens e smbolos que nem sempre compreendemos.

    O caminho principal, porm, atravs do qual o inconsciente procura manifestar-se ao consciente so os sonhos.

    Desde a Antigidade o homem percebeu que os sonhos deviam ocultar um mistrio, mas somente muito mais tarde que ele foi se ocupar desse problema de maneira cientfica, podendo-se dizer que somente com Freud o estudo dos sonhos observou um efetivo progresso.

    Entretanto mesmo Freud e a sua escola no entenderam a importncia do sonho em sua verdadeira extenso, pois viram nele somente a manifestao de instintos e desejos reprimidos que procuram satisfao sob forma simblica.

    Foi exatamente-Jung, com a sua Psicologia Analtica, quem abriu um novo horizonte interpretao da vida onrica, sendo o seu conceito do sonho bem-sintetizado por uma aluna sua, Ania Teillard (tambm psicanalista), ao afirmar que todos os sonhos, ... sem exceo, devem ser considerados uma emanao psquica proveniente da totalidade da psique e do conjunto da vida. O sonho conduz at a conscincia do sonhador elementos desconhecidos, cumprindo, dessa maneira, uma funo complementar e compensatria (// simbolismo dei sogni, p. 17).

    O sonho, portanto, nos coloca frente no apenas s regies inferiores da psique, ao subconsciente, ao passado ou aos instintos reprimidos, mas tambm ao inconsciente mdio, ao superconsciente e ao inconsciente coletivo2.

    2 O assunto dos sonhos ser tratado mais detalhadamente num dos prximos captulos.

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  • Uma outra maneira de estabelecer ou de tomar mais fluida a relao entre consciente e inconsciente utilizando-a. Sabemos que j existe uma relao de colaborao entre o eu consciente e a psique inconsciente, pois esta ltima que comanda todos os automatismos, todos os hbitos que se formaram em ns e que facilitam a nossa vida. por um mecanismo automtico inconsciente que a criana aprende a escrever e, da mesma forma, o adulto a tocar um instrumento, a dirigir o automvel, a escrever mquina, etc.

    Alm disso, mesmo quando pensamos, escrevemos ou falamos, o lado inconsciente de nossa mente que faz a maior parte do trabalho, mesmo sem nos darmos conta, e nos apresenta as idias e os conceitos j prontos e elaborados. Na mente consciente, vemos somente os resultados de uma elaborao inconsciente.

    Podemos utilizar conscientemente essa tendncia do nosso inconsciente para cooperar com a conscincia e, assim, nos abrir a um mundo de infinitas possibilidades e potencialidades.

    O inconsciente, por natureza, eminentemente plstico, influencivel, impressionvel e tem o hbito de reelaborar, organizar e realizar o que recebe.

    Utilizando essas caractersticas do inconsciente, alguns psiclogos (como Cou, Baudoin, Assagioli, etc.) elaboraram mtodos e tcnicas de cooperao consciente com as energias profundas.

    O inconsciente como uma terra frtil que recebe uma semente; depois de um determinado tempo, faz que ela germine e amadurea. H nele uma parte que j semeamos, e freqentemente com sementes nocivas, e uma outra parte que deve ainda ser revolvida e cultivada que est sempre ao nosso alcance e pronta para ser fertilizada, sendo, portanto, da mxima importncia fecund-la com sementes positivas e construtivas.

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  • Veremos, em seguida, como isso pode ser realizado de maneira tcnica.

    Para encerrar agora este captulo, no devemos nos esquecer das relaes entre o consciente e o Superconsciente, que representam as nossas potencialidades mais elevadas, a ponte que nos liga nossa parte espiritual latente.

    Mesmo entre o Superconsciente e o consciente, s vezes h um espesso diafragma, porque pode acontecer, com mais freqncia do que se supe, de o homem negar a sua natureza divina, de remover da conscincia os impulsos espirituais, nobres, elevados, que provm do Si. De fato, mesmo os contedos do Superconsciente podem ser reprimidos e removidos pelo eu pessoal, que no qyer ceder a sua supremacia e superar o seu egosmo, o seu orgulho, a sua exclusividade.

    Se ignoramos com certa freqncia ou queremos ignorar os instintos da nossa natureza humana, da mesma forma quase sempre ignoramos os impulsos e as exigncias da nossa natureza divina, a ponto de provocarmos em ns mesmos crises, sofrimentos, neuroses, pela represso de exigncias espirituais, como afirmam Frankl, Caruso, Daim, Jung e muitos outros.

    Devemos, ento, aprender a estabelecer relaes de colaborao e de equilbrio entre a nossa parte consciente e as vrias reas do inconsciente, percorrendo um caminho de amadurecimento por vezes difcil e spero, por vezes perigoso e ingrato, mas que nos levar, enfim, auto-realizao. Esse caminho chamado por Jung de processo de individuao , sendo, na realidade, o mesmo caminho percorrido pelos msticos, os santos, os espiritualistas e todos aqueles que aspiram reencontrar a Divindade dentro de si para se tomar verdadeiros homens.

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  • I

  • Captulo IV

    O SIMBOLISMO DO INCONSCIENTE

    Para comear a estabelecer relaes harmoniosas entre o consciente e o inconsciente, a primeira coisa a ser feita procurar entender a sua natureza, as suas caractersticas e, sobretudo, a sua linguagem . De fato, o inconsciente se exprime de uma forma totalmente particular, no-direta e no-racional, e sim indireta, irracional e crptica. Em outras palavras, exprime-se atravs de smbolos.

    Mas o que significa realmente a palavra smbolo?Etimologicamente, o termo smbolo vem do grego symbolon,

    que significa juntar , confrontar , colocar em relao , indicando, portanto, a conexo lgica de dois termos ou dados, em que cada um participa, juntamente com o outro, de uma determinada relao.

    Jung diz que o que chamamos smbolo um termo, um nome ou mesmo uma representao que pode ser familiar na vida de todos os dias, mas que possui aspectos especficos, alm de seu significado bvio e convencional . Podemos dizer, de fato, que qualquer coisa pode assumir o significado de smbolo.

    O homem se serve continuamente de smbolos, porque

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  • o smbolo humano... uma formao natural que irrompe da prpria natureza psicolgica do homem, na qual exerce um papel de elemento de integrao (Marchesini).

    Todavia, surge espontaneamente a pergunta: Por que o inconsciente se exprime por smbolos?

    Os psicanalistas freudianos afirmam que o inconsciente, sobretudo nos sonhos, se exprime por smbolos porque existe uma censura, criada pela remoo, que faz com que os desejos reprimidos, as instncias, os impulsos instintivos no se manifestem claramente, mas de uma forma disfarada, mascarada, de modo a no serem reconhecidos pela censura interior, o Superego, que , como dissemos anteriormente, a conscincia moral interiorizada.

    Trata-se de uma resposta muito limitada, mesmo contendo uma parte de verdade, pois no podemos considerar o inconsciente somente como um receptculo de instintos reprimidos ou de lembranas traumticas adquiridas. Como vimos, o inconsciente muito mais que isso. Chega a ser um mundo, uma outra dimenso que se estende em profundidade e em altura, por assim dizer, e que nos coloca em contato com estados de conscincia e de vida ainda inexplorados.

    Para o Zen-budismo, o inconsciente mesmo a fonte da criatividade infinita, pois ele faz coincidir tudo o que est alm da nossa conscincia limitada e ilusria com o inconsciente. O inconsciente, na acepo Zen, sem dvida o mistrio, o desconhecido... Mas isso no significa que ele esteja alm do alcance da conscincia, isto , algo com que nada temos a ver. Ao contrrio, ele efetivamente o que temos de mais ntimo, sendo justamente por isso que to difcil agarr-lo, da mesma maneira que o olho no pode ver a si mesmo. (Psicanalisi e Buddismo Zen, de Fromm, Suzuki, De Martino, p. 27.)

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  • i Portanto, voltando ao simbolismo do inconsciente, nSo podemos consider-lo somente como uma necessidade de disfarce, mas devemos enxerg-lo como expresso de uma tendncia inata que surge da prpria natureza do inconsciente, que irracional, imaginativo, carregado de emotividade e plasticidade.

    O inconsciente se exprime atravs de smbolos, porque o smbolo a linguagem espontnea e natural da alma humana, livre das ilaes da lgica, do intelectualismo, do tecnicismo assptico.

    O homem primitivo e a criana esto, freqentemente, mais prximos do entendimento da linguagem simblica do que o homem civilizado e o adulto, bem como o artista e o mstico, pois a mente racional impede a compreenso dos smbolos que surgem da intuio.

    extremamente importante que o homem readquira sua sensibilidade para a linguagem simblica, sensibilidade que talvez lhe tenha pertencido em pocas remotas, se deseja conhecer o inconsciente e criar uma ponte com ele.

    O inconsciente se exprime atravs de smbolos no apenas nos sonhos, mas tambm na vida de todos os dias, por sinais, sintomas, manifestaes de diversos tipos.

    Por exemplo, muitos distrbios e mal-estares fsicos que nos afligem periodicamente sem apresentar uma causa fisiolgica patognica so mensagens de desarmonias inconscientes que se exprimem de maneira simblica.

    , Se sentimos, em determinadas ocasies, dificuldades para engolir, isso significa que talvez no tenhamos conseguido engolir" uma determinada situao. Conscientemente, no reconhecemos essa dificuldade, mas o nosso inconsciente que insiste em que entendamos a realidade das coisas.

    Distrbios digestivos, especialmente o enjo, que se manifesta

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  • ciclicamente, querem nos fazer entender que h uma determinada situaSo, ou uma determinada pessoa, que no podemos digerir.

    Assim, tambm a asma, em determinados casos, pode significar que a atmosfera de casa irrespirvel.

    A medicina psicossomtica baseia-se justamente nesses distrbios, que, se no-compreendidos, podem conduzir a verdadeiras doenas orgnicas com o tempo.

    Os lapsos, os esquecimentos, as aes no-executadas etc., a que se refere Freud em seu livro Psicopatologia da vida cotidiana, tambm so, na realidade, mensagens simblicas do inconsciente.

    Alm disso, na arte, sobretudo na pintura e no desenho livres, o inconsciente se manifesta de maneira muito evidente, a ponto de o desenho espontneo ser utilizado, inclusive, como mtodo de diagnstico e, s vezes, teraputico.

    No devemos nos esquecer de que a maneira por que o inconsciente se exprime em todos os nveis a imagem, e por esse motivo tanto o desenho como a pintura podem ser veculo de comunicao entre as profundezas e a conscincia.

    Essa tendncia do inconsciente para exprimir-se atravs de imagens foi utilizada tambm no mtodo introduzido por Roger Desoille, mtodo chamado do rve evill, ou seja, sonho desperto, o qual controlado.

    Tal mtodo consiste em sugerir ao paciente, estendido em posio relaxada, em um quarto semi-escuro, uma imagem ou uma cena que ele, em seguida, deve ampliar segundo a sua imaginao, sempre, porm, guiado e sustentado pelo psiclogo nos momentos mais difceis.

    Essa tcnica, que inicialmente pode parecer quase uma brincadeira, proporcionou, no entanto, resultados extremamente inte-

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  • j ressantes e, em inmeros casos, levou o paciente cura, pois ela catalisadora de contedos simblicos provenientes do subconsciente e aciona as energias psquicas autocurativas.

    Na realidade, um sonho de indivduos acordados que tem todas as caractersticas do verdadeiro sonho, com a vantagem de ter a qualidade teraputica de todos os processos de auto-reconheci- mento, pois a conscincia est presente e pode produzir uma catarse.

    As imagens que afloram espontaneamente so inteiramente semelhantes s do sonho e possuem natureza idntica dos smbolos onricos.

    Todavia, deve-se reconhecer que a presena da conscincia pode, em determinados casos, produzir modificaes e alteraes na mensagem proveniente do inconsciente; eis por que, afinal, quando o objetivo no uma viso integral, devemos admitir que somente no estado de sono que o inconsciente tem maior liberdade para se manifestar, e somente ento que, atravs das imagens dos sonhos, afloram os smbolos mais interessantes e autnticos, carregados de significado e foras especficas.

    Os smbolos do inconsciente que aparecem nos sonhos contm de fato energia vivente. Eles vivem. NSo so meras representaes abstratas e mentais, mas um condensado de energia psquica proveniente do reservatrio vital do homem; tm, portanto, uma intensidade de vida especfica e so capazes de produzir efeitos especficos no indivduo.

    Os smbolos onricos, contrariamente ao que afirmava Freud, no so smbolos fixos, mas variam tanto de contedo como de significado, de indivduo para indivduo, dependendo do temperamento, da educao, do nvel cultural e moral etc.

    Um artista, por exemplo, ter em seus sonhos imagens extre-

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  • mamente diferentes das de um matemtico; um mstico produzir smbolos onricos diferentes dos de um militar; assim, um homem grosseiro e inculto nunca poder sonhar o mesmo que um filsofo...

    Todavia, ao lado desses smbolos individuais variveis, h tambm smbolos fixos, que Jung chama de arqutipos , os quais tm um carter e um significado diferente dos outros smbolos, porque contm uma energia muito mais intensa e colocam o homem em contato com camadas mais profundas do inconsciente, camadas atvicas primordiais e coletivas que pertencem a toda a humanidade. Essas camadas mais profundas tm um contedo que pode ser primitivo, arcaico, proveniente de idades remotas, ou ento um contedo muito elevado, religioso, mstico e esotrico, proveniente do lado mais elevado da humanidade, do seu patrimnio coletivo de sabedoria e espiritualidade.

    Jung diz que somente os arqutipos esto carregados de emoes , j que so, ao mesmo tempo, imagem e emoo .

    Quando na imagem est implicada a emoo, a imagem adquire um carter numinoso (ou seja, uma energia psquica): esta se tom a dinmica e deve produzir efeitos de alguma monta.

    Um aspecto extremamente importante dos smbolos do inconsciente que eles tm uma funo e uma finalidade, e podem ser utilizados. Se os smbolos onricos so entendidos e assimilados pela conscincia, podem acarretar modificaes na personalidade e favorecer o processo de transformao e amadurecimento.

    Um smbolo pode ser catalisador de energias e favorecer a sublimao.

    Eis por que, se um sonho vem a ser especialmente significativo e carregado de simbolismo, torna-se necessrio refletir sobre ele durante alguns dias e procurar meditar sobre esses smbolos, que

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  • , certamente esto cheios de significado e tm uma finalidade auto-formativa e evolutiva para a nossa personalidade.

    A descoberta do significado real de um smbolo pode desvendar ao homem foras latentes em sua alma, das quais, at ento, ele ignorava a existncia. (Ania Teillard: O simbolismo dos sonhos.)

    , portanto, de suma importncia desenvolver a capacidade de interpretar os smbolos para compreender a nossa verdadeira natureza e as nossas verdadeiras exigncias, que jazem no mais profundo de ns mesmos, e para poder utilizar as formidveis energias encerradas em nosso inconsciente.

    Seria demasiado exaustivo e at mesmo extremamente complexo tentar uma enumerao e uma descrio, mesmo que sumria, desses smbolos arquetpicos que aparecem nos sonhos, inclusive considerando o fato de que existem livros especializados que tratam desse assunto1.

    Interessa-nos, sobretudo, a implicao espiritual que decorre de tudo o que foi dito at agora, isto , que se o inconsciente se exprime atravs de smbolos em todos os nveis, mesmo no superego, que , por assim dizer, o reflexo do Si, exprimir-se-a' atravs de smbolos e procurar enviar mensagens e ensinamentos ao nosso eu consciente por esse meio.

    preciso, ento, que nos tomemos sensveis a essa linguagem simblica e crptica, o que possvel pelo desenvolvimento da intuio.

    O homem, muitas vezes, no d importncia a essa faculdade

    1 Por exemplo, o belssimo livro, L uomo e i suoi simboli, de Carl Jung, Editore Casini.

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  • inata que nele existe, chegando mesmo, s vezes, a se envergonhar dela (segundo palavras de Van der Leeuw), pois est por demais habituado a dar importncia mente lgica, ao raciocnio, que lhe parecem mais slidos e certos.

    Mas a realidade - no somente a nossa, mas de tudo o que nos envolve e de todas as manifestaes nunca poder ser alcanada sem que o intelecto seja iluminado pela intuio.

    O estudo dos smbolos nos levar a desenvolver a intuio e a entender, portanto, o mundo dos significados.

    Tudo o que nos envolve smbolo de uma Idia Divina; ns mesmos somos smbolos de uma Realidade Espiritual, e isso o nosso inconsciente sabe perfeitamente e procura transmitir-nos continuamente.

    Portanto procurar decifrar os smbolos provenientes do inconsciente no somente um trabalho de auto-anlise, mas tambm de transformao de ns mesmos, de tomada de conscincia da nossa natureza e de integrao com aqueles aspectos superiores latentes que constituem a nossa herana divina.

    Eis por que nas escolas espiritualistas d-se tanta importncia ao estudo dos smbolos e meditao sobre os smbolos, o que no somente uma tcnica cognoscitiva, mas um verdadeiro processo interior de transformao de energias acionado pelo prprio smbolo examinado.

    Portanto, mais uma vez, devemos reconhecer a misteriosa sabedoria oculta em nosso inconsciente e sua qualidade de intermediria entre o mundo dos significados e das causas, mundo que ainda nos parece nebuloso e irreal, mas que, no entanto, o mundo da luz e da realidade.

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  • ;Captulo V

    OS SONHOS

    O homem, desde a Antigidade, sempre se sentiu atrado pelos sonhos, considerando-os um misterioso intermedirio dos mundos hiperfsico e divino, mas somente muito mais tarde comeou a estud-los cientificamente e a entender a sua verdadeira funo e a sua real importncia.

    Foi exatamente a descoberta do inconsciente que trouxe uma nova luz ao conhecimento da vida onrica, livrando-a das supersties e das fantasias, abrindo um novo horizonte para a compreenso do esprito humano e de seus problemas profundos.

    Alm da psicanlise, a medicina tambm contribuiu para esclarecer ainda mais o problema dos sonhos, com as investigaes, os estudos e as experincias efetuadas sobre o mecanismo do sono, que sempre interessou muito os cientistas devido s numerosas questes e perplexidades que suscita.

    A cincia, na verdade, ainda hoje no sabe com certeza por que o homem dorme, por que ele passa um tero de sua vida dormindo, muito embora os estudos especficos sobre o mecanismo do sono dessem interessantes resultados e respostas, no tanto sobre o por que se dorme, mas sobre o como se mergulha do sono, sobretudo sobre a funo dos sonhos.

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  • A primeira descoberta de fato importante que resultou dessas investigaes foi a de que todos, indistintamente, sonhamos, pelo menos duas horas todas as noites, e se temos a impresso de no ter sonhado porque no gravamos isso em nossa memria.

    A segunda descoberta, esta tambm de enorme relevncia, a de que os sonhos tm uma importncia vital para a sade psquica do indivduo.

    As investigaes e as observaes sobre o mecanismo fisiolgico do sono tm possibilitado esclarecimentos inclusive sobre a vida onrica e sobre seu verdadeiro significado. Todavia preciso dizer que essas investigaes puderam ser realizadas somente depois da descoberta de que o crtex cerebral sede de ininterruptas manifestaes bioeltricas, as quais podem ser amplificadas e gravadas atravs de um eletroencefalograma.

    Por esse meio, entre outros, os estudiosos puderam constatar que o sono notumo se caracteriza por dois estgios extremamente diferentes, pelos quais passamos sem nos dar conta.

    O primeiro estgio do sono chamado slow sleep (sono lento ), pois, quando um indivduo adormece, o quadro eletroence- falogrfico tpico do estado de viglia, caracterizado por ondas rpidas e regulares, transforma-se gradativamente num quadro onde aparecem ondas cada vez mais lentas e irregulares. Esse primeiro sono um tanto leve e provm do crtex cerebral.

    Pouco a pouco, a influncia inibidora que provoca o sono desce, atravs de ondas sucessivas, at a parte baixa do crebro, onde ento entra em ao o segundo estgio de sono, chamado sono pn- tico, justamente porque depende de um ponto existente no tronco cerebral que se chama, exatamente, ponte . Esse segundo sono muito mais profundo que o primeiro e produz, estranhamente, sobre

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  • 0 eletroencefalograma, ondas muito rpidas, formando um quadro muito semelhante ao do estado de viglia. Esse estgio do sono foi denominado sono paradoxo, ou fast sleep ( sono rpido).

    Os sonhos aparecem exatamente durante o sono paradoxo.De fato, os indivduos que despertavam em meio a essa fase

    diziam todos, indistintamente, que estavam sonhando, ao passo que os despertados em meio ao primeiro sono relataram no estarem sonhando ainda.

    As descobertas avanaram ainda mais, j que foi tambm verificado, em decorrncia de numerosas investigaes e observaes que no deixam possibilidades a dvidas, que o sono paradoxo (o sono acompanhado de sonhos) necessrio para a sade e o equilbrio do indivduo. Portanto os cientistas chegaram concluso de que o sono no somente um perodo de descanso, em que o homem tempera novamente as suas foras, mas um estado indispensvel e necessrio, justamente porque permite a atividade onrica, que se revelou um fator fundamental para a sade psquica do homem.

    Afirma o prof. Ludovico Julio, da Universidade de Turim:Talvez a propalada indispensabilidade do sono paradoxo

    esteja justamente relacionada com o seu contedo onrico, testemunho de uma libertao, atravs do mecanismo do sonho, do inconsciente bloqueado no estado de viglia.

    No devemos nos esquecer, como j dissemos anteriormente, de que a relao entre consciente e inconsciente , na realidade, uma relao de polaridade, e que a energia psquica corre entre esses dois plos. 1

    1 Ver captulo III.

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  • Durante o dia, dirigimos a nossa energia psquica para o exterior, focalizamo-nos no consciente, enquanto noite nos retiramos para o mundo psquico, sendo os sonhos exatamente testemunhos e lembranas da atividade desse mundo.

    De fato, dizem os psiclogos, muito freqentemente a insnia se deve a um medo do inconsciente, a uma resistncia do eu consciente em entrar em contato com o outro plo de si mesmo, talvez porque exista algum conflito ou problema no-resolvido que o consciente no quer ou no sabe enfrentar.

    O sonho, portanto, nos revela as exigncias, os problemas, as atividades do nosso inconsciente, muito mais complexos e multi- formes do que se supe. A vida do inconsciente, na realidade, tem uma extenso muito mais ampla do que se julgou nos primeiros tempos da psicanlise, colocando-nos em contato com dimenses e nveis no somente individuais, mas tambm coletivos e universais.

    Quando estamos despertos, somos prisioneiros do nosso eu consciente e das limitaes de lugar, espao e tempo, mas, quando dormimos, entramos numa nova dimenso, diferente, onde nos sentimos livres, onde espao e tempo so anulados, onde as distncias no existem, onde h o eterno presente.

    Eis por que quase sempre possvel, atravs dos sonhos, ter percepes, sensibilidades telepticas, premonies, vises que nos deixam atnitos e perturbados. Por esse motivo, a parapsicologia tambm se interessa muito pelo problema dos sonhos, desenvolvendo estudos e investigaes a seu respeito.

    Devemos nos convencer, conforme as palavras de Oliver Queant, de que toda a vida passa atravs de nosso corpo, mas que no estamos no nosso corpo . De fato, o nosso verdadeiro Eu, mesmo servindo-se do corpo como instrumento de manifestao,

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  • tem uma sua vida que se estende para l dos limites da dimenso fsica, que somente o ltimo precipitado de sua atividade.

    Portanto, a vida onrica importante por vrias razes, que poderamos sintetizar da seguinte maneira:

    i1 ) importante de um ponto de vista psicolgico, pois tem

    por funo reequilibrar a vida psquica do indivduo, compensando eventuais represses e estabilizando a atividade excessiva do consciente;

    2 ) importante como fonte de cooperao, de ajuda e inspirao, pois contm as premissas reais e as exigncias autnticas do nosso ser e a memria arcaica de toda a sabedoria da humanidade;

    3) importante porque nos coloca em contato com as camadas superiores da nossa psique, como o superconsciente, podendo, portanto, constituir fonte de revelaes e iluminaes;

    4) importante porque nos prova que no existe separao entre os indivduos no plano subjetivo e que espao e tempo so parmetros que se exercem somente no plano fsico.

    Os pontos apresentados nos permitem entender que existe uma enorme variedade de sonhos, desde aqueles aparentemente mais banais at os que contm um ensinamento, uma revelao ou um significado especial.

    Portanto no fcil tentar fazer uma subdiviso dos sonhos em categorias.

    Conta-se que Plnio subdividiu os sonhos em duas grandes categorias: os comuns e os enviados pelos deuses .

    Hoje em dia, essa subdiviso ainda seria vlida, pois tambm ns passamos pela experincia dos sonhos comuns, aparentemente

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  • banais, e dos sonhos mais raros, que parecem conter uma mensagem ou uma revelao.

    Todavia, j foi comprovado pela psicologia de profundidade, especialmente pela escola de Jung, que n o existem sonhos banais, que todos os sonhos so psicologicamente importantes. A diversidade, portanto, dos sonhos, dada somente pelas diferentes camadas do inconsciente que atravs deles se manifesta. De fato, quanto mais nos aprofundamos, mais os sonhos se tomam impessoais, simblicos, carregados de significados universais.

    Alm do mais, mesmo as assim chamadas percepes extra- sensoriais, isto , a telepatia, a premonio etc. verificam-se todas atravs do inconsciente, que no somente pessoal, mas tambm coletivo, constituindo uma espcie de matria condutora e unificadora de todas as unidades psquicas individuais.

    Portanto a nica subdiviso lgica que podemos fazer a seguinte:

    1 ) sonhos que derivam do inconsciente individual:a) inferior;b) mdio;c) superior.

    2 ) sonhos que derivam do inconsciente coletivo;a) inferior;b) mdio;c) superior.

    Como distinguir os sonhos que provm do inconsciente individual daqueles que derivam do inconsciente coletivo?

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  • No fcil dar indicaes exatas: a nica coisa certa a diferena dos smbolos que aparecem.

    Em geral, os smbolos dos sonhos pessoais so foijados a partir da vida cotidiana. Todas as coisas, todos os objetos, todas as pessoas que aparecem nesses sonhos podem assumir um carter de smbolo. Alm disso, a ao que se desenvolve no sonho parece ser a repetio da vida cotidiana, mesmo que s vezes parea um tanto ilgica e absurda. Freqentemente, o indivduo, justamente por essa razo, no d maior importncia a esses sonhos, pois julga que sejam somente uma manifestao de imagens e lembranas do dia. No entanto eles tm muita importncia de um ponto de vista psicolgico, pois no so apenas a repetio mnemnica de aes desenvolvidas no estado de viglia, mas a reelaborao subconsciente destas, a motivao profunda e real daquilo que fizemos e sentimos no estado consciente.

    Alm do mais, no devemos nos esquecer da funo compensatria e complementar dos sonhos, que se revela oniricamente em detalhes, em atos que podem parecer insignificantes mas que, ao contrrio, so extremamente importantes.

    Afirma Ania Teillard, aluna de Jung, em seu livro, O simbolismo dos sonhos: Todo detalhe dos nossos sonhos tem por finalidade nos comunicar algo de especial e se exprime por uma linguagem simblica.

    Nos sonhos que derivam do inconsciente pessoal, alm do mais, os smbolos so individuais, isto , no so os mesmos para todos, mas mudam, dependendo do indivduo que sonha. Cada pessoa tem smbolos convenientes ao seu psiquismo, ao seu grau de maturidade, ao seu temperamento, s suas experincias.

    Pelo contrrio, os smbolos que provm do inconsciente coletivo so smbolos universais, portanto fixos .

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  • Tais smbolos universais e fixos so os que Jung chamou arqutipos (falamos a respeito no captulo precedente), pois pde constatar, atravs da anlise de milhares de sonhos de seus pacientes, que eles so imagens primordiais, mticas ou religiosas, que sempre existiram e que se renovam eternamente , pois simbolizam a alma humana em seu caminho evolutivo. O inconsciente conservou essas imagens primordiais e arcaicas e as reproduz nos sonhos, pois ns, seres humanos, no somos apenas portadores das nossas experincias individuais, mas tambm das de nossos antepassados e de toda a humanidade.

    Uma coisa extremamente importante que devemos mencionar que os sonhos provm das camadas mais profundas e elevadas do inconsciente, seja pessoal ou coletivo, revelando que no homem est em curso um constante e gradativo (se bem que muito lento) processo de evoluo e de transformao que parece conduzi-lo a uma meta, talvez ignorada pelo eu consciente, mas muito conhecida do inconsciente.

    Esse processo foi denominado por Jung de processo de individuao , pois, atravs de sucessivas acomodaes e amadurecimentos, conduz o homem sua verdadeira individualidade, ao seu Si (Selbst), que sntese dos dois plos e totalidade perfeita.

    Nisso tambm vemos uma semelhana e uma analogia com o que afirmam as doutrinas espiritualistas e esotricas, isto , que a vida do homem, suas experincias, seus conflitos, seus sofrimentos tm uma finalidade bastante precisa: fazer que ele amadurea e se tome consciente de seu verdadeiro Eu, o Si, aps

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  • gradativas e sucessivas harmonizaes e integraes de todos os aspectos do eu inferior, a personalidade2.

    Ento, nos sonhos do indivduo que atingiu um certo grau de amadurecimento, revelam*se as diferentes fases desse processo de inviduao, atravs de imagens simblicas e carregadas de significado e energia, estranhamente semelhantes aos smbolos da alquimia3.

    Por exemplo, h uma infinidade de smbolos que representam os nossos princpios feminino (o inconsciente) e masculino (o consciente).

    Como se sabe, em cada um de ns existem os princpios feminino e masculino (Yin e Yang, de acordo com a filosofia chinesa), ou seja, Eros e Logos, os quais devem ser harmonizados e integrados para que possa emergir a totalidade do nosso ser, o homem integral4.

    Com base no que foi dito, toma-se claro o fato de que no fcil interpretar os sonhos, de que preciso uma grande experincia no assunto para arriscar uma explicao.

    Por exemplo, seria preciso levar sempre em conta que um sonho jamais nico, mas que faz parte de uma srie e, alm disso, que cada figura, cada personagem do sonho representa sempre uma parte de ns mesmos.

    2 Aconselhamos ler, a esse respeito, o interessantssimo livro do Dr. Assagioli: Para a harmonia da vida, a psicossntese.3 Sobre esse assunto, existe um livro de C. G. Jung, Psicologia e d alchimia (Ed. Astrolabio).4 Ver o livro de C. G. Jung: O homem e seus smbolos, e o livro de R. Wilhelm e C. G. Jung: O mistrio da flor de ouro.

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  • certo, porm, que o sonho pretende sempre fazer-nos entender alguma coisa, transmitir*nos, em linguagsm crptica e simblica, uma mensagem, uma advertncia, uma sugesto.

    Mesmo quando o sonho parece ser a satisfao imaginria de um desejo reprimido, de uma aspirao insatisfeita, ele nos sugere estranhamente tambm a maneira de resolver aquele problema e o seu verdadeiro significado.

    H como que uma misteriosa sabedoria em nosso inconsciente, talvez justamente porque ele no apenas se reporte s razes autnticas do nosso ser, mas a toda natureza e histria da humanidade e, afinal, porque h nele aquela camada superior, o superconsciente, que contm em potencial todas as qualidades superiores possveis ao homem.

    Os sonhos que poderamos chamar metafsicos tambm se tomam possveis pelo nosso inconsciente, como j dissemos, e podem, portanto, entrar naquela categoria de sonhos derivados do inconsciente coletivo. De fato, constatou-se que, inclusive, fenmenos telepticos podem ser obtidos atravs de contatos por intermdio do inconsciente, que, repetimos, no conhece limitaes de espao e de tempo.

    O que dissemos at aqui j seria suficiente para fazer do estudo dos sonhos algo da mxima importncia e despertar o nosso interesse.

    Mas como fazer isso se pertencemos quela categoria de pessoas que normalmente no se lembram de seus sonhos?

    Se no nos lembramos dos sonhos, isso significa que a barreira entre o consciente e o inconsciente em ns muito consistente, ou que somos demasiado extrovertidos, ou que temos alguma represso.

    De qualquer maneira, foi constatado que, se se comea a dirigir

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  • a ateno para a vida onrica, esta pouco a pouco surge na memria e se toma mais clara e consciente.

    O nosso inconsciente s espera a oportunidade para se revelar, mas o eu consciente que quer ignor-lo, seja por tem-lo, seja por no querer ceder o seu domnio.

    Uma ajuda considervel para a lembrana da atividade onrica est na maneira pela qual adormecemos.

    Precisamos aprender a adormecer. Essa uma verdade que a maioria ignora, e que, no entanto, tem a maior importncia.

    A melhor maneira de adormecermos imaginar que estamos prestes a passar para um outro nvel de conscincia, onde existe uma vida real, um mundo rico e fascinante, onde poderemos conhecer e aprender inmeras coisas.

    Em outras palavras, ao adormecer, no se deve pensar que estamos mergulhando na inconscincia e no vazio absoluto, mas sim nos dirigindo para um outro nvel de conscincia, para uma outra dimenso do nosso prprio ser.

    Para isso, preciso ter a convico de que existe esse outro nvel de conscincia, que existe uma outra face de ns mesmos, isto , o inconsciente, onde poderemos encontrar a soluo para muitos dos nossos problemas, e as causas ocultas de tantos impulsos inexplicveis.

    Aceitar o inconsciente, reconhecer a sua importncia, desejar conhec-lo, so todas atitudes teis para criar a ponte necessria entre o nvel consciente e as camadas profundas de nossa psique.

    Isso verdade tambm no que diz respeito ao superconsciente, a nossa parte mais espiritual: a aspirao a ele que produz a resposta. o apelo que provoca a revelao, pois somos prisioneiros do estreito limite da conscincia pessoal somente porque o eu,

    f 55

  • encerrado em seu orgulho, n o admite estar circunscrito e incompleto.Portanto procuramos fazer do nosso sono um verdadeiro

    perodo de contato e de tomada de conscincia das outras dimenses do nosso ser, e de temporria e vitalizante imerso em uma realidade mais ampla.

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  • Captulo VI

    A N EU R O SE COMO SINTOM A DE CR ESC IM EN TO IN T E R IO R

    Na neurose, reflete-se de mil maneiras o destino trgico da existncia, que sofre dos seus prprios limites e procura ultrapassar a situao paradoxal da participao concomitante no ser e no no-ser. (Caruso, Psicanalisi e sintesi delia esistenza.)

    O que significa ser normal?Essa uma pergunta qual os psiclogos sempre procuraram

    uma resposta, sem, porm, conseguir plenamente, pois o conceito de normalidade um pouco vago e insuficiente.

    Talvez a melhor resposta seja a que define a normalidade como estar em paz consigo mesmo.

    | Todavia, surge-nos espontaneamente a pergunta: um bem,i do ponto de vista evolutivo, estar em paz?

    A menos que se tenha chegado ao pice do caminho evolutivo humano, plena integridade e perfeita harmonia, a paz no significa mais do que paralisao e acomodao passiva a uma posio alcanada.

    De fato, Jung afirma:

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  • Ser normal ura esplndido ideal para quem no consegue s-lo, mas, para todos aqueles que possuem dotes superiores mdia (...), a normalidade significa restrio, um leito de Procusto, um peso insuportvel, uma terrvel esterilidade sem esperana. (De O homem moderno procura de sua Alma.)

    No h progresso, a bem da verdade, sem conflitos, sem crises interiores, sem sofrimentos, sem luta contra a adaptao inimiga da renovao, da evoluo. E isso verdade tambm no que toca evoluo das formas materiais, a qual foi possvel justamente por ter havido periodicamente organismos e formas que no se adaptaram e que procuraram, talvez lutando e sofrendo, uma nova maneira de se exprimir.

    A neurose justamente isto: a tentativa de uma nova expresso de vida que se choca contra cristalizaes, apegos ao passado, conflitos emotivos no-resolvidos etc,

    Essa maneira de considerar as neuroses poder parecer arriscada a quem se acostumou a considerar os distrbios psicolgicos, as desarmonias, os desequilbrios do comportamento, os conflitos interiores somente como expresses de imaturidade, como minorao, ou at mesmo como sintoma de loucura.

    Tal conceito de neurose, limitado e unilateral, j est ultrapassado, e a atitude atual de quase todas as escolas mais avanadas da psicologia de profundidade, mesmo no ignorando determinados aspectos negativos das neuroses, a de consider-las sobretudo como uma oportunidade de crescimento interior, como um esforo da personalidade por se libertar das ligaes com o passado. Um esforo, diga-se, nem sempre vitorioso, mas que, todavia, indica a presena de poderosas energias evolutivas.

    A sade psquica, como dissemos anteriormente, dom de

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  • quem est em paz consigo mesmo, mas certamente a paz no permite progredir, enquanto que o conflito, a dor, a infelicidade so, s vezes, mais necessrios para a sade da alma do que a paz.

    Nos tempos de Freud, pensava-se que a neurose tivesse as suas razes apenas no passado, e que fosse originada por complexos infantis que permaneceram sem soluo, sendo, portanto, considerada como um sinal de imaturidade e de desarmonia psquica. Mas jamais algum havia questionado por que tais complexos formavam- se em alguns garotos e no em outros.

    Falou-se de constituio psicoptica, de hereditariedade etc., mas ningum pensou na possibilidade de que talvez a causa pudesse residir numa determinada sensibilidade, numa natureza diferente, mais rica, mais complexa, mais aberta ao sofrimento e, portanto, mais dotada de possibilidades de desenvolvimento...

    E no so, de fato, o artista, o mstico, o gnio, normalmente as pessoas com maiores tendncias anormalidade, queles sofrimentos, quelas crises que as pessoas medocres no conhecem?

    como se a maior riqueza interior, a presena de energias criativas, de faculdades paranormais constitusse, ao mesmo tempo, um dom e um perigo, uma oportunidade de progresso e umainsdia, um patrimnio de foras poderosas que seria necessrio saber usar, canalizar, para transform-las em instrumento de evoluo.

    De qualquer maneira, aceitamos, essa viso otimista das neuroses como uma hiptese e tratamos, antes de mais nada, de entend- las de um ponto de vista mdico.

    A neurose considerada uma doena sem causa fisiolgica conhecida, portanto uma doena funcional , sem leses orgnicas, que, todavia, pode provocar tambm distrbios fsicos.

    A neurose no deve ser confundida com a psicose.

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  • Essa uma distino extremamente importante e que deve ser levada em considerao para no se incorrer em mal-entendidos e confuses.

    Pelo termo psicose , costumam-se indicar genericamente todas as doenas mentais verdadeiras (por exemplo, psicose esquizofrnica, psicose manaco-depressiva etc.), nas quais o eu completamente obnubilado e submerso pelas foras obscuras da psique, enquanto que, nas neuroses, o eu conserva as suas capacidades de autocrtica, de julgamento, quando no de autocontrole, e resiste, luta, no se entrega.

    Esse um critrio de distino fundamental, muito importante para saber se os distrbios psquicos de um indivduo (que s vezes podem ser muito semelhantes em ambos os casos) so psicticos ou neurticos.

    Alm do mais, a neurose pode ser curada e, muito freqentemente, tratada atravs da psicoterapia, enquanto que a psicose quase sempre no tem cura.

    Existe uma ampla gama de sintomas neurticos, ds mais leves aos mais graves (ansiedade, timidez, angstia, depresso, incapacidade para o trabalho, incapacidade para amar, fobia, idias fixas etc.). Todavia, no posso, no momento, deter-me sobre esse aspecto estritamente mdico da neurose neste volume, pois a minha inteno enquadrar essa doena na concepo psicoespiritual do homem e procurar compreender as suas causas profundas e reais.

    Hoje, a cincia psicolgica oficial redimensiona o conceito de neurose, no s porque a concepo de inconsciente se ampliou e se aprofundou, mas tambm porque comea a se admitir no homem a presena de uma Alma, de um quid espiritual, de um centro de conscincia superior.

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  • A primeira coisa que se constatou foi o fato de que as razes da neurose no devem ser procuradas somente na infncia longnqua, no passado, mas tambm no presente; por isso se fala de neuroses atuais , geradas por conflitos recentes ou atuais, por problemas psicolgicos contemporneos, prprios do momento evolutivo que o indivduo atravessa.

    Jung admite tambm uma neurose da meia-idade, que atinge os indivduos maduros que julgam ter chegado a um ponto morto e no sentem mais qualquer satisfao em seu trabalho, em sua maneira de ser, sem saberem por qu.

    De acordo com Jung, essas neuroses da idade madura so extremamente importantes e significativas, pois so o sintoma de um crescimento interior, de uma reviravolta na vida, provocados por uma exigncia profunda de se chegar a uma harmonia e a uma totalidade do ser. Em outras palavras, o Si que pressiona para se manifestar, o lado espiritual que, negligenciado, provoca o sofrimento e os sintomas neurticos.

    O homem possui uma espcie de funo religiosa natural, afirma Frieda Fordham, aluna de Jung, e (...] a sua sade psquica e a sua estabilidade emotiva esto em relao com uma expresso adequada desse sentimento, justamente como se verifica com a expresso do instinto.

    Tambm Victor Frankl, conhecido psicanalista alemo, fala em neuroses nogenas , querendo indicar com esse termo aquelas neuroses que derivam da aspirao frustrada de encontrar um sentido para a vida.

    Caruso, em seu livro j citado, Psicanalisi e sintesi deli esis- tenza, afirma: [...] Trata-se (...) de reconhecer, da maneira mais explcita, o carter metafsico e teolgico da neurose, de modo que

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  • a neurose ser sem dvida isenta de finalidade e de sentido se no for interpretada como uma fuga frente ao Absoluto, quase uma nostalgia do Absoluto

    Muitos estudiosos mais modernos consideram a neurose at mesmo um sinal de uma evoluo maior e de uma maior riqueza de possibilidades, que, todavia, se chocam com resistncias e obstculos inconscientes inerentes ao indivduo.

    como se o neurtico no quisesse reconhecer essas suas maiores possibilidades, como se tivesse medo de obedecer fora evolutiva, que requer dele superaes, aceitao e sacrifcio do eu egosta.

    Eis por que (sempre citando Caruso) [ ...] a neurose , ao mesmo tempo, uma traio contra a vocao e inflexvel confirmao do chamado.

    Esse o aspecto negativo da neurose, que se poderia sintetizar nos seguintes erros:

    1) orgulho;2) sentimento de culpa;3) agressividade;4) absolutizao do relativo.O primeiro erro, isto , o orgulho, ou soberba neurtica,

    caracterstica comum a todas as pessoas que sofrem de neuroses, consiste no fato de que o neurtico identifica-se com a prpria imagem ideal e recusa, no inconsciente, os movimentos incompatveis com essa imagem ideal...

    Isso acontece provavelmente porque o neurtico tem, mais do que os outros indivduos, a percepo daquilo que deveria ser o homem perfeito, o Si, mas no percebe que, antes de realiz-lo na prpria conscincia, preciso percorrer um longo caminho e

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  • reconhecer, inclusive, os prprios lados obscuros e aceit-los.O sentimento de culpa, de que o neurtico sofre continua

    mente, surge justamente desse orgulho, que, todavia, ele no quer reconhecer, mas que lhe impede tomar conscincia de sua prpria realidade e estabelecer uma hierarquia exata dos valores.

    A agressividade, que muitos estudiosos consideram o trao principal do neurtico, deriva justamente do sentimento de um ego supervalorizado que se choca contra a realidade da vida e se sente frustrado e no-correspondido.

    De tudo isso deriva a absolutizao do relativo, que o envolve cada vez mais na mentira, causa de penosos conflitos e sofrimentos.

    Em outras palavras, o neurtico um indivduo que luta com tendncias opostas, que pressente o divino mas levado por essa revelao a no aceitar o seu destino de pioneiro e precursor, mas mesmo assim sente-se impelido para altas metas.

    A vocao do neurtico poderia ser chamada de vocao para a existncia trgica. contra essa vocao que ele se debate. Ele no quer reconhec-la, como o fez um homem, que era um homem de Deus, e que, todavia, estava em luta com o prprio Deus: J (Caruso, op. cit.).

    Para quem est acostumado a considerar as neuroses somente como manifestaes de uma psique doente, imatura, desarmnica, tudo o que foi dito poder parecer exagerado e sem base concreta.

    Todavia, as opinies acima expostas so as de estudiosos muito conhecidos e apreciados como Jung, Victor Frankl, Assagioli, Caruso, Daim e muitos outros, portanto dignas de confiana.

    Assim, podemos inserir o sofrimento que brota da neurose no quadro do caminho evolutivo do homem para a lenta e gradativa harmonizao e composio da dualidade que est na base de sua

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  • natureza e que constitui uma luz da conscincia e a totalidade do ser.0 homem deve reconhecer essa sua dualidade para poder

    progredir, deve reconhecer que somente atravs da sntese entre consciente e inconsciente, luz e sombra, Esprito e matria, poder alcanar a unidade do Si.

    Por isso, o movimento evolutivo uma espiral, seguindo-se a cada progresso um aparente regresso.

    Por esse motivo tambm, somos sempre colocados em face da necessidade de conciliar os opostos, que se apresentam de infinitas maneiras e aspectos em nossa vida, sobretudo em ns mesmos.

    Reconhecer e aceitar a natureza inferior, o nosso lado obscuro , para transform-lo e aceder natureza superior, a atitude correta que deveramos sempre adotar para sair da priso da falsa conscincia que o eu pessoal criou para si, julgando-se soberano na psique, encerrado em seu orgulho, e sem saber dos condicionamentos, das iluses, dos automatismos que o sufocam como uma tnica de Nesso. Caso contrrio, ns mesmos criaremos doenas psquicas que iro dificultar e provocar um enorme atraso no despertar da verdadeira conscincia.

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  • Captulo VII

    O EU E SUA M SCARA

    A conscincia do homem mdio essencialmente uma falsa conscincia, consistindo em fingimentos e iluses, enquanto justamente aquilo de que ele no tem conscincia constitui a realidade. (Erich Fromm: Psicanalisi e Buddismo Zen , p. 115.)

    No foi por acaso que a antiga filosofia chinesa escolheu como smbolo do Absoluto, da Totalidade Divina e do Homem auto-realizado a figura do Tao, que pretendia significar a unio dos dois plos do Esprito e da Matria, sntese dos contrrios, do Yang e do Yin (masculino e feminino), do consciente e do inconsciente, da luz e da sombra e, portanto, completamento e totalidade.

    De fato, todo o processo evolutivo do homem tem por finalidade fazer com que ele alcance esta perfeio global, que surge do equilbrio e da sntese dos dois plos de sua natureza dual. No fcil, porm, alcanar tal meta, pois, antes de alcanar o equilbrio, oscilamos longamente entre os dois plos e passamos por fases alternadas de preponderncia de um ou de outro aspecto.

    Ns, ocidentais, em geral temos a preponderncia do plo que representa o consciente, isto , sofremos de uma hipertrofia do consciente, seja porque somos por natureza extrovertidos, seja

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  • porque vivemos numa sociedade que nos condiciona, que nos determina e que nos obriga a criar um eu inautntico, feito de acomodaes e compromissos, automatismos e hbitos.

    Infinito o nmero de pessoas que se encontram nessa situao, conscientemente ou no, e que, em conseqncia dela, sofrem de um mal-estar desconhecido, de um profundo desconforto, pois esto alienadas das razes autnticas do seu ser, separadas do outro plo de sua natureza, que no representa somente o lado instintivo e espontneo, mas tambm todas as potencialidades mais altas, o lado espiritual inconsciente.

    Assim, em numerosos indivduos, cria-se uma situao paradoxal, isto , aquilo que eles chamam conscincia , ao contrrio, uma falsa conscincia , condicionada e ilusria, enquanto aquilo que chamam inconsciente esconde o seu verdadeiro ser, a sua autenticidade.

    A sua verdadeira individualidade inconsciente e, se tenta se exprimir, continuamente impedida pela falsa conscincia, pelo eu inautntico, a pessoa , conforme as palavras de Jung, ou a personalidade frontal de Aurobindo, semelhante a uma mscara que recobre o semblante do verdadeiro Eu.

    Como se deu isso?Como se formou esse eu inautntico?Ns nascemos livres, espontneos, autnticos, no-condicio-

    nados. De fato, a criana instintiva, desinibida, verdadeira, mas no tem uma individualidade distinta, no tem um sentido do eu. Ela no distingue entre si e os outros: tem uma conscincia ego-csmica, por isso oferece as condies ideais para ser influenciada, condicionada, plasmada de acordo com as presses exteriores que lhe so transmitidas pelos pais, pelo ambiente, pela educao, pela sociedade em que vive...

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  • if Assim, pouco a pouco, sem se dar conta disso, ela reprime af sua verdadeira natureza, as suas verdadeiras faculdades, sendo obri

    gada a construir um eu fictcio, como que uma personagem que recita o seu papel.

    Mais tarde, na idade adulta, a necessidade de alcanar uma posio, de inserir-se numa sociedade, num sistema, continua a

    t obrigar o indivduo a se reprimir, a seguir as exigncias coletivas, aoinvs das exigncias individuais, de modo que a mscara se consolida e a ciso se toma cada vez mais profunda.

    A sua verdadeira individualidade, porm, existe, ainda que de maneira inconsciente, e pressiona continuamente para se manifestar, para se exprimir.

    A tendncia para a auto-realizao, para a atuao de si, que representa justamente a exigncia do verdadeiro eu por se manifestar, , no entanto, um fato j observado por todas as escolas modernas de psicologia, uma exigncia que no pode ser sufocada e ignorada. De fato, chega um momento em que essa presso do nosso Si se manifesta, mais ou menos forte e conscientemente, e ento tem incio o mal-estar, o conflito, a crise que cedo ou tarde leva superao da falsa conscincia e ao reencontro com a realidade do ser.

    Talvez a humanidade inteira experimente hoje essa crise, pois as foras autnticas, espontneas, verdadeiras, foram por muito tempo reprimidas nos sculos passados por um sistema de regras, de esquemas, de condicionamentos que levaram o homem alienao e criao de um falso eu.

    um perodo de reao, de rebelio, que pode parecer excessivo e negativo se encarado somente do exterior, mas que revela, a um exame mais atento, a tremenda luta que todo indivduo, por si s, e a sociedade, coletivamente, travam para reencontrar os verdadeiros valores e as fontes autnticas do ser.

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  • Hoje est acontecendo (conforme afirma o Dr. Assagioli em seu escrito Spiritualit dei 1900 , citando o pensamento de Keyser- lyng) uma revolta das foras telricas. O despertar das foras instintivas primordiais e irracionais, mas ss e vivas, que constitui uma reao, uma volta origem, necessria para abandonar aquele caminho sem sada, para salvar a civilizao de uma perigosa decadncia e decomposio .

    A dificuldade reside no fato de que nem sempre h uma conscincia do que realmente est oculto por trs da rebelio, da desmistificao, da dessacralizao, de quais sejam as energias que querem se manifestar. Se existisse uma clara tomada de conscincia do problema, tais energias poderiam ser corretamente canalizadas e se tomariam construtivas e benficas.

    No dia em que isso acontecer, a humanidade ter chegado revelao de novos e mais autntivos valores, de mais altos e genunos ideais, e entender a verdadeira finalidade da vida, a verdadeira natureza do homem. Por enquanto, somente uma minoria chegou a essa tomada de conscincia, demonstrando, com sua clareza de viso e com a sua maturidade, como isso possvel.

    No indivduo, isoladamente, a luta entre o impulso para a realizao autntica de sua natureza espiritual e o eu superficial e fictcio, como dissemos, provoca graves crises, que podem ser reconhecidas conscientemente ou, ento,