O DIÁLOGO COMO FUNDAMENTO DA EDUCAÇÃO INTERCULTURAL- CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE E MARTIN BUBER

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    V Colquio Internacional Paulo Freire Recife, 19 a 22-setembro 2005

    O DILOGO COMO FUNDAMENTO DA EDUCAOINTERCULTURAL: CONTRIBUIES DE PAULO FREIRE E

    MARTIN BUBER

    J oo Colares da Mota Neto1

    Rafael Grigrio Reis Barbosa

    RESUMO

    A partir de discusso sobre a categoria filosfica dilogo, fundamental ao pensamento educacionalde Paulo Freire e base da filosofia da relao de Martin Buber, pretendemos, neste artigo, extrairreflexes que objetivam argumentar sobre a necessidade de uma educao intercultural. Defende-se que uma educao que viabilize dilogo entre culturas permite vislumbrar uma sociedadedemocrtica e multicultural, gerando comportamentos e referenciais culturais com vocao paz e

    solidariedade.Palavras-Chave: Dilogo educao interculturalidade.

    INTRODUO

    O artigo objetiva realizar uma discusso acerca da categoria filosficadilogo com base nospensamentos do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) e do filsofo austraco MartinBuber (1878-1965), a fim de pensar aspectos sobre o que uma educao dialgica,especialmente no mbito dos debates culturais, o que viabiliza a construo de uma educaointercultural.

    O texto reflete nosso interesse em aprofundar o estudo sobre a filosofia educacionalhumanista-libertadora de Paulo Freire relacionando-a com a filosofia do dilogo de MartinBuber. A exigncia existencial e poltica do dilogo surge de nossos trabalhos de educaopopular, seja em turmas em bairros perifricos ou em comunidades hospitalares de Belm(PA), seja em turmas presentes em comunidades ribeirinhas do municpio paraense SoDomingos do Capim, do Ncleo de Educao Popular Paulo Freire (NEP) vinculado aoCentro de Cincias Sociais e Educao da Universidade do Estado do Par (CCSE-UEPA).

    Os pensamentos de Freire e Buber, ao se constiturem numa ontologia da relao ou

    antropologia filosfica, so vlidos aos seres humanos em formao, pois buscam captar assutilezas e os meandros da vida existencial e como isso deve ser trabalhado numa educaohumanista. Assim, colocam-se como questes-chave as manifestaes culturais, as prticascotidianas, o universo simblico dos sujeitos no processo educacional, que deve primar porum dilogo entre estes referenciais culturais (interculturalidade) a fim de que sejademocrtica, justa e que possibilite o desenvolvimento das capacidades mltiplas dos sereshumanos: cognitiva, afetiva, esttica, poltica, tica.

    1Estudantes do curso de Licenciatura Plena em Pedagogia do CCSE-UEPA. Educadores populares do Ncleo de EducaoPopular Paulo Freire (NEP-UEPA) e bolsistas do Grupo de Pesquisa de Educao Popular (GPEP-CNPQ).([email protected]), ([email protected]).

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    Na primeira parte do artigo, Os filsofos do dilogo, apresentamos vida e obra de PauloFreire e Martin Buber com o intuito de, inclusive, esclarecer aspectos e argumentos presentesna segunda parte do texto, Do dilogo: aproximaes entre Freire e Buber, no qualapresentamos a multidimensionalidade do dilogo. Na terceira parte, O fundamento

    dialgico da educao intercultural, refletimos sobre a educao intercultural,argumentando que seu fundamento dialgico possibilita a humanizao dos seres humanos edo mundo.

    OS FIL SOFOS DO DILOGO - PAULO FREIRE

    No dia 19 de setembro de 1921, nasce na cidade de Recife (PE) Paulo Reglus Neves Freire,filho de Joaquim Temstocles Freire, sargento do exrcito e de Edeltrude Neves Freire,bordadeira.

    Com 8 anos, tal qual a maioria dos nordestinos de seu tempo, conheceu a fome e a misria.Apesar das condies desfavorveis ao estudo, tendo inclusive dificuldade de aprender, Freireno anulava sua vontade de saber, crescer e ser mais, tornando-se professor de gramtica noensino mdio.

    Sua vida em Jaboato com amigos, filhos de camponeses e operrios que moravam em morrose crregos foi fazendo-o a habituar-se com uma forma diferente de pensar e de se expressar,que era exatamente a sintaxe popular, a linguagem popular. Dessa experincia concreta,comea a se interessar pelos temas do povo como base numa epistemologia popular.

    De formao religiosa catlica, Freire formou-se em Direito, profisso que abandonou logo naprimeira causa. Nessa poca, conheceu Elza Maia de Oliveira, com quem se casou em 1944 eteve 5 filhos.

    Em 1946, j no Recife, Paulo Freire comea a trabalhar no SESI - Servio Social da Indstria,onde permanece durante oito anos. Apesar de Freire ter criticado o SESI por ser umainstituio com objetivos assistencialistas, esse trabalho contribuiu para alargar seu contatocom o povo e com a classe trabalhadora. Foi a que se tornou educador e aprendeu a pensarsempre a partir da prtica.

    Nesse perodo, envolve-se no Movimento de Cultura Popular (MCP) no Recife e l comdedicao autores como Jos Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Gilberto Freyre.

    Paulo Freire foi um dos fundadores do Servio de Extenso Cultural da Universidade doRecife e seu primeiro diretor. A partir dessa experincia, elaborou os primeiros estudos de ummtodo de alfabetizao de adultos, expondo-o em 1958, no Seminrio Regional Preparatrioque foi realizado em Pernambuco, tendo o ttulo "A educao de adultos e as populaesmarginais: o problema dos mocambos".

    Os trabalhos de Paulo Freire expressam sua preocupao com a realidade dramtica

    nordestina. Assim, necessrio compreender que o mtodo freireano surge no contexto, naproblematizao de situaes colonialistas que precisavam ser superadas.

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    As primeiras experincias de seu mtodo de alfabetizao comearam na cidade de Angicos(PE), no ano de 1962, onde 300 trabalhadores foram alfabetizados em 45 dias. No anoseguinte, Freire foi convidado para repensar a alfabetizao de adultos no pas pelo presidenteJoo Goulart e pelo ministro Paulo de Tarso.

    Em 1964, estava prevista a criao de mais de 20 mil crculos de culturapara mais de 2milhes de analfabetos brasileiros, um projeto pedaggico radical e com pretenso deconsequncias polticas intensas. Porm, com o golpe militar os trabalhos de alfabetizaoforam interrompidos, reprimindo toda mobilizao que se instalava.

    Assim, o mtodo de alfabetizao Paulo Freire foi sufocado e proibido no Brasil, sendo seucriador exilado. Foram 15 duros e longos anos exilado, fora do Brasil, mas de significados degrandes propores, cheios de experincias e conhecimentos que o respaldaram na construode uma filosofia educacional questionadora: a pedagogia do oprimido.

    O perodo longe do Brasil foi o tempo em que Freire se tornou conhecido e respeitado emtodo o mundo, com trabalhos pedaggicos de grande alcance poltico na Amrica, Europa efrica. Em 1985, com a abertura poltica do Brasil, Freire retorna ao pas.

    Em 1989, foi convidado pela prefeita Luiza Erundina do Partido dos Trabalhadores (PT), paraser Secretrio Municipal de Educao da cidade de So Paulo (SP). Assumiu o cargo at1991. Criou o Movimento de Alfabetizao de Jovens e Adultos - MOVA. Em maio de 1997,Paulo Freire morre e deixa suas obras e seu exemplo de dedicao educao popular, crticae do dilogo.

    Para criao de sua teoria e filosofia pedaggica, Freire teve muitas influncias, todavia, odestaque para sua indignao parte da vida sofrida, desde a infncia. No mbito das correntesfilosficas que influenciaram Freire, destacam-se, alm do materialismo histrico-dialtico deMarx, Gramsci, Marcuse e Fromm, o existencialismo cristo de Karl Jaspers, Gabriel Marcel,o personalismo de Emmanuel Mounier e a fenomenologia de Heidegger.

    MARTIN BUBER

    Martin Buber nasceu em Viena em 8 de fevereiro de 1878, passou seus primeiros anos de vida

    com seu av Salomo Buber, autoridade da Haskalah. Nesta famlia, experimentou a tradiojudaica autntica, em unio harmoniosa com o esprito liberal de Haskalah.

    Em 1896, ingressou na Universidade de Viena, dedicando-se ao estudo da Filosofia e daHistria da Arte. Dedicou-se tambm a estudos nos campos da Psicologia e da Sociologia efoi participante ativo do movimento sionista.

    Buber, no perodo de 1916 a 1925, foi eleito editor do jornal DER JUDE, foi tambmprofessor na Universidade de Frankfurt. Destitudo do cargo pelos nazistas em 1938, assumiua tarefa de lecionar Sociologia na Universidade hebraica de Jerusalm. Aos sessenta anos,

    momento de surpreendente atividade intelectual, aprofundava seus estudos em diversas reas:estudos sobre o judasmo, a bblia e o Hassidismo, estudos sociolgicos, polticos e

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    filosficos.

    Seu pensamento demonstra uma vida de grande f no humano, de pleno dilogo com aconcretude da existncia, comprometida na resoluo dos problemas existenciais que afligem

    o ser humano. Sua preocupao com a relao entre teoria e prtica foi marca originalssimafrente a outros filsofos, pois posicionava-se contrrio formulao de grandes sistemasfilosficos que impunham normas e orientaes. Seu pensamento est sempre ilustrado porexperincias empricas, sua reflexo tem profundidade e riqueza na fora vital de suaexperincia.

    Sua filosofia foi influenciada pelo movimento mstico Hassidismo, pelos pensamentos deKierkegaard, Nietzsche e especialmente por Dilthey, seu antigo mestre.

    Podemos dizer que toda sua filosofia do dilogo pode ser encontrada no livro Eu e Tu, em

    que constri uma ontologia da palavra, apoiada numa Antropologia Filosfica do inter-humano no qual o dilogo o ato originrio e final da existncia humana.

    Martin Buber morreu em Jerusalm a 13 de junho de 1965.

    DO DILOGO: APROXIMAES ENTRE FREIRE E BUBER

    Categoria das mais essenciais para pensar e gerar um mundo solidrio, com base na vidacomunitria e na reciprocidade universal, o dilogo, tal como est presente na filosofiahumanista-libertadora de Freire e na filosofia da relao de Buber, assume valor fundamentalnuma prtica educativa verdadeira, qual seja, a que possibilita, num encontro face-a-face, apronncia crtica do mundo.

    Procuramos reter dos pensamentos de Paulo Freire e Martin Buber sobre o dilogo o quejulgamos que h de mais essencial para refletir sobre o que vem a ser uma educaointercultural, buscando para isso traar pontos de interseo entre os dois pensamentos sobreo dilogo atravs dos quais ser possvel a realizao de nosso intento, numa espcie dedilogo do dilogo.

    O argumento que a educao dialgica, especialmente aquela que prima pelo dilogo entre

    culturas (interculturalidade) apresenta-se como uma estratgia de formao inovadora eradical, possibilitando superao de prticas e vises etnocntricas; a convivncia pacficacom o diferente; a reduo da violncia na educao; a construo de currculos interativos,complexos e dinmicos. O resultado da educao intercultural, vislumbra-se, contribuir parauma sociedade democrtica e multicultural, fundada no dilogo, na assuno da diversidade, ena possibilidade de todos os seres humanos assumirem-se politicamente frente o mundo etomar a histria em suas mos.

    O dilogo entre culturas, ento, essencialmente democrtico e potencialmentetransformador, absorvendo, ainda, outras caractersticas que vo do embelezamento do mundo

    realizao existencial de homens e mulheres como seres humanos autnomos.

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    Identificamos que o dilogo, particularmente nas acepes de Paulo Freire e Martin Buber,possui 4 dimenses que so importantes de ser discutidas, que refletem sua natureza radical eque interligadas viabilizam o anncio da educao intercultural. As dimenses so:existencial, esttica, poltica e pedaggica.2

    EXISTENCIAL

    Tanto o educador brasileiro quanto Buber acreditam que a existncia humana fundamentalmente um dilogo, encontro entre pessoas compromissadas na busca do sentidoda vida em relao.

    Assim, para Freire (1980, p. 83) o dilogo "impe-se como o caminho pelo qual os homensencontram seu significado enquanto homens", j que estes, como seres na busca constante deser mais, reconhecendo sua prpria condio de inacabamento, vo ao encontro do outro,

    numa busca que "deve ser feita com outros seres que tambm procuram ser mais e emcomunho com outras conscincias" (FREIRE, 1983, p. 28).

    Tambm Buber acredita que a base da existncia a relao. Para ele, "O homem se torna EUna relao com o TU" (BUBER, 1979, p. 32). A defesa buberiana do a priori da relaofunda-se na compreenso de que, embora o ser humano possua uma atitude dual para omundo - a que est baseada na palavra-princpio EU-TU e a que pertence ao mundo do EU-ISSO, o encontro entre um Eu e um Tu a realidade originria da existncia.

    A palavra-princpio EU-TU, quando pronunciada, conduz-nos ao mundo da relao, que para

    Buber se realiza em trs esferas, 1) a vida com a natureza, 2) a vida com os homens e 3) avida com os seres espirituais. A relao se instala maneira prpria de cada esfera, mantendo, despeito da diversidade, uma caracterstica comum: areciprocidade. Outra caracterstica dapalavra-princpio EU-TU reside no fato de que ela s pode ser proferida pelo ser na suatotalidade.

    J a palavra-princpio EU-ISSO, diz respeito ao mundo da experincia e da utilizao. O Euda palavra-princpio EU-ISSO, que diferente do Eu da palavra-princpio EU-TU, tem apostura diante do mundo de coisific-lo, objetiv-lo, fazendo de sua atuao a ordenao decoisas entre coisas.

    ESTTICA

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    A constatao desta dimenso do dilogo na obra de Freire sem dvida nos parece arriscada,mas este risco nos leva a ousar em dizer que a beleza um elemento viabilizador do dilogo.Pois em Freire a abertura respeitosa e crtica aos outros, ao novo, mudana, s diferenas, imprevisibilidade do mundo permite a instalao do ato dialgico e nesta disponibilidade aodilogo a boniteza resplandece.

    2Esta categorizao baseada em Oliveira (2003), para quem o dilogo na obra de Paulo Freire possui trs dimenses:existencial, poltica e metodolgica.

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    O encontro amoroso entre seres humanos imprescinde de tal abertura para que acontea e seesta abertura no se alicera numa racionalidade orientada por princpios ticos, no h belezae nem dilogo.

    Para Freire (1996, p. 153), "A razo tica da abertura, seu fundamento poltico, sua refernciapedaggica; a boniteza que h nela como viabilidade do dilogo."

    O pensamento freireano estrutura-se como grito de indignao frente feiura da vida na Terraresultante de um sistema social opressor, no qual todos os esfarrapados do mundososubmetidos a ouvirem os cnticos de horror do antidilogo, da explorao, da misria, dadegradao estpida e voraz dos recursos naturais. Em sua concepo, o dilogo uminstrumento de transformao de um mundo feio, opressor, burocratizador das relaessociais, num mundo belo, tico, solidrio; um mundo de gente.

    J em Buber, a beleza da relao se evidencia na magnificncia de sua escrita, naprofundidade filosfica e potica de seu pensamento. Seu livro "EU e TU" nos revela asmarcas de sua vida sensvel aos problemas da existncia humana. No so raras as passagensno texto nas quais constatamos que sua filosofia encarnou-se em obra de arte, exigindo deBuber o poder de todo o seu ser.

    Num mundo esmagado pela atitude objetivante do ser humano, a beleza da relao se esvaimelancolicamente assim como o TU segue seu percurso inadivel de tornar-se um ISSO.3 Ecada vez que dirigimos nosso olhar s coisas do mundo sempre de modo a orden-lo,decomp-lo, classific-lo, perdemos lentamente nossa capacidade de contempl-lo, no comoexerccio abstrato, desinteressado, mas como ato primeiro do conhecimento, momento em queaquilo que nos confronta no face-a-face aparece como ele mesmo o :

    Primeiramente o conhecimento: na contemplao de um face-a-face, que o ser serevela a quem o quer conhecer. O que o homem viu pode consider-lo como umobjeto, comparado com outros objetos, ordenar em classes de objetos, descrever edecompor objetivamente, porque nada pode ser integrado na soma de conhecimento,seno na qualidade de um Isso. Na contemplao, porm, no se tratava de coisasentre coisas, de um processo entre processos, era exclusivamente a presena. O serno se comunica na lei deduzida depois de aparecer o fenmeno mas sim nofenmeno mesmo. (BUBER, 1979, p. 47).

    Segundo Buber, o ser humano no vive sem essa atitude objetivante, ou seja, sem o ISSO,mas aquele que vive somente com o ISSO no ser humano.

    Em nossa poca, essa atitude se exacerba cada vez mais e a capacidade de utilizao eexperimentao se intensifica; estamos sendo tragados para um abismo de consumo

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    3Como nos diz o filsofo: "Cada TU, neste mundo condenado, pela sua prpria essncia, a tornar-se uma coisa, ou ento, a

    sempre retornar coisidade. Em termos objetivos poder-se-ia afirmar que cada coisa no mundo pode ou antes ou depois desua objetivao aparecer a um EU como seu TU. Porm esta linguagem objetivamente no capta seno uma nfima parte daverdadeira vida. (BUBER, 1979, p. 20).

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    desenfreado ao ponto que seria absurdo demais contemplar o beijo rubro do pr-do-solanunciando a chegada da noite e ficamos bestificados frente s parafernlias eletrnicas etecnolgicas, observando sua mecanicidade a delirar emprazeres febris.

    A contemplao prpria do ato de relao e contemplamos aquilo que belo, logo no hbeleza fora da relao.

    POLTICA

    As filosofias de Buber e Freire coincidem no argumento de que o dilogo, enquanto substratoda existncia, o caminho pelo qual possvel a humanizao do mundo e das pessoas; daque o dilogo apresenta-se como fenmeno fundamentalmente poltico.

    Paulo Freire, j na sua Pedagogia do Oprimido, concebia, contra a tendncia da filosofiamoderna de tudo isolar/dividir/dicotomizar, uma existncia relacional entre palavra-ao,ao-reflexo, pensamento-linguagem-realidade. Desta constituio dialgica foi-lhe possvelafirmar que "No h palavra verdadeira que no seja prxis" (FREIRE, 1987a, p. 77) e, comoprxis, o ser humano pronuncia a transformao do mundo, modificando-o para a libertao.

    A palavra verdadeira sempre uma palavra comprometida com a humanidade do humano. Ecomo "dizer a palavra no privilgio de alguns homens, mas direito de todos os homens"(idem, p. 78), no possvel que alguns poucos, com ares de iluminados, depositem suasverdades (leia-se pseudoverdades, palavras falsas) em quem a sociedade do silncio rotulou econvenceu como os que nada sabem. Por isso que dizer a palavra verdadeira, que implica na

    prxis de transformar o mundo humanizando-o fundamentalmente encontro, o que exige dossujeitos em relao, segundo Freire (1996, p. 152) disponibilidade para o dilogo.

    Ainda segundo Freire (idem), " na minhadisponibilidade realidade que construo a minhasegurana, indispensvel prpria disponibilidade. impossvel viver a disponibilidade realidade sem segurana, mas impossvel tambm criar segurana fora do risco dadisponibilidade."

    A disponibilidade ao mundo para o encontro com o totalmente outro impe riscos, dvidas,incertezas, e tais caractersticas, de acordo com Buber (1979, p. 90-91) so prprias do

    "mundo incerto, inconsistente, passageiro, confuso e perigoso da relao."

    No caos do mundo da relao, a certeza sua fluidez e nesse sentido que, para Freire(1987a), antes mesmo da ocorrncia do dilogo necessria uma profunda f nos homens, emcuja base de sustentao est oamor.

    Tanto Freire quanto Buber atribuem um valor especial ao amor na defesa do dilogo:

    No h dilogo [...] se no h um profundo amor ao mundo e aos homens [...] Sendofundamento do dilogo, o amor , tambm, dilogo. (FREIRE, 1987a, p. 70-80).

    Amor responsabilidade de um EU para com um TU: nisto consiste a igualdadedaqueles que amam, igualdade que no pode consistir em um sentimento qualquer,

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    igualdade que vai do menor, ao maior do mais feliz e seguro, daquele cuja vida estencerrada na vida de um ser amado, at aquele crucificado durante sua vida na cruzdo mundo por ter podido e ousado algo inacreditvel: amar os homens. (BUBER,1979, p.17).

    E amor, segundo Buber, no algo que se possa obter, ele aconteceentre plos dialogantes,umresponsvel para com o outro.

    A poltica do dilogo, nesse sentido, consiste numa ao comprometida com a humanidade,em especial com a que se conformou com o mundo do ISSO, das coisas entre coisas, dautilizao e represso. O mundo da relao, em vez de reprimir o mundo, libera-o, no lugar deobserv-lo, contempla-o, contra a servido do mundo, acolhe-o.

    PEDAGGICA

    A base pedaggica defendida nos pensamentos de Freire e Buber expressa uma crtica radicalao que Freire chamou por pedagogia bancria, ou seja, uma pedagogia do antidilogo, emque a unilateralidade da relao professor-aluno reflete situaes de dominao, hierarquia esilncio.

    O conhecimento produzido pelo antidilogo compreendido por Buber como uma "sabedoriaautoconfiante que apreende nas coisas um compartimento fechado, reservado aos iniciadoscuja chave ela possui. Oh! Mistrio sem segredo. Oh! Amontoado de Informaes! Isso, Isso,Isso!" (BUBER, 1979, p. 6).

    Buber, ao afirmar que a verdadeira educao aquela dialgica, sustenta que o objetivoprimordial da educao tornar presente a essncia de nossa existncia: a relao. Existe nohumano, para Buber, uma vocao ao encontro, a ao de atualizar seuTu inato. De modosimilar, Freire pensa que existe no ser humano um impulso natural perfeio, j que sereconhece como ser inacabado e desta concluso que emerge o sentido da educao. Emsuas palavras, o ser humano " um ser na busca constante de ser mais e, como pode fazer estaauto-reflexo, pode descobrir-se como um ser inacabado, que est em constante busca. Eisaqui a razo da educao." (FREIRE, 1983, p. 27).

    Como a relao entre um Eu e um Tu s possvel quando estes so, um para o outro, seres

    totais, na educao dialgica todas as pessoas envolvidas (alunos, professores, pais, gestores,serventes) devem tratar-se umas s outras como totalidades, na reciprocidade da relao.Como exemplo disso, o professor dialgico, na filosofia buberiana:

    Para auxiliar a realizao das melhores possibilidades existenciais do aluno, oprofessor deve apreend-lo como esta pessoa bem determinada em suapotencialidade e atualidade, mas explicitamente, ele no deve ver nele uma simplessoma de qualidades, de tendncias e obstculos, ele deve compreend-lo como umatotalidade e afirm-lo nesta sua totalidade. (BUBER, 1979, p. 150-151).

    Destarte, a educao dialgica um momento mais que cognitivo, racional, pois englobadimenses outras, como a afetividade, a sensibilidade, a espiritualidade, a intuitividade.

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    A compreenso freireana da educao como situao gnosiolgica (FREIRE, 1985)remeteaos fundamentos bsicos do dilogo j discutidos neste artigo, quais sejam, suas dimensesexistencial, esttica e poltica.

    Atravs da educao dialgica, viabiliza-se encontro verdadeiro de sujeitos, para refletir sobreo mundo, sobre o que sabem e o que no sabem. O ato cognoscvel de sujeitos cognoscentesincide sobre o objeto do conhecimento sem nele terminar, j que o fim est no prprio serhumano. O conhecimento resultante do dilogo, porque encarna o que h de mais primevo nohumano, essencialmente comprometido com a humanizao do mundo e o restabelecimentode sua boniteza.

    Os dois filsofos, quando pensam na prtica dialgica, incitam os interessados na educao aconceberem-na como atitude inovadora e criativa. Para Buber (1979, p. 12) "Fazer criar,inventar encontrar. Dar forma descobrir. Ao realizar eu descubro." Da mesma forma,

    Freire (1987b, p. 18) v no ciclo gnosiolgico dois momentos, que se relacionamdialeticamente: um deles o do conhecimento do j conhecido e o outro o da produo donovo, o que para ele significa estimular nos educandos sua potencialidade criativa.

    O FUNDAMENTO DIALGICO DA EDUCAO INTERCULTURAL

    A multidimensionalidade do dilogo permite vislumbrar uma prtica pedaggica inovadora,fundada em princpios e em diretrizes que conflituam com a pedagogia bancria, umapedagogia antidialgica que ao instaurar uma diviso dicotmica entre educadores eeducandos, mantm as estruturas opressoras da sociedade de classes e se orienta para a

    subordinao das diversas manifestaes culturais dos grupos oprimidos historicamente.

    A pedagogia bancria apresenta-se, neste sentido, como prtica da no-comunicao, e oeducador tradicional ''em lugar de comunicar-se faz comunicados e depsitos que oseducandos, meras incidncias, recebem pacientemente, memorizam e repetem'' (FREIRE,1987a, p. 58). A conseqncia disto o favorecimento de uma ''cultura do silncio'',condicionando-os a um mutismo que permite a ''invaso cultural'' por meio desta educao.

    Neste contexto invasivo, antidialgico e opressor, h uma naturalizao do saber das classesdominantes que expressa a prpria naturalizao da diviso desigual da sociedade. Alm

    disso, a cultura do silncio impede o desenvolvimento das capacidades criativas dos sujeitosem formao, impe o processo de padronizao cultural levando negao das diversidadesexistenciais e culturais.

    Contra esta tradio pedaggica, intelectuais, educadores, movimentos sociais tm anunciadouma outra educao, que implique respeito aos contextos culturais dos educandos e quepromova o dilogo entre estes contextos, no que chamam de educao intercultural(SOUZA, 2001; FLEURI, 2003; SILVA, 2003).

    Percebe-se nos argumentos a favor da interculturalidade na educao, a defesa do dilogocomo fundamento desta educao, pois seu princpio bsico a abertura ao outro, o encontroentre sujeitos e culturas, a afirmao do direito de todos, independentemente de etnia, religio,

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    sexo, idade expressarem sua leitura de mundo, seu universo simblico, suas prticascotidianas, enfim, oethosdos diversos grupos socioculturais.

    medida que a inteculturalidade proporciona a afirmao e a vivncia destes princpios

    dialgicos, combate o autoritarismo, o etnocentrismo e a invaso cultural tpicos da pedagogiabancria. A sociedade a ser construda por meio da educao intercultural eminentementedemocrtica e multicultural e a utopia professada que nestas sociedades ''los derechoshumanos deben construirse en la interacin transcultural'' (OLIV, 1999 apud SOUZA, 2001,p. 84) criando:

    [...]condiciones para superar conflictos especficos entre culturasconcretas...reconocer el derecho de las otras culturas a preservarse, a florecer yevolucionar, y deben admitir, al mismo tiempo, que eso es compatible con laparticipacin de todas en la construcin y desarrollo de sociedade ms amplias, deautnticas sociedades multiculturales en los mbitos nacional e global. (idem, p.85).

    A educao intercultural se apresenta como uma forma de prxis transformadora que rejeitaqualquer forma de ver o mundo e as pessoas que nele vivem de forma homognea, unvoca,unilateral. Da que a nfase das discusses sobre a diversidade cultural e o processo deconstruo de identidades num contexto de pluralidade cultural a relaoque sujeitos,grupo, classes e culturas estabelecem entre si. A problematizao e a compreenso da rede designificados das aes de sujeitos culturalmente diferentes estabelecidas na relao inter-humana o desafio da educao intercultural e este desafio no tem outro objetivo seno oenriquecimento mtuo, o respeito e a f recproca no humano, a partir do encontro solidrio,crtico e alegre realizado na pronncia do mundo.

    A intencionalidadeda relao inter-humana e ser humano-mundo vincada na historicidade daexistncia humana nos mostra que nem sempre fomos amveis uns com os outros e com omundo, e que essas relaes basearam-se tambm na violncia. Nossos impulsos de violnciaimpuseram srios problemas ao existir pleno de nossa humanidade, existir fragmentado,antidialgico, pragmtico, coisificado.

    Tal violncia contra o humano e a sua humanidade se no tiver seu fim no dilogo, serminimizada por ele, como argumenta Moraes (1995, p. 76): O dilogo neutralizar osautoritarismos. E, conquanto, a violncia esteja no profundo de ns, seres humanos em geral,como constitutivo primevo que sobrevive, a vontade de dialogar ser a nica coisa capaz de

    minimiz-la. Logo, o dilogo na educao intercultural crtica face a esta realidadeopressora, oferece-nos estratgias poltico-pedaggicas para a humanizao dos sereshumanos e do mundo.

    Contra a violncia simblica e at mesmo fsica da educao bancria, aliada a sua invasocultural conseqente, o dilogo na prtica educativa intercultural instaura oencontro/confronto das diversas concepes, na busca de compreender a pluralidade de ver eviver o mundo de acordo com os vrios referenciais culturais, admitindo uma realidadepolissmica, lida de mltiplas formas sem se exclurem as leituras em falsas e verdadeiras,certas e erradas, inferiores e superiores; porque no dilogo a riqueza cultural embeleza

    o encontro e se realiza em plenitude num convvio democrtico, solidrio e amoroso.

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    V Colquio Internacional Paulo Freire Recife, 19 a 22-setembro 2005

    A prtica educativa intercultural valoriza a diversidade cultural no debate polticodemocrtico no combate contra qualquer forma historicamente reconhecida de manipulaoideolgica, massificao, esmagamento consensual, antidilogo. Pois os educadoresdialgicos esto comprometidos a escutar sensivelmente os grupos culturalmente oprimidos,

    sua voz de esperana e de vida melhor, e com eles buscar alternativas e solues para osnossos problemas. A prtica do dilogo viabiliza a vivncia democrtica na qual cada pessoatem o direito de se expressar, de ser ouvido e de intervir de forma crtica e consciente narealidade, pois s no dilogo possvel a prxis crtica.

    Defendemos aqui a vivncia do dilogo em sua radicalidade, que implica transformao nasestruturas materiais e simblicas que impedem sua existncia em qualquer dos espaos davida, evitando assim outras leituras do dilogo, como aquelas de tipo romntico, salvacionistaem que apenas com dilogo puro, ntegro resolvemos nossos problemas e as estruturas deopresso permanecem intactas e inclumes nesse processo.

    Sendo assim, o dilogo radical necessita de uma educao que privilegie a busca permanentedo sentido de comunidade em nossas vidas, e de sustentao dele em qualquer mbito daexistncia. Buber (1987) nos mostra que aeducao para comunidade a preparao para osentido de comunidade, educando a pessoa para manuteno possvel da relao EU-TU emtoda a sua imediaticidade, reciprocidade e totalidade em todos os momentos da vida.

    Defendemos que a prtica educativa intercultural deve se orientar para a formao de pessoaspara o sentido de comunidade, para o convvio dialgico, belo e feliz em todas as dimensesda vida.

    CONSIDERAES FINAIS

    A educao intercultural no sentido que aqui expusemos nos oferece subsdios para repensar ereconstruir a educao tradicional e, em particular, a escola, seu currculo, sua prticapedaggica e a sua lgica da sensaboria meritocrtica, mecncia, burocrtica, antidialgicaatual. Auxilia-nos na luta constante, histrica e tica de nos humanizar humanizando omundo.

    Luta que se faz aprendizagem significativa porque parte de nossas experincias de vida,

    categorias de entendimento, nossos referenciais culturais, num dilogo entre concepes eprticas sociais baseado em relaes solidrias, tornando o ambiente educativo alegre, belo eemptico. E cada vez mais estas relaes educativas baseiam-se numa cultura de paz e deresponsabilidade para com o mundo e com outro.

    REFERNCIAS

    BUBER, Martin.Eu e Tu. So Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

    BUBER, Martin.Sobre comunidade. So Paulo: Editora Perspectiva,1987.

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    FLEURI, Reinaldo Matias (Org.). Educao intercultural: mediaes necessrias. Rio deJaneiro: DP&A, 2003.

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    V Colquio Internacional Paulo Freire Recife, 19 a 22-setembro 2005

    FREIRE, Paulo. Conscientizao: teoria e prtica da libertao. So Paulo: Moraes, 1980.

    FREIRE, Paulo. Educao e Mudana.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

    FREIRE, Paulo. Extenso ou Comunicao? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987a.FREIRE, Paulo e SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1987b.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1996.

    MORAES, Regis.Violncia e Educao. Campinas: Papirus, 1995.

    OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno.Leituras freireanas sobre educao.So Paulo: UNESP,2003.

    SILVA, Gilberto Ferreira da. Multiculturalismo e educao intercultural: vertenteshistricas e repercusses atuais na educao. In: FLEURI, Reinaldo Matias (Org.). Educaointercultural: mediaes necessrias. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

    SOUZA, Joo Francisco de. Atualidade de Paulo Freire: contribuio ao debate sobre aeducao na diversidade cultural. Recife: Bagao; NUPEP, 2001.

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