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o Carnaval como um Rito de Passagem Quem foi Que Inventou O Brasil? Foi Seu Cabral, foi Seu Cabral No dia 21 de abril, Dois meses depois do Carnavall LAMARTINE BABO E' UM LUGAR-COMUM DIZER-SE QUE NA CONSCIÊNCIA estrangeira q Brasil é um país cuja melhor idealiza- ção é realizada pelo futebol e pelo Carnaval. Neste enorme pedaço de terra abaixo do Rio Grande, cuja J capital era muitas vezes Buenos Aires, o alienígena vê, além de abacaxis, bananas, palmeiras e igrejas colo- niais, bandos de negros e mulatos cantantes, tamborins em punho, camisas listradas, numa imagem que, além de sedutora, insinua calor, humanidade, lux˙ria e paz. I E' certo que tal imagem parece estar mudando na razão direta em que o Brasil passa a ser mais' conhe- cido no exterior. Mas não deixa de ser sociologicamente relevante constatar a persistência da imagem e, muito mais importante, que os próprios brasileiros. parecem assumir alguns dos seus componentes fundamentais. Assim, do mesmo modo que o estrangeiro, o brasileiro apresenta seu país (especialmente no exterior) como um território inigualável, talvez o ˙nico local do planeta ~ Cf. Walt Dlsney (Zé Cartoca) e Carmen Miranda. 19

O Carnaval Como Um Rito de Passagem

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Um texto de Roberto da Matta sobre o carnaval como um rito de passagem

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Page 1: O Carnaval Como Um Rito de Passagem

o Carnavalcomo um Rito de Passagem

Quem foi Que Inventou O Brasil?Foi Seu Cabral, foi Seu CabralNo dia 21 de abril,Dois meses depois do Carnavall

LAMARTINE BABO

E' UM LUGAR-COMUM DIZER-SE QUE NA CONSCIÊNCIAestrangeira q Brasil é um país cuja melhor idealiza-ção é realizada pelo futebol e pelo Carnaval. Nesteenorme pedaço de terra abaixo do Rio Grande, cuja Jcapital era muitas vezes Buenos Aires, o alienígena vê,além de abacaxis, bananas, palmeiras e igrejas colo-niais, bandos de negros e mulatos cantantes, tamborinsem punho, camisas listradas, numa imagem que, alémde sedutora, insinua calor, humanidade, lux˙ria e paz. IE' certo que tal imagem parece estar mudando na

razão direta em que o Brasil passa a ser mais' conhe-cido no exterior. Mas não deixa de ser sociologicamenterelevante constatar a persistência da imagem e, muitomais importante, que os próprios brasileiros. parecemassumir alguns dos seus componentes fundamentais.Assim, do mesmo modo que o estrangeiro, o brasileiroapresenta seu país (especialmente no exterior) como umterritório inigualável, talvez o ˙nico local do planeta

~ Cf. Walt Dlsney (Zé Cartoca) e Carmen Miranda.

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Israel Pechstein
Israel Pechstein
Israel Pechstein
o brasileiro perpetua estereótipos do seu país.
Israel Pechstein
DAMATTA, Roberto. O carnaval como um rito de passagem. In: ___. Ensaios de antropologia estrutural. Petropolis: Vozes, 1977, pp. 19-66.
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onde esta:' ideologia da tranqüilidade, da Paz social eracial, do sol, das comidas quentes, das praias, mulherese do samba, é atualizada integralmente. Mas o queseria o básico desta ideologia da tranqüilidade? Ou,em outras palavras, qual a mensagem e qual a institui-ção que melhor enfeixam tal imagem?De uma perspectiva estruturalista, deve-se inicialmente

ressaltar como se expressa nesta auto-imagem uma vi-são não-rotinizada do mundo. De fato, a definição doBrasil como um país cuja invenção tem como referênciao Carnaval, como uma terra onde as relações entre in- '.dios e brancos é definida por um beijo entre Ceci ePeri, traduz' Claramente a perspectiva onde as relaçõesentre categorias" eventos e pessoas são sempre tomadascomo pessoais; não parecendo haver lugar para: a auto-ridade e para uma definição mais rigorosa de posiçõessociais, os instrumentos críticos da rotina. Quando setrata, portanto, de buscar uma imagem totalizadora desua realidade social, 6s brasileiros parecem preferirassumir os aspectos "carismáticos" de sua sociedade,deixando de lado as estruturas inerentes às rotinas domundo cotidiano (cf. Weber, 1947:388ss).Seria esta preferência que transformou algumas das

composições de Lamartine Babo e Ary Barroso' emsucessos perpétuos. Pois por tomarem partido dos as-pectos carismáticos da realidade nacional, elas são pa-radigmas do modo brasileiro de ver o seu próprio mun-do. Mas mesmo em m˙sicas mais recentes, observa-seesta atitude, como no caso de "País Tropical" onde[orge Ben, ao definir o brasileiro, fala num país "bo-nito por natureza", numa terra "abençoada por Deus",comenta que se contenta com pouco: não é um "bandleader", "mas meus camaradinhas me respeitam", tem"um fusca, um violão", "uma nêga chamada Teresa"(o que, certamente, o protege da inveja e suas con-seqüências dos vizinhos e amigos) e, naturalmente, oCarnaval Nesta letra, como em in˙meras outras, es-tão novamente evocadas as mesmas imagens: mulatas;

• Especialmente -Aquarela do Brasil" (1939).

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samba, "vida mansa", modéstia compulsiva; "sombra eágua fresca", tudo isso sob a regência de um sistemasocial cujas regras são sempre concebidas pelo seu la-do pessoal e não autoritário. E' como se' os brasileirosquisessem sempre dar a: maior ênfase possível aos as-pectos "comunitários" de sua ordem social, deixandode lado o seu lado estrutural. Na estrutura, como co-loca Victor Turner, localizam-se, entre outros, os as-pectos da permanência, da autoridade, da posição de-finida, da não-espontaneidade social e ideológica, dasdistinções de status e riqueza, da secularidade e daobediência, da hierarquia e do conhecimento técnico.Na "comunidade" (ou cotnmunitas, como quer muitoapropriadamente Turner) situam-se as relações e os ele-mentos inversos: o pessoal em oposição ao impessoal, o.intuitivo em contraste com o técnico, a ausência de pro-priedade e de insígnia em contraste à posse e ao status(cf. Turner, 1969: 107).Communitas e estrutura, estão, pois; em óposição, do

mesmo modo que o "malandro" define um tipo de com-portamento inverso ao do "caxías" e o "jeitinho" umamaneira de resolver um problema em pleno contrastecom o modo burocrático de. executar um regulamento (ouuma ordem), aplicando-o mecânica e impessoalmente auma questão:Voltarei mais adiante a esses temas. Agora desejo ape-

nas apontar que a perspectiva exposta acima parece sermuito produtiva no enfoque de certas instituições e ca-,tegorias sociais vigentes no Brasil, as quais - emboraimportantes - somente têm recebido um tratamento jor-nalístico e semi-sociológico.Uma vez adotada a posição analítica a seguir, será

.possível indicar que o Carnaval parece ser a instituiçãoparadigmática desta visão do Brasil como uma grandecommunitas, onde raças, credos, classes e ideologias co-mungam pacificamente ao som do samba e da miscige-nação racial, aqui vista como um traço quase-hereditáriodo caráter nacional português."• Tal é a posição de Gilberto Freyre e seus seguidores, para citar o

mais célebre expoente contemporâneo de tal Ideologia. Cf. Freyre,' 1933.

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O_f.arnaval seria o sumário perfeito desta visão anti-cotidiana da' vida brasileira. Um ritual que, ao rompercom o continuum da vidà diária, aponta gritantementepara alguns pontos básicos da nossa ordem social.E' deste ponto de vista que, neste ensaio, estudarei o

Carnaval. Para tanto, tomo como ponto de partida umaletra musical que, a meu ver, traduz de modo soberboos componentes essenciais deste, festival. Trata-se da letra·da m˙sica '''Noite dos Mascarados", de Chico Buarque deHollanda, apropriada aqui à maneira de Claude C¤vi-Strauss no seu Mythologiques I como uma "letra de re-ferência" (cf. Lévi-Strauss, 1964). Isso significa que a

:v m˙sica será usada como um texto deflagrador para aanálise de certos componentes do Carnaval, servindocomo uma introdução aos temas e problemas que consi-dero críticos na instituição: as modificações do comporta-mento, as fantasias e os domínios que sua análise per-mite penetrar.

NA ANÁLISEESTRUTURALda letra de "Noite dos Mas-carados", estou assumindo a mesma posição j á apresen-tada nos outros ensaios deste volume. De fato, a colo-cação é tão simples que, para parafrasear E. R. Leach,até mesmo os, chamados estrutralistas brastlelros serãocapazes de entendê-Ia. Trata-se simplesmente de tomar a

'J letra musical cÇ>mouma descrição (ou uma etnografia)da instituição, procurando, com esta atitude metodoló-gica, controlar as minhas próprias idéias e preconceitosem relação ao significado da festa. Tal posição tem, poroutro lado, duas conseqüências diretamente importantes:a) ela obriga a colocar de quarentena esquemas inter-pretativos j á estabelecidos; b) ela exige que se tomeuma letra, uma categoria social, um tipo popular ou umaexpressão, respeitando integralmente a capacidade dosinformantes como agentes que - tal como o cientistasocial - também refletem sobre a sua própria realidade.O primeiro momento da análise, portanto, será o de

redefinir ou "traduzir" a letra escolhida em termos das

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categorias sociais que supostamente ela estaria expres-sando.Tal como ocorre com a famosa "A Banda", em "Noite

dos Mascarados", ,Chico Buarque de Hollanda conta umahistória. A letra, portanto, tem um conte˙do dramáticoque segue de perto o esquema clássico apresentado porAristóteles segundo o, qual, no drama, "os acontecimen-tos, que se produzem em, acordo com a verossimilhançaou a necessidade, mudem em infort˙nio e felicidade dapersonagem principal ou inversamente a 'façam transitardo infort˙nio para a felicidade" (cf. Aristóteles, 1959:283). Realmente, nas duas letras mencionadas - àsquais pode-se, ainda, acrescentar a letra de "Sonho deum Carnaval" - Chico Buarque de Hollanda abre am˙sica com uma ~ituação inicial onde se define um mo-mento positivo (como em "Noite dos Mascarados") ouUin momento negativo (como em "Sonho de um Car-naval") ou, simplesmente, um momento neutro e tedioso,como em "A Banda". Nestas composições observa-se,ainda, de acordo com o paradigma aristotélico, os ele-mentos da "ação complexa": o reconhecimento e a peri-pécia. Nas duas m˙sicas que se referem ao Carnaval, aperipécia e o reconhecimento são dados quando se dáconta de que o Carnaval simplesmente terminou (comoem "Sonho de um Carnaval", onde se canta: "Carnavaldesengano, deixei a dor em casa me esperando"), quan-do se verifica que é justamente porque é Carnaval queo~ncontro é plenamente realizável (como em~oitedos Mascarados") ou, ainda, quando a banda acaba depassar definitivamente e o tédio e a rotina voltam adominar. 'O que há de comum nas três m˙sicas é precisamente

a nostalgia da communitas, intuitivamente apresentadapeTo compositor do modo perfeito. Assim, as letras apre-sentam estruturas homólogas entre si e também ao' pa-drão bastante conhecido dos mitos de sociedades tribais,conforme uma tradição da antropologia social que vai deDurkheim, Mauss, Hertz e Van Gennep até Lévi-Strauss.Tais estruturas narrativas são caracterizadas por uma

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ponto de partida: Noite dos Mascarados de Chico Buarque de Holanda
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chico Buarque conta uma história
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nostalgia da comunitas
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inversão da situação inicial, havendo um momento inter-mediário onde uma situação extraordinária e, muitas ve-zes, caótica é estabelecida.' Vistas por este prisma, taisnarrações correspondem de perto à mesma situação dos"ritos de passagem", onde os noviços, inicialmente crian-ças (ou não-iniciados), passam por um momento inter-mediário de morte social (um momento em que estão àmargem ou numa situação liminar) para, finalmente, re-,nascer com uma nova máscara social, integrando-se no-vamente na sociedade, agora como adultos (ou iniciados)(cf. Van Gennep, 1960).Nas letras em consideração, a estrutura é exatamente

a mesma. Na m˙sica "Sonho de um Carnaval" e em"Noite dos Mascarados", é o festival que marca o mo-mento da fuga do cotidiano, o momento da marginali-dade total, permitindo uma inversão da rotina da vidadiária e a conseqüente entrada na communitas. Na "Ban-da", é a passagem de uma banda de m˙sica que criaum "carnaval", provocando uma neutralização ou saídada rotina: o povo se despede da dor, quem está à toaencontra uma motivação para sair do tédio, quem contadinheiro pára, quem estava triste fica alegre, etc... E'somente depois que a banda acaba de passar que "tudotoma o seu lugar", voltando à regularidade das coisaspermanentes e tediosas. A narrativa é fechada e a comu-nidade torna-se novamente estrutura.No caso específico da letra que desejo analisar, o

carnaval surge como um elemento a ser definido. Emoutras palavras, a estrutura narrativa propõe um con-junto de eventos que ajudam a compor uma situaçãoespecial, definida e percebida como Carnaval. Vejamoscomo isso ocorre de modo mais detalhado:A m˙sica é estruturada a partir de um diálogo entre

.._/um homem e uma mulher que se sondam, procurandouma resolução para este contraste básico e inicial. Asperguntas e respostas, bem como as outras frases destediálogo podem ser reordenadas no seguinte esquema:

• .Nos outros ensaios deste volume, essa estrutura é também facilmentevisível. Veja-se igualmente Da Matta, 1970,

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OPOSIÇõES DE «NOITE DOS MASCARADOS»

Homem Comum aos dois Mulher

(I)

1. Quem é você? 2. Adivinhe se gosta de mim...

3. Hoje os dois mascaradosprocuram os seus namoradosperguntando assim:

4. Quem é você? Diga logo, 5. Que eu quero saber o seuJogo

7. Que eu quero me arder noseu fogo

6. Que eu quero morrer noseu bloco

(11)

8. Eu sou seresteiro,poeta e cantor,

9. O meu tempo inteiro sózombo do amor

10. Eu tenho um pandeiro12. Eu nado em dinheiro15. Eu, modéstia à parte,

nasci prá sambar17. Meu tempo passou19. Eu sou Pierrot

11. Só quero violão13. Não tenho tostão14. Fui porta-estandarte, não

sei mais dançar16. Eu sou tão menina18. Eu sou Colombina

(I1I)

20. Mas é CarnavalNão me diga mais quem é vocêAmanhã tudo volta ao normalDeixa a festa acabarDeixa o barco correrDeixa o dia raiarQue hoje eu souDa maneira que você me querO que você pedir eu lhe douSeja você quem forSeja o que Deus quiser ...

A reordenação da letra, realizada acima, permite sa-lientar alguns pontos imediatamente:

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estrutura de mitologia tribal: inversão da situação
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rito de passagem:
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A situação inicial (I) é marcada por uma atmosferacaótica ou ambígua. Realmente, o encontro de dois seresmascarados, que se revelam apenas sexualmente, remetea um contexto onde apenas importam as identidades'básicas de uma pessoa: o sexo e a idade.Por outro lado, as máscaras indicam uma situação

informal, onde as pessoas podem realizar aquilo que de- .sejam porque têm escondidas por trás de um disfarceas suas identidades sociais que operam na vida diária.Esses dois componentes, portanto, remetem a uma si-tuação extraordinária, oposta tanto à vida cotidiana(onde não se deve usar máscaras), quanto aos rituaisopostos, onde o que domina é a formalização.' Tra-ta-se de uma situação que Leach chamou de masca-fada, cujo caráter, é o seguinte: "Aqui o indivíduo emvez de dar ênfase a sua personalidade social e ao seuI status oficial, procura disfarçá-los. O mundo surge nu-ma máscara, as regras formais da vida ortodoxa sãoesquecidas" (cf. Leach, 1961: 135).Mas, ao lado desses pontos, a letra revela qu~ os dois

mascarados desejam igualmente realizar uma entregatotal e se exigem, pela repetição da mesma pergunta,uma definição m˙tua de outras identidades sociais. Asituação inicial, deste modo, embora seja anômala, ain-da não permite uma entrega total de um mascaradoao outro: daí a sua ambigüidade. Realmente, na si-tuação posterior (11), onde os dois mascarados come-çam a se definir, é introduzido o risco de se destruir apossibilidade do extraordinário e da criação da commu-nitas, porque as respostas acentuam oposições e contra-dições, em vez de eliminá-Ias. A ambigüidade inicial é,

• E' Importante constatar Que para a maioria das sociedades ocidentaise, especialmente, no Brasil, apenas se cohsideram as situações altamenteformalizada, como sendo verdadeiros rituais, As situações onde o com-portamento Informal é especifico e prescritlvo não são vistas como rituais,mas como um "Carnaval" ou uma "festa". Mas, conforme demonstraLeach, é muito mais proveitoso considerar as solenidades e os "masque-rades" como um par de opostos e procurar descobrir se, numa mesma so-ciedade, os dois tipos de rituais são equivalentes, Na sociedade brasileira,tudo Indica Que as ˙nicas solenidades equivalentes e opostas ao Carnavalsão a Semana Santa, especialmente a Sexta-Freira da Paixão, situada de-pois do Crnaval, e, de modo significativo, antes do "carnaval" da Ale-luia, e os rituais civicos de 7 de Stembro, analisados mais adiante.

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portanto, mantida e ampliada, na medida em que os doismascarados desejam se conhecer melhor. E isso é reali-zado precisamente porque eles não -se dão de modo in-tegraI e fazem sondagens preliminares.A fase 11 da m˙sica atende às indagações dos per-

sonagens, definindo melhor suas identidades. Mas asrespostas remetem a qualidades, predileções e proprieda-des igualmente ambíguas. Em outras palavras, as res-postas definem identidades que no cotidiano jamais se-riam apresentadas de modo tão direto e com tanta fran-queza. Assim, o homem se define como seresteiro, poetae cantor, atividades marginais e tipicamente carismáti-cas, 21 passo que a mulher responde falando de suasatitudes em relação ao amor. Em seguida, enquanto ohomem se associa ao pandeiro (um instrumento tipica-mente masculino e de percussão), um instrumento quenão sola, acompanha; a mulher comenta, coerentementecom sua primeira resposta (zombar do amor), que "sóquer violão". O mascarado 'retruca que tem muito di-nheiro e a mulher revela-se inteiramente pobre, numaruptura simultânea do padrão de modéstia compulsiva,vigente no cotidiano brasileiro. Contiriuando o diálogo, amulher se revela ex-porta-estandarte e dançarina, aopasso que Lo homem se coloca como sambista. As res-postas seguintes ampliam as oposições, pois a mulherdiz-se menina e o homem velho e o diálogo chega aoseu ponto irredutível no final: o homem é Pierrot e amulher Colombina.Os contrastes entre os mascarados percorrem, assim,

um caminho interessante: Eles se iniciam com a polari-dade sexual, marcada pela esperança fenninina de "mearder no seu fogo" e a masculina de "morrer no blocoda mulher", isto é, entrar no bloco da mulher, umafrase que endereça diretamente a posição sexual do ho-mem como penetrador e iniciador do diálogo. Em se-guida as oposições são ampliadas pelo contraste da po-sição masculina como um ser que vive cantando o amor(é seresteiro, poeta ,e cantor) e da mulher que não levao amor a sério. Os instrumentos musicais associados a

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na situação inicial da letra só importa as identidades básicas de uma pessoa: sexo e idade
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letra acentua a ambiguidade, oposição
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cada um dos mascarados reforçam tais contrastes e nasquatro oposições seguintes a polaridade chega ao seumomento crítico e irredutível. E' o momento em que opar deve tirar suas máscaras ou desistir do encontro,pois que as oposições atingem a posição social (ri-queza/pobreza), as idades (velho/menina) e o papelque cada um desempenha: PierrotjColombina.A resolução dessas polaridades só é possível quando

os dois mascarados se dão conta simultaneamente deque é Carnaval e estão vivendó uma época liminar, ondetudo é permissível. Em outras palavras, na' communitasnão é preciso definir identidades sociais, sendo suficientemanter a. posição inicial: um homem e uma mulher quedesejam um encontro.A análise estrutural de "Noite dos Mascarados" per-

mite a discussão nesta parte dos componentes básicosda instituição. Realmente, a análise revela que, na m˙-sica de Chico Buarque de Hollanda, três pontos podemser destacados: '

1. O Carnaval é definido como uma situação especial, comseus participantes usando disfarces (máscaras) e altamente mo-tivados para vivenciar um' momento pleno de inconseqüênciase que não admite questionamento.

2. O Carnaval cria um contexto onde, embora possam surgircontradições e oposições, elas não devem ser levadas em conta-.O momento é de comunhão, 'não de diferenças.

3. No Carnaval todas as oposições' podem ser, de um lado,dissolvidas ou neutralizadas; de outro, acentuadas porque sãoinvertidas, Assim, na m˙sica analisada, a mulher se apresentano encontrei sem mediações, perguntando, oferecida mente, «adi-vinhe se gosta de' mim», numa inversão do comportamento re-catado e modesto vigente no cotidiano. Do mesmo modo, o'masc~rado coloca sua «modéstia à parte», revelando-se um sam-bista, numa outra inversão do recato que opera numa situaçãonormal. •

• E' díf'ícll observar no Brasil uma situação onde uma pessoa capazde r ealiz ar bem alguma tarefa - tocar bem um instrumento, dançar,cantar, nadar, etc, - não demonstre .11m falso recato ao ser solicitada afazer uma demonstração de suas Qualidades, Há duas categorias chulaspara tais atitudes compulsivas no Brasil, denominadas: "fazer chiqué de

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A m˙sica de Chico Buarque de Hollanda, deste modo,salienta claramente alguns componentes que permitem de-finir o Carnaval como um período onde as regras so-ciais vigentes na vida diária são temporariamente sus-pensas, neutralizadas ou invertidas.Mas "Noite dos Mascarados" não está só no quadro

das definições sociologicamente coerentes e sensíveis doCarnaval brasileiro. Os temas e as oposições que apre-senta repetem-se em outras m˙sicas do mesmo compo-sitor e de outros, sendo realmente uma invariante detodos quantos tentaram definir o Carnaval, não impor-tando o local, o tempo em que escreveram, sua posiçãovis-à-vis a festa ou, ainda, o modo que utilizaram parainterpretar a instituição. .Tomemos outra m˙sica de Chico Buarque de Hollanda.

Trata-se de "Sonho de um Carnaval", onde as' oposi-ções são as seguintes: '

Carnaval Cotidiano

Desengano, sonhoRua, cidadeAlegriaArisfocracia, reinadoFolia, canto'Fraternidade, solidariedadeCriança(Profano)(Liberdade)

RealidadeCasaDorMediucridade socialSolenidade, Igreja (Quarta-feira)Hierarquia, desarmoniaAdulto(Sagrado)(Constrangimento, repressão)

Onde se observa que, tal como ocorre na canção an-terior, a passagem entre, essas colunas antitéticas só' épossível graças ao Carnaval, que cria as categorias dacoluna da esquerda. Nesta letra, portanto, existem não

polaca", ou seja, proceder como uma prostituta polonesa fingindo ser umavirgem, ou, mais claramente, fazer (teu doce", expressão com o mesmosentido Que significa fazer-se dlfícll. CI simbolismo sexual das duas ex-pressões certamente mereceria maior atenção, mas pode-se sugerir Que aequação subjacente ao simbolismo é aquela Que denota uma visão negativado feminino, pois só as mulheres necessariamente devem negar as coisasboas Que· podem realizar. Por outro lado, Quem sempre se dispõe a fazero Que sabe na primeira solicitação é sempre classificado como "apresen-tado" e "oferecido".

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sonho de um carnaval
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só as idéias de communitas e de estrutura, como tambéma contastação de que no Carnaval tudo fica invertido,tal como ocorre na' m˙sica de, Tom Jobim & Viniciusde Moraes, "A Felicidade", onde o Carnaval é definidocomo "uma grande ilusão" que termina na quarta-feira,durando tão pouco como a própria felicidade. Em "Más-cara Negra", de Zé Keti, aparece a mesma opção decommunitas no verso "vou beijar-te agora, não me levea mal, hoje é Carnaval!", num final homólogo ao daletra analisada linhas atrás. O tema das inversões surgeainda na m˙sica de Marcos Moran, "Até Quarta-Feira",onde um casal se propõe inverter o status de sua re-lação no Carnaval, brincando separados. O mesmoocorre com a m˙sica "Carnaval", de Carlos Elias eNelson Luís de Barros, onde a igualdade entre "gentebranca ou de cor" é finalmente possível. Do mesmomodo, a m˙sica recente de Caetano Veloso, "Chuva,Suor e Cerveja", estabelece pelo caos o rompimentocom o cotidiano (numa imagem certamente menos ro-mântica do Carnaval brasileiro) e o clássico da nos-talgia de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, "Marchada Quarta-Feira de Cinzas", situa no Carnaval quepassou toda a riqueza humana, em contraste terrível'com as "cinzas" que passaram a dominar a sociedade, brasileira, a partir de um certo momento.

A estas m˙sicas somam-se um sem-n˙mero de textosescritos, todos igualmente colocando os mesmos proble-mas. Vale a pena citar alguns, justamente para de-monstrar o ponto de vista inicial das invariantes estru-turais do Carnaval.Coelho Neto, por exemplo, escreve em "Carnaval de

Outrora", "E era o Carnaval alegre da intriga - más-caras indiscretas que punham na rua, às escâncaras, ospodres deste ou daquele, atracações gaiatas; volta emeia um rolo, apitos, corre-corre. E, se aparecia umacartola, caíam-lhe todos em cima, reduzindo-a a san-fona" (in Louzada, 1945 :67). Já Olavo Bilac descreveum tipo social, o carnavalesco, como o exemplo perfeitodo "homem Iiminal", como demonstra o texto: "Acontece, (

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às vezes, que o carnavalesco já não é um rapazola, semfamília e sem deveres sociais: - é um homem maduro,negociante matriculado tendo próprio casal e nele assis-tindo, tendo mulher e filhos, tendo apólices e comenda.Pouco importa! E' um carnavalesco ... Na vida dessehomem, de vida regrada e equilibrada, o Carnaval é umhiato, é uma síncope, é a anulação completa de suaconsciência de homem e de chefe de família, é a sus-pensão absoluta de toda a sua gravidade de 'negociantee de comendador" (in Louzada, 1945:74).No livro organizado por Wilson Louzada em 1945, os

textos são semelhantes quando se trata de opor os as-pectos estruturais aos comunitários da ordem social bra-sileira. Há, deste modo, não só as descrições que exaltamo Carnaval, como os dois textos acima, onde CoelhoNeto e Bilac tomam uma atitude distante, porém sim-pática ao festival; mas aquelas mais contraditórias, comoo trecho de Gracilíano Ramos: "Animavam-se todos eperdiam a compostura, acabavam achando aquilo inte-ressante. Alguns viam perfeitamente que estavam fazendomaluqueira e desregravam-se com moderação, quase apedir desculpas encabuladas à cidadezinha pacata. Ho-mens graves, pais de família, tisnados, bebendo, aos gri-tos. Mau exemplo, doidice. Na quarta-feira retomariama sisudez necessária" (in Louzada, 1945: 171) . Graci-liano Ramos, com sua penetração habitual, apresenta ocontraste das identidades (pais de família/foliões) e osentimento de culpa que a quarta-feira de cinzas' apre-senta de modo tão inexorável aos participantes do Car-naval. Notem que, como nas m˙sicas analisadas, os es-critores aqui citados sempre mencionam a antítese entreestas duas modalidades de ser, tão marcadas na reali-dade brasileira: a estrutura e a communitas.

A ANÁLISE das canções e da apresentação de textosrealizadas linhas atrás permite a demonstração dos com-ponentes mais gerais e perceptíveis do Carnaval brasi-leiro. Cabe agora indagar, detalhadarnente, sobre os íns-

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visão menos romântica
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trumentos que permitem ou criam as condições para queo cotidiano se transforme no extraordinário do festivalcarnavalesco. Em outras palavras, trata-se de uma in-dagação a respeito dos mecanismos através dos quaissão obtidas as transformações analisadas nos textos enas m˙sicas. ', Não resta a menor d˙vida que um dos mecanismosutilizados para romper com a rotina da vida diária eingressar no contexto "onde tudo ~ possível" é a inversãodo comportamento cotidiano. E' isso que as letras de-monstram claramente. Mas para que uma neutralizaçãoou inversão do cotidiano seja obtida,- a sociedade uti-liza certos artifícios universais. No caso do Carnavalbrasileiro, o instrumento básico para atingir o ambientecomunitário é o uso de fantasias. Um outro, talvez me-nos importante, mas igualmente significativo, é uma mu-dança de comportamento e atitudes. E' preciso, ainda,observar que tal distinção apenas pode ser realizadaanaliticamente. Na realidade, ambos surgem simultanea-mente, sendo praticamente indissociáveis. Começamoscom o comportamento.u'ma mudança radical que chega' com o Carnaval

(ajudando dialeticamente a criar e consubstanciar a festa)é que as relações entre as pessoas não são mais funda-mentalmente definidas em termos de símbolos sociais.Com isso pretendo dizer que, no Carnaval, os media-dores que operam relacionando posições e relações so-c.@i§deixam de ser importantes. As roupas passam a sermais "práticas" (geralmente apenas uma calça compri-da _ou calção e uma camisa esporte) e o próprio ato 'devestir-se deixa de ser orientado segundo a posição ouambiente social, para ser determinado pelo fato de queno Carnaval as pessoas querem "brincar", o que exigeliberdade de movimentos. A roupa, portanto, que é so-ciologicamente uma poderosa máscara de status, simpli-fica-se; assumindo as suas funções mais rudimentares:servirá para cobrir o corpo sem procurar tolher ou im-pedir os seus movimentos. A mudança radical é, pois,uma liberação do corpç, humano dos seus símbolos de

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posição, riqueza e prestígio. De fato, pode-se' dizer, semexagerar, que no Carnaval o corpo é' despido e o nor-mal é uma nudez, senão física (como acontece freqüen-temente), ao menos social. E' uma afirmação do corpohumano como o instrumento básico de expressão do serou a mais simples redução da pessoa humana àquiloque ela possui de mais autenticamente seu. As roupas,portanto, que servem na vida diária para marcar posi-ções sociais e descontinuidades entre os sexos, reduzem-se no Carnaval a sua expressão mais simples. De modoque, nesta ocasião, vestir-se é freqüentemente um des-pir-se (literal ou metaforicamente, no ato de colocar umafantasia). Por outro lado, a liberação do corpo de seusdeveres regulares de cabide de identidades sociais étambém um ato simbólico que equivale a um voto depobreza e humildade: um despoj amento de tudo aquiloque marca as pessoas como ocupantes de certas posiçõespermanentes na, vida cotidiana. Neste sentido, nada émais oportuno do que lembrar o famoso "Baile do Ca-bide" e o "Baile da Chave", ambos diretamente ligadosà nudez física e social.Outro aspecto ligado a esse despojamento e liberdade

dados ao corpo é o relacionamento entre os participantesda festa. No Carnaval, as pessoas são identificadas co-mo "foliões", ou seja, seres solidários e obedientes so-mente às figuras que simbolizam a própria festa (Momo,estandartes,' hinos dos seus blocos, etc ... ). A divisãoé, assim, entre uma verdadeira massa indiferenciada defoliões de um lado e Momo do outro,' tal como ocorreentre os neófitos de um ritual de passagem, irmanadosna sua liminaridade e comandados pelos instrutoresa quem devem cega obediência, conforme demonstra ma-gistralmente Victor Turner (1967: Capo IV).O ato de despir-se vale por um "deixar revelar-se",

um soltar-se na sua própria fantasia, utilizando o corpo,esse instrumento fundamental de todo o ser humano. Defato, no Carnaval as pessoas devem engajar-se "brincan-do", "pulando", "cantando", "farreando", ou ainda, maisexplícita e claramente, "esbaldando-se" e "arrebentando-

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como é que o cotidiano se transforme no extraordinário?
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,se", verbalizações que invariavelmente remetem ao usoe abuso do corpo, numa alusão significativa a um mo-mento onde os homens estão interagindo sem seus me-diadores rotineiros. Apenas utilizam o seu próprio corpo:braços; quadris, pernas, voz, face, gestos.A constàtação é importante porque, no Brasil, ocorpo

é um instrumento básico de demonstração de sentimen-tos e posições sociais. Expressões como "pobre, mas lim-po", "preto de alma branca", "deu um banho de bolaem fulano", "lavei a alma", "lavar a-égua", etc... e o'uso das palavras "sujo" e "sujeira" para denominaremfalta de caráter ou atos anti-sociais, demonstram como aidéia de limpeza física ou o uso metafórico da águae do banho servem como veículos para ressaltar asidéias fundamentais relativas ao bom cumprimento de umdever, tarefa ou obrigação ("lavar a égua", "dar umbanho de ... "), a noção de catarse ("lavar a alma"),expressar uma posição social aceitável, apesar das apa-rências em contrário ("preto de alma branca", "pobre,mas limpo") e, ainda, a separação de posições sociais noclássico "vá tQJTIarbanho" (cf. Mário de Andrade, Ma-cunalma, para o mito da origem da expressão). 7

Não é, portanto, ao acaso que uma das fantasias clás-sicas do Carnaval é a de sujo. Realmente, o sujo é ca-racterizado por uma máscara informe e uniforme, portrastes velhos, permitindo que o seu portador mergulhesimbolicamente no universo da plena ambigüidade, pois

7 E' Interessante comparar a expressão sujo e sujeira com o uso ame-ricano da palavra equivalente, dirty, Nos Estados Unidos diz-se: "Fulanotem uma mente suja" (He has a dirty mlnd) ou He is a dirty otâ man(literalmente, "Ele é um velho sujo") ou; ainda, We went to see a dirtypicture ("Fomos ver um filme sujo"), significando com Isso não propria-mente Que as pessoas referidas ou o filme sejam fundamentalmente antí-sociais, mas Imorais no sentido estrito de serem ligadas a coisas obscenas,Assim, a expressão He is a dirty old man (bem como as outras), valeem português do Brasil como a expressão: "Ele é um velho sacana","Vimos um filme de sacanagem" ou "Ele é' um sacaria". Mas o usode sujo em brasileiro é muito mais ligado a atos anti-sociais e a maqui-nações onde uma pessoa engana a outra e não propriamente a sexo eobscenidades. Enquanto nos Estados Unidos sexo parece ser igual a coisassujas, no Brasil a idéia é muito mais a do sexo ser igual a alguma coisaambigua, porém basicamente boa e Interessante,E' preciso não esquecer, por outro lado, Que "estar limpo" pode signi-

ficar, no Brasil, a falta total de dinheiro com a Implicação patente de Quea abundância de dinheiro é equivalente a "sujeira", Neste sentido, /.a equa-ção brasileIra é a da riqueza com a sujeira e bastante diversa da ame-ricana, conforme me indicou Wagner Neves Rocha.

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o sujo remete a uma aparência imunda e simultanea-mente a um comportamento exageradamente álacre eagressivo; uma conduta louca no sentido de que o blocodos sujos sempre pode pregar uma peça e colocar o es-pectador no ridículo. Numa palavra, o sujo sempre podefazer uma sujeira! Seja desmascarando o espectador,seja exigindo dele e de sua consciência de homem daclasse média alguma coisa, como fazia um personagemmuito popular da, televisão nacional alguns anos atrás,quando pedia ordenando: "Me dá um dinheiro aí!". Poroutro lado, a fantasia esconde propositalmente idade esexo, não deixando saber quem se esconde por trás desua máscara estereotipada de tela colorida. O sujo,assim, se assemelha tanto aos demônios infantis do Hal-loween norte-americano, quanto aos estados mais drás-ticos de plena Iirninaridade vigentes em alguns grupostribais, onde os noviços são despidos de suas máscarassociais e se transformam, no momento ritual, naquilo queVictor Turner chamou muito apropriadamente de primamateria: um estado bruto onde não se está nem dentronem fora da sociedade (cf. Turner, 1967: Capo IV etambém 1969: 172ss). A expectativa é muito mais a damoldagem e a da atribuição de uma identidade, comonum ato de nascimento, conforme demonstra bem a per-gunta perene', dos sujos, com sua voz rouca, como umpedido suplicante e enganoso para renascer: "Você meconhece?" .Verifica-se, portanto, que o comportamento se inverte

no Carnaval pela liberação do-corpo. Enquanto na vidadiária a prescrição é o resguardo, o comportamento res-trito e altamente consciente do corpo, pois as pessoasdevem "ter modos", na folia do Carnaval o corpo deveser revelado." O recato e a parcimônia de gestos, trans-

• Observe como um brasileiro fica chocado com uma mulher ou umhomem Que aparente não ter uma aguda consciência do, seu próprio corpoe esbarra em todos, ou senta-se numa poltrona abrindo as pernas e en-costando suas coxas nas do vizinho, A ambigüidade parece decorrer dofato de o corpo ser um emissor de sinais e, no exemplo acima, Issocorresponde a um sinal de Que os limites de segurança da distância sociale física foram invadidos, Não é pois casual Que, no processo de sociali-zação do brasileiro, exista uma forte preocupação para Que a criança do-mine logo o seu corpo e possa "comportar-se", isto é, venha a sabero Quanto antes os limites dos seus gestos e de suas aproximações fislcas.

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sujo - significado em português
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formam-se em demonstrações abertas de alegria, como setodos pudessem nos três dias de Carnaval finalmente di-zer que "comigo tudo vai bem", ao contrário do célebre"vou indo", vigente no dia-a-dia. Ninguém deve escon-der o seu' jogo e a falta de sociabilidade rotineira desa-parece para dar lugar a um gesto típico do "brincar oCarnaval": as pessoas, de braços abertos para cima,abraçam simbolicamente todos os foliões (e, por exten-são, a humanidade), cantam e requebram os quadris,olham-se firmemente nos olhos e, fazendo caras expres-sivas, representam uma conduta que certamente seriataxada como de "sem vergonha" na vida cotidiana. Nestegesto aparentemente simples de conciliação com o mundohá toda uma expressão de alegria e liberdade que aprópria posição dos braços demonstra claramente. Defato, no cotidiano, o levantar e abrir' os braços é umgesto conotativo de grande emoção, como acontecequando dois grandes amigos se encontram na rua ou,num caso extremo, quando se ganha na loteria. Aforaestas situações, o gesto só se repete nos jogos de futebolquando um jogador consegue marcar um gol e de algummodo olha para a torcida abrindo os braços, num ato demagnanimidade, como faziam os políticos populistas emgrandes comícios. O gesto é, portanto, característico desituações extraordinárias, exceto no Carnaval, quandopassa a ser um sinal de fraternidade universal, própriodo momento ritual.'Um outro componente da inversão carnavalesca é' que

o comportamento cotidiano é temporalmente revirado. Defato, não pode passar desperceb(do que, nos dias deCarnaval, dorme-se de dia e anda-se de noite. Há umaparada das atividades regulares e o seu tempo de rea-lização rotineiro é suspenso e invertido, passando a sera noite. O tempo noturno, assim, freqüentemente con-tínuo e não marcado, é demarcada, conforme ocorre,com as atividades diárias, pois os' bailes de Carnaval eos desfiles de Escolas de Samba são' tomados como

• 'Para um estudo pioneiro e hoje clássico destas "técnicas do corpo",veja-se Marcel Mauss, 1960:365-384.,

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pontos de referência para descontinuidades: a noite,portanto, fica igual ao dia. O espaço também é inver-tido no Carnaval. O centro da cidade, esse local demediação entre todos os bairros e todas as gentes -chamado nos centros urbanos de "cidade" e no interiorde "rua" - deixa de ser o n˙cleo dos negócios e dalegitimação da rotina. E' decorado com motivos ingê-nuos e, andando no centro da cidade de noite, é comoestar numa cidade do interior: o trânsito de veículos foisuspenso, as ruas estão ocupadas por pessoas que cal-:mamente observam o "movimento" do Carnaval. O gran-de centro urbano transforma-se numa pracinha do in-terior. Do mesmo modo, o comportamento dos adultosem relação às crianças muda de modo significativo, poisas crianças passam a ter tudo no Carnaval. Inclusive seuspróprios bailes, num tipo de relacionamento inverso da-quele vigente nas festas de aniversário infantis, onde areunião é para a criança somente na forma, pois de,fato trata-se de uma festa de adultos. E" como se oCarnaval tivesse que atingir a todas as idades e ascrianças também tivessem direito a ele,Mas onde certamente há uma inversão mais marcada

é nas relações entre os sexos. No Carnaval as mulheresnão só devem estar, na rua e nas festas, como tambémdevem, ser vistas. O exibicionismo feminino é, assim,uma característica dà testa conforme revela o costumetípico' do Carnaval brasileiro de ter-se nos bailes asmulheres em cima das mesas e 'dos balcões em trajessumários. Assim, do mesmo modo que há uma demons-tração imodesta de sa˙de, beleza, riqueza, etc ... , háigualmente uma suspensão das normas que comandamas relações entre os sexos e os homens revelam suasmulheres a todos. São as mulheres que passam aberta-mente a comandar o espetáculo, pois o Rei Momo égordo e representa uma figura onde a gula substituiu osexo, mas a Rainha do' Carnaval é sempre uma vedete deformas perfeitas. Um outro aspecto demonstrativo destainversão é que as mulheres podem ser abraçadas e apal-padas, na medida em que o recato que comanda as re-

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espaço e carnaval
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lações entre os sexos, especialmente em p˙blico, é sus-penso. lO Aliás, em relação a esse tema, é ainda ChicoBuarque de Hollanda quem ilumina a questão quandodiz na sua recentíssima m˙sica: "Eu vejo as pernas delouça da moça que passa e não posso pegar", mas"tõ me guardando prá quando o Carnaval chegar."

o OUTRO mecanismõ crítico para o estabelecimento dainversão carnavalesca são as fantasias. Realmente, essasvestimentas especiais ocorrem não só nas m˙sicas e tex-tos mencionados, mas também entre as pessoas que sedispõem a falar do Carnaval. Num pequeno inquériterealizado entre estudantes, a maioria produziu respostasonde a fantasia era situada como um dos elementos fun-damentais na sua conceituação do Carnaval. U

Em termos sociológicos, pode-se dizer que uma fan-tasia é uma máscara social 1. conscientemente assumida

10 Outro aspecto 1'-elacionado ao comportamento carnavalesco feminino éaquele Que pode ser chamado, ainda Que com ceda reserva, de "transecarnavalesco", O "transe carnavalesco" pode ser notado Quando as pessoassão virtualmente possuídas pelo ritmo e m˙sica e parecem perder o con-trole do seu próprio corpo, especialmente em fins de bailes, Quando a"animação" é maior. Tal conduta é especialmente visivel no caso de mu-lheres, confirmando o Que diz Mary Douglas: "as maiores possibilidadesde abandonar o controle consciente são somente dadas na medida em Queo sistema social relaxa seu controle sobre o individ'uo" '(1970:81). De modosimplistico e como hipótese pode-se dizer Que as mulheres estariam maissujeitas ,ao "transe carnav~lesc?" porque np cotidian~, elas são 'ele-mentos Importantes, 'mas nao ídeologlcamentê reconhecídos na estruturasocial. O transe assumiria, assim, no Carnaval brasileiro, um aspecto fun-damentalmente agressivo, conforme a ínversãç descrita acima para aconduta feminina. fazendo parte de uma mesma sindrome do estado li-minar criado pelo festival. ~U O inquérito abrangeu cerca de 90 pessoas de nivel universitário (es-

tudantes graduados, pós-graduados e alguns professores) e consistiu noseguinte: uma definição do Carnaval como se o sujeito estivesse tentandoexplicar a festa' a uma criança ou um estrangeiro e uma lista de cincofantasias com as Quais o informante tivesse tido uma experiência direta (fan-tasiando-se ou vendo um(a) amlgo(a) fantasiar-se), O resultado foi notávelem termos de uma recorrência de certas fantasias e, ainda, nas definiçõesdo Carnaval como um momento de "descompressão", "liberdade", "libe-ração", "expansão", "extravasamento"; numa palavra, de catarse coletiva,conforme O fio analitlco condutor deste ensaio, Desejo expressar meusagradecimentos às Professoras Cláudia Menezes Paes de Oliveira, Maria He-lena Dias Monteiro, Maria Rosilene Barbosa Alvim, Marllla Carvalho deMello e Alvim e Yvonne Maggle Alves Velho, Que colheram grande partedeste material junto aos seus alunos da Universidade do Estado da 'Gua-nabara, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade FederalFluminense,

12 Uma fórmula sem d˙vida redundante, mas bastante' eficaz caso setenha em mente as formulações clássicas de MareeI Mauss (1960:333ss).

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e marcada por um sinal exterior visível, com freqüên-cia delimitado culturalmente e, de modo conseqüente,estereotipado. Deste modo, o índio, o cowboy, o piratae a baiana do Carnaval reproduzem apenas parcialmenteas atitudes e as vestes destes personagens. Não se tratade uma reprodução nos termos de uma homologia, masde uma representação de alguns traços que a culturabrasileira define, como sendo essenciais a uma criaçãode fantasia (ou de brincadeira) do tipo. Uma reprodu-ção autêntica (que guardasse uma relação de um-para-um com o original) seria provavelmente impossível ou,então, cairia na categoria da "fantasia autêntica", cujoambiente apropriado é muito mais o ambiente não-car-navalesco. Realmente, tais fantasias são próprias de ou-tros festivais, onde elas aparecem marcando tipos regio-nais, categorias profissionais ou alegorias, passandoassim a ser "trajes" e fardas. Nas paradas da Semanada Pátria, por exemplo, as fantasias de crianças procu-ram apresentar tais correspondências bi-unívocas comos tipos em representação. Assim, é comum nesses des-files ver-se crianças "uniformizadas" de médicos, sol-dados, enfermeiras, professores, carpinteiros, operários,etc ... , mas aqui a idéia é a de criar um modelo emescala do tipo real, muito mais do que tomar apenas umdos seus traços, numa atitude mais próxima do queLévi-Strauss chamou de bricolagem. l' A diferença básicaentre esses trajes parece ser a seguinte: no Carnaval oque se leva em consideração são aqueles aspectos queremetem ao que a coisa representada tem de ambíguoou negativo; ao passo que nos desfiles regionais e nasparadas infantis o que se pretende é chamar atençãopara o lado positivo do tipo em desfile. Por exemplo:a fantasia do médico no ritual cívico surge na suaseriedade e focalizando o aspecto construtivo do papel

11 A bricolagem pode ser sucintamente conceituada como a ação deconstruir coisas com pedaços de outras coisas, num projeto onde o "brlco-leur" não possui nem um plano rigldo preestabelecido, nem os instru-mentos e elementos adequados à sua ação. A substituição e a metáforasão, deste modo, peças cruciais do processo de bricolagem (cf. Lévl-Strauss, 1962a; o ensaio Mito e Autoridade Doméstica, neste volume, etambém Da Matta, 1965).

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fantasias e inversão
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bricolagem - Lévi Strauss
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social. No Carnaval, a ênfase é deslocada para os as-pectos ambíguos 'da categoria profissional e o médicoaparece cercado de duas formosas enfermeiras. Enten-de-se, portanto, porque certas fantasias são proibidasdurante o Carnaval. Primeiro, porque elas revelariam ocaráter de "fantasia" de certos trajes característicos deposições sagradas; segundo, porque elas chamariam ne-cessariamente atenção para os aspectos negativos, am-bíguos ou destrutivos destas categorias. A relação entreas vestes dos desfiles cívicos e os papéis sociais repre-sentados é, conseqüentemente, uma relação que pode serchamada de metonírnica (baseada que está na continui-dade), enquanto o 'traje carnavalesco é uma fantasia por-que está fundado nos aspectos metafóricos da represen-tação de um tipo social. Assim sendo, o general doCarnaval é o famoso "general da banda", o seu malan-dro tem sempre uma' camisa listrada e o pirata "umaperna de pau, um olho de vidro e uma cara de mau". ,E' justamente porque as fantasias não estão preocu-

padas com uma correspondência centrada na homologiaque é possível a duas pessoas fantasiadas de palhaço,por exemplo, viverem suas fantasias de modo fundamen-talmente diverso, embor.a os sinais exteriores do tipoque tentam criar sejam semelhantes e de acordo com ummesmo modelo cultural. Há, na fant~ia, a possibilidadede variar interpretações dentro de um mesmo tipo, oqual possui referências ideais (ou estereotipadas) no có-digo cultural. E' essa possibilidade de variação que aju-da a interpretar o termo fantasia, corno algo relacionadotambém ao imaginário e aos seus subuniversos de signi-ficação correspondentes: o universo do sonho, da morte,do sono, da loucura e de tantas outras áreas segrega-das do mundo cotidiano.Nesta conceituação de fantasia fica evidenciado que

o termo não se refere somente àquelas vestimentas doCarnaval, mas a todas as roupagens usadas em momen-tos onde se pretende estabelecer uma demarcação deidentidades sociais; ou seja, em todos os momentos ri-

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tuais." Nesta perspectiva seria possível falar em fardascomo fantasias, já que tais vestimentas igualmente se-gregam posições sociais e as ações que lhes correspon-demo A diferença é que as fardas são por definição uni-formes (ou seja, um traje que serve para igualar todosos membros de uma corporação) e parecem se referira situações formais, onde a liberdade interpretativa so-fre coerções, enquanto as fantasias seriam caracteriza-das como instrumentos de liberação. Deste modo, 0

traje militar, a beca e outras vestimentas típicas decertas posições sociais têm, entre outras, a função denelas esconder o seu portador, protegendo o papel de-sempenhado da pessoa que o desempenha. A fantasia,ao contrário, ao introduzir manifestamente uma máscara,revela. Coerentemente com tal distinção, há ainda o fatocrítico de que as fardas (e outras vestes formais) sãoexclusivas de certas situações e posições rigidamente de-finidas, ao inverso da fantasia carnavalesca que é livre,para ser assumida por qualquer folião. Tudo indica queos trajes formais operam em eixos de significação es-treitamente dimensionados, sendo parte e parcela de umdomínio social bem definido. De modo que, para o lei-go, é possível saber o subuniverso ao qual tais vestescorrespondem, mas é difícil decifrar todas as informa-ções nelas contidas. E' o que ocorre; por exemplo, nu-ma festa de embaixada onde seria' possível distinguir opaís de um dignitário (pelas cores de sua faixa), masnão se saberia interpretar o significado de suas conde-corações. O mesmo se daria com os militares, pois oleigo distinguiria o uniforme como sendo do Exército,Marinha ou Força Aérea, mas não saberia distinguir ummajor de um coronel, nem dizer a especialidade do mi-litar ou "ler" sua carreira pelas suas medalhas. Poroutro lado, as vestes formais investem no seu portadorum alto sentido de representatividade. O traje representa

U Assumo aqui a mesma posição de Leach e de outros antropólogossociais Que consideram O ritual como o traço distintivo de Qualquer açãosocial Que objetive: a) a comunicação social e b) a evocação de poderesocultos, Apenas seriam não-rituais as condutas onde os meios e osfins guardassem uma relação direta e mecânica, como O ato, por exemplo,de derrubar uma árvore (cí. Leach, 1966). '

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fantasia - imaginário
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não só o homem, mas a corporação a que pertence, asua localização dentro desta corporação em termos ho-rizontais (especialização) e o seu posto (localização emtermos hierárquicos). E' exatamente por isso que se diznas forças armadas que a "continência é dada ao posto,não ao homem". 16 Já nas fantasias o eixo das signifi-cações parece ser cósmico, no sentido de a representaçãoremeter sempre na direção das áreas ambíguas e pro-blematizados de uma cultura.No caso do Carnaval brasileiro, as fantasias reme-

tem sempre às áreas ambíguas ou limites da nossa so-ciedade. Numa fórmula tentativa, mas que será matiza-da no decorrer da análise, pode-se dizer que tais vesti-mentas e caracterizações se endereçam aos subuniversosde significação considerados como problemáticos: sejaporque gostaríamos de tê-los incorporados a nós mes-mos; scj a porque estão nos limites de nossa percepção,ação e conhecimento; seja porque' estão tão dentro deRÓS que passam despercebidos na existência cotidiana,sendo preciso um momento especial para que sejam re-conhecidos. ,.Ao tentar uma análise destas vestimentas, menciona-

ria em primeiro lugar as fantasias que' pretendem repre-.sentar estrangeiros e pessoas classificadas como exóti-cas, cujo universo escapa ao nosso controle, mas que nos.gscinam. São as fantasias de aristocratas: os nobres ereis que surgem no período carnavalesco, personifica-dos pelas vestimentas de "dama antiga" e "Luís XV".As japonesas, os escoceses, gregos antigos, romanos,beduínos, índios, egípcios, chineses, holandeses, tiroleses,havaianas e baianas. Aqui, o eixo que parece permitir aapropriação destas figuras como seres exóticos é o dotempo e do espaço. São seres que representam um mundo

:111 Ao dIscutir tais problemas, multo me beneficiei das reflexões de ErvlngGoffman (1959 e 1967).,. A análise Que 'se segue está fundada no material colhIdo no InquérIto

já mencionado. Cabe dizer Que o problema não se coloca em termos quan-tItativos nem exaustivos, pois não era minha Intenção Inventariar o re-pertório de fantasias do Carnaval brasileiro, nem explorar suas diferencia-ções regionais. Creio, ainda, ,Que o dado sIgnificativo é Que a reflexãoparte de uma lista de fantasIas obtidas junto a uma geração jovem e su-postamente em pleno processo de mudança.

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distante.jpu então já liquidado (como os romanos, egíp-cios e gregos). Tais figuras também remetem a tiposque coexistem conosco, mas nos confins do nosso uni-verso geográfico e espacial: os chineses, japoneses, be-duínos, holandeses, etc. .. Gente diferente por suas rou-pas (holandês =, tamancos; escocês = saias; índios= penas), seu comportamento (os orientais são comedi-dos e maquiavélicos, fazendo parte do complexo alta-mente difundido no Brasil, chamado de "perigo ama-relo"; os índios são selvagens), por suas marcas fe-notípicas. A cada classe corresponde, como verdadeirostotens, certos traços distintivos, escolhidos pela culturabrasileira como um sinal de diferenciação. 11 De modogeral, portanto, tais personagens são desconhecidos e lon-gínquos e quando não se situam nestas categorias, comoo caso da baiana e dos aristocratas (que podem, defato, estar presentes na realidade social), podem mani-pular uma sabedoria poderosa ou mágica de certas es-feras da vida social: o sexo, os temperos e a culinária(baiana), os instrumentos de prestígio e poder (comoos aristocratas), os segredos da vida e da morte (típicoda concepção popular do Egito Antigo) e vivem emambientes paradisíacos (como as havaianas). Ou então,são seres destituídos da moralidade estreita que pesasobre a classe média durante todo o ano, como é o casodas idealizações dos romanos e gregos antigos .Tudo indica que tais fantasias são fantasias exata-

mente pela extrema distância (geográfica, histórica ousocial) que separa, tais seres do homem brasileiro, im-pedindo - como sugere Leach (1964) - qualquer re-lação social com eles, o que explica a sua percepçãopelo prisma que se convencionou chamar de exotismo.Tais personagens possuem, assim, atributos ideológicos

17 Estou seguro de Que se poderia replicar os resultados do trabalhode Thales de Azevedo, "Imagens e EstereótIpos Raciais e Nacionais",caso a pesquisa tivesse sido orientada no sentido de se, Indagar do in-formante uma caracterização do tipo em representação, A vantagem de ..umestudo exaustivo dos estereótipos raciais e nacionais a partir das fantasiascarnavalescas seria a de estar-se colhendo um conjunto de traços espon-taneamente dados, num discurso Que pode ser chamado de não-motivado,Isto é, uma Informação dada livremente pelo informante, a partir de suaspróprias idéias sobre o mundo social e sem ser deflagrada pelas categoriasutilizadas pelo pesquisador, como é íreqüentemente o caso.

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fantasias exóticas
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tipos estrangeiros
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poderosos e, muitas vezes, negativos: são desconhecidos,poderosos e incontroláveis. Mas no Carnaval o que sefocaliza é o seu componente invejado: sua liberdade,sabedoria, requinte, poder; seu lado hedonístico e posi-tivo. Note-se, portanto, que estas' fantasias provavelmenterevelam aspectos importantes da concepção que o brasi-leiro faz do estrangeiro e, do membro da realeza. Poisa seleção dos aspectos positivos e invejados, no momentoonde se deseja inverter a realidade cotidiana, indica apossibilidade simétrica ,e inversa: a focalização dos seustraços negativos quando se vive a rotina da vida diária,conforme é demonstrado no trabalho de Azevedo.Outro grupo de fantasias é aquele caracterizado por

pessoas que desempenham atividade~~stas como peri-gosas e heróicas. São os toureiros, bandeirantes, garim-'peiros, trapezistas, gladiadores, jóqueis, membros da Le-gião Estrangeira, vaqueiros (cowboys) e policiais, per-sonagens que estão constantemente se _ arriscando e,quando se saem bem, são celebrizados e consagradoscomo heróis. Exercendo atividades que implicam na me-diação entre a rotina e o extraordinário, tais tipos co-nhecem técnicas consideradas como difíceis, que exigemum penoso treinamento, além de um extraofdinário con-trole de suas próprias emoções. Estas são figuras queoperam no universo carregado do que Goffman deno-minou "conseqüencíalidade" e, portanto, repleto de açãoe emoção. De fato, nestas atividades corre-se constante-mente o risco de estar-se jogando com a própria vida, demodo que a profissão tem aspectos que transbordam osseus próprios limites e podem atingir toda a existência doprofissional (cf. Goffman, 1967: 149ss).Neste grupo estão as fantasias passíveis - como as

de aristocratas - a servirem de matéria-prima para aschamadas "fantasias de luxo", já que elas permitem uminflacionamento simbólico de figuras heróicas - comocertos imperadores, toureiros e bandeirantes - ao pontode se chegar ao revestimento barroco e decadente, tão agosto de certos grupos sociais. Por outro lado, parecempermitir uma dupla idealização do tipo tomado como re-

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) ,

ferência: uma idealização bi-unívoca, no sentido de' queo tipo é sempre, representado em busca de uma corre-lação com a realidade cotidiana, como ocorre com as'fantasias de policiais e pistoleiros usadas pelos membrosda classe média, e outra onde a imaginação é livre paracriar uma fantasia na qual tais tipos profissionais sãorevestidos por uma visão luxuosa (ou esplendorosa).Há, também, uma classe de fantasias basicamente fe-

mininas. Aqui é possível estabelecer uma subdivisão emdois grupos; assim constituídos: no primeiro, teríamos asfantasias do tipo "baby-doll", odalisca, empregada, ve-dete, melindrosa e gatinha. No segundo, teríamos as fan-tasias femininas de bailarina, borboleta, jardineira epastora.A primeira diferença entre essas subclasses é que a

segunda serve também como fantasia infantil. A segun-da é que as fantasias do tipo vedete, odalisca e "baby-doll" remetem indisfarçadamente a uma idealização damulher como objeto sexual. Os dois subgrupos de fan-tasias femininas, deste modo, apresentam duas idealiza-ções antagônicas da mulher. Numa ela é vista através deseus atributos positivos e controláveis. E' a mulher pas-tora e jardineira que, delicada e domesticamente, cuidade seres naturais, frágeis e puros; é a mulher bailarinae borboleta que tem em si a arte, a finura e a belezadas coisas inefáveis. Tais fantasias guardam uma espé-cie de coerência entre significante e significado, pois quetanto a coisa representada pela fantasias quanto quem aveste reafirmam a imagem da mulher ideal, pura, bela,recatada e doméstica. A mulher que é sensível à mortedas flores e que, cuidando apenas do jardim, está con-finada à autoridade do seu amo e senhor, conforme asm˙sicas Jardineira e Malmequer (de, respectivamente,B. Lacerda e H. Porto; e N. Teixeira e C. de Alencar).A outra idealização que esta classe de. fantasias per-

mite descobrir é aquela que salienta exatamente o opos-to: a mulher como um ser essencialmente tentador, pro-vocante, agressivo. Não é mais uma imagem bucólicaou pastoral da mulher, como ocorre no grupO) anterior':'

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mulher domesticada, controlável, infantilizada
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mulher tentadora, seuxal, agressiva
Page 15: O Carnaval Como Um Rito de Passagem

mente estudado, mas uma visão sensual do feminino nosseus aspectos mais agressivos, e incontrolados. E' umaimagem centrada na sexualidade feminina, tomada comoum instrumento de obtenção de .adrniração, prestígio .epoder ...Este grupo de fantasias, deste modo, reproduz no

Carnaval duas idealizações possívéis da mulher brasi-leira. A_ da mulher que tem sua selCualidade contro-lada e a serviço dos homens, e aquela cuja sexualidadeé colocada a seu próprio serviço, fora do poder mascu-lino, num tipo de, comportamento freqüentemente estig- ,matizado. lO De modo curioso, mas de maneira algumasurpreendente, a mulher no seu papel cotidiano de do-méstica e mãe surge no Carnaval' apenas na forma detravestis. São as fantasias cômicas, _por vezes grosseiras,vestidas por homens, que representam a mãe e o neném(ambos com seus atributos femininos e infantis visivel-mente' exagerados). Neste tipo de representação da mu-lher, os atores geralmente se comprazem em 'falar deproblemas domésticos: .a mulher tem ci˙me do marido,falta dinheiro para a despesa, o neném está sujo e pre-císa ser trocado. Trata-se, evidentemente, de uma sátiramasculina às atividades femininas mais roflnlzadas e maissagradas, constituindo-se numa agressão à mulher comofigura materna e controladora do mundo doméstico -da mulher como a "patroa" ou, como tem colocado ma-gistralmente o caricaturista Ziraldo, como Super-Mãe. '"No Carnaval, portanto, a mulher-mãe, patroa, dona .decasa e grávida é alvo de agressões; numa indicaçãosignificativa a todos os recursos que ela pode manipular

(

,. Veja-se, por exemplo, os versos: "Gosto Que me enrosco de ouvirdizer / Que a parte mais fraca é a mulher / Mas o homem, com suafortaleza / Desce da nobreza / E faz o Que ela Quer" (SinhO, Gosto queme Enrosco, 1928). A esta Imagem deve-se acrescentar os travestis Querepresentam esta mesma Idealização, mas de' forma exagerada, agressivae, conseqüentemente, provocam choques com a ordem masculina na suaaparente segurança,la A m˙sica de Ataulfo Alves e Mário Lago, Ai que Saudades da Amélia,

canta o contraste entre essas duas variantes do feminino brasllelr o,'" Cf. Dâ Nela, de Ary Barroso (1930), Solteiro é Melhor, de R. Soares

e F. Silva (1940) e o clássico da regressão, Mam(fe Eu Quero, de V.Palva (1937). Esta m˙sica, que merecia um estudo à parte, satiriza, demodo bastante contundente a famllla nuclear, os laços de afinidade esitua o Carnaval como um grande ˙tero' materno,

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para ter poder, mas que não são reconhecidos na vidadiária. E a revelação parece ser importante quando sesabe que, tradicionalmente, existe no Brasil uma ideo-logia (e toda uma sociologia) do "patriarcalismo", ex-cluindo a mulher de uma participação crítica na vidasocial. '"Num quarto grupo estão as tantasías que podem ser

chainadas de "cósmicas". Trata-se de caracterizações demonstros, bichos, diabos, caveiras, bruxas, morte e ou-tros seres pertencentes à legião do sobrenatural. São elesos representantes mais adequados deste mundo proble-mático e incontrolável: o mundo das trevas, do mal eda morte. Banidos que estão dos reinos celestes, taisentidades são constantemente exorcizadas na vida diária,onde os homens procuram proteção e distância de seuspoderes quase sempre malignos.Essas entidades estão, assim, situadas entre o Reino

dos Céus e o mundo dos homens, onde parecem vagarlugubremente em busca de aliados. São seres disformese de difícil classificação (como os monstros e bichos),pois se definem por seus extraordinários poderes, osquais __:_entretanto - podem ser orientados contra tudoe contra todos. Se Deus é um ser difuso (é um espíritoperfeitíssimo, onipotente, onipresente e onisciente), mascom poderes claramente orientados para o bem do ho-mem, tais seres - por oposição - são bem definidosfisicamente, mas seus poderes são desorientados. Podemser aliados e inimigos, mestres e servos, empregados epatrões, relapsos e curnpridores de suas obrigações, sé-rios e galhofeiros. Tal como ocorre com sua própriaaparência física (do morto-vivo) , suas potencialidadesde ação são também basicamente ambíguas. Sendo assim,não é possível estabelecer uma relação sistemática comtais entidades sem que se corra um risco.Com os santos é sempre possível estabelecer relações

contratuais, onde se coloca a possibilidade de um con-trole m˙tuo. Os homens cultuam o santo, mas em con-

%I Num artízo inspirador, Manuel Berllnck estuda a posição da mulherno Brasil, mas a partir de letras de m˙sicas populares e numa perspec-tiva histórico-social.

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mulher doméstica representada pelo homem
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fantasias cósmicas
Page 16: O Carnaval Como Um Rito de Passagem

trapartida o santo protege os homens", uma aliança on-de os poderes são controlados e orientados no sentidode um duplo proveito. Mas com tais entidades isso nãoé possível.Realmente, sua própria origem está fundada no rom-

pimento de contratos: seja pela desobediência do casaloriginal (que trouxe a morte, o trabalho e a vergonha),ou pelo narcisismo de L˙cifer, que gerou todo o mal.Rompidos os "contratos cósmicos" com o Criador, foramtambém criadas as áreas e os seres intermediários. Sur-giram não só os profetas e sacerdotes (mediadores posi-tivos entre Deus e os homens), mas igualmente os me-diadores negativos: os mortos-vivos, as caveiras, os dia-bos menores e as bruxas, seres que servem de ponte nãomais entre os homens e Deus, mas entre os homens e oMal. Nesta interpretação, portanto, é o rompimento dapolaridâde inicial (entre Deus e os anjos e entre Deuse o homem) - equivalente ao rasgar de Um contrato -que gera os subuniversos das trevas, ao mesmo tempoque coloca a necessidade de um novo contrato oualiança." Neste sentido, entende-se por que os' demô-nios são seres do Carnaval, ao passo que os santos,profetas e outras entidades positivas são dele banidos.Realmente, anjos e santos são seres da estrutura, valedizer: da imobilidade bem-aventurada que chega coma perfeição onipotente e remete' a' flocos de nuvens e,arpejos. Mas os monstros carnavalescos pertencem ao do-mínio frenético da mobilidade, da ação incessante dofogo do inferno e da busca para uma .insatisíação nãoorientada. Esse é o seu tempo, conforme alerta o Ca-

.. Para um caso onde tais relações efetivamente ocorrem, veja-se o en-saio sobre a panema neste volume ... Minha Interpretação difere da de Leach (1969) em vários pontos. Para

mim, Leach fól "mais realista Que o Rei" ao propor, na sua Interpretação,Que o mito do Gênesis poderia ser destotallzado e desconsiderado comonarratlva. Não me parece ser esta a mensagem de Lévl-Strauss. Ao con-trário, O mito pode e deve - sempre Que possivel :- ser visto tambémna sua lógica Interna, como narrativa, já Que os eventos descritos porele obedecem, tanto Quanto o seu conjunto, a leis estruturais. Há, pois,uma ordem no Gênesls: primeiro a natureza, depois o homem; Inicialmentea desorganização no Céu, depois na terra; em prlrneiro lugar a separaçãodos sexos, depois dos casais, Irmãos e tribos. Foi assim Que abordeI. omito da origem do branco, em Mito e Autoridade Doméstica, tambémneste volume, e Que "l'erence Turner realizou sua brilhante análise do mitode ~dlpo (cf. Turner, 1969).

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tecismo: "31. Que males resultam das dissipações doCarnaval? Nas dissipações do Carnaval arrefece-se apiedade, multiplicam-se os escândalos e as ocasiões depecado e assim se estorva o fruto da Quaresma" (Ter-ceiro Catecismo da Doutrina Cristã, Ed. Vozes, 1957:173) ..Mais uma vez encontramos uma coerência entre o apa-

recimento de seres ambíguos e escondidos e o Carnaval,período de tempo igualmente anômalo, espremido entre() nascimento e' a morte de Cristo.Finalmente, pode-se destacar as fantasias que repre-

sentam tipos' problemáticos e marginais. São os mendi-gos, as ciganas e escravas, espantalhos, presidiários, pi-ratas, palhaços e malandros, esses habitantes dos do-mínios fronteiriços entre a ordem e a desordem, a li-berdade e o confinamento. Tal como se o Carnaval ti-vesse aberto os porões da sociedade, eles surgem emsuas formas mais puras e estereotipadas aparecendo comtodo o seu poder de provocar o caos inerente à naturezaque lhe atribuímos, Este é o momento em que tais figurasescusas são legitimadas", pois no Carnaval o que se fo-caliza são seus atributos invejados: sua vida em co-munidade fraternal, seu descaso pela riqueza e poder,sua capacidade de permanecer à margem e nos inters-tícios da estrutura social, burlando normas, passandopor baixo , das regras de etiqueta, fazendo pouco casode quem está seriamente investido no jogo social.Tais personagens, confinados em áreas especiais da

nossa sociedade, adquirem sua força porque, num sen-tido muito vigoroso, 'conhecem os dois lados da vida.Podem, assim, ser tipificados pelo palhaço e pelo ma-landro. De fato, palhaço e malandro são duas figurasimportantes da vida social brasileira, na medida em queexpressam, respectivamente, uma marginalidade psicoló-gica e uma marginalidade social. '" Assim, o palhaço éum ser essencialmente inconsciente e inconseqüente,

.. Cf, a m˙sica e a fantasia da Nega Maluca, 'expressivas de uma fi-gura duplamente marginal: uma mulher negra e maluca porque' revelaabertamente suas relações com seu amante,'" Veja-se Vianna Moog (1956:298ss) e também Aritõnlo Cândido (1970).

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tipos problemáticos e marginais
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assumindo na sua pessoa os aspectos mecânicos e auto-máticos das ações humanas, componentes que - deacordo com Bergson - seriam críticos na comicidade(cf. Bergson, 1956). O mundo próprio dos palhaços éo circo, um universo onde as regras que constrangemo mundo cotidiano são subvertidas. Lá, onde há homensque se transformam em máquinas, animais que procedemcomo homens, seres humanos que são capazes de viverna água e as próprias leis universais da física são desa-fiadas, o palhaço tem o seu momento nos entreatos.Entre o n˙mero dos trapezistas e o dos domadores,surgem os palhaços com seus gestos inconseqüentes, au-tomáticos e seus rostos ambíguos de riso e choro, esta-belecendo não só uma divisão entre as funções, masigualmente marcando a ambigüidade e a desordem datroca de cenários e de vestimentas. A figura do palhaçode circo, assim, é semelhante a do jester édas corteseuropéias, aos quais era permitido - no entre ato socialda união do Rei (que representava a própria estruturasocial) com o bobo deformado (que estava fora da so-ciedade) - criticar e ridicularizar o Soberano e seusvassalos (cf. Gluckman, 1965: 102-104). No Brasil, demodo semelhante, a expressão "palhaço" é ofensiva ecobre os comportamentos' considerados inconseqüentesdaqueles que "dizem tudo o que pensam" em situaçõesonde a gramática social manda esconder o que se pensa.A "palhaçada" é, pois, um .modo de proceder que, co-loca a olho riu uma pessoa ou uma situação, interrom-pendo a interação social e fazendo reconsiderar decisões.Tal como o palhaço de circo e o "bobo da corte"(jester), a categoria expressa no Brasil o ser do entreato,o personagem ou o comportamento que criam ambigüi-dade, numa homologia perfeita entre o homem que é ou"banca o palhaço" e a própria situação onde ele temseu lugar." De fato, a "palhaçada" consiste em expor-se (ou expor os outros) ao ridículo ("dar urn vexame")

.. Observação Que confirma e amplia a sugestão de Mary Douglas (1968),'segundo a Qual a anedota e o comportamento jocoso (da palhaçada) seriam,homólogos à própria circunstância social onde eles ocorrem, PMa umensaio pstcanalítlco sugestivo sobre o Circo, veja-se Rascovsky, 1970.

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- O que, no caso do homem brasileiro, deve correspon-der a uma den˙ncia da sua capacidade de controlarcertas situações sociais. E', pois, muito provável que acategoria "palhaço" seja definidora de um comporta-mento inconsistente com a figura ideal do macho brasi-leiro,. já que o termo pode ser empregado para definiro homem cuja mulher lhe é infiel, como sinônimo de"corno" e "cabrão", sendo altamente ofensiva." E aquiverifica-se a mesma congruência, já que o marido enga-nado nada mais se torna do que o homem do entre ato,marginal perfeito entre uma relação de sua esposa comseu amante.Aliás, neste contexto, vale mencionar as famosas fan-

tasias de Pierrot, Colombina e Arlequim, personagensque, aparecendo em cena no final do século XVII, pro-vavelmente no teatro' italiano, foram nacionalizados noBrasil a' ponto de se transformarem em verdadeiros sím-bolos do Carnaval. A relação do Pierrot com o palhaçoé patente ; seus trajes são semelhantes e seu papel éidêntico. Ambos são sistematicamente infelizes e enga-nados pela Colombina, cujo amante, o Arlequim, acabalevando a melhor. Deste modo, tais fantasias manifestam,no Carnaval, o célebre triângulo amoroso tão presentena vida matrimonial brasileira. A popularidade das trêsfiguras deve estar, conseqüentemente, relacionada ao po-der feminino de tornar seu .marido um Pierrot (ou pa-Ihaço), destruindo sua honra e sua imagem na sociedade.E' como se o Carnaval apontasse claramente a possibi-lidade, sempre presente ao marido brasileiro, de poderser enganado por não perceber bem uma situação.Em contraste com o palhaço, o malandro é sempre

visto no Brasil de um ângulo simpático e positivo. Assim,diz-se que o mundo do malandro é "a' própria vida".

., A aílrmação está fundada na' minha própria observação e tambémem entrevistas preliminares, visando caracterizar o malandro como cate-goria social. Por outro lado, o comportamento inconsciente do palhaçoparece ser um elemento Importante na caracterização de um tipo Que lheé afim, o otário. Tudo Indica Que o otário é O ponto final do comporta-mento Inconseqüente, Quando define concretamente uma vitima da malan-dragem, Desejo registrar aqui os meus agradecimentos a Marla_' do CarmoVandeck, estagiária do Departamento de Antropologia do Museu Nacional,Que multo me ajudou realizando essaS entrevistas.

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Pierrot Colombina e Arlqeuim (XVII)
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malandro
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E' na chamada "escola da vida" e na "escola de samba"(um equivalente simbólico da própria existência) que omalandro aprende o que se chama significativamente' noBrasil de "arte da malandragem". A "malandragem",ou seja, a atividade própria do malandro, é, portanto,definida positivamente, assumindo a expressão - namaioria dos' contextos onde é empregada - uma tona-lidade de elogio, admiração e inveja. Ela revela, acimade tudo, a sabedoria de quem utiliza o sistema para', seu próprio benefício, não sendo nunca uma "vítima dascircunstâncias", como acontece com os Pierrot e os pa-lhaços. Aos malandros é comum ainda atribuir-se a ex-pressão "fulano é um filósofo" 28 e as categorias "vivo","vivaldino", "sabido", "esperto", "gozador", todas ex-pressivas de uma capacidade sutil, audaciosa e, acimade tudo, inteligente de manipular todas as leis, regula-mentos, fórmulas, portarias, regras e códigos em seupróprio benefício. Não é, pois, por mero acaso que afigura do malandro seja tão admirada e idealizada noBrasil. Estando a um passo da marginalidade e a outroda estrutura, o malandro é o paradigma do tipo brasi-leiro do homem que é capaz de "vencer sem fazerforça". E' o tipo que permanece "na sombra e na águafresca", enquanto seus patrícios correm para cumprir eaplacar seus superiores diante de um novo decreto.Numa oposição mais marcada à figura do malandro,

existe a categoria do "caxias", o personagem que cum-pre todas as normas e "exige dos seus subordinados omaior respeito às leis e regulamentos" (cf. Buarque deHollanda Ferreira, 1961 :260), também chamado de "cer-tinho", "quadrado", "bom-moço", "durão", "careta" e,antigamente, "cu-de-ferro", "cu-de-aço" ou "c.d.f.". Re-cusando-se a utilizar o sistema para si, o "caxias" éa idealização do mais perfeito conformista. Sua inapti-dão revela-se na sua rejeição do "jeitinho", isto é, napossibilidade de redefinir um problema de modo não-

rotineiro, abordando-o pelo seu lado pessoal e não bu-rocrático. Assim, o "caxías" e o malandro têm em co-mum o fato de serem altamente conscientes das regrassociais, mas com a diferença essencial de que o malan-dro vive os códigos para si, ao passo que o "caxias"os tem em si, ou seja, ele vive o "regulamento peloregulamento". Mas ambas as categorias diferem da depalhaço, a qual define um tipo de comportamento basi-camente inconsciente e, por isso mesmo, provocador derespostas automáticas e irrefletidas às situações.A esse esquema de oposição trinário correspondem

três tipos de Iiminaridade aos quais se pode acrescentarum quarto tipo vigente na sociedade brasileira: º domendigo ou do pária social (que,' no Carnaval, surge'como o "sujo")." Tudo indica que esta figura do páriasocial está diretamente relacionada à do malandro. Destemodo, pode-se dizer que o malandro corre o risco dese transformar no marginal total; assim como o "caxias"pode se transjormar - pelo cumprimento rígido e auto-mático de todos os regulamentos - no palhaço e noot~. No diagrama abaixo, pode-se visualizar as re-lações e as transformações entre essas categorias so-ciais do seguinte modo:(a)

(b)

«caxias» malandro (b)

1 1palhaço mendigo (párta) (c)(otário)

Onde: .... -----+ = oposição

- - - - - -+ = possibilidade de tran'Sformação

(a) = dentro da estrutura social,(b) = nas margens da estrutura social e(c) = fora da estrutura social.

21 Expressão Que revela sabedoria profunda, pois como o malandro, tam-bém o filósofo fica situado à margem, posição Que lhe permite descortinarmelhor o mundo para Inquiri-lo, criticá-lo e, sobretudo, revelar sua es-tranheza diante de suas correntes e manias.

• Chamado no Brasil de "marginal" e referido na Imprensa como "In-dlvlduo". Isto é, um ser sem máscara social ou personalidade moral (cf.Durkhelm, 1960a). O "sujo" foi estudado linhas atrás.

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vencer sem fazer força
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Diante destas possibilidades de transformação, é sig-nificativo ressaltar que apenas .três categorias aparecemcomo tipos carnavalescos: o ma~o, o palhaçoe opáría social (que surge nas suas variantes heróicas eregressivas: como, respectivamente, pirata e "sujo"). Afigura do "quadrado" ou "caxías" não aparece no Car-naval, o que poderia sugerir a sua exclusão dos me":lhores ,momentos da vida social brasileira. Realmente,seria tácil desenvolver o argumento segundo o qualo termo popular "caxias", vindo diretamente do nomedo patrono "do Exército Nacional, denotaria uma rejei-ção da vida militar e da autoridade constituída. O bra-sileiro, 'assi~, seria verdadeiramente representado _rPelomalandro sagaz e maleável ou, quando muito é-- nosseus momentos mais pessimistas, pelo mendigo. Mas ja-mais gostaria, como sugere o Carnaval e a vida coti-diana, de ser chamado de "caxias".Contra tal interpretação, entretanto, existem pelo me-

nos duas objeções. A primeira decorre da considera-ção de que a categoria malandro cobre comportamen-tos e pessoas ambíguas, oscilantes entre a ordem e adesordem. ao O termo contém, por isso mesmo, aspec-tos positivos e negativos. A segunda é a que leva àconstatação de que também o comportamento cobertopela categoria "caxias" tem seus rituais populares. SãOos rituais da ordem, as chamadas "cerimônias cívicas"ou "solenidades", ónde posições sociais são afirmadas(pelo uso de trajes formais e fardas), comandos eautoridades são reafirmados, uma separação 'é manifes-tamente estabelecida entre "povo" e "autoridades" e,sobretudo, onde os participantes revelam um compor-tamento sério, solene e altamente rígido, o qual ende-reça a uma visão de um cosmos super-ordenado. Há,portanto, a possibilidade de ver o "caxias" através deum ângulo positivo, em momentos em que ele é repre-

• Amaury de Souza chamou minha atenção para a célebre polêmicaentre Wilson Batista e Noel Rosa, na Qual uma dupla visão do malandro Iera discutida e apresentada. Wilson Batista mostrava o malandro na acepçãocorrente do marginal em potência, ao passo Que ,Noel respondia propondoa mudança da Imagem: em vez de malandro, "rapaz folgado".

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sentado como o símbolo da continuidade social e dosvalores mais sagrados da sociedade.Voltarei a este assunto mais adiante. Agora desejo

apenas indicar que tal comportamento encontra umalarga confirmação no sucesso de certos líderes polí-ticos cujas plataformas eram altamente moralizadoras,o que demonstra, senão o sucesso, pelo menos a am-bivalência dos' brasileiros diante destas figuras autori-tárias e "duras". '"

r

A ANÁLISE das letras, textos, coportamentos e fanta--sias relativas ao Carnaval revela a presença 'de meca-nismos invariantes, universalmente' reconhecidos comoessenciais em certos momentos da vida social, ,os ritosde passagem. Estes rituais, como já foi indicado, re-ferem-se tanto à mudança de posições de indivíduos egrupos na estrutura social, quanto - como apontouVan Gennep ~ a mudanças de ano, estações ou ati-vidades (1960: 178f Por isso foram chamados' de "ri-tos de- calendário" (calendrical rites) por L10yd Warner,um termo que serve para distingui-los dos ritos depassagem individuais e que foi mantido por Turner(1969: 168-169). Embora ambas as modalidades deritos de" passagem estejam intimamente ligadas à noçãode tempo e uma periodização, os I"ritos _de calendário",como o próprio nome indica, estão explicitamente rela-cionados aos modos de uma sociedade dividir as eta-pas do seu ciclo de atividades. Eles sempre' dizem al-guma coisa a respeito da cronologia de uma sociedade(conforme acentuou Leach, 1961), como também im-plicam na participação de, todo o grupo social (comochama atenção Turner, 1969). Por outro lado, ambosos autores salientaram o fato importante de que tais

".

"rituais de calendário" podem ser distinguidos dos ri-tos de passagem cujo sujeito ritual é um' ~ (ougrupo de indivíduos incorporados). De fato,' Turner

81 o tipo chamado de "durão" é sempre referido com ambivalência noBrasil.

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três tipos carnavalescos: malandro, palhaço, pária
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acentua que os "ritos de crise-de-vida e os rituais deinvestidura em cargos são quase sempre ritos de ele-vação de status; ritos de calendário e ritos de crisegrupais podem algumas vezes ser ritos de inversão destatus" (1969: 169). Leach, por seu turno, indica comoo componente formal e o, componente orgiástico sãoparte e parcela de um mesmo conjunto, sublinhando que"um rito que começa com' uma formalidade (e. g. umcasamento) pode terminar numa mascarada; um ritoque começa numa mascarada (e.g. Festa do Ano Novo,Carnaval) pode terminar numa formalidade" (1961: 136).Não parece haver d˙vidas que o Carnaval brasileiro

é um "rito de calendário", contendo os elementos in-dicados por Turner e Leach: é uma fase especial, 'en-tre momentos bem marcados de uma cronologia que sepretende cósmica' (o Advento e a Quaresma) e um pe-ríodo onde posições e comportamentos regulares sãoneutralizados e invertidos. D

Nas duas partes anteriores, procurei demonstrar queo comportamento e as fantasias eram os dois mecanis-mos básicos através dos quais tais inversões e neutra-lizações eram obtidas. Agora seria o momento de ten-tar analisar mais detalhadamente não só o significadosociológico destas reversões, como também localizar osseus pontos focais., Tudo indica que .as inversões do comportamento po-dem ser tomadas como conduzindo a um redimensio-namento da conduta do brasileiro num' sentido mais ge-ral e, talvez, mais difuso. Assim é que se sabe quetais mudanças uniformizam roupas, liberam o corpo,revelando - muito mais que o cotidiano - as di-mensões básicas do sistema de classificação: o sexoe a idade. Segmentações específicas observadas na vida'diária parecem ser superadas por um tipo de gesticu-lação bastante estereotipado e por uma atitude ritualgeneralizada que esconde diferenças de classe e posi-

I,

ção, Tal redímensionamento, deste modo, traz à tonaas oposições homem/mulher e adultos/crianças, bemcomo o antagonismo campo/cidade, quando permite aoshabitantes das grandes cidades a sua reconquista pelohomem..As fantasias, porém, parecem permitir uma mudança

de focalização e um conseqüente redimensionamentomuito mais precisos. D, Isto porque as fantasias represen-tam personagens e tipos sociais que, em geral, exis-tem concretamente. Assim, embora a fantasia de Pi-rata possa ser empirícamente errada, a de Diabo possarepresentar um ser inexistente, elas expressam uma rea-lidade concretamente existente na ideologia nacional. E'assim significativo indicar - como já fiz linhas atrás- que algumas áreas são representadas de modo es-pecial nas fantasias, enquanto outras nunca se expres-sam por meio delas. Por exemplo, não existe uma fan-tasia de americano, inglês, canadense ou boliviano, co-mo não existem' fantasias de santos e são proibidas asfantasias de padres, militares e juízes. ç'_ como se so-mente valesse a pena representar os tipos cujas rela-ções com a estrutura fossem problemáticas e ambíguas,ao mesmo tempo em que há uma interdição na repre-sentação pela fantasia de alguns papéis sociais soli-damente considerados como essenciais. Porque, nestecaso, 'o fantasiar-se permitiria descobrir sua ambigüi-dade, .i-:"

O redimensionamento proporcionado pelas fantasias é,deste modo, aquele que permite uma legitimação ritualde tudo o que é tênue, difícil de ser classificado, deorigem incerta, que se situa à distância e, sobretudo,que não deve ter um reconhecimento aberto no cotidia- ~no. O Carnaval, assim, serve para aclamar figuras he-róicas, mas ao mesmo tempo admite todos os marginais.E permitindo a glorificação aberta daquilo que é consi-derado autenticamente nosso (a mulata, a malandragem,o samba e Q próprio Carnaval), assume nosso provincia-nismo, nossa nostalgia da realeza e a inveja que ternos

a De acordo com Melattl: "O Carnaval precede Imediatamente a Qua-resma, Que é um período de tristeza, de Jejum' e abstinência. O Carnavalconstitui os ˙ltimos dias de um perlodo (pelo menos para os católicos)em Que se pode c}lmer de tudo e em Que não se está triste" (1970:124).

a Que também ocorre com as m˙sicas.

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.. Como ocorre sistematicamente nas "fantasias de luxo",

.. A presença constante de artistas de Hollywood no Carnaval cariocaassume assim um aspecto legitimador deste ambiente cosmopolita Que seprocura estabelecer durante o ritual... Conforme demonstram os seguintes títulos de algumas dessas fanta-

sias, escolhidas ao acaso em revistas populares: "Feitiço Indiano", "Sin-fonia de Inverno", "Assombração de Palhaço do Velho Recife", "Valsa do..Imperador", "Jogo Proibido", "Fofíes Berger e", "Sonho Medit~val", "Glóriado Aleijadinho", etc.

lesca, assim, traz à tona tudo aquilo que deve ser es-condido da ordem: a homossexualidade, o relaciona-mento ilícito, a ostentação humilhante do luxo e da ri-queza, o ridículo de figuras importantes e poderosas eo poder e a graça dos habitantes das fronteiras do nossomundo social.As técnicas socialmente, escolhidas para tais aberturas

são perceptíveis pela conduta carnavalesca, caracterizadapor uma atuação teatral e exagerada. Deste modo, oCarnaval ebaseado num desfile. E o desfile carnava-lesco é o ponto crítico do Carnaval brasileiro, pois nadapode ser mais ostensivo do que tal tipo de organizaçãoque apresenta sem rodeios determinados sinais aos olhosda sociedade.Seria possível mesmo equacionar o desfile carnava-

lesco, a procissão e a parada militar, como ocasiões deostentação de símbolos importantes para uma sociedade.Na procissão e na parada militar, porém, a ostentaçãoé a da ordem. No Carnaval, a ostentação é a do com-portamento abusivo,' insinuante, marginal, malandro. E ahistória do Carnaval carioca, senão brasileiro, pode sermelhor compreendida a partir da consideração de que ovelho entrudo e os~primeiros fenômenos tipicamente car-navalescos (a organização dos blocos populares e dosprimeiros clubes) estavam centralizados nos bairros ar,sendo o ponto alto do ritual o encontro desses gruposno centro da cidade, onde havia um' rito de agressãom˙tua, simbolizando suas diferenças de posição na es-trutura social (cf. Eneida, 1958). A brincadeira abusiva.de atirar limões de cheiro" e água contida em seringasgigantescas é, de fato, uma troca recíproca e um esta-belecimento de uma relação. Uma relação entre gruposde bairros diversos e uma relação entre pessoas situadas.em classes sociais diferentes. Esta mesma perspectivaexplica os famosos encontros entre blocos e as suaschamadas "batalhas de confete", pois a agressão quemarcava tais diálogos servia para' relacionar dividindo,

dos estrangeiros." De modo que o redimensionamentocriado pela fantasia é o da transformação da paróquiano ponto central do universo, com o desfile cosmopolitae tolerante de representantes de todos os pontos da terrae de todas as personalidades históricas. No Carnavalnão se estaria diante de grupos e pessoas asperamentevivas, com seus problemas e reivindicações, mas face-a-face com tipos, modelos, figuras de luxo e personagensde outras eras que, com suas presenças, transformam asruas e as praças no centro do mundo. 35

A ação da fantasia e da máscara é, portanto, opostaà do exorcismo realizado pelas fardas e vestes formais.Em vez de separar, congrega; ao ter que dividir, junta;ao propor recriar uma realidade particular, inventa umrealismo fantástico de caráter universal. Tal realismo éespecialmente visível nos desfiles das fantasias de luxo,onde algumas pessoas representam não só personagens,históricos altamente estilizados, como também sentimea-tos, objetos e estados psicológicos. ao

Mas seria ingênuo supor que o Carnaval apenas neu-traliza e inverte as oposições e posições sociais do co-tidiano, abolindo suas dimensões de contraste. Na rea-,lidade, as inversões do Carnaval - precisamente pelofato de permitirem o aparecimento aberto de comporta-mentos e fantasias abusivas a' moralidade diária - ter-minam por provocar a confiança na ordem.- Nó caso do Carnaval brasileiro em geral e do Carna-val carioca em particular, este ponto aparece com bas-tante clareza. Porque, no Carnaval brasileiro, o foco dasinversões e neutralizações são os comportamentos rela-cionados à atividade sexual, ao relacionamento das ida-des e dos sexos e toda a gama de seres marginais quepassam por invisíveis no cotidiano. A_abertura carnava-

'" Fenômeno pouco estudado, mas Que continua a ser fundamental noBrasil. Nesse sentido, veja-se o trabalho de Gilberto Velho (1972).

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homossexualidade
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segregando os afiliados de cada organização. De fato, oaspecto agressivo, revestido por um idioma de j ocosí-dade, expressava - utilizando a, teoria clássica de Rad-c1iffe-Brown (1952: Capo IV e V) - a dificuldade deter lado a lado grupos e pessoas situadas em posiçõessociais (e espaciais) dííerenciadas. O desfile que marcouo antigo Carnaval, assim, poderia ser associado, de umlado, aos bairros, e de outro a uma comunicação entreposições sociais onde a agressividade jocosa procuravacriar um momento de supressão de fronteiras, sem pôrem risco as diferenças de classe e de espaço.No Carnaval do Rio de Janeiro contemporâneo, o des-

file e o encontro de classes e posições continua a vigorarcomo ponto alto. O Baile do Teatro Municipal é mar-cado pelo desfile de fantasias de luxo, do mesmo modoque, no chamado "carnaval de rua", o grande clímaxé o desfile das Escolas de Samba. Não existe mais um"corso" de automóveis como sinal de ostentação imo-desta de riqueza e de diferenças de classe, mas persisteo desfile no plano de um baile de luxo (cuja ideologiaé a da riqueza) e no âmbito da cidade como um todo, noplano do "carnaval de rua". E em ambos os casos,obtém-se o mesmo paradoxo e o mesmo absurdo queacentua a ordem social e a regularidade do cotidiano.Pois, no caso do Baile do Municipal, altas personalida-des .do governo e milionários célebres brincam como"pessoas comuns". E, nos desfiles de Escolas de Samba,marginais do mercado de trabalho surgem em gruposcorporados, representando papéis precisos, peças que sãode enredos altamente elaborados de representações pom-posas e, quase sempre, históricas. 38

Victor Turner, no seu trabalho tantas vezes citado,explicita que nos rituais de reversão de status há ummascaramento "do fraco em forte", bem 'como "uma exi-gência de que os fortes sejam passivos e suportem pa-cientemente as agressões simbólicas e mesmo reais quecontra eles realizam os estruturalmente inferiores" (1969:

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176). Não poderia haver melhor fórmula para elucidaros dois pontos focais do Carnaval do Rio de Janeiro,já que no Baile do Municipal e nos desfiles das Escolasde Samba ocorrem dois paradoxos. No primeiro caso,a riqueza é ostentada a ponto de se transformar emluxo barroco: pede-se, então, paciência aos pobres. Enos desfiles das escolas de samba, a ostentação e a or-ganização dos grupos cotidianamente marginais, em aris-fõcratas e' personalidades leva uma mensagem de pas-sividade aos ricos, pelo luxo dos pobres. E, em ambosos casos, os locais são arenas de um grande encontrosocial, onde - talvez muito mais do que nos carnavaisantigos - várias diferenças sociais encontram seus de-nominadores comuns pela neutralização e pela inversão.Pois tanto no Teatro Municipal, quanto na avenida, háum encontro individual e coletivo, de pessoas de dife-rentes classes, posições, etnias, profissões, bairros e na-cionalidades. 'Persistem, assim, os desfiles e os encontros, embora

sem o confronto direto do entrudo e das "batalhas deconfete". Mas persiste o fenômeno da suspensão dasregras vigentes no cotidiano, quando se nota que sãoos ricos que afinal organizam os desfiles, havendo umaassociação entre as classes sociais.O aspecto estrutural. mais importante das inversões

que ocorrem no Carnaval brasileiro, deste modo, pareceestar centralizado nas figuras e grupos inferiores e nu-ma ideologia marcada pelo idioma do encontro e da'comunhão, muito nítida no concurso desinibido dos se-xos e das classes sociais. Esse ponto é fundamentalquando comparamos o Carnaval do Rio de Janeiro, porexemplo, com o de New Orleans.De fato, em New Orleans, de acordo com a descri-

ção de Munro Edmonson (1956), se depreende umaorganização um tanto diversa da brasileira, pois naquelacidade o, Carnaval se organiza em três fases distintas.A primeira é a dos "Bailes Carnavalescos", realizadapor associações chamadas krewes e "organizada pormembros das, classes alta e média branca". As krewes

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38 Luiz, Felipe Baeta Neves Flores escreveu sobre as m˙sicas desses des-files um interessante ensaio,

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possuem uma organiz açãcc.interna elaborada (reprodu-zindo uma estrutura aristocrática, com um réi, uma rai-,nha, duques, comitês de recepção, etc ... ), apresentam-secom extremo aparato ritual e são sociedades fechadas.Sua importância é patente, pois os krewes servem demodelo "para as celebrações do Carnaval pela cidade e,de fato, de certo modo, por toda a nação". A segun-da fase do Carnaval de New Orleans é constituída pe-los desfiles (parades) onde várias organizações partici-pam, inclusive escolas secundárias e clubes. Finalmente,há o clímax marcado pelo Mardi Gras, realizado sem-pre na terça-feira anterior à quarta-feira de cinzas. Estafase é marcada por um desfile de organizações negrasde classe baixa (os Zulu Aid e Pleasure Club), usandoco_!!!o motivos elementos africanos e "parodiando a rea-leza insincera das krewes brancas e a pretensão da so-ciedade em geral". Por outro lado, também nesta oca-sião, bandas de negros da classe baixa e média apa-recem como "índios", desfilando em "tribos" e entoandocanções que os distinguem entre si. Do mesmo modo,surgem bandos rivais de prostitutas da classe baixa ne-gra, as Gold Diggers e as Baby Dolls.Embora o Carnaval de New Orleans também se orga-

nize em termos de clubes, desfiles e vizinhanças, o seu• modo de inverter (ou neutralizar) o cotidiano pareceestar centralizado no ponto de que o encontro carnava-lesco se faça em termos de descontinuidades entre gru-pos. Assim, enquanto no Carnaval carioca o ponto cen-traI parece ser a igualdade de pessoas e grupos desi-guais, o de New Orleans localiza a desigualdade degrupos pretcnsamente iguais no cotidiano. Realmente, osgrupos responsáveis pelo Carnaval em New Orleans pa-recem ser constituídos por critérios mais fechados (cor,profissão, posição de classe) e se' assumem ritualmentede maneira coerente com suas posições na estrutura so-cial norte-americana. Os negros aparecem como "afri-canos" e "índios" (e em bandos de prostitutas), aopasso que os brancos ricos surgem como aristocratas eem grupos fechados. Em outras palavras, a riqueza e a

marginalidade são assumidas no Carnaval de New Or-leans de um modo diverso do que ocorre no Rio (e noBrasil), onde negros e marginais do mercado de tra-balho se mascaram de nobres e ricos, surgindo de modoaltamente organizado, enquanto os ricos não se organi-zam em associações exclusivas e, baseadas em critériosde cor ou classe. O Baile do Municipal é pago e teorica-mente aberto, enquanto as krewes de New Orleans sãosociedades que lembram muito outras organizações fe-chadas que proliferam nos Estados Unidos.Teríamos, assim, a seguinte relação: no Brasil, a in-

versão do Carnaval procura desfazer ritualmente as seg-mentações de classe, já que a consciência das descon-tinuidades sociais é um dado flagrante do cotidiano bra-sileiro. E em New Orleans (e, por extensão, nos Esta-dos Unidos), o, Carnaval inverte a ideologia correnteda classe média 'americana, segundo a qual os EstadosUnidos se constituem numa sociedade aberta, não hie-rarquizada, onde somente conta' o indivíduo. O foco, por-tanto, das inversões do ritual de New Orleans está nasdiferenças étnicas e sociais, ao passo que no Brasil ofoco está na igualdade e na mistura.O estabelecimento desta relação serviria para explicar

a ritualização do Carnaval de New Orleans e de outrasmanifestações coletivas da vida social norte-americana(como os eventos esportivos), onde distinções são sem-pre muito bem marcadas. E, por outro lado, ajudaria a,clarificar o caráter muito mais jocoso das manifestaçõescoletivas brasileiras (São João, Aleluia, Carnaval e acon-tecimentos esportivos), já que, aqui, o que se buscae o que se espera é o "congraçamento" e a supressãode fronteiras entre grupos, indivíduos e categorias. Mas,nos dois casos, o mesmo mecanismo lógiÇQ:;S.ocial (a in-versão) opera a partir de elementos ideológicos e socio-lógicos relacionados diferencialmente em cada caso, em-bora o resultado alcançado seja a criação de um estadosocial comunitário.Tudo indica, então, que no Brasil a escolha é no sen-

tido de suprimir as barreiras, sendo esta a tendência

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básica quando se pretende criar umà communitas. E' oque ocorre no Carnaval, nos festivais de São João (ondea cidade representa a roça e elimina simbolicamente aoposição entre o rural e o urbano) e muito especialmenteno futebol, no jogo do bicho e no oferecimento da ca-chaça e do cafezinho. Pois no futebol o rito de con-graçamento é muito mais importante do que o jogo,que divide as torcidas e estabelece um vencedor e umperdedor (cf. Lévi-Strauss, 1962a :44-47). E mesmoquando divididas, as torcidas estão focalizando segmen-tações horizontais, a dos clubes, e não as verticais, deposição social e poder. No jogo do bicho, por seu tur-no, suspendem-se as barreiras entre n˙meros, animaise homens, já que o sistema opera animalizando n˙meros,humanizando animais e/ou humanizando n˙meros." Domesmo modo, a cachaça e o cafezinho são os dois me-diadores básicos no encontro com amigos, conhecidos eaté mesmo inimigos reais ou potenciais. Pois tambémaqui a tentativa é a de' comungar, mesmo através de umtipo de comensal idade fraca e muito mais espiritual.Essas interpretações ajudam igualmente a entender

a ênfase do ritual carnavaleseo brasileiro no sexo e na'marginalidade. De fato, não há melhor instrumento decomunhão do que o sexo, especialmente quando as des-continuidades sociais e econômicas são percebidas e re-• traduzidas através de um código "racial" ou biológico.,E não é de outro modo que a realidade brasileira temsiao apreendida, seja pelos seus intérpretes tradicionaise clássicos, seja pela grande maioria da população.Tal modo de perceber os chamados "problemas bra-

sileiros" tem marcado significativamente a história socialdo Brasil, reduzindo-a à célebre fórmula da formaçãosocial brasileira baseada na tríade do índio, do negroe do branco europeu, cada qual dotado de certas qua-lidades intrínsecas, todas com um Caráter basicamentegenético. Para a ideologia racial, o problema brasileirofundamental é dado pelo paradoxo de uma unidade terri-torial inquestionável, ao lado de uma unidade racial ine-

xistente, Em outras palavras, M uma nação, mas nãouma raça brasileira. O problema básico então é o demiscigenar ou - como colocam os adeptos mais mo-dernos de tal ideologia - aculturar tais entidades ra-ciais distintas,_ tudo isso realizado sob a égide e o con-trole natural do grupo que se tem mostrado mais capaze superior, o português-branco. Não se trata de promoveruma ascensão social- de camadas sem privilégios, queé uma tarefa social: e econômica, mas de encarar oproblema de um prisma fundamentalmente biológico, oda mistura e da eugenia raciais."E' claro que dentro de tal ideologia a força da, ati-

vidade sexual, como ponto de contacto entre grupos so-ciais distintos, é algo básico. Realmente, seria o sexo oinstrumento de integração nacional, colocando lado a la-do, em relações, de aliança, brancos, negros e índios.Não é por acaso, portanto, que a ênfase nas relaçõessexuais e no sexo surge no Carnaval como um momentoimportante - quase como uma prova - da chamada"democracia racial brasileira". Pois tal é o subprodutoideológico de teorias populares ou escolásticas que to-mam como ponto básico o código racial na interpretaçãodo Brasil.Nesta mesma perspectiva analítica, coloca-se o pro-

blema dos marginais, cujo paradigma, carnavalesco é omalandro. 'Numa sociedade concebida como racialmente tripartida,

nada é mais .difícil do que ter de classificar o pro-duto do encontro das três "raças". O encontro, de fato,revela de um lado a necessidade pragmática da mistura,mas, de outro, coloca o problema paradoxal da perda daherança cultural européia pela marginalização total dasociedade num oceano de mestiços. O dilema é, assim,o de ter ou não ter o mulato. Ou, em outras palaVraS,!o de assumir socialmente duas atitudes bastante contra-ditórias em relação aos marginais.Numa delas, eles são exorcizados da raça estrutural-

mente poderosa como esp˙rios. E' o que ocorre freqüen-

• Estamos preparando um trabalho sobre o sistema do jogo do bicho. • Neste sentido, veja-se o Importante estudo de Dante Moreira Leite, 1969.

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nação brasileira mas não há raça brasileira
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sexo = unificação nacional
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temente na vida diária quando se usa a expressão "mu-lato pernóstico" para designar um mestiço que alçouvoo socialmente. A outra conduz a uma glorificação domestiço como representante da própria brasilidade, comoo elemento cristalizador do melhor que nos foi legadopelo europeu (sempre tomado como o pai e genitor sim-bólico), pelo índio e pelo negro (vistos pelo prisma ideo- ,lógico como femininos e infantis, contribuindo apenaspassivamente na formação "da nacionalidade, com suam˙sica, comida, temperos e uma religião significativa-mente chamada de afro-brasileira, nunca de brasileiral).Esta segunda atitude, que é a posição do rito carna-

valesco, o mestiço é idealizado como uma exaltação po-sitiva da liminaridade, sendo isto tomado como um ins-trumento de escolha e alternativas. Porque assim o sermestiço seria uma vantagem. Estando na liminaridade,ele simboliza não só o compromisso das "raças", masigualmente o compromisso da estrutura com os seus in-terstícios.Este ponto permite, por outro lado, concluir este en-

saio retomando sua colocação inicial. Pois a oscilaçãodiante do mestiço, do mulato (e do Imalandro) não éa mesma que parece existir na visão da totalidade bra-sileira pelos próprios brasileiros? Ou, de outro modo enum outro plano, tal atitude não corresponde também àsambivalências do Brasil urbano diante do Brasil rural?Do Brasil país do Carnaval frente a frente com o Bra-sil do cotidiano? Do Brasil das leis diante do Brasil domalandro e do "jeitinho"?Foram estas, em suma, as questões que julgamos ter

podido colocar claramente a partir de uma análise es-truturaI do Carnaval como um rito de passagem.

Panema: uma Tentativade Análise Estrutural

Os ETNÓLOGOS QUE VISITARAM OU FIZERAM PESQUISAS'na área amazônica conhecem a pane ma. Muitos simples-mente ouviram a expressão em grandes centros urbanos,como Belém: ou Manaus; outros estiveram em contactodireto com o fenômeno em seus estudos de grupos tri-bais de língua Tupi ou em alguma comunidade do in-terior. Para os que tiveram uma experiência vaga dapane ma, como os primeiros, o termo talvez se tenhafixado como mais uma curiosidade regional; mas, paraos segundos, a' pan~ma foi objeto de cuidadoso inquéritoe de reflexão.De certo ponto de vista, a crença na panema tem uma

história acadêmica semelhante à de outros fenômeriossociológicos tradicionalmente mencionados pelos especia-listas, como o totemismo, o mana e outros mais. Talcomo ocorreu com o totemismo antes de Lévi-Strauss(cf. Lévi-Strauss,_ 1962), o termo panema também foi in-corporado a um linguajar semi-especializado, cuja preo-cupação dominante é muito mais 'a de mostrar erudiçãodo que a de entender a crença "por dentro". Nestes tra-balhos o termo é empregado como um rótulo, a designarcrenças que servem para distinguir os homens e os, gru-pos humanos entre si. Assim, diz-se que a população"x" 'acredita em pane ma, como se poderia dizer que amesma população usa machados de pedra ou casas re-,tangulares. Neste caso, após a simples classificação, con-

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