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NUNO GALOPIM
EUROVISÃO
DOS ABBA A SALVADOR SOBRAL
Canções que contam a história da Europa
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Índice
Prefácio de Salvador Sobral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Prólogo de Nuno Artur Silva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
PARTE I – OPERAÇÃO KIEV, 2017 . . . . . . . . . . . . . . . . 17
1 – Portugal, 758 Pontos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
E o segundo país com o maior televoto, com 337 pontos é... . . . . 19
A necessidade de mudar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20
E agora? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Rumo a Kiev . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
O desafio da semifinal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
Ambiente familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Nos bastidores da final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
PARTE II – FESTIVAL DA CANÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . 49
1 – O Passaporte Português para a Eurovisão . . . . . . . . 51
Sinais de mudança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
Em tempo de liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Uma fábrica de sucessos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
Desinteresse instalado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Parar para repensar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
PARTE III – O CONCURSO QUE NARRA A HISTÓRIA DA EUROPA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
1 – A invenção de uma nova Europa (1956 -1962) . . . . . . 77
Para acabar com as dúvidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
Para sul e para leste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
2 – A juventude é quem mais ordena (1963 -1972) . . . . . . 90
Entre o yé-yé e a folk . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Saltar a Cortina de Ferro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Sinais de diversidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
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3 – Na idade dos protestos (1973 -1979) . . . . . . . . . . . . 100
Glam rock e roupas garridas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
A gradual chegada do disco sound . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
Ecos mais a leste . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
4 – Paz, pop e muitas cores (1980 -1989) . . . . . . . . . . . . 110
Cantar a paz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
Novas odes à alegria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114
Uma vencedora canadiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
5 – Uma Europa alargada a leste (1990 -2000) . . . . . . . . 121
Novos países em cena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Um mundo de sons . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Celebrar a diversidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129
6 – Eurovisão no século XXI (2001 -2017) . . . . . . . . . . . . 132
A geografia do televoto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
A idade da exuberância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
Os novos conflitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144
Questões de identidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150
Política da emoção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
PARTE IV – 1956 -2017O FESTIVAL DA EUROVISÃO ANO A ANO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
Conclusão – All Aboard! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 265
Epílogo de Gonçalo Madaíl . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267
Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 269
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
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Prefácio
Alguém muito sábio disse, um dia, que as palavras “música” e “com-
petição” nunca deveriam estar juntas na mesma frase. O Nuno Galo-
pim não acredita nada nisto. Desde há muitos anos que é um fã ou,
diria até, um especialista daquilo que é a Eurovisão.
Conheci o Nuno no início do ano de 2017, dentro dos estúdios aba-
fados e claustrofóbicos da RTP. Eu já tinha sido previamente informa-
do acerca dele e do seu trabalho, pelo que fiz um esforço para ser
extrassimpático na esperança de que algum dia fizesse uma boa crí-
tica a um disco meu (ou que pelo menos não o destruísse). “Nós os
músicos precisamos de ter os críticos por perto”, pensei.
Logo nessa primeira conversa transpareceram duas coisas interes-
santes: primeiro, o amor que ele tem pela música. Qualquer música.
Num momento estávamos a falar de Bob Dylan, passávamos para Suf-
jan Stevens e, logo depois, ele contava-me da cantora que represen-
tou a Albânia na Eurovisão em 2010. Tudo com o mesmo entusiasmo!
E, depois, a admiração que ele tinha pela canção da minha irmã.
Mantendo o seu profissionalismo e a imparcialidade, notava-se pela
maneira como ouvia a canção e falava dela que esta era especial para
ele. Assim como foi, aliás, mais tarde, para toda a Europa.
O tempo foi passando e, de repente, estávamos os dois num avião
para ir para Kiev, onde aconteceria o “evento do ano”, segundo os
eurofans.
Foram dias bastante caóticos. Desde as divas cantoras aos gritos
no camarim o dia inteiro, até às entrevistas bizarras de meios de comu-
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nicação dos países mais recônditos, passando pela comida que nos
serviam, que fazia qualquer hospital parecer um restaurante com estre-
las Michelin.
Ora, a tudo isto, o Nuno sorria. Cheio de motivação e optimismo,
ele contava histórias, comentava todas as canções e cochichava sobre
os boatos que se ouviam naqueles corredores. Era, para mim, uma
lufada de ar fresco a sua companhia.
Curiosamente, das melhores memórias que guardo desta experiên-
cia foi uma entrevista que o Nuno me fez. Das melhores entrevistas
que já me fizeram.
Sentámo-nos os dois nos sofás do camarim e conversámos. Con-
versámos de boa música, que, sejamos sinceros, já é raro nas entrevis-
tas de hoje em dia. Conversámos sobre todo o meu percurso, as minhas
influências, sobre as letras das canções, sobre projectos futuros, ambi-
ções... Até abordámos temas mais metafísicos, como o amor e as rela-
ções e a forma como estes evoluem. Talvez estivéssemos embriagados
pela “doce” voz da cantora da Grécia, que estava no camarim ao lado.
Tal como o Nuno previa desde que chegámos àquela cidade, ganhá-
mos o certame. A sua expressão de tamanha alegria era a de quem
esperava por aquele momento há muitos anos, só por isso valeu a
pena ganhar. Por isso e por aquele microfone de cristal exagerada-
mente grande que não fica bem na sala de ninguém, claro...
Salvador Sobral
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PrólogoComo reencontrei o Festival da Eurovisão
depois de muitos anos sem o ver
As nossas vidas têm por vezes umas reviravoltas não antecipadas
nem nas nossas mais delirantes fantasias. Para mim, que antes de mais
sou um autor, um argumentista, a minha vida tem tido nos últimos
tempos umas voltas, viravoltas e reviravoltas absolutamente inespe-
radas e diria mesmo, do ponto de vista de argumentista, inverosímeis.
A minha relação com o Festival da Canção e o Festival Eurovisão
da Canção é um exemplo flagrante. Quando fui nomeado administra-
dor da RTP com o pelouro dos conteúdos (cá está outra inverosímil
reviravolta), não podia estar mais distante dos Festivais da Canção.
Há anos que não via, nem um nem outro, e tudo o que tinha era a
lembrança dos festivais do passado, sobretudo o Festival da Canção
RTP que vi – com fervor e dedicação, posso dizê-lo –, até ao início dos
anos 80. Até essa altura, sabia mesmo de cor os vencedores e os meus
favoritos, que os tinha, com entusiasmo (as minhas canções favoritas
de sempre são “A Festa da Vida” e “Madrugada”; e para mim a deca-
dência começou quando em vez do “Eu Só Quero”, da Gabriela Schaaf,
ganhou o “Sobe, Sobe, Balão Sobe”, da Manuela Bravo, mas ainda ado-
rei o “Não sejas mau para mim”, da Dora).
Do Festival da Eurovisão ainda me lembro menos. O que mais me
recordo é dos twelve points que nunca vinham para Portugal.
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Estava longe deste universo, portanto, quando me sentei no estú-
dio da RTP, já como administrador, para ver a Final do Festival da Can-
ção em Março de 2015.
A sensação foi a de estar a ver um formato que claramente já tinha
tido melhores dias e ao qual, sem desprimor para todos os profissio-
nais envolvidos, parecia faltar, não só qualidade, como sobretudo ambi-
ção, convicção, desígnio.
Em conversa com o Daniel Deusdado, Director de Programação, e
também face ao orçamento restritivo de 2016 (ano de Europeu de
Futebol), decidimos não fazer Festival da Canção nem participar no
Festival da Eurovisão em 2016. E aproveitar para ouvir as pessoas da
área da música e do Festival e fazer uma reflexão sobre o que deveria
mudar. Sempre dissemos que seria uma interrupção por um ano, só
por um ano, mas, apesar de um ou outro aplauso pela decisão, fomos
bombardeados por muito mais manifestações de protesto.
Contudo, a decisão estava tomada.
Ouvimos muitas pessoas: músicos de diferentes gerações, editores,
agentes, críticos, fãs, produtores, radialistas... Reflectimos sobre o que
ouvimos e, por fim, decidimos qual iria ser o novo formato.
Começámos a pô-lo em prática com a devida antecedência, em
Setembro de 2016. A estratégia era simples:
- Revitalizar o Festival da Canção fazendo dele um encontro e uma
celebração da diversidade da música pop contemporânea feita em
Portugal, convidando músicos não só portugueses, mas músicos, de
diferentes estilos e gerações, com actividade em Portugal, a criar novas
canções que viessem enriquecer o cancioneiro nacional;
- Envolver todos os meios RTP, rádio, televisão e multimédia para
produzir, ampliar e promover o trabalho desses artistas, não só no
âmbito do festival mas noutros programas e eventos futuros.
O segredo passava por convencer os melhores músicos pop por-
tugueses a aceitar o desafio. Mas a solução estava dentro de casa: na
Antena 3, a rádio pop do grupo RTP, a rádio portuguesa que mais tem
feito para a revelação e promoção da nova música pop nacional. E, na
Antena 3, o homem que há mais tempo o tem feito de forma consis-
tente, e por todos os músicos respeitado, Henrique Amaro.
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Seria ele o curador convidado para o Festival. Faltava o outro cura-
dor, para que houvesse dois pontos de vista (ou de audição). E a solu-
ção foi óbvia, o homem que sendo uma das referências principais
como jornalista e crítico da cultura e da música pop, era também,
provavelmente, o maior especialista português nos festivais: Nuno
Galopim.
A partir daqui a história é conhecida. E começa logo com uma gran-
de ironia.
No dia em que reunimos pela primeira vez os músicos convidados
para a edição de 2017 no auditório da RTP, coube-me a mim fazer o
discurso de boas-vindas e enunciar o que queríamos com o Festival
no seu novo formato.
“Canções, queremos canções”. Foi o que lhes disse. “As canções
que quiserem fazer. Sem pensar em mais nada do que fazer canções
que possam ficar no cancioneiro. Esqueçam a Eurovisão. Concentrem-
-se nas canções. E divirtam-se. Isto é só um jogo. Sobretudo não se
preocupem com a Eurovisão.”
A Eurovisão, o ESC. Um festival europeu (num sentido muito lato)
que é sobretudo um grande show televisivo, state of the art das últi-
mas novidades tecnológicas de luz, som, multicâmaras, efeitos espe-
ciais e todos os fireworks televisivos. Em que, curiosamente, tudo
considerado, regra geral, as canções são aquilo que acaba por ter
menor qualidade. Anyway.
Concentremo-nos antes no nosso Festival e nas suas canções.
Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ouvi o «Amar pelos
Dois», cantada pelo Salvador num ensaio para a semifinal no estúdio
da RTP. Imediatamente fiquei encantado. Estive quase para ir ter com
o Salvador e a Luísa e dizer-lhes o quanto tinha gostado, mas conti-
ve-me, pela função que desempenhava, para não parecer publicamen-
te que tinha qualquer preferência.
Mas disse-o ao Daniel Deusdado: “Temos ali uma canção absoluta-
mente mágica. Nunca vai ganhar, mas nós já ganhámos esta canção.”
Depois foi o que se sabe. O momento da vitória na final do Festi-
val no Coliseu dos Recreios, na comemoração dos 60 anos da RTP, foi
um momento emocionante, para todos e para mim, pessoalmente, um
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dos momentos mais emocionantes que vivi na RTP. Quando todos os
artistas vêm à frente e aplaudem os irmãos Sobral cantando com eles
a canção, espontaneamente, sem que tal estivesse guionado ou pre-
visto, foi um momento extraordinário.
Desde esse momento, a única preocupação de toda a equipa RTP
foi sempre proteger a integridade artística da canção e proteger o
Salvador de tudo o que aí vinha.
E tudo foi caminhando para o clímax: a noite do alucinante dia 13
de Maio de 2017.
Mais uma vez tudo se passa como num filme de ficção. Em Portu-
gal é dia de visita do Papa, de vitória do Benfica no campeonato e de,
como há muito tempo não havia, grande expectativa com o Festival
da Eurovisão.
E o mantra dessa noite foi: twelve points, Portugal.
Em casa, frente ao televisor, com o portátil aberto no Facebook e
o telemóvel num corropio de mensagens de Kiev, senti-me outra vez
na infância, anos 60/70, frente ao televisor a preto e branco dos meus
pais, numa excitação infantil.
O perigo vinha da Bulgária. Mas aquela seria pelo menos a melhor
classificação de sempre. E, por fim, a vitória. A alegria daquela vitória.
A maior vitória de sempre num Festival da Eurovisão. Mas não foi
só ter ganho, foi a maneira como ganhámos. Mais importante que tudo,
foi ter sido uma vitória sem nenhuma concessão ou cedência a qual-
quer receita ou truque de marketing, uma vitória da qualidade, da
autenticidade e da integridade artística.
O telefone não parou mais pela noite fora, bem como as mensa-
gens por todas as redes.
No dia seguinte fui ao aeroporto receber a delegação portuguesa
no meio da euforia caótica de milhares de portugueses. A primeira
coisa que o Salvador me disse depois de um grande abraço foi: “Des-
culpa.”
Depois a Carla Bugalho, que há anos é a chefe da delegação por-
tuguesa aos ESC, entregou-me o dossiê azul da Eurovisão. Só mais
tarde, já em casa, ao lê-lo, comecei a perceber a dimensão daquilo
que nos esperava.
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Desde esses dias iniciei um curso intensivo sobre o ESC, ministra-
do pelo Nuno Galopim e pela Carla Bugalho. Não havia tempo a per-
der. E imediatamente começámos a desenhar o ESC 2018.
Tem sido um processo empolgante, em que graças a eles – e ao
Nuno, em particular –, tenho percebido as inúmeras dimensões que
tem aquele que é o maior evento musical - e um dos maiores eventos
em termos absolutos à face da Terra. O que ele mobiliza, a festa que
é em cada cidade que o recebe, o que ele representa e a quantidade
de pessoas ao vivo e por via televisiva e digital que toca em todo o
mundo. As correntes estéticas, sociais, de género. Todo o Kitsch e o
Camp, o artifício e as emoções, os fireworks e as mensagens, o des-
lumbramento tecnológico e a espectacularidade. E os desafios finan-
ceiros, logísticos, de segurança, de produção, para quem o organiza.
Que agora somos nós, RTP. Desde logo, começando com a mesma
equipa que fez o projecto do novo Festival da Canção à volta da mes-
ma minha mesa de reuniões da RTP, desta vez a fazer o desenho geral
de conteúdos do ESC 2018.
Quis o destino e a sua equipa secreta de argumentistas que, em
mais uma reviravolta irónica, esta aventura no barco almirante do All
Aboard fosse o Grand Finale da minha aventura na RTP.
E, bem vistas as coisas, não podia ser melhor final, nem ser melhor
a cumplicidade com que todos saímos dela, e que já ninguém nos tira.
Bem como o prazer de ler esta história da Eurovisão pela mão do
Nuno Galopim, prefaciada pelo seu involuntário herói maior, o nosso
para sempre adorável Salvador Sobral.
Divirtam-se.
Nuno Artur Silva, Abril de 2018
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13
Introdução
O Festival da Eurovisão é o maior espetáculo televisivo musical de
todo o mundo e, aos 63 anos de vida, é também o mais antigo con-
curso internacional de canções em atividade. Foi desde sempre uma
plataforma para exploração dos mais recentes avanços na produção
audiovisual europeia e entre os seus valores estão a vontade de sur-
preender, o cruzamento de culturas e de identidades, o acolhimento
da diversidade, o estabelecimento de ligações emocionais, a partilha
de momentos e também a saudável competição. Há quem goste. Há
quem não goste. Há quem viva o concurso com devoção. Há quem
me pergunte “Ainda vês isso?”... Bom, desde maio de 2017 que não
me fazem essa pergunta...
Em 1956 foram sete os países a alinhar na edição inaugural. Hoje
em dia é habitual vermos, a cada ano, mais de 40 nações a participar
como concorrentes. Em frente ao televisor estão frequentemente mais
de 200 milhões de espectadores que transcendem o espaço europeu
e mediterrânico já que a Austrália concorre desde 2015 e tanto a Chi-
na como os EUA têm transmitido as últimas edições do concurso. Aus-
trália como concorrente na Eurovisão? Na verdade a história
eurovisiva australiana precede o convite feito para que o país partici-
passe na edição de 2015, e que foi fruto de uma vasta base de fãs
criada desde que, nos anos 80, o programa começou a ser transmiti-
do em direto para o outro lado do mundo. Em 1957 o letrista da can-
ção do Reino Unido era australiano. E entre os New Seekers, os Shadows
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e Olivia Newton-John, ou seja, artistas que concorreram em edições
na primeira metade dos anos 70, havia quem tivesse nascido na Aus-
trália...
O progressivo rejuvenescimento do público eurovisivo tem carac-
terizado o percurso recente do formato, num processo que se traduz
não apenas nas audiências televisivas, mas também na cada vez mais
importante presença online do universo eurovisivo. E se os media tra-
dicionais nem sempre prestam a devida atenção ao concurso, os blo-
gues e sites de fan media multiplicaram-se, cativando atenções e
alimentando, mesmo nos meses de defeso, paixões que assim nunca
ficam em silêncio.
Em 1956, edição de estreia do Festival da Eurovisão carregava ain-
da em si algumas cicatrizes dos tempos conturbados que a Europa
vivera durante a Segunda Guerra Mundial. Mas, como então cantava
o alemão Walter Andreas Schwarz, era chegado o momento de viver
o presente e não mais ficar agarrado às memórias do passado. Não
por escapismo, mas para não perder o que a vida tem de bom para
nos colocar pela frente...
Foi esse otimismo que desde cedo marcou este encontro de nações
feito com um concurso de canções. Não deixou de haver momentos
difíceis. E até mesmo episódios de tensão. Mas quando, em 1983, a
cantora Ofra Haza cantou «Hi», todo um jogo de simbolismos ganhou
forma numa edição do Festival da Eurovisão realizada numa sala de
Munique. Afinal aquela era a cidade alemã junto da qual surgira, em
1933, o primeiro campo de concentração do regime nazi. E a canção,
cujo título celebrava uma afirmação de vida, assinalava a presença de
Israel a poucos quilómetros de Dachau, arrebatando no final da vota-
ção o segundo lugar.
Das 62 edições do Festival da Eurovisão realizadas antes da sua
chegada a Lisboa, uma conclusão que podemos tirar é a de que os
factos eurovisivos (como que numa “diplomacia” feita com canções)
precedem alguns dos grandes acontecimentos da política europeia.
Entre os sete concorrentes de 1956 estavam os seis que, no ano seguin-
te, assinaram o Tratado de Roma, que iniciou uma nova etapa no rela-
cionamento europeu. Anos depois, a vitória de Toto Cotugno em 1990,
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com «Insieme: 1992», antecipava um outro passo, dado em 1992, no
Tratado de Maastricht.
A Europa que nasceu das feridas da Segunda Guerra Mundial encon-
trou de facto aqui um terreno de partilha e diálogo. Buscando a paz
e o entendimento, a história eurovisiva não deixou mesmo assim de
refletir sobre os cenários de guerra pelos quais o Velho Continente
passou, assim como não ignorou os temores de novos conflitos que o
avançar dos tempos foi colocando na linha do horizonte. Em 1964 a
canção francesa «Le Chant de Mallory» falava de um amor por um sol-
dado que partira para o combate. Em 1967, a Jugoslávia apresentou-
-se em Viena com «Vse Rozs Sveta», canção pacifista que chega num
tempo em que a guerra no Vietname representava uma das principais
referências de uma nova emergente cena pop/rock global. Um canto
pela paz venceria a edição de 1982 na voz da alemã Nicole, num ano
em que o seu «Ein Bisschen Frieden» teve entre a concorrência, pela
Finlândia, «Nuku Pommiin», de Kojo, que traduzia um temor generali-
zado pela possibilidade de deflagração de um conflito nuclear.
O caso português é particularmente curioso na história eurovisiva,
traduzindo, num intervalo entre finais de 60 e meados de 70, as pro-
fundas transformações políticas que o país conheceu. Entre “Desfo-
lhada” (1969), de Simone de Oliveira, e “Tourada” (1973), de Fernando
Tordo, a Eurovisão escutou sinais de um regime em decadência. Depois,
com a canção de 1974, “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, o
movimento dos capitães encontrou a primeira senha de rádio que
desencadeou a revolução que devolveu a democracia e liberdade a
Portugal. Ou seja, uma canção enviada ao Festival da Eurovisão aju-
dou a mudar a história de um país.
Da Europa a ocidente da Cortina de Ferro ao alargamento a leste
que chegou nos anos 90 (englobando Estados que nasceram da desa-
gregação da Jugoslávia, Checoslováquia ou da URSS), juntando ainda,
regularmente, a participação de Israel e, pontualmente, a de Marrocos
e, mais recentemente contando com a Austrália como participante
permanente, o Festival da Eurovisão ajuda-nos a contar a história polí-
tica do Velho Continente. Mas tal como acontece com a história polí-
tica, também a evolução das grandes mudanças na sociedade e nos
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comportamentos está refletida num concurso que, naturalmente, aca-
ba igualmente por espelhar os ventos que foram alterando as tendên-
cias do gosto da música popular. Dos tempos de «Refrain», de Lys
Assia (a vencedora de 1956) aos dias inesquecíveis que o país viveu
durante a aventura em Kiev de Salvador Sobral, são todas estas his-
tórias que este livro procura contar... Inevitavelmente juntando tabelas
e listas... Porque não se fala do Festival da Eurovisão sem elas.
Nuno Galopim
Lisboa, abril de 2018
Dedico este livro ao Salvador e à Luísa Sobral, que,
em 2017, deram a Portugal a concretização de um sonho antigo:
uma vitória no Festival da Eurovisão.
Também a toda a equipa que, uma semana depois de Kiev,
começou a trabalhar na consequência desta vitória: a realização
do 63º Festival Eurovisão da Canção... em Lisboa!
E aos Eurofãs... As almas que dão vida a tudo isto...
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PARTE IOperação Kiev, 2017
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