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251 Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 17: 251-292, 2007. Introdução O Norte da África durante a Antiguidade e a questão dos povos berberes Norte da África representa um rico campo de estudos para as Ciências Humanas, tendo sido, ao longo de vários milênios, objeto de inúmeras transformações culturais impostas por mudanças históricas, ou seja, pela ação do homem. Apesar de fazer parte do continente africano, pode-se considerá-lo, geograficamente, uma “ilha”, pois se encontra separado da Europa pelo mar e do resto da África pelo deserto. 1 As Norte da África na antiguidade: os reis berberes númidas e suas iconografias monetárias Maria Cristina Nicolau Kormikiari* KORMIKIARI, M.C.N. Norte da África na antiguidade: os reis berberes númidas e suas iconografias monetárias. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 17: 251-292, 2007. Resumo: Neste artigo apresentamos nossa interpretação da iconografia monetária dos reis berberes do Norte da África, em particular, dos reis númidas, entre os séculos III e I a.C., sua relação com a cunhagem anterior de Cartago e com a posterior dos romanos. Neste sentido, lidamos com os aspectos ideológicos e culturais que sustentaram essas monarquias norte- africanas da antiguidade. Palavras-chave: Norte da África – Numídia – Moeda – Iconografia – Cartago – Roma. pesquisas arqueológicas há muito estabele- ceram que desde os períodos mais remotos houve uma série de importantes contatos com o Oriente, muito mais do que com a África central. Igualmente, o material arqueológico encontrado em vários sítios norte-africanos atesta uma série de conta- tos com a Península Ibérica em particular, mas também com a região mediterrânica central. 2 Durante a chamada Antiguidade clássica, a região foi colonizada primeiro pelos fenícios e depois pelos cartagineses, que estabeleceram um vínculo cultural perma- nente com os povos autóctones desta região, O (*) Museu de Arqueologia e Etnologia. Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Cidade Antiga – LABECA. Professora de Arqueologia ligada ao Archeologos. [email protected] (1) A palavra Maghreb, de origem árabe, atualmente usada para designar a região ocidental do Norte da África, significa literalmente “o tempo e o lugar do pôr-do-sol – o oeste”. Para os conquistadores árabes representava a região que era “a ilha do oeste”, isto é, a terra entre o “mar de areia” – o deserto do Saara – e o Mar Mediterrâneo. Esta designação abrange as atuais Tripolitânia, Tunísia, Argélia e Marrocos. (2) Nas atuais Argélia, Tunísia e Marrocos temos exemplos destes contatos para o período do Ferro e do Calcolítico (ver Camps 1960: 127-145).

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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 17: 251-292, 2007.

Introdução

O Norte da África durante a Antiguidade e aquestão dos povos berberes

Norte da África representa um ricocampo de estudos para as Ciências

Humanas, tendo sido, ao longo de váriosmilênios, objeto de inúmeras transformaçõesculturais impostas por mudanças históricas,ou seja, pela ação do homem. Apesar defazer parte do continente africano, pode-seconsiderá-lo, geograficamente, uma “ilha”,pois se encontra separado da Europa pelomar e do resto da África pelo deserto.1 As

Norte da África na antiguidade:os reis berberes númidas e suas iconografias monetárias

Maria Cristina Nicolau Kormikiari*

KORMIKIARI, M.C.N. Norte da África na antiguidade: os reis berberes númidas esuas iconografias monetárias. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, SãoPaulo, 17: 251-292, 2007.

Resumo: Neste artigo apresentamos nossa interpretação da iconografiamonetária dos reis berberes do Norte da África, em particular, dos reisnúmidas, entre os séculos III e I a.C., sua relação com a cunhagem anterior deCartago e com a posterior dos romanos. Neste sentido, lidamos com osaspectos ideológicos e culturais que sustentaram essas monarquias norte-africanas da antiguidade.

Palavras-chave: Norte da África – Numídia – Moeda – Iconografia –Cartago – Roma.

pesquisas arqueológicas há muito estabele-ceram que desde os períodos mais remotoshouve uma série de importantes contatoscom o Oriente, muito mais do que com aÁfrica central. Igualmente, o materialarqueológico encontrado em vários sítiosnorte-africanos atesta uma série de conta-tos com a Península Ibérica em particular,mas também com a região mediterrânicacentral.2

Durante a chamada Antiguidade clássica,a região foi colonizada primeiro pelosfenícios e depois pelos cartagineses, queestabeleceram um vínculo cultural perma-nente com os povos autóctones desta região,

O

(*) Museu de Arqueologia e Etnologia. Pesquisadora doLaboratório de Estudos da Cidade Antiga – LABECA.Professora de Arqueologia ligada ao Archeologos. [email protected](1) A palavra Maghreb, de origem árabe, atualmente usadapara designar a região ocidental do Norte da África, significaliteralmente “o tempo e o lugar do pôr-do-sol – o oeste”. Paraos conquistadores árabes representava a região que era “a ilha

do oeste”, isto é, a terra entre o “mar de areia” – o deserto doSaara – e o Mar Mediterrâneo. Esta designação abrange asatuais Tripolitânia, Tunísia, Argélia e Marrocos.(2) Nas atuais Argélia, Tunísia e Marrocos temos exemplosdestes contatos para o período do Ferro e do Calcolítico(ver Camps 1960: 127-145).

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os chamados berberes.3 No entanto, gregos e,principalmente, romanos, também ali aportaram.De fato, durante o Império Romano, todo oNorte da África, com exceção do Egito, o qualrepresentava uma unidade imperial a parte, foitransformado em províncias específicas.

O processo de exploração estrangeira doNorte da África não se restringe ao períodoantigo. Em seguida aos romanos, atesta-se apresença vândala e, na seqüência, islâmica, daregião. No período moderno, temos, por fim,a colonização, marcada por momentos deintensa violência, dos europeus, especialmentefranceses e italianos.

Neste contexto, os berberes perderamespaço e presença política. Historiograficamente,sua existência terminou pautada e analisada apartir da perspectiva do outro, do estrangeiro.No Maghreb, o processo de independênciafrente o jugo europeu, que levou a profundasrupturas, gerou uma reconstrução das identi-dades nacionais. O passado islâmico foiinicialmente sobrevalorizado, especialmente emrelação ao passado da Antiguidade clássica.

Inseridos neste contexto, os berberestambém ganharam voz, especialmente após àchamada “primavera berbere”, movimento quesurge na Argélia, na década de 70, alastra-se pelaFrança, e prega a valorização da cultura berbere,de maneira geral, e particularmente das línguas eda poesia, lutando, inclusive, pela inclusãodestas no quadro do ensino escolar argelino.

Entendemos que a determinação da identi-dade étnica de um povo é uma criação político-social, ativada e estruturada através de estratégias

discursivas dentro do próprio grupo (Hall 1997:41), ou seja, trata-se de uma construção ditadapelas circunstâncias históricas, de difícil percep-ção na cultura material. Entretanto, o pesquisa-dor que lida com o Norte da África encontra-seabsolutamente familiarizado com a existência deum grupo social específico, os já citados berberes,identificados por meio de aspectos culturais,desde o período proto-histórico, isto é, desde oinício da freqüência fenícia na costa maghrebina apartir dos séculos X-IX a.C..

Durante o protetorado francês na Argélia, aarqueologia preocupou-se, principalmente, coma redescoberta do passado romano do Norte daÁfrica. Entretanto, alguns pesquisadoresfranceses e franco-argelinos, como GabrielCamps (1960, 1961, 1973, 1980, entre outros),Stephané Gsell (1927) e Jehan Desanges (1962,1983) trabalharam intensamente na recuperaçãoda história berbere. Ainda assim, estes povos nãopossuíam a primazia nas pesquisas historiográficasque hoje em dia possuem.

Atualmente, a população berbere é minoriano Maghreb, mas a área onde a língua berbere éfalada, por outro lado, é imensa, o que pode serconsiderado como indicador do tamanhooriginal da população (Mapa 1). Deriva destetraço cultural específico a definição do povoberbere contemporâneo. Isto é, berberes sãoidentificados, principalmente, enquanto povosfalando línguas berberes (Brett & Fentress 1996:5). Acredita-se que os primeiros proto-berberestenham surgido no Neolítico, da fusão de trêsculturas pré-históricas originárias da própriaÁfrica e do Oriente: os ibero-maurusienses, oscapsienses e os neolíticos (Desanges 1983: 429-430). Por outro lado, vestígios de uma linguagemcomum não são inexistentes. A língua líbica,como é denominada a língua berbere da Antigui-dade, chamada de “escrita líbico-berbere”, refere-se a um sistema de escrita encontrado eminúmeros documentos no Norte da África, noSaara e nas Ilhas Canárias. Os lingüistas sãounânimes quanto à sua unidade original, depoisfragmentada em alfabetos diferentes, mascorrelatos, no período histórico (época dacolonização cartaginesa, isto é, a partir do séculoV a.C.) e que pertenceriam a grupos indígenasespecíficos (Galand 1989: 69).

(3) O uso da palavra berbere, descrevendo os habitantesindígenas do Maghreb, surge no século VII d.C. com achegada dos árabes na região. É possível que a palavra tenhase originado a partir de uma corruptela da palavra latinabarbari. Durante o período de ocupação colonial européiasedimentou-se como denominação dos habitantes locaisoriginais. Apesar de poder ser considerada anacrônica foiadotada pela historiografia moderna para designar oshabitantes autóctones, visto que foi este o sentido dado a elapelos árabes. De maneira análoga, a historiografiadenomina Berberia o Maghreb, identificando três áreasdistintas: Berberia Ocidental (Marrocos e Argélia ocidental);Berberia Central (Argélia central) e Berberia Oriental (lesteda Argélia e Tunísia).

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Conforme visto à nota 3, o termo berbere,por sua conta, não é autóctone. Mesmoatualmente os povos berberes possuem outraauto-denominação dialetal: tamazight, para alíngua, e imazighen, para o povo a utilizá-la. Estetermo seria derivado da palavra amazigh,aparentemente o nome utilizado pelos própri-os berberes como designação étnica de seusgrupos indígenas na Antiguidade. Este surgeem inscrições líbicas na forma MSK e eminscrições romanas nas formas Mazic, Masik,Mazix e Mazica (Gsell 1927, vol.V: 116; Camps1960: 27).

Temos estabelecido, assim, a existência deuma população autóctone norte-africana, paraa qual a historiografia moderna adotou onome berbere apesar de este não ser o seunome original. Mas como mencionamos noinício de nossa introdução, o povo berberenão se desenvolveu em um vácuo, sua histórianecessita ser analisada dentro de um contextohistórico maior, norte-africano. Ou seja, comrelação à Antiguidade, primeiro tendo-se emmente os contatos com a Bacia Mediterrânica,depois em relação aos colonizadores fenício-

cartagineses, e, por fim, aos romanos. Noentanto, esta mesma necessidade básicaoriginou duas distorções; primeiro, que aHistória do Norte da África tivesse a tendênciade ser uma história a relatar os eventos de seusconquistadores; segundo, que os berberestenham sido tratados quase como povos a-históricos, sem história.

Neste sentido, um grande empecilho é semdúvida a escassez de documentação direta. Ahistória e a organização social dos berberes naproto-história é praticamente desconhecida. Osdados que possuímos sobre eles são, na suaimensa maioria, de ordem material e, maisespecificamente, relacionados à esfera excepcio-nal da morte. Ou seja, possuímos um quadrorazoavelmente completo dos tipos de túmulose áreas de enterramento desses povos (Camps1961). No entanto, as formas de ocupaçãoespacial e a cultura material a elas relacionadasainda não foram estudadas de maneira aformar um corpus documental consistente.

Sua língua, a líbica, só ganhou um formatoescrito em torno do século IV a.C., ou seja, jáno período histórico, após contatos mais

Mapa 1. Distribuição dos dialetos berberes modernos. Brett & Fentress 1996: 2.

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extensos com os fenício-cartagineses e com alíngua destes, o púnico.

Possuímos, por outro lado, relativamentepoucos textos líbicos da Berberia. A grandemaioria deles são inscrições de caráter religio-so, bilíngües com o púnico ou neo-púnico(forma cursiva do púnico) (Galand 1989: 70).A língua líbica ainda não foi totalmentedecifrada.

As fontes escritas mais prolixas sobre osautóctones continuam sendo os textos deautores gregos como Heródoto, Diodoro daSicília, Ptolomeu e Políbio, e romanos comoSalústio, Tito-Lívio, Plínio, o Velho, Tácito eApiano, entre outros. Deste modo, no quetoca à documentação textual o que possuímossão informações por vezes anacrônicas eparciais.

Assim, a Arqueologia e a Etnologia têm sidoas duas ciências que mais se aprofundaram noconhecimento acerca dos berberes. O paraleloetnológico tem sido muito utilizado e é, defato, uma abordagem extremamente útil. Mas épreciso escapar da crença na “permanênciaberbere”, ideário que alcançou grande influên-cia na historiografia moderna (Brett & Fentress1996: 6-7).

A idéia da permanência berbere nasceunão só da recorrência, em relatos distribuídosao longo do tempo, de certos temas que foramcaracterizados como tipicamente berberes –família, clã, tribo, ausência de estado, apego àliberdade, entre outros –, como também foisustentada pelos próprios dados arqueológi-cos. Como mencionado, o material de estudomais relevante da Arqueologia proto-históricano Maghreb são os monumentos funerários.Isto porque os locais de moradia proto-históricos ou são desconhecidos, ou são dedifícil identificação no meio de ruínas semcaracterísticas distintivas, de todas as épocas(de época romana até muitos séculos anterio-res), que, por comodidade, são designadascomo “ruínas berberes” (Camps 1960: 90-96).Gabriel Camps (idem: 96) chama de “perma-nência berbere” justamente o fato de astécnicas de construção e a cultura materialcotidiana, no grande espectro, não terem semodificado significativamente ao longo dos

séculos, o que dificultaria a diferenciação porperíodos.

A homogeneidade no tempo de partesignificativa da documentação material berberelevou, portanto, à crença de que as instituiçõespolíticas, econômicas e sociais tivessemigualmente permanecido homogêneas. Destemodo, um estudo etnográfico acerca de umapopulação berbere da atualidade poderia sertransplantado para a Antiguidade. A circularidadedesta proposta é evidente: se procurarmos porberberes, durante o período romano porexemplo, apenas em vilarejos nas montanhas,que é onde eles estão ainda hoje, será fácil, masdificilmente legítimo, demonstrar que osberberes da Antiguidade eram idênticos aoshabitantes modernos dos Montes Aurés ou daKabília.

No entanto, o cuidado no trato dos dadosetnográficos, evitando-se a transposição pura esimples, principalmente geográfica, dosberberes medievais e modernos para a Antigui-dade permite que as pesquisas etnológicassejam de grande valia. Isto porque os berberespodem ser estudados a partir da chamadalonga duração, da História lentamente ritmada(Whittaker 1993 (1978): 331).

Na esteira dessa proposta, os berberes detodos os tempos são mormente identificadoscomo uma sociedade tribal, definição que aEtnologia comprova. Com relação à Antiguida-de, entretanto, este dado vem notadamente dasfontes textuais, onde as “tribos”, isto é, osgrupos indígenas, são apresentados de formaantinômica, isto é, ou são nômades ou sãosedentários.

Já a partir da IIª Guerra Púnica, os gruposindígenas berberes aparecem mencionados nasfontes enquanto entidades históricas: Plínioafirma que 463 desses grupos juraram fidelida-de a Roma (H. N. 5, 1). Baseados nos poucosdados sócio-políticos que os textos gregos elatinos nos fornecem a respeito dos berberes, ealiando estes dados aos estudos etnográficosmencionados acima, há uma forte tendência naatualidade em visualizar os berberes enquantoorganizados em grupos clãnicos agnatícios, istoé, que descendem de linhagem masculina,transmitida de varão a varão (Whittaker 1993

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(1978): 336). Vilarejos seriam compostos porestes grupos agnatícios, de famílias extensassubdivididas em clãs. A tendência destes clãs ementrar em desacordo impediria a formação deunidades espaciais muito grandes, restringindo-os a agrupamentos menores, vilarejos. A própriaorganização destes vilarejos seria difícil em razãodesta falta de união (Brett & Fentress 1996: 33).

Entre os séculos IV e III a.C., as fontestextuais e parte da cultura material, notadamenteno campo da numismática, apontam para umaprofunda mudança no modo de viver berbere.Neste período, justamente, temos o início dosembates entre púnicos e gregos na Bacia doMediterrâneo setentrional e também no Norteda África (guerra contra Agátocles, tirano deSiracusa), e das guerras com os romanos, aschamadas Guerras Púnicas. Para esse período,portanto, a documentação textual e material dáconta da formação de reinos próprios entre osberberes. Estes reinos teriam sido baseados emcoligações de vários grupos indígenas, em umadada área, sob a liderança de um grupoagnatício específico, pertencente a um dosgrupos indígenas da coligação (Camps 1960;Desanges 1980; Fentress 1982).

Assim, três linhagens são traçadas: a dosmouros na Berberia Ocidental (atual Marrocose oeste da Argélia) e parte ocidental da BerberiaCentral (Argélia); a dos masesilos na BerberiaCentral (Argélia) e a dos massilos nas BerberiasCentral e Oriental até a fronteira com Cartagoprimeiro e depois com a província romanaAfrica (leste da Argélia e oeste da Tunísia). Estaúltima dinastia, a dos massilos, é a de Massinissa,o mais renomado dos reis berberes. Teria sidoa mais bem sucedida, com uma linhagem deuma única família agnatícia dominando opoder do século III a.C. até o século I a.C..Massinissa foi um grande aliado romano,responsável direto pela derrota e destruição deCartago na batalha de Zama, em 202 a.C., e oformador do grande reino númida, queacabou englobando sob esta denominação osantigos reinos masesilo e o seu próprio, omassilo. A Numídia corresponde, de maneirageral, a área destes dois reinos.

Paralelamente aos extensos relatos deautores como Tácito, Lívio, Salústio e outros, a

documentação material mais importante aatestar a presença e influência das dinastiasberberes é, conforme mencionamos acima, acunhagem monetária própria destes reis. Asmoedas dos reis berberes podem ser encontra-das não apenas ao longo de todo o Maghreb,como também em terras mediterrânicassetentrionais, notadamente nas regiões deorigem dos mercenários dos exércitos romanose berberes (Kormikiari 2000: 304-367). Os reisberberes são tratados como reis aliados dosromanos e serviram de apoio militar e econô-mico nas incursões romanas contra Cartago noNorte da África, como também tiveram papelimportante no desenrolar das guerras civisromanas que culminaram com a ascensão deOtávio no século I a.C.. Mas não apenas amoeda é testemunho, no campo material,dessa presença: várias inscrições líbicas, muitasdelas bilíngües, e outras latinas e gregasmencionam os reis (Camps 1960: 216; Gsell1927, vol.VI: 130-131; Carcopino 1943: 285);encontramos, ainda, grandes monumentosfunerários, que se acredita erguidos em suahomenagem, como a Tumba da Cristã e oMedracen (Coarelli & Thébert 1988). Alémdisso, os textos antigos mencionam diversascapitais e cidades reais berberes, Volubilis eBanasa na Berberia Ocidental, Siga, também naBerberia Ocidental, Iol (Cesarea, atual Cherchel)na Berberia Central, Cirta (atual Constantina)na Berberia Oriental, entre outras. Um aspectomuito importante da ocupação romana noMaghreb foi assinalado pelo arqueólogo deVolubilis, André Jodin (1987: 26): “NoMarrocos, cada cidade romana está localizadasobre uma cidade púnico-moura e, até omomento, não houve exceção para essa regra”.

A Arqueologia redescobriu, no Maghreb,diversas aldeias ou vilarejos berberes antigos.Muitos destes continuaram a ser habitados noperíodo romano, e mesmo mais tarde. Muitasvezes, inclusive, são usados até os dias atuais,pois as fontes de água – razão primordial paraa criação do assentamento naquele localespecífico – continuam ativas.

No entanto, mesmo após a descobertaarqueológica de importantes centros urbanospúnico-berberes, a maioria dos estudiosos

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sustenta a teoria, apenas delineada pela Arqueo-logia, e basicamente sustentada pelos dadostextuais da Antiguidade e pelos dados daEtnologia, de que a maioria da populaçãoindígena continuou a habitar as aldeias,principalmente nas regiões montanhosas daKabília e do Aurès (Berberias Oriental eCentral); e do Rif, do Médio e do Alto Atlas(Berberia Ocidental) (Gsell 1927, vol. V: 251;Camps 1960; Rossetti 1960; Isserlin 1983;Smadja 1983).4

Um redimensionamento possível destateoria foi apresentado por André Jodin (1987:56-63). Este arqueólogo acredita ser possívellançar a hipótese de que cada cidade interioranada Berberia Ocidental (a colonização fenício-púnica tendo a característica de se restringir àcosta), antes de ser romanizada, foi um centronevrálgico ou um oppidum de um grupoindígena berbere. Volubilis, Gilda, Sala,Banasa, entre outras, longe de terem sidocidades isoladas no meio de uma populaçãoestranha, autóctone, mais e menos hostil,cidades fechadas dentro de suas muralhas esem possuírem recursos definidos, eram, paraJodin, centros políticos, econômicos e religio-sos de seus “Estados” respectivos, nos quaisuma administração punicizada reinava sobreuma sociedade autóctone.

O presente artigo, baseado em parte dasconclusões a que chegamos em nosso trabalhode doutoramento (Norte da África autóctone doséculo III ao I a.C.: as imagens monetárias reaisberberes, 2000), apresenta uma análise daiconografia monetária real berbere númida, aqual demonstra, tanto pela imagética utilizada,quanto pelos metais e volume de emissãoadotados, as relações ambíguas que pautaramo viver berbere frente os invasores estrangeiros,

e as transformações sócio-econômicas que seprocessaram a partir destes contatos.5

***

A cunhagem norte-africana, excluindo aregião de Cirene, que possui um percursodissociado, é dividida em certos períodoschave. Entre esses momentos, cruciais para ahistória do Norte da África na Antiguidade, osreinos indígenas emitiram as suas cunhagens.As diferentes emissões estão ligadas umas aoprimeiro período histórico, e outras aosegundo. Essa ligação é de cunho político eeconômico e, portanto, cultural. A organizaçãosocial berbere baseada em famílias agnatícias,com chefias locais, data de muito antes daformação dos reinos centralizados no final doséculo III a.C..6 Na prática, a existência dessesreinos autenticamente berberes termina noreinado do mouro Boco II em 33 a.C., umpouco antes da ascensão ao poder do primeiroimperador romano, Augusto, e quase umséculo antes da anexação definitiva e oficial detoda a Berberia por parte de Roma. O últimorei númida conhecido, Mastenissa II ouArabion, havia sido deposto pelos romanos em41 a.C.. De fato, entre a IIª Guerra Civilromana, em 49 a.C., e a subida efetiva aopoder de Augusto, em 27 a.C., a presençapolítica das partes envolvidas nos assuntosafricanos demonstra o quanto irreversível era o

(4) À falta de uma precisão espacial estabelecida pelos dadosmateriais, costuma-se utilizar, para a análise do padrão deassentamento dos berberes, dados retirados das fontestextuais. De maneira geral, percebemos o uso indiscriminadode termos significando aldeia e/ou vilarejo: castellum (Salústio,Jug., LIV, 6; LXXXVII, 1; Bell. Afric., II, 6; Vi, 6; Tito-Lívio,XLII, 23; Justino, XXII, 5, 5; e outros), vicus (Tito-Lívio,XXIX, 30, 7) e chomí (Apiano, Lib., 12). O termo oppidum, quepor vezes acompanha castellum, é interpretado comodesignando cidades fortificadas (Tito-Lívio, XLII, 23).

(5) São conhecidos, a partir das fontes textuais e epigráficas,26 reis berberes. No entanto, nem todos possuem cunhagemprópria identificada. O dado negativo, aqui, não significa,necessariamente, que estes reis não emitiram numerário, esim, que suas moedas ou perderam-se ao longo dos séculosou ainda não foram recuperadas arqueologicamente.Apresentamos, neste artigo, as moedas da dinastia maisduradoura e poderosa, a dos númidas.(6) Apesar de crermos em uma centralização lassa, a emissãode numerário próprio é o dado mais significativo datransformação das chefias nessa sociedade berbere tribal.Lembramos que a moeda tem como característica principala de ser um produto oficial, garantido pelo estado ougoverno que a cunhou. Na Antiguidade, na imensa maioriadas vezes (as exceções ocorreram em momentos específicos,de crise político-econômica profunda), ela possui um valorintrínseco, e é esse valor que é garantido pelo poder emissor.

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caminho que já vinha se delineando há muitasdécadas, através da presença constante dosnegotiatores italianos e também da comunidadegrega na Berberia. Nossa proposta neste artigoé a de, por meio da análise iconográfica dostipos monetários reais berberes númidas,analisar como se deu a evolução interna dascunhagens, de um rei para o outro, e procuraro entendimento de como eles responderam àpresença cada vez mais marcante dos futurospoderosos da Berberia. Por fim, à luz dosdados que conseguimos coletar acerca dacirculação monetária berbere, os quais apresen-tamos à medida que discutimos a análise dostipos iconográficos, teceremos alguns comentá-rios sobre a relação emissor e receptor.

Parte I

I. Berberia Púnica

O primeiro período chave abarca quase trêsséculos e corresponde aos inícios damonetarização da Berberia. As primeirasemissões monetárias batidas em solo africanoforam cunhadas, no final do século IV a.C.,por Cartago. O mais recente artigo acerca doconjunto numerário cartaginês, publicado pelonumismata Paolo Visoná, que desenvolve, hámuitos anos, uma pesquisa sistemática sobre alocalização das oficinas monetárias cartaginesas,propõe que a primeiríssima cunhagem batidaem solo africano seja uma emissão em bronze,extremamente difundida pelos territórios púnicosda Sicília, Sardenha e Berberia. Essas moedastrazem como tipo iconográfico de anverso umacabeça masculina enfeitada com grão de trigo ebrinco (Triptolemos?), e no reverso um cavalocorrendo livre (Visonà 1998: 5).

Do século IV até c. o início da IIª GuerraPúnica (218-202 a.C.), apenas Cartago emitenumerário na Berberia. Durante boa partedesse período, a capital africana instituiu umsistema monetário coeso e homogêneo portodos os seus territórios, tanto em bronze(unidades e frações), como em prata, ouro eeletro. No entanto, entre as duas guerraspúnicas (264 a.C. e 202 a.C.), padrões regio-

nais de circulação podem ser percebidosatravés da análise dos locais de achadosmonetários. As moedas cunhadas nas oficinasespanholas, entre 237 e 206 a.C., não sãonormalmente encontradas no Norte da África,e muito poucas peças cunhadas nas oficinas deCartago, entre 238 e 220 a.C., aparecem emescavações ou achados esporádicos do outrolado do Mediterrâneo (Visonà 1998: 16).

O sistema de cunhagens adotado porCartago a partir de c. 200 a.C. foi resultado deuma reforma monetária, conseqüência de suaderrota na IIª Guerra Púnica. Cartago pratica-mente abandona a cunhagem em metaispreciosos e passa a emitir apenas em bronze.Desse modo, são batidas duas emissões de c.20 e 100 g, possivelmente representando umaunidade e um múltiplo. As séries mais levestrazem como tipo monetário de anverso acabeça da divindade Core/Tanit, e no reversoum cavalo dando passo à direita. Já nas sériesmais pesadas há dois tipos de reverso: com ocavalo parado ou dando passo à direita,sempre com um disco solar, flanqueado pelouraeus cobra. A hipótese mais trabalhada é queCartago tenha feito uso das peças de 100gcomo meio de substituição das divisões deprata menores que ela não mais podia cunhar(Alexandropoulos 1989: 535).

Entre c. 200 a.C. e 146 a.C., a circulaçãomonetária em Cartago estava baseada essencial-mente nessas emissões e em algumas séries debronze mais antigas que nunca saíram decirculação (Visonà 1998: 21, nota 64).

Após 146 a.C. o numerário cartaginêsdesaparece, em geral, da estratigrafia arqueoló-gica, provavelmente porque foi derretido. Noentanto, as últimas emissões cartaginesas debronze, que discutimos acima, continuamsendo encontradas, ainda que em quantidadesmuito pequenas, em sítios norte-africanos, masmormente em contexto tardio (Visonà 1998:23, nota 69; Fischer 1978: 37).

II. Berberia entre as Guerras Civis Romanase o Principado de Augusto

O segundo período chave concerne àpresença dos exércitos romanos e de seus

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magistrados moedeiros em solo norte-africano,por ocasião das disputas internas na RomaRepublicana. Disputas, cujos combatesmilitares foram, muitas vezes, travados emterritórios estrangeiros, na Berberia, naPenínsula Ibérica, no Egito.

A destruição de Cartago e a criaçãosimultânea da província Africa em solo púnicoacarretaram uma mudança decisiva na relaçãoentre as forças políticas da Berberia. T. Kotulaafirma que o estado cartaginês havia, já háséculos, se tornado africano, isto é, berbere.No entanto, este estado foi, após a destruiçãoda capital africana, o praedium populi Romani, osolo provincial do inimigo estrangeiro (Kotula1976: 338). O reino númida faz, agora,fronteira com o território ocupado pelosromanos. Estudos recentes têm procuradodemonstrar o complicado jogo político eeconômico romano, à época dos Gracos edurante a derrocada da República, ao longodas acirradas disputas entre os optimates e ospopulares. T. Kotula defende a tese de que aGuerra de Jugurta, travada entre o auto-proclamado rei númida Jugurta e Roma, tevecomo causa as incessantes intervenções dopoder romano nas sucessões dinásticasberberes. Paralelamente, este interesse romanonas questões políticas locais estava relacionadoaos interesses econômicos dos homens denegócio italianos, os negotiatores, atuando nascidades fenício/cartaginesas e berberes,incluindo nas chamadas “capitais” dos reinos,como em Cirta, a mais importante delas.

A vitória de Mário, na Guerra de Jugurta,permitiu que o partido dos populares levasse acabo sua política de doações de terras férteis,longe da Itália, aos veteranos. Uma série deinscrições africanas, encontradas em territórionúmida, atesta que a lex Appuleia, de 103 a.C.,que designava para cada veterano de Mário100 iugera (c. 25 ha), utilizou terras nãopertencentes à província Africa, o que, naopinião de T. Kotula significa que a Numídiaestava cada vez mais submetida a Roma (Kotula1976: 339). Essas anexações de terras númidasteriam sido feitas nas terras do rei Gauda.Entretanto, lembramos que a historiografiamoderna não chegou ainda a um denominador

comum quanto à posse privada da terra entreos berberes. A partir dos estudos etnográficosa tendência é acreditar-se em posse comparti-lhada, paralelamente à existência de privilégiospor parte do chefe, do rei (Whittaker 1993(1978): 341). Outros pesquisadores (Gsell1927, vol.V; Smadja 1983; Kotula 1976)defendem uma crescente privatização das terraspor parte de uma elite berbere, que se constituiao longo dos séculos III e II a.C. e que entra,desse modo, no mesmo âmbito de atuação daselites cartaginesas, dos libifenícios. E. Fentressacredita ainda que as populações númidas,tanto sedentárias quanto semi-nômades, eramcontra as anexações de terras e as taxaçõesfeitas, seja pelos reis númidas, seja pelo poderromano (Fentress 1982: 333).

Acreditamos, de fato, ser mais plausívelmanter a visão de uma sociedade multi-facetada:urbana ao longo do litoral mediterrânico (aimensa maioria das cidades conhecidas doperíodo fenício-cartaginês está localizada aolongo da costa marítima); sedentária e agrícolapara o interior; semi-nômade, principalmenteem direção à zona desértica (mas com umagrande variação de percurso territorial, tantona direção norte-sul, como leste-oeste). Éjustamente no âmbito urbano que os contatosentre autóctones e estrangeiros, notadamenteos libifenícios, mas também iberofenícios,italianos, romanos e gregos foram mais intensos.

Os dinastas númidas da época7 alinharam-se com os diferentes partidos romanos em lutacivil. A questão básica por detrás desses apoiosparece ser a da posse da terra. Gauda teria tidoas terras, sobre as quais mantinha sua autorida-de, confiscadas, pois conforme visto acima, opartido dos populares preconizava o usodessas terras para Roma. Já o partido dosoptimates teria interesse em manter o status quona Berberia, seja em razão do poder dos reisindígenas de arregimentar tropas; seja porinteresses econômicos – o comércio doscereais nas mãos dos negotiatores na Numídia e

(7) Incluindo o usurpador Hiarbas, que se acredita ter sido,provavelmente, de origem getula, grupo berbere habitante dazona meridional do Maghreb (Kormikiari 2000: 189-225).

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o comércio de produtos de luxo na Mauritânia(Fentress 1982: 330). Quer tenham tido aposse real das terras ou as tenham compartilha-do com os chefes menores dos vilarejos, comos membros da família agnatícia a qual perten-ciam, e/ou com as próprias populaçõesnúmidas, acreditamos que os reis berberesefetivamente foram os mediadores entre estesagentes e o poder cartaginês, primeiro, eromano, em seguida. No entanto, quando asdisputas internas romanas foram transportadaspara o território norte-africano, o interlocutorestrangeiro, com quem os reis tinham que seentender, deixa de ser claro e uno. Entra emcena o jogo político externo, ao qual se aliamas questões internas (tanto em relação àspopulações das cidades, estrangeiras e locais –incluindo os descendentes dos cartagineses,como as populações dos vilarejos, das planíci-es). Justamente acerca das questões internas éque nossa documentação é mais falha. A partirdos dados de circulação que apresentamosadiante, cremos poder comprovar que acirculação monetária concentrou-se nas áreasurbanas, litorâneas na sua maioria, e tambémnas mãos dos componentes estrangeiros dosexércitos. Acreditamos que a circulação entreos berberes ocorreu mais no nível das chefias,e não entre as populações propriamente ditas.A vitória de Pompeu em 81 a.C. representou asustentação da política dos optimates e retardouuma colonização romana mais acentuada noNorte da África, ao menos até a vitória, quasequarenta anos depois, de César em Tapso.Nesse momento, então, temos a anexaçãodefinitiva das terras númidas, transformadas naprovíncia Africa nova.8

O período, portanto, que vai da destruiçãode Cartago à anexação da Numídia (146 – 46/41 a.C.) corresponde aos reinos de praticamen-te todos os reis númidas (incluindo o getuloHiarbas), as únicas exceções são com relação

aos dois primeiros reis de que temos notícia,Sífax e Massinissa. É, portanto, um momentomuito importante em nossa análise, principal-mente porque, colocando-o em contrapontoao primeiro período exposto acima, percebe-mos que a economia monetária da Berberia setransforma por completo. As antigas cunha-gens púnicas são substituídas, com exceção dosbronzes dos reis e das excepcionais cunhagensem prata de alguns destes, pelo numerárioromano (com um sistema monetário próprio eque será copiado, posteriormente, pelos reis).

No que toca especificamente à questão dacirculação monetária no Norte da Áfricapodemos dizer que após a destruição deCartago, em 146 a.C., houve uma mudançaradical na circulação de metais preciosos naBerberia. A cunhagem em ouro desapareceu eaquela em prata foi substituída pelos denáriosromanos. Sabe-se que uma carga de denáriosfoi mandada para a África, oficialmente, em111-110 e outra também em 82 a.C. (Amandry;Burnett & Ripollès 1988: 182).

Durante a Guerra Civil entre César ePompeu, ambas as partes cunharam moedas naBerberia. Denários foram emitidos por MeteloPio e Cato em 47-46 a.C. e pelo rei númidaJuba I, talvez na antiga colônia fenícia de Útica,para ajudar a causa de Pompeu. Juba I tambémproduziu sestércios e quinários e sua contribui-ção foi de tamanho mais que razoável. Dooutro lado, os que apoiavam César tambémdevem ter cunhado peças. Bogud, rei mouroda Mauritânia ocidental, o apoiou: suasmoedas, apesar de produzidas em pequenasquantidades, são denários em todos os aspec-tos (metrológicos e iconográficos).

Depois da vitória de César em Tapso, aprovíncia romana Africa foi reorganizada,quando então Roma se apoderou de parte daNumídia. Depois de 42 a.C., quando Q.Cornifício, governador da Africa vetus, cunhouáureos e denários, não se bateram mais peçasde prata no Norte da África, com exceção deuma pequena emissão da cidade fenícia deLeptis Magna, posterior ao ano 15 a.C.(Amandry; Burnett & Ripollès 1988: 182).

Por fim, um terceiro período, que acredita-mos poder ser incluído como seqüência do

(8) Os dois últimos reis númidas, Arabion e Juba I, ficaramdo lado dos pompeianos. Na opinião de T. Kotula (1976:339), César agia à luz do caráter cada vez mais expansionistada República Romana e teria seguido, de maneira geral, alinha do partido dos populares, e no que toca às questõesnorte-africanas, a política marianista.

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período apresentado acima, pois em termosnumismáticos corresponde à continuação dossistemas monetários romanos, é representadopelo triunvirato de Otávio, Lépido e MarcoAntônio, e culmina com a ascensão ao poderde Otávio, que assume o título de Augusto e setorna o primeiro imperador romano. Noentanto, uma vez anexados os territóriosorientais da Berberia, o único reino berbereque sobreviveu foi o dos mouros. Dos sobera-nos mouros que pudemos assinalar, apenas osdois últimos, Boco II e Bogud, cunharamnumerário próprio. Este numerário é igual-mente devedor, em termos ponderais, dascunhagens romanas, como mencionamos acima.

Augusto acelerou o processo de coloniza-ção das terras africanas. Este movimentopopulacional já havia se iniciado desde adestruição de Cartago (lembramos apenas atentativa dos irmãos Graco em refundarCartago, e os assentamentos de veteranosdurante as Guerras Civis). Na Berberia Orien-tal, isto é, na província unificada que juntou aAfrica vetus e a Africa nova, e para além, naregião das Sirtes (atual Líbia), Augusto nãointerferiu nos estatutos políticos das cidadeslivres, principalmente dos portos. Já nasregiões interioranas, ele instalou veteranos daXIIIª legião (C.I.L. VI, 36917, apud Lassère1982: 415) em Thuburbu Minus, ThuburbiMaius, Suturnuca, Medeli, Assuras, Simithus,Thuburnica e Sicca Veneria. Outras cidadescomo Vaga e Cirta receberam mais colonos. Oshabitantes berberes dessas regiões entravam emcontato com essas novas instalações, principal-mente nos dias de mercado, quando desciamde suas castella para se dirigir às nundinae(mercados periódicos).

Nas Berberia Ocidental e Central, regiãoque ainda não havia sido transformada emprovíncia romana, Augusto igualmente proce-deu à instalação de veteranos. São doze ascolônias ali estabelecidas: 3 no oeste, com osnomes de Iulia, 9 no leste, com o nome deIulia Augusta (Mackie 1983: 337-338).

Como salientamos acima, durante oreinado de Augusto na Berberia apenas obronze era cunhado. É preciso lembrar, noentanto, que durante os reinos indígenas não

foram apenas os reis que emitiram numeráriopróprio, várias cidades fenício-cartaginesas eberberes, igualmente o fizeram. Entretanto,trata-se de uma cunhagem com volume deemissão extremamente baixo (alguns tipos sãoconhecidos por meio de exemplares únicos),de metal não precioso, e produzida paracirculação apenas local (ao menos é o que sepode depreender a partir dos poucos dados decirculação disponíveis) (Kormikiari 2000: 276-304). Ainda assim, fazem parte, portanto, deum mesmo momento histórico e se relacionamentre si. Conforme mencionamos anteriormen-te, o último rei indígena númida conhecido,Arabion, é deposto em torno de 41 a.C.. Apartir desta data, até o principado de Augusto,somente as cidades vão manter sua produçãomonetária na Numídia e na província Africa.No entanto, na Mauritânia, além das cidades,vão se manter as cunhagens dos dinastasmouros até c. 33 a.C..

***

Antes de iniciarmos a análise das cunha-gens reais propriamente ditas, gostaríamos detecer algumas considerações acerca das cunha-gens citadinas. O primeiro dado marcante quetemos é a dicotomia entre as cunhagens citadi-nas pré-romanas e as pós-Augusto. As diferençasnão são apenas de ordem iconográfica (aíincluindo estilo, textura de fabricação e tipos),mas também no que toca aos sistemas monetári-os. De maneira geral, as mesmas incertezas quepossuímos com relação ao sistema ponderal dobronze cartaginês prevalecem com relação àsditas cunhagens neo-púnicas. Já as peçascunhadas nas colônias romanas e nas cidadeselevadas a município por Roma seguem, demaneira geral, o sistema monetário romano,acompanhando inclusive as reformas monetári-as instituídas por Augusto em c. 20 a.C..

Um outro ponto marcante diz respeito àiconografia e à epigrafia. As peças mais antigas,da Berberia Central notadamente, parecemreproduzir um imaginário religioso de caráterfortemente fenício-púnico. Constituem umaexcelente fonte documental a respeito da

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imagética religiosa, oferecendo uma alternativa àimensa maioria da documentação religiosacartaginesa que vem de contexto funerário. Poroutro lado, os reversos costumam ser interpreta-dos enquanto emblemata, isto é, apontariam asriquezas locais. Um tipo de explicação que foimuito utlizado na interpretação da iconografiamonetária da Grécia arcaica. No entanto, arecorrência dos motivos (cacho de uva; grão detrigo; atum) pode ter significados mais profun-dos: alianças políticas, religiosas ou econômicas.No que toca à epigrafia, o neo-púnico é correntenas emissões mais antigas, enquanto o latimtorna-se regra a partir das anexações romanas.

A região de Cirta, antigo coração massilo,e portanto, númida, parece ter se rendido àinfluência da colonização romana de Sittius, apartir de 46 a.C., mais precisamente à presençados italianos. No entanto, peças anteriores,apesar de não poderem ser atribuídas comcerteza a Cirta, possuem uma iconografiaencontrada em cidades vizinhas, como HippoRegius, que se aproxima dos tipos iconográficosnúmidas, notadamente a figura do cavalo agalope e dando passo. Além disso, há peçasque trazem as imagens de Héracles, do atum, edo javali, iconografia também existente emLixus, cidade de origem fenícia localizada noextremo ocidente da Berberia (Lixus).

Por outro lado, a imagem de Lívia, emalgumas dessas cunhagens, tem seu papelredimencionado a partir da hipótese de essafigura ter sido reelaborada esteticamente demaneira a se enquadrar melhor na culturareligiosa local (Alexandropoulos 1987: 75).Este dado abre o precedente para a própriareanálise das imagens “tipicamente” romanas,tão freqüentes nas colônias e municípios, apósa queda dos reinos númidas.

Por fim, uma interpretação clássica pregaque as cunhagens citadinas, especialmente aspré-romanas, não representaram, em termoseconômicos, uma efetiva inserção no mundomonetarizado da Antiguidade. Constituíram,de maneira análoga às cunhagens reais berberes,atos políticos de independência, já que somen-te estados autônomos e independentes emiti-am numerário próprio (Mazard 1960: 115-116). Entendemos que os argumentos a favor

dessa interpretação são fortes. Concentram-sena pobreza numérica das emissões e no metalutilizado (bronze na maioria das emissões, maso chumbo é também documentado). Noentanto, acreditamos que possam igualmenteser a prova de uma tentativa em bloco depreenchimento tanto do vácuo monetáriodeixado por Cartago, quanto das novas redesde alianças e associações que podem tersurgido então. É fato que, no que toca àscunhagens citadinas, mesmo sob o Império, aimensa maioria do numerário era de usocotidiano, de troco, isto é, de baixo valor. Noentanto, o conhecimento deste caráter localcomo dado de pesquisa é muito importante. Aanálise da iconografia e a sua contextualizaçãodevem levar em consideração o raio de ação dessascunhagens, por mais restrito que tenha sido.

Parte III – a cunhagem real

Dinastia masesila e massila: os númidas(incluindo a suposta dinastia getula)9

A cunhagem dos reis númidas é divididaentre as dinastias dos masesilos, dos massilosdo oeste e dos massilos do leste. St. Gsell, háoitenta anos já havia compreendido o caráterdesta cunhagem: “Toda essa cunhagem dosreinos masesilo e massilo está modelada apartir da de Cartago: o sistema metrológicoparece ser o mesmo, o cavalo das moedascartaginesas reaparece sobre as moedasnúmidas, as legendas são em púnico” (Gsell1920, vol. IV: 158-159).

Veremos, no entanto, que a aproximaçãocom a cunhagem cartaginesa é uma conclusãocorreta com relação às emissões númidas maisantigas: de Sífax e Vermina; de Massinissa e

(9) Parte das ponderações ora apresentadas aparecem emnosso artigo “O rei berbere e seu aparato iconográfico: otestemunho monetário”, em A linguagem das moedas: trêsleituras sobre iconografia numismática, 19º EncontroInternacional Imagem e Ciência. CNRS – Centro Nacionalde Pesquisas Científicas / França e Museu Paulista daUniversidade de São Paulo, 2003, p. 33-58.

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seus sucessores, até Jugurta e Hiêmpsal II. Após oque, os elementos culturais e econômicosromanos passam a, gradativamente, prevalecer.Lembramos, no entanto, que as atribuições amuitos dos sucessores de Massinissa são feitas emrazão de aproximações estilísticas com as peças deMassinissa, pois não possuímos legendas, mesmoabreviadas, com o nome desses reis – a escritapúnica das cunhagens berberes teve como regraabreviar os nomes dos reis, entrando no campomonetário a primeira e a última letra. J Mazard,que depois de L. Müller é o grande nome danumismática berbere, afirma que, tanto demaneira geral na Numismática, quanto especifica-mente com relação à cunhagem berbere que eleclassificou, a atribuição tem que ser realizadaatravés de cinco coordenadas: legenda; retrato; tipoe estilo; metal e peso; e epigrafia (Mazard 1957:154-162).

Sífax e Vermina

A primeira cunhagem que nos propomos aanalisar é a do rei masesilo Sífax e a de seufilho e sucessor, Vermina. O reino de Sífax édatado do final do século III a.C., maisexatamente do período quase inteiro da IIªGuerra Púnica (213-202 a.C.). Vermina, apesarde sofrer com os ataques massilos de Massinissa,teria reinado entre 202 e 192 a.C. As emissõesatribuídas a esses dinastas são certas em razãodas legendas que trazem, as quais nomeiamclaramente esses reis.

As moedas de Sífax são de bronze, já as deVermina são de prata. No entanto, as deVermina trazem apenas um tipo monetário,sem variações, e do qual só conhecemos trêspeças. Com exceção destas três peças de prata,e uma pequena série, de estilo diferente, emprata e em ouro, que são atribuídas tradicional-mente a Jugurta e a Hiêmpsal II, desconhece-mos moedas de metal nobre que possam seratribuídas aos reis númidas antes do reino deJuba I (60-46 a.C.). O achado monetário deConstantina (antiga Cirta), que contém 237peças de prata enterradas por volta de 79 a.C.,só possuía moedas estrangeiras: atenienses,cartaginesas, marselhesas, espanholas e sobre-tudo romanas (Camps 1960: 206).

Conhecemos duas emissões de Sífax. J.Mazard dividiu ainda as duas séries por oficina.As do tipo 1 seriam de feitura local e as do tipo 2teriam sido batidas em uma oficina espanhola(tipos 1 e 2). No entanto, não possuímos dadosque possam efetivamente corroborar tal hipótese.Atualmente, de fato, a tendência é a de se atribuira cunhagem do tipo 1 à oficina de Cirta (primeiracapital de Sífax, portanto local das primeirasemissões) e a do tipo 2 à de Siga (segunda capitalde Sífax) (Manfredi 1995: 307-308).

Tipo 2. Mazard (1955: 20 - tipo 10). (x 1,5)

Tipo 1. Mazard (1955: 18 - tipo 2). (x 1,5)

As ruínas de Takembrit (Siga) apresentampoucos vestígios, a maioria de época romana. Em1953, G. Vuillemot publicou um conjunto decerâmicas de tradição púnica acompanhadas deuma moeda de Sífax (Vuillemot 1953, apud Camps1960: 170). As moedas de Sífax encontradas emSiga são em número de seis: quatro estão noMuseu de Oran. Em todas, o tema iconográfico éo mesmo: retrato do rei no anverso (tipos 1 e 2) ecavaleiro galopando no reverso (tipos 3 e 4). Oanverso é normalmente interpretado como sendoo retrato do rei em razão da legenda, a qualaparece no reverso da moeda nomeando-o(Mazard 1955: 17; Krings 1995: 175).

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diante de uma cunhagem razoavelmenteabundante.10 Na opinião de J. Mazard, havia,por parte da autoridade emissora, umcuidado especial na elaboração destesretratos, daí as variações, mas a manutençãogeral do tipo, dos traços do rosto, é constan-te em todas as doze peças, de modo que esteautor acredita que este tipo estava calcado narealidade (Figs. 1, 1a, 1b). Com relação aotipo 2, por outro lado, J. Mazard acreditaque este represente a figuração idealizada dorei (Mazard 1955: 17).11

Tipo 4. Mazard (1955: 20 - tipo 10). (x 1,5)

Tipo 3. Mazard (1955: 18 - tipo 1). (x 1,5)

Os detalhes da barba e do cabelo (diferentesde uma emissão para a outra), e principalmen-te, a inclusão do diadema ao tema iconográficodo tipo 2, levaram alguns autores a proporemestarmos lidando com dois personagens diferen-tes (Mazard 1955: 17). No entanto, a legenda é amesma: SPhQ HMMLKT. A tradução queacreditamos ser mais correta é “Pessoa real deSífax” (Mazard 1960: 157). Veremos que otermo HMMLKT, por inteiro, ou HT, abreviado,aparece também nas cunhagens dos reis massilos.Assim, a razão para dois retratos diferentes temque ser outra.

As séries do tipo 1 são consideradas maisantigas. Ao elaborar seu catálogo, L. Müller,no final do século retrasado, dispunha deapenas um exemplar para cada tipo deanverso. Setenta anos mais tarde, J. Mazardpôde contar com um conjunto documentalpouco maior. Ele trabalhou com doze exem-plares do tipo 1. Em sua análise, o numismataverificou que tanto os anversos como osreversos destas doze moedas (particularmenteos reversos) apresentavam pequenas varia-ções, de modo que ele concluiu estarmos

(10) As moedas na Antiguidade, de modo geral, eramcunhadas a martelo. Podemos afirmar que, em média, de 5 a10 mil moedas eram produzidas por cada cunho de anverso,e de 30% a 50% a menos para cada cunho de reverso.(11) O tipo 2 é composto por um retrato de homem com oscabelos ondulados e enfeitados por um diadema. G. Picardassinala que este tipo de penteado e o próprio diadema sãoatributos essenciais da composição imagética dos reishelenísticos (Picard 1983-1984: 77).

Figs. 1, 1a, 1b. Variações dos retratos de Sífax (anver-sos monetários). Mazard (1955: 18,19 - tipos 1, 3 e 6).(x 1,5)

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Mencionamos acima como a cunhagem dosreis númidas é devedora do imaginário púnico.Este é um fato incontestável, como veremos naseqüência de nossa análise. No entanto, osanversos que acabamos de analisar representamjustamente uma grande ruptura com esseimaginário. Acreditamos que a cunhagememitida por Cartago, ao longo de c. trezentosanos, não comportou nenhum retrato realistaou idealizado de um de seus governantes. Este é,de maneira análoga à questão da realezacartaginesa, um ponto sobre o qual os pesquisa-dores vêm debatendo já há algum tempo, poisuma série de moedas batidas na Península Ibéricapelos Barca (particularmente por Aníbal Barca),que trazem três cabeças masculinas no anverso(tipo imberbe coroado, tipo jovem sem coroa ecom a maça de Héracles sobre o ombro, e tipobarbado e com a maça de Héracles sobre oombro), ainda hoje não teve sua iconografia deanverso estabelecida de maneira absolutamentesegura, de modo a satisfazer aos estudiososcomo um todo. Há quem acredite termos umexemplo do alto grau de helenização deCartago no final do século III a.C., quandoesta permite, pela primeira vez em sua História,que comandantes militares gravem seusretratos nas moedas (Hamílcar apareceria notipo barbado com coroa de louros e maça;Asdrúbal no tipo imberbe com coroa; e Aníbalno tipo jovem com maça e sem coroa). Contra-riamente, apesar de não negar que o “impériobarca” na Espanha possuiu característicastipicamente helenísticas, notadamente dapropaganda política, outros pesquisadorestendem a ver nestes anversos a figura dadivindade patrona de Tiro, Héracles-Melqart, erepresentações de Apolo, igualmente cultuadoem Tiro. Ambas as divindades com cultosrenovadamente fortalecidos durante o chama-do período helenístico (Acquaro 1983-1984).A renovação dos contatos com o Oriente, maismarcadamente com a metrópole de Cartago,foi efetivada pelos Barca que ascendem aopoder em Cartago após a Iª Guerra Púnica.

A História política cartaginesa é ainda malconhecida. No entanto, mesmo G. Picard, umdefensor dos retratos, trabalha com o conceitode que os Barca não criaram um reino helenístico

independente de Cartago na Península Ibérica(1983-1984: 75-76). Ainda assim, este autorsustenta que estes empreenderam uma políticade inserção na sociedade local (casando-se comfilhas da nobreza ibera, por exemplo) com ointuito de tornarem-se “pessoas reais”, o queteriam conseguido. Desse modo, visandofortalecer suas imagens entre os povos sobre osquais sustentavam seu poder militar, e mesmoentre os gregos e romanos, teriam gravado seusretratos seguindo as regras da propagandapolítica helenística (utilizando a iconografia deHéracles). No entanto, Picard não explicaporque apenas um dos retratos, do tipoimberbe, aparece coroado.

A iconografia monetária dos Barca aindaaguarda uma análise definitiva. No entanto,não acreditamos que as imagens que aliaparecem sejam retratos helenísticos. Aníbal aoinvadir a Itália pelo sul (no final do século IIIa.C.), cunha diversas séries monetárias que sãopostas em circulação localmente (na verdadetemos representado nestas séries o esforçomonetário máximo de Aníbal). Estas possuema tradicional iconografia cartaginesa (cabeça deCore, no anverso, e cavalo, nas mais diferentesposições, no reverso) (Jenkins 1987). Dessemodo, a solução sobre a iconografia monetáriabarcida espanhola deve ser procurada naprópria Península Ibérica.12

F. Coarelli e Y. Thébert elaboraram umdetalhado estudo sobre a grande arquiteturafunerária berbere, majoritariamente númida,no qual defendem a tese de que o Norte daÁfrica participou das correntes culturais,comerciais e migratórias do mundo mediterrânicodesde o Neolítico, e que situá-la nessa correntepolimorfa, mas fundamentalmente unitária, éperceber que este território não foi um setoratrasado, incapaz de acompanhar as inovaçõeseconômicas, técnicas e culturais que vinhammoldando o Mediterrâneo há milênios, e cujos

(12) Um renomado numismata espanhol, L. Villaronga,realizou uma análise específica destas moedas e, em suaopinião, elas representam diferentes imagens do Héracles deGades, antiga colônia fenícia localizada no extremo opostode Lixus (Villaronga 1973, apud Picard 1983-1984: 76-77).

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impulsos vinham, freqüentemente do OrientePróximo (Coarelli & Thébert 1988: 770).

Acreditamos que, em termos teóricos eenquanto instrumento de pesquisa, esta tesenão apresenta problemas. No entanto, salienta-mos que com relação a certos aspectos, porexemplo, a organização política da sociedadeberbere, a teoria da longa duração nos parecemais produtiva do que a simples sobreposiçãode um modelo real helenístico a esta sociedade.Os grandes monumentos funerários berberesse enquadram na tese apresentada acima, poispossuem elementos, entre outros – inclusiveautóctones –, mediterrânicos ocidentais (osgrandes montículos do Rharb, por exemplo), ehelenísticos (Medracen). Entretanto, a organi-zação espacial, e sua arquitetura, na Berberia,nos períodos proto-histórico, cartaginês ehelenístico ainda é hoje pouco pesquisada.Sabemos que cidades de pequeno porte comoTamuda, e outras maiores, como Volubilis,aliaram soluções estrangeiras a locais, separan-do o mundo doméstico e privado do público eoficial. Os reinos centralizados do século IIIa.C. possuem diversos aspectos inovadores: apresença do rei nas cidades, denominadas de“capitais” pelas fontes escritas gregas e latinas, ea emissão de numerário próprio são osprincipais. Não obstante, o culto ao rei possuiraízes berberes (os próprios monumentosfunerários proto-históricos, de arquiteturadiversa das tumbas e mausoléus dos séculos IIIe II a.C.), da mesma maneira que a essência dopoder real, ligada inexoravelmente à forçaguerreira do chefe (Kormikiari 2000: 117-188).

Afirmamos anteriormente que as cunha-gens reais e citadinas surgem no vácuo criadopela destruição de Cartago. Neste contexto,apesar de poderem ser consideradas incipientese de circulação local, o Norte da África, queantes praticamente desconhecia o metalcunhado que não fosse cartaginês – e mesmoeste circulou pouco ali –, ingressa em umperíodo de exacerbada atividade monetária(mesmo levando em consideração o quecolocamos acima com respeito às cunhagenscitadinas e seu caráter primordial de afirmaçãoinstitucional, enquanto entidades políticasautônomas, e igualmente tendo em mente que

a troca de produtos persistiu). O fato de os reisberberes não terem cunhado em metal nobre ede terem tido uma cunhagem pequena emquantidade, comparando-se com sociedadeshelenísticas, aliado à tese da longa duração,levou G. Camps a afirmar que paralelamente àmonetarização da sociedade berbere, as trocasentre produtos continuaram a ser um aspectoessencial da vida econômica e social da Berberia.De fato, a medida do trigo ou da cevada, ouentão a cabeça do gado, foram, até recentemen-te, produtos com valor monetário aceitos, nointerior, tão facilmente quanto a moeda. Em1953, G. Camps relata ter presenciado, naregião de Babors, manteiga derretida sendopaga em trigo. Essas trocas eram correntes eexistia um sistema de equivalências estabeleci-do, conforme a época do ano, e que era aceitopor todos. Este pesquisador acredita ser muitoprovável que os impostos solicitados pelo reina Antiguidade fossem pagos em produtos, emtrigo ou em gado. Os recenseamentos anuaisdos cavalos, dos quais Estrabão fala (XVII, 3,19), permitiriam um certo controle dosrecursos dos súditos númidas (Camps 1960:209).

Neste contexto, a cunhagem real faz uso deuma arma propagandística absolutamentedisseminada pelo mundo mediterrânico então.O retrato do rei nas cunhagens foi utilizado,em nossa opinião, como um diferenciador eum meio de afirmação política por parte dosreis berberes, todos eles. Assim, o própriocontexto geral, africano e mediterrânico,influenciou essa solução. Não precisamosdepender da existência de uma cunhagem comretratos reais em Cartago para poder interpre-tar os retratos dos berberes. O historiador daArte, J. J. Politt (1986:11) sustenta que asmudanças políticas que ocorrem durante operíodo de Alexandre III da Macedônia nabacia mediterrânica oriental levam a profundasmudanças culturais (obsessão pela riqueza;mentalidade teatral, mentalidade acadêmica,individualismo e visão cosmopolita). O maisclaro desenvolvimento da visão individualista épercebido na arte do retrato. Escultoreshelenísticos de retratos produzem os maisbelos exemplares de obras nos quais o caráter

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pessoal, o temperamento, a natureza do indiví-duo aparecem. Ao mesmo tempo, as artes visuaistornam-se um dos principais meios através dosquais os governantes incitavam a população arespeitá-los e a aceitá-los. Sua ação política e suasconquistas (tanto pessoais quanto as quebeneficiavam diretamente o povo) eram alipropagadas.

Alexandre é o precursor desse tipo depropaganda individual e será seguido pelosseus sucessores. O próprio Império Romanoherda as tradições helenísticas ligadas à imagemde Alexandre e vários são os imperadores queutilizam os atributos e a construção iconográficade sua propaganda.

Entretanto, apesar de ter sido o protótiporelembrado em momentos mais conturbadosde afirmação política, a imagem de Alexandrenão poderia se manter indefinidamente em ummundo que, após a sua morte, vai se reestruturarpoliticamente com a divisão do impériohelenístico pelos seus generais. Assim, o retratoreal ganha em sofisticação e o individualismoprevalece; surgem as representações dosdiferentes reis (tanto em retratos monetáriosquanto em outros suportes como esculturas) esurge também a criação de monumentoscomemorando o que o rei havia feito ouconstruído. Assim temos cenas de batalhas,cenas de caças, procissões militares ou religio-sas. Nessas imagens as qualidades do rei eramdestacadas: sua coragem, piedade, destreza,entre outras. O mundo helenístico, no quetoca à representação das imagens reais nasmoedas, vai centrar forças na reproduçãoindividualizada do rei (por vezes irreal, pois eraditada por questões propagandísticas). Aimportância política dessa representaçãocentrava-se no fato de que, devido às grandesextensões de alguns dos reinos helenísticos,não era raro que um determinado rei não fossefisicamente conhecido por todo seu povo, oretrato monetário supria essa falta.

O rei berbere não possuiu o poder de ummonarca helenístico, mas acreditamos queutilizou a gravação de seu retrato nas moedas,inclusive o idealizado, à luz dos pontos apre-sentados acima.

Não obstante tudo o que falamos a

respeito do retrato real berbere, o cavaleirogalopando que aparece nos reversos dasmoedas de Sífax (tipos 3 e 4) é, em nossaopinião e em termos propagandísticos, acomposição iconográfica da cunhagem desserei que mais impacto causa, a qual abre oprecedente para as emissões dos próximos reisberberes, seja do masesilo Vermina, seja dosdinastas massilos.

Para interpretá-la faremos uso de umadocumentação material posterior. Uma estelaanepígrafa em alto-relevo, descoberta na Tunísia(Berberia Oriental), nas proximidades da cidadede Chemtou (antiga Smitthus) e datada de c. 50 -46 a.C., mostra um personagem a cavalo, umnúmida, marchando à direita. A importância dacavalaria númida na Antiguidade, entre o períodocartaginês, dos reinos númidas, e romano, foiminuciosamente detalhada por St. Gsell (1927,vol. V: 181-186). O pesquisador, que publicoupela primeira vez esta estela, acredita que esteja-mos frente a uma rara figuração do cavaleironúmida (Bertrandy 1986: 58).

A estela de arenito encontra-se bemconservada, o que facilita sua análise. Ocavaleiro aparece representado de 3/4, possuiabundante cabeleira, disposta em penteadotípico númida (cachos ondulados) (Estrabão(II, 3, 7), Sílio Itálico (Punica III, 284, apudBertrandy 1986: 58, nota 4). O personagemcarrega ainda um diadema que lhe cai na frontee nas orelhas. Sua barba espessa é igualmenteondulada (como o é a barba do retrato do tipo2 de Sífax), veste uma túnica curta, commangas compridas. Sobre esta está jogado ummanto, pregado ao ombro por uma fíbularedonda. O manto cobre o cavalo. A pernadireita do cavaleiro está nua. Ele veste umtamanco com sola trançada, o qual, segundoBertrandy, é um apetrecho não habitualmenteusado por um númida (idem). A mão esquerdamantém as rédeas bem elevadas, ao mesmotempo em que agarra a crina do cavalo. Naopinião do pesquisador, as feições do rosto dopersonagem exprimem segurança e firmeza(Bertrandy 1986: 60). Por fim, à direita destacena, dando uma ilusão de perspectiva, aparecefigurada um palmeira com sete folhas.

Representações de cavaleiros númidas, como

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já mencionado, são raras. Um dos poucosexemplos que possuímos é um medalhão deterracota (Fig. 2) encontrado em Cartago, cujarepresentação ainda não foi definitivamentedefinida (divindade-cavaleiro?). O personagem,portando um escudo e uma longa lança (demaneira análoga a algumas variantes dos reversosde Sífax), cavalga sem sela e segura rédeas presas aum freio. Este documento possui uma dataçãoalta: século VI ou IV a.C. De maneira análoga,uma estela do Museu de Alger tem como tipoiconográfico principal um cavaleiro representadode frente, com rosto redondo e barba pontuda(desta vez a relação pode ser feita com a forma dabarba do tipo 1 de Sífax, mas também, comoveremos adiante, com a de outros reis númidas).Este cavaleiro cavalga sem sela mas também semrédeas e freios. Carrega em sua mão um escudo etrês lanças, aos pés dele aparece uma avestruz(caçador?). Esta estela é datada do século II a.C.(Bertrandy 1986: 60-61).

Ainda uma pequena placa de terracota,pintada, traz a representação de um cavaleiroatingido nas costas por uma flecha. Ele estájogado sobre seu cavalo, que foge a galope (Fig. 3).O cavalo não possui qualquer tipo de arreios ourédeas. Esta peça foi encontrada no sítio deCanosa (antiga Canusium), nas proximidades de

Cannes, Itália. É datada do final do século IIIa.C.. Na opinião de A. Bertrandy, a cabeleiraespessa e ondulada, presa por um diadema, abarba pontuda do cavaleiro e o fato de o cavaloestar sendo montado sem arreios, permitem quequalifiquemos o personagem como um númida.Mas um chefe númida, e não um simplescavaleiro (idem: 64).

Por fim, um último testemunho dos cavalei-

Fig. 3. Cavaleiro númida: estatueta em terracota de cavaleiro barbado ferido(séc. III a.C.). Brett & Fentress 1977 (1996): capa.

Fig. 2. Cartago (necrópole de Douïmès): medalhão emargila cozida representando um cavaleiro com armas ecom um cachorro (séc. VI a.C.). Decret (1977: 217).

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ros africanos é a figuração da cavalaria mourana Coluna de Trajano, datada do século II d.C..Aqui novamente, e séculos depois dos exemplosapresentados, vemos as mesmas características jáassinaladas: cabeleira em cachos ondulados ecavaleiros montando seus cavalos sem os apetre-chos de contenção do animal (as pernas oseguram). Uma diferença marcante entre estequadro e o da estela de Chemtou é o fato deestes cavaleiros mouros estarem todos descalços(Bertrandy 1986: 65).

Os autores gregos e latinos (Tito-LívioXXIX, 34, 5; Apiano, Lib, 71; Estrabão,XLVIII, 3, 7; Sílio Itálico, I, 215-217) assinalaminúmeras vezes a maneira tradicional berberede montar um cavalo: livremente, sem arreios,freios ou rédeas.

Em seu levantamento iconográfico, A.Bertrandy (1986: 67) encontrou algumasimagens de cavaleiros montando animaisselados, e com arreios (à moda romana, com oephippium). No entanto, estas estelas, represen-tando tanto estrangeiros habitando o Norte daÁfrica, como o uso, por parte dos indígenas,do modo romano de cavalgar, são todasdatadas dos séculos I e II d.C..

A. Bertrandy conclui que o uso de sela earreios torna-se comum no Norte da Áfricaapenas durante o Império Romano. A partirdas placas de terracota encontradas na Itália,este autor propôs, então, que somente aochefe númida era outorgado o direito decavalgar um animal com os apetrechos decontenção e direcionamento. No que toca àestela de Chemtou, Bertrandy acredita estar alirepresentada a figura do rei númida Juba I.Apesar de entender que se trata de umaatribuição incerta, pois não há nenhum tipo deinscrição sobre a peça, este autor faz compara-ções com esculturas conhecidas de Juba I(Bertrandy 1986: 70).

Com relação aos reversos de Sífax, osquais, como vimos, apresentam um cavalei-ro galopando, com ou sem arreios, ecarregando uma vara para melhor conduziro animal, ou então, uma longa lança,podemos interpretar essa imagem à luz doque foi exposto acima, e igualmente basean-do-nos no caráter de chefe guerreiro que,

acreditamos, foi um dos pilares de sustenta-ção do rei berbere.

Assim, Sífax anuncia em seus reversos queele era um rei, como a própria legenda afirma(ela está colocada no reverso e não no anverso,de maneira análoga a cunhagens dos reishelenísticos orientais). Mas era um rei guerrei-ro, um cavaleiro.

Esta propaganda, em nosso entender,servia tanto para os chefes menores (e para ospróprios súditos), como para as comunidadeslibifenícias da região costeira de Siga, e aquelasde Cirta.

Neste momento a cunhagem de Sífax é aúnica não cartaginesa da Berberia. Este dadopor si só demonstra que a ascensão dos chefesberberes locais estava se consolidando, aomesmo tempo em que um imaginário própriojá começava a se formar.

As moedas de Vermina (=Verminad), seufilho, também feitas com cuidado, mostram ojovem rei imberbe e diademado (tipo 5), noanverso,13 e um cavalo livre galopando (tipo 6),no reverso. As moedas deste rei masesiloseriam contemporâneas à segunda emissão deSífax (Camps 1960: 189).14 Vermina reina emcondições obscuras e precárias, por poucosanos. St. Gsell propôs que pai e filho haviamse associado no final do reino de Sífax, basea-do no anverso das moedas de Vermina. Orosto imberbe demonstraria juventude. Todosos retratos dos primeiros reis númidas quepossuímos são rostos com barba (Gsell 1927,vol.V: 125).

O tipo iconográfico do cavalo aparece nascunhagens seguintes, dos reis massilos. Tratare-mos todas essas imagens em conjunto, poisacreditamos que possam ser interpretadas à luzde uma mesma contextualização.

(13) J. Mazard identificou três retratos diferentes, mas todossão rostos jovens, imberbes, com cabelos curtos presos porum diadema. É possível visualizar o manto drapeado em seucolo. Este tipo de retrato não aparece na cunhagemrepublicana da época.(14) Este autor propõe que a cunhagem de Vermina tenhasido batida enquanto este comandava os exércitos de Sífax,então prisioneiro dos romanos (Camps 1960:190).

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Massinissa e seus sucessores

A atribuição de numerário próprio aossucessores de Massinissa, os quais conhecemospelas fontes textuais e epigráficas, é baseadaapenas nas legendas abreviadas de reverso.Alguns dos exemplares são classificados porMazard como RRR, isto é, extremamenteraros.

Os tipos iconográficos, em termos deconteúdo, são basicamente os mesmos, tantopara Massinissa quanto para seus sucessores:retrato barbado, laureado ou diademado, ecavalo dando passo, ou galopando livre (tipos7 a 15).

As moedas ora analisadas podem serdivididas em dois grupos, um com cabeçalaureada e legenda MSNSN HMMLKT (tipo7) e outro com cabeça diademada (tipo 10) elaureada (tipo 11) e legendas abreviadas. Asmoedas do primeiro grupo possuem umametrologia, um peso, que as aproxima dosúltimos bronzes púnicos discutidos no iníciodeste artigo. Por outro lado, as peças comcabeça diademada, posteriores, têm pesomenor. Na opinião de J. Alexandropoulos,

Tipo 6. Mazard (1955: 21 - tipo 14). (x 1,5)

Tipo 5. Mazard (1955: 21 - tipo 13). (x 1,5)

Tipo 9. Mazard (1995: 30 - tipo 18). (x 1,5)

Tipo 8. Mazard (1995: 30 - tipo 17). (x 1,5)

Tipo 7. Mazard (1995: 30 - tipo 18). (x 1,5)

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Tipo 12. Mazard (1995: 36 - tipo 42). (x 1,5)

Tipo 10. Mazard (1995: 40 - tipo 57). (x 1,5)Tipo 11. Mazard (1995: 31 - tipo 19). (x 1,5)

Tipo 13. Mazard (1995: 31 - tipo 19). (x 1,5)

Tipo 15. Mazard (1995: 40 - tipo 57). (x 1,5)

Tipo 14. Mazard (1995: 37 - tipo 44). (x 1,5)

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estamos diante de duas emissões distintas. Onumerário com cabeça laureada é o mais antigoe foi cunhado a partir dos bronzes cartaginesasde 100 e 20 g. Já as séries com cabeça diademadasão representadas por duas denominações.Provavelmente seguiam a metrologia das emissõesbarca da Península Ibérica, a qual seguia umpadrão 10-12 g, e compreendia uma unidade euma meia-unidade (Alexandropoulos 1989:538).15

No que concerne aos retratos, o tipolaureado (tipo 7) é atribuído apenas a Massinissa,quando a legenda do reverso é bem específica:MSNSN HMMLKT. De maneira análoga àlegenda de Sífax, a tradução aqui é “Pessoa realde Massinissa”. Já os tipos anepígrafos, e comlegenda bilateral, são normalmente atribuídosaos sucessores imediatos de Massinissa. Estaslegendas bilaterais são sempre abreviações donome de Massinissa ou Micipsa - MN (porvezes a legenda MN aparece sozinha nasmoedas, inclusive na do grupo 2, da cabeçadiademada. Então, a atribuição é feita apenaspara Massinissa); do termo pessoa real - HT;dos sucessores Gulussa ou Gauda (Gulussan eGaudan em púnico)- GN e Aderbal - AL.Devido ao mau estado de conservação daspeças, J. Mazard conseguiu ler apenas estesnomes. É possível que os outros sucessorestenham numerário próprio entre as séries quepossuímos. Em termos de variação de cunho, aquantidade é muito grande, de modo que,apesar de ainda termos que considerar essacunhagem massila dos primeiros tempos comoincipiente, um esforço grande em emitirnumerário próprio foi mobilizado. Por fim, alegenda H (he neo-púnico), sozinha, é utilizadacomo única base para a atribuição de numerá-rio específico a Jugurta e a Hiêmpsal.

Em um primeiro momento, a primeira efígiedestas séries (tipo 7), que aparece laureada e cujaemissão é atribuída apenas a Massinissa, era tidacomo o retrato de Massinissa, o qual foi transfor-mado em um retrato padrão, tradicional. Teriasido usado por seus sucessores de maneiraanáloga às primeiras emissões dos diádocoshelenísticos, que bateram suas primeiras moedasutilizando o retrato de Alexandre, o grande(Mazard 1957: 157).

No entanto, esta interpretação foimodificada a partir de análises realizadas nosconteúdos de alguns achados monetárioscontendo moedas númidas dos tipos oraestudados. Assim, M. Troussel (1948, apudCamps 1960: 44), relatando uma notícia dosarredores de Constantina, em Tiddis,16

verifica a existência de mais de 25 retratoscom feições diferentes, e G. Thomas (1949,apud Mazard 1957: 157 nota 2), tambémanalisando um achado monetário deConstantina (com mais de 2 mil peçasnúmidas – IGCH 2304), identifica mais dedez retratos em seu lote. Em suma, apesar deo retrato laureado e diademado apresentaruma composição geral homogênea (cabeloscurtos e ondulados, barba pontuda) pode-mos identificar, mais uma vez, uma analogiacom as peças de Sífax, isto é, uma possívelpreocupação com a representação realista.

A questão dos atributos destes retratos éoutro ponto que merece uma breve argumenta-ção. A primeira e mais imediata explicação parao diadema, originariamente símbolo real persa,é, enquanto marca do poder real, imagem quevemos no tipo divinizado de Alexandre com oscabelos presos pelo diadema, usado na cunha-gem de Demétrio Poliorcetes (Jenkins 1972:215, n. 518). Já na cunhagem dos Barca,

(15) Massinissa emite apenas em bronze e chumbo, por vezescoberto com cobre. As peças em chumbo são todasposteriores aos bronzes legendados. Apesar do péssimoestado de conservação parecem portar sempre a legenda MN(Massinissa). A raridade de ligação de cunho (que avalia aquantidade de cunhos utilizados em uma emissão, e,conseqüentemente, o número de peças produzidas) leva àcrença de que a emissão desse numerário tenha sidoconsiderável (Gerin 1989: 510).

(16) Tiddis é uma localidade nos arredores de Constantina(antiga Cirta), na qual foram encontrados importantesdocumentos berberes, notadamente vasos cerâmicos emoedas de Massinissa e seus sucessores. A área ao redordesta antiga aldeia massila (onde coabitavam, provavelmen-te, vários grupos númidas além dos massilos) é rica embazinas (grandes estruturas funerárias circulares proto-históricas, tidas como sepulturas de chefes berberes) (Camps1960: 43, 144).

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mencionada acima, a figura barbada carrega noscabelos uma coroa de louros, símbolo da vitória.Como complemento destes atributos reais,podemos mencionar os cetros que aparecemtanto no anverso como no reverso destas moedasnúmidas. Acreditamos que a escolha de denomi-nações estrangeiras, como as que aparecem naslegendas, é entendida por nós enquanto manipu-lação e apropriação de um ideário que, mesmonão condizente com a realidade da realezaberbere, serviu como meio de auto-afirmaçãotanto frente os chefes menores quanto frente osestrangeiros. O mesmo tipo de raciocínioseguimos com relação a esses símbolosiconográficos.

O tipo do cavalo, no reverso destasmoedas, no entanto, é o que mais nos interes-sa. Acreditamos que não apenas os númidascopiaram o tipo monetário cartaginês maistradicional, como igualmente se apoderaramdo seu imaginário, cuidadosamente criado porCartago ao longo de sua História, comopretendemos mostrar a seguir. Desse modo,abrimos um parêntese para apresentar umaanálise do cavalo nas moedas cartaginesas. Emseguida, retomamos os númidas.

Um simples folhear de qualquer catálogode moedas cartaginesas é suficiente paraverificarmos que o motivo iconográfico docavalo, juntamente com a palmeira e a cabeçafeminina (na maioria das vezes lida como Core-Tanit), é a imagem mais utilizada na cunhagempúnica ao longo de toda sua história monetá-ria, isto é, do final do século V a.C., quandoinicia sua cunhagem, até a sua destruição final,em 146 a.C.. Ao contrário da palmeira e dadeusa, no entanto, o cavalo aparece semprecomo tipo principal do reverso.

Sinteticamente expondo, o cavalo é repre-sentado de variadas formas: por inteiro, ondepode estar parado, galopando, empinando, coma cabeça voltada para trás, e/ou dando umpasso com uma das patas dianteiras; ou apenas acabeça/prótomo do animal, neste caso, namaioria das vezes, dentro da mesma concepçãoestética que rege a representação das cabeçashumanas (Figs. 4, 5, 6).

De uma maneira geral, e em conseqüênciado problema metodológico de se analisar uma

documentação com origem oriental unicamen-te a partir de dados greco-latinos, a interpreta-ção mais comum desta imagem utiliza, comobase de estudo, o relato lendário da escolha doterreno para a fundação de Cartago, que nosfoi apresentada pela historiografia greco-latina.Justino (XVIII, V, 15-16) é a fonte textual queregistra o relato mais completo: “Ao se cavar,então, nos fala ele, encontramos uma cabeçade boi; foi um presságio de terra fértil, mas deuma cidade trabalhadora e sem descanso deescravos. Assim, eles levam a cidade para umoutro local. Lá, fazemos também uma desco-berta, a de uma cabeça de cavalo, significandoum povo guerreiro e poderoso: sobre esseauspício a cidade foi fundada” (tradução nossado francês).

A partir da idéia de poder e beligerânciatrazida pela imagem do cavalo, que o textorevela, acreditou-se, então, que este animalhavia sido escolhido como símbolo da cidade epor isso teria sido tão empregado na iconografiamonetária (Jenkins & Lewis 1963: 12).

Apesar de esta interpretação ser defendidapor pesquisadores tão conceituados quantoKenneth Jenkins, ela vai contra nossa propostade análise geral da civilização púnica (Kormikiari2000: 326). Mais uma vez não se trata de,forçosamente, passarmos a dar valor apenas aodado oriental, mas sim, de procurar nas fontes,não esquecendo as semíticas, pistas quepossam apontar novos caminhos ou confirmaros já traçados e aceitos. O numismata JeanBayet, em seu artigo “L’Omen du cheval”(1941), procura demonstrar o caminhoinverso. Isto é, os relatos greco-latinos teriamse inspirado na imagística monetária púnicapara incluir na descrição da lenda de fundaçãoa cabeça de cavalo significando força guerreira.

Seu estudo é feito a partir da análiseiconográfica das moedas púnicas que trazemcomo figura de reverso o cavalo, e tambémcom base em um trecho da Eneida de Virgílio(441-445) no qual uma determinada frase –caput acris equi – é interpretada por ele como“cavalo prestes a morder” (Bayet 1941: 176).Bayet faz menção especial aos desenhos dascabeças de cavalo, que aparecem especialmenteem algumas das emissões dos tetradracmas, e

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Fig. 6. Oficina de Cartago (séc. III a.C.), reverso,didracma, prata. Manfredi (1995: prancha 7).

Fig. 5. Oficina da Sicília (350-340 a.C.), reverso,tetradracma, prata. Manfredi (1995: prancha 17).

Fig. 4. Oficina da Sicília (320-306 a.C.), reverso,tetradracma, prata. Manfredi (1995: prancha 21).

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que mostram o animal em “movimento”, prestesa morder (Fig. 4). Esta mesma ação é igualmentedetectada desde os primeiros bronzes púnicosanepígrafos, datados da metade do século IVa.C., que têm como figura de reverso cavaloslivres, ou seja, sem arreios, empinando ougalopando. Por outro lado, as moedas cunhadasnas oficinas de Cartago trazem sempre o cavalopor inteiro (jamais apenas a cabeça) e quasenunca em movimento. No entanto, quandonovamente o fazem vemos o cavalo em posiçãoameaçadora, como nas peças em que ele, porinteiro, aparece com a cabeça voltada para trás,muitas vezes dando um passo, como se estivessepronto a atacar (Fig. 6).

Se analisarmos as oficinas de cunhagemdas peças acima mencionadas, veremos que amaioria foi emitida na Sicília, inseridas nocontexto de disputa territorial e destinadas àpaga dos mercenários dos exércitos cartagineses.Seria valendo-se delas – primeiras moedasbatidas por Cartago – que a figura do cavalo,como tipo monetário púnico, adquire seusignificado.

Particularmente os retratos dos cavalos emalgumas destas moedas, sempre em 3/4 de perfile em movimento – arreganhando os dentes –,só tiveram sua execução possível a partir datransformação nas técnicas da escultura queocorre no período helenístico; período dedatação destas peças sículo-púnicas em especial.

Ao incluir em nossa análise as legendasque estes tetradracmas trazem, significando oslocais de cunhagem (“campo/exército”) equem as emite (“as pessoas do acampamentomilitar/os eleitos de Melqart/os controladoresfinanceiros”) (Mildenberg 1957), fica definidoo caráter militar e o contexto específico deemissão destas peças. Ao aliarmos o contextode emissão com a leitura dos textos menciona-dos acima e com a análise das própriasimagens do cavalo, a idéia de uma intenção,por parte de Cartago, de transmitir simbolica-mente seu poder guerreiro, e portanto, suaalta capacidade de sair vitoriosa nos embates,dificilmente pode ser negada. Em algumasdestas representações, os reversos trazem comotipo secundário pequenas Nikés que coroamos cavalos.

Ao lado da palmeira, o cavalo sempre foiconsiderado como o tipo monetário represen-tativo de Cartago, nas moedas da capitalafricana, em contraponto à figura da deusafeminina (Core-Tanit), desenhada com osmesmos traços das moedas gregas de Siracusa.No entanto, baseados apenas nos dados acima,será possível ir além e considerar o cavalocomo verdadeiro símbolo de Cartago, demaneira análoga à coruja de Atenas, porexemplo?

De maneira geral, esse ponto é assumidopela maioria dos numismatas que tratam doassunto. O interessante da posição de Bayet é aargumentação que ele apresenta: o cavalo foiescolhido como símbolo de Cartago, parapassar a imagem de cidade guerreira e vitoriosanos seus contatos com os gregos, e foi umaescolha tão bem sucedida, como pode ser vistopelas imagens da iconografia monetária, que alenda em torno da fundação de Cartago surgiutomando-se por base essas imagens, e não ocontrário, como normalmente se assume.

Assim, Timeu, que morre em Siracusa emc. 260 a.C., e é a fonte de Justino, teria utiliza-do o relato local para escrever sua obra.Retomando, a história bélica da cidade africa-na, o imaginário dos cavalos furiosos nosreversos (tanto apenas a cabeça como tambémpor inteiro), teria levado o mundo greco-romano à concepção greco-latina do cavalocomo símbolo de fundação de Cartago,presságio do caráter conquistador da colôniafenícia.

Entendendo-se, pois, o cavalo como tipoescolhido para passar uma mensagem específi-ca, de força e beligerância da cidade, algumashipóteses para as origens do tipo foramlevantadas por Bayet (1941: 178).

Mantendo-se na análise do Oriente, Bayetapresenta a possibilidade de o cavalo ter sidoadotado com base no conceito de força,ferocidade e rapidez que este animal possuientre os povos orientais (semitas, assírios efilisteus). Através da análise do texto bíblico épossível recuperar a importância do cavalopara as populações semíticas. Eles teriam umcaráter de força, rapidez e ardor nos combates(Cheyne & Sutherland, apud Bayet 1941: 183).

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Assim, temos o cavalo de guerra dos assírios edos filisteus (Livro de Jó, XXXIX, 18, 26 = comos dentes arreganhados e as narinas abertas).

A teoria que liga o cavalo à imagem deforça guerreira, em nossa opinião, é a que maisse adequa às questões que foram aqui apresen-tadas. Este animal, que não aparece comumentena iconografia geral púnica, deve ser vistocomo uma imagem simbólica da força deCartago, e até podemos aventar a hipótese deele ter sido escolhido para representar a cidadeafricana perante aos outros povos com osquais manteve contato, na maioria das vezes,belicosos. Assim, podemos aventar a hipótesede ter ocorrido uma revitalização de umaspecto cultural específico oriental que, emtermos evolutivos, alcançou a posição desímbolo de um estado perante aos povosgreco-romanos.

Desta maneira, devemos analisar o tipo docavalo dentro do contexto do período clássico,quando a iconografia monetária foi usada naafirmação política da autonomia da cidade-estado. No período helenístico, época dasemissões reais berberes, haverá uma transfor-mação na escolha dos tipos monetários queirão passar, gradativamente, não mais a repre-sentar as póleis e sim os indivíduos governantesdos grandes estados que serão formados.Contudo, a força dessa transformação já se fazsentir anteriormente em Cartago, quando estesreproduzem o tipo monetário com a figura deHéracles que aparece pela primeira vez nacunhagem de Alexandre, o Grande, ou aoimprimir as imagens do prótomo de cavalo em3/4. Ou seja, a sagacidade cartaginesa e o seupleno entendimento das possibilidades de usopropagandístico da cunhagem não podem sernegados. Eles vão cunhar utilizando imagensgregas (Core e Héracles) aliadas a outras,orientais e africanas: o próprio cavalo comosímbolo cartaginês máximo, mas também apalmeira e os pequenos símbolos religiosos,entre outros. Além disso, temos aliadas a essasimagens legendas em púnico que, mesmo nãointeligíveis para a população grega da Sicília,representam uma marca cultural muito forte.

Como interpretar as imagens do cavalolivre, galopando, dando passo e ou com arreios

das cunhagens númidas de Massinissa e deseus sucessores (tipos 9, 12, 13, 14, 15)?Tendo em mente o que discutimos comrelação à figura do cavaleiro númida, cujoimaginário aparece tão fortemente construídona estela de Chemtou e nas placas de terracotaitalianas, acreditamos que um contextoalimentou o outro. Isto é, Cartago foi umpoder militar que fez valer essa reputação emsua propaganda política, essencialmenteporque sabemos que a capital africana passa aproduzir um numerário próprio muito tardeem sua História, pressionada pela necessidadede inserção econômica e política na Sicília.

Este contexto semítico-cartaginês, por seulado, alimentou e foi alimentado pela própriaforça guerreira que está implícita nas chefiasberberes (Kormikiari 2000: 117-188). Cartagodependia dos chefes berberes menores emesmo dos grandes agellids (reis) centralizadospara a manutenção de seus contigentes e,principalmente, para formar a temida cavalarianúmida. Assim, acreditamos ser exeqüívelsupor que este imaginário, que como bemfundamentou J. Bayet, foi perpetuado históricae culturalmente em ambiente grego através dorelato mítico da fundação de Cartago, esteveigualmente presente no ambiente norteafricano berbere. Desse modo, ganha sentido areprodução, na cunhagem númida, do cavalocartaginês. O cavalo dando passo (tipo 9) podeser considerado quase como uma cópia diretado tipo de reverso dos últimos bronzespúnicos. A metrologia e a tipologia demonstra-riam, a não ser pela figura de anverso e pelalegenda do reverso, uma preocupação emtornar assimilável a cunhagem.

Massinissa possui ainda em sua cunhagemprópria (emissão cabeça laureada) um tipoiconográfico novo entre os númidas: o elefantecaminhando (tipo 8). Este tipo aparece nacunhagem cartaginesa, justamente nas emissõesdos Barca, com as imagens masculinas laurea-das, coroadas e imberbes. Os tipos cartaginesesde anverso: cabeça masculina barbada, maça ecoroa de louros; e cabeça masculina imberbetêm como reverso um elefante africanocaminhando, com seu cornaca. Este é, semdúvida alguma, o celebrado elefante de guerra

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de Aníbal, animal que junto ao leão, representao próprio Norte da África. No entanto, o tipodo elefante aparece apenas na emissão laureada(tipo 7), atribuída a Massinissa. Esta é conside-rada mais antiga, do final da IIª Guerra Púnica.Isto é, o contexto político da época, a posiçãopolítica contrária a Cartago que Massinissaadota, seu auxílio em Zama, a derrota deAníbal, podem servir como pano de fundopara a escolha do elefante na primeira cunha-gem de Massinissa.17

Com relação à circulação desse primeironumerário númida, a partir de achadosmonetários, notadamente da área de Cirta edo vale do Medjerda (IGCH 2304 e 2305 –achado de 1000 peças de bronze, cartaginesase númidas, das quais apenas uma é de chum-bo, nas proximidades de Teboursouk, BerberiaOriental) percebemos a grande quantidade demoedas númidas com o cavalo galopando queforam emitidas. Ainda no Vale do Medjerda,G. Camps assinala peças encontradas fortuita-mente e em escavações na Tunísia (Gabès,Bulla Regia, Aïn el-Hout), no resto da Argélia(Tipasa, Cherchel, Siga), e até no Marrocos(Banasa, Tamuda). Mas nesse último caso são,mais constantemente, exemplares isolados ouem pequenos grupos. Já ao redor de Constantinae para o norte da cidade, até Philippeville,essas peças abundam: e seu estado deteriora-do demonstra que estiveram durante umlongo tempo em circulação (Camps 1960:207). O Cel. Baradez encontrou peças dechumbo em contexto arqueológico do séculoI d.C., nas tumbas de Tipasa, cidade entre Iole Icosium, na costa mediterrânica da BerberiaCentral (Baradez 1957: 226, apud Camps1960: 206).

Após uma série de trabalhos arqueológi-cos realizados no sítio da Cartago romana em1896, A.-L. Delattre encontrou c. 300moedas, 2/3 destas eram ou púnicas ou

númidas, estas últimas, menos numerosas(Fischer 1978: 38). Todas possuíam módulosgrandes (c. 27 mm). Trata-se dos grandesbronzes púnicos e de Massinissa. O arqueólo-go acreditava que estas moedas se encontra-vam em contexto funerário por terem ganhosignificado religioso após terem saído decirculação. Um outro pesquisador propôs ocontrário. As moedas anteriores ao Impériohaviam permanecido em circulação, paratransações diárias de pequeno porte, emrazão de terem mantido um valor fiduciário(Cagnat 1909: 202, apud idem). Por fim, emLambèse, campo militar edificado durante oprincipado de Adriano, no século II d.C.,para abrigar a IIIª Legião Augusta, ao lado dediversas moedas imperiais romanas foramencontradas, em escavações arqueológicas, 11peças cartaginesas e 24 númidas (Fischer1978: 39). O arqueólogo considera que todasas moedas pertenciam aos legionários ou apessoas ligadas à Legião, e reafirma suaopinião anterior, que estas moedas cartaginesase númidas eram utilizadas ainda nos séculos IIe III d.C. para pequenas transações comerciais.

Por outro lado, em Cirta peças estrangeirastambém circulavam a partir do reino de Micipsa,isto é, 148 a.C.. Micipsa foi o primeiro sucessorde Massinissa. Ali foram encontradas, em grandequantidade, peças de Rodes, Cartago, Cirene,Massalia e Roma: segundo Estrabão – XVII, 3,13 – Micipsa incentivou o assentamento deestrangeiros em Cirta (apud Burnett 1987: 177).O tesouro de Constantina, que contém 237peças de prata enterradas por volta de 79 a.C.,só possuía moedas estrangeiras: Atenas, Cartago,Massalia, Iberia e sobretudo Roma (Camps1960: 207) mas, em razão de sua datação, refletea continuidade da presença estrangeira nointerior da Numídia

G. Camps já havia assinalado a descober-ta de dois achados monetários encontradosnos Balcãs, um em Kula (Bulgária) e o outroem Mazin (Croácia) (Camps 1960: 208-209).Este último não continha menos de 328moedas númidas. É nesta região da Ilíria quefoi encontrado o conjunto mais importantede peças númidas. As moedas de Ptolomeu XSoter, associadas às númidas no achado,

(17) Na opinião dos pesquisadores do santuário de El-Hofra, em Cirta (Constantina), que analisaram a iconografiadas estelas púnicas deste, o elefante de Massinissa estarialigado aos ritos do símbolo solar, ao mesmo tempo em queestaria consagrado à Eternidade (Berthier & Charlier 1952:198, apud Voisin 1983: 32).

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permitem que o depósito seja datado do ano80 a.C.. Uma outra moeda númida foidescoberta na Armórica, perto do estuáriode Léguer.

É justamente da França que vem o maiornúmero de achados monetários númidas.Foram elencados onze achados monetáriosnúmidas de Massinissa e seus sucessores(Fischer 1978: 108-129). A autora acreditaque estas moedas estejam relacionadas àpenúria monetária da Gália neste período,que dura das guerras gálicas até o reino deAugusto. Então, as tropas de mercenários deMassinissa e dos reis berberes teriam movimen-tado a economia com seus soldos, e insufladoas populações locais a utilizarem este numerá-rio estrangeiro (idem: 142-149).

Desse modo, a nosso ver, o quadro quesurge é um bastante concreto. Massinissasuplanta Sífax e colabora para sua expulsãode Cirta. O reino massilo surge tendo comocentro justamente esta região. Trata-se deuma área berbere tradicional, no interior daatual Argélia, mas que recebeu, desde aépoca cartaginesa, um grande inf luxo deestrangeiros que ali vinham habitar. Asaldeias indígenas, nos sopés das montanhas,entre estas dos Aurès, os vales dos rios locais,a própria bacia do Hodna e de Constantinaforam densamente habitados para ospadrões da Antiguidade. Massinissa e seussucessores tiveram que sustentar seu podertanto entre os berberes, e neste sentido oschefes menores eram os grandes mediadoresdas relações, mas também entre os estrangei-ros que já começavam a chegar. Igualmentenão podemos esquecer os próprioscartagineses, isto é, os libifenícios. Nestecontexto, tanto a iconografia quanto oesforço de produção monetária dos primei-ros reis númidas ganham coerência. Inicial-mente as moedas de Massinissa são devedo-ras do sistema ponderal cartaginês e igual-mente de sua iconografia. Nesta iconografiaforam introduzidas inovações, adequaçõesnecessárias em razão da estrutura social daqual este numerário era produto e na qualele devia atuar. Estamos falando particular-mente dos retratos e das variações nas

feições, em nosso entender uma busca daautenticidade.

Sífax inicia o processo. Mais significativa-mente, ainda que sua cunhagem tenha sidoincipiente, e tendo ou não se associado a seufilho, Vermina, Sífax é o único soberanoberbere que foi capaz de emitir numeráriopróprio enquanto Cartago ainda era uma forçaatuante. Os pormenores deste contexto nosescapam, mas acreditamos que a representaçãodo cavaleiro númida, senão do próprio chefedos cavaleiros númidas, no caso o próprioSífax, demonstra sobre quais bases esteveassentado esse poder. A iconografia de Verminaé voltada para o imaginário propriamentecartaginês, apesar de não podermos negar queo cavalo, enquanto símbolo de rapidez e força,adequava-se perfeitamente ao ideário daschefias berberes. É justamente este imaginárioque é adotado por Massinissa e seus sucesso-res, o cavalo galopando, parado, dando passo.A escolha dessa iconografia buscava, natural-mente, uma aceitação. A escolha de tiposfamiliares, então, era necessária. O vasto raiode penetração da cunhagem de Massinissa,nesse sentido, como vimos pelas notícias dacirculação monetária, demonstra que estaspeças, junto com as cartaginesas, que ademaistraziam os mesmos tipos de reverso (cavalogalopando, cavalo dando passo), foram aceitaspelas comunidades as mais diferentes (osachados vêm de sítios berberes como Tiddis eromanos como Lambèse, e fenício-cartaginesescomo Gightis). Seu caráter cotidiano e localiza-do também aparece nos metais empregados,bronze e chumbo. Seria este um sinal dapobreza dos reinos berberes ou o metal maisprecioso saiu de circulação para ser entesouradocomo propõe G. Camps (1960: 210)?

As imagens mais fortes desse imagináriode poder militar (o cavalo virando paraatacar) não aparecem nas moedas númidas.No entanto, entendemos que este é umaspecto natural do processo, uma vez que aspeças mencionadas (os mais belos exemplaresaparecem nos tetradracmas cartaginesescunhados na Sicília no século IV a.C.) fazemparte do momento inicial de transformaçãoda imagem em mensagem. Uma vez

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conseguida a associação, o cavalo por si só jácomportava o significado completo.

Jugurta (?)/Hiêmpsal II (?)/Hiarbas (?)

A atribuição de um numerário a Jugurta eHiêmpsal II, entre os númidas, e Hiarbas, osuposto usurpador getulo, é hipotética.

No caso de Jugurta, segundo J. Mazard,baseia-se na tradição. O próprio autor duvidavadessa atribuição. Assim, L. Müller acreditava queo único tipo conhecido e atribuído por ele aJugurta (tipos 16 e 17) possuía uma iconografia eum estilo (na textura da fabricação) tipicamenteafricanos (1861: 34). Na verdade, Müller estavaapenas seguindo um numismata anterior,Duchalais, o qual pretendia ligar esta série deprata a um denário cunhado em honra a Sila(Mazard 1955: 44). Mais recentemente, A.Burnett invalidou categoricamente a atribuiçãode uma cunhagem em prata a Jugurta, que era aúnica que conhecíamos (Burnett 1987: 176). Estenumismata argumenta que arqueologicamentenão foram recuperados traços numismáticos daGuerra de Jugurta. Além disso, de acordo comSalústio (Jugurthinum, XXIX, 6: LXII, 5), Jugurtaefetuou pagamentos em barras de prata. Como já

mencionamos, Salústio relata também(Jugurthinum XXVII, 5; XXXVI, 1) que, em 111 e110 a.C., os romanos mandaram dinheiro,stipendium, com seus exércitos para a África.

Assim, a informação negativa (falta deachados arqueológicos) impede que possamosatribuir efetivamente uma cunhagem a Jugurta.As séries que Mazard elenca trazem uma letrapúnica (A) e o elefante caminhando, semcornaca, no reverso (tipo 17). Estes seriam osúnicos elementos “africanos” desta peça. Acabeça masculina do anverso (tipo 16) diferetotalmente dos retratos númidas que acabamosde analisar. Os númidas são descritos pelasfontes com cabelos ondulados, e, aparente-mente, a barba pontuda tornou-se uma marcados primeiros reis númidas. A iconografia nãoparece, portanto, incentivar uma atribuição aJugurta. A não ser pelo único elemento quepoderia ser ligado à propaganda africana, oelefante, o qual poderia significar uma tentati-va, por parte de Jugurta, de associar-se àimagem de Massinissa, mais precisamente, aoculto real. Por outro lado, a opção em nãoutilizar o tradicional tipo do cavalo seriafacilmente compreensível, uma vez que Jugurtaguerreou, igualmente, contra seus primos.

A atribuição da cunhagem a Hiêmpsal IIbaseia-se na legenda H HT de reverso (Mazard1957: 155). Partimos do pressuposto deestarmos, de fato, diante da cunhagem deHiêmpsal II, númida que ascende ao poderenquanto sucessor de seu pai, Gauda (Hiêmpsalé tido como “rei aliado e amigo” do povoromano – Mazard 1955: 45), após 105 a.C..Gauda, por sua vez, havia sido colocado noposto pelos romanos, por obra de Mário, a nosfiarmos nas fontes, após a Guerra de Jugurta.Desconhecemos uma cunhagem de Gauda, demaneira análoga a outros reis númidas.

No entanto, seguindo o método de divisãodo poder entre vários irmãos herdeiros, o queparece ter acontecido em certos momentosmesmo sendo uma deturpação da sucessãoagnatícia berbere, na qual o membro maisvelho da família ascendia ao poder, Gaudadivide o reino da Numídia (já territorialmentediminuído em razão da anexação do rei mouroBoco I), supostamente entre seus dois filhos,

Tipo 16. Mazard (1955: 45 - tipo 73). (x 1,5)

Tipo 17. Mazard (1955: 45 - tipo 73). (x 1,5)

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Hiêmpsal II e Masteabar. Este último reinouna parte ocidental dessa nova Numídia.

Desconhecemos séries monetárias quepossam ser atribuídas a Masteabar. Por outrolado, Hiêmpsal II supostamente cunhou emprata, ouro e bronze, ou seja, no conjuntocompleto de denominações. No entanto, omesmo argumento utilizado por Burnett paranegar uma cunhagem em prata a Jugurta seaplica igualmente para Hiêmpsal. Entretanto, alegenda das peças de prata e bronze, H HT,pode ser traduzida como “Pessoa real deHiêmpsal”. As duas séries em ouro foramclassificadas por J. Mazard para Hiêmpsal apartir de ligações tipológicas e de estilo subjetivas.

Acreditamos, não obstante, poder inter-pretar as moedas de Hiêmpsal II à luz dacontextualização já realizada acerca da Históriada sucessão númida e dos dados que umaestela dedicada a Hiêmpsal, descoberta emRodes, oferece. Hiêmpsal fica com a parte maisrica do reino, a parte oriental. O vale doMedjerda e a região de Cirta. Esta área eraexcelente produtora de grãos. Por outro lado,uma dedicatória a Hiêmpsal II, encontrada emRodes, é um documento único que atesta pelaprimeira vez a presença, mesmo que apenascomercial, desse rei númida em terras gregas(Kontorini 1975: 96-97). Isto posto, acredita-mos que os tipos 18 e 19, constituídos pordivindades no anverso (Ceres? Triptolemos?Ou seus correspondentes númidas?), ornadascom coroas de grãos, e o cavalo com coroa delouros no reverso, façam referência explícita àriqueza das terras sob controle de Hiêmpsal.18

Não obstante, a falta de uma datação maisprecisa para as séries torna nossa segundaproposta conjectural. Sabemos que HiêmpsalII foi deposto pelo getulo Hiarbas (c. 108 a.C.)e depois retornou ao poder com a ajuda dosromanos e do rei mouro Boco I. Assim, ostipos 20 e 21, com a efígie da Vitória noanverso e o cavalo livre no reverso, pode ter

um caráter comemorativo, de retorno ao reino edeposição do usurpador. De maneira análoga, acoroa de louros comemoraria esta mesmavitória. Temos, então, a inclusão de tiposiconográficos claramente estrangeiros. Partindopara uma explicação inerente à sociedadeberbere, a vitória sobre Hiarbas deve ter movi-mentado clãs e famílias, e essa vitória seria, então,não um símbolo do poder individual do rei, masdo grupo como um todo.

Os reversos de todas essas séries é otradicional cavalo púnico e, desde Massinissa,

Tipo 21. Mazard (1955: 46 - tipo 77). (x 1,5)

Tipo 18. Mazard (1955: 47 - tipo 78). (x 1,5)

Tipo 19. Mazard (1955: 47 - tipo 78). (x 1,5)

Tipo 20. Mazard (1955: 46 - tipo 77). (x 1,5)

(18) César vai bater denários na África, em 46 a.C., nosquais ele manda colocar no anverso a figura de Ceres,simbolizando a carga anual de trigo que ele havia conseguidogarantir para Roma (Perez 1989: 96).

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númida. Ao invés de estar pregando seucaráter guerreiro, o cavalo é um retornoimagético à concepção da família massila.As moedas com o cavalo galopando são asmais difundidas em termos de circulaçãomonetária. Assim, enquanto Jugurta pode terquerido se ligar ao poder real através somentede Massinissa, Hiêmpsal teria querido seassociar à família agnatícia como um todo.

Hiarbas, esse usurpador desconhecido(getulo? chefe menor de alguma facçãonúmida, mesmo massila?) possui duas emis-sões que lhe foram atribuídas por Mazard(tipos 22 e 23). J. Mazard considerava Hiarbaso primeiro rei dos massilos do ocidente(Mazard 1955: 53). As legendas IL e TWS,TVZ ou TWN, e TN foram lidas como nomesde cidades da Berberia central (Iol e Tuniza).A leitura de Iol (IL) é hipotética e efetivamen-te não faria sentido sendo Hiarbas um getulovindo da região meridional dos Aurés, isto é,da Berberia Oriental, e estando Iol localizadana costa central argelina. A área de Iol, nestemomento, estava sob o poder do rei mouroBoco I, o qual havia recebido as terrasnúmidas até o rio Ampsaga, localizado aleste de Iol. Já a outra legenda, com maisvariações e portanto mais freqüente, nãoapresentaria este tipo de problema porque aárea de Tuniza (atual La Calle) está nafronteira entre a Africa vetus, antiga região

cartaginesa, e o reino da Numídia Orientaltomado por Hiarbas de Hiêmpsal II, poralguns anos.

J. Mazard, seguindo L. Müller, acreditaque a imagem masculina, com longos cabelosem cachos regulares seja o retrato de Hiarbas(tipo 22). No reverso, por vezes, temosnovamente o cavalo dando passo, mas umtipo novo na iconografia monetária realberbere aparece: a personificação da Áfricaatravés da imagem de uma cabeça femininavestida com a pele de elefante (tipo 23).19 Em71 a.C., Pompeu manda bater, na oficina deRoma, áureos com a personificação da Áfricano anverso (RRC 402). Estas séries forambatidas para comemorar seu triunfo. Aescolha de um tipo “pompeiano”, na verdade,de um símbolo do território conquistadopelos romanos, pode ser interpretada en-quanto afirmação política ou, justamente ocontrário, enquanto concessão ao podermaior romano?

O contexto de emissão dos supostosnumerários de Jugurta, Hiêmpsal II eHiarbas é o de embates com o poder roma-no (Guerra de Jugurta) e o da transferênciadas lutas internas romanas para solo estran-geiro, africano. A sociedade norte-africana,como um todo, as populações das cidades,das aldeias, os grupos indígenas, seus chefesmenores e os reis berberes foram todosobrigados a se posicionarem diante dosacontecimentos. As cunhagens destes reisberberes, aparentemente, não deixaramrastro no registro arqueológico. Duzentosanos mais tarde é possível encontrar aindamoedas cartaginesas e dos primeirosnúmidas em localidades as mais variadas. Noentanto, a rica cunhagem de Hiêmpsal, porexemplo, parece ter ficado presa a seuperíodo específico.

Este momento também é marcado peloaumento das emissões citadinas locais. O usoda moeda no Norte da África torna-se

(19) A pele de elefante (exuviae elephantis) e o leão sãoconsiderados atributos da dea Africa sob o Império por M.Le Glay (1964, apud Voisin 1983: 34).

Tipo 22. Mazard (1955:54 - tipo 94). (x 1,5)

Tipo 23. Mazard (1955:54 - tipo 94). (x 1,5)

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restrito em certas áreas. Os romanos aindanão estão batendo moedas em solo africano econtinuavam despachando dinheiro direto deRoma para sustentar os diferentes partidosem guerra (Plutarco, Pompeu, II, apud Burnett1987: 176).

Surpreende-nos apenas a falta de vestígios, noNorte da África, da Guerra de Jugurta.20 Se esteefetivamente possuía em seu exército mercenários,ou como acreditamos, paralelamente ao menos,dependia da coesão dos chefes menores e de suaadesão tanto ao rei quanto à causa, a necessidadede pagar os mercenários e de prestigiar os chefesindígenas teria sido feita apenas com metal embarras como conta Salústio? Nos parece incoeren-te a opção pelo não uso do metal cunhadoenquanto meio propagandístico. No entanto, afalta de dados é muito grande e a conjecturaapenas não nos esclarece acerca das reais causasdos acontecimentos.

Dinastia massila ocidental: Capussa,Mastenissa e Arabion

J. Mazard não atribui cunhagem a Capussa.No entanto, em 1978, um achado monetárioem péssimo estado de conservação foi resgata-do, a partir de escavações arqueológicassubaquáticas na Baía de Cavalaire, em Lavandou(Var). Das onze peças encontradas, cinco sãomoedas de Massalia, uma de Corteia (Bética) ecinco do reino númida. O tipo monetáriodestas últimas é o tradicional cabeça masculinalaureada com barba, no anverso (tipo 7), ecavalo livre galopando, no reverso (tipo 12). A

diferença destas peças é a nova legenda que foi,então, descoberta. No reverso, em púnico,aparecem duas letras KN. Seguindo a tradicio-nal leitura do nome abreviado berbere, G.Camps leu Capussan (Camps 1984: 29-30). Omódulo da peça, 27 mm, os tipos iconográficos eo metal no qual foram cunhadas, chumbo,parecem confirmar que pertençam a um mem-bro da família de Massinissa, Capussa, o qualensaiou ascender ao poder um pouco antes deMassinissa, mas que aparentemente morreu logoapós o início de seu reinado em 207 a.C., semque saibamos exatamente como.

As peças em questão, no entanto, parecemapontar uma nova hipótese de trabalho.Sabemos que os sucessores imediatos deMassinissa (Micipsa, Gulussa, Aderbal, eoutros) emitiram numerário seguindo atipologia iconográfica de Massinissa, apenascom variações nas denominações. As moedasdo módulo das encontradas com legenda KNcostumam ser atribuídas a Massinissa e sãodatadas do início de seu reino (c. 207 a.C.),pois seguem o padrão monetário das últimasemissões cartaginesas de bronze. Nos pergunta-mos quanto à possibilidade de Capussa terreinado junto com Massinissa, ou então, deMassinissa ter se apossado da iconografiamonetária do herdeiro autêntico da famíliamassila (Capussa era, provavelmente, o filhomais velho de Oezálces, por sua vez, o parentemais velho por ocasião da morte de Gaïa, olíder massilo então). Quando Capussa morre,somos informados pelas fontes textuais que aordem das coisas é momentaneamente subver-tida, pois quem ascende é um irmão deCapussa, Lacumazes, ainda uma criança.Massinissa tem que guerrear para obter o lugarque seria seu por direito, visto que, então, elepassa a ser o familiar mais velho. Lacumazesigualmente morre e, assim, nos perguntamos sea escolha iconográfica da cunhagem deMassinissa não teria a intenção de reafirmar asua legitimidade enquanto herdeiro. Assimsendo, o segundo tipo de reverso das moedasde Massinissa, o elefante (tipo 8) ganha novasconotações. Este seria, definitivamente, umsímbolo da vitória de Massinissa em Zama.

Capussa foi identificado como um dinasta

(20) Denários batidos em Roma, em c. 56 a.C., recuperama memória dessa guerra. O anverso traz a imagem de Dianae o lituus, o bastão dos que praticavam os augúrios(relambrando, aqui, o sacerdócio exercido por Sila). Noreverso, Sila aparece sentado em posição de magistradoromano (em uma cadeira curul e com sua toga), de cadalado há um personagem: à esquerda, Boco I, rei daMauritânia, decretado amicus populi Romani, estende aoditador um ramo de oliveira; à direita, Jugurta, rei donúmidas, cabeça abaixada e mãos presas às costas,demonstra pela sua atitude, sua aflição e sua derrota. Oramo de oliveira, o qual Boco estende a Sila, evoca aoferenda do ramo simbólico em ouro, consagrado por esterei ao Capitólio (Perez 1989: 76).

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dos massilos ocidentais porque, em 207 a.C.,Sífax estava ativo e possuía Cirta, na regiãooriental, dentro de seus territórios. Somentecom as conquistas territoriais de Massinissa éque veremos o reino dos massilos se estenderpara o oriente da Berberia Central.

Mastenissa e Arabion reinaram na NumídiaOcidental enquanto Hiêmpsal II e Juba I estavamno poder na Numídia Oriental. A iconografiadestes dois reis da Numídia Ocidental liga-setanto a estas localidades quanto à supostacunhagem de Hiarbas, o usurpador. Os tipos deanverso masculinos seriam os retratos dos reis(tipos 24 e 25, Arabion e tipo 26, Mastenissa).Estilisticamente seguem o retrato das moedas deHiarbas. Se Hiarbas cunhou suas peças emTuniza, na costa oriental da Berberia, é possíveltentarmos estabelecer algum tipo de contatoentre as suas cunhagens. No entanto, igualmentepara esses reis não possuímos achados monetári-os que possam nos auxiliar a elaborar hipótesesde trabalho. As fontes textuais latinas e gregastambém não nos auxiliam, pois de acordo comos relatos, Mastenissa e Arabion apoiaram acausa de Pompeu, e Hiarbas a de Mário. Por

que os massilos ocidentais teriam querido seapoderar da construção imagética do rosto dosoberano getulo? Uma boa saída seria retirar-mos a atribuição a Hiarbas das peças de cabeçamasculina com cabelos longos e personificaçãoda África, e transferi-las para Mastenissa. Dessemodo, Hiarbas ficaria sem cunhagem, mas nãoseria o primeiro rei berbere a ficar, assim,despossuído.

No que concerne aos reversos destasmoedas de Mastenissa (tipo 27) e Arabion(tipo 28) acreditamos estar diante de duasiconografias locais. Os cachos de uva e os grãossão encontrados nas cunhagens contemporâne-as de cidades como Gunugu, Timici, Camarata,Tamuda, Sala, Rusadir. Isto é, ao longo de todaa costa berbere (o sítio de Gunugu foi localiza-do na Berberia Central, próximo a Iol, e o deSala, por exemplo, está na costa atlântica,extremo oeste da Berberia Ocidental). Ainterpretação imediata destas imagens dizrespeito às condições básicas da vida social:agricultura, plantio, riqueza da terra. A imagemda divindade feminina velada que aparece nasmoedas de Arabion, por outro lado, liga-se, em

Tipo 24. Mazard (1955:56 - tipo 102). (x 1,5)

Tipo 26. Mazard (1955:55 - tipo 99). (x 1,5)

Tipo 25. Mazard (1955: 56- tipo 101). (x 1,5)

Tipo 28. Mazard (1955: 56 -tipo 101). (x 1,5)

Tipo 27. Mazard (1955: 55 -tipo 100). (x 1,5)

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nosso entender, ao panteão local. Mais especifi-camente de Thabraca, pois uma legenda dereverso, em neo-púnico, traz provavelmente onome da cidade (TBRS). O símbolo de Tanitque aparece em algumas peças de Arabion, noanverso, é, em nossa opinião, uma contra-marca e não deve ser lido a partir de umapossível conexão com a divindade do reverso.Praticamente desconhecemos a construçãoimagética da própria figura de Tanit entre ospúnicos (afora os atributos crescente, símbolode Tanit – com ressalvas –, e caduceu, os quaisaparecem profusamente nas moedas cartaginesas,púnicas e neo-púnicas não possuímos qualquerimagem física da divindade, de modo que nãopodemos associá-la à figura velada do reversode Arabion).

A cunhagem de Arabion comporta aindauma legenda de difícil leitura, em neo-púnico,colocada ao redor do campo monetário:Balmuzelan, filho de Cabirzo, filho de Muzelan(?). Acreditamos estar diante, talvez, de umareferência ao moedeiro responsável pelacunhagem. De maneira análoga às longasinscrições da República Romana, as quaismuitas vezes tomam boa parte da face monetá-ria, teríamos aqui um raríssimo exemplo deuso tão extenso da língua púnica em umamoeda.

***

A partir dos dados que apresentamosacima, sobre as dinastias númidas de Jugurta aArabion, cremos ser possível estabeleceralguns fatos importantes para o entendimentodas transformações na cunhagem real entre osberberes. Mesmo tendo cunhado em ouro eprata (confirmando-se a atribuição dasmoedas de Jugurta e Hiêmpsal II, o queparece não ser a tendência), os reis, atravésdos dados que a iconografia monetária nosfornecem, não mais nos parecem deter omesmo poder guerreiro, do agellid. Jugurtamoveu uma guerra local forte o suficientepara chamar a atenção de Roma e fazê-lamobilizar suas forças militares. Mas nãoencontramos nos vestígios numismáticos amesma repercussão. A cunhagem parece tersido usada enquanto meio de afirmação

política muito claramente com Sífax e Massinissa,mas não tanto com Jugurta e Hiarbas. Acunhagem de Hiêmpsal II, ao contrário, sedestaca, tanto iconograficamente quanto pelariqueza das denominações, mas com umoutro caráter, o da riqueza da terra (divinda-des com com grãos) e não tanto da forçaguerreira (na verdade foram os romanosque subjugaram Hiarbas, o uso da Vitória,mesmo sendo de origem grega, e da coroade louros parece-nos “inconscientemente”declarar o verdadeiro vencedor). Por outrolado, os reinos massilos do Ocidentedemonstram uma total sujeição à sociedadeurbana e à imagística regional. Fica claronesses últimos que, apesar da manutençãoda legenda especificamente designando-ocomo “pessoa real”, o rei númida nãopossui o mesmo poder dos seus paresorientais. A questão não resolvida da posseda terra entre os berberes volta com forçaaqui. Hiêmpsal II, Mastenissa e Arabion,em última instância, são os únicos a aprego-arem produtos agrícolas, não militares, emsua iconografia monetária. A sujeição àiconografia local, das cidades, insere tanto aapreensão da mensagem iconográfica quantoa circulação monetária dentro de limitesfísicos específicos. A não ser que venhamos aencontrar, em escavações arqueológicas e emnotícias esporádicas, dados que nos permitamestabelecer uma vasta rede de trocas monetári-as entre os reis (os territórios dos reinosmouros começavam no rio/oued Ampsaga,isto é, na fronteira com os massilos doOcidente) e entre as cidades, em nossoentender, Mastenissa e Arabion foram maisprovavelmente chefes menores do que reisberberes autênticos. Ainda que devamossustentar a classificação de rei e a existência deuma divisão no reino númida a partir deHiêmpsal II, em razão das legendas monetári-as de Mastenissa e Arabion.

Juba I

Até o momento, isto é, meados do séculoI a.C., podemos afirmar que a cunhagem dosreis berberes está inserida, econômica e

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culturalmente, em ambiente púnico. Aslegendas são sempre em escrita púnica, bemcomo as contra-marcas, e os sistemasmetrológicos igualmente são púnicos. Apartir de Juba I, veremos uma mudançaradical deste quadro. A Guerra Civil, entreCésar e Pompeu, tomou proporções grandeso suficiente no Norte da África, de sorte alevar à emissão de moedas na própria África,pelos dois lados. Uma quantidade razoável dedenários (incluindo alguns quinários) forambatidos por Metelo Pio e Cato, em 47/6 a.C.(RRC 459-462), e também, provavelmente,pelos partidários de César (RRC 458).Conforme mencionamos acima, osnumismatas acreditam que somente nestemomento foram cunhadas peças reaisberberes em metal nobre (Burnett 1987:176). Apesar de termos mantido, com ressal-vas, as atribuições de moedas a Jugurta eHiêmpsal II, concordamos que a cunhagemem prata de Juba I foi batida para ajudar acausa pompeiana. Possuímos inúmerasnotícias de achados monetários com moedasde Juba I, encontrados no Mediterrâneosetentrional (da cunhagem de Juba I estavamrepresentadas apenas seus denários).21 Estasnotícias são datadas, em geral, de meados doséculo I a.C., de modo que a emissão donumerário de prata deste rei é igualmentedatada do final de seu reino (Juba morre em46 a.C.). Assim entre 47/46 a.C. Juba Iempreende um grande esforço na produçãode seu numerário de prata.

Estas emissões em prata demonstram, noque toca aos metais nobres, a adequaçãoeconômica africana ao sistema romano. Osdenários de ambos, romanos e de Juba I,podiam ser utilizados em transações comuns,como o seu entesouramento conjunto emdezenas de exemplos assim o comprova.22

Iconograficamente as moedas de Juba I ligam-

se também a Roma. Elencamos cinco tipos deanverso (29 a 33) e cinco de reverso (34 a 38).As legendas, em púnico e em latim, aparecemuma de cada lado. No anverso, REX IVBA(“Rei Juba”) e, no reverso, SYWB’Y HMMLKT(“A pessoa real de Juba”).

Os tipos iconográficos de Juba apesar dese aproximarem fortemente da imagéticarepublicana romana (anverso: tipos 29 - cabeçade África; tipo 30 - templo octostilo; tipo 31 -busto alado de Vitória; reverso: tipo 34 -palácio; tipo 35 - templo octostilo), mantêmainda laços com a iconografia monetária realberbere até aqui descrita (anverso: tipo 32 -busto de Juba com os típicos cabelos encaraco-lados e barba pontuda númidas; reverso: tipo36 - leão caminhando; tipo 37 - elefantecaminhando; tipo 38 - cavalo livre galopando).Afora estes, temos pela primeira vez a cabeçade Amon (tipo 33) como tipo principal deanverso. Outro dado pertinente é o fato de asmoedas de prata trazerem as legendas duplas eas de bronze não, apenas em púnico.

Com relação ao retrato, Juba I é um dospoucos soberanos númidas com os quaispodemos fazer estudos comparativos a partirde diferentes suportes de figuração: moeda eescultura. Há, com efeito, uma cabeça emmármore, atualmente no Museu de Cherchel(Fig. 7), que representa o retrato deste rei. Nosdois documentos, escultura e denários batidosem Útica pouco antes do desembarque deCésar na África, vemos os mesmos cabelosencaracolados e a barba cheia, igualmentecrespa.23 Encontramos nessa cunhagem“romana” do rei númida um primeiro símboloafricano, o penteado berbere, que conformemencionamos ao falar do cavaleiro númida, éum traço étnico. No entanto, ao mesmo tempoem que se apresenta enquanto berbere, Jubamanda gravar uma legenda em latim, nonominativo, que é tipicamente romano, e nãono genitivo, que seria tipicamente grego

(23) Cícero teria ficado surpreendido com essa vastacabeleira, tão diferente do modelo romano, ao encontrarJuba I em Roma (Cícero, De lege agraria, II, 22, 59, apudMazard & Le Glay 1958: 15).

(21) A listagem completa foi compilada em Kormikiari2000: 282, nota 42.(22) Um raro achado monetário romano contendosestércios de prata, encontrado na Berberia oriental, emTúnis, demonstra claramente este intercâmbio (Caronni1805, apud Burnett 1987: 183).

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Tipo 38. Mazard(1955: 50 - tipo 87). (x 1,5) Tipo 37. Mazard (1955: 51 - tipo 90). (x 1,5)

Tipo 36. Mazard(1955: 52 - tipo 93). (x 1,5)

Tipo 35. Mazard(1955: 50 - tipo 85). (x 1,5)

Tipo 29. Mazard(1955: 52 - tipo 93). (x 1,5)

Tipo 30. Mazard(1955: 51 - tipo 91). (x 1,5)

Tipo 31. Mazard(1955: 50 - tipo 87). (x 1,5)

Tipo 34. Mazard(1955: 51 - tipo 91). (x 1,5)Tipo 33. Mazard

(1955: 51 - tipo 90). (x 1,5)

Tipo 32. Mazard(1955: 50 - tipo 84). (x 1,5)

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(Bertrandy 1980: 12). Além disso, todos ossoberanos númidas tiveram suas legendasdesignativas gravadas no reverso (de fato, aversão em púnico do título real aparece nosreversos desse mesmo tipo monetário com oretrato). Estas peças apresentam uma grandenovidade na numismática númida: construções.A primeira é um templo octostilo (tipos 30 e35). As colunas, agrupadas de quatro emquatro, estão sobre um pódio. No centro, umaentrada pode ser vista, inclusive o acesso, oqual é feito por quatro degraus (neste espaçoforam colocadas contra-marcas diferentes paracada série, um, dois ou três glóbulos). Oentablamento horizontal sustenta uma edículade dimensões reduzidas. Esta é coberta por umtelhado de duas águas, e em frente deste, umfrontão. Bertrandy chama a atenção para o fato deque este frontão não é tipicamente greco-romano,pois ele não cobre todo o entablamento.

A segunda é um palácio (tipo 34), edifíciocujo centro é composto por uma fachadapentastila. Três atlantes, separados uns dosoutros por duas colunas sobre base, sustentamum entablamento no qual aparecem três

nichos, ornados com esculturas, e limitados porcolunas jônicas.

A. Bertrandy propõe, baseando-se apenasem documentação textual mencionandoconstruções em capitais berberes, que vejamosnestas representações monumentos númidas dotempo de Juba (1980: 13). Já E. Acquaroelabora uma comparação entre estas constru-ções e os monumentos das cidades fenícias dosemporia (Acquaro1983, apud Manfredi 1995:199). Posteriormente, Bertrandy rende-se àsevidências. Por um lado, a organização socialberbere se refletia em estruturas urbanas earquitêtonicas específicas (são as kasbas, asaldeias, os santuários a céu aberto - cf. G.Picard 1954: 6), as quais não foram aindaarqueologicamente estudadas. Por outro,apesar dos avanços feitos nas pesquisas dearqueologia púnica, conhecemos a grandearquitetura cartaginesa mormente através deoutros exemplos, textuais e arqueológicos,como representações em estelas. De modo quea aproximação dos tipos iconográficos de JubaI a hipotéticas construções númidas não sesustenta. O mesmo vale para a iconografia dosgrandes bronzes deste rei, que não forambatidos no sistema ponderal romano, como aprata foi. Estas peças lembram os grandesbronzes e chumbos de Massinissa, e os últimosbronzes de Cartago (são moedas de módulogrande –37 mm – e peso alto –52 g). Nestes, aotemplo octostilo, no anverso, corresponde opalácio dos atlantes no reverso (tipos 30 e 34).

Bertrandy busca, então, na cunhagem daRoma republicana, rica em tipos semelhan-tes, isto é, na figuração de construçõespúblicas, religiosas e adminstrativas, ospossíveis modelos para os tipos de Juba I.Bertrandy elencou como candidatos a VillaPublica e a basílica Aemilia, as quais apare-cem em denários de prata de 55 a.C. e 61a.C. (RRC 429/2a e 419/3b) (Bertrandy1980: 14). Entretanto, trata-se de aproxima-ções, não podemos assumir que Juba Itivesse tido acesso a essas cunhagens específi-cas e que as tivesse imitado.

Acreditamos que um jogo de imagensafricanas se contrapondo a outro de romanasfoi utilizado por Juba I. Uma outra série dos

Fig. 7. Juba I. Escultura, mármore. Brett & Fentress1977 (1996): 44.

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grandes bronzes, por sua vez, traz figurados doiselementos africanos: cabeça de Amon noanverso e elefante no reverso, com legenda empúnico (tipos 33 e 37). A cabeça de Amon énovidade na iconografia, mas o culto destadivindade era já muito antigo no Norte daÁfrica. Plínio, o Velho (V, 31) menciona umoráculo de Amon, a c. 500 km de Cirene, nooásis de Syouah, na Líbia atual, e Pseudo-Cílax assinala um santuário de Amon próxi-mo às Arae Philaenorum, isto é, na fronteiraentre o território grego e o púnico, igualmen-te na Líbia atual (Périplo, 109, G.G.M. I: 85,apud Desanges 1980: 351). Grupos indígenasberberes, como os nasamões, estiveramassociados a seu culto (Kormikiari 2000: 21-116). Em seu acurado estudo do Saturnoafricano e sua associação com Baal Hammon,M. Le Glay apontou para dados que levam àinterpretação que igualmente o Baal fenícioteve seu culto e imagem sincretizados nafigura de Amon (Le Glay 1960-1966, apudManfredi 1995: 163). Isto é, para uma sériecom iconografia essencialmente romana, e decirculação garantida (a não ser que tenha sidoutilizada enquanto “medalhão de prestígio”,no seio da hierarquia berbere), segue outraduplamente africana. De maneira análoga, asmoedas de prata com anverso de Vitória têmo cavalo livre no reverso (tipos 31 e 38); e acabeça de África, no anverso, aparece com oleão, no reverso (tipos 29 e 36).

No entanto, estas peças são as divisionáriase não foram encontradas nos achadosmonetários que elencamos acima. Isto é, aspeças que mais estiveram em circulação,essencialmente porque foram usadas para apaga dos exércitos, são as que trazem oretrato de Juba I e a legenda em latim, noanverso, e o templo octostilo e legenda empúnico, no reverso. Talvez Juba efetivamentequisesse estampar uma imagem de grande reiedificador. É possível que o avanço daspesquisas arqueológicas consiga, eventual-mente nos esclarecer sobre o significadoverdadeiro do termo “capital” berbere, queas fontes apresentam.

O último grande agellid númida, Juba I, foimorto em 46 a.C. a mando de César. Acredita-

mos poder visualizar o “nacionalismo” que asfontes assinalam com relação a Juba I tanto emsuas cunhagens, quanto no seu apoio aPompeu. Conforme discutimos acima, a possedas terras, no nosso entender, esteve intrinseca-mente ligada aos apoios que os reis númidasconcederam aos partidos romanos em disputa.

***

À medida que o processo de penetraçãoromana se intensifica na Berberia, inclusiveatravés das guerras internas travadas em soloafricano, os reis berberes criam mais tipos etornam mais elaboradas suas cunhagens, alémde passarem a utilizar, paralelamente à língua“oficial” do Norte da África (púnico e neo-púnico), o latim, afinal o essencial de umaiconografia monetária é conseguir passar amensagem pretendida. Acreditamos que os reisberberes mantiveram constante o discursoindependência e autonomia, em suas moedas,adequando-o – afinal eles foram tanto agentesquanto pacientes do processo que se desenro-lava ao seu redor – às mudanças políticas econseqüentemente culturais que se seguiramna região a partir da queda do império cartaginês.

Conclusões

O primeiro rei a cunhar, Sífax, o faz aindaquando Cartago era uma potência, mas jáabalada pelas Guerras Púnicas. A escolha dostipos iconográficos de Sífax, retrato do rei ecavaleiro, demonstra fortemente o seu intuitopropagandístico, e mais além, insere-se nocontexto cultural e político do mundohelenístico. Tanto Sífax, como Massinissa queo suplantou (e seus sucessores), tiveram quesustentar seu poder frente às populações daBerberia: sedentários e semi-nômades. Entreestes havia as “elites”, os chefes berberesmenores e os cartagineses e libifenícios. Nestecontexto, tanto a iconografia quanto o esforçode produção monetária dos primeiros reisnúmidas ganha coerência. Inicialmente asmoedas de Massinissa são devedoras do

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sistema ponderal cartaginês e igualmente de suaiconografia. Nesta iconografia foram mantidasas inovações elaboradas por Sífax – o retrato e oimaginário guerreiro. No entanto, Massinissatoma posse do símbolo maior do podercartaginês, o cavalo (ou então simplesmentecopia a atitude que havia sido de Capussa, massempre com a intenção de auto-afirmação). Acunhagem de Massinissa, tão calcada nacartaginesa, utilizou da simplicidade e darepetição simbólica (retrato do rei/cavalogalopando), para marcar seu território.

O vasto raio de penetração da cunhagemde Massinissa, nesse sentido, como vimos pelasnotícias da circulação monetária, demonstraque estas peças foram aceitas e utilizadas paraalém do período de reino deste rei e seussucessores, o que não ocorreu, aparentemente,com os últimos reis númidas, com exceção,talvez, de Juba I. A imagem do cavalo é, assim,um dos elementos mais fortes da cunhagemreal númida de Massinissa e seus sucessores(Micipsa supostamente ficou no poder porquase 30 anos, de 148 a 118 a.C.). Ela sustentaa hipótese de que o poder real era sustentadopela força guerreira do soberano.

Por outro lado, mesmo tendo cunhado emouro e prata, os reis númidas que se seguiram,através dos dados que a iconografia monetárianos fornecem, não mais nos parecem deter omesmo poder guerreiro, do agellid. Comovimos, Jugurta moveu uma guerra local forte osuficiente para chamar a atenção de Roma efazê-la mobilizar suas forças militares. Mas nãoencontramos nos vestígios numismáticos amesma repercussão. A cunhagem de Hiêmpsal,ao contrário, se destaca, tanto iconograficamente

quanto pela riqueza das denominações, mascom um outro caráter, o da riqueza da terra enão tanto da força guerreira. O exemplo dosreinos massilos do Ocidente é o mais significa-tivo. Suas cunhagens demonstram uma totalsujeição à sociedade urbana e à imagísticalocal. Fica claro nesses últimos que, apesar damanutenção da legenda especificamentedesignando-o como “pessoa real”, o reinúmida não possui o mesmo poder dos seuspares orientais. Hiêmpsal II, Mastenissa eArabion, em última instância, são os únicos aapregoarem produtos agrícolas, não militares,em sua iconografia monetária. Mas HiêmpsalII supostamente propagandeava suas riquezaspessoais, se ele efetivamente era o dono dasterras, ou coletivas, se estas eram trabalhadas apartir de relações de reciprocidade. Já osmassilos ocidentais, aparentemente, apenas sesujeitaram à iconografia local.

Juba I, por outro lado, aparece como oderradeiro rei númida de fato. Sua cunhagem deprata provavelmente foi patrocinada pelosromanos. De qualquer forma ele só emite embronze até c. 47/46 a.C., quando então batedenários em Útica para Pompeu. No entanto,tanto o numerário de prata quanto o de bronzeelaboram um sofisticado jogo entre o imaginárioromano e o africano. Principalmente suacaracterização pessoal, nos anversos, com a típicacabeleira númida, representa uma propagandapessoal muito forte. Lembramos que é justamen-te nas peças de prata que este retrato aparece enão nas de bronze. Os achados monetários doMediterrâneo setentrional demonstram que aintenção era a de difundir a propaganda pessoalpara além da Berberia.

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Abstract: In this article we present our interpretation of the North AfricanBerber kings’ monetary iconography, focusing on the Numidian kings. Theycoined money between the 3rd and the 1st centuries B.C.. We also deal withthis coinage’s connection to the Carthaginian and the Roman ones, whichconstituted the main circulation coinage in the area. In this sense, we deal withthe ideological and cultural aspects that sustained these North African monar-chies in antiquity.

Keywords: North Africa – Numidia – Coinage – Iconography – Carthage– Rome.

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