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364Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
NÃO INDÍGENAS, MAS NÃO IGUAIS: A POLÍTICA DE ASSIMILAÇÃO PORTUGUESA EM MOÇAMBIQUE – 1895-1961
Autora: Talise Dayane Gasparetto
Orientador: Rafael Tassi Teixeira
INTRODUÇÃO
Quando você pensa em África qual a primeira que lhe vem a
mente? Negros? Fome? Escravidão? Um território homogêneo?
Calor e safári? O continente africano está ligado a uma série de pré-
conceitos que dificilmente são reprimidos por um motivo bem claro: o
desconhecimento.
Durante muito tempo a História africana foi preterida e praticamente
ignorada pelos currículos escolares, resultado de uma cultura ocidental
que prioriza o estudo da História europeia, tida como universal. O
recente interesse em incluir o seu ensino nas escolas brasileiras esbarra
em professores despreparados e com pouco material de trabalho,
visto que o continente normalmente é retradado nos livros didáticos
relacionado quase que exclusivamente à escravidão. Sim, o passado
africano está imerso e interligado aos outros cantos do mundo pelo
tráfico intercontinental de almas, que desestruturou suas sociedades e
impôs o tratamento desumano a diversas gerações de escravos. Mas
pouquíssimos sabem, por exemplo, que internamente a escravidão
também existiu, ainda que com características e proporções diferentes.
A África vai além desta questão, embora ela tenha sido uma página
manchada de sua história.
Sim, é um continente de contrastes e dificuldades gravíssimas,
mas ao mesmo tempo rico em diversidade, pois dentro de si há uma
vasta gama de sociedades e culturas, que possuem historicidade
própria e que fazem da África uma região tão complexa quanto
misteriosa e apaixonante. Entretanto, sua História é pouco estudada
ou conhecida, mesmo para uma nação cuja formação sociocultural
foi muito influenciada pelos africanos trazidos para cá na condição
de escravos. Foi justamente o desconhecimento e a possibilidade
instigante de desvendar um pouco deste continente que me levou a ele
e a Moçambique, um país ligado ao nosso não somente pelo tráfico
negreiro, mas pela colonização portuguesa que lhe foi imputada. Ao
mesmo tempo, Moçambique parece tão distante dos brasileiros, pois
pouco da sua complexidade social e cultural é conhecida entre nós.
A região hoje chamada por Moçambique esteve vinculada à
expansão portuguesa desde a primeira viagem feita por Vasco da Gama
às Índias em 1498, jornada essa que o levou a aportar em alguns pontos
de sua costa durante seu trajeto. Entretanto, durante séculos os contatos
se limitaram a incursões de exploradores e mercadores que, com
pouquíssima participação do Estado, conseguiram se fixar em algumas
áreas do território, levando consigo a presença tímida do catolicismo.
O governo lusitano não investiu muito em território africano, pois se
voltava a outras prioridades, como sua colônia no Brasil.
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Porém, na segunda metade do século XIX o desenvolvimento
econômico na Europa fez com que os países que se industrializavam
se deparassem com uma intensa necessidade de matérias primas
e de mercados consumidores e, nos casos das nações ainda não
industrializadas, de prestígio e afirmação diante deste novo cenário
internacional. A partir desta conjuntura e dos desdobramentos que
advieram dela surgiram uma série de fatores que tornaram a posse dos
territórios africanos de interesse da Coroa portuguesa um imperativo
premente. Quais foram estes fatores? O que levou Portugal a mudar de
atitude frente seus espaços africanos? Como a posse foi efetivada?
Moçambique, no final do século XIX, não estava vazio, pois possuía
uma heterogeneidade de povos e culturas dos mais variados tipos de
organização e vulto, que não olhariam passivos diante do colonialismo
ou aceitariam tão facilmente suas propostas. Ao norte, inclusive, já
havia uma influência árabe, proveniente do comércio desenvolvido
com o Oriente. Se Portugal desejasse lucrar com esta colônia, objetivo
que mesmo disfarçado estava no âmago de toda nação colonialista,
precisaria encontrar meios de disciplinar e educar os nativos que lá
habitavam, para que estes trabalhassem em prol do desenvolvimento
econômico da colônia, a despeito de suas organizações e visões de
mundo muito distantes da ocidental. Era urgente estruturar a relação
que os lusitanos tinham com este “outro” africano, chamado por eles de
indígenas, e legitimar sua exploração. O governo português optou por
uma política de assimilação, ou seja, de fazer com que estes indígenas
se aproximassem da cultura lusitana e absorvessem valores e hábitos
que fossem condizentes com seus desígnios colonialistas.
O objetivo desta pesquisa monográfica foi investigar como se
desenvolveu e se estruturou a relação colonizador-colonizado dentro da
política de assimilação portuguesa destinada a Moçambique, entre os
anos de 1895, data considerada como início da ocupação efetiva, até
1961, quando os nativos africanos em território português passaram a
gozar, pelo menos em teoria, dos mesmos direitos à cidadania que os
brancos da Metrópole.
Como estes povos distintos se encaixavam dentro da ideologia
portuguesa? Como esta ideologia influenciou as políticas e as legislações
relativas aos nativos? O estava implícito para os portugueses no ato de
assimilar um indígena? Quais foram os mecanismos assimilativos que
o governo português estruturou para educar os nativos? Quem poderia
ser juridicamente considerado como assimilado e gozar de estatuto de
cidadão português? A pesquisa realizada e que se traduz neste texto
monográfico procurou responder a estas e outras questões ao longo
de seus três capítulos que, embora complementares, foram analisados
preferencialmente sob a ótica referenciais teóricos distintos, devido a
especificidade de seus assuntos, sem deixar de lado a importância que
estes autores tiveram para o todo.
Para o primeiro capítulo, em que foi feita uma concisa
contextualização acerca da relação histórica entre Portugal e
Moçambique, Eric Hobsbawm e sua obra A Era dos Impérios - 1875-1914
foi fundamental. Nela, Hobsbawm discutiu o conceito de nacionalidades
e de nacionalismo durante a corrida imperialista do último quartel do
século XIX, que se estendeu até a Grande Guerra. Neste livro também
estão descritas em detalhes as motivações, a ideologia e a conjuntura
que levou à “divisão” do controle político e econômico África e da Ásia
entre poucos países imperialistas1. Seus conhecimentos ajudaram na
análise do que ocorria no período e qual a posição de Portugal frente
às movimentações europeias que ocorriam especialmente na África e
1 HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios: 1875-1914. 8.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
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que ameaçavam suas possessões neste continente. O primeiro capítulo
trata, portanto, dos meandros que levaram a nação portuguesa a tomar
posse de Moçambique e da organização político-administrativa que ela
criou nesta colônia.No segundo capítulo foi analisada a relação colonizador-
colonizado, portugueses-indígenas, que se intensificou com a fixação lusitana em seus territórios africanos. Durante o período de ocupação e de colonização de Moçambique, a ideologia dominante no meio científico no que tange à alteridade era o racialismo, termo utilizado pelo teórico Tzetan Todorov, em seu livro Nosotros y los Otros. Nesta obra, Todorov estudou as principais correntes de pensadores que acreditavam na existência das raças e traçou, através de um tipo ideal, as características comuns presentes nestas doutrinas2. As representações portuguesas acerca do “outro” africano foram profundamente influenciadas por estas teorias, bem como as políticas destinadas a eles. Este capítulo é indispensável para a compreensão e a análise do tema deste trabalho monográfico, visto que a cultura portuguesa e o modo como encaravam o nativo africano influenciaria boa parte de suas escolhas colonialistas, inclusive a assimilação. Outro conceito fundamental para a política de assimilação portuguesa é o de civilização. Para ajudar na sua compreensão, foi utilizada a obra de Norbert Elias, O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes, na qual este autor investigou a história dos costumes na Europa, no decorrer do século XIII até a contemporaneidade. Elias pesquisou o surgimento do termo civilização e qual o significado que foi atrelado a ele ao longo do tempo3. O ato de civilizar o 2 TODOROV, Tzetan. Nosotros y los otros: reflexión sobre la diversidad humana. Mexico DF: Siglo XXI, 1991.3 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
nativo, como foi discutido neste capítulo, será ato de ordem na ideologia portuguesa.
O terceiro capítulo parte para a análise da política de assimilação portuguesa em Moçambique em si, como ela foi pensada e estruturada. Para debater sobre a assimilação como ideologia e os seus efeitos no caso moçambicano, foram utilizados os conceitos e as relações propostas por Leo Spitzer, no livro Vidas de Entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental – 1780-1945. Spitzer faz uma investigação sobre o contexto assimilacionista que envolveu a trajetória de três famílias durante dos séculos XVIII a XX: uma judia europeia, uma brasileira e uma africana. No caso africano, estudou como o universalismo britânico se estruturou dentro de comunidades em Serra Leoa compostas por ex-escravos libertos por eles. Para tanto, conceituou a assimilação e suas particularidades e discorreu sobre os fatores envolvidos neste processo e que o influenciaram positiva ou negativamente4. As definições e conhecimentos advindos desta pesquisa foram essenciais, guardadas suas particularidades, para compreensão da conjuntura assimilacionista portuguesa em Moçambique.
Este capítulo, por fim, abordou dois mecanismos essenciais de
aproximação do indígena com a cultura portuguesa e que visavam
impulsionar o processo de assimilação: o trabalho e a educação.
Para ambos, Pierre Bourdieu trouxe expressivas contribuições com
dois de seus trabalhos de pesquisa, O desencantamento do mundo:
estruturas econômicas e estruturas temporais e Reprodução: elementos
para uma teoria do sistema de ensino, este último em parceria
com Jean-Claude Passeron. No primeiro livro Bourdieu relacionou
os distintos modos como as sociedades tradicionais e modernas 4 SPITZER, Leo. Vidas de Entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental – 1780-1945. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001.
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qualificam e se apropriam do trabalho, discussão esta presente no
contexto colonialista português, uma vez que seria necessário obrigar
os negros a laborarem segundo a lógica capitalista, e não como uma
função ou dever social5. Já no segundo, os co-autores afirmaram
que toda ação pedagógica é parte de uma relação de forças, que se
traduzem em uma violência simbólica, em que valores arbitrários de
uma determinada cultura dominante são impostos a outra6. Foi sob
esta ótica que o sistema educacional português e a sua ligação com
a desejada mudança cultural dos indígenas foi analisada.
Para atingir o objetivo proposto por este discurso monográfico foi
necessária uma intensa busca por fontes e materiais sobre o assunto.
Esta procura revelou o quão árduo é o trabalho de um pesquisador
que, a partir do Brasil, procura escrever sobre a História dos países
lusofônicos africanos. Raros são os livros publicados sobre o tema no
país e a maioria absoluta deles foi escrito por europeus ou brasileiros,
deixando a ótica africana sobre o tema a mercê do já comentado
desconhecimento. As bibliotecas das universidades, excetuando-se
as mais conceituadas, possuem um acervo muito pequeno sobre a
História africana. Além disso, para o pesquisador é também crucial
ter um bom conhecimento dos sistemas de informação existentes,
pois muitos sites ou domínios estrangeiros, em especiais portugueses,
disponibilizam/hospedam fontes digitalizadas ou material publicado
(teses, artigos, dissertações) sobre o assunto.
As fontes disponíveis, e acessíveis, sobre a colonização portuguesa
em Moçambique são, em geral, documentos oficiais, pesquisas
5 BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979.6 BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.
patrocinadas pelo Estado ou leis metropolitanas que regulavam
as possessões deste país no ultramar. Desta forma, a análise do
colonialismo em Moçambique partiu do estudo das principais
legislações publicadas em Portugal sobre o tema, disponibilizados no
site do Diário da República Eletrônico de Portugal (DRE), que oferece
em via eletrônica os decretos, decretos-leis e outros dispositivos
legais publicados fisicamente pelo Diário da República desde outubro
de 1910. Esta pesquisa também contou com fontes publicadas por
universidades e instituições portuguesas ou em coletâneas sobre o
colonialismo português, sendo complementada por referenciais
bibliográficos que discutem o tema.
Moçambique é hoje um país rico em diversidade, mas cheio de
contrastes. Esta nação traz em seu âmago as marcas do colonialismo
português que lhe foi imposto e que se findou tão recentemente,
em 1974. Este discurso monográfico analisa um dos vieses deste
processo que foi responsável pela exploração de milhões de almas.
1 A COLONIZAÇÃO DE MOÇAMBIQUE
1.1 Contatos entre Portugueses e “Moçambicanos”: Séc. XIV-XIX
A presença portuguesa em território posteriormente denominado
Moçambique remonta a 1498. Este foi o ano em que a expedição de
Vasco da Gama, em sua busca por um caminho para as Índias, aportou
na região próxima a atual Inhambane, dirigindo-se após a mais pontos
de sua costa.
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A partir de 1505, teve início o chamado processo de roedura7 na
região, com a fundação de algumas feitorias, como a de Sofala (1505),
a da Ilha de Moçambique (1507) e a de Quelimane (1544).
MAPA 1 – FRONTEIRAS DE MOÇAMBIQUE
Este mapa traz a posição atual de cidades que derivaram das primeiras feitorias, bem como a delimitação das fronteiras de Moçambique. Fonte: HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008. p.585.
7 De acordo com Leila Hernandez, o processo de roedura refere-se aos contatos e a penetração europeia na África até o final do século XIX, que acabaram por influenciar e minar as relações existentes naquele continente até então. O nome é em alusão a um rato que vai, aos poucos, roendo seu alimento. HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008. p. 45-52.
Aos poucos os lusitanos, usando das mais variadas táticas,
aumentaram a sua presença em Moçambique. Entre tais estratégias
destacaram-se: a comercialização com povos locais, os acordos com
soberanos, as trocas para domínio de territórios, as alianças com
chefaturas locais em lutas contra seus inimigos, entre outras, e de açodo
com Hernandez, “pouco a pouco, os portugueses foram substituindo
os árabes8 no controle do comércio de ouro, ferro, cobre e marfim”9
provenientes da região, passando também a controlar a produção de
algumas minas de ouro e de outros metais preciosos.
Entre os séculos XVII e XVIII, foram introduzidos os prazos, isto é,
um sistema em que as terras pertencentes à Coroa portuguesa eram
arrendadas por um prazo de três gerações a um prazeiro, podendo ser
renovada esta concessão. Este se responsabilizava pela garantia militar da
ordem e pela defesa da área por ele arrendada, ao passo em que exercia
o controle comercial e produtivo dela, cobrava os impostos, entre outras
atividades. Vários prazeiros garantiram sua legitimidade junto as estruturas
indígenas tradicionais, por matrimônios e/ou alianças com chefes locais.
Já o comércio escravista, ainda que presente na região há muito
mais tempo, ganhou significância após a segunda metade do século
XVIII. Mas, apesar disso, foi a partir da segunda década do século
seguinte que o tráfico passou a ter maior vulto e relevância. Isto ocorreu
8 Na época dos primeiros contatos portugueses, a região que hoje chamamos de Moçambique possuía diversas etnias e formações de autóctones, desde tribos a reinos e “impérios”. Um dos “impérios” deste período é o Monomopata, que dominava uma extensa e rica região e possuía, inclusive, “estados” vassalos. Já os reinos afro-islâmicos moçambicanos surgiram da fixação de comerciantes swahili, cultura supranacional que se estendia do sul do Sudão até a região e que realizavam transações comerciais com o Oriente. Podemos perceber que Moçambique era, e de certa forma ainda é, um território com uma estrutura étnica e composição complexa. PÉLLISIER, René. História de Moçambique: formação e oposição 1854-1918.v.II 3.ed. Lisboa: Estampa, 2000.9 HERNANDEZ. op.cit. p.584.
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devido ao aumento da procura por escravos na costa ocidental africana,
em face do crescimento do número de plantações de cana-de-açúcar
na América. Esta demanda fez com os preços por escravos provenientes
da costa ocidental se tornassem superiores aos da oriental.
A proibição do tráfico imposta pela Inglaterra, Ato Contra o Comércio
de Escravos de 1807, impulsionou o comércio humano da região de
Moçambique, devido a menor incidência de controle inglês das rotas
orientais, possibilitando com que os riscos de apreensão de um navio
negreiro e sua respectiva “carga” fossem menores. Esta nova configuração
fez com que o comércio de escravos se tornasse mais lucrativo que o dos
outros produtos, enriquecendo os vários prazeiros que tomaram parte
deste processo ao criar “uma escravocracia branca, goesa10 e mestiça,
pouco numerosa mas econômica e politicamente poderosa”11.
Durante muito tempo, entretanto, a penetração em território
moçambicano se deu prioritariamente por iniciativa individual de
aventureiros e comerciantes europeus e indianos que, com recursos
próprios e diferentes estratégias, empreenderam suas explorações. À
exceção da região de Sofala, interessante aos olhos portugueses pela
possibilidade de controle do ouro proveniente da região de Monomopata,
Moçambique era tido apenas como ponto de apoio ao comércio de
produtos indianos, ou seja, das rotas que levavam a este fim.
O incremento dos lucros advindos do aumento do comércio de
escravos e de outras mercadorias enriqueceu uma minoria, mas não
significou que a presença lusitana fosse efetivada em todo território
10 Proveniente de Goa, uma antiga colônia portuguesa (hoje território indiano). Durante séculos os comerciantes indianos detiveram e controlaram redes comerciais e de transportes. Após a dominação efetiva do território, o governo colonial procurou limitar seu poder comercial, dando preferência a concorrentes europeus.11 CAPELA.ap.CABAÇO, José Luís. Moçambique: Identidade, colonialismo e Libertação. São Paulo: UNESP, 2009. p. 55.
moçambicano. Em outras palavras, os portugueses não controlavam o
território ou detinham sua posse integral, muito pelo contrário:
Da área geográfica a que hoje se chama Moçambique, os portugueses, até a primeira metade do século XX, ocuparam efetivamente apenas uma parte do território, negociando, convivendo ou confrontando-se com soberanos locais, do interior, com os reinos costeiros afro-árabe-swahili da zona norte do delta do Zamzebe e, já mais adiante do século, com os “Estados” que surgiram do relacionamento dos “senhores dos Prazos” com as linhagens reinantes locais e que se foram consolidando, quer pela ajuda militar prestada pelos “senhores”, quer pelos matrimônios destes com mulheres pertencentes às aristocracias locais12.
Como é possível visualizar no mapa abaixo, o território de posse
portuguesa correspondia a apenas uma pequena parcela da região,
limitando-se às três áreas demarcadas.
MAPA 2 – OCUPAÇÃO
Fonte: PÉLLISIER, René. História de Moçambique: formação e oposição 1854-1918.v.II 3.ed. Lisboa: Estampa, 2000. p.459.
12 CABAÇO. op. cit. p. 54.
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Ao analisar este documento cartográfico percebe-se que os avanços
lusitanos durante as chamadas Guerras de Pacificação, ou seja, no
período em que a dominação se tornou gradualmente efetiva.
O contexto europeu a partir da segunda metade do século XIX, e
as novas necessidades advindas dele, faria com que a presença e o
domínio português fossem mandatórios e efetivos, mudando o modo
e a intensidade da colonização em seus territórios africanos. Para que
isto ocorresse, dois eventos foram fundamentais no caso das colônias
portuguesas: a Conferência de Berlim e o Ultimatum britânico.
1.2 A Conferência de Berlim e o Ultimatum Britânico – o Nacionalismo e a necessidade da
“presença” efetiva
Na segunda metade do século XIX, em especial após a década de
1870, o mundo assistiu a uma corrida imperialista, em que um pequeno
número de países acabou, direta ou indiretamente, dominando grande
parte do globo13. Em relação ao continente africano, alguns estudiosos
afirmam que esta expansão rumo à colonização se deu por motivos
meramente econômicos. O crescimento industrial e o desenvolvimento
tecnológico fomentaram a necessidade de novas ou mais abundantes
matérias primas e mercados consumidores, ao mesmo tempo em
que crescimento demográfico demandava formas alternativas e mais
baratas de abastecimento. De acordo com Hobsbawm, a civilização
europeia “agora precisava do exótico e o desenvolvimento tecnológico
agora dependia de matérias primas que seriam encontradas exclusiva
13 Dentre este pequeno grupo, encontravam-se principalmente a Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Holanda, Bélgica, EUA, Japão e Portugal.
ou profusamente em lugares remotos”14. A própria rede de transações
entre países, mesmo entre os mais distantes, foi beneficiada e
intensificada pelas novas tecnologias de transportes e comunicações,
facilitando assim a expansão imperialista.
Entretanto, para além das questões econômicas, estavam em jogo
questões políticas e estratégicas, pois dominar uma região poderia ser
sinônimo de prestígio e status ou ponto de partida para um objetivo
maior, como evitar, por exemplo, que rivais tomassem conta de uma
vasta ou importante região.
O continente africano neste contexto deparou-se com um interesse
europeu jamais visto e de uma movimentação em torno de acordos e
de tratados para sua dominação. Foi o caso, em 1876, da Conferência
de Bruxelas convocada e organizada pelo rei belga Leopoldo II. Este
monarca buscava, entre outras solicitações, criar uma “Confederação
de Repúblicas Livres” na região do atual Congo, presidida por sua
pessoa. Outra calorosa discussão desta Conferência foi referente
a extinção do chamado “princípio do direito histórico”, que dava a
primazia ao descobridor em questões de litígios internacionais por
posse ou exploração de um determinado território.
O governo português, diante da Conferência e dos “avanços”
e movimentações das outras nações, sentia que sua importância e
“legitimidade” histórica estavam ameaçadas. Percebia também que o
seu projeto de criar uma extensa área colonial, ligando o território de
Moçambique ao de Angola através da anexação da região dos atuais
Zimbábue e Zâmbia, poderia estar fadado ao fracasso. Esta desejada
província “Anglomoçambicana” ficou conhecida por “Mapa Cor-de-
Rosa” ou África Meridional Portuguesa15, como pode-se visualizar melhor 14 HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios: 1875-1914. 8.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. p.96.15 O projeto ficou mais conhecido pelo nome de “Mapa Cor-de-Rosa”, devido à
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no mapa abaixo que indica a área desejada pelo governo lusitano, ou
seja, a região que corresponderia ao “Mapa Cor-de-Rosa”.
MAPA 3- MAPA COR-DE-ROSA
Fonte: HERNANDEZ. op. cit. p.58.
Segundo Leila Hernandez, a pretensão de Leopoldo II em governar
a região do Congo, o sonho português do “Mapa Cor-de-Rosa”, o
expansionismo francês e britânico e o interesse pela livre navegação e
comércio nas bacias dos rios Níger e Congo, foram os quatro principais
motivos para que o chanceler alemão Otto Von Bismarck convocasse
uma conferência colonial a ser realizada em Berlim16. Além do mais,
cor rosa utilizada para representar o território da Província Anglomoçambicana seu mapa original. O Mapa foi proposto em outubro de 1883 e apresentado na Câmara dos Deputados em fevereiro de 1886. Foi reconhecido pela França três meses depois e pela Alemanha em dezembro do mesmo ano. HERNANDEZ. op. cit. p.58.16 HERNANDEZ. op. cit. p.584.
Bismarck, que também gostaria de “usufruir” do continente africano,
poderia evitar um possível confronto entre nações europeias através da
efetivação de acordos.
A Conferência de Berlim ocorreu entre novembro de 1884 e fevereiro
de 1885, época em que Portugal apresentava-se como um país atrasado
economicamente em relação aos seus vizinhos europeus e com pouco
peso político. Logo, era preciso, de certa forma, uma solução diplomática
para suas questões, pois dificilmente teria condições para enfrentar as
grandes potências mundiais que disputavam o continente africano.
Portugal encontrava-se em uma frágil posição frente ao jogo de interesses
que se formava, a despeito de seu pioneirismo nos descobrimentos. Com
a Conferência de Berlim, acabou mantendo seus principais territórios
africanos, entretanto, segundo Hobsbawm, o fato destas regiões
sobreviverem às pretensões das “outras colônias imperialistas, deu-se
basicamente à incapacidade de seus rivais modernos chegarem a um
acordo quanto à maneira exata de dividi-los entre si”17.
No entanto, a Conferência foi prejudicial aos interesses portugueses
em dois aspectos: o primeiro deles se refere a legitimidade da
dominação belga na região do Congo, legitimidade esta que minou
o sonho lusitano de constituir o “Mapa Cor-de-Rosa”. Já o segundo
aspecto está contido no capítulo VI, da Ata Geral da Conferência de
Berlim, ao determinar em seus artigos 34 e 35 que:
A Potência que de agora em diante tomar posse de um território nas costas do continente africano situado fora de suas possessões atuais [...], fará acompanhar a Ata respectiva de uma notificação dirigida às outras Potências signatárias da presente Ata, a fim de lhes dar os meios de fazer valer, se for oportuno, suas reclamações.As Potências signatárias da presente Ata reconhecem a obrigação de assegurar, nos territórios ocupados por elas, nas costas do Continente africano, a existência de unia autoridade capaz de fazer respeitar os
17 HOBSBAWM. op. cit. p.89
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direitos adquiridos e, eventualmente, a liberdade do comércio e do trânsito nas condições em que for estipulada18.
Nestes artigos ficou definido a potência interessada em uma região era obrigada a não somente a informar o interesse sobre ela aos demais signatários da Ata como também seguir as normas por ela estabelecidas, além de tomar a posse efetiva do território. Esta determinação rompia, de uma vez por todas, o princípio do “direito histórico” e fazia prevalecer o de “ocupação efetiva”. Conforme já citado, Portugal detinha a posse de apenas uma pequena extensão de terra em Moçambique, porém após a Conferência, viu-se obrigado a conseguir meios de dominar efetivamente esta e suas demais áreas, o que seria extremamente complicado diante de suas condições econômicas e materiais, como será discutido no decorrer deste trabalho.
Cabe aqui destacar que antes de analisar como ocorreu a ocupação efetiva em Moçambique, faz-se necessário discutir outro fator que a impulsionou: o Ultimatum inglês.
A partir de 1887, Portugal deu inicio a várias expedições com o objetivo de formar a África Meridional Portuguesa. Nestas campanhas, os lusitanos acabaram por assaltar e dominar regiões que os ingleses acreditavam serem suas. Apesar das notas diplomáticas da Inglaterra acerca destas movimentações, o país optou por protelar uma resposta definitiva aos questionamentos ingleses. Em 1889, os portugueses atacaram o povo Makololo que segundo os britânicos estavam sob sua proteção. Isto fez com que Lord Salisbury, a pedido da majestade inglesa, enviasse em 11 de janeiro de 1890, o seguinte memorando ao governo português:
What Her Majesty’s Government require and insist upon is the following: that telegraphic instructions shall be sent to the governor of Mozambique
18ATA GERAL DA CONFERÊNCIA DE BERLIM. Berlim: [s. n.], 1885. Disponível em: http://www. casadehistoria.com.br. Acesso em: 18 ago.2012.
at once to the effect that all and any Portuguese military forces which are actually on the Shire or in the Makololo or in the Mashona territory are to be withdrawn. Her Majesty’s Government considers that without this the assurances given by the Portuguese Government are illusory. Mr. Petre [the English Minister in Lisbon] is compelled by his instruction to leave Lisbon at once with all the members of his legation unless a satisfactory answer to this foregoing intimation is received by him in, the course of this evening, and Her Majesty’s ship Enchantress is now at Vigo waiting for his orders19.
A ordem britânica acima citada de Lord Salisbury ficou conhecida
como Ultimatum. Nela, o governo inglês exigiu que o governador de
Moçambique fosse avisado para retirar toda e qualquer força militar
portuguesa que estivesse em áreas consideradas sob proteção ou
domínio da Coroa britânica, no caso Shire, Makololo e Mashona.
Do contrário, ou seja, se não houvesse uma resposta satisfatória, o
embaixador de Lisboa e toda a sua equipe sairiam do país e haveria
uma retaliação iminente, pois um navio da Coroa inglesa já estava
aguardando ordens para cumprir este objetivo. Embora o trecho acima
citado não apresente a totalidade do Ultimatum, podemos perceber nele
o tom impositivo e grave da situação, pois a Inglaterra neste período era
a nação mais influente no mundo. A intimação dada Reino Unido surtiu
19 “O que o Governo de Sua Majestade deseja e insiste é o seguinte: que instruções telegráficas sejam enviadas para o governador de Moçambique imediatamente para que toda e qualquer força militar Portuguesa que está atualmente no Shire ou em território Makololo ou Mashona se retirem. O Governo de Sua Majestade considera que sem isto as seguranças dadas pelo Governo Português são ilusórias. Mr Petre [o Ministro Inglês em Lisboa] é obrigado por suas instruções a deixar Lisboa imediatamente com todos os membros de sua delegação a menos que uma resposta satisfatória para esta precedente intimidação seja recebida por ele, durante esta noite, e o navio de Sua Majestade Enchantress está agora em Vigo esperando suas ordens” (Tradução do autor). SALISBURY.ap.COELHO, Teresa Pinto. Lord Salisbury´s 1890 Ultimatum to Portugal and Anglo-Portuguese Relations. Lisboa: [s. n.], [20--]. Disponível em: http://www.mod-langs.ox.ac.uk/files. Acesso em: 18 ago.2012
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 373Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
efeitos imediatos tanto na política quanto na sociedade portuguesa.
Diante da iminente retaliação, Portugal obedeceu ao Ultimatum
imediatamente. Este aceite, entretanto, só seria finalmente ratificado
no Tratado de Junho de 1891, visto que o acordo anterior, realizado
em agosto de 1890, não foi aprovado pelo Parlamento lusitano,
devido a forte reação interna e a convulsão gerada na opinião pública
nos momentos que se seguiram ao aceite da imposição britânica.
O desbarato diplomático não foi a principal dimensão da derrota,
mas as manifestações populares e o uso político que alguns grupos
dele internamente, dentro da própria nação. “É neste plano que a
derrota ganha relevo e atinge foros de traumatismo na consciência
nacional”20.
Segundo Hobsbawm, o nacionalismo envolve não somente os
movimentos em torno de um território ou uma “causa nacional”, mas
também o direito de autodeterminação de Estado. Além disso, mesmo
as mais diferentes noções de nacionalismos envolvem “a presteza com
que as pessoas se identificam emocionalmente com ‘sua’ nação e
podiam ser mobilizadas [...] politicamente”21.
As manifestações contra a agressão à soberania do Império que
o Ultimatum representou foram das mais diversas: desde folhetos e
discursos anti-britânicos a protestos inflamados contra não apenas
a atitude inglesa, mas ao próprio governo português e suas decisões
diante deste e de outras situações que o “Império Luso” estava
vivenciando. Escritores e jornalistas davam voz à crítica contra o Estado
e a esta “vil” intimação inglesa, nos mais variados meios e formas22. A
20 TEIXEIRA, Nuno Severiano. Política Externa e Política Interna no Portugal de 1890: O Ultimatum Inglês. Análise Social, [s.l.], v.22, [s.n.], p.697, 1987. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/. Acesso em: 12 ago.2012.21 HOBSBAWM. op. cit. p.204. 22 TEIXEIRA. op. cit. [s. n.]
onda nacionalista e patriótica que se abateu sobre os lusitanos também
fez ecoar os sentimentos e as opiniões antimonárquicos. O Partido
Republicano, aproveitando-se da situação, incentivou a sociedade civil
a participar deste movimento, tomando para si a imagem de defensor
da nação e de seus interesses.
Podemos tomar como exemplo de propaganda republicana, o
jornal O Ultimatum, publicado em volume único por acadêmicos
universitários de Coimbra, em de 23 de março de 1890. De orientação
profundamente antimonárquica, declarada inclusive no editorial que
precedia os textos e poemas nele contido, o jornal recriminava o
governo vigente e as atitudes do rei, focando boa parte de suas críticas
nas questões relacionadas a violência contra a soberania portuguesa
que o evento que lhe deu o nome significou.
Estamos em vesperas de um dos acontecimentos mais importantes na evolução da Humanidade. A revolução portuguesa não será apenas a desthronisação de uma dynastia, o rompimento completo com as tradicções que ella representa, a quebra de uma alliança, a ressurreição de uma patria, a reforma de uma sociedade, a regeneração de um povo, e a reconstituição de uma nacionalidade. Será mais do que isso: será o inicio de uma nova era na historia das civilisações; será o primeiro passo para a federação da America e da Europa latina.Desthronada a dynastia, rota a aliança inglesa, a federação de Portugal com os Estados-Unidos impõe-se naturalmente. [...] Então será a nossa patria o centro de troca das ideias e dos progressos. Então será aqui, neste bemdito territorio, no seio d’este nobre e generoso povo, que se transformará em arterial o sangue venoso das velhas civilisações23.
Ao analisarmos o trecho acima, podemos perceber que a
publicação pregava uma revolução republicana em nome da pátria e
da nacionalidade. Era para o povo e para a grande nação que uma
atitude deveria ser tomada e, uma vez que a aliança com a Inglaterra 23 ZUNIGA, Armando. A Revolução de 1890. O Ultimatum, Coimbra, v.1, n.1,p.2, 23 mar.1890.
374Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
era uma mancha ao grande Estado português, seria necessário criar
novas relações. A mais lógica delas seria com os Estados Unidos, país
de tradição republicana. Esta crítica à aliança com os britânicos e o
uso do Ultimatum para questionar o sistema vigente não era privilégio
apenas desta publicação, mas por ela é razoavelmente exemplificado.
Um dos escritores deste jornal, Antonio José de Almeida, chegou a
ser preso por três meses devido a um artigo difamatório sobre o então
rei Carlos de Bragança. Nele, Almeida o chamava de um bruto de
inteligência medíocre e de gatuno. Décadas mais tarde, ele se tornaria
presidente da República.
Nas ruas os protestos continuavam ocorrendo. A pressão da opinião
pública fez cair, no período de janeiro de 1890 a junho de 1891, dois
governos. O Partido Republicano, aproveitando-se novamente da
situação, ganhou espaço e elegeu três deputados por Lisboa em 1890. O
governo, para diminuir os riscos de uma grave ruptura, recrudesceu sua
lei para tentar cercear a liberdade de expressão, proibindo protestos e
manifestações e limitando o conteúdo das críticas impressas. Este conjunto
de proibições e limitações ficou conhecido como Lei das Rolhas.
Os ministros actuaes, Uns famosos figurões,Querem com a lei das rolhasSalvar as instituições.Um patusco que eu conheço,Que ao governo dá vivorio,E que atirou dois tostõesAos do bando precatorio.Disse a esfregar muito as mãosE com ar malicioso:- <<O que o Serpa vae fazerÉ deveras espantoso.>> 24
24 MOSCARDO. Gazetilha. O Ultimatum. op. cit. p.1. Antonio Serpa, citado neste poema, foi o segundo líder do governo no Parlamento a ser
O poema acima, também publicado no jornal O Ultimatum, é uma
crítica clara a Lei das Rolhas e a maneira como a monarquia tentava,
através do silêncio, conter as manifestações públicas que ocorriam.
Esta tática, entretanto, acabou funcionando e minando os movimentos
revolucionários, patrióticos ou contestadores, que decaíram com o
tempo.
Já a Inglaterra, diante da não ratificação do Tratado de Agosto
de 1890 e da convulsão portuguesa, decidiu agir de maneira mais
diplomática. Contudo, os termos do Tratado final de 1891, também
responsável pela delimitação das fronteiras de Moçambique, mão
foram melhores que o de agosto do ano anterior, muito pelo contrário.
Ele foi aceito, dentre outros motivos, por ter enfrentado uma opinião
pública menos convulsionada.
A Conferência de Berlim e o Ultimatum deixaram claro que a posse
efetiva dos territórios africanos destinados aos lusitanos era mandatória,
pois havia um sério risco de perdê-los. No caso de Moçambique a
dominação foi conquistada, mas não de maneira simples e rápida.
1.3 A FIXAÇÃO E SEUS REVESES
Após a Conferência de Berlim, Portugal organizou expedições
militares para conquistar as áreas atribuídas ao país. Os confrontos que
ocorreram para atingir este propósito foram denominados de Guerras
de Pacificação.
Moçambique era uma região que abrigava uma heterogeneidade
de tribos, que ofereceram maior ou menor grau de resistência, de
indicado durante o período da crise gerada pelo Ultimatum. Possuía uma plataforma patriótica, mas não conseguiu cortar os movimentos populares ou políticos e acabou sendo “forçado” a pedir demissão. TEIXEIRA. op. cit. p. 697-698.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 375Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
acordo com sua forma de organização, tamanho e condições. Dessa
maneira, as Guerras de Pacificação foram igualmente diversas em suas
características e no tempo que delongaram para chegar à dominação
desejada. Porém, somente após 11 anos do início da Conferência, com
a derrota do “Império” de Gaza, que os lusitanos puderam pensar em
maneiras de proceder a organização e a estruturação da colônia.
O “Império” de Gaza surgiu na década de 1820 e rapidamente se
expandiu na região sul de Moçambique dominando os povos locais.
Era o maior e mais temido dos reinos que formavam Moçambique.
No entanto, Gaza capitulou diante das forças militares portuguesas,
comandadas por Mousinho de Albuquerque, em dezembro de 1895.
Seu rei Gungunhana foi preso e enviado à Lisboa, com parte de sua
família. Exibido como prova de sucesso nas Guerras de Ocupação,
posteriormente foi transladado para os Açores, local em que faleceu
anos depois. A derrota do então maior inimigo dos portugueses na
região não significou o fim das guerras, que findaram somente em
191825. O “sucesso” na pacificação dos territórios, fez com que a
elite militar que comandou as campanhas ganhasse notoriedade e
dominasse os governos nas colônias, nos anos que se seguiram às
conquistas. Conhecidos como a Geração de 95, muitos destes militares
organizaram em livros as suas experiências nas colônias.
A Geração de 95 acreditava que o potencial das possessões, como
o caso de Moçambique, só poderia ser alcançado se a Metrópole
aceitasse uma administração descentralizada das mesmas, com
25 Alguns autores discordam quanto a data exata do término das Guerras de Pacificação. Porém, a maioria deles aceita o fim deste período como sendo entre os anos de 1915 a 1920. Para este trabalho monográfico, optou-se por considerar 1918, pois segundo René Péllisier, foi o ano em que os Marcondes, último foco de resistência, foram derrotados. Para uma descrição detalhada das guerras e da resistência a penetração lusitana, bem como características básicas de cada povo nelas envolvidos, ver: PÉLLISIER, René. op. cit.
leis e regras que se adequassem às suas especificidades e graus de
civilização de suas populações. Foi desta forma que se organizaram
até o advento do Estado Novo, quando o princípio centralizador da
Metrópole se sobrepôs aos desejos de seus territórios ultramarinos26.
Uma das personagens mais proeminentes desta Geração foi Antonio
Ennes, que se tornou Comissário Régio de Moçambique e organizou os
primeiros anos da colônia.
Porém, importa aqui salientar que para entender melhor os motivos
que levaram às decisões acerca dos métodos de estruturação da colônia,
torna-se necessário analisar o contexto de sua Metrópole no período.
No final do século XIX, Portugal era um país essencialmente
agrário, mantendo-se nesta situação até meados do século XX.
Durante as décadas anteriores a Conferência de Berlim, o país havia
experimentado um crescimento industrial, embora não atingisse o
patamar alcançado por grande parte dos países europeus, e sua
produção foi essencialmente voltada para o mercado interno. O
país era, na realidade, um dos mais pobres do seu continente e não
possuía recursos minerais e florestais suficientes para sustentar, por
exemplo, uma grande produção industrial. Os seus principais produtos
de exportação (vinho, azeite e cereais) sofriam com a competitividade
de outros países. Além disso, sua população era de maioria pobre e
analfabeta, com recursos e potencialidades que dificilmente poderiam
impulsionar o mercado interno. Em outras palavras, Portugal estava
atrasado em relação aos países que se desenvolviam e cresciam
rapidamente. 26 Durante o período de colonização efetiva de Moçambique, ou seja, da Conferência de Berlim até a sua Independência em 1975, Portugal viveu três regimes distintos: Monarquia Liberal (1820-1910), República (1910-1926) e Estado Novo (1926-1974). Dominado pelo general Salazar, o Estado Novo era de orientação fascista e traria uma nova forma de organização tanto na Metrópole quanto no Ultramar: essencialmente centralizadora e autoritária.
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O país também havia se endividado com as já citadas Guerras
de Pacificação e, de acordo com o Tratado de 1891 com a Inglaterra,
deveria assegurar a construção de infraestrutura para que os portos
de Beira e Lourenço Marques pudessem escoar satisfatoriamente as
mercadorias vindas de possessões britânicas (Rodésia e África do Sul).
Moçambique tinha pouca comunicação com a Metrópole e não havia
praticamente nenhuma organização administrativa ou infraestrutura
que permitisse o seu desenvolvimento. Assim sendo, Portugal não
possuía condições financeiras para bancar com recursos próprios a
colonização de Moçambique. A solução foi abrir as portas ao capital
estrangeiro para efetivar e colonizar a região.
Diante disso, foram abertas concessões, por um período
determinado de tempo, de grandes áreas da colônia à Companhias
de capital estrangeiro, em sua maioria francês e inglês. Estas deveriam,
contudo, instalar a sua sede social na capital metropolitana, Lisboa.
Moçambique ficou dividido entre Companhias privadas, como a
de Moçambique, de Niassa e da Zambézia, e a Metrópole manteve
para si a região sul, Distrito de Moçambique. Este distrito ficou sob sua
administração direta, devido a três motivos: era uma área de grande
interesse britânico, devido ao escoamento das produções da Rodésia
e da África do Sul; era nesta região que se mantinha viva a memória
do “Império” de Gaza, grande inimigo de outrora; além de ser o local
que mais fornecia mão de obra para as minas e plantações da África
do Sul27. O sistema de Prazos persistiu em uma faixa entre os rios
27 As minas de diamante da região do Transvaal descobertas após 1870, e as plantações de cana-de-açúcar em outros países necessitavam de intensa exploração de mão de obra. Boa parte da demanda foi suprida pela “venda” de trabalhadores da região Sul de Moçambique. Angariadores reuniam indígenas para enviá-los a estas regiões sob um regime de trabalho que, embora remunerado, não lhes forneciam boas condições. Com o tempo, esta venda e a exportação de pessoas, inicialmente nas mãos de nativos e depois de Portugal, tornou-se mais
Ligonha e Zamzebe, até 1930, muito embora boa parte dos prazos
tenha sido comprada aos poucos pelas Companhias de Moçambique
e da Zambézia.
MAPA 4 – REGIÕES DE MINAS
Fonte: HERNANDEZ. op. cit. p.591.
As Companhias eram responsáveis por garantir a “pacificação”
e a segurança nas regiões instaladas, desenvolver sua infraestrutura,
dentre outras obrigações. Ao mesmo tempo, possuíam direitos sobre a
cobrança dos impostos e a exploração das riquezas e do solo, bem como
o controle e o recrutamento dos indígenas sob sua responsabilidade, se
necessário.
lucrativa que a própria exploração econômica da região. HERNANDEZ. op. cit. p. 591-592.
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Portugal, por sua vez, recebia um percentual dos lucros, tinha direito
aos bens das Companhias quando do término contrato de concessão e,
por último e não menos importante, preenchia as lacunas de poder e de
administração em locais que dificilmente conseguiria fazê-lo por si só.
Entretanto, as “concessionárias” tiveram resultados aquém do desejado pelos
lusitanos, com a exceção da Companhia de Moçambique, que conseguiu
cumprir parte das metas que lhe foram impostas no que tange ao seu papel
“colonizador”, além de conseguir os melhores resultados financeiros.
Ademais, somadas às dificuldades materiais, Portugal não
possuía o fundamental para uma colonização: recursos humanos. A
população que optava pela imigração, se deslocava para a América,
principalmente para o Brasil. Segundo Antônio Ennes, geralmente as
pessoas que elegiam este tipo de imigração eram laboriosas e teriam
sido bons colonos nas terras africanas.
Entretanto, em Moçambique não encontrariam o que o Brasil, por
exemplo, oferecia: estrutura de trabalho e sociedade já desenvolvidos,
além de oportunidades fora da agricultura. Na África, os imigrantes
teriam que começar do zero, em solo e condições desfavoráveis, tendo que
enfrentar todo o tipo de adversidades que, segundo Ennes, os lusitanos
não estavam dispostos a enfrentar. Em Moçambique eles deveriam se
tornar colonizadores, o que iria contra aos seus desejos, pois:
O que vão buscar ao Brasil é muito diferente do que teriam que teriam que fazer em África, se para lá se encaminhassem. Não vão lá criar cousa alguma, vão especialmente ser instrumentos de laborações já criadas e desenvolvidas; não tem que constituir sociedades novas, mas só que abrir lugar por si em sociedades já constituídas; e, especialmente, é no comércio e nos serviços inerentes a estados sociais adiantados e progressivos que encontram empregos ajeitados a sua actividade28.
28 ENNES, Antonio. A Colonização Europeia de Moçambique. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.12.
As condições de clima e solo exigiam uma exploração intensa
e a falta de colonos impunha o trabalho do negro que, segundo os
lusitanos, era indispensável tanto para o sucesso da colônia quanto
para a devida utilização do potencial agrícola e/ou econômico da
região. Era fundamental também que se encaminhassem à colônia
pessoas ou companhias que tivessem capital suficiente para promover
a exploração do trabalho indígena.
O elemento com que a Europa tem de concorrer para a exploração agrícola de Moçambique não é o braço, é o dinheiro. Braços há lá, e só os de lá servem. Quem imagina que o branco pode ir para as margens de Zambeze ou do Incomati trabalhar com uma enxada nunca apanhou sol em África; [...]. Para ser produtiva, a cultura há-de ser intensa; para ser intensa hão-de fazê-la os negros, dirigidos e pagos pelos Europeus. Mas os Europeus que poderão dirigi-la, pagá-la ou esperar os seus resultados não são por certo os Portugueses que emigram para o Brasil, precisamente porque não têm dinheiro e porque não querem esperar pela fortuna29.
Os colonizadores “precisavam” dos indígenas. Explorá-los era
a forma mais adequada, se não a única, de conseguir os lucros e o
desenvolvimento desejável para a colônia, segundo a visão colonialista.
Desta maneira, era imprescindível que se desenvolvesse uma política e
uma organização indígena que se voltasse a tal fim. Foi neste ponto em
que o econômico se entrelaçou de forma mais intensa ao ideológico, em
que este ajudou a determinar e a estruturar aquele. Afinal, um homem
atrás de lucro não era somente orientado por isso, pois “ele não ficava
imune a apelos políticos, emocionais, ideológicos, patrióticos ou mesmo
raciais associados de modo tão patente à expansão imperial”30.
Foi a visão de mundo do colonizador que moldou as formas com
que os negros moçambicanos foram tratados, legitimando tanto a sua
exploração quanto as políticas ligadas à ela.
29 ENNES.In: AGÊNCIA Geral das Colônias. op. cit. p.14.30 HOBSBAWM. op. cit. p. 95.
378Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
2 O COLONIZADOR E A QUESTÃO DO OUTRO: UMA RELAÇÃO DUAL
2.1 Portugueses Versus Indígenas: raça como um motivo
A relação com outros povos sempre despertou o interesse e a
curiosidade europeia. A partir do século XIV, entretanto, os contatos com
os nativos americanos, asiáticos e africanos fizeram com que o “Velho
Mundo” se visse diante de uma enorme gama de culturas distintas com
as quais “deveria” lidar para conseguir os fins que desejava. Diante
desta nova realidade, várias foram as teorias e os estudos acerca das
diferenças e da diversidade entre os povos.
Do exotismo que acompanhou estes encontros aos mitos criados
sobre eles, como o do “bom selvagem”, as visões sobre o “outro” não
europeu foram se alterando ao longo dos séculos31. Porém, para a
análise da visão portuguesa em relação aos nativos africanos neste
novo período de colonialismo, é necessário partir de uma perspectiva
que foi fundamental neste processo: o surgimento de um mito, próprio
da modernidade e do cientificismo que se desenvolveu com ela: o da
existência de raças humanas.
Embora empregado nas línguas europeias desde o século XVI, o
termo raça foi inicialmente introduzido por Georges Cuvier no início do
31 O exotismo é um apreço excessivo das características próprias do outro, nativo, em detrimento ao europeu. Já na imagem do “bom selvagem”, embora não tenha sido a principal visão em relação aos indígenas dentre os séculos XVI à XVIII, os nativos eram caracterizados como naturalmente bons e inocentes. Rousseau retomou esta ideia no século XVIII. Não serão aqui dispostas, entretanto, todas as teorias acerca dos nativos americanos, africanos e asiáticos que se desenvolveram com a modernidade. Apenas o que se pretende é afirmar que desde o século XV, várias foram as vozes que interpretaram estes “outros”, estes diferentes.
século XIX, para se referir às diferenças e/ou variedades entre os grupos
humanos. A partir deste autor, e dos diversos trabalhos que se seguiram,
a existência de raças humanas passou a ser considerada como um
elemento de verdade, quase que incontestável nos mais variados meios,
principalmente entre o intelectual, o político e o cultural32.
As raças entre humanos seriam semelhantes as existentes no mundo
animal, portanto deveriam ser analisadas com a mesma objetividade
com que se estuda este meio. Os humanos passariam, ainda seguindo
esta linha, pelos mesmos processos evolutivos ou leis biológicas que
os animais. Segundo o antropólogo Cyde Kluckhohn, em seu livro
Antropologia: um espelho da alma, publicado em 1949, no que concebe
a “biologia geral, o têrmo ‘raça’ ou ‘variedade’ é empregado para
designar um grupo de organismos que se assemelham fisicamente uns
aos outros, em virtude de sua descendência de passados comuns”33.
A partir da noção de raça, as diferenças e as variedades da
humanidade foram postas por um determinismo proveniente do
pertencimento em um ou outro grupo que, a partir da publicação em
1859 de a Origem das Espécies, passariam a ser classificados de acordo
com um sistema evolutivo, ainda que esta não fosse a intenção e/ou a
proposição de seu autor, Charles Darwin, ao publicar o livro34. 32 O debate entre os oposicionistas desta versão existiu, mas não foi suficiente para tirar a hegemonia deste pensamento durante o período citado. O termo raça não é mais utilizado nas literaturas antropológicas, sendo substituído por conceitos como etnia e cultura. Isto não quer dizer que ele ainda não apareça. Um exemplo disto seria os movimentos identitários em torno da “raça” negra, por exemplo. 33 KLUCKHOHN, Clyde. Antropologia: um espelho para o homem. Belo Horizonte: Itatiaia, 1972. p. 105. (grifos do autor)34 A Antropologia como ciência autônoma nasceu no século XIX ligada ao colonialismo e às sociedades ditas primitivas. Esta ciência “acompanhou” o colonizador e lhe forneceu justificação teórica para seus atos, pois se alicerçava na crença da existência de raças que estavam em estágios diferentes de evolução, progresso e civilização, fomentando a relação de superioridade do europeu
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 379Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
As teorias baseadas na existência de raças influenciaram profundamente a ideologia que envolveu o neo-colonialismo do final do século XIX. Foram especialmente a partir delas que a alteridade referente aos novos contatos gerados nas terras conquistadas foi compreendida e que o imperialismo que se desenvolvia foi justificado. Porém, o presente trabalho monográfico utiliza-se de um “tipo ideal” idealizado por Tzetan Todorov35, que congrega as principais características comuns à maioria das doutrinas racialistas, assim nominadas por Todorov por se basearem na existência de raças distinta entre os homens.
Para Todorov, o racismo é ao mesmo tempo um comportamento depreciativo ou de ódio aos fisicamente diferentes e uma ideologia que se refere às raças humanas. Um teórico das raças pode ou não ter comportamentos racistas em seu sentido mais usual, mas as duas características não apresentam relação direta entre si. Com base em um “tipo ideal”, o autor descreve as características principais que ainda que uma ou outra esteja ausente em versões revisionistas sobre o tema estão presentes nas teorias racialistas:
1. La existencia de las razas. La primera tesis consiste, evidentemente, en afirmar la real existencia de las razas, es decir, de agrupamientos humanos cuyos miembros poseen características físicas comunes. […] 2. La continuidad entre lo físico y el moral. […] Cierto es que puede haber varias culturas por raza; pero desde el momento que en que hay variación racial, hay también cambio de cultura.[…] 3. La acción del grupo sobre el individuo. El mismo principio determinista actúa también en otro sentido: el comportamiento del individuo depende, en gran medida, del grupo racial cultural (o “étnico”) al que pertenece. […] 4. Jerarquía de valores. El racialista no se contenta con afirmar que las razas son diferentes; cree también que son superiores o inferiores, una a las otras, lo que implica que dispone de una jerarquía única de valores, de un cuadro evaluativo
em relação às culturas e sociedades nativas. LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 54-69.35 TODOROV, Tzetan. Nosotros y los otros: reflexión sobre la diversidad humana. Mexico DF: Siglo XXI, 1991.
conforme al cual puede emitir juicios de valores. […] 5. Política fundada en el saber. […] Una vez establecidos los “hechos”, el racialista extrae de ellos un juicio moral y un ideal político.[..]”36
O contexto ideológico racialista influenciou não somente a maneira
como a colonização do final do século XIX foi justificada, mas como
os estudos sobre as populações nativas africanas e asiáticas e as leis
imputadas a elas foram pensadas e desenvolvidas.
Com Portugal não foi diferente. Os aspectos comuns das teorias
racialistas descritos por Todorov são observáveis em comunicações,
leis, estudos e relatórios oficiais daquele país relacionados às suas
colônias africanas. A primeira característica destas teorias, a crença na
existência de raças diferentes entre si, está intimamente presente na
relação portuguesa-africana. Contudo, antes de discorrer sobre como
os lusitanos encaravam a raça africana e se relacionavam com ela, faz-
se necessário questionar quem era, para eles, um indígena.Dois fragmentos de leis, de períodos diferentes, podem fornecer
uma visão mais clara sobre como os indígenas eram considerados pelos portugueses. A primeira destas definições está presente no Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique de 1926, em seu artigo 3º:
36 “1. A existência das raças. A primeira tese consiste, evidentemente, em afirmar a real existência das raças, que dizer, de agrupamentos humanos cujos membros possuem características físicas comuns. […] 2. A continuidade entre o físico e o moral. […] É certo que possam haver várias culturas por raça; mas a partir do momento em que há variação racial, há também mudança de cultura.[…] 3. A ação do grupo sobre o indivíduo. O mesmo principio determinista atua também em outro sentido: o comportamento do individuo depende, em grande medida, do grupo racial cultural (ou “étnico”) a que pertence. […] 4. Hierarquia de valores. O racialista não se contenta em afirmar que as raças são diferentes; crê também que são superiores ou inferiores, umas às outras, o que implica que dispõem de uma hierarquia única de valores, de um quadro avaliativo conforme o qual podem emitir juízos de valor. […] 5. Política fundada no saber. […] Uma vez estabelecidos os “feitos”, o racialista extraí deles um juízo moral e um ideal político.[..]” (Tradução livre do autor). TODOROV. op. cit. p.115-119. (grifos do autor)
380Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Para efeitos do presente estatuto, serão considerados indígenas os indivíduos da raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça37.
Já a segunda está contida no artigo 2º do Estatuto do Indigenato
de 1954, que buscava reger as relações indígenas nas províncias
ultramarinas portuguesas:
Consideram-se indígenas das referidas províncias os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses38.
Através destas definições, percebe-se que um indígena era
considerado alguém que pertencesse a uma raça específica: a
negra. As suas características e costumes, portanto, eram inerentes
à sua própria condição de cor. Além do mais, seus atributos seriam
facilmente distinguíveis daqueles considerados como civilizados ou
relativos a um português e, por isso, não lhes eram designados os
mesmos direitos ou pressupostos legais que aos brancos. O indígena
era o “outro”, o diferente, o que não se comportava como o “eu” e,
portanto, não poderia ou conseguiria seguir os padrões europeus.
Mas o simples não pertencimento a um determinado grupo não
impediria, por si só, a superação deste estado “selvagem”. Ao negro
eram imputadas outras características que, segundo a lógica branca,
dificultaria este processo. 37 PORTUGAL. Decreto nº 12.533, de 23 de outubro de 1926. Promulga o estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.237, 23 out. 1926, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 08.ago.2012.38 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 39666, de 20 de maio de 1954. Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.110, 20 mai. 1954, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011
A análise de algumas peças da legislação de Portugal referentes
ao período de 1895 à 196139 e de algumas fontes escritas por
administradores ou pesquisadores, conduziu a percepção de que a
descrição das raças branca e negra era feita de maneira polarizada.
De um lado, tem-se a positivação dos “predicados” do “eu” português,
em detrimento ou da inferiorização dos costumes e das características
africanas ou da afirmação daquilo que o negro não é suposto ter ou
ser. Havia, assim, uma dualidade neste sentido: o positivo versus o
negativo.
Podemos encontrar um exemplo da positivação do caráter lusitano
em Artur Maciel que, em seu artigo de 1943 O caráter da raça e o
sentido das navegações, buscou contrapor o pensamento de estudiosos
estrangeiros de que os portugueses possuíam essencialmente uma alma
de aventureiros do mar. Este autor classificava o português histórico
como “um povo sóbrio, paciente e tenaz”. Além do mais, afirmava que
sua “raça não desobedeceu à geografia. Cumpriu sua fé religiosa e
a sua razão política de existência: é de agricultores por natureza e de
marinheiros por missão”40.
Em outros momentos, os portugueses eram descritos como altivos,
trabalhadores, heróis, civilizados, puros, inteligentes, dignos, dentre
outros, atributos que foram postos para advogar pela sua causa,
inclusive, para justificar o trabalho obrigatório que deveria ser realizado
por parte dos indígenas. Porque, segundo este autor, Portugal era
mesmo após “impor a obrigação do trabalho, o soberano mais benigno
39 A legislação analisada se refere àquelas grandemente citadas pelos pesquisadores da colonização africana portuguesa. Não se pretendeu analisar o todo do conjunto legal, mas as leis que, de alguma forma, alteraram ou foram decisivas para a relação indígena-europeu.40 MACIEL, Artur. O carácter da raça e o sentido das navegações. In: AGÊNCIA Geral das Colónias. Boletim Geral das Colónias, Lisboa, n.213, p.163-164, 1943. Disponível em: http://memoria-africa.ua.pt. Acesso em: 10.mai.2012
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 381Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
e mais humanitário” dentre os que dominavam o continente africano41
(grifo do autor).
Na lei datada de 1961 que extinguiu a divisão entre indígenas,
assimilados e portugueses, transformando todos igualmente em
cidadãos, o caráter positivo luso se manteve para justificar a colonização
africana anterior. O Decreto-Lei nº 43893 afirmava que os portugueses
eram herdeiros de uma tradição que “sempre” reconheceu os outros
povos, as diferentes culturas e as instituições políticas tradicionais. Além
disso, dentro de sua inquebrantável linha de conduta, os portugueses
procuraram garantir a dignidade e os direitos de todos que estavam
sob si, sendo o seu caráter humanista inclusive um exemplo, já que os
lusitanos possuíam o “único humanismo que até hoje se mostrou capaz
de implantar a democracia humana no Mundo para onde se expandiu
o Ocidente”42
No entanto, para além e aquém de todas as representações
e características da alma portuguesa que tinham, havia algo que
sobressaía e que, mesmo por vezes sendo mitigado em discurso, era
marcante: a suposição de superioridade lusitana ante ao nativo africano.
Os europeus não somente pertenciam a uma raça diferente, como
também esta era igualmente superior as demais. Havia, portanto, uma
hierarquia de raças e de valores, sendo que a raça branca e a cultura
europeia ocidental estavam no topo dela. Dessa forma, os valores
portugueses eram tomados como referência, em termos absolutos.
Esta visão de mundo lusitana balizaria e julgaria o espaço africano,
41 ENNES, António; et al. O trabalho dos indígenas e o crédito agrícola. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.29.42 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 43893, de 06 de setembro de 1961. Revoga o Decreto-Lei nº 39666, que promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.207, 6 set. 1961, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011.
inferiorizando ou criticando aquilo que da cultura nativa contrastasse
ou contestasse seu modo de vida civilizado.
A inferioridade negra foi considerada inata por muitos e o “racismo
científico” dos séculos XIX e XX, apoiado na Antropologia física e em
outras ciências, ajudou a justificar e pormenorizar estas diferenças.
Havia, contudo, vozes que pregavam a diminuição da disparidade
entre as raças, através da promoção do progresso e da civilização entre
as raças consideradas inferiores, como é o caso de Andrade Corvo43,
porém suas ideias, de maneira geral, foram abafadas.
Importa aqui ressaltar que para Norbert Elias, o termo “civilização”
pode remeter a vários aspectos, que compreendem desde fatores
tecnológicos a componentes culturais. Ser ou não civilizado pode,
portanto, denotar significados diversos. Porém, em sua função geral,
civilização como conceito está ligada a noção ou “a consciência que o
Ocidente tem de si mesmo”, ou seja, as maneiras, os costumes, as visões
de mundo e outras características Ocidentais que são próprias e que
fornecem a esta porção do planeta seu caráter ímpar em relação aos
demais. Além disso, o termo civilização “resume tudo o que a sociedade
ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades
mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’”44.
Exemplificando melhor, segundo Elias para os ocidentais era a “sua”
visão a mais correta e a que seria o modo com que os “outros”, inclusive
os não ocidentais, queriam ou desejariam ser julgados ou vistos, bem
como o que deveriam ser.
A partir do século XIX, civilizar tornou-se palavra de ordem aos
europeus e um elemento fundamental de suas doutrinas colonialistas.
43 Andrade Corvo foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, acumulando as pastas do Ultramar e Marinha de Portugal da década de 1870.44 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 23. (grifo do autor)
382Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
No caso português, este era um valor basilar nos contatos com seus
territórios ultramarinos. Não que este valor suplantasse os desejos
econômicos ou políticos, mas, para que estes fins fossem alcançados,
era necessário que se desenvolvessem os mecanismos de contato com
os povos nativos. Civilizá-los era uma maneira de cooptá-los para tal
fim. Afinal, como afirma o professor Rui Ulrich entre 1909 e 1910, “a
política colonial não visa unicamente à exploração da colónia, propõe-
se ainda exercer sobre os indígenas uma acção civilizadora”45.
Assim sendo, esta ação civilizadora envolvia, fundamentalmente,
a relação de superioridade e inferioridade intimamente ligada no
pensamento europeu do período. O português (branco, cristão e
europeu) possuía valores, costumes, técnicas, pensamento, inteligência,
moral, religião e senso superiores ao do indígena, que se encontrava em
um estágio de civilização e desenvolvimento inferiores ao dos europeus.
Tratava-se para muitos de uma raça que não havia conseguido atingir
um patamar superior, “de uma raça que até hoje, no decurso de séculos
sem conto, não produziu por esforço seu espontâneo um só rudimento
de civilização”46, conforme analisaram os co-autores do relatório O
trabalho dos indígenas e o crédito agrícola, do final do século XIX.
Embora alguns autores e legisladores acreditassem na improvável
civilização da raça negra, outros acreditavam que isto seria possível.
Porém, mesmo estes estudiosos, como era o caso do teórico colonial
Marnoco e Silva, defendiam um processo que demandaria um longo
período de tempo e que deveria ser conduzido sob os auspícios daqueles
que possuíssem qualidades superiores. 45 ULRICH, Rui. Regime das Terras dos Indígenas. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.123.46 ENNES, António; et al. O trabalho dos indígenas e o crédito agrícola. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.28.
No caso português, civilizar era considerado um dever, que se esboçava em missão a ser desempenhada pelo país. À Portugal caberia, por finalidade, expandir a civilização aos povos ditos “primitivos” ou “atrasados”, pois a sua vocação para tal fim já havia sido comprovada pelo histórico de sua expansão colonialista e de contatos com os “outros” que tivera desde então. Ademais, o país possuía valores materiais e imateriais superiores, que deveriam ser propagados àqueles que estavam sob seus domínios ultramarinos.
Contudo cabe aqui ressaltar que Norbert Elias47 afirmava que o significado dado ao termo civilização não era o mesmo em cada país, embora entre ingleses e franceses este conceito possuísse semelhanças: uma vez que estas nações consideram a civilização como um processo ou um resultado dele, algo que se movimentava e possuía a função de sempre se direcionar à frente, para o futuro, para o mais além. Portanto, pode-se inferir que termo civilização foi historicamente construído e se relacionou as experiências comuns de determinado povo ou classes48.
A forma com que Portugal encarava a sua missão civilizadora se assemelhava a esta concepção de processo ou de resultado discutida por Elias. Para os portugueses, a sua própria civilização era resultado de uma herança, de um legado oriundo de um passado grandioso que construiu o seu caráter, ao mesmo tempo em que era vislumbrado como um processo, mesmo que longo, o qual desejavam inculcar os seus próprios valores e técnicas naqueles que, uma vez selvagens, não a possuíam. O resultado esperado deste processo era a transformação dos indígenas em civilizados, algo que seria extremamente benéfico aos mesmos. Os nativos, desta forma, obteriam o tão importante progresso material e moral, evoluindo para estágios mais avançados
de desenvolvimento. Esta seria a vocação portuguesa.
47 ELIAS. op. cit.p.24. 48 ELIAS. op. cit. p. 25-26.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 383Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Era este o sentido, por exemplo, defendido por Marnoco e Silva
ao afirmar que: “a nossa civilização superior, em lugar de ser um
flagelo terrível, pode ser uma fonte de benefícios para estes indígenas,
favorecendo e apressando sua evolução material, intelectual e moral49.
A presença portuguesa não era, portanto, essencialmente prejudicial aos
nativos, pois poderia se tornar muito mais do que a simples exploração
econômica ou o povoamento do território, afinal ela elevaria os
indígenas a um nível superior que, sozinhos, não alcançariam, devido
as próprias características inerentes à sua raça.
Os negros eram representados nos textos analisados por adjetivos
que ora os opunham aos brancos ora denotavam sua inferioridade. Entre
as representações mais comuns encontram-se a de rudes, selvagens,
primitivos, inferiores intelectualmente, brutos, atrasados, supersticiosos,
incivilizados, dentre outras. Não estavam no mesmo grau de civilização
ou nível dos portugueses, cujas leis, regras, costumes, instituições e
valores eram tidos como superiores aos seus.
Ao discutir o papel da Igreja como agente no processo civilizador
dos negros Mouzinho de Albuquerque50, por exemplo, afirmava
que:
provàvelmente por ter a raça negra ainda muito caminho a percorrer para chegar ao estado preciso para bem receber uma religião sòmente aceita pelos brancos, quando num período de civilização e desenvolvimento intelectual relativamente adiantados51
49 MARNOCO E SOUSA, José. Regime jurídico das populações indígenas. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.102.50 Mouzinho de Albuquerque foi considerado herói devido à sua liderança na derrota do reino de Gaza ao sul de Moçambique, durante as guerras de ocupação.51 ALBUQUERQUE, J. A. Mouzinho de. O regime militar e as missões religiosas. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.72.
Logo, para Albuquerque, os negros se encontravam em um nível
intelectual e de desenvolvimento inferior ao dos portugueses e devido
a este estado, seria muito difícil que absorvessem uma religião como a
católica, bem como instituições genuinamente branco-europeias.
Muitas vezes a comprovação destas diferenças entre as raças era
feita através da utilização de recursos científicos. No caso das análises
sobre os comportamentos e características dos povos dominados, havia
uma predominância do uso de conceitos e teorias da Antropologia
física e da Biologia étnica. Os próprios estudos antropológicos,
projetados como ciência, surgiram vinculados às Ciências biológicas
e/ou físicas. Como exemplo de estudos ditos “científicos” sobre a raça
negra, temos um trabalho apresentado por Maria Irene Leite Costa
no I Congresso Nacional de Antropologia Colonial, em 1934. Esta
autora baseou-se em testes e métodos psicotécnicos para analisar
alguns indígenas angolanos presentes no evento52. Ao comparar o
nível intelectual destes com o de crianças portuguesas, a pesquisadora
chegou a conclusão de que “os indígenas de Angola [têm] um nível
mental correspondente ao das crianças europeias entre os 6 e 13
anos”53. Foram testes como este que ajudaram a fundamentar o
racialismo do período.
52 As análises baseadas na “Antropologia Física” (exemplo: o estudo de partes do corpo para determinar características dos nativos, como o tamanho dos crâneos) e na “Biologia étnica” (mestiçagem, por exemplo) presentes nos congressos coloniais realizados na década de 1930 demonstravam, na opinião dos autores Rosa Cabecinhas e Luís Cunha, o caráter anacrônico das mesmas, já que em outros países, estes tipos de estudos estavam sendo contestados, como era o caso dos EUA. CABECINHAS, Rosa; CUNHA, Luís. Colonialismo, identidade nacional e representações do “negro”. Estudos do Século XX, Braga, n.3, p. 157-184, 2003. Disponível em: http://www.cecs.uminho.pt. Acesso em: 24.jul.201253 Os testes aplicados pela pesquisadora são chamados de Burt. Trata-se de solicitar a crianças entre 10 a 12 anos que construam uma frase com 3 palavras dadas, de acordo com alguns critérios para tal. As crianças angolanas não entenderam os critérios. DA COSTA.ap.CABECINHAS, Rosa; CUNHA, Luís.op. cit. p.13.
384Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Diante do exposto, é lícito afirmar que na relação de Portugal
com suas colônias africanas havia o que Todorov descreve como uma
continuidade entre o físico e o moral. A cor da pele ou características
físicas determinavam não somente a cultura a qual um grupo pertencia,
mas o moral, o comportamento e as competências que um indivíduo
dentro dele teria ou não. Da mesma forma que o pertencimento a uma
raça moldaria o indivíduo, produziria o que ele é54. Indivíduo, aliás,
que estava quase ausente nos textos oficiais e nas leis portuguesas
analisadas, nas quais os colonizados sempre eram retratados através
de generalizações. Havia no continente africano diversas etnias e
Moçambique não fugia a esta regra como já citado, as muitas etnias
que lá habitavam eram tratadas por alcunhas generalizantes como
indígenas, negros ou pretos (este último em menor grau que os
demais).
O negro e sua realidade ou possibilidade futura, era determinado
pelo seu físico e pela sua raça. Um exemplo deste determinismo surgiu
em uma análise realizada pelo médico Brito Camacho, em 1926. Ao
analisar a preguiça entre os negros, genericamente, ele a atribui a uma
“qualidade” inerente à própria raça que estes pertenciam. Já em relação
à raça branca, ela prioritariamente era uma qualidade individual, ou
seja, apenas algo que podia ser visto em uma ou outra pessoa, mas que
não chegaria a se tornar referencial para o grupo. Sendo assim:
Esta afirmação genérica – negro é preguiçoso, o negro é trabalhador ruim, - entende-se particularmente com o aborígene das regiões tropicais. Ainda não fez uma classificação de raças com base na preguiça; mas assentou-se há muito, em que a preguiça é nos brancos uma qualidade do indivíduo, e nos pretos um predicado de raça55
54 TODOROV. op. cit. p. 117.55 CAMACHO, Brito. A preguiça indígena. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.191.
Analisando as causas desta preguiça e se ela era de ordem
antropológica, Camacho chegou à conclusão que o fato de os negros
não possuírem as mesmas necessidades que os brancos, fazia com que
precisassem de pouco para viver e, por isso, não se esforçassem tanto
para serem bons trabalhadores. Ao civilizar as populações negras, os
portugueses precisariam criar novas necessidades que os direcionassem
ao trabalho, único meio de satisfazê-las. A proximidade com o branco
e as novas demandas de consumo despertariam a boa vontade
para o labor. Afinal, para Camacho, “o preto é janota; gosta de se
enfeitar. É imitador como o macado e o seu modelo, naturalmente, é
o branco”56.
Outra representação recorrente em relação aos africanos era a sua
classificação como crianças adultas, mais um reflexo da inferiorização a
eles imputada. Isto significava na incapacidade que estes nativos teriam
de agir e pensar como adultos e, desta forma, gerir e tomar decisões de
maneira racional, como acontece a qualquer criança. De acordo com
esta ideia, era necessário que alguém agisse na figura de um “pai”,
protegendo estas “crianças” de suas próprias fraquezas e as orientando
para o caminho certo: o da civilização. Esta ação paternalista em relação
aos súditos africanos foi consubstanciada na figura tutelar do Estado
português, autoridade proclamada em textos oficiais e legitimada no
corpo de regras jurídicas relativas ao indigenato.
À Portugal, portanto, competiria o dever de proteger os nativos,
visto que estes, devido a sua inferioridade e atraso intelectual, não
saberiam reger seus bens e suas próprias figuras. Quantos aos seus
bens, caberia ao governo o dever de garantir o direito dos indígenas
à propriedade privada, ainda que este conceito estivesse ausente em
suas culturas tradicionais. Os territórios nativos deveriam ser mantidos
56 CAMACHO. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. op. cit. p.193.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 385Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
nas mãos de seus proprietários de direito, os indígenas, para que estes
pudessem manter suas necessidades de sobrevivência. Para Rui Ulrich,
“é claro que o estado atrasado de civilização dum povo não é razão
suficiente para ele ser privado de todos os seus direitos”57, e era com
olhos voltados a este interesse, que o Estado deveria agir.
Porém, garantir o direito à propriedade não poderia impedir
a Metrópole de conseguir alcançar seus fins em relação às colônias
que possuía, pois, ainda de acordo com Ulrich tornava-se “necessário
todavia não exagerar o respeito pela propriedade indígena permitindo
a inutilização de territórios vastíssimos e a existência de obstáculos
insuperáveis à acção civilizadora”58.
Dificilmente uma nação colonizadora em busca de lucros iria
abster-se de obtê-los por um dever de tutela em relação aos nativos do
local que domina. Embora a afirmação deste professor e jurista esteja
alicerçada no contexto dos primeiros momentos da ocupação efetiva,
legislações posteriores continuaram a afirmar o direito dos indígenas à
propriedade territorial. O único subterfúgio jurídico para que as terras
indígenas fossem expropriadas estava ligado as chamadas necessidades
de utilidade pública ou emergenciais. Não é objetivo deste trabalho
aprofundar o conhecimento sobre a quantidade de propriedades
retiradas das mãos dos africanos que viviam em colônias portuguesas,
no entanto não estaria incorreta a afirmação de que muitas delas foram
expropriadas sobre este pretexto.
A legislação portuguesa do período evocado por esta pesquisa
também estendia a tutela do Estado aos usos e costumes indígenas,
expressão que generalizava a vastidão de etnias e culturas com as quais
os portugueses estavam em contato. Estes usos e costumes deveriam ser
57 ULRICH. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p.125.58 ULRICH. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p.126.
protegidos e mantidos, desde que não ferissem os valores considerados
pelos lusitanos como primordiais ou atentassem contra a moral vigente,
os ditames da humanidade ou a soberania do Estado. Os indígenas
poderiam, desta forma, reger-se por suas próprias regras, desde que
estas seguissem as premissas acima descritas e que fosse mantida a
obrigatoriedade dos impostos a serem pagos ao governo. Isto não
significava, em absoluto, que a Metrópole concordasse em mantê-
las permanentemente como tais. Ela possuía como intento alterá-las
ou aproximá-las dos seus próprios usos, costumes e instituições. Esta
mudança deveria, contudo, ocorrer de forma gradual e suave, conforme
indicava o fragmento de lei abaixo:
Ao se aplicarem os usos e costumes indígenas as autoridades procurarão, sempre que possível, harmonizá-los com os princípios fundamentais do direito público e privado português, buscando promover a evolução cautelosa das instituições nativas no sentido indicado por estes princípios59.
A proteção das características culturais, políticas e econômicas
próprias dos africanos escondia, na verdade, uma intenção de que estes,
num futuro ainda que distante, assimilassem os valores considerados
superiores/civilizados. Para tanto, a transformação não poderia ser
bruta, sob o risco de despertar revoltas. Desta forma, estes deveriam
seguir outro tipo de lei.
Uma das primeiras discussões que seguiram a instalação do poder
metropolitano nas colônias foi justamente em torno da forma legal de
organizar e controlar os seus nativos. A promulgação do Acto Adicional60
59 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 39666, de 20 de maio de 1954. Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.110, 20 mai. 1954, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.201160 A Carta Constitucional de Portugal vigorou de 1842 à 1910. Esta constituição teve três aditivos: 1852, 1885 e 1896.
386Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
em 1852, antes mesmo da posse de grandes territórios no continente
africano, já apontava para o fato de que no sistema Legislativo das
colônias deveria imperar os princípios de urgência e de especialidade.
O princípio da urgência determinava que devido a necessidade de uma
agilidade maior na a aprovação de leis específicas para o ultramar, estas
não deveriam passar pela aprovação parlamentar metropolitana. Já o da
especialidade defende leis diferentes para a colônia e para a Metrópole.
De acordo com a visão portuguesa, o atraso das populações
nativas e as suas próprias condições de existência impediriam que os
mesmos fossem capazes de entender ou respeitar as leis metropolitanas.
Segundo Mouzinho de Abuquerque, um dos militares que coordenaram
a ocupação em Moçambique, imputar aos indígenas as leis e a
organização administrativa da Metrópole seria funcionalizá-los e não
civilizá-los, pois estas leis não melhorariam o abismo que existia entre o
estado social dos indígenas e o dos metropolitanos61.
Aplicar aos negros as mesmas regras dos brancos faria com que
estas se tornassem contraproducentes e sem efeito algum. Tornava-
se imperiosos desenvolver mecanismos legais e de administração
que estivessem em harmonia com o estágio de desenvolvimento das
populações, seu nível de inteligência, suas necessidades e suas condições.
Sob esta premissa, desde a ocupação efetiva foram desenvolvidas
leis e estruturas administrativas específicas para os indígenas, que
se distinguiam daquelas aplicadas aos cidadãos portugueses. Era,
portanto, um regime especial para os nativos, que se manteve ainda
que com o tempo alguns códigos, preceitos, ou até mesmo o discurso
se alterassem.
Na última década do século XIX, optou-se organizar
administrativamente os indígenas criando um método especial,
61 ALBUQUERQUE. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p.68.
diferente daquele destinado aos cidadãos portugueses. Embora a
descentralização administrativa tenha sido oficializada apenas em
1910, suas bases foram lançadas quando da ocupação efetiva. O
sistema criado para os indígenas de Moçambique implicava na divisão
dos grupos nativos em circunscrições indígenas. Os chefes tradicionais
que não incitassem oposição teriam suas funções mantidas. Porém, as
sociedades tradicionais de uma determinada circunscrição teria como
autoridade máxima seria de um chefe. Este chefe consolidaria em si as
funções de administrador e de juiz, bem como autoridade de polícia.
Além do mais, deveria manter relações com os chefes tradicionais e
zelar para o cumprimento das leis e regras concernentes ao estágio
de desenvolvimento dos indígenas sobre sua administração. Este
chefe/administrador de circunscrição responderia a um governador de
distrito, que estava hierarquicamente abaixo do Governador Geral de
Moçambique.
Conforme definição de Todorov62, muitas vezes o “saber” sobre as
raças se traduzia em políticas baseadas na “ciência” para justificar a
submissão dos grupos considerados inferiores a leis e a regras que não
eram as suas. Este neste ponto em que, segundo este autor, o racialismo
se unia ao racismo. Os códigos jurídicos e a organização político-
administrativa dos nativos eram especiais, ou seja, diferentes daqueles
direcionados aos cidadãos portugueses, e foram utilizados não somente
como justificação da relação entre o colonizador e o colonizado, mas
também como legitimação das formas de controle e utilização da mão de
obra indígena em prol de um ideal maior: a colonização. Neste sentido,
verifica-se que a política portuguesa estava fundamentada no saber
racialista, uma vez que baseava suas decisões políticas, administrativas
e sociais em diferenças concernentes ao pertencimento a raça branca
62 TODOROV. op. cit.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 387Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
ou a negra, que ao mesmo tempo eram distintas e distantes em termos
de civilização.
As visões de mundo, assim como as necessidades, são elementos
históricos e, portanto, mutáveis de acordo com o contexto, ainda
que determinadas permanências sejam observadas. O colonialismo
português não fugiria a esta regra, conforme será analisado a seguir.
2.2 O Estado Novo: a retomada da Missão Civilizadora
Durante a I República (1910-1926), o governo português valeu-
se de suas colônias ultramarinas para fomentar a mobilização política
em torno de seus ideais. Porém, do ponto de vista econômico, o elo
colônia-Metrópole não se fortaleceu de maneira satisfatória durante
este período, uma vez que o comércio entre estes entes, inclusive,
apresentou um decréscimo.
Já o interesse voltado ao conhecimento e a política indígena
aumentou, mas se traduzir em uma quantidade realista de mecanismos
e de instrumentos para a realização de tal vontade. Contudo, algumas
ações foram estimuladas para investigar os usos e os costumes dos
nativos africanos, como a execução de um inquérito etnográfico, em
1912, e a criação do Serviço de Negócios Indígenas, nesta mesma
década. A Grande Guerra e os problemas econômicos que se seguiram
a ela causaram graves dificuldades aos projetos coloniais portugueses,
mitigando o entusiasmo em relação a eles.
Com a consolidação do Estado Novo, a partir de 1926, havia uma
clara necessidade de tornar as colônias africanas rentáveis para esta
Metrópole, pois ela continuava enfrentando dificuldades econômico-
financeiras. Para tanto, seria fundamental olhar para a questão indígena com mais esmero. Assim, para reforçar o relacionamento entre os colonos e os seus colonizados foi desenvolvido um conjunto de leis e regulamentos destinados aos nativos, tamanha era a importância em se lucrar através da “ajuda” deles.
No Estado Novo, a lógica dual entre o colonizador e o colonizado, baseada nos saberes racialistas, foi retomada com mais fôlego e intensidade. As diferenças e a diversidade voltaram a ser discutidas e postas em foco, assim como o dom colonizador que os lusitanos acreditavam possuir.
A convicção de que caberia a Portugal uma missão civilizadora, e que este era detentor de uma grande vocação para tal, foi fortalecida nesta nova configuração política. Esta vocação civilizadora, considerada essência da nação portuguesa, foi aludida em vários textos e legislações do período colonial estudado. O caráter formal, entretanto, se deu com mais intensidade no Ato Colonial de 1930, em seu 2º artigo63:
É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função história de possuir e colonizar os domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nêles se compreendam, exercendo também a influência moral que é adstrita pelo Padroado do Oriente64
63 O Acto Colonial foi uma resposta do novo governo que se afirmava à necessidade de regulamentar e consolidar a posição de Portugal como potência colonial. Este conjunto de regulamentações foi discutido em um ambiente de crise internacional e, segundo o governo metropolitano, substituiria as leis coloniais dispostas na Constituição do país de 1911. Segundo a professora Amélia Neves, “O Acto Colonial( ), será a expressão institucional do imperialismo colonial do Estado Novo nele se definindo os princípios fundamentais da política colonial a prosseguir”. DE SOUTO, Amélia Neves. O Acto Colonial, Moçambique 1930-1932: trabalho, imigração, descentralização. In: SANTOS, Maria Emília M. (Org.). A África e a instalação do sistema colonial (c.1885-c.1930): III Reunião Internacional de História de África – Actas. Lisboa: ICCT, 2000. p.231-242.64 PORTUGAL. Decreto nº 18570, de 05 de julho de 1930. Aprova o Acto Colonial, em substituição do título V da Constituição política da República Portuguesa. Diário do Governo, Lisboa, n.156, 8 jul. 1930, I Série. Disponível em:
388Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Embora o ideal de missão evangelizadora atrelada à expansão
colonial não tivesse o mesmo significado que outrora65, este foi
o momento em que as relações do Estado com a Igreja Católica se
estreitaram e culminaram com acordos entre ambos que visavam a
educação e a possível conversão dos nativos. A própria propagação da
civilização portuguesa também implicaria a relação moral advinda da
proximidade com o catolicismo, como nota-se no trecho de lei acima.
Porém, era essencial para o regime que se consolidava buscar meios
que pudessem, ainda que gradualmente, desenvolver a civilização entre
aqueles que não a possuíam, com todos os costumes e características
nela envolvidas,66 o que significaria projetar e afirmar a vocação do
colonialismo português.
Foi no Estado Novo que a expressão Império surgiu pela primeira
vez e se consolidou como meio de definir esta Metrópole e suas
possessões ultramarinas67. Sob esta designação procurou-se objetivar
um unidade nacional em torno de uma vastidão ultramarina, onde
as diferenças e a diversidade étnicas e político-econômicas eram
marcantes. Um “grande” Império que, mesmo espalhado por diversos
cantos do planeta, ainda precisava de sobremaneira afirmar-se política-
economicamente. Porém, “pode mesmo dizer-se que, embora no plano
político e jurídico se expresse a intenção de promover o desenvolvimento
económico, parece ser mais ao nível simbólico que o Império assume
http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.201165 Quando Portugal iniciou sua expansão marítima, ainda no século XIV, não bastava somente conquistar terras ou dominá-las. Era preciso aproximar as populações destes locais da fé católica. Desta forma, expandir a religião fazia parte de uma missão evangelizadora. Com a modernidade e a laicização da ciência, colonizar não mais teria este sentido. 66 Um dos mecanismos reforçados pelo Estado Novo seria a política assimilacionista.67 A expressão Império foi inserida pela primeira vez nos dispositivos legais no já citado Decreto nº 12.533, de 23 de outubro de 1926.
a sua verdadeira importância”68, pois para desenvolvê-lo também seria
premente promover a mobilização nacional em torno dele, ação esta
que o governo desejava tomar. O Estado procuraria, então, cooptar
seus habitantes diante do elemento simbólico de que todos pertenciam a
algo imenso, muito maior que a relativa pequenez física e populacional
do país diante de seus pares europeus.
Já em 1926, o Estado português buscava repensar e ordenar as
colônias e suas populações nativas diante de um fim maior. O Acto
Colonial fundamentou de vez a importância da nação possuir e
valorizar suas colônias no além-mar, visto que elas promoveriam o
desenvolvimento de todo o Império português.
Além da valorização do ponto de vista político-econômico, era
preciso aproximar a realidade colonial da distante e relativamente
incrédula população metropolitana. Como uma forma de divulgação
e instrumentalização política e simbólica da vocação imperial do país,
foram realizadas algumas exposições coloniais69 em terras portuguesas,
como a Exposição Colonial do Porto (1934), o 1º Congresso Nacional
68 CUNHA, Luis M. de J. A nação nas malhas da sua identidade: o Estado Novo e a Construção da Identidade Nacional. Síntese (Aptidão pedagógica/Docente). Universidade do Minho, Braga, 1994. p.12. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt. Acesso em: 10.ago.2012.69 As exposições coloniais não foram as únicas formas de propaganda e promoção desta civilização imperial. Além de criar instituições oficiais, como a Junta de Investigações do Ultramar em 1945, o Estado Novo também apoiava publicações, como revistas (ex. Civilização e o Mundo Português), livros, estudos científicos, entre outros meios. Além disso, fomentava a manutenção de outras publicações relacionadas a questão colonial, como foi o caso do Boletim Geral das Colônias, posteriormente Boletim Geral do Ultramar, que era “órgão oficial da acção colonial portuguesa, propõe-se fazer a propaganda do nosso património colonial, contribuindo por todos os meios para o seu engrandecimento, defesa, estudo das suas riquezas e demonstração das aptidões e capacidade colonizadora dos portugueses”. AGÊNCIA Geral das Colónias. Boletim Geral das Colónias, Lisboa, v. 1, n. 2, p. 230, 1925. Disponível em: http://memoria-africa.ua.pt. Acesso em: 10.mai.2011
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 389Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
de Antropologia Colonial (1934) e a Exposição do Mundo Português em
Lisboa (1940).
Estas exposições eram ferramentas de exaltação do Império para
uma nação cujo empenho na questão colonial era relativamente
pequeno, por isso a necessidade de cooptar estes habitantes para ele.
Para tanto, nestas exposições coloniais eram divulgadas a diversidade
dos povos sob domínio português, a vastidão que este Império possuía,
bem como os estudos e as ações que estavam sendo tomadas sobre ou
nas colônias. Além do mais, eram enaltecidas as atividades daqueles que,
mesmo enfrentando regiões inóspitas e as dificuldades inerentes a elas,
ao mesmo tempo em que trabalhavam para a nação transformavam-se
em agentes civilizadores dos negros ou asiáticos nativos.
A intenção de Salazar70 era criar uma identidade em torno do
projeto colonizador, que deveria transpassar as dificuldades materiais
e econômicas que o Estado Novo enfrentava. Afinal, o lado econômico
era, para o regime, algo que ainda estava em consolidação. Buscava-
se, portanto, a construção, segundo Luis Cunha, de uma “verdade”
incontestável e forte acerca da alma e do caráter colonizador português.
De acordo com Cunha, esta “verdade” se traduziria no sonho imperial
português, centrado em três razões: “uma acção colonizadora
específica, uma legitimidade forte e incontestável e o dom de colonizar”
71, uma tríade que já havia sido provada e legitimada pelos séculos
de expansão territorial portuguesa, bem como pela preocupação do
Estado em cristianizar e elevar os nativos à civilização, mesmo diante
das dificuldades que enfrentava.
A “neutralidade” portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial
fez com que Portugal mantivesse suas possessões se intactas. Entretanto, 70 Antônio de Oliveira Salazar, ditador e líder do Estado Novo até 1968, ano em que saiu do poder.71 CUNHA. op. cit. p.12. (grifos do autor)
o mundo passava por transformações e o pós-guerra fez amadurecer
ideais liberais e emancipacionistas face à colonização. A própria
Organização das Nações Unidas (ONU) condenou a prática de possuir
colonial na sua Carta Geral das Nações Unidas de 1945, tanto que
proibiu seus países membros de mantê-las72.
Não somente novos pensamentos antropológicos e sociais surgiram
com base na noção de cultura, como também cresceram os movimentos
de identidade e nacionalismo africanos. O mundo mudava e as colônias
africanas começavam a se rebelar contra seus “dominadores”. Frente a
esta conjuntura, Portugal precisava se reafirmar como potência, proteger
seus domínios destas influências e justificar-se internacionalmente. Para
isto, o pensamento de um pesquisador brasileiro foi de grande “ajuda”
ao governo salazarista73.
Em sua obra Casa Grande e Senzala de 1933, o sociólogo Gilberto
Freire analisou a formação da sociedade brasileira. Nesta publicação,
ele trabalhou com concepção de que o povo português teria uma
vocação para os trópicos, que poderia ser observada no caso brasileiro.
Esta vocação se traduziria na sua capacidade ímpar de adaptação a um
novo meio físico e na certa facilidade ou disposição para incorporação
de traços culturais dos povos com os quais conviveram ou mantiveram
contato. Além do mais, os lusitanos possuiriam uma predisposição
a mestiçagem, devido a uma suposta ausência de preconceito e de
racismo. Esta concepção foi chamada de Lusotropicalismo.
72 A Carta Geral das Nações Unidas, de 1945, proibiu os países que entrassem na ONU de ter colônias sob sua responsabilidade. Portugal contornou esta situação mudando sua legislação em 1951 e passando a considerar Angola, Moçambique e Guiné como províncias ultramarinas, e não colônias. Na prática, isto significou apenas uma mudança de título, pois suas províncias não tiveram suas funções e tratativas alteradas. Com esta manobra política e diplomática, Portugal foi aceito como membro da ONU em 1955.73 Proveniente de Antônio de Oliveira Salazar, ditador do Estado Novo.
390Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Embora no início do governo de Salazar o Lusotropicalismo de
Freyre não tenha sido aceito, as circunstâncias do pós-guerra, incluindo
a eclosão de movimentos anticolonialistas, estimularam a apropriação
das ideias deste conceituado sociólogo por parte do governo português.
Este Estado inclusive patrocinou uma viagem de pesquisa para Freire,
entre 1951 e 195274.
Com a difusão do lusotropicalismo, Portugal teria argumentos
para refutar questionamentos acerca de suas práticas coloniais. O
Império, para todos os efeitos, seria constituído de diversos territórios
ultramarinos conjugados em uma nação unitária, nos quais predominava
a pluralidade cultural, respeitada e aceita. A prática, contudo, não
corroborava esta teoria.
Mesmo que com o passar do tempo o discurso oficial tenha assumido
contornos relativistas de amenização das diferenças ou do caráter
exploratório, na prática não se alterou significativamente a essência da
oposição colonizador-colonizado: o racismo. Segundo Albert Memmi, o
74 Da viagem realizada por Freyre, que durou 7 meses, foram publicados três livros e este autor proferiu uma série de palestras em Portugal, em que afirmava ter corroborado suas teses. PINTO, João A. C. Gilberto Freyre e o Lusotropicalismo como ideologia do Colonialismo português (1951–1974). Revista UFG, Goiânia, n.6, jun. 2009. Disponível em: http://www.proec.ufg.br. Acesso em: 10.ago.2012.Após a viagem, confirmando suas teses, Freire afirmou: “essa expressão - luso-tropical - parece corresponder ao facto de vir a expansão lusitana na África, na Ásia, na América, manifestando evidente pendor, da parte do Português, pela aclimação como que voluptuosa e não apenas interessada em áreas tropicais ou em terras quentes. Donde não se poder falar em tropicalismo moderno sem se destacar a acção do Português como pioneiro de modernas civilizações tropicais: aquelas em que a valores e sangues tropicais juntam-se, em novas combinações, valores e sangues europeus. O caso da Índia Portuguesa. O caso do Brasil. O caso de províncias portuguesas na África, onde as mesmas combinações, com outras substâncias, mas sob formas sociològicamente iguais às que se encontram na Índia e no Brasil e através de processos sociològicamente idênticos, começam a afirmar-se”. FREYRE, Gilberto. Em tôrno de um novo conceito de tropicalismo. Coimbra: [s.n.], 1952. Disponível em: http://bvgf.fgf.org.br. Acesso em: 15.set.2012.
racismo seria a síntese de toda a relação colonial. Com isto, ele não quer se
referir apenas ao preconceito doutrinal e teórico, mas ao vivido no dia a dia
da prática colonial e incorporado na cultura colonizadora, que agiria para:
Descobrir e pôr em evidência as diferenças entre colonizador e colonizado; Valorizar essas diferenças em benefício do colonizador e em detrimento do colonizado; Levar essas diferenças ao absoluto afirmando que são definitivas e agindo para passem a sê-lo75.
Não se pode negar que a questão econômica estava no cerne deste
racismo. Era preciso não apenas se relacionar com o “outro”, mas
justificar a sua submissão a um projeto que nunca for o seu. Ainda de
acordo com Memmi, o colonizador se deu conta de que seu privilégio
não era somente do ponto de vista econômico, embora este fosse a
peça central, mas político e cultural76. Todo o colonizador era, em última
instância, superior aos nativos, mesmo aqueles não prósperos, e esta
superioridade, no caso português, nunca se desprendeu do vínculo que
a nação possuía com os “seus” povos ultramarinos: ela era essencial
para assegurar a sujeição dos africanos.
Podemos sintetizar, com base nas análises por ora feitas, que a relação
colonizador-colonizado que Portugal mantivera era marcadamente
dual, contrapondo a oposição entre: a positivação e a negativação, o
branco e o negro, o colono e o indígena, a cultura europeia e os usos
e costumes nativos, o superior e o inferior, o catolicismo e as crenças
e superstições, o progresso e o primitivo, o civilizado e o selvagem,
dentre tantas outras comparações. Esta polarização e a hierarquização
atrelada a ela foram a base da legitimação política, ideológica e
econômica lusitana. Neste sentido, a colonização portuguesa não se
distanciava muito daquela praticada por seus pares europeus.
75 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de Retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 41.76 MEMMI. op. cit. p. 17.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 391Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Esta visão de mundo influenciou, e muito, a idealização do que era
ou não ser civilizado, e serviu de base para a definição do caminho a
ser trilhado pela “missão” portuguesa na elevação dos indígenas a este
nível: o processo de assimilação.
3 NÃO-INDÍGENAS, MAS NÃO IGUAIS
3.1 Assimilação sim, mas...
Conforme analisado no capítulo anterior, os portugueses encaravam
os nativos africanos como uma raça diferente com usos e costumes
próprios e inferiores aos dos brancos europeus. De alguma forma
esta inferioridade deveria ser trabalhada em prol do desenvolvimento
moral e civilizacional destas populações, bem como do processo de
colonização em si.
Ao povo lusitano competia, por vocação ou missão, elevar estas
almas primitivas e atrasadas à civilização e dar-lhes os meios necessários
para alcançar o tão almejado progresso. Como uma política destinada
a este fim, Portugal preferiu seguir o caminho da assimilação, opção
esta partilhada por outros países neo-colonizadores, como a Bélgica
e a França77.
77 Os modelos seguidos pelos países colonialistas deste período diferiam de diversas formas. Porém, a grosso modo, conforme defende Leila Hernandes, pode-se classificar estas colonização como de assimilação ou de diferenciação. O segundo caso foi a opção de países como a Inglaterra e a Alemanha, que defendiam formas que permitissem o governo indireto em suas colônias, com a inserção da elite e da chefatura local na representação do poder, ao mesmo tempo em que generalizassem a educação e a cultura da Metrópole. A eficácia para este modelo era medida na capacidade que os povos tiveram para desenvolver o modelo econômico capitalista, enquanto Portugal ainda pregava a conversão
Assimilação é um conceito que surgiu no século XIX, cuja utilização
se expandiu inicialmente entre ingleses e alemães. Originalmente,
segundo Leo Spitzer, ele envolvia uma ideia de transformação “dos
emancipados no sentido da ‘cultura’ dominante e sua incorporação
no que esse grupo reconhecia como sendo a vida social e política
da ‘corrente principal’ [...], uma ideia geral de ‘conformidade’ ou de
‘assemelhação’ à classe dominante”78.
Autores de diversas origens discutiram e analisaram a assimilação
como resultado de mudanças culturais, sociais e políticas ocorridas em
grupos subordinados ou de menor influência, ou de um “processo de
adaptação e ajustamento em um continuum”79. Dentre as formulações
acerca deste tema, podemos analisar a discussão proposta pelo
antropólogo Milton M. Gordon, que afirmava haver diversas variáveis
ou níveis de assimilação incluídos dentro deste conceito, entre eles: a
mudança nos padrões culturais em direção ao grupo predominante
ou que recebe um novo integrante (aculturação), a participação
maciça do grupo secundário ou menor em ambientes e instituições
típicas dos “outros” (assimilação estrutural), o casamento maciço entre
membros de diferentes culturas (assimilação marital), o sentimento de
humanidade e identificação (identificativa), a falta de preconceito ou
discriminação da sociedade dominante ante aos comportamentos ou
atitudes divergentes (receptiva), a perda definitiva dos padrões culturais
do grupo subordinado em detrimento dos novos valores da cultura aos
quais estiveram ou estão expostos (fusão) e a participação do entrante na
política e na administração da sociedade “principal” (cívica)80. A pesquisa moral, aproximando o sucesso de assimilacionismo ao sucesso de seu processo civilizador. HERNANDEZ. op. cit. p.105.78 SPITZER, Leo. Vidas de Entremeio: assimilação e marginalização na Áustria, no Brasil e na África Ocidental – 1780-1945. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. p. 40.79 SPITZER.op. cit. p. 41. (grifos do autor)80 GORDON, Milton M. Assimilation in American Life – the role of Race, Religion,
392Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
e a tese levantada por Gordon teve por base a imigração para os Estados
Unidos, mas foi considerada como referência neste assunto.
Porém, havia uma complexidade inerente a este conceito/processo,
que iria além da simples imputação de valores de uma classe dominante
a outra. Afinal, a assimilação poderia ser algo inclusive almejado por
um grupo menos influente ou entrante em uma determinada sociedade.
Ademais, a efetividade deste processo dependia de uma série de
fatores, desde a idade, o sexo e a vontade de alguém em adquirir novos
valores aos mecanismos de expansão cultural utilizados por um grupo
dominante, como as vantagens oferecidas para esta mudança ou a
força coercitiva com a qual procurava-se promovê-la81.
Já no meio colonial, assimilar passou a significar a conversão da
cultura e dos meios de produção dos nativos, através da aproximação
com o modo de vida civilizado da Metrópole a qual estas sociedades
pertenciam. Em outras palavras, visava transformar o africano sob a
ótica, os costumes, a língua, a religião, as instituições, o vestuário, a
ideologia, a ciência e outros modos próprios do mundo europeu, cristão
e ocidentalizado.
Esta preocupação era visível no processo colonial português, pois
de acordo com a visão de mundo lusitana a inferioridade da raça negra and National Origins. New York: Oxford University Press, 1964. p. 60-84.SPITZER. op.cit. p. 41. 81 Assimilação é, hoje, um termo datado. Os antropólogos preferem se referir a aculturação, ao discutir as diferentes relações de contatos entre dois ou mais grupos, bem como as variáveis que nelas estão envolvidas. Entretanto, este conceito foi retomado pelo pesquisador Alejandro Portes, para analisar a imigração e sua segunda geração nos Estados Unidos. Para este autor, diversas são as variáveis que influenciam no processo de assimilação a uma cultura dominante, como a existência de uma comunidade prévia, recursos que a pessoa possui, receptividade do grupo dominante, entre outros. PORTES, Alejandro; ZHOU, Min. The New Second Generation: Segmented Assimilation and its Variants. ANNALS, American Academy of Political and Social Science, 530, November 1993. Disponível em: http://www.demog.berkeley.edu. Acesso em: 15.ago.2012
era algo factível e, devido a ela, não somente haveria a necessidade
de tutela em relação a estes povos, como as próprias leis deveriam
adequar-se ao estágio de evolução em que viviam. Conforme afirmava
Eduardo Costa, a ser governador de Moçambique na virada do século
XX, não haveria outra forma de organização jurídica destas sociedades
senão através de leis destinadas unicamente a eles. Afinal, seria pouco
provável os nativos conseguissem compartilhar as mesmas leis da
Metrópole, a menos houvesse uma mudança neles em direção à cultura
civilizada. Assimilar, em última instância, estaria intimamente ligado ao
ato de civilizar gradual e lentamente, pois segundo Costa:
antes de igualar a lei, torna-se necessário igualar os homens a quem ela tem de ser aplicada, dando-lhes os mesmos sentimentos, os mesmos hábitos, a mesma civilização. É isto possível? Não o sei, mas se o for, só será realizado em época longínqua e indeterminada82.
Entretanto, o tipo de assimilação buscada pelo governo português nas
suas colônias africanas não foi aquele pautado em ideais universalistas
de igualdade entre os homens, concepção própria do espírito iluminista
francês setecentista. Esta concepção de assimilação uniformizadora, em
que os membros das sociedades colonizadoras e colonizadas teriam
os mesmos direitos, indistintamente, foi duramente repelida pelos
líderes lusitanos durante a ocupação efetiva, especialmente devido
aos “conhecimentos” desenvolvidos pelo racismo científico a partir do
século XIX. Essa igualdade de direitos entre africanos e portugueses, ou
paridade legal, somente seria concedida aos que preenchessem alguns
critérios fundamentais para serem considerados “não indígenas”.
Embora a discussão sobre a assimilação enquanto ideologia estivesse
presente na prática e nos pensamentos colonialistas de Portugal desde 82 COSTA, Eduardo. Princípios de Administração Colonial. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p.86.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 393Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
o século XIX, a sua consagração ou articulação jurídica ocorreu somente
em 1917, com a promulgação da Portaria Provincial de Moçambique nº
317. Nesta lei, retomou-se o conceito de indígena como sendo alguém
que pertencesse à raça negra e que ainda mantivesse na ilustração e
nos costumes características das inerentes a raça da qual provinham. A
novidade desta portaria, porém, estaria no fato dela elencar uma série de
requisitos que deveriam ser seguidos para que alguém fosse considerado
como um “não indígena” ou assimilado a um cidadão português:
O artigo 2o era claro ao afirmar que somente seriam considerados assimilados – em itálico no original – aos europeus, o indivíduo da raça negra ou dela descendente que: a) tivesse abandonado inteiramente os usos e costumes daquela raça; b) que falasse, lesse e escrevesse a língua portuguesa; c) adotasse a monogamia; d) exercesse profissão, arte ou ofício, compatíveis com a “civilização européia” ou que tivesse obtido por “meio lícito” rendimento que fosse suficiente para alimentação, sustento, habitação e vestuário dele e de sua família83
Ao determinar os requisitos a serem preenchidos, esta legislação
selou de vez, agora de maneira oficial, a categorização da sociedade
moçambicana entre os indígenas (nativos que, pelo seu grau de
evolução, regiam-se por seus próprios usos e costumes - maioria
esmagadora da população) e os não-indígenas (assimilados, cidadãos
portugueses, estrangeiros).
Para comprovar o cumprimento de todas estas obrigatoriedades,
o solicitante ao alvará de assimilado, documento comprovativo de sua
situação de “não indígena”, deveria redigir manualmente e assinar
um requerimento formal e que também contasse com a firma de um
administrador local que atestasse que o requisitante possuía os usos e
costumes europeus, bem como o conhecimento da língua portuguesa. 83 ZAMPARONI, Valdemir. Frugalidade, moralidade e respeito: a política do assimilacionismo em Moçambique - c.1890-1930. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar. Acesso em: 16. jun.2012.
Este africano deveria igualmente evidenciar que era legalmente casado, ou não seria polígamo se no futuro se casasse, e apresentar comprovante educacional. Porém, alguém comprovar ser possuidor de todas estas competências e regras seria problemático até mesmo entre os próprios portugueses que já viviam em solo moçambicano, pois um razoável número deles era analfabeto e polígamo.
Os filhos até 18 anos e as esposas dos assimilados ganhavam o alvará automaticamente, assim como os filhos mestiços que vivessem com o pai branco ou em escolas, pois em ambos os casos estava implícito o contato com a cultura civilizada. O alvará, entretanto, poderia ser retirado se comprovado o retorno ou o retrocesso a algumas das características consideradas como impróprias aos assimilados84.
Uma vez “não indígena”, o moçambicano era juridicamente um cidadão, podendo possuir os mesmos direitos legais de um lusitano e basear-se pelas mesmas regras da Metrópole. Isto, na maioria dos casos, não se traduzia na erradicação da discriminação ou no aumento da possibilidade de melhoria no seu padrão econômico de vida. Entretanto, ser um cidadão significaria que não seguir as leis exclusivas destinadas aos indígenas. Além disso, era assegurado a este cidadão, pelo menos hipoteticamente, os mesmos direitos civis reservados a um português, o que poderia dar-lhe em algumas vantagens. Desta forma, o assimilado estaria isento, por exemplo, da aplicação do regime de trabalho compulsório, bem como poderia recorrer em caso de pendências legais à tribunais regulares e receber seus salários em libras-ouro, e não em escudos85.
84 Segundo Aurélio Rocha, a legislação referente à assimilação sofreu algumas alterações, mas até 1930 nada de relevante fora modificado. ROCHA, Aurélio. Aculturação e Assimilação em Moçambique: uma perspectiva histórica-filosófica. In: COMISSÃO Nacional para Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Actas do seminário Moçambique: Navegações, Comércio e Técnicas. Maputo: Maiadouro, 1996. p.31985 Por volta dos anos 1920 foi instituído que os salários dos não-indígenas seriam
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Fazendo uma análise dos solicitantes ao alvará entre os anos
de 1917 e 1922, Valdemir Zamparoni concluiu que nem mesmo as
possíveis vantagens que poderiam advir da assimilação formal foram
suficientes para incentivar um grande número de pessoas a tentar
mudar seu status legal. Nos cinco primeiros anos da lei, apenas 242
pessoas requereram o alvará, das quais 120 pessoas eram negras.
A maioria absoluta (80%) era formada por indivíduos que recebiam,
direta ou indiretamente, através dos recursos estatais (somente os “não
indígenas” poderiam participar do funcionalismo público). O maior
grupo entre eles eram de pessoas entre 16 e 30 anos. Já em relação às
mulheres, apenas cinco aplicaram pelo alvará, possivelmente, segundo
Zamparoni, pela pouca mudança que a assimilação legal forneceria as
mulheres, uma vez que estas não participavam, de maneira geral, do
mercado formal de trabalho urbano86.
Entretanto, alguns autores afirmam (entre eles, os já citados
Cabaço e Zamparoni) que o aparato legal ligado à assimilação seria
direcionado não à imensa maioria da população indígena, que a
grosso modo vivia na área rural e pouco se interessaria em se tornar
“português”, mas fundamentalmente à diminuição do poder político e
econômico da elite local, maioria mestiça que com a lei seria alocada
no grupo dos indígenas, devido ao seu referencial de cor. Essa elite,
conhecida como filhos da terra, era composta por um grande número
de membros “ocidentalizados”, o que poderia ser um risco aos desejos
portugueses de consolidação do poder em Moçambique. Esta afronta
ao poder das elites locais, tanto de fato quanto simbólica, não passou pagos com base em libras esterlinas, moeda britânica, enquanto aos demais seria com escudos, moeda local. A primeira tinha seu valor ligado à cotação do ouro, enquanto a segunda de maneira geral enfrentava uma inflação e desvalorização maior. Os impostos também eram baseados em libras-ouro, o que dificultava o seu pagamento por parte dos indígenas. CABAÇO.op. cit. p. 128.86 ZAMPARONI.op. cit.[s.n.]
despercebida. Houve resistência a ela, principalmente na forma de
críticas escritas, como nas publicações do jornalista João Albasini
para os jornais O Brado Africano e O Combate, este último português
e socialista. Associações de classe locais também ajudaram na
propagação de ideias de repulsa a este dispositivo legal. As pressões
econômicas envolvidas na política de assimilação, como o pagamento
em escudos X libras, enfraqueceram a unidade destas elites, que não
conseguiram frear esta situação.
Já em relação aos usos e costumes nativos, foco da política de
assimilação, o Estatuto do Indigenato, assim como outras legislações,
reforçou a sua contemporização/aceitação, desde que estes valores
culturais não ferissem a moralidade ou os interesses de soberania da
nação portuguesa. Em seu artigo 3º afirmava:
Ao aplicarem os usos e costumes indígenas as autoridades procurarão, sempre que possível, harmonizá-los com os princípios fundamentais do direito público e privado português, buscando promover a evolução cautelosa das instituições nativas no sentido indicado por estes princípios87.
Neste mesmo artigo percebe-se outra contradição colonialista:
ao mesmo tempo em que o Estado aceitaria certos usos e costumes,
deveria ser responsável por desenvolver maneiras de suprimi-los
ou alterá-los em direção à assimilação. Este fato foi de certa forma
corroborado pelo jurista português Gonçalves Cota88, que ao analisar
87 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 39666, de 20 de maio de 1954. Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.110, 20 mai. 1954, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.201188 José Gonçalves cota foi um jurista que estava a cargo de uma pesquisa etnográfica na região de Moçambique,em que o objetivo era repensar as formas legais relativas aos africanos. Este autor apresentou seu relatório, Projeto definitivo do Estatuto do Direito Privado dos Indígenas da Colônia de Moçambique – precedido de um estudo sumário gentílico, em 1946, a Missão Etognóstica havia
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 395Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
a questão indígena em Moçambique, observou a formulação distintiva
de dois tipos de assimilação nesta colônia: a evolutiva e a legal. A
primeira delas, a evolutiva, se referia aos esforços do Estado em atuar
na promoção de maneira generalizada da assimilação dos autóctones.
Para esta forma de assimilação, Portugal deveria utilizar seus recursos
científicos, educacionais, laborais, religiosos, entre outros, para fazer
com que as sociedades “atrasadas” fossem gradual e continuamente
adquirindo os valores civilizacionais, alterando a sua organização para
aquela considerada mais avançada. Já a segunda, a assimilação legal,
era aquela em que o estatuto jurídico de um africano era alterado
individualmente, como prova de alguém que abandonou sua cultura
e legalmente deixou de ser um indígena, demonstrando “senão um
estádio da evolução moral de um determinado indivíduo que revelou
apto a exercer os seus direitos civis, independentemente da tutela do
Estado”89.
Segundo Cota, o governo deveria atuar na assimilação evolutiva, que
seria o melhor modo integrar realmente à civilização. O Estado deveria
fortalecer seus esforços (educação, propaganda, trabalho, etc.) em
direção à massa da população e não ao indivíduo em si. Somente desta
forma, ainda que em um futuro distante, a assimilação real ocorreria.
A prova de que o alvará de assimilado não seria suficiente para levar à
assimilação real residia no fato dele inclusive poder ser revogado “por
decisão do juiz de direito da respectiva comarca, mediante justificação
promovida pela competente autoridade administrativa”90, de que o
sido criada 5 anos antes.89 COTA.apud.MACAGNO, Lorenzo. Do Assimilacionismo ao Multiculturalismo – Educação e representações sobre a diversidade cultural em Moçambique. 343 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000. p.61.90 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 39666, de 20 de maio de 1954. Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário
outrora assimilado retornou aos antigos usos e costumes ou não cumpriu
as exigências propostas.
A assimilação portuguesa, assim, não se encaixava naquela visão
universalista, já que os africanos não eram considerados como iguais,
mas como um grupo que tendia no futuro a se tornar como tal. Tratava-
se de uma assimilação tendencial não apenas no sentido de parcialidade
e inferioridade com os quais os colonizados eram vistos, mas acima de
tudo pela possibilidade de estes tenderem a se tornarem cidadãos ou
assimilados, mesmo que longa e gradualmente. Novamente retomamos
a noção de vocação civilizadora de Portugal, que procuraria aos poucos
afirmar sua própria visão de mundo e cultura, eliminando ou minando
aos poucos o referencial cultural, econômico, político e social dos outros
povos que, para ele, eram atrasados. Assim, vemos uma tentativa ou
pretensão de um lento etnocídio destas culturas, no sentido desenvolvido
pelo antropólogo Denys Cuché. Segundo Cuché, o etnocídio posto em
uma relação colonial “remete à realidade de operações sistemáticas de
erradicação cultural e religiosa nas populações indígenas para fins de
assimilação na cultura e na religião dos conquistadores”91.
Porém, para realizar o processo assimilacional era fundamental
desenvolver meios de inculcação de padrões civilizados em suas colônias,
uma vez que o contingente de considerados civilizados era extremamente
baixo, mesmo com uma maior imigração nos anos de 1950 e 196092.
do Governo, Lisboa, n.110, 20 mai. 1954, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.201191 Cuché, com isto, não desejava simplesmente simplificar o significado deste conceito, nem relacioná-lo diretamente com a assimilação, já que esta ocorre por mecanismos complexos e não por simples deculturação. Além do mais, a assimilação e aculturação poderia ser algo que o próprio indivíduo ou grupo desejasse. CUCHÉ, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. p. 123.92 De acordo com os dados do Senso de 1960, descritos por José Boleo, havia 6.429.875 autóctones em Moçambique, para 163.119 civilizados (brancos,
396Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Por serem numericamente muito inferiores, os civilizados dificilmente
influenciariam de sobremaneira os indígenas pela simples demonstração
de hábitos.
Através das explanações contidas nos textos e dispositivos legais
estudados, observou-se que entre os principais meios criados para
a assimilação estavam o trabalho e a educação. Isto foi claramente
demonstrado no Estatuto do Indigenato, que declarava em seu artigo 4º:
O Estado promoverá por todos os meios o melhoramento das condições materiais e morais da vida dos indígenas, o desenvolvimento das suas aptidões e faculdades naturais e, de maneira geral, a sua educação pelo ensino e pelo trabalho para a transformação dos seus usos e costumes primitivos, valorização da sua actividade e integração activa na comunidade, mediante acesso à cidadania93 (grifo meu)
Diante disto, faz-se fundamental estudar com mais profundidade
tanto o trabalho quanto a educação formal dentro deste contexto, pois
estes eram considerados valores basilares do processo de assimilação
nos territórios portugueses.
3.2 O trabalho civilizador
Uma vez estabelecido em território Moçambicano, Portugal partiu
em busca de métodos mais efetivos para fruir dos recursos naturais e
potenciais da região, tanto para o desenvolvimento desta colônia quanto
amarelos, indianos e mistos), um incremento de 77,4% desta população, para 15% da nativa. Ainda assim, os civilizados representariam apenas 2.5%. BOLEO, José de Oliveira. Moçambique: pequena monografia. Lisboa: Agencia-Geral do Ultramar, 1961. p. 46. 93 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 39666, de 20 de maio de 1954. Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.110, 20 mai. 1954, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011
para atingir um objetivo que, de fato, nunca havia sido deixado de lado:
a própria vantagem econômica que esta poderia trazer à Metrópole.
Embora o discurso lusitano trouxesse objetivos mais elevados, não se
pode negar a importância desta dimensão.
Entretanto, para atingir a lucratividade dentro desta relação, de
acordo com o que discutimos, era fundamental a utilização dos “braços”
que lá existiam. Seriam os nativos africanos que deveriam realizar o
trabalho que os imigrantes brancos, dado a sua diferenciação física
e sua pouca quantidade, seriam incapazes de fazer ou desenvolver,
conforme já anunciara Antonio Ennes, em 189394. Contudo, a maneira
com que os africanos tradicionais encaravam o trabalho e a forma
como os portugueses colonialistas desejavam que ele fosse realizado
diferiam enormemente em sentido e função.
O trabalho, como conceito, vem sendo discutido e teorizado por
diversas correntes ideológicas ao longo do tempo. Porém, “em seu
sentido mais amplo, trabalho é o esforço humano dotado de um
propósito e envolve a transformação da natureza através do dispêndio
de capacidades mentais e físicas”95. Os frutos deste trabalho são
produtos e/ou serviços que podem, de acordo com a sociedade que
os produzem, ser vendidos, trocados, consumidos localmente ou
apropriados de maneiras diferentes.
Para as sociedades africanas tradicionais, e neste ponto podemos
incluir as que existiam em Moçambique antes da colonização efetiva, o
valor do trabalho era visto de maneira peculiar. A agricultura e a pecuária
eram fundamentalmente de subsistência e as atividades realizadas para
mantê-las eram partilhadas entre os membros do grupo, de acordo
com o papel que cada um desempenhava dentro dele. Estas ocupações
94 ENNES. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p. 9-2195 TRABALHO. In: Dicionário do pensamento social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p.773. Verbete.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 397Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
tinham por função satisfazer as necessidades dos membros da família
ou do grupo a qual o africano pertencia. Além do mais, as atividades
eram valoradas como um dever, como algo que deve ser feito dentro de
um conceito moral, sem a relação de lucro ou ganho. Era a atividade
em si, e a importância atrelada a ela, que contavam.
Pierre Bourdieu foi um dos pensadores que discutiram a relação
entre o valor e a função atribuída ao trabalho, procurando contrastar as
sociedades capitalistas e das ditas tradicionais. Para ele, nas sociedades
tradicionais o trabalho a ser desenvolvido era aquele relacionado como
um dever social para com o seu grupo/sociedade. A ociosidade era
vista como uma relação de amoralidade e não de desemprego, uma
vez que trabalhar não era sinônimo emprego, mas sim fazer parte de
algo voltado tanto para a sobrevivência quanto para a perpetuação
cultural de sua sociedade. Desta forma, o grupo teria o dever de buscar
uma ocupação para os seus membros, uma vez que:
Identificando-se a atividade à função social e não se medindo ao produto em espécie (e menos ainda em dinheiro) do esforço e do tempo despendidos, cada qual está no direito de sentir-se e de dizer-se ocupado, conquanto que preencha o papel que convém a sua idade e a seu código96
Ainda que Bourdieu, no capítulo específico em que este tema foi
tratado, estivesse essencialmente se referindo aos camponeses antigos,
esta consciência de função e dever inerente a uma atividade produtiva
tem similaridades com as sociedades tradicionais africanas, em que cada
qual possuía uma atribuição dentro do grupo e o que importava era o
labor realizado e não o lucro ou excedente que seria advindo dele.
Portanto, Portugal teria um grande desafio ao se fixar em seus
territórios africanos, especialmente para tentar convencer os nativos 96 BOURDIEU, Pierre. O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas temporais. São Paulo: Perspectiva, 1979. p.64-65.
locais a participarem de um universo laboral com o qual não
compartilhavam valores. Estes indígenas eram fundamentais como
força de trabalho e não poderiam ser dispensados. Suas condutas neste
sentido deveriam ser retrabalhadas e voltadas para a racionalidade e
para o valor monetário inerente a função capitalista do trabalho. Em
outras palavras, era premente criar necessidades entre os nativos que
os forçassem a abandonar seus costumes e hábitos para alcançar fins
que nunca foram os seus.
O pagamento de impostos era um dos mecanismos que forçavam
os moçambicanos ao trabalho assalariado ou a produção de excedentes
em suas propriedades ou áreas agrícolas, aos moldes capitalistas
vigentes. No caso dos nativos camponeses, por exemplo, caso não
amealhassem dinheiro suficiente com a venda de seus produtos para
pagar a contribuição fiscal conhecida como “imposto de palhota”,
ficariam a mercê ou de formas coercitivas ou do xibalo, que era
recrutamento forçado de mão de obra.
Porém, apenas o pagamento dos impostos não sustentaria a
imposição de um novo modo de trabalho. Para tanto, mecanismos mais
estruturados e eficazes deveriam ser pensados com o objetivo de criar
e fixar o senso de obrigação em se ter um emprego, entre aqueles que
nem sequer entendiam ao certo o porquê desta necessidade.
Na incongruência em se desenvolver um estudo detalhado de todo
o referencial legislativo ligado ao trabalho feito a partir de, ou para,
Moçambique, devido ao vulto de uma possível pesquisa, partiremos da
análise de um relatório feito em 1899 acerca deste tema: O Trabalho
dos Indígenas e o Crédito Agrícola. Este relatório foi fruto de uma
Comissão97 formada no ano anterior e presidida por Antonio Ennes,
97 Esta comissão foi formada para analisar a situação do trabalho indígena em Moçambique.
398Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
que cinco anos antes já afirmava que Portugal deveria utilizar a mão de
obra indígena de Moçambique, que lá havia em abundância. Segundo
Ennes:
Braços, bastarão os dos indígenas, desde que uma lei de trabalho os obriguem a concorrerem para os empreendimentos de que depende a prosperidade e a civilização de Moçambique98 (Grifo meu)
Obrigação. Esta foi a palavra que daria a tônica das leis de
trabalho que se seguiriam. Era justamente encontrar maneiras
profícuas de incentivar e obrigar os indígenas a trabalharem, ou pelo
menos justificar esta imposição, um dos principais focos do relatório
citado. A importância dele também estavano fato de ter sido a base
do Regulamento do Trabalho Indígena de 1899, feito a partir de suas
proposições. Este regulamento deu força de lei a uma obrigação que,
mesmo com diferentes discursos, se manteve até o fim do regime
de indigenato (1961). Este regulamento também marcou, segundo
Esmeralda Martinez, uma nova política, que retirava os direitos
individuais dos nativos africanos, tratando-se “de um novo direito para
o Estado português e um novo, mas bem velho e conhecido, dever para
os indígenas – o do trabalho forçado”99.
Para esta comissão, era “direito do Estado obrigar os naturais das
províncias ultramarinas a trabalharem, empregando para isso, além
de incentivos, imposições, e de que portanto é dever correlativo desses
naturais não se recusar ao trabalho”100. Esta obrigação estava calçada
em uma série de argumentos. Um deles relacionava a ociosidade a 98 ENNES. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p.20.99 MARTINEZ, Esmeralda Simões. O trabalho forçado na legislação colonial portuguesa – o caso de Moçambique (1899-1926). 2008. 334 f. Dissertação (Mestrado em História da África) – Departamento de História – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2008. Disponível em: http://repositorio.ul.pt/. Acesso em: 10.ago.2012.100 ENNES. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p. 25-26.
um mal tão grave quanto a libertinagem, o jogo ou o suicídio. Além
do mais, se todos os países civilizados condenavam a vadiagem
associando-a a um delito, era lícito afirmar que o trabalho, como seu
contraponto, poderia ser considerado um preceito legal, ou seja, uma
obrigatoriedade. E se a tutela do Estado estendia suas fiscalização
sobre os contratos de trabalho que envolviam os indígenas, deveria ele
também, como alguém que sabia o que era o melhor para seu filho,
fazê-los laborar.
Diante disto, o trabalho foi visto como um dever moral dos indígenas,
ao mesmo tempo em que beneficiaria de sobremaneira suas vidas
materiais e mentais. Forçar estes “rudes negros da África” a desenvolver
uma atividade laboral os obrigaria a buscar “meios de existência mais
feliz, a civilizarem-se trabalhando”101. Desta forma, eles alcançariam
o progresso e aprimorariam suas condições de vida. Nesta situação,
como não poderia fugir ao discurso, estaria sempre implícito o poder de
tutela do Estado, que protegeria os indígenas dos possíveis malefícios
causados em decorrência da sua inferioridade, atraso ou infantilidade.
O governo atuaria, assim, na fiscalização dos contratos e das condições
de trabalho daqueles que estavam sob sua “asa protetora”.
Ter um emprego era, aos olhos metropolitanos, um dever, uma
obrigação e um benefício para indígena. Mas impeli-los a esta atividade
não encontraria nenhuma razão se, em primeiro lugar, eles não
entendessem o porquê de se esforçarem para este objetivo. Seguindo esta
premissa, era uma atribuição do Estado, em contrapartida, desenvolver
meios de fazer com que estes compreendessem as vantagens que o
trabalho poderia trazer.
Castigar a vadiagem com prisão ou com as penas determinadas
pelo código penal vigente da Metrópole, segundo esta Comissão,
101 ENNES. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p. 27.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 399Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
não seria a resposta, bem como simplesmente enviá-los ao trabalho
correcional. Para os autores do relatório, se em Moçambique, por
exemplo, se optasse por escolher como forma de castigo a prisão dos
vadios, a maior parte dos seus habitantes seria enviada para cumprir
sentença, o que seria sinônimo de cadeias lotadas. Estas ações não
seriam persuasivas para fazer com que os nativos trabalhassem com
a certeza de que sabiam da relevância deste ato. Para tanto, o Estado
deveria dispor de pessoal capacitado e suficiente para realizar esta
meta, coisa de que careciam.
Diante destes argumentos, concebeu-se uma lógica quase que
infalível de impor aos africanos o trabalho como emprego, como uma
relação remunerada e individualista própria do capitalismo. Seria criada
três classificações de trabalho: voluntário, compelido e correcional.
O trabalho voluntário era aquele em que alguém teria ou um
emprego ou uma ocupação que fizessem com que o nativo recebesse
para o seu sustento e pagasse os seus impostos. Era voluntário no sentido
da função ter sido escolhida de acordo com as preferências ou, usando
as palavras do próprio relatório, do “bom grado” do trabalhador.
Uma vez desempregados, por opção ou não, os indivíduos eram
considerados como vadios. Neste caso, um agente da autoridade
responsável pela região onde estes residiam deveria em um primeiro
momento identificá-los. Uma vez identificados, os desocupados seriam
chamados por esta autoridade, que deveria oferecer-lhes um emprego
com local e atividade determinados, pois a indicação de um trabalho
aleatória não seria prudente, uma vez que estes indígenas dificilmente a
entenderiam. Este agente administrativo seria responsável por explicar
e convencer estes vadios a aceitarem a posição indicada. O trabalho
poderia ser feito dentro de obras/empregos públicos ou para a iniciativa
privada. Era o denominado de trabalho compelido.
O trabalho compelido, nos termos deste relatório, não poderia
ser correlacionado à aplicação de uma pena, mas a uma restrição à
liberdade como outras ligadas ao poder tutelado. Afinal, o trabalho
tratava-se de uma obrigação ou dever comum de todos. O trabalho
compelido também não poderia ser comparado à punição, pois mesmo
que o indígena não tenha usado de sua liberdade de escolha para
eleger um emprego, ele foi retribuído com um em que não enfrentaria
a vigilância “policial”. A oferta de trabalho, entretanto, poderia se
dar em outras regiões do país ou mesmo fora dele, fazendo com que
houvesse uma emigração temporária para estes locais, como foi o caso
dos destinados às plantações de São Tomé e Príncipe ou às minas do
Transvaal102.
Caso o indígena não escolhesse seu trabalho por livre e espontânea
vontade (voluntário) ou, não conseguindo um, se recusasse a aceitar a
“sugestão” de função indicada pelo governo (compelido), ele estaria
sujeito ao trabalho correcional. Este último era visto como uma
penalidade devido a desobediência àqueles responsáveis ou com
poder de autoridade sobre este indígena. Era, portanto, um castigo
que também poderia ser imputado para os que cometessem outros
delitos. Neste caso, o poder de polícia poderia estar nas mãos tanto
das autoridades de fato quanto dos patrões que estariam por ela
designados a fazer tal coerção.
102 De acordo com o que foi exposto no primeiro capítulo, a “venda” de trabalhadores para o Transvaal através de angariadores de mão de obra não era incomum, principalmente ao sul de Moçambique. Entretanto, nem sempre a emigração se dava de maneira forçada, visto que muitos emigravam na busca de melhores condições de vida ou mesmo para fugir do trabalho correcional. Ao retornar após o final dos seus contratos, o que era obrigatório, estes trabalhadores traziam consigo bens e valores acima do que normalmente teriam em seus locais originais. Isto não excluía a clandestinidade. A regulamentação referente à emigração sofreu várias alterações durante o período analisado (1895-1961), chegando ela a ser proibida em alguns momentos.
400Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
O que se percebe a partir das formulações de trabalho propostas,
é de uma maneira ou de outra a “não atividade” seria punida e,
voluntariamente ou não, o indígena seria legalmente obrigado a
laborar. Era preciso nativos para que a colônia prosperasse e para que
a iniciativa privada conseguisse a mão de obra necessária para retirar
grandes proventos. Desta forma, esta tríade (voluntário, compelido e
correcional) e a obrigação aliada a ela:
devem ser um grande auxílio para esses cometimentos do Estado. As autoridades ficarão dispondo de milhares e milhares de braços, disciplinados, baratos, quase gratuitos, com que se pode fazer muito (...). Esses poderão empregá-los as iniciativas particulares, aplicadas enèrgicamente à exploração dos territórios ultramarinos103.
Uma vez transformada a obrigação em lei, iniciou-se a imputação
de um novo conceito de força produtiva, pautado pelo já conhecido
referencial ideológico dual de superioridade/tutela versus a inferioridade/
ignorância. O mesmo discurso que se revestia do dever moral, do
crescimento, do progresso e das vantagens que o trabalho poderia trazer
para as vidas e para as sociedades tradicionais africanas, na realidade
mascarava o desejo de que estes mudassem seus valores e costumes
e se aproximassem do considerado civilizado. A contraditoriedade do
discurso faz deste relatório um documento crucial.
Assimilar é, essencialmente, um processo em que outras sociedades,
etnias ou conjunto de pessoas assumem características culturais,
sociais e econômicas de outro grupo, usualmente dominante. No caso
português, a assimilação foi uma ação estrategicamente pensada e
forçada, que deveria ser conduzida pelo longo prazo, mas que fazia
parte de um objetivo maior: o econômico.
Para que os indígenas trabalhassem em prol do desenvolvimento
103 ENNES. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p. 44-46.
da colônia e, por que não, da Metrópole, eles precisariam abandonar o
seu modo de encarar o trabalho como uma função social a ser realizada
por e para o grupo. Por isso, deveriam ter arraigado dentro de si a
noção de emprego, de dinheiro, de lucro e de moralidade próprias da
racionalidade capitalista. Para isso, a saída foi, sob a retórica da tutela,
usar a força legal contra estes povos104.
Embora não tenha sido o único dispositivo jurídico responsável por
regular a relação laboral em Moçambique durante todo o colonialismo
português, e nem as matérias legais designadas para tal tivessem se
mantido imutáveis, o Regulamento do Trabalho Indígena105, de 1899,
marcou o início da lógica de obrigatoriedade e trabalho forçado que
se manteria, ainda que maneira relativizada, no período em que o
assimilacionismo foi considerado uma política. Mudaram-se os regimes
políticos, mas houve uma relativa continuidade destas características,
como é possível verificar nos fragmentos abaixo do Decreto nº 12.533,
de 1926. Nestes trechos estão expostas as três classificações de trabalho,
distinguidos em termos legais:
Aos indígenas é garantida a liberdade nos contratos de prestação de serviços. A autoridade assegurará a validade e a execução dêstes contratos. O trabalho compelido só é permitido quando absolutamente indispensável, em serviços de interêsse público, de urgência inadiável. Êste trabalho será remunerado conforme as circunstâncias (...)
As penas correccionais podem ser substituídas por trabalho
correccional e as maiores por trabalho público106.104 Além do trabalho correcional e outras penalidades legais, o Estado durante muito tempo permitiu que castigos, inclusive físicos, fossem desferidos contra os que se recusassem, de alguma forma, ao trabalho.105 Conforme já informado, profundamente influenciado por Antonio Ennes e a sua comissão de 1898.106 PORTUGAL. Decreto nº 12.533, de 23 de outubro de 1926. Promulga o estatuto político, civil e criminal dos indígenas de Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.237, 23 out. 1926, I Série. Disponível em: http://www.dre.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 401Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Há referências ao trabalho obrigatório como sentido de pena ou de
imposição prevista em lei, no Estatuto do Indigenato, de 1954. Neste
documento, entretanto, o ideal principal era afirmar a liberdade de
escolha em relação às atividades laborais, pois afirmava que:
O Estado procurará fazer reconhecer pelo indígena que o trabalho constitui elemento indispensável de progresso, mas as autoridades só podem impor o trabalho nos casos especìficamente previstos na lei107.
O trabalho estava ligado ao progresso e a civilização, em uma
relação direta com absorção destes valores por parte dos nativos.
Uma vez legalmente assimilado, contudo, o indígena passava para a
categoria de “não indígena”, e não mais seria regido por estas leis.
Poderia escapar do trabalho compelido ou correcional, mas isto não
significaria que estava livre da obrigação de ter um emprego. Ter meios
de sustento era imperativo tanto para conseguir quanto para manter
a condição de assimilado. Porém, ser legalmente assimilado não
era garantia de equiparação de salários e condições em relação aos
brancos. Geralmente a estes eram asseguradas as maiores posições
dentro do aparato político-administrativo do Estado, bem como os
salários mais altos e os melhores cargos dentro da iniciativa privada.
Os salários, mesmo para as mesmas funções, não eram iguais para
os assimilados e para os brancos. E, algumas vezes, os assimilavam
omitiam a sua condição jurídica para conseguir um emprego, pois alguns
empregadores não os contratariam se descobrissem este fato, visto que
teriam que desembolsar um salário maior do que o de um indígena108.
pt/. Acesso em: 08.ago.2012.107 PORTUGAL. Decreto-Lei nº 39666, de 20 de maio de 1954. Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique. Diário do Governo, Lisboa, n.110, 20 mai. 1954, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011108 MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Lisboa: Sá da Costa, 1975.
Os assimilados, embora juridicamente cidadãos, não eram social e
economicamente aceitos pelos brancos, não tinham a oportunidade de
galgar as mesmas posições destes dentro do sistema colonial, ao passo
que eram segregados em termos de direitos e posições de trabalho dos
seus irmãos de cor, que menos ainda poderiam desejar.
Sozinho, entretanto, o trabalho não seria responsável por operar
todas as mudanças culturais desejadas pelos lusitanos no seio das
sociedades indígenas. Eram necessários outros mecanismos de
educação para a civilização. O ensino formal, assunto discutido em
seguida, foi um deles.
3.3 Educação como pilar
A ambição assimilacionista portuguesa em civilizar os indígenas
ao molde europeu, os aproximando da cultura e da nação lusitana,
não lograria alcançar seus objetivos sem um dos principais recursos
empregados para imposição ou expansão de um constructo ideológico:
a educação. É inegável a posição privilegiada ocupada pela instrução
como um poderoso mecanismo de transmissão e reprodução de valores
culturais de um determinado grupo hegemônico a outro.
O historiador Leo Spitzer estudou as variáveis que influenciavam
positivamente no sucesso do processo assimilativo entre os escravos
libertos por britânicos no século XVIII109. Concluiu que os responsáveis
pelas colônias em que estes ex-escravos eram alocados consideravam
a educação como um dos componentes que facilitavam a absorção 109 Durante o período de proibição do tráfico negreiro no século XIX, os britânicos confiscavam navios negreiros que se atrevessem a continuar este comércio. Spitzer analisou uma colônia de Serra Leoa formada por ex-escravos e bancadas por ingleses. Nelas, o que se buscava era assimilar estes africanos na cultura europeia.
402Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
por parte destes de modos de conduta ou conhecimentos ingleses. Segundo este autor, outro fator determinante era a idade em que estes africanos eram inseridos dentro deste processo, visto que uma criança, por exemplo, teria maior capacidade tanto de aprendizagem quanto de absorção de novos padrões ou informações culturais, inclusive através da imitação dos comportamentos daqueles que estavam há mais tempo dentro da comunidade. Ainda neste sentido, até pela pouca convivência com a sua cultura nativa, a criança teria menos traumas ao assumir a nova cultura, o que conduziria a um processo relativamente mais completo110. Embora o contexto desta análise e o tipo de assimilação que se pretendia nas colônias britânicas diferem do caso português em Moçambique, a importância do ensino formal para inculcação de valores não diminui por isso.
Para os colonizadores portugueses no continente africano, a educação era um elemento não poderia ser deixado de lado, dadas a peculiaridade e a importância desta ação. Afinal, a instrução dos povos nativos com os quais Portugal mantinha contato era um dos “mais difíceis e dos de maior influência para o êxito da obra colonizadora”111.
Antes mesmo da própria fixação efetiva, já se discutiam regulamentações acerca deste tema. O ensino público a ser praticado no ultramar português, especialmente a nível primário, foi autorizado por três dispositivos legais no período de 1845 e 1854, muito embora o seu conteúdo e a sua estrutura curricular diferissem daqueles destinados a Metrópole. No último destes conjuntos legais, inclusive, foi prevista a
criação de escolas públicas em sete regiões moçambicanas. A intenção
110 SPITZER.op. cit.p. 43-45. 111 Esta afirmação foi feita por Lourenço Cayolla, para a Exposição Colonial Internacional de Paris, em 1931. Cayolla foi redator de jornais, deputado, professor universitário e militar. CAYOLLA, L. A educação dos indígenas, dos colonos e dos funcionários coloniais. In: AGÊNCIA Geral das Colônias. Antologia Colonial Portuguesa – Política e Administração. v. 1. Lisboa: Editorial Ática, 1946. p. 227.
destas leis não se transformou em prática, ou seja, não chegou a sair do
nível da pretensão. Décadas se passaram até que, de fato, fosse criada
uma política mais efetiva para propagação deste tipo de ensino.
Na medida em que a presença portuguesa foi tornada indiscutível, a
questão do ensino para os indígenas voltou à luz. Porém, não se trataria
primordialmente de um debate acerca da educação como transmissão
de conhecimento e de desenvolvimento das populações africanas, mas
de que tipo de ensino se desejaria impor às colônias.
Desenvolver economicamente as colônias pressupunha, segundo
a ótica metropolitana, a utilização da indispensável força de trabalho
dos nativos, bem como de interlocutores entre eles, que trabalhariam
em prol dos desígnios e da cultura portuguesa, como uma espécie
de ponte para que a comunicação entre negros e brancos fosse mais
fluída. A educação dos indígenas foi pautada por esta premissa. Suas
políticas, entretanto, seriam voltadas para formar nativos para as
posições administrativas mais baixas dentro deste regime e/ou formar
trabalhadores manuais, necessidades estas que deveriam ser atendidas
para o bom funcionamento do sistema colonial. Era uma educação
direcionada para o trabalho. Dentro desta visão, como discutiria João
de Andrade Corno na década de 1880, a escola não era “para fazer
negros literatos”, mas que saberiam “trabalhar, negros úteis e, por isso
mesmo, civilizados e moralizados pelo trabalho regular”112.
A escola se voltaria para a civilização dos nativos e para o
desenvolvimento da noção de trabalho como emprego, elementos que
articulariam as discussões sobre como edificar a instrução nas colônias.
112 CORVO.ap.MADEIRA, Isabel. Ler, Escrever e Orar - uma análise histórica e comparada dos discursos sobre a educação, o ensino e a escola em Moçambique, 1850-1950. 2007. 638 f. Tese (Doutorado Ciências da Educação) – Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2007. Disponível em: http://repositorio.ul.pt/. Acesso em: 10.ago.2012. p.96.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 403Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
A ação pedagógica da Metrópole em Moçambique, assim sendo,
seria fundamentada naquilo que dentro do próprio arbitrário cultural
lusitano deveria ser transmitido aos nativos, para que o trabalho como
emprego fosse apropriado como valor essecial. Este ato pedagógico
seria, segundo Bourdieu, como qualquer outro dentro de uma relação
de forças sociais, pois:
Numa formação social determinada, o arbitrário cultural que as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas dessa formação social colocam em posição dominante no sistema dos arbitrários culturais é aquele que exprime o mais completamente, ainda que sempre de maneira mediata, os interesses objetivos (materiais e simbólicos) dos grupos ou classes dominantes113.
O ensino que os portugueses desejavam perpetrar em seu ultramar
deveria se relacionar com os interesses maiores da nação, que estavam
ligados diretamente à promoção do crescimento econômico da colônia
em prol do enriquecimento material e simbólico da própria Metrópole.
Mesmo que revestido de uma capa de tutela e de uma acepção altruísta
de trazer os benefícios da civilização aos nativos, as escolas em suas
colônias, Moçambique incluso, acabariam se encaixando dentro deste
objetivo.
Até a década de 1920, o Estado era formalmente o responsável
pela educação em Moçambique, exceto nas regiões cuja administração
estava em outras mãos, onde as Companhias Majestáticas eram
designadas a prestar tal serviço. Entretanto, diante de outras prioridades,
ambas as instituições não investiram o que deveriam na criação de
escolas, embora houvesse em território moçambicano algumas missões
religiosas que possuíam também um caráter instrutivo. A educação
113 BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.p.22.
formal dos indígenas estaria em um plano secundário, pois a preferência
estava em fazer com que os braços africanos trabalhassem114.
Após a mudança de regime em Portugal para República, em 1910,
houve o desejo por parte do governo em desenvolver a educação
primária na Metrópole, visto que o analfabetismo atingia a grande
maioria da sua população, chegando a cerca de 75% dela115. Definiu-
se como obrigatória a escolaridade para crianças com idades entre
7 e 10 anos. Isto poderia ter aberto uma nova possibilidade para as
colônias, mas os problemas econômicos enfrentados por este governo,
aliado ao colonialismo que se desenvolvia, fizeram com que, mesmo
intencionado, a redução do analfabetismo, tanto na Metrópole quanto
na colônia, não obtivesse resultados expressivos. Além do mais, a
secularização constitucional do país esfriaria a relação com as missões
religiosas que se encontravam na colônia e que, desejadas ou não, por
vezes trabalhavam neste sentido116.
114 Lembrando também que, até 1918, não haviam sido erradicados os focos de resistência à própria dominação portuguesa.115 Segundo levantamento feito no país, em 1911 o analfabetismo chegava a 75,1% da população. MARQUES.ap.TAIMO, Jamisse Uilson. Ensino Superior em Moçambique: História, Política e Gestão. 229 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Ciências Humanas – Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, 2010. Disponível em: www.unimep.br. Acesso em: 02.ago.2012. p.48.116 De acordo com a conferência de Berlim, as nações que desejassem manter possessões ultramarinas deveriam seguir certas regulamentações. Uma delas se referia à tolerância religiosa. Porém, tanto as Igrejas protestantes que atuavam na região de Moçambique quanto a influência islâmica, principalmente ao norte, nunca foram bem vistas pelo governo português. Elas não partilhavam do mesmo ideal nacionalista e evangelizador da Metrópole. As missões protestantes que chegaram, ainda na virada para o século XX, não foram capazes de crescerem como gostariam, até pelas restrições e o desinteresse do Estado em apoiá-las. Mantiveram, durante todo o período colonial uma presença tímida, mesmo que importante. Estas religiões eram consideradas perigosas, pois além de serem estrangeiras e poderem incitar sublevações (algumas pregavam o senso de liberdade), preferiam alfabetizar e evangelizar em língua nativa, e não em português, o que levava a desconfiança dos seus reais interesses no local. Já os
404Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
Com o Estado Novo, como vimos, o governo metropolitano
definiu como urgente a implantação de medidas mais eficazes de
colonização e de presença em seus territórios ultramarinos. A ideologia
e as concepções diante do “outro”, indígena, não haviam sofrido
substanciais alterações, mas o ensino, até então relegado, seria uma
das peças chave para o suporte do ideal assimilacionista que se
desenvolveu no período. A questão se centraria na sua sistematização
e na ampliação de uma política educacional para as colônias, pois
durante os períodos anteriores, Monarquia e I República, o ensino foi
pouquíssimo desenvolvido. A reaproximação do Estado com a Igreja
forneceria para Portugal um expressivo aliado nesta empreitada. Mas
para analisar melhor esta situação, é importante ressaltar rapidamente
a relação histórica entre estes dois entes.
Mouzinho de Albuquerque, em 1899, lamentava que as
intransigências partidárias que existiam em Portugal (no sentido de
um distanciamento deste com a Igreja Católica), tivessem feito com
que o governo não utilizasse o potencial das missões católicas como
instrumento eficaz para civilizar e instruir os indígenas com ideais
nacionalistas. Mesmo admitindo ser essencial uma maior estrutura e
quantidade dos missionários para tal, Albuquerque acreditava que
as missões católicas poderiam não somente enfrentar a propaganda
maometana, mas contribuir para a civilização e o desenvolvimento
laboral dos indígenas, pois:
Nelas aprende o indígena a trabalhar, aperfeiçoa os seus tão primitivos processos de cultura, adestra-se em profissões manuais, para as quais revela em geral muita disposição, e, ao mesmo tempo, adquire uns princípios de moral rudimentar, que, se de muitos são frequentemente esquecidos, noutros frutificam em benefício próprio e alheio 117
islâmicos preferiam alfabetizar tendo como base a língua árabe.117 ALBUQUERQUE. In: AGÊNCIA Geral das Colônias.op. cit. p.73
A aproximação entre a Igreja Católica e o Estado português remonta a centenas de anos. Porém, durante o período de consolidação do país em solo africano, o governo lusitano e esta instituição não mantiveram uma relação de parceria constante e efetiva para os fins de civilização e evangelização da população autóctone. Até o século XVIII, a empresa missionária em Moçambique estava a cargo dos jesuítas, expulsos em 1834, e de alguns dominicanos que, juntos, deveriam prover a cristianização nas poucas regiões conquistadas. Mesmo com o retorno dos jesuítas no século seguinte, Igreja Católica chegou ao século XX com uma presença pouco expressiva na região. O Estado estremeceu ainda mais esta situação com a laicização do país e das missões civilizadoras, proposta pela I República e oficializada por decreto em 1913. Com a instauração do Estado Novo, a Igreja passou a assumir um papel central dentro da política educacional portuguesa.
Em 1930, com o Acto Colonial, Portugal declarava legalmente a sua aliança com a Igreja Católica118, valorizando o papel que as missões religiosas poderiam exercer no auxílio da intensa tarefa de elevar os indígenas para a civilização e para a moralidade. Para tanto, o país reconheceria e protegeria esta instituição e o Padroado atrelado a ela119, bem como a sua função de elemento de imputação de um ideal de nacionalidade portuguesa. Em seu artigo 24º, declarava que:
118 Intenção esta que vinha sendo desenhada deste a tomada do poder pelo Estado Novo, em 1926. Para os ideólogos deste período de governo, a educação seria um dos meios de fazer com que o império e suas “verdades” fossem apropriados e defendidos pela população, tanto na Metrópole quanto no ultramar. Era o momento em que a mística imperial e a vocação do país para a civilização dos povos inferiores tomava conta do discurso salazarista. 119 O Padroado é um tratado ou acordo entre o governo de Portugal e a Igreja católica, em que esta concede certos poderes àquele através de bulas. As origens do Padroado remontam séculos anteriores à própria formação do país, porém assumiu uma nova função a partir do século XVI. Através do padroado, o rei português se tornaria patrono da Igreja, ajudando a desenvolver, sustentar e enviar missionários as terras que descobria no ultramar, ao passo em que possuía poder político e de decisão sobre alguns aspectos descritos pelo acordo, como a indicação de cargos eclesiásticos.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 405Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
As missões religiosas no ultramar, instrumento de civilização e de influência nacional, e os estabelecimentos de formação do pessoal para os serviços decas e do Padroado Português terão personalidade jurídica e serão protegidos e auxiliados pelo Estado, como instituições de ensino120.
Para consagração e definição dos parâmetros pelos quais a relação
Estado X Igreja se guiaria, foi realizado um acordo entre representantes
de ambas as partes em 1940. Este entendimento, conhecido como
Concordata de 1940, delineou aspectos relativos a participação e
aos limites de interesse e atuação entre os membros. Porém, dentre
as designações da Concordata, alinhou-se uma relação de subsídios
às atividades da Igreja por parte do Estado e o reconhecimento tanto
da personalidade jurídica quanto dos direitos de propriedade católicos,
que haviam sido ameaçados com o advento da I República. Quanto aos
subsídios, afirmava-se:
As corporações missionárias reconhecidas, masculinas e femininas, serão, independentemente dos auxílios que receberem da Santa Sé, subsidiadas segundo a necessidade pelo Govêrno da metrópole e pelo Govêrno da respectiva colónia. Na distribuição dos ditos subsídios, ter-se-ão em conta não somente o número dos alunos das casas de formação e o dos missionários nas colónias, mas também as obras missionárias, compreendendo nelas os seminários e as outras obras para o clero indígena121.
A Concordata traçou os contornos da parceria que se desenvolveria a partir de então, tornando-se legalmente autorizada por Portugal pelo Estatuto Missionário, Decreto-lei nº 31.207, de 1941. Neste decreto, as
120 PORTUGAL. Decreto nº 18570, de 05 de julho de 1930. Aprova o Acto Colonial, em substituição do título V da Constituição política da República Portuguesa. Diário do Governo, Lisboa, n.156, 8 jul. 1930, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011121 MAGLIONE, L.; MARQUES, E..; FIGUEIREDO, M.; DE QUEVEDO, S. V. F. C. Acordo Missionário entre a Santa Sé e a República Portuguesa. Cidade do Vaticano, 7 Maio de 1940.
missões católicas eram “consideradas instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador”122, sendo assim, a expansão de suas atividades seria livre e, por que não, desejada.
Porém, para que as missões assumissem seu real papel, era necessária uma contrapartida por parte do Estado, que subsidiaria as atividades por ele consideradas fundamentais. Assim, o governo português disponibilizaria terras e meios materiais para as suas funções, bem como pagaria os salários e direitos legais relativos aos missionários e funcionários desta instituição e outras despesas cabíveis. Enquanto a Igreja manteria sua independência nos assuntos relacionados ao seu ministério pastoral, bulas e quaisquer instruções da Santa Fé. Contudo, diante do caráter nacionalista português, alguns cargos eram reservados apenas a portugueses, ou preferencialmente destinados a eles, como era o caso dos sacerdotes.
Dentre os serviços que deveriam ser prestados pela Igreja, encontravam-se a direção e a fundação de escolas, a preparação para o sacerdócio, a disponibilização de enfermarias e hospitais e a conversão dos nativos. É, aliás, aos indígenas que Igreja essencialmente se voltaria, pois foi inteiramente confiada ou transferida a ela a responsabilidade do ensino destinado a eles, considerando um período de transição. O conteúdo e a estrutura dele deveriam seguir as premissas almejadas pelo Estado, pois deveriam ter em vista:
a perfeita nacionalização e moralização dos indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho, de harmonia com os sexos, condições e conveniências das economias regionais, compreendendo na moralização o abandono da ociosidade e a preparação para futuros trabalhadores rurais e artífices que produzam o suficiente para suas necessidades e encargos sociais.123
122 PORTUGAL. Decreto nº 31207, de 05 de abril de 1941. Promulga o Estatuto Missionário. Diário do Governo, Lisboa, n.79, 5 abr. 941, I Série. Disponível em: http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011123 PORTUGAL. Decreto nº 31207, de 05 de abril de 1941. Promulga o Estatuto Missionário. Diário do Governo, Lisboa, n.79, 5 abr. 941, I Série. Disponível em:
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A prioridade, contudo, estava no ensino primário, na alfabetização.
O ensino secundário, ou mesmo universitário, foi relegado a segundo
plano. Em 1963, por exemplo, havia apenas três escolas secundárias
do Estado que poderiam conceder o diploma final de conclusão124. Foi
apenas neste mesmo ano que se inaugurou a primeira instituição de
ensino superior em Moçambique125.
O ensino foi organizado de forma com que se separassem as
turmas e os currículos dos cursos destinados aos indígenas daqueles
direcionados aos brancos, assimilados e indianos. Os não-indígenas
estudariam o Ensino Primário Elementar que compreendia 4 classes126 e,
após, seguiriam para o Ensino Liceal (ou Secundário) de 7 anos. Após,
o aluno poderia se candidatar ao ensino superior, fora da colônia. Os
conteúdos e a estrutura da instrução dos não-indígenas seria semelhante
ao existente na Metrópole.
Já o Ensino Primário Rudimentar (ou de adaptação), destinado aos
indígenas, seria composto por três classes, que equivaleriam a 2ª classe
do elementar. Após, os nativos poderiam seguir para as escolas “técnico-
profissionais”, nos locais em que elas existiam127. Nestas escolas, a Igreja
Católica treinaria os nativos para trabalhos manuais ou para cargos
mais baixos. Assim, estas escolas técnico-profissionais visariam “formar”
nativos para o trabalho doméstico, agrícola, artes e ofícios e pecuária.
http://www.dre.pt/. Acesso em: 29.mai.2011124 MONDLANE. op. cit. p.76125 O primeiro curso de graduação aberto em Moçambique foi o de Estudos Gerais Universitários.126 Na década de 1950, seria incluída uma quinta classe, obrigatória para os que desejassem seguir estudando nos liceus.127 SILVA, Gabriela M. M. da. Educação e Género em Moçambique - A língua é um factordeterminante para o sucesso escolar das raparigas nos meios rurais? Estudo de caso em duas escolas com programa bilíngue. 137 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Letras – Universidade do Porto, Porto, 2006. Disponível em: http://repositorio-aberto.up.pt. Acesso em: 10.ago.2012.p.44-45.
Mas havia dúvidas sobre quem deveria ser responsável em prover
a educação entre os indígenas, se nem ao menos na Metrópole ela
era algo difundido. A resposta novamente se encontrava naqueles que
haviam passado pelos mesmos processos e que entenderiam, por isso,
a psicologia dos seus estudantes, bem como facilitariam a transição da
língua nativa para a civilizada: os próprios indígenas.
O educador indígena, entretanto, deveria receber treinamento para
poder se aperfeiçoar. Assim, as missões católicas teriam também a seu
a encargo a formação/habilitação de professores nativos, que seria
realizada nas chamadas Escolas Normais. A primeira delas, a Escola de
Habilitação de Professores Indígenas, foi criada em 1926, antes mesmo
da Concordata ou do Estatuto Missionário128.
A separação entre o ensino elementar e o rudimentar era justificada
por acreditar-se que as crianças indígenas não estariam no mesmo
patamar das europeias ou assimiladas. O critério para definir quem
estaria destinado ou não a entrar nesta ou naquela escola era baseado
na dualidade entre os indígenas e os legalmente considerados como
civilizados. Entretanto, mesmo aqueles que haviam convivido diretamente
com a cultura portuguesa, se não possuíssem o alvará ou carteira de
assimilado, deveriam obrigatoriamente passar pelo ensino rudimentar.
O ensino rudimentar serviria como uma iniciação ao mundo
civilizado português, a ser realizada de maneira gradual e tutelada.
Desta forma, seria um mecanismo de imposição que através do sistema
pedagógico de outro conjunto de valores culturais ou, conforme
afirmava Bourdieu, de “uma violência simbólica enquanto imposição,
por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural”129.
128 Este fato mostra que o Estado Novo já estaria estreitando os laços e incentivando a presença das missões no local, antes da própria assinatura da Concordata.129 BOURDIEU.op. cit.p.20. (grifos do autor)
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 407Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
No caso português, esta imposição de valores foi uma constante130,
visto que o conteúdo ministrado nas escolas que possuíam o ensino
rudimentar visava a preparação da criança para a ocidentalização e
a nacionalização em torno de Portugal. Para isto, estas instituições se
propunham a fornecer a aprendizagem da língua portuguesa, com
rudimentos de escrita e leitura, e igualmente de conteúdos de matemática
básica e outros que incitassem a absorção da cultura lusitana e seu
arbitrário cultural, por parte dos nativos africanos. Os conhecimentos
tidos como civilizados, aliás, eram postos em relação de superioridade
aos africanos, cuja inferioridade serviria para incutir a subalternidade
frente ao português. Estas escolas não fugiriam do ensino catequético,
visto como um dos pilares para a moralização do indígena.
A língua portuguesa, alias, era um dos principais elementos
nacionalizantes, dentro e fora do ambiente estudantil. Portanto, para
assimilar um indígena o Estado deveria incentivar meios para este
assumisse como sua língua o português, dito culto e superior. Diante disto,
os professores das escolas rudimentares eram obrigados a usar dentro
delas a língua portuguesa, embora fosse facultado à Igreja, em seus
serviços religiosos fora das suas dependências, o uso da língua nativa.
Completados os três anos referentes ao ensino rudimentar, o
indígena poderia almejar continuar sua instrução no ensino primário
elementar, se aprovado para tal. Poucos foram os que seguiram neste
caminho ou mesmo chegaram ao ciclo seguinte (o ensino liceal). A
resposta para este insucesso estudantil está na criação, por parte do
sistema colonial, de certos obstáculos que foram construídos para
limitar o acesso dos nativos às etapas posteriores de ensino.
130 Isto não significa que o ato educativo português estivesse desvinculado da violência física. Ao contrário, as punições físicas estavam presentes, em maior ou menor grau, como forma de castigo tanto no meio laboral quanto no meio estudantil.
A dificuldade não estava apenas na estrutura do currículo escolar, mas também no próprio corpo docente, que em geral era mal preparado. Muitas vezes, estes professores nativos ensinavam o português sem ao menos dominar esta língua, que não era originalmente a sua. Aliado isto, outros fatores prejudicavam a condição do professor, tais como os baixos salários e o pouco conhecimento acerca das outras disciplinas. Por isso, muitas vezes estes educadores acabavam por instruir seus alunos focando no catecismo e no português, mesmo dentro das limitações que muitos tinham com a língua. Desta forma, o conteúdo dominado pelos alunos era insuficiente para que estes pudessem obter aproveitamento o bastante para frequentar o ensino primário elementar. Além do mais, se quisessem entrar em uma escola elementar, teriam que tentar antes de completar 14 anos de idade, inviabilizando ainda mais o seu progresso no meio acadêmico.
Buscando analisar o percurso dos alunos negros durante sua trajetória estudantil, Lorenzo Macagno estudou as estatísticas de saída dos alunos negros do ensino liceal, ou seja, a quantidade de formandos das duas grandes escolas secundárias da capital, Lourenço Marques. Resumidamente, Macagno apresentou os seguintes números:
Aproveitamento Final de alunos dos liceus Salazar e Antônio Ennes (1960/1961)
Classificação Qtd FormandosAmarelos 24Brancos 1852Indianos 51Indoportugueses 212Negros 49Mistos 100Total 2288
Fonte: MACAGNO.op.cit. p.107131
131 Segundo Macagno, seria ingênuo acreditar que as estatísticas apresentadas pelos órgãos oficiais do governo ou da Igreja Católica fossem neutras. Para ele, o processo como eram estatisticamente apontados os indígenas que saiam das
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Ainda que discutisse o caráter contraditório da classificação racial
dos alunos, Macagno concluiu que mesmo tentando buscar outras
estatísticas, os resultados pareceriam semelhantes: uma minoria negra
completava este tipo de estudo132. O que nos leva a coligir que o
ingresso no nível seguinte, o universitário, seria ainda mais difícil.
O acesso à educação universitária por parte dos africanos era, diante
das dificuldades impostas pela administração colonial, extremante raro.
Poucos foram os que chegaram a galgar tal título.
Ao analisar esta questão, Macagno entrevistou Domingos Arouca,
o primeiro “doutor negro” em direito de Moçambique, formado por
uma universidade portuguesa. Segundo ele, conseguir prosseguir
nos estudos era difícil, pois “o filtro era muito apertado para se
conseguir um curso superior, era preciso que o preto fosse muito
bom, era praticamente um desafio”133. Além do mérito e da qualidade
do estudante, era fundamental que um “padrinho” (um bispo, um
missionário, um burocrata, ou outro) que ajudasse esta pessoa a passar
pelos enclaves administrativos ou financiasse tal empreitada. Embora
não houvesse proibição, eram impostos “mecanismos administrativos
que dificultavam a entrada, para qualquer moçambicano negro, numa
educação superior”134
Não era de se estranhar que poucos negros conseguissem ultrapassar
as barreiras construídas pelo assimilacionismo português e passar
pelos ciclos educacionais legados aos brancos e aos assimilados, ainda
escolas rudimentares, passíveis de manipulação por parte da Igreja ou por outras formas, impediriam de saber ao certo a quantidade real dos que completavam este estudo. Entretanto, a análise que este autor fez com o ensino secundário já nos mostra as distorções em termos de chances de um nativo africano poder prosseguir em seus estudos. Na verdade, o quadro aqui proposto é um resumo de diversas tabulações feitas por este autor.132 MACAGNO.op. cit. p. 107-114.133 MACAGNO.op. cit. p.102-103.(grifo do autor)134 MACAGNO. ibid. p.103.
que não houvesse nenhuma proibição legal neste sentido. Portanto,
mesmo com o grande incremento no número de escolas após o Estado
Novo, especialmente nas décadas de 1950 e 1960135, e com a maior
quantidade de alunos matriculados no ensino rudimentar, não foram
observadas nem a erradicação do analfabetismo em Moçambique,
que ao findar do período de indigenato girava em torno dos 90% da
população, nem a ascensão de um número razoável de negros.
O que também não se extinguiu foi a intenção portuguesa
em promover controladamente a assimilação dos africanos, sem
dar espaços reais de crescimento, pois sua política visava formar
trabalhadores manuais ou que fossem capazes de pagar seus impostos
com recursos próprios, sem contudo promover a assimilação aos níveis
propostos por Milton Gordon: estrutural, marital, cívico, identificativo ou
receptivo136. A política de assimilação proposta desejava a integração
dos moçambicanos dentro do sistema exploratório colonial, mas sempre
mantendo barreiras racistas que controlavam o acesso dos africanos à
cidadania plena. Isto talvez explique os baixos números alcançados por
esta política. Em 1950, por exemplo, menos de 1% da população era
classificada como assimilada137.
É possível inferir, a partir dos dados e discussões propostos por este
texto monográfico, que o governo português impunha barreiras para
135 Aurélio Rocha, citando vários autores que discutiram a questão do ensino em Moçambique, concluiu que o número de estabelecimentos de ensino passou para em torno 3 mil no início da década de 1960, enquanto em 1933 haviam 251. ROCHA.op. cit. p. 327-334.136 A classificação dos níveis de assimilação de Gordon está disponível no subcapítulo 3.1.137 Segundo Rocha, alguns autores discordam quanto o real número de assimilados em 1950. O número mais citado é o de 4555, para uma população de 5.640.363 de pessoas. Porém, mesmo diante da polêmica, o certo é que a taxa de assimilação não é maior que 1% durante todo o período colonial. ROCHA.op. cit. p. 332.
Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013 409Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
a ascensão negra, pois desejava proteger o próprio sistema colonial
da ameaça de contestação que um grande contingente de assimilados
poderia trazer. Assimilar realmente os povos colonizados implicava
na igualdade de direitos o que num sistema colonial seria impossível,
segundo Memmi, pois o colonizador não iria “admitir tal adequação,
que destruiria o princípio dos seus privilégios”138. Outorgar a todos
os negros os mesmos direitos e oportunidades dadas a um cidadão
português branco forçaria o rompimento das vantagens do colonizador e
faria ilegítima a exploração e a submissão dos colonizados, ameaçando
sua lógica colonial. Diante disto, o próprio “insucesso” da política de
assimilação portuguesa em Moçambique pode ter sido estruturado para
ocorrer, para continuar mantendo o nativo “um não igual”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Já nem sei a que propósito é que isso vinha”, inicia um conto
do moçambicano Luís Bernardo Honwana, que narra a trajetória
de um menino africano interessado em investigar o porquê de uma
particularidade física dos negros, “mas o Senhor Professor disse um dia
que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do
corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas
apoiadas ao chão, como os bichos do mato”139, não as expondo ao sol.
Já o Senhor Padre, que segundo esta criança dizia que os pretos pelo
menos prestavam mais que os outros africanos, ficavam escondidos e
prostrados no chão a rezar, embranquecendo aos poucos suas palmas.
138 MEMMI. op. cit. p. 106.139 HONWANA, Luís Bernardo. As Mãos dos Pretos. [s. l.]: [s. n.], 1964. Disponível em: http://issuu. com/. Acesso em: 01 nov.2012
Não aceitando estas explicações e obstinado a descobrir uma
resposta, o menino entrevistou alguns conhecidos. Dona Dolores lhe
disse que Deus fez as mãos dos pretos assim para não sujarem a
comida dos patrões ou qualquer outra coisa que estes pedissem. O
Senhor Antunes da Coca-Cola, rindo e em tom de piada, informou que
Deus e os que estavam no céu penduraram pelas mãos as formas de
barro da qual fariam os negros no alto da chaminé celeste e as palmas
não se queimaram como fumo. Já para o Senhor Frias, os negros foram
criados como os outros homens, mas como foram feitos de madrugada
e a água celeste para banhar-se estava fria, eles decidiram molhar só
as palmas das mãos e as solas dos pés. Continuando a sua jornada, o
menino perguntou a mais pessoas até, por fim, inquirir sua mãe sobre o
tema. Após chorar de tanto rir, esta lhe explicou que Deus criou os pretos
desta forma, mas depois se arrependeu, pois eles foram satirizados e
escravizados pelas suas diferenças. Assim, decidiu fazer com que suas
palmas ficassem iguais aos dos outros homens, até para salientar “que
o que os homens fazem, é feito por mãos iguais, mãos de pessoas
que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa
são homens”140. Após ter as mãos beijadas pela mãe, o menino correu
para brincar, sem entender como alguém poderia chorar tanto sem ter
apanhado.
Este conto, escrito em meados da década de 1960, era uma crítica
ao sistema colonial vigente em Moçambique e à forma com que ele
se desenvolveu. O autor percorreu, mesmo que rapidamente, pelas
marcas deixadas pela escravidão moderna, causada pela simples
diferença de cor. A própria pergunta e as respostas que advieram dela
fornecem um relato de vários princípios e pré-conceitos que estavam na
base do pensamento e da política de dominação portuguesa: a escola
140 HONWANA. op. cit. p. 3.
410Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2013
como criação do sentimento da superioridade dos valores lusitanos
e instrução civilizacional; o evolucionismo tão presente no racialismo
científico do período; a Igreja como fator de conversão e parceria
com o sistema; a absorção da cultura cristã e dos hábitos e costumes
europeus e, acima de tudo, a relação de inferioridade e subalternidade
impostas aos negros, para muitos até perante Deus. Desigualdades
estas contestadas pela mãe, que classifica esta relação como obra do
homem, não divina.
Os elementos presentes nesta narrativa literária foram, em maior
ou menor grau, observados nos discursos, na legislação, nas fontes e
nos documentos relacionados ao período de colonialismo de Portugal
em Moçambique e demonstram, ainda que o conto se trate de um texto
ficcional, as concepções envolvidas nele.
Embora os contatos portugueses em território moçambicano
remontem ao final do século XV, a presença efetiva na região somente
se consolidou a partir do último quartel do XIX, motivada principalmente
pela Conferência de Berlim, pelas pretensões estrangeiras e pelo desejo
do governo lusitano de estabelecer a sua posse e, através dela, angariar
lucro para sua nação, que enfrentava dificuldades econômicas. O
domínio e a necessidade de desenvolvimento da colônia tornaria
urgente a relação com o “outro”: o negro. O africano, que não poderia
mais ser escravizado, deveria participar do sistema colonial que o
governo metropolitano desejava estabelecer.
As representações e as legislações portuguesas direcionadas aos
nativos africanos durante o período analisado, 1895-1961, foram
profundamente influenciadas pelo ideal racialista que se expandiu no
final do século XIX. As formas de tratamento e as decisões ligadas à
alteridade europeu-africano foram legitimadas pelo racismo científico.
Diante do conhecimento pautado pelas Ciências, como a Antropologia,
e pelo discurso aceito no mundo europeu, o português encarava o
negro como alguém pertencente a uma raça não somente diferente,
mas inferior à sua. Para os lusitanos a cultura, a organização social,
os atributos físicos e outras características das sociedades africanas
tradicionais eram inferiores e atrasadas, bem como diretamente
determinadas pela sua raça, fazendo com que o nativo fosse incapaz
progredir por si só. A única maneira para alcançar resultados positivos
estava relacionada com o intermédio do branco, que através de um
longo e gradual processo tutelaria estas almas “infantis”, protegendo-
as da sua própria inocência e incapacidade de regência de seus bens
e de si, como um “pai” faz a um “filho”. Aliás, guiar estes povos pelo
extenso caminho que os elevariam ao patamar dos povos civilizados
era uma missão ou vocação para portugueses, sentimento este posto
em evidência principalmente durante o Estado Novo.
Percebe-se, assim, que a relação colonizador-colonizado que esta
nação mantinha possuía uma dualidade marcada que contrapunha
o branco (cultura, superioridade, religião, progresso, civilização)
e o negro (usos e costumes, inferioridade, superstições, primitivo,
selvageria, atraso). Esta polarização foi o pano de fundo das decisões
tomadas para legitimar a exploração dos africanos, consubstanciada
em leis e dispositivos especiais destinados a estes povos que, mesmo
que o discurso apontasse para as benesses deste processo, deveriam
abandonar a sua própria cultura, sua religião, seus hábitos e função
de trabalho em prol daquilo que a Metrópole considerava correto. Para
tanto, o governo português optou por uma política assimilativa.
Assimilar o indígena significava suprimir e transformar seus usos
e costumes e fazer com que ele se apropriasse dos padrões culturais,
políticos, sociais e econômicos da Metrópole. Esta violência simbólica,
nunca efetivamente desligada da ameaça de castigos corporais, era
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pautada e reforçada por uma dominação que utilizava de uma força
desigual de imposição dos seus “meios educativos” e de destruição do
referencial de mundo africano. Como numericamente os ditos civilizados
eram apenas uma pequena minoria, na década de 1960 como vimos
eram em torno de 2%, dificilmente sua presença e os contatos que
travavam com os nativos seriam suficientes para influenciá-los ou
convencê-los no sentido de uma mudança cultural radical. Mecanismos
de assimilação precisavam ser impulsionados. O primeiro deles se foi
o trabalho.
O colonialismo português procurava revestir seu discurso de
paternalismo e abnegação, como uma nação que não media esforços
para trazer aos nativos as “dádivas” ocidentais, que melhorariam as
suas vidas moral e economicamente. Porém, é inegável que ele buscava
os benefícios que o lucro obtido na colônia poderia trazer. Devido
ao pouco contingente de imigrantes, era premente fazer com que os
“braços” nativos trabalhassem para o desenvolvimento econômico de
Moçambique. O desafio seria encontrar meios de justificar e legitimar
tal ato, visto que o trabalho para estas sociedades tradicionais era visto
como um dever ou uma função social e não como fonte de renda ou
status. Com cuidado, o governo lusitano criou necessidades, como
os impostos, que deveriam ser cumpridas e que, de alguma forma,
obrigaria o indígena ou a ter um emprego ou a gerar excedentes que as
satisfizessem. O Estado argumentou que a vadiagem, como uma falha
de caráter, deveria ser combatida entre os legalmente indígenas. Assim,
engendrou mecanismos legais que pela força coercitiva obrigariam os
nativos a adquirem “meios de sustento” e melhorarem “suas vidas”.
A regra, simplificadamente, era esta: se um indígena não pagasse os
seus deveres fiscais ou tivessem meios de sustento (trabalho voluntário)
e não aceitasse uma posição laboral indicada pelo Estado (trabalho
compelido), ele seria encaminhado para atividades obrigatórias, de
caráter penal (trabalho correcional). De uma forma ou de outra os
negros seriam obrigados a “contribuir” para o bem da colônia, à custa
de salários e condições de trabalho horríveis, que poderiam tanto
levá-los para longe de seus locais de residência quanto a receberem
castigos físicos de seus empregadores. O trabalho, ainda segundo a
visão portuguesa, teria um fator educativo muito forte, já que construiria
nas mentes inferiores e atrasadas a virtude do labor, do emprego.
Outro elemento fundamental para o assimilacionalismo lusitano foi
a instrução formal, importante meio para lograr a inculcação por parte
dos nativos de referenciais alheios à sua cultura. Embora não tenha
sido negada a sua relevância no início da colonização contemporânea,
a educação somente tomou contornos de uma política estruturada e
fomentada a partir do Estado Novo, especialmente após a assinatura
de acordos ente este e a Igreja Católica, que ficaria responsável pelo
ensino dos indígenas. Como os nativos não estariam no mesmo
patamar das crianças civilizadas, eles eram destinados para as Escolas
Rudimentares que ensinavam rudimentos de escrita, matemática e
outras disciplinas, sempre aliadas ao catecismo. Se aprovadas em teste,
os alunos destes estabelecimentos poderiam prosseguir seus estudos
em escolas elementares e, posteriormente, nas liceais destinadas aos
brancos, assimilados ou estrangeiros. Entretanto, a péssima preparação
dos professores, a idade limite de 14 anos para completar esta etapa
e a própria estrutura curricular dificultavam ao ponto de quase impedir
o acesso das crianças provenientes das escolas rudimentares ao ensino
destinado aos civilizados. Assim, os nativos ficavam limitados a estudar,
no máximo, em escolas técnicas que os preparariam para trabalhos
manuais. Desta forma, a estrutura da escola foi criada para fomentar a
ocidentalização, a cristianização e o nacionalismo em seus estudantes
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ao mesmo tempo em que os preparavam para ocupar apenas os
escalões mais baixos da iniciativa pública e privada.
Vale ressaltar que um assimilado, status que se estendia aos filhos
e cônjuges, somente seria considerado juridicamente como tal se não
apenas adquirisse valores e hábitos portugueses, mas provasse que
possuía e poderia manter alguns requisitos básicos, entre os quais
o conhecimento da língua portuguesa escrita e falada, ser casado
legalmente ou se solteiro declarasse que não seria polígamo, o
abandono dos usos e costumes de sua raça e possuir meios de sustento
lícito, que bancasse sua vida civilizada. Requisitos exigentes demais
até mesmo para um português cumprir, visto que a maioria deles
era analfabeta no período e muitos homens lusitanos estavam dentro
de relações polígamas. Em troca desta condição legal, o assimilado
possuía algumas “vantagens”, como escapar das formas compulsórias
de trabalho, receber seus salários em libras esterlinas, estudar em
escolas elementares, entre outras.
A assimilação formal, como um aparato jurídico, categorizou
oficialmente a segregação da sociedade moçambicana entre duas
esferas: indígenas (a maioria da população, que seguia seus usos e
costumes e estava em um estágio atrasado de evolução) e os não-
indígenas (assimilados, cidadãos portugueses, estrangeiros). Os
assimilados, contudo, embora fossem igualados aos brancos em termos
de cidadania, não eram efetivamente social e economicamente aceitos
entre eles, não chegando aos cargos mais altos da administração
pública ou participando dos seus círculos sociais ao mesmo tempo em
que se distanciavam dos seus irmãos de cor.
Assim, ao analisar o tipo de assimilação praticado pelo governo
português, notou-se que ele não foi de base universalista e igualitária,
dando aos assimilados e aos colonos as mesmas chances e direitos. No
caso lusitano, o assimilacionismo foi pensado e estruturado para que
realmente apenas uma pequena parcela da população nativa passasse
pelas barreiras impostas pelas legislações diferenciadas, pelo trabalho
obrigatório, pela educação rudimentar ineficaz e pelo preconceito
pautado pela diferença de cor e suposta superioridade branca. Era
uma assimilação voltada para formar os trabalhadores manuais ou
que pagassem seus impostos com recursos próprios. Desta forma, o
governo buscava integrar esta população indígena em sua estratégia
colonialista, mas criava e mantinha barreiras racistas que controlavam
o acesso deles à cidadania.
Isto posto, a assimilação idealizada por Portugal poderia ser
classificada como tendencial, uma vez que os indígenas não eram
considerados iguais aos brancos, mas tenderiam a ser cidadãos como
estes num futuro distante, se dadas as condições para que gradual e
controladamente se elevassem à civilização. Este controle era idealizado
por um sistema que desejava manter-se como tal, se autoprotegendo
através de barreiras restritivas e do tendencialismo. Afinal, de acordo
com esta peculiar política de assimilação: seria arriscado para a relação
colonial se todos fossem considerados iguais.
No início dos anos 1960, ao findar-se o período de indigenato,
os resultados alçados pela política de assimilação portuguesa em
Moçambique foram muito baixos. Alguns estudiosos consideram a
baixa efetividade da assimilação formal um insucesso do próprio
sistema desenvolvido. Porém, um questionamento que poderá ser
feito em pesquisas futuras é se este insucesso em termos estatísticos
foi construído para ocorrer, como uma estratégia de manutenção
do império português, ou se ele foi resultado não somente de sua
estruturação, mas também da própria dinâmica interna dos negros
africanos em termos de resistência sub-reptícia ou de fato.
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Importa ressalta que mesmo os poucos africanos que conseguiram
vencer as barreiras impostas pelo colonialismo português, igualando-
se juridicamente aos brancos, mas possuíam as mesmas condições e
possibilidades de crescimento. Eles até poderiam ser categoricamente
não-indígenas, mas não eram considerados como iguais.
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