14
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018 1 Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem O Corvo (1983) 1 Daniel Felipe Espinola Lima FONSECA 2 Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Resumo O trabalho analisa o curta-metragem O Corvo (1983), realizado pelo artista multimeios brasileiro Valêncio Xavier (1933-2008), observando seus processos de montagem cinematográfica à luz da modelização semiótica. O filme estabelece um diálogo com o poema homônimo escrito pelo norte-americano Edgard Allan Poe (1809-1849). Acredita-se que o estudo dessa produção fílmica contribua para a investigação dos processos interativos entre meios e linguagens na obra valenciana. Palavras-chave: Valêncio Xavier; O Corvo; cinema brasileiro; montagem cinematográfica; modelização semiótica. Introdução: Montagem Como Exercício Modelizante e Atividade Metalinguística O artista multimeios Valêncio Xavier (1933-2008) tem como um dos elementos marcantes e distintivos de sua obra não apenas a literária, é importante ressaltar, na medida em que a maioria quase absoluta das reflexões ainda se restringe a ela a apropriação de materiais e suas diversas possibilidades configurativas: configuração entendida aqui tanto como princípio organizativo quanto como “tornar imagem”. Suas obras no meio livro são reconhecidas em diferentes estudos como “experimentais”, termo duvidoso e impreciso que, no entanto, contribui para a constatação do aspecto inventivo, transformador, contido em suas criações. Autor de obras abertas ao diálogo, a uma tessitura hipertextual superlativa que promove o encontro entre textos, agregando a eles camadas e transformando-os em novos textos eis aqui uma das definições possíveis para a modelização semiótica tão cara a Iuri Lotman e seus pares , e a uma consequente variedade imensa de procedimentos formais, o estudo do trabalho valenciano é, assim, repleto de possibilidades de entradas teóricas que, entretanto, 1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da USP, e-mail: [email protected].

Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

  • Upload
    others

  • View
    12

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

1

Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier

e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem O Corvo (1983)1

Daniel Felipe Espinola Lima FONSECA2

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

Resumo

O trabalho analisa o curta-metragem O Corvo (1983), realizado pelo artista multimeios

brasileiro Valêncio Xavier (1933-2008), observando seus processos de montagem

cinematográfica à luz da modelização semiótica. O filme estabelece um diálogo com o

poema homônimo escrito pelo norte-americano Edgard Allan Poe (1809-1849).

Acredita-se que o estudo dessa produção fílmica contribua para a investigação dos

processos interativos entre meios e linguagens na obra valenciana.

Palavras-chave: Valêncio Xavier; O Corvo; cinema brasileiro; montagem

cinematográfica; modelização semiótica.

Introdução: Montagem Como Exercício Modelizante e Atividade Metalinguística

O artista multimeios Valêncio Xavier (1933-2008) tem como um dos elementos

marcantes e distintivos de sua obra – não apenas a literária, é importante ressaltar, na

medida em que a maioria quase absoluta das reflexões ainda se restringe a ela – a

apropriação de materiais e suas diversas possibilidades configurativas: configuração

entendida aqui tanto como princípio organizativo quanto como “tornar imagem”. Suas

obras no meio livro são reconhecidas em diferentes estudos como “experimentais”,

termo duvidoso e impreciso que, no entanto, contribui para a constatação do aspecto

inventivo, transformador, contido em suas criações. Autor de obras abertas ao diálogo, a

uma tessitura hipertextual superlativa que promove o encontro entre textos, agregando a

eles camadas e transformando-os em novos textos – eis aqui uma das definições

possíveis para a modelização semiótica tão cara a Iuri Lotman e seus pares –, e a uma

consequente variedade imensa de procedimentos formais, o estudo do trabalho

valenciano é, assim, repleto de possibilidades de entradas teóricas que, entretanto,

1 Trabalho apresentado no GP Cinema, XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento

componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da USP, e-mail: [email protected].

Page 2: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

2

permitem que aquele que o adentre se encontre perdido como se estivesse no labirinto

do Minotauro, mito que dá título a uma de suas obras gráficas, publicada nos anos 1980.

Quantitativamente, o aparecimento constante em textos críticos – acadêmicos ou

não – de uma palavra como “montagem” é indicativo de um esforço para um

entendimento da dinâmica interativa entre linguagens variadas como devedora de certa

influência cinematográfica na obra valenciana. Ou de certa consonância com os tempos

modernos, num sentido mais amplo – e o cinema, como a arte onde as questões da

técnica e da impureza ganharam território fértil para serem debatidas, acaba servindo

como uma referência mais imediata para uma analogia acerca de seus procedimentos

criadores, ainda que sua obra também se relacione – continuando-os: olhando para o

passado para apontar para o futuro – tanto, por exemplo, com os desdobramentos do

urinol de Marcel Duchamp quanto com os romances fragmentários e episódicos de um

Oswald de Andrade, em comparações jamais levianas, a despeito de apressadas.

O uso do termo montagem nos estudos literários valencianos não é homogêneo.

Ora ele pode remeter – nem que seja para negá-los – aos escritos de Sergei Eisenstein, o

que por si só já implica em se pensar sobre qual aspecto do vasto pensamento do russo

se está falando; ora ele pode funcionar como um artifício que facilita (ou reduz a) uma

aproximação de algum de seus trabalhos impressos com o cinema – autor de “livros que

pediam para ser assimilados como filmes”3, diz um de seus obituários, ou seja, de modo

mais próximo a um fugaz slogan de publicidade do que a uma formulação aprofundada;

ora ele pode remeter a uma espécie de bricolagem; ora pode se restringir a um simples

“unir partes”, sem maiores aprofundamentos, como se extraída de um dicionário

qualquer. Não se pretende aqui elencar possíveis equívocos ou acertos na ainda

pequena, porém já significativa fortuna crítica acerca do artista em questão, mas partir

de tal constatação para reconhecer a sua relevância conceitual para o estudo desse

objeto. Faz-se necessário, portanto, delimitar o seu uso específico aqui: este texto tenta

extrair certa carga conceitual presente em estudos valencianos pregressos e cuja

descrição foi esboçada acima, e trata por montagem a concatenação de elementos

diversos da obra fílmica: camadas sonoras e visuais que a constituem ao longo de sua

continuidade.

Talvez seja correto afirmar, ou, ao menos, seja possível postular, que as relações

promovidas pela atividade apropriativa em Valêncio Xavier impliquem em se

3 Obituário disponível em http://bit.ly/2D8PkdU .

Page 3: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

3

considerar a existência de uma dinâmica relacional em seu núcleo – logo, em uma visão

sistêmica de mundo implícita em seus textos artísticos, o que impede a existência de

uma hierarquia de relevância entre esta ou aquela arte em seus trabalhos: trata-se de um

sistema mais rico e complexo do que comparações esquemáticas podem comportar.

Considera-se aqui, portanto, que o audiovisual, em VX, não é maior ou menor que sua

produção mais reconhecida e festejada. Sua pouca visibilidade, pelo contrário, é mais

corolário de uma trajetória no subdesenvolvimento do que um atestado de irrelevância.

Trata-se, portanto, de um artista, por assim dizer, semiótico por excelência – “e não

somos todos nós?”, ele parece sugerir –, para quem o trânsito entre meios e linguagens

se confunde com o trânsito dos sentidos; para quem traduzir o mundo é continuá-lo;

para quem uma palavra como “movimento” se relaciona mais com “vida”, continuidade,

do que com o cinematógrafo, e “linguagem”, com os registros da memória e os

consequentes imbricamentos de suas instâncias. Estudar Xavier pela via de um objeto

específico, de uma arte específica – um filme, no caso deste texto – é algo válido, mas

apenas se não se deixar para trás tais considerações – algo que, em alguma parcela,

parte da bibliografia sobre sua produção em livro fez, quando defendeu parentescos com

o cinema (e outras artes) e pouco, muito pouco se dignou a ver seus filmes e vídeos.

Se considerarmos, como escreve Irene Machado (2003, p. 146), que a

modelização é “o princípio fundamental da abordagem sistêmica”, que seu “fim último”

é “alcançar um conhecimento sobre o mundo por meio de seus códigos” e que nela “os

diferentes códigos e línguas estabelecem diferentes graus de interação”, podemos

abordar a obra valenciana, ainda que o artista não articule teóricos, como exercícios

experimentais – e aqui a palavra ganha uma conotação para além de um potencial

“experimental” como sinônimo de algo aleatoriamente diferente daquilo que é

mainstream – de correlação entre códigos, que operam sempre questionando os núcleos

duros das artes. Privilegiando criativamente a ocorrência das transcodificações em

regiões fronteiriças, conceito entendido conforme a formulação lotmaniana (1996) – ou

seja, como a zona de troca, de fluidez, que já não pertence a um único sistema de signos

–, este texto trabalha com a hipótese de que a montagem fílmica do curta-metragem O

Corvo é articulada de modo a funcionar como um instrumento gerador de modelização

semiótica que, em se colocando como experimento configurativo de pensar linguagens,

se apresenta como atividade metalinguística.

Page 4: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

4

Desse modo, o presente texto, partindo da análise da dinâmica de articulação de

elementos desse curta-metragem específico e observando, assim, seus os exercícios de

modelização semiótica, se propõe a iniciar uma movimentação para um

redimensionamento acerca das relações interativas entre linguagens na obra de Xavier, e

consequentemente da dimensão do movimento nela.

O Corvo de Poe como Manancial de Relações

O poema O Corvo, de Edgard Allan Poe (1909-1949), é exemplar no que se

refere à vida – palavra entendida aqui, é importante repetir, como movimento,

continuidade, transformação criadora – que um texto, elemento da cultura, pode ter para

além de sua criação “original”. O termo vai aqui entre aspas, uma vez que é bastante

problemático de um ponto de vista semiótico-sistêmico; entretanto, foi escolhido porque

contribui, esquematicamente, para a condução das ideias que serão apresentadas na

sequência do texto. A título de exemplo, cabe fazer uma constatação um tanto óbvia: a

figura do corvo, que, entre outras coisas, se alimenta de animais em decomposição, já

ocupa um lugar no imaginário humano relacionado à morte antes da redação do poema

em questão, vide sua presença em variadas mitologias, como a grega, onde é

relacionada à má sorte.

Uma das camadas de “vida além” a que se refere aqui – logo, de modelização e

de atividade metalinguística –, no caso desse trabalho específico, nasceu também pelas

mãos de seu próprio autor, quando este redigiu sua Filosofia da Composição, onde

escreveu:

Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista, por

um autor que quisesse, isto é, que pudesse, pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de

acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa

que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais

responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa. Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem ter por entendido que compõem

por meio de urna espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente

estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os

verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros

relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as

imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e

Page 5: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

5

interpolações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de

mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a

tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário. Bem sei, de outra parte,

que de modo algum é comum o caso em que um autor esteja absolutamente em

condições de reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram atingidas. As sugestões, em geral tendo-se erguido em tumulto, são seguidas e esquecidas

de maneira semelhante. (POE, 1999).

Como se pode ler nesse longo trecho, em Poe, a metalinguagem se apresenta

como necessidade. A existência desse texto segundo que fala sobre um texto primeiro –

emprestando a descrição de Roland Barthes (2013, p. 160) acerca do que seria e de

como funcionaria a crítica, descrição que sua própria produção viria problematizar –

implica em um encaminhamento oposto ao de um “acabamento4” (linha 4), bem como

em uma consciência e em uma reflexão da engenharia formal presentes na atividade

artístico-criativa, para além da “intuição estática”5 (linha 8). Se lhe geram dúvidas as

condições de um autor (linha 19) para dissecar seu próprio trabalho, a um eventual

crítico pode se apresentar tal tarefa – ao outro, ou seja, a um interlocutor, portanto.

Um desses interlocutores foi outro crítico-criador, o celebrado argentino Julio

Cortázar, que escreveu um precioso ensaio em que mapeia as diversas camadas do

sistema do pensamento do americano, observando seus procedimentos em gêneros

textuais distintos: crítica, poesia, conto. Ele reclama da recepção sociológica e

psicologizante que o escritor recebeu, bem como de críticas impressionistas, para então

dar sua própria contribuição à discussão:

Sem medo de incorrer num critério meramente sentimental, cremos que um

balanço da obra de Poe e de suas consequências [grifo meu], do absoluto e do relativo nela, não pode ser realizado se ela for reduzida a um caso clínico ou a

uma série de textos literários. Há mais, há sempre mais. Há em nós uma

presença obscura de Poe, uma latência de Poe. Todos nós, em algum lugar de

nossa pessoa, somos ele, e ele foi um dos grandes porta-vozes do homem, aquele que anuncia o seu tempo noite adentro. Por isso sua obra, atingindo

dimensões extratemporais, as dimensões da natureza profunda do homem sem

disfarces, é tão profundamente temporal a ponto de viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como nas imagens dos pesadelos, na

maldade humana e também na busca de certos ideais e de certos sonhos.

(CORTÁZAR, 1993, p. 104).

4 Aqui desloco o sentido de acabamento utilizado por Poe no trecho para utilizar a palavra como contraposição a uma possível “finitude”, esgotamento de um texto nele mesmo. 5 A esse respeito, Júlio Cortázar discorda da assertiva de Poe acerca do próprio trabalho: “Embora vigiasse como

poucos o processo de sua criação, escreveu os seus contos como todos os poetas, aceitando o que vinha pela ponte do indefinido e pondo em ordem estética, em criação rítmica de beleza, a outra ordem mais profunda e incompreensível”. (CORTÁZAR, p. 120).

Page 6: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

6

É importante reparar que, na leitura do argentino – trabalho que bem poderia ter

sido feito por um semioticista –, a obra de Poe possui uma espécie de permanência na

cultura, permanência que ultrapassa um determinado tempo e um determinado espaço, e

que se funda como universal, na medida em que tal presença não se restringe às páginas

de um ou outro livro. Pelo contrário, tal presença é geradora de todo um manancial

consequente de textos postos em relação.

Para além do texto crítico de Poe, outra forma de continuidade se encontra nas

traduções. Num ensaio publicado no livro A Operação do Texto, nos anos 1970,

Haroldo de Campos exercita uma crítica de herança poundiana, isto é, via tradução

literária – no caso, de um único excerto do poema, sua estrofe final – e realiza um cotejo

de seu próprio exercício tradutor com o de outros escritores: os brasileiros Oscar

Mendes e Milton Amado, que também traduziram o excerto acima, além de Machado de

Assis e do português Fernando Pessoa – este, o que conseguiu, para Campos, executar

uma tradução superior às demais, devido à riqueza das articulações rítmicas e sonoras.

Indo além da valoração – tomada de posição à maneira de C. Baudelaire, W.

Benjamin e do próprio Ezra Pound, e que no caso deste visa ao reconhecimento de uma

poesia de fundamental importância formal, separando os “inventores” e os “mestres”

dos demais –, com sua devida importância, o que nos interessa aqui, neste momento do

texto, é a demonstração da dinâmica relacional modelizante a partir do poema,

manancial de relações, exemplificadas pelos artigos de Poe e Cortázar, e pelos caminhos

abertos pelo texto de Campos, e que não se encerra neles6, conforme o próprio trabalho

de Xavier o atesta.

As articulações sonoras e rítmicas também ganharão acento no filme valenciano,

mas estabelecerão outras relações para além daquelas apresentadas na extensa lista de

exemplos supracitados, na medida em que essa obra possui outras camadas para além do

texto escrito e declamado. Em outras palavras, o poema de Poe, no filme valenciano,

ainda que condição sine qua non de sua existência, e que funciona de modo algo

“prismático” na dinâmica relacional que será efetuada por Xavier, acaba por ser uma

espécie de “elemento de fundo” da obra – presença universal que a permeia, que tanto

está no poema quanto além e aquém dele, conforme sugerido por Cortázar. Nesse

6 Outro exemplo significativo é o livro O Corvo e suas traduções. Publicado pela primeira vez no final dos anos 1990, o poeta Ivo Barroso seleciona e esmiúça traduções em variados idiomas.

Page 7: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

7

sentido, saltarão à vista duas outras instâncias tradutoras do poema, isto é, dois

elementos já modelizados, que Xavier irá utilizar como material e com os quais irá

dialogar pela via cinematográfica: as gravuras de Gustavo Doré e a escolha de uma

tradução muito pouco conhecida: diálogo hiperlocal, ela foi publicada numa edição do

veículo paranaense Nicolau7 e é repleta de liberdades com relação ao texto do norte-

americano. É nesse ponto que cabe pensar na dimensão da modelização semiótica

promovida pela montagem do filme de 1983.

O Corvo Valenciano

Em relação a outras de suas obras audiovisuais, como o curta Caro Signore

Fellini (1979) e o vídeo O Pão Negro (1993), cujas realizações dialogam do início ao

fim com questões que se iniciam, ou melhor, ganham renovada evidência, com o

advento dos chamados novos cinemas – a câmera nas ruas e sua relação com populares,

que também aparecerá neste filme de 1983, mas de modo menos destacado em sua

primeira metade; idem a relação entre ficção e documentário; etc. – Valêncio Xavier

conversa inicialmente com elementos de vanguarda mais “clássicos” da História do

cinema, ainda que tal denominação possa acarretar na ideia de que O Corvo se

configuraria como uma obra em que predomina o aspecto narrativo, o que não será o

caso. Sobretudo na segunda metade da obra, a herança moderna também se fará

presente, entretanto de início tal aspecto clássico se evidencia pela via do diálogo

declarado com o expressionismo alemão, em especial pelo uso de elementos bastante

óbvios e imediatos tais como a iluminação – ainda que suas sombras nem de longe

lembrem as de um F. W. Murnau –, as opções de enquadramento de certos planos e a

maneira como a arquitetura da cidade é retratada; ainda, indiretamente, pela trilha

incidental orquestrada, pelas vestimentas de alguns dos personagens e também pelo

próprio uso da película em preto e branco. Para traduzir filmicamente o poema

homônimo de Edgard Allan Poe, o diálogo com o expressionismo se apresenta como via

de acesso ao fantasmagórico, aspecto que em sua produção literária já se mostrava

presente na morbidez que perpassa a atmosfera de O Mez da Grippe (1981), entre outros

livros. Como veremos, já nesse curta-metragem de 1983, o cinematográfico faz contato

7 Xavier era radicado em Curitiba, cidade onde o Nicolau era publicado.

Page 8: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

8

com o literário, com o pictórico, com o musical: um sistema pede o outro, e tais

características não são, portanto, exclusivas do meio livro em sua produção artística.

As imagens visuais e sonoras intercaladas com os créditos iniciais do curta-

metragem são muito representativas acerca da dinâmica de articulação de elementos que

perpassará a obra. Enquanto se escuta o Nisi Dominus8 de Vivaldi, vê-se um umbigo.

Na sequência, será a vez da imagem estática de um corvo voando, pedaço recortado de

gravura produzida por Gustave Doré9 para ilustrar uma edição impressa do poema e

apropriada por Xavier para o curta. Depois do título do filme, mostra-se um púbis

feminino. A presença do corvo, e a consequente ideia de morte que perpassa o poema,

nesse momento contrasta com a relação entre as imagens da barriga e do púbis como

geração de vida. Desse modo, o filme já se coloca em um patamar distinto de uma

possível tentativa de adaptação que almejasse uma improvável fidelidade intersemiótica

para com o trabalho de Poe: pelo contrário, o que Valêncio está propondo aqui é

justamente uma contribuição ao trabalho do britânico, na medida em que, iniciando um

diálogo, modeliza o poema – no filme, traduzido por Reinaldo Jardim e Marilu Silveira,

repleto de liberdades com relação a outras traduções, como quebras de verso e a criação

do neologismo “never môr” em lugar de “nevermore” ou “nunca mais”, etc. –,

agregando a ele camadas, e não estando submisso a ele. A essa altura a versão narrada

do poema ainda não se iniciou, mas as cordas da música de Vivaldi funcionam de modo

a criar uma atmosfera opressora à obra, que corrobora com o vôo do pássaro, com a

opção pelo preto e branco da película e com a imagem de uma pessoa defronte a uma

janela e uma luminária antigas – possivelmente contemporâneas a Poe10; e pitorescas,

ainda que não à maneira de um Caligari11 –, do centro velho de Curitiba, cidade onde a

obra foi filmada. Essa presença, de olhar lacônico, possivelmente de um não ator –

nesse momento, essa distinção não será importante –, disposta em diagonal, é

apresentada antes com uma função de uma imagem de carga poética, e que logo

desaparecerá, do que como personagem que dará início a uma causalidade narrativa. O

8 Composição do veneziano Antonio Vivaldi (1678-1741), o trecho selecionado para esse início de filme principia a partir do sexto minuto da música. 9 Gustave Doré (1832-1883; nos créditos do curta, “Gustavo”) foi um importante ilustrador e gravurista francês. Entre outras obras, é reconhecido pela ilustração da Divina Comédia de Dante Alighieri. 10 O Largo da Ordem, local das filmagens, fica no centro histórico de Curitiba-PR e apresenta construções dos séculos XVII e XIX. Edgard A. Poe viveu no século XIX na América do Norte (1909-1949). 11 Feito em 1920, o expressionista O Gabinete do Dr Caligari, dirigido por Robert Wiene, tem como um de seus

elementos de estranhamento a deformação de suas portas e janelas. Não é exatamente o caso aqui, mas o aspecto pré-cinematográfico da arquitetura da cidade sem dúvida também trabalha com a ideia de estranhamento pela via do pitoresco.

Page 9: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

9

plano seguinte, último desse período de créditos iniciais, mostra uma mão mexendo em

espetos de carne sendo assados – breve ponta de comicidade que não chega a ser

desenvolvida, submissa à força da banda sonora. A oposição vida e morte, portanto, é

reiterada. Findos os créditos, cessa a música e começa a declamação do poema. Temos,

assim, um resumo dos elementos – gravuras, música, declamação, imagens em

movimento de atores, populares e da arquitetura da cidade – que serão articulados ao

longo dos doze minutos de duração, sempre em relações de aproximação (umbigo +

púbis: vida) ou de oposição (umbigo + púbis versus corvo: embate ou corolário inerente

à existência, também exemplificado pela imagem posterior da mão que mexe nos

espetinhos de carne, ou seja, vida e morte apresentadas como um processo do qual não

se pode fugir). Ainda que de modo distinto ao de um filme paranaense de 2002,

Visionários – curta dirigido por um ex-aluno da Cinemateca fundada por Valêncio,

Fernando Severo –, que parece estabelecer um diálogo quase didático com um texto

como Métodos de montagem12, é inegável que no Corvo valenciano estão presentes

processos de construção analógica que promovem a emergência do intelectual, bem

como a valorização do potencial sensorial contido na articulação entre o sonoro e o

visual. Tal constatação pode ser significativa para um futuro cotejo de tais processos

com seus textos impressos. O que cabe salientar com relação à presença eisensteiniana

no curta em questão é, mais do que uma conversa direta – caso de Visionários –, uma

espécie de vinculação a uma vertente cinematográfica não hegemônica, ou seja, um

posicionamento que reverbera discussões antigas e fundantes da sedimentação do

cinema como linguagem, quando para o cineasta russo a narrativa cuja base

sintagmática se estruturava pela via do raccord se apresentava como caminho

demasiado fácil e de certa forma empobrecedor do potencial construtivo, do processo

gerador de ideias e sensações da arte cinematográfica para além de apenas contar

histórias. O caminho valenciano em O Corvo, portanto, é pela analogia em detrimento

da contiguidade; pela via da força das imagens poéticas e contra o encaminhamento

linear narrativo.

Na sequência seguinte a câmera acompanha um popular, que aponta para um

relógio de rua antigo, ainda de dia, quando a declamação – realizada pelo ator Paulo

Autran – se inicia com um “É meia-noite. Tenebrosa meia-noite”. A indicação do

12 Texto em que Eisenstein esmiúça as montagens métrica, rítmica, tonal, atonal e intelectual. No Brasil, presente em edições de A Forma do Filme.

Page 10: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

10

relógio é acompanhada por uma imagem exterior noturna, que mantém certa lógica de

ambientação arquitetônica antiga, quase gótica, seguida de uma gravura de Doré, que

reitera a ambientação proposta pelo plano anterior. As imagens seguintes manterão a

mesma relação de correspondência entre o falado e o mostrado: quando se fala em

melancolia, vê-se uma gravura de crianças com feições tristes; quando se fala em livro,

vê-se um close de um livro, também proveniente de uma gravura. No verso “minha

cabeça exausta cambaleia”, há a repetição da imagem infante, mas ela é logo substituída

pelo inserto do close de um rosto de popular, que, executando um sinal de silêncio, ao

contrário, apresenta um olhar mais misterioso do que melancólico; planos adiante, ele

estará, quase sem dentes, rindo com intensidade. Tal presença merece ser refletida, já

que, nesse momento pelo menos, a imagem em movimento é que se insere num

contexto de repetição do estático apropriado, está subordinada a ele. A imagem da meia-

noite de Doré reaparece, agora em sua totalidade, e vê-se nela o desenho do corvo

voando sobre a casa: eis aqui um exemplo de sugestão de movimento sobre a gravura

estática – procedimento similar a alguns momentos da faceta valenciana de escritor, mas

que no caso do filme foi promovido pelo corte de câmera. É interessante pensar em

como algumas produções de outro cineasta brasileiro, Rogério Sganzerla, sobretudo a

partir de meados dos anos 1980, também trabalham com movimentos de câmera em

cima de imagens estáticas, modo operativo de criar e recriar histórias (e a História) a

partir de documentos e em condições de precariedade. Não é exatamente o caso de

Xavier, ainda que seja importante constatar que, em alguma medida, o precário também

se faça aqui presente. Em seu caso, a opção por trabalhar com imagens estáticas talvez

seja em algum grau devedora de sua declarada predileção13 pelo longa-metragem Haxan

– A Feitiçaria Através dos Tempos, documentário de 1922 dirigido por Benjamin

Christensen que alterna iconografia com cenas encenadas e que tenta provar a tese de

que o misticismo não passa de simples crença e invenção humana.

Enquanto o poema é declamado – interpretação que, como os créditos indicam,

privilegia a fala ante uma declamação com marcações versificadas bem definidas –, a

banda sonora é dominada por ele. Não temos o som das ruas, e o aspecto “enlatado” da

gravação em estúdio é bastante perceptível. Quando o poema fala, com pequenas

13 Declaração concedida ao escritor Joca Reiners Terron e reproduzida em fontes variadas, como no livro de Valêncio “Meu Sétimo Dia”.

Page 11: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

11

adaptações com relação à tradução de Jardim e Silveira, em “Ah, Leonor14! (...) Pura,

radiante, virgem e rara, que os anjos no céu chamam Leonor, e aqui para sempre já não

pode ser chamada”, as imagens mostram manequins vestidos de noiva expostos numa

vitrine e a seguir um homem vestido de preto com um guarda-chuva, também preto, em

mãos – não está chovendo – caminhando sozinho pela cidade. Os manequins – a vida

que podia ter sido e que não foi – corroboram o falado; já o caminhante, para além das

relações óbvias com o corvo e a morte, lembra uma das instâncias narradoras do

supracitado O Mez da Grippe, cujas primeiras palavras, em versos, são “um homem eu

caminho sozinho / nesta cidade sem gente / as gentes estão nas casas / a grippe”: trata-se

de um dos vários indivíduos que compõem a tessitura da memória coletiva, presença

fantasmagórica que parece prenunciar as desgraças vindouras. Falar de / com Poe é, em

alguma medida, remeter a si mesmo, tal momento parece sugerir: cabe, pois, à

linguagem refletir sobre si mesma.

Adiante a modelo15 dona da barriga e do púbis do início reaparece, ainda nua, e a

nova organização dos enquadramentos de seu corpo já não trabalha mais com a analogia

que relaciona corpo e vida. Antes, a proposta valenciana é observar o corpo feminino de

maneira próxima como se devassa uma pintura: atentando para os pequenos detalhes –

novamente do umbigo e do púbis, mas também do rosto, dos seios, da barriga, das mãos

que se movem com as palmas para cima, como quem crê receber a graça da energia

divina, etc. –, planos lentos ou parados que vão e voltam circularmente no tempo

contemplativo, ainda que a certa altura o filme prossiga em seu andamento temporal.

Quando o poema chega ao trecho “as cortinas farfalham”, a imagem corresponde

a uma cortina rasgada, balançando ao vento. Esse trecho marca um aumento na

quantidade de imagens exteriores com populares – “homens e mulheres de Curitiba”,

conforme os créditos. Mesmo que agora haja uma ênfase nesse choque entre a câmera e

as ruas, repletas de atores e de populares, ainda veremos algumas imagens de interior,

além das gravuras de Doré. Uma delas, o desenho de um homem abrindo uma porta,

mostrada enquanto se escuta o verso “e me demorei a abrir”, ganha um zoom out,

procedimento que segue a mesma linha de correspondência entre o visual e o sonoro,

com um elemento reforçando o outro; essa mesma imagem depois ganhará um corte, e a

figura humana retratada será mostrada em plano médio. Também merece destaque um

14 No poema de Poe, ela se chama “Lenore”. Em várias traduções em português, de “Lenora” – caso das traduções de Machado de Assis e de Milton Amado. 15 A palavra modelo é dita aqui com uma conotação que se relaciona às artes pictóricas.

Page 12: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

12

momento seguinte, em que o movimento das ilustrações é sugerido pelo virar das

páginas, procedimento que pode ser observado também em sua obra literária, vide

momentos variados de um livro como Minha Mãe Morrendo (2002), sendo o mais

evidente aquele em que uma sequência de fotos maternas é mostrada.

Gostaria de destacar dois elementos dentre as imagens exteriores, que funcionam

como um retrato do mórbido contido no cotidiano: uma mulher loira, que já havia

aparecido brevemente antes, e um homem com deficiência física16. Ela atriz, ele

popular, ambos se confundem com o corvo e com Leonor, a despeito do aparecimento

prévio do homem de preto e da modelo nua, que também de certa forma cumpriam tais

funções. Assim como escrevi acima sobre O Mez da Grippe – mesmo que não seja

possível falar, com relação a esses personagens, em polifonia, caso de seu romance

gráfico –, a relação entre individual e coletivo é proposta. Uma relação antes sistêmica

do que alegórica, na medida em que o outro – no caso, os corvos e as Leonoras, a

própria morbidez das ruas e de seus populares – se apresenta como uma espécie de

continuação, semelhante embora distinto, em lugar de o individual ser representativo de

algo maior – um aspecto específico da nação, por exemplo. No caso do corvo popular, é

ele quem repete, subvertendo a tradução, o “nunca mais”, olhando para a câmera, por

vezes sorrindo. Sua fala é o único momento do curta que apresenta uso de som direto.

Com notável dificuldade de locomoção e de fala, ele é levado até a casa onde a modelo

nua está – eles não se encontrarão. O outro corvo reaparece de modos um pouco menos

misteriosos: movendo o guarda-chuva, tomando Coca-Cola, observando as ruas e

encarando a câmera. No caso da Leonor loira, ela interage com populares, seja sendo

observada “morta” num banco de praça, seja acariciando o rosto de um senhor idoso

que, como ela mesma já havia feito antes, também encara a câmera, sem desviar.

O filme termina com o “nevermore” – “never môr”, na versão dos tradutores,

repito – de Paulo Autran valorizando o aspecto sonoro da palavra por meio do

alongamento de sua pronúncia. O término do poema dá lugar ao retorno do Nisi

Dominus – agora um trecho também cantado – e a pessoas nas ruas17, enfileiradas, com

suas variadas reações – a maioria de tensão – com relação ao aparato que captura suas

figuras.

16 Como ambos não possuem um nome definido, apenas sugerido, utilizo as características físicas como forma de distinção. 17 Aparentemente, majoritariamente populares; possivelmente com alguns atores em meio a eles.

Page 13: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

13

Considerações Finais

Por meio da ambientação local – isto é, do registro de uma região muito

específica do Centro histórico de Curitiba –, e trabalhando com relações de

aproximações e afastamentos entre o universo do poema e o seu próprio – na medida em

que buscou, ou reconheceu, o aspecto do fantasmagórico que lhe era circundante (a

presença obscura de Poe, parafraseando Cortázar), território-signo que lhe pareceu

capaz de agregar mais camadas de vida à morbidez do “nevermore”, recriando-o em

texto artístico –, Valêncio Xavier criou em O Corvo uma obra em que o local se

reconhece como universal e vice-versa. Se o processo da montagem que promoveu o

encontro entre universos criativos se mostrou como caminho para a modelização

semiótica do poema de Poe e como exercício metalinguístico, o estudo desse curta-

metragem, ao mesmo tempo em que aponta caminhos para uma movimentação crítica

que redimensione as relações interativas entre linguagens na obra multimeios de VX,

não é capaz de esgotar tal temática – afirmação que atesta a complexidade de sua

atividade multimeios.

Chama a atenção no curta o modo como Xavier, partindo de Poe, não se

restringiu a ele. Falar de (ou com) Poe é, assim, falar com quem já falou / está falando /

falará com ele. É nesse direcionamento que a articulação da montagem fílmica de O

Corvo se coloca como experimento metalinguístico criativo. A observação da teia de

diálogos é reveladora do exercício modelizante valenciano: filmar as gravuras de Doré e

gravar uma versão do poema traduzida para o jornal Nicolau, entre outros elementos

possíveis, não apenas implicam no reconhecimento valenciano acerca do processo da

transformação de textos em outros textos (temporalidade que considera o continuum da

semiose, ainda que em local algum ele escreva teoricamente sobre isso ou sequer utilize

tal terminologia), como dão indícios de um olhar também sincrônico (imbricamento de

temporalidades recriadas na atividade criadora apropriativa) para o movimento da

cultura. Desse modo, cabe aqui, por fim, reconhecer como em O Corvo os processos de

interação entre linguagens vão além de uma relação de adaptação ou de menção

esquemática aos códigos literários ou pictóricos; ainda que os procedimentos do curta

possam muito bem caber dentro do núcleo duro da chamada sétima arte, tal obra, como

é notável em sua produção em livro, também se funda numa poética do trânsito, na qual

Page 14: Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro ... · Nevermore Novamente: Considerações Acerca do Encontro Entre Valêncio Xavier e Edgard Allan Poe no Curta-Metragem

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018

14

um sistema de signos pede o outro, pois, aparentemente, para Xavier, um sistema não dá

conta, sozinho, de registrar a complexidade da existência.

Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2013.

CAMPOS, Haroldo de. A ReOperação do Texto. São Paulo: Perspectiva, 2013.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993.

EISENSTEIN, Sergei. A Forma do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

LOTMAN, Iuri. La Semiosfera I. Madrid: Ediciones Cátedra, 1996.

MACHADO, Irene. Escola de Semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da

cultura. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.

POE, Edgard Allan. Filosofia da composição. In Poemas e Ensaios. (Trad. Oscar Mendes e Milton Amado). São Paulo: Globo, 1999. 3. ed. revista.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2013.

XAVIER, Valêncio. Minha Mãe Morrendo e O Menino Mentido. São Paulo: Companhia das

Letras, 2002.

XAVIER, Valêncio. Meu 7º Dia – uma novella-rébus. São Paulo: Ciência do Acidente, 1999.

XAVIER, Valêncio. O Mez da Grippe e Outros Livros. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.