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Nestor Castilho Gomes e outros
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 111
NEOCONSTITUCIONALISMO, HERMENÊUTICA E PÓS-
POSITIVISMO: UMA CRÍTICA A PARTIR DA TEORIA
ESTRUTURANTE DO DIREITO
NEOCONSTITUTIONALISM, HERMENEUTICS AND POST-POSITIVISM: A CRITIQUE FROM THE STRUCTURALIST THEORY F LAW
Nestor Castilho Gomes1 Aldo Jaison de Souza2
Evelyn Gancheiro Fernando Tessari
Ivan Preuss Kamilla S. Melim
Leandro Luís Piccolo3
Resumo
O objetivo da presente exposição é traçar um panorama do neoconstitucionalismo, especificamente no que tange a sua proposta hermenêutica. O estudo objetiva identificar qual a técnica de solução de conflitos ventilada pelo neoconstitucionalismo. Para além disso, importa verificar se a técnica proposta realmente apresenta-se como pós-positivista, à luz da teoria estruturante do direito.
O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, buscaremos apresentar (i) as características fundamentais do neoconstitucionalismo; (ii) as críticas desferidas aos seus postulados caracterizadores, e (iii) a técnica de solução de conflitos que é proposta pelos autores do referido movimento. Na segunda seção, apresentaremos sinteticamente a teoria e a metódica estruturantes de Friedrich Müller. Por fim, em conclusão, alguns apontamentos relativos ao que foi ventilado nas seções anteriores, em especial sobre os riscos de um certo neoconstitucionalismo/pós-positivismo
Palavras-chave: Neoconstitucionalismo. Hermenêutica. Solução de conflitos.
Abstract
The aim of this article is to give an overview of neoconstitutionalism, specifically in respect to its proposed hermeneutics. The study aims to identify which technique of conflict resolution by neoconstitutionalism brought by neoconstitutionalism. Furthermore, it must be ascertained whether the proposed technique actually presents itself as post-positivist structuring theory of law.
1 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor de Direito
Constitucional da Universidade da Região de Joinville – Univille. Professor de Direito
Constitucional da Faculdade Cenecista de Joinville – FCJ. Advogado.
2 Acadêmicos do Curso de Ciências Jurídicas da FCJ/Joinville.
3 Acadêmico do Curso de Ciências Jurídicas da SOCIESC/Joinville.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 112
The work is divided into two parts. At first, it tries to present (i) the fundamental characteristics of neoconstitutionalism (ii) the criticisms leveled at its characterizing postulations, and (iii) the technique of conflict resolution that is proposed by the authors of that movement. In the second section, it summarizes the theory and methodical structuring of Friedrich Müller. Finally, in conclusion, some notes related to what was presented in the previous sections, in particular on the risks of a certain neoconstitutionalism / post-positivism
Keywords: Neoconstitutionalism. Hermeneutics. Conflict resolution.
Sumário: Introdução. 1. Neoconstitucionalismo: características fundamentais. 1.1. As críticas dirigidas aos postulados caracterizadores do Neoconstitucionalismo. 2. O Neoconstitucionalismo teórico: aspectos hermenêuticos. 3. A Teoria Estruturante do Direito e a Metódica Estruturante do Direito como teorias pós-positivistas. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
O objetivo da presente exposição é traçar um panorama do
neoconstitucionalismo, especificamente no que tange a sua proposta hermenêutica.
O estudo objetiva identificar qual a técnica de solução de conflitos ventilada pelo
neoconstitucionalismo. Para além disso, importa verificar se a técnica proposta
realmente apresenta-se como pós-positivista, à luz da teoria estruturante do direito.
O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, buscaremos
apresentar (i) as características fundamentais do neoconstitucionalismo; (ii) as
críticas desferidas aos seus postulados caracterizadores, e (iii) a técnica de solução
de conflitos que é proposta pelos autores do referido movimento. Na segunda seção,
apresentaremos sinteticamente a teoria e a metódica estruturantes de Friedrich
Müller. Por fim, em conclusão, alguns apontamentos relativos ao que foi ventilado
nas seções anteriores, em especial sobre os riscos de um certo
neoconstitucionalismo/pós-positivismo.
1 NEOCONSTITUCIONALISMO: CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS
A expressão neoconstitucionalismo foi consagrada por Susanna Pozzollo
(2006, p. 78), em meados da década de 90, e tornou-se o termo unificador de
pesquisas realizadas, sobretudo na Itália e Espanha, bem como em países da
América Latina (Brasil, México, Argentina, Colômbia), a respeito das mudanças
Nestor Castilho Gomes e outros
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 113
ocorridas no modelo do Estado e na teoria do direito constitucional. No âmbito da
teoria do direito o epíteto serviria como forma de exprimir “um certo modo
antijuspositivista de se aproximar do direito”.
O termo neoconstitucionalismo não possui um significado unívoco. Não se
deve falar de neoconstitucionalismo no singular, mas sim no plural. Segundo Miguel
Carbonell (2003, p. 9), organizador de diversas coletâneas que versam sobre o
tema, “não se pode falar de 1 (um), senão de vários neoconstitucionalismos”. O
alerta de Carbonell parece acertado, pois existe uma clara heterogeneidade nas
ideias formuladas por autores que se reputam ou são denominados como partidários
deste movimento4.
A despeito da dificuldade de caracterização do neoconstitucionalismo, é
conveniente apresentar algumas de suas vigas mestras, que podem ser sintetizadas
na classificação empreendida pelo Prof. Paolo Comanducci (2003), que,
analogamente à classificação de Norberto Bobbio dirigida ao juspositivismo,
distingue o neoconstitucionalismo enquanto: teoria do direito, ideologia do direito e
método de análise do direito.
Para os limites do presente trabalho, importa analisar, sobretudo, o
neoconstitucionalismo enquanto teoria do direito, pois neste âmbito inserem-se as
pretensas modificações operadas em termos de teoria da norma e, por
consequência, na metódica jurídica. Ainda assim, convém uma breve menção ao
neoconstitucionalismo ideológico e metodológico.
4 Luiz Henrique Cademartori (2009, p. 4) destaca alguns autores que fariam parte do movimento
neoconstitucionalista. Nota-se que, no inventário proposto, há autores que expressamente
reconhecem pertencer ao neoconstitucionalismo, ao passo que outros, como Friedrich Müller,
jamais admitiram a pertença a dito movimento. De outro lado, a heterogeneidade de ideias entre
os autores resta evidente. Basta contrapor, por exemplo, Dworkin e Müller. O primeiro é
antipositivista ao passo que o segundo é pós-positivista: “Tal concepção por vezes relaciona-se
com teorias de argumentação jurídica e moral (tentando estabelecer-lhes algumas conexões),
como no caso de Aléxy e Gunther. Por outro lado, é orientada por um ideário garantista, nos
termos desenvolvidos por Ferrajoli. Também incorpora os aportes críticos de Dworkin ao
positivismo clássico e em prol de uma nova concepção de direito, tal como se apresenta no
contexto neoconstitucionalista. Somam-se ainda as teorias dos direitos fundamentais de autores
como Aléxy, Peces Barba, Peres Luño (que também traz aportes à configuração teórica do Estado
Constitucional) e da dogmática constitucional, como Zagrebelsky, Haberle, Müller e, no Brasil,
autores como Ingo Sarlet – mais especificamente no campo dos direitos fundamentais – ou Lênio
Streck no campo da hermenêutica jurídica”.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 114
Segundo Comanducci (2003, p. 85), o neoconstitucionalismo ideológico
distingue-se parcialmente da ideologia constitucionalista, ao elevar como seu
objetivo precípuo a garantia dos direitos fundamentais, em detrimento da limitação
do poder estatal, algo central no constitucionalismo dos sécs. XVIII e XIX. Tal
mudança deriva do fato do poder estatal não mais ser visto com temor e
desconfiança, decorrência dos ordenamentos democráticos contemporâneos. Ao
contrário, o Estado é visto como principal agente concretizador dos direitos e
garantias fundamentais, sobretudo aqueles direitos de índole prestacional.
O neoconstitucionalismo metodológico, por sua vez, sustenta a tese da
conexão necessária, identificativa e/ou justificativa, entre direito e moral,
contrapondo-se ao positivismo metodológico. Enquanto este defendia a
possibilidade de se descrever o direito como ele é, de forma avalorativa, aquele
abandona a postura descritiva e mescla a descrição com a avaliação do sistema
jurídico, isto é, o ser do direito com referências ao dever ser ideal (COMANDUCCI,
2003, p. 86-87).
Já o neoconstitucionalismo enquanto teoria do direito apresentar-se-ia como
alternativa ao positivismo. Do ponto de vista teórico, descreve os ganhos do
processo de constitucionalização e sustenta a ideia de uma constituição “invasora”,
decorrente da positivação de um catálogo de direitos fundamentais. Defende,
ademais, que as mudanças ocorridas no objeto de investigação acarretariam na
necessidade de uma radical mudança metodológica5. O formalismo interpretativo do
positivismo jurídico seria insustentável diante da onipresença, nas Constituições, de
princípios e regras. Assim, como pressuposto lógico da adoção da ideia de que o
Direito é composto de regras e princípios, exsurgiria a necessidade de utilização da
técnica interpretativa da ponderação de princípios. Tais características serão
abordadas em seguida, em seção própria.
5 Elival da Silva Ramos (2010, p. 281-282), ácido crítico do neoconstitucionalismo, manifesta-se
expressamente contrário a ideia de que o Direito Constitucional estaria diante de um novo objeto
de estudo. Senão vejamos: “o núcleo do novo constitucionalismo não residiria na diversidade de
objeto em relação ao constitucionalismo clássico e sim em uma nova maneira de compreender o
próprio direito constitucional”. Arremata o autor: “Nesse sentido, o constitucionalismo social-
democrático, por se reportar a Constituição com esse perfil, calcadas no modelo weimariano,
poderia receber o rótulo de “neoconstitucionalismo”, tendo em vista o constitucionalismo liberal”.
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No Brasil o texto de referência a respeito do neoconstitucionalismo é aquele
de autoria do Prof. Luis Roberto Barroso, intitulado “Neoconstitucionalismo e
constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil”,
publicado em diversos livros e revistas jurídicas, e que inclusive ganhou tradução no
exterior6. Em referido texto Barroso estabelece três marcos fundamentais: (i) como
marco histórico, o constitucionalismo do pós-guerra, em especial na Alemanha e
Itália, e que surge no Brasil em 1988, com a Constituição cidadã; (ii) como marco
filosófico, o pós-positivismo, que “busca ir além da legalidade estrita, mas não
despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem
recorrer a categorias metafísicas”; (iii) como marco teórico, o reconhecimento da
força normativa da constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o
desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional
(BARROSO, 2007)7.
1.1 As críticas dirigidas aos postulados caracterizadores do Neoconstitucionalismo
Transcorrida fase inicial de entusiasmo com a temática do
neoconstitucionalismo, foram se avolumando críticas ao movimento. Neste sentido é
bastante sintomática a introdução redigida por Miguel Carbonell, no livro “Teoria del
6 O livro “El neoconstitucionalismo y la constitucionalización del Derecho” foi publicado pela
Universidad Nacional Autónoma de México – UNAM em 2008.
7 Estes marcos caracterizadores do neoconstitucionalismo, com diferenças pontuais, também
podem ser encontrados em autores nacionais e estrangeiros. Miguel Carbonell, em texto recente,
divide o neoconstitucionalismo em três níveis distintos de análise: (i) textos constitucionais, o
neoconstitucionalismo pretende explicar um conjunto de textos constitucionais que começam a
surgir depois da segunda guerra mundial e sobretudo a partir dos anos setenta do século XX; (ii)
práticas jurisprudenciais, como consequência da entrada em vigor de um modelo substantivo de
textos constitucionais, a prática jurisprudencial de muitos tribunais e cortes constitucionais também
teria se alterado de forma relevante. Os juízes constitucionais vêm tendo que aprender a realizar
sua função sob parâmetros interpretativos novos e mais complexos; (iii) desenvolvimentos
teóricos, isto é, aportes teóricos que contribuem não apenas para explicar o fenômeno jurídico,
mas muitas vezes para inclusive criá-lo. Ver: Carbonell, 2010. p. 153-158. De outro lado, em
âmbito nacional, Eduardo Moreira em dissertação a respeito do tema, apresenta como
características do neoconstitucionalismo teórico: (i) presença invasora da constituição; (ii) maior
presença judicial no lugar da autonomia do legislador; (iii) revisão completa da teoria da
interpretação, da teoria da norma e da teoria das fontes; (iv) ênfase nos princípios e nos direitos
fundamentais; (v) mais ponderação, em detrimento da subsunção clássica; (vi) percepção de
pensar o direito fora do âmbito da aplicação judicial para também considerar o momento de
formação do direito, de elaboração das leis e de suas resultantes jurídicas. Ver: Moreira, 2008.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
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Neoconstitucionalismo”, editado no ano de 2007, quatro anos após a publicação do
livro “Neonconstitucionalismo(s)”, de grande repercussão no Brasil. Nos dizeres
Carbonell (2007, p. 9):
No son pocos los autores que se preguntan si en realidad hay algo nuevo en el neoconstitucionalismo o si más bien se trata de una etiqueta vacía, que sirve para presentar bajo un nuevo ropaje cuestiones que antaño se explicaban de otra manera”.
Atualmente não faltam criticas ácidas dirigidas ao neoconstitucionalismo.
Uadi Lamego Bullos (2011, p. 86) o considera um mero modismo, que não tem nada
de novo, ou melhor:
(...) o que o neoconstitucionalismo tem de novo é a forma de os seus defensores repetirem o que todo mundo já sabe com outras palavras, usando termos criados por eles mesmos e adotando terminologias empoladas ou pensamentos adaptados de jusfilósofos da atualidade.
No mesmo sentido, Elival Ramos da Silva (2010, p. 279) sustenta que:
quando se procura compreender o que é o neoconstitucionalismo para poder analisá-lo criticamente, aceitando-o ou rejeitando-o, constata-se que se está diante de elaboração imersa em tamanhas fragilidades, que não passa de muito mais que um modismo intelectual.
Conforme adiantamos, as características conformadoras do
neoconstitucionalismo vêm sendo alvo de críticas. Partidários do
neoconstitucionalismo afirmam que o marco histórico coincidiria com a formação do
Estado constitucional, “cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do
século XX” (CARBONELL, 2007, p. 154). Críticos do neoconstitucionalismo
lembram, contudo, que nos Estados Unidos da América o chamado Estado
constitucional existe desde o século XIX, isto é, desde a promulgação da
Constituição Americana em 17878.
8 Ao refutar o referido marco histórico, Ramos sentencia que: “O estado constitucional de Direito se
desenvolveu em períodos históricos diversificados, em relação a cada sociedade política,
usualmente coincidindo com a consolidação do próprio sistema político democrático, não existindo
fundamento algum para se afirmar que se trata de um fenômeno simultâneo e de abrangência
universal, contemporâneo às últimas décadas do século XX”. Ramos, 2010, p. 280.
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A ideia de que o controle de constitucionalidade e a jurisdição constitucional
sejam características marcantes do neoconstitucionalismo também é refutada. Isto
porque, o controle difuso de constitucionalidade existe nos Estados Unidos da
América desde o início do século XIX, como decorrência da decisão da Suprema
Corte no caso Marbury vs. Madison. Da mesma forma, o Brasil conhece o controle
de constitucionalidade desde a primeira Constituição Republicana, que data de
1891. Finalmente, o controle de constitucionalidade existe na Europa desde as
primeiras décadas do século XX, (anterior, portanto, ao marco histórico do
neoconstitucionalismo), como comprovam a Constituição Austríaca e a Constituição
Portuguesa. Não se pode negar que após a segunda guerra mundial tenha ocorrido
uma expansão quantitativa de Tribunais Constitucionais na Europa. Isto não
significa, contudo, que o neoconstitucionalismo tenha inaugurado o controle de
constitucionalidade, tampouco a existência de Tribunais Constitucionais.
Outra crítica que merece guarida é aquela refratária ao pensamento de que
apenas com o neoconstitucionalismo tivemos a positivação de valores nas cartas
constitucionais. As constituições do século XIX não eram compostas apenas de
regras formais acerca da organização do Estado e dos Poderes. Havia, nestas
constituições, uma série de dispositivos materiais que positivavam valores liberais,
prevalecentes à época. Conforme afirma Luigi Ferrajoli, é uma característica da
legislação exprimir valores. Para Ferrajoli (2012, p. 27-28):
As constituições expressam e incorporam valores da mesma maneira, nem mais nem menos, como o fazem as leis ordinárias. Aquilo que representa o seu traço característico é o fato de os valores nelas expressos – e que nas constituições democráticas consistem, sobretudo, em direitos fundamentais – serem formulados por meio de normas positivas de nível normativo supraordenado àquele da legislação ordinária e serem, por isso, em relação a esta vinculante.
Neste mesmo sentido, Horst Dippel (2007, p. 10) destaca dez traços do
constitucionalismo moderno que estão presentes na Declaração de Direitos da
Virginia, e que demonstram a positivação de princípios materiais desde o século
XVIII:
a importância singular da Declaração dos Direitos de Virgínia de 1776 reside no facto de ter estabelecido o catálogo completo dos traços essenciais do constitucionalismo moderno, características cuja natureza constitutiva é hoje
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tão válida hoje quanto a cem anos atrás: soberania popular, princípios universais, direitos humanos, governo representativo, a constituição como direito supremo, separação dos poderes, governo limitado, responsabilidade e sindicabilidade do governo, imparcialidade e independência dos tribunais, o reconhecimento ao povo do direito de reformar o seu próprio governo e do poder de revisão da constituição.
Por todo o exposto, apresenta-se como controverso o caráter de vanguarda
do neoconstitucionalismo. Ainda assim, parece indiscutível que o “conceito de
constituição”, que sofreu uma série de críticas ao longo do século XIX e XX, tenha
resistido ao longo deste tempo. É algo induvidável que atualmente o pensamento
jurídico trabalha com a noção de Constituição como norma jurídica superior,
jurisdicionalmente aplicável e que garante a limitação do Poder do Estado e a
concretização dos diretos fundamentais.
2 O NEOCONSTITUCIONALISMO TEÓRICO: ASPECTOS HERMENÊUTICOS
A teoria neoconstitucionalista sustenta que, do ponto de vista de uma teoria
da norma, o neoconstitucionalismo se caracterizaria pela passagem da espécie
normativa regra à espécie normativa princípio. Nos dizeres de Luis Roberto Barroso,
“o reconhecimento de normatividade dos princípios e sua distinção qualitativa em
relação às regras é um dos símbolos do pós-positivismo”. A ênfase nos princípios
pode ser percebida numa miríade de autores, que alertam acerca da superação da
regra pelo princípio9.
Como consequência desta nova visão a respeito das normas jurídicas, os
autores neoconstitucionalistas propõem uma nova técnica de solução de conflitos,
uma nova dogmática da interpretação constitucional; a ponderação de princípios.
9 Tal estado de coisas faz com que hoje se fale em “principiologização do Direito Constitucional”,
nos dizeres de Elival da Silva Ramos, ou mesmo em “pan-principiologismo”, na alcunha de Lenio
Luiz Streck. Em recente publicação, Streck elenca uma série de princípios despidos de
normatividade, tais como: o princípio “da cooperação processual”, “da afetividade”, da “proibição
do atalhamento constitucional”, da “pacificação e reconciliação nacional”, da “rotatividade”, do
“deduzido e do dedutível”, da “proibição do desvio de poder constituinte”, da “parcelaridade”, da
“verticalização das coligações partidárias”, da “possibilidade de anulamento”, etc. Ver: Streck,
2012.
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Teríamos, assim, a passagem da subsunção à ponderação. Na síntese de Daniel
Sarmento (2009):
Como boa parcela das normas mais relevantes destas constituições caracteriza-se pela abertura e indeterminação semântica – são em grande parte, princípios e não regras – a sua aplicação direta pelo Poder Judiciário importou na adoção de novas técnicas e estilos hermenêuticos ao lado da tradicional subsunção. A necessidade de resolver tensões entre princípios constitucionais colidentes – frequente em constituições compromissórias, marcadas pela riqueza e pelo pluralismo axiológico – deu espaço ao desenvolvimento da técnica da ponderação (...).
A enorme influência da teoria dos princípios e da técnica da ponderação de
Robert Alexy na bibliografia nacional e mesmo nas sentenças do Supremo Tribunal
Federal nos parece algo autoevidente.
O discurso neoconstitucionalista apresenta, consciente ou
inconscientemente, a técnica da ponderação de princípios como única possibilidade
de uma hermenêutica nomeadamente pós-positivista. Os inúmeros trabalhos a
respeito do tema permitem dizer que há uma afirmação sub-reptícia da ponderação
de princípios como sendo “a” técnica hermenêutica pós-positivista. A grande maioria
dos trabalhos ignora solenemente a existência de outros modelos metódicos. A
impressão que fica é a de que existe apenas uma teoria, a ponderação de princípios,
supostamente capaz de caracterizar, de uma vez por todas, uma perspectiva pós-
positivista.
Dito isto, importa dizer que a técnica da ponderação não é a única proposta
apta a enfrentar a subsunção que caracteriza o positivismo jurídico. Não nos parece,
outrossim, que a compreensão de norma jurídica por parte de autores
neoconstitucionalistas verdadeiramente supere a concepção positivista acerca da
mesma. Desta forma, convém apresentar sinteticamente, a teoria estruturante do
direito e a metódica estruturante do direito, como perspectivas capazes de
efetivamente superar o positivismo jurídico, sem, contudo, abandonar as conquistas
e exigências do próprio positivismo.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
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3 A TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO E A METÓDICA ESTRUTURANTE DO DIREITO COMO TEORIAS PÓS-POSITIVISTAS
A teoria estruturante do direito [Strukturierende Rechtslehre] engloba
conjunta e reciprocamente a dogmática, a metodologia, a teoria do direito (da norma
jurídica) e a teoria da constituição (MÜLLER, 1996, p. 25). Entretanto, apesar de
intrinsecamente entrelaçados, os diversos componentes da teoria estruturante
podem ser lidos isoladamente. A presente seção privilegiará uma breve exposição
da teoria da norma jurídica de Müller, seguido de um igualmente sucinto relato da
metódica estruturante do direito. Isto porque a teoria da norma jurídica e a metódica
estruturante atuam em constante inter-relação. A primeira depende necessariamente
da segunda, ao passo que o contrário também é verdadeiro. Conforme enfatiza
Olivier Jouanjan, a “metodologia ocupa, certamente, no seio da teoria estruturante,
lugar estratégico” (JOUANJAN, 2007, p. 248). Se é possível estabelecer uma
hierarquia entre os quatro elementos que formam a teoria estruturante do direito,
poder-se-ia arriscar que a teoria da norma jurídica e a metódica estruturante ocupam
lugar privilegiado.
Conforme se verá, Müller propõe uma relação indissociável entre norma
jurídica e metodologia jurídica. A definição da norma jurídica necessariamente
afetaria a metodologia jurídica e a própria concepção do que seja a ciência do
direito. Neste sentido importa analisar de que forma a reformulação teórica a
respeito da norma jurídica (operada por Müller) influenciou a metódica jurídica
proposta.
Pode-se dizer que a teoria da norma de Friedrich Müller parte do
pressuposto de que as normas jurídicas não são puro dever-ser. Müller propõe a
norma jurídica como uma noção composta de ser e dever-ser, de dados linguísticos
e dados reais. Ademais, a norma jurídica não se identificaria ao texto da norma. A
norma jurídica seria estruturada na conjugação do programa da norma
(Normprogramm) com o âmbito da norma (Normbereich). Estes e outros aspectos
serão elucidados a seguir.
Para Müller (2008, p. 16), a separação da norma e dos fatos, do direito e da
realidade, assim como a compreensão da norma como algo que repousa em si e
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preexiste, é um dos erros fundamentais do positivismo10 na ciência jurídica11. O
positivismo na ciência jurídica sempre diferenciou norma e realidade como
polaridades abstratas, e jamais os investigou de forma diferenciada como partes
integrantes da estrutura da normatividade jurídica. A relação entre norma e
realidade, ser e dever-ser, sempre foi relegada ao campo de estudos da filosofia do
direito, em detrimento de uma sua consideração a partir da teoria da norma jurídica.
Mesmo as correntes críticas ao positivismo jamais propuseram o
direcionamento do problema direito e realidade para o âmbito da teoria da norma. O
máximo que fizeram foi propugnar para a atividade prático-decisória a necessária
mediação entre norma e realidade, sem conseguir, porém, responder de que forma
esta mediação deveria ocorrer. Apesar dos constantes apelos, não se conseguiu
desenvolver uma metódica consciente, que transpusesse para a realidade da vida a
sua intenção programática. Nos dizeres de Müller (2008, 39-40), não houve resposta
à questão decisiva: “a quais passos individuais, controláveis da decisão jurídica
prática, podem referir-se metáforas como “dialética”, “polaridade”, “atribuição
correlativa”?”12. Enquanto isso os Tribunais defrontavam-se (e defrontam-se!) com
questões concretas sem ter, ao seu dispor, mais do que posições genéricas em
termos de método (MÜLLER, 2008, p. 40-41)13.
10
Convém esclarecer o significado do termo positivismo jurídico para Müller (2008, p. 17): “Com
esse termo só se compreende o direito objetivo vigente como sistema perfeito de normas jurídicas,
caracteriza-se a decisão jurídica concreta como aplicação lógica de uma norma jurídica abstrata a
um tipo concreto “a ser subsumido”, iguala-se a relevância jurídica à construtibilidade em termos
de lógica jurídica, e a ação comunitária dos homens à “aplicação” e “execução” de normas
jurídicas abstratas ou a uma infração das mesmas”.
11 Jan Schapp aponta a relevância da problemática da distinção entre ser e dever-ser tanto para
autores que sustentam a imprescindibilidade da contraposição, quanto para autores (como Müller)
que a criticam: “A metodologia jurídica ainda hoje vem marcada, em grande parte, pela distinção
kantiana entre ser e dever-ser. Esta distinção não é apenas determinante para os autores que a
usam como base de suas construções, ela influencia até mesmo autores que a discutem
criticamente”. Cf. Schapp, 1985, p. 33.
12 Sobre a vaguidade dos apelos à relação recíproca entre direito e realidade e os perigosos reflexos
para a jurisprudência, afirma o autor: “A jurisprudência prática comprova que a “ação recíproca” é
uma noção muito imprecisa e que dá espaço a todo processo possível de interpretação, por ser
uma ideia formal e indefinida quanto às possibilidades e limites”. Cf. Müller, 2008, p. 107. É de se
ressaltar que Müller estende as mesmas críticas para a desgastada “dialética”, “quando ela não é
explicitada de modo responsável, mas aparece como metáfora aleatória (...)”.
13 Müller alerta que, enquanto não for investigada a estrutura da normatividade e a norma for
concebida como puro “dever-ser” que se confronta com o “ser”, os problemas metódicos
continuarão sem solução. Nas palavras do Autor: “Enquanto uma teoria (da norma) jurídica não
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A originalidade da teoria da norma de Müller reside na estrutura normativa
por ele proposta. Para Müller (1983, p. 155), não é apenas a injunção de dever-ser
que contribui para a decisão do caso, mas também, no que toca a uma série de tipos
de normas, igualmente a estrutura substancial do âmbito de regulação, da parcela
da realidade social relacionada com a norma. Enquanto a Teoria Pura do Direito,
e.g., assenta-se no dualismo incomunicável entre norma e realidade empírica, ser e
dever-ser14, a Teoria Estruturante do Direito congrega estes dois elementos dentro
da teoria da norma. Reside, pois, no entrecruzamento ordenado entre norma e
realidade, uma diferença substancial entre a teoria de Müller e a teoria de Kelsen.
O decisivo para a compreensão da teoria da norma de Müller é a não
identidade entre norma e texto normativo. O teor literal da norma, juntamente com
todos os recursos interpretativos auxiliares, expressa tão-somente o que Müller
denomina de programa da norma (Normprogramm)15, resultado do trabalho de
interpretação. Pertence igualmente à norma, em grau hierárquico igual, o chamado
âmbito da norma (Normbereich)16, resultado do trabalho de análise do segmento da
realidade referida (JOAUJAN in MÜLLER, 2007, p. 259). Assim, a norma será
formada pelo programa normativo (Normprogramm) e pelo âmbito normativo
(Normbereich), só podendo ser compreendida pela recíproca articulação destas
dimensões.
incluir inteiramente na investigação da estrutura da norma a estrutura da “coisa” normatizada, a
norma no fundo sempre confrontar-se-á ao “ser” como um dever-ser”; será concebida como uma
estrutura autônoma e independente da realidade, uma estrutura que está em conexão com a
realidade apenas de modo genericamente teórico-jurídico, mas que em suas especificidades, e
bem assim para os problemas metódicos, permanece em aberto”. Cf. Müller, 2008, p. 106.
14 Essa separação não é absoluta, dado que, para Kelsen, entre vigência e eficácia pode existir ‘uma
certa conexão (...) Um mínimo de eficácia [da norma] é a condição de sua vigência” (Op. Cit, p.
12). E mais: ao nível de ordenamento, só se pode inferir a existência de uma grundnorm a
fundamentar toda a validade do ordenamento se esse ordenamento for, em seu conjunto, eficaz
(p. 237). Sobre a relação validade/eficácia na Teoria Pura do Direito, v. Cademartori, 2007.
15 Müller, 2008, p. 224. “O programa da norma é formado pelo texto da norma, trabalhado pelos
dados da linguagem, visando à sua aplicação ao caso”. Cf. Bornholdt, 2005, p. 40.
16 O âmbito normativo será aquela parcela da realidade situada em conformidade com as
prescrições do programa da norma. O âmbito normativo “é o recorte da realidade social na sua
estrutura básica, que o programa da norma “escolheu” para si ou em parte criou para si como seu
âmbito de regulamentação (...) podendo ter sido gerado (prescrições referentes a prazos, datas,
prescrições de forma, regras institucionais e processuais, etc.) ou não pelo direito”. Cf. Müller,
2000, p. 57; Bornholdt, 2005, p. 46.
Nestor Castilho Gomes e outros
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 123
O programa normativo (Normprogramm) e o âmbito normativo (Normbereich)
compõem a estrutura da norma jurídica. Ao interligar o programa da norma e o
âmbito da norma, o operador do direito cria a norma jurídica (Rechtsnorm) – ainda
formulada de forma geral e abstrata. O derradeiro trabalho do operador do direito
consiste na individualização da norma jurídica em uma norma de decisão
(Entscheidungsnorm), que consiste no somatório de todas as fases do processo de
concretização (MÜLLER, 1996, p. 46). Na síntese precisa de Eros Roberto Grau
(s.d., p. 79):
a concretização implica um caminhar do texto da norma para a norma concreta (a norma jurídica), que não é ainda, todavia, o destino a ser alcançado; a concretização somente se realiza no passo seguinte, quando é descoberta a norma de decisão, apta a dar solução ao conflito que consubstancia o caso concreto.
Se é possível uma analogia, poder-se-ia dizer que a norma jurídica
(Rechtsnorm) representa os “considerandos”, os argumentos determinantes da
sentença, ao passo que a norma de decisão (Entscheidungsnorm) consiste na parte
dispositiva da sentença (e.g., “A lei é inconstitucional”; “A medida não viola o direito
fundamental ‘x’”; “o prazo previsto pela constituição não foi observado”) (MÜLLER,
2008, p. 151). Segundo Müller, apenas é possível falar na viabilidade do raciocínio
subsuntivo após a formulação da norma de decisão.
De ver, portanto, que a “norma”, como diz Müller, é muito mais ampla do que
o “texto normativo”. A norma jurídica não está pronta nem substancialmente
acabada, não está no texto positivo. O positivismo jurídico ao identificar norma e
texto de norma apresentava a tarefa prático-decisória como um procedimento de
dedução lógica17. O juiz decidiria à maneira silogística “subsumindo o caso jurídico
aos conceitos de uma norma jurídica previamente dada” (MÜLLER, 2009, p. 148)18.
17
Müller (2008, p. 47) julga improvável a utilização da lógica formal para a resolução dos casos
concretos. As prescrições jurídicas, devido ao seu caráter linguístico, não oferecem, na maioria
dos casos, nenhum ponto de partida para operações exatas de lógica formal. Nos dizeres de
Müller: “os teores jurídico materiais nem de longe estão “contidos” nos elementos linguísticos das
normas jurídicas, por sua natureza necessariamente imprecisos, de tal modo que poderiam ser
transformados em momentos de conclusões lógicas”.
18 Como esclarece Ralph Christensen, no modelo positivista, “a atividade do jurista gravita em torno
do pólo fixo da norma jurídica dada como orientação prévia”. Cf. Christensen, In: Müller, 2009, p.
234.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 124
A identificação da norma com o texto (a norma seria formada por dados
exclusivamente linguísticos) proporcionou o entendimento da atividade decisória
como meramente declaratória. O problema da “interpretação”, ou da “interpretação e
aplicação do direito”, consistiria num problema puramente hermenêutico (em saber o
que significativo-textualmente consta, e.g., da lei) (CASTANHEIRA NEVES, 1993, p.
83).
A teoria e metódica estruturantes, ao contrário, consideram a atividade
decisória um problema prático-normativo. A não identificação da norma com o texto,
e a imprescindibilidade do caso – que contribuirá com a inserção dos dados reais na
norma jurídica –, faz como que a teoria estruturante rejeite uma “interpretação
aplicadora” do texto normativo. Como nos diz Castanheira Neves, Müller (2000, p.
61) reconhece a prioridade metódica do caso, a inafastabilidade do caso para a
concretização do direito. A norma jurídica não é dependente do caso, mas refere-se
a ele. Ambos (norma e caso) fornecem os elementos necessários à decisão jurídica.
A teoria de Müller está inserida num contexto onde:
o problema da interpretação jurídica não é hermenêutico, mas normativo. Daí que o objeto em causa há de ser correlativo a esta índole do problema, sendo certo que o problema interpretativo vai implicado pela natureza prático-normativa do caso a resolver com apoio na solução desse problema. Por outras palavras, o objeto normativo interpretando não poderá ser um objeto meramente significante, mas um objeto suscetível de oferecer um critério normativo para a solução judicativa do caso decidendo. E então o objeto da interpretação não será o texto das normas jurídicas, enquanto expressão ou o corpus de uma significação a compreender e a analisar, mas a normatividade que essas normas, como critérios jurídicos, constituem e possam oferecer. (CASTANHEIRA NEVES, 1993, p. 143)
Ao investigar a estrutura da normatividade jurídica, a teoria estruturante do
direito se dá conta de que a norma jurídica também é composta por dados reais19.
19
João Maurício Adeodato enfatiza brilhantemente as razões que levam Müller a propor a diferença
entre a tradicional “interpretação e aplicação do direito” e a sua “concretização”. Segundo o Autor:
“O procedimento genérico através do qual se procura adequar normas e fatos e decidir,
tradicionalmente conhecido por “interpretação” ou “interpretação e aplicação do direito”, Müller
denomina “concretização da norma” (Normkonkretisierung), procurando justamente afastar-se da
hermenêutica tradicional e determinar mais precisamente seus conceitos e procedimentos. Nessa
tarefa insiste que concretização não significa silogismo, subsunção, efetivação, aplicação ou
individualização concreta do direito a partir da norma geral”. Cf. Adeodato, 2002, p. 240; Cf.
Castanheira Neves, 1993, p. 83; Larenz, 1983, p. 155.
Nestor Castilho Gomes e outros
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 125
Assim, o processo prático-decisório não se reduz a um trabalho puramente
hermenêutico, pois a norma jurídica não é um dado exclusivamente linguístico. Não
se trata, portanto, de simplesmente descobrir o significado textual das palavras da
lei, o que ensejaria uma posterior “interpretação aplicadora” do texto normativo
(NEVES, 1994, p. 77).
Dito isso, importa ressaltar, por fim, a intrínseca inter-relação da teoria da
norma jurídica com a metódica estruturante20. Tanto é assim que Robert Alexy
(2008, p. 79), em inspirada metáfora, afirma que a teoria estruturante da norma
jurídica e a metódica estruturante são duas faces da mesma moeda.
A teoria da norma jurídica e a metódica são inseparáveis (“concretamente
ligadas entre si”), porque a norma jurídica resulta do processo de concretização, isto
é, resulta do processo metódico de concretização. O processo de construção da
norma jurídica – de tomada de decisão – é regido pela metódica. A norma jurídica é
criada sob o fio condutor da metódica, que busca proporcionar a racionalidade que
se espera no Estado Democrático de Direito.
A complexidade da teoria da norma de Friedrich Müller (um projeto que
abarca tanto dados linguísticos como dados reais) tem como corolário a
consideração do problema metodológico como um problema de concretização das
normas jurídicas. Nas palavras de Castanheira Neves (1993, p. 145):
Operando com as distinções entre “texto normativo” (Normtext) e “norma” (a normatividade concreto-material obtida pela estruturada concretização) (...) F. Müller pensa o concreto judicium jurídico como o resultado de um constitutivo processo normativo de concretização, que mobiliza estruturalmente (num processo ou “método estruturante”) um conjunto de fatores ou elementos metódicos jurídicos (“elementos de concretização”), a mais do texto normativo ou dos elementos hermenêuticos: elementos dogmáticos, elementos do respectivo domínio objetivo, elementos jurídico-teóricos, técnico-jurídicos, etc. Daí que o problema metodológico seria hoje de “Normkonkretisierung statt Normtextauslegung” (concretização de normas em vez de interpretação de textos de normas).
Como restou assentado, a teoria e metódica estruturantes rejeitam a
“interpretação aplicadora” do direito em favor do processo de concretização. O fato
20
Em uma linguagem convencional, com a sua teoria da “aplicação do direito”.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 126
da norma não estar pronta impede uma sua mera aplicação lógico-dedutiva. A
diferença entre norma e texto de norma permite dizer com Olivier Jouanjan (2007, p.
257) que “a norma não é o ponto de partida da concretização, mas o seu resultado”.
A concretização de uma norma transcende à mera interpretação do texto21,
e será disciplinada por métodos jurídicos, com o que se articulam teoria da norma e
metodologia jurídica (JOAUJAN, 2007, p. 257). E quais seriam estes métodos?
Construída a partir do exemplo do Direito Constitucional, a metódica
estruturante preocupa-se em desenvolver meios de um trabalho controlável de
decisão e fundamentação22. O passo decisivo para esse objetivo é dado com a
especificação dos elementos que concorrem para a concretização da norma jurídica,
e a subsequente eleição de critérios de prioridade para regular os eventuais conflitos
entre esses elementos. Müller busca dar ao trabalho jurídico um método científico
que possa universalizar, explicitar e revelar o seu próprio procedimento (MÜLLER,
1995, p. 26-28).
A metódica estruturante distingue os seguintes elementos de concretização
da norma jurídica: (i) elementos metodológicos em sentido estrito (interpretações
gramatical, sistemática, genética, histórica e teleológica; bem como os modernos
princípios de interpretação da constituição); (ii) elementos do âmbito da norma (que
podem ou não ser gerados pelo direito); (iii) elementos dogmáticos (doutrina e
jurisprudência); (iv) elementos de teoria (e.g., Teorias do Estado e da Constituição);
(v) elementos de técnica de solução de casos; (vi) elementos de política do direito e
política constitucional (MÜLLER, 2000, p. 111).
A divisão dos elementos de concretização não é realizada a esmo. Müller
subdivide os elementos de concretização em dois grandes grupos, classificando-os
conforme a sua função para a concretização e de acordo com a sua referibilidade
aos textos.
21
A interpretação, na teoria de Müller, tem sentido mais restrito, pois diz respeito às possibilidades
de tratamento do texto, isto é, da interpretação de textos de normas.
22 A metódica estruturante não se restringe ao direito constitucional (apesar de construída a partir do
seu exemplo), eis que fornece os equipamentos básicos necessários às diversas condições do
trabalho legal.
Nestor Castilho Gomes e outros
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 127
Assim, fazem parte do primeiro grupo todos aqueles elementos diretamente
relacionados à interpretação dos textos das normas. Estão abrangidos os elementos
metodológicos em sentido estrito e os modernos princípios de interpretação da
constituição (como o princípio da interpretação conforme a constituição, o princípio
da correção funcional, etc.).
O segundo grupo abarca os elementos de análise do âmbito da norma.
Como o processo de concretização não se resume aos textos das normas, mas
engloba conjunta e reciprocamente a análise mediada dos elementos da realidade, o
segundo grupo refere-se aos dados reais (secundariamente linguísticos), isto é, os
“teores materiais que resultam da análise do âmbito da norma da prescrição
implementanda e da análise dos elementos do conjunto de fatos destacados como
relevantes no processo de concretização, por via de detalhamentos recíprocos”
(MÜLLER, 2000, p. 71).
Por fim, formando um grupo “marginalizado”, estão os elementos
dogmáticos, de técnica de solução, de política constitucional e de teoria, que
também integram o processo de concretização, desempenhando uma função
suplementar.
No seu contributo à racionalização do trabalho jurídico, a metódica
estruturante objetiva identificar, avaliar, classificar e organizar por critérios de
preferência os elementos de concretização. Ao contrário de Kelsen, que abandona a
concretização do direito ao puro arbítrio do intérprete (limitado pela moldura), Müller
busca estabelecer um processo seguro e comprovável, apresentando determinados
critérios em que o intérprete se possa guiar. Entre estes critérios está a hierarquia
dos elementos de concretização.
Como visto, Müller estrutura o processo de concretização a partir de dois
grupos de elementos, quais sejam: (i) elementos metodológicos referidos ao texto da
norma23, e (ii) elementos metodológicos de análise do âmbito da norma. Finalmente,
ingressam no processo de concretização os elementos dogmáticos, os elementos
23
A interpretação do texto da norma se realiza segundo os cânones desenvolvidos por Savigny:
interpretação gramatical, genética, histórica e teleológica, bem como mediante os modernos
princípios de interpretação da constituição - princípio da interpretação conforme a constituição, da
unidade e da concordância prática.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 128
teóricos, os elementos de técnica de solução, os elementos de política do direito e
política constitucional (CHRISTENSEN, 2007, p. 243).
Em caso de conflito, os argumentos diretamente referidos às normas
prevalecem sobre aqueles mais distantes. Nos dizeres de Ralph Christensen: “Isso
significa, por exemplo, que no caso de resultados contraditórios dos diferentes
elementos de concretização, um elemento metodológico no sentido mais estrito
referido ao texto da norma derrota um elemento meramente juspolítico ou um
elemento dogmático não diretamente referido à norma” (CHRISTENSEN, 2007, p.
243). A metódica estruturante fornece, pois, elementos objetivos para a atividade
prática de aplicação do direito.
Convém alertar que antes de um critério de obtenção de verdade ou
meramente descritivo (de uma prática autonomamente constituída, atuando a
posteriori), o que a metódica efetivamente deseja é criar um processo de decisão
que permita a sua discutibilidade, revisibilidade e regularidade.
CONCLUSÕES
A despeito da heterogeneidade dos postulados do neoconstitucionalismo,
pode-se afirmar com certa tranquilidade pelo menos uma característica unificadora
entre diversos autores: a refutação da subsunção como possibilidade metódica. Tal
crítica à subsunção, porém, não é inovadora; remonta ao final do século XIX e início
do século XX, podendo ser encontrada na Escola do Direito Livre e na
Jurisprudência dos Interesses, por exemplo.
Outrossim, o neoconstitucionalismo defende que as mudanças ocorridas no
conceito de Constituição acarretariam na necessidade de uma radical mudança
metodológica. O formalismo interpretativo do positivismo jurídico, calcado na
subsunção, seria insustentável diante da onipresença, nas Constituições, de
princípios e regras. Como pressuposto lógico de uma teoria da norma centrada na
existência de regras e princípios, exsurgiria a necessidade de utilização da técnica
da ponderação de princípios.
Nestor Castilho Gomes e outros
Anais do X Simpósio Nacional de Direito Constitucional 129
Neste ponto, cabe reforçar que a ponderação de princípios não é a única
alternativa metódica a subsunção. A exposição da teoria e da metódica
estruturantes, elaboradas por Friedrich Müller, deixam isso claro.
Por fim, há que se fazer um alerta acerca dos perigos do “pan-
principiologismo”, bem como de uma ponderação irrefletida24. Se as insuficiências
das possibilidades apresentadas pelo positivismo para a concretização do direito são
manifestas, a crítica ao positivismo, muitas vezes, vem desacompanhada da
apresentação dos métodos que permitiriam superá-lo. Do ponto de vista
metodológico, a crítica raramente ultrapassa o nível programático (ou retórico), pois
não se propõe (ou mesmo se discute) a estruturação de um modelo metódico
suscetível de tornar efetiva ou praticável a intenção (CASTANHEIRA NEVES, 1995,
p. 402).
O pós-positivismo à brasileira, que, segundo Dimitri Dimoulis, intenciona na
prática decisória a alforria do operador do direito em relação ao texto das normas
jurídicas, não pode ser confundido com o pós-positivismo proposto pela teoria
estruturante do direito. Importa dizer, com Müller, que a superação do positivismo
em termos de método não é um fim legítimo em si mesmo25. Apesar da teoria (e da
metódica) estruturante refutar alguns dos pressupostos do positivismo26, isto não
acarreta o abandono das conquistas e exigências do próprio positivismo.
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ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
24
Lenio Luiz Streck critica o caráter superficial da leitura da teoria de Robert Alexy no Brasil.
Segundo Streck: “É possível dizer que, no Brasil, não há sequer uma “teoria da argumentação”.
Há, tão somente, os traços analíticos de uma teoria dos princípios, sem o controle – bem ou mal –
exercido pelas regras da argumentação. Streck, Lenio Luiz. Neoconstitucionalismo, positivismo e
pós-positivismo. In: Rosa, 2012.
25 Na lição do autor: “Os objetivos de cientifizar na medida do possível a ciência jurídica e de
elaborar uma dogmática racional não merecem ser esquecidos em benefício de exigências
menores no tocante à racionalidade e à honestidade em questões de método. A ‘superação’ do
positivismo não é de modo nenhum um fim legítimo em si mesmo”. Müller, 2009, p. 119.
26 Tal como a identidade entre norma e texto de norma, e a possibilidade de um raciocínio jurídico
lógico-subsuntivo.
Neoconstitucionalismo, hermenêutica e pós-positivismo
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