22
Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009 1 O silêncio, que indicaria quase uma calmaria e que circunda as alterações no acesso aos documentos referentes à , é um tema que permeia as minhas preocupações a mais de uma década. A permanência desta aflição exacerba-se pelo cerceamento que instrumentos jurídicos recentes, a partir de 1997, impuseram à liberdade de conhecer e consultar documentos oficiais. Soma-se a isso também a ausência de um clamor que altere este impedimento. Sendo talvez esse ponto o mais aflitivo. É por estes dois motes que, desde 1998, persigo o tópico, sendo esta a terceira reflexão sobre o assunto. Vários foram e são os fóruns de discussão acerca da intercessão pesquisa/arquivos. Poder-se-ia mapeá-los desde o início dos anos de 1980, quando o Arquivo Nacional, dirigido à época por Celina Vargas do Amaral Peixoto, principiou as discussões que levariam ao texto da Lei de Arquivos, promulgada em 1991. Discussões acerca do estrangulamento desta Lei, quatorze anos após a sua promulgação, bem como o debate que unificasse o acesso aos acervos DOPS – Departamentos de Ordem Política e Social – e das DSIs – Divisão de Segurança e Informação 2 – ainda estão ausentes, infelizmente. Por isso, numa coletânea onde 1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em: KUSHNIR, Beatriz. “Pelo buraco da fechadura. O acesso à informação e as fontes”, : CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). . São Paulo: Edusp, 2002. A alteração do quadro legislativo e o convite do Arquivo Público Mineiro fizeram-me atualizá-lo e publicá-lo em: KUSHNIR, Beatriz. “Decifrando as astúcias do mal”. . Belo Horizonte, v. XLII, n° I, 2006. Retomei a questão em 2008 para participar da 60° Reunião da SBPC, realizada na Unicamp de 13 a 18/7, na mesa “Comunicação, Censura e Meios de Comunicação” organizada pela Prof. Dra. Maria Cristina C. Costa (ECA/USP), e que também teve a participação de Olga Futema (Cinemateca Brasileira). 2 A Divisão de Segurança e Informação era a versão civil dos órgãos de informação dos ministérios militares e existia em todos os outros de cunho livre. Foi instituída pelo Decreto nº. Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Software http://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

  • Upload
    buikiet

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

1

Nas teias da lei: limites e interditos no acesso à informação1

Beatriz Kushnir

“Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.” (Voltaire, pseudônimo de François-Marie Arouet, Paris, 21/11/1694 – 30/5/1778).

O silêncio, que indicaria quase uma calmaria e que circunda as alterações

no acesso aos documentos referentes à história do tempo presente, é um tema que

permeia as minhas preocupações a mais de uma década. A permanência desta

aflição exacerba-se pelo cerceamento que instrumentos jurídicos recentes, a partir

de 1997, impuseram à liberdade de conhecer e consultar documentos oficiais.

Soma-se a isso também a ausência de um clamor que altere este impedimento.

Sendo talvez esse ponto o mais aflitivo. É por estes dois motes que, desde 1998,

persigo o tópico, sendo esta a terceira reflexão sobre o assunto.

Vários foram e são os fóruns de discussão acerca da intercessão

pesquisa/arquivos. Poder-se-ia mapeá-los desde o início dos anos de 1980, quando

o Arquivo Nacional, dirigido à época por Celina Vargas do Amaral Peixoto,

principiou as discussões que levariam ao texto da Lei de Arquivos, promulgada

em 1991. Discussões acerca do estrangulamento desta Lei, quatorze anos após a

sua promulgação, bem como o debate que unificasse o acesso aos acervos DOPS

– Departamentos de Ordem Política e Social – e das DSIs – Divisão de Segurança

e Informação2 – ainda estão ausentes, infelizmente. Por isso, numa coletânea onde

1 Uma versão anterior deste texto foi publicada em: KUSHNIR, Beatriz. “Pelo buraco da

fechadura. O acesso à informação e as fontes”, in: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas: história da censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002. A alteração do quadro legislativo e o convite do Arquivo Público Mineiro fizeram-me atualizá-lo e publicá-lo em: KUSHNIR, Beatriz. “Decifrando as astúcias do mal”. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, v. XLII, n° I, 2006. Retomei a questão em 2008 para participar da 60° Reunião da SBPC, realizada na Unicamp de 13 a 18/7, na mesa “Comunicação, Censura e Meios de Comunicação” organizada pela Prof. Dra. Maria Cristina C. Costa (ECA/USP), e que também teve a participação de Olga Futema (Cinemateca Brasileira). 2 A Divisão de Segurança e Informação era a versão civil dos órgãos de informação dos

ministérios militares e existia em todos os outros de cunho livre. Foi instituída pelo Decreto nº.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 2: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

2

a mídia é o cerne e em razão da censura vir sendo uma temática recorrente nas

minhas investigações3, optei por não analisar a relação na imprensa como objeto –

temática que me é cara.

Escolhi, mais uma vez, trazer à tona a questão dos limites de acesso aos

documentos nos arquivos públicos. Isto porque, as fronteiras da legalidade que os

textos das leis delimitam precisa ser um ponto de inflexão. As balizas entre

possibilitar o acesso e impor o interdito são os eixos deste exercício. Neste

sentido, estamos num território tênue, na intercessão entre poder ou não conhecer

os dados do que se passou. Esta interdição calca-se num projeto de presente e de

futuro pela via do controle da informação. Este domar e impor imagens ao

passado não é novo, e, no caso, encontra eco nas reflexões de uma década atrás.

Assim, para Renato Janine Ribeiro,

“O desejo de perpetuar-se, mas, mais que isso, o de constituir a própria identidade pelos tempos adiante, responde ao anseio de forjar uma glória. Lembre-se Aquiles: já os gregos pensavam na opção entre uma vida longa e pouco notável ou uma vida breve, porém seguida de glória imorredoura4. O que os arquivos pessoais podem atestar, o que o desejo de guardar os próprios documentos pode indicar, será esse anseio de ser, a posteriori, reconhecido por uma identidade digna de nota”5.

Trazendo a discussão sobre fontes documentais em litígio, desenham-se os

limites delicados que parecem separar o que é público para o corpo social e o que

fere a dimensão privada da história de cada cidadão. Há mais de dez anos, tornou-

se tema de minhas pesquisas avaliar a organização e a disponibilidade das

informações nos acervos dos DOPS da Guanabara (DOPS/GB) e do órgão

64.416, de 28 de abril de 1969, que também reorganizou o Ministério da Justiça. Tratava-se de uma assessoria de assistência direta de cada ministério, vinculado, portanto, ao gabinete do ministro. O primeiro material encontrado e transferido para o Arquivo Nacional (RJ) de uma DSI foi o do Ministério da Justiça. Mas, como todas as DSIs e os demais órgãos de informação faziam circular seus documentos, há uma gama de material do interior da “Comunidade de Informações”. 3 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São

Paulo: Boitempo, 2004. 4 Cf. VERNANT, Jean-Pierre. “A bela morte e o cadáver ultrajado”. Discurso, São Paulo, vol. 9,

1978. O original francês encontra-se em Entre mythe et politique, 1996. 5 RIBEIRO, Renato Janine. “Memórias de si, ou...”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n° 21, vol.

1, 1998.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 3: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

3

congênere de São Paulo (DEOPS)6. Vistos marcadamente como um dos símbolos

do arbítrio, os DOPS e as demais instituições do aparato repressivo do pós-1964

foram desativados burocraticamente entre 1983 − quando da posse dos

governadores eleitos em pleito direto − e 1988 − ano da promulgação da nova

Constituição Federal.

Ao se dar fim, pela caneta, a esses instrumentos de controle, esquecia-se

que a República brasileira conviveu com a sua existência nos poucos períodos

democráticos de sua história. Sua exclusão criou, à época, uma imagem de que o

cidadão passava a gozar plenamente das liberdades de expressão e organização

política – pilares da democracia.

A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade

propiciou, mesmo nos períodos democráticos, que essas agências tivessem voz e

força. Nesse sentido, fazem-se necessárias duas ressalvas. A primeira, que o termo

polícia política é compreendido e empregado aqui para identificar uma forma de

atuação policial direcionada à repressão das ações políticas oposicionistas ao

poder vigente. Utilizando ou não a força armada, sua principal função é a de

manter e assegurar a ordem pública. Uma segunda ressalva centra-se no caráter

comprobatório que os documentos desses acervos possuem. Assim, permitir o

acesso a eles significa, por um lado, garantir a liberdade das pesquisas

acadêmicas; e, por outro, a possibilidade de legalizar situações jurídicas a partir

das informações ali contidas.

Os acervos documentais em depósito nos arquivos públicos incorporam

essa dupla função. Tal premissa é fundamental e aceitá-la auxilia e justifica a

proposta de disponibilizar amplamente, e sem restrições, as informações

arquivadas, sem diferenciar o acesso entre pesquisadores e advogados dos

“fichados”. Eis aí um ponto relevante de uma agenda de debates que ainda está

longe de ser equacionada. Nos idos de 1996, o estado de atonia em que

mergulhara, pela diversidade de possibilidades e impossibilidades, à consulta aos

documentos da polícia política motivou-me a procurar a origem da legislação

6 Isto porque, em 1996, dava início ao doutoramento, que se desenvolveu junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Meu objeto de reflexão centrou-se nos mecanismos da censura e nos pactos da grande imprensa com os órgãos de repressão. Mapeei, entre outros aspectos, os colaboradores, no interior das empresas de comunicação, que optaram pelo expediente de autocensura.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 4: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

4

reguladora dessa matéria. Compreender as regras que gerem tanto a guarda dos

documentos como a sua utilização tornou-se condição prévia para o

prosseguimento de pesquisas com foco na história do tempo presente. Somente

assim seria possível avaliar a documentação acessível de cada um dos arquivos

dos DOPS/DEOPS. Além disso, o estado dos acervos das polícias políticas, fora

do eixo Rio-São Paulo, permanecia, ainda em fins da década de 1990, um tema

pouco conhecido.

Para se compreender a dimensão desse fato, basta lembrar que o Jornal do Brasil, de 12/4/1998, noticiou que, até então, apenas três acervos – os dos DOPS

dos Estados do Paraná, de Pernambuco e de Goiás – haviam sido recolhidos em

seus respectivos arquivos públicos estaduais. Em matéria intitulada “Fichas do

extinto DOPS desafiam Minas”, denunciava-se também que, nesse último Estado,

o acervo fora incinerado pelos antigos agentes da Polícia Federal – embora

papeletas com fotos e dados pessoais estivessem sendo enviadas às redações de

jornais em Belo Horizonte.7

Na teia do “que se pode conhecer”, a questão, naquele momento,

circunscrevia-se às discussões sobre as alterações na Lei de Arquivos, a 8.159, de

1991. Isto porque, no início de 1997, se estabeleceu o decreto nº 2.134, que

regulamenta o art. 23 da referida lei. Discutida desde fins da década de 1970 pelo

Arquivo Nacional e tendo na figura tanto de José Honório Rodrigues8, na época

não mais o seu diretor, como de Celina Vargas do Amaral Peixoto, diretora da

instituição entre 1980 e 1990, a Lei de Arquivos foi proposta à Câmara Federal

em 1984 e aprovada sete anos mais tarde. A 8.159/91 dispõe sobre a política

nacional de arquivos públicos e privados em um texto curto, de seis capítulos que

7 “Fichas do extinto DOPS desafiam Minas”. Jornal do Brasil, 12/4/1998, p. 5.

8 José Honório Rodrigues (20/9/1913 – 6/4/1987), carioca, historiador, cujas pesquisas e publicações versaram sobre os mais variados temas e épocas da história brasileira. Graduou-se em Direito na Universidade do Brasil, em 1937, e publicou três anos depois Civilização Holandesa no Brasil, em co-autoria com Joaquim Ribeiro – livro que receberia o Prêmio de Erudição da Academia Brasileira de Letras. Entre 1943-4, patrocinado pela Fundação Rockefeller, residiu e pesquisou nos Estados Unidos, freqüentando a Universidade de Columbia. Ao retornar ao Brasil, ingressou nos quadros do Instituto Nacional do Livro. Entre 1946-58, foi diretor da Sessão de Publicações e Obras Raras da Biblioteca Nacional. Em 1958, foi nomeado diretor do Arquivo Nacional, permanecendo no cargo até 1964. Paralelamente a essas funções, exerceu ainda, entre 1948-51, o cargo de diretor da Seção de Pesquisas do Instituto Rio Branco. Ao longo da sua carreira, foi professor em diversas instituições de ensino superior e programas de pós-graduação no Rio de Janeiro; e membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 5: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

5

versam sobre: as disposições gerais, os Arquivos Públicos, os Arquivos Privados,

a Organização e Administração de Instituições Arquivísticas Públicas, o Acesso e

o Sigilo dos Documentos Públicos e as disposições finais.

No tocante ao sigilo, assegurou o direito de acesso pleno aos documentos

públicos, regulado por decreto que fixaria as categorias deste e que obedecem a

uma classificação dos documentos. Assim, no artigo 23 da lei se determina que:

§ 1º Os documentos cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, bem como aqueles necessários ao resguardo da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas são originariamente sigilosos. § 2º O acesso aos documentos sigilosos referentes à segurança da sociedade e do Estado será restrito por um prazo máximo de 30 (trinta) anos, a contar da data de sua produção, podendo esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período. (Grifo meu). § 3º O acesso aos documentos sigilosos referente à honra e à imagem das pessoas será restrito por um prazo máximo de 100 (cem) anos, a contar da sua data de produção. (Grifo meu). Este ponto foi reformulado seis anos depois, a partir do decreto nº

2.134/97. Elaborado a partir da Comissão Especial de Acesso à Informação de

Arquivos, criada pela Portaria nº 11 do CONARQ (Conselho Nacional de

Arquivo) 9, de 27 de fevereiro de 1996, da qual

participaram representantes dos Ministérios da Justiça, das Relações Exteriores, da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, além de especialistas em documentação e informação e representantes da sociedade civil. (...) [Tendo] como objetivo regulamentar o Capítulo V - Do Acesso e do Sigilo dos Documentos Públicos – da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. A Comissão teve a preocupação de analisar exaustivamente a legislação nacional e internacional sobre o assunto, em especial o Regulamento baixado pelo Decreto nº 79.099, de 6 de janeiro de 1977 (Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos – RSAS), a Constituição de 1988 e a Lei nº 8.159/91.

9 O CONARQ é um órgão colegiado, vinculado ao Arquivo Nacional e instituído pela Lei de Arquivos. Sua finalidade é definir a política nacional de arquivos públicos e privados, como órgão central de um Sistema Nacional de Arquivos, bem como exercer orientação normativa visando à gestão documental e à proteção especial aos documentos de arquivo. Uma reflexão critica sobre a atuação do CONARQ, ver: SILVA, Sergio Conde de Albite. A preservação da informação arquivística governamental nas políticas públicas brasileiras. Niterói, Tese de Doutorado, UFF, Niterói, 2008.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 6: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

6

No curso dos trabalhos verificou-se que de todos os artigos constantes do Capítulo V, apenas o artigo 23, que ‘dispõe sobre as categorias dos documentos públicos sigilosos’ e o acesso a eles justificava uma regulamentação. Concluído o trabalho, a Comissão encaminhou o anteprojeto de decreto à reunião plenária do CONARQ que o aprovou e o enviou ao Ministério da Justiça para os trâmites necessários à sanção presidencial10.

Assim, a partir de aprovação ministerial e presidencial, o 2.134/97, em seu

capítulo I (Das Disposições Gerais), fixou que

Art. 1º Este Decreto regula a classificação, a reprodução e o acesso aos documentos públicos de natureza sigilosa, apresentados em qualquer suporte, que digam respeito à segurança da sociedade e do Estado e à intimidade do indivíduo.

E no Capítulo “Do Acesso”,

Art. 3º É assegurado o direito de acesso pleno aos documentos públicos, observado o disposto neste Decreto e no art. 22 da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Art. 4º Qualquer documento classificado como sigiloso, na forma do art. 15 deste Decreto, recolhido a instituição arquivística pública, que em algum momento tenha sido objeto de consulta pública, não poderá sofrer restrição de acesso. (Grifo meu). Art. 5º Os órgãos públicos e as instituições de caráter público, custodiadores de documentos sigilosos, deverão constituir Comissões Permanentes de Acesso, para o cumprimento deste Decreto, podendo ser criadas subcomissões. Art. 6º As Comissões Permanentes de Acesso deverão analisar, periodicamente, os documentos sigilosos sob custódia, submetendo-os à autoridade responsável pela classificação, a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, sua desclassificação. Art. 10. O acesso aos documentos sigilosos, originários de outros órgãos ou instituições, inclusive privadas, custodiados para fins de instrução de procedimento, processo administrativo ou judicial, somente poderá ser autorizado pelo agente do respectivo órgão ou instituição de origem. Art. 12. A eventual negativa de autorização de acesso deverá ser justificada por escrito. (Grifo meu).

10

Retirado de: <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=16& sid=47&tpl=printerview>. Acessado em 22/7/2008.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 7: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

7

É a partir deste decreto que os documentos públicos, no Brasil, passam a

receber classificação para definir seus acessos, a qual é estabelecida em quatro

categorias:

¤ Ultra-secretos (“os que requeiram excepcionais medidas de segurança e cujo teor só deva ser do conhecimento de agentes públicos ligados ao seu estudo e manuseio”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de trinta anos);

¤ Secretos (“os que requeiram rigorosas medidas de segurança e cujo teor ou característica possam ser do conhecimento de agentes públicos que, embora sem ligação íntima com seu estudo ou manuseio, sejam autorizados a deles tomarem conhecimento em razão de sua responsabilidade funcional”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de vinte anos);

¤ Confidenciais (“aqueles cujo conhecimento e divulgação possam ser prejudiciais ao interesse do País”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de dez anos);

¤ Reservados (“aqueles que não devam, imediatamente, ser do conhecimento do público em geral”. Classificados, a partir da produção do documento, em no máximo de cinco anos).

Para cada uma destas classes, as restrições dar-se-iam respeitando os

perfis de proibição. Para o caso mais extremo, dos ultra-secretos, tem-se:

Art. 16. São documentos passíveis de classificação como ultra-secretos aqueles referentes à soberania e integridade territorial nacionais, planos de guerra e relações internacionais do País, cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado. Parágrafo único. A classificação de documento na categoria ultra-secreta somente poderá ser feita pelos chefes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário federais. Art. 17. São documentos passíveis de classificação como secretos aqueles referentes a planos ou detalhes de operações militares, a informações que indiquem instalações estratégicas e aos assuntos diplomáticos que requeiram rigorosas medidas de segurança, cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado.

Cinco anos depois, no apagar das luzes do segundo mandato presidencial

de Fernando Henrique Cardoso, em 27/12/2002, publica-se o decreto 4.553. Este

dispõe sobre a salvaguarda de dados, informações, documentos e materiais

sigilosos de interesse da segurança da sociedade e do Estado, no âmbito da

Administração Pública Federal. A instituição desta norma foi apreendida como o

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 8: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

8

coroamento de uma série de pressões militares para dificultar o acesso público a

documentos sigilosos11. Desde a instituição da Lei de Arquivos, sentiam-se as

pressões e resistências, dos setores militares, que agia sem cumprir uma legislação

específica sobre o tema.

Em 1991, instituída a 8.159, a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE),

sucessora do Serviço Nacional de Informações (SNI) e uma das antecessoras da

atual Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), elaborou um projeto para uma

nova redação à Lei de Arquivos. Controlada por militares, a SAE desejava que os

prazos para manutenção de sigilo da documentação contassem a partir da sua

classificação, definindo a categoria de sigilo, e não da sua produção, como o

decreto nº 2.134/97 instituiu.

Nesta perspectiva, o prazo para liberar um documento datado de 1970, por

exemplo, mas que recebeu classificação, com um carimbo, em 1995 começaria a

contar deste ano, e não daquele. Malograda esta tentativa, a SAE perdia para o

texto das Leis de 1991 e 1997. Questão tensa que voltou à tona no segundo ano do

primeiro mandato de FHC, ao se elaborar decreto nº 4.553/02. Segundo o jornal

Folha de S. Paulo, de 24/4/2003, o 4.553/02 não foi produzido pela Casa Civil.

Este se originou do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência,

comandado à época pelo general Alberto Cardoso. Na mesma matéria, afirma-se

que há divergências sobre os motivos que levaram FHC a editá-lo e alterar as

normas que estiveram em vigor durante o seu governo, e também sobre o porquê

do presidente Lula manter o decreto de dezembro.

A matéria expõe, entretanto, que desde sua posse, o presidente vinha

recebendo pressões para não revogar o decreto assinado por seu antecessor.

Acreditando que o novo governo não ratificaria as disposições do 4.553/02, pouca

mobilização no âmbito acadêmico causou. A Lei de Arquivos é clara ao

estabelecer o prazo máximo para o acesso restrito aos documentos sigilosos, qual

seja trinta anos renováveis por mais trinta12. Assim, juristas compreendem que o

decreto que regulamenta a referida lei deve obedecer aos parâmetros e limites por

11

“Lula mantém sigilo de documentos decretado por Fernando Henrique”. Folha de S. Paulo, 24/4/2003. 12

Reitere-se o texto da lei: “esse prazo ser prorrogado, por uma única vez, por igual período”.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 9: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

9

ela impostos, bem como respeitar o prazo máximo estabelecido pela 8.159/91, sob

pena de “incidir no vício da ilegalidade”.

Fato que ocorre quando o 4.553/02 amplia os limites de todas as

classificações (reservado, confidencial, secreto e ultra-secreto), criando o prazo de

50 anos prorrogáveis até a eternidade – portanto, acima do que a lei prevê. Em seu

art. 7º, inciso I o decreto estipula que: “os prazos de duração da classificação a

que se refere este Decreto vigoram a partir da data de produção do dado ou

informação e são os seguintes: ultra-secreto: máximo de cinqüenta anos;”.

Para o ordenamento jurídico brasileiro, vigora o princípio da legalidade,

previsto no art. 5º, inciso II da Constituição Federal de 1988, onde se assegura que

“ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer senão em virtude de lei”.

Desta forma, as normas do Direto compreendem que qualquer obrigação imposta

ao cidadão deve ser instituída por meio de lei, e não por força de um decreto – que

é um ato do Executivo. O decreto nº 4.553/02 fere a Lei nº 8.159/91 ao dispor no

Art. 7º §1º: o prazo de duração da classificação ultra-secreto poderá ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da segurança da sociedade e do Estado. (Grifo meu).

Igualmente foi rechaçado como inconstitucional ao macular o inciso

XXXIII do art. 5o da Constituição, onde se estabelece que

todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Para legalizá-lo, o governo Lula impõe a Medida Provisória nº 228, de

9/12/2004, que regulamenta a parte final do disposto no inciso da Constituição de

1988. Por esta MP, a legalidade jurídica passa a ser:

Art. 2o Exclusivamente nas hipóteses em que o sigilo dos documentos públicos de interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, seja ou permaneça imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, o seu acesso será ressalvado, nos termos do disposto na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 10: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

10

(…) Art. 4o O Poder Executivo instituirá, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, com a finalidade de decidir pela aplicação da ressalva prevista na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição. Parágrafo único. Os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público da União e o Tribunal de Contas da União estabelecerão normas próprias para a proteção das informações por eles produzidas, cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, bem assim a possibilidade de seu acesso quando cessar a necessidade de manutenção desse sigilo, nos termos da parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição. Art. 5o O acesso aos documentos públicos classificados no mais alto grau de sigilo poderá ser restringido pelo prazo e prorrogação previstos no § 2o do art. 23 da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991. § 1o Vencido o prazo ou sua prorrogação de que trata o caput, os documentos classificados no mais alto grau de sigilo tornar-se-ão de acesso público, podendo, todavia, a autoridade competente para dispor sobre a matéria provocar, de modo justificado, a manifestação da Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas para que avalie, antes de ser autorizado qualquer acesso ao documento, se ele, uma vez acessado, não afrontará a segurança da sociedade e do Estado, na forma da ressalva prevista na parte final do inciso XXXIII do art. 5o da Constituição. (Grifo meu).

Cinco meses após esta MP, em 5/5/2005, foi sancionada a Lei 11.111, que

ratificou os termos da MP. Ou seja, quatorze anos depois estava retrocedendo-se

aos avanços da Lei de Arquivos de 1991.

Certamente, a compreensão da legislação que regula tanto a guarda dos

documentos públicos como também a sua disponibilização é de fundamental

importância para o historiador e o cientista social, que têm no arquivo um dos seus

principais instrumentos de trabalho. Torna-se, portanto, crucial o domínio desse

aparato legal para que descubramos suas brechas. As regras estabelecidas na

11.111/2005 foram consideradas nos meios jurídicos como inconstitucionais, pois

legalizaram a prática da confidencialidade por parte do governo. Passível de

duração indeterminada, o segredo foi convertido em direito do Estado,

contrapondo-se ostensivamente ao direito do cidadão às informações. A

manutenção do sigilo instituiu, dessa forma, sua tutela exclusiva aos

representantes do poder.

Dois anos após a sua instituição, o Conselho Federal da Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF)

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 11: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

11

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3987), com pedido de liminar, para suspender dispositivos da Lei 8.159/91 e a íntegra da Lei federal 11.111/05. No mérito, a OAB pede que seja declarada a inconstitucionalidade de todos esses dispositivos, que dispõem sobre o sigilo de documentos. (…) Informa a OAB que essa lei originou-se da Medida Provisória nº 228, de 2004. Só que, na data de sua edição, já vigorava a nova redação do artigo 62, da CF [Constituição Federal], que veda a edição de MPs sobre matérias relativas à cidadania (Emenda Constitucional 32). Alegando ainda o vício formal na elaboração da lei, segundo a OAB, a lei deve ser julgada inconstitucional na íntegra, porque a MP da qual se originou não teria observado o requisito constitucional de urgência para sua edição, como exige o artigo 62 da CF13.

Embora ainda confusas em seus movimentos, as peças desse tabuleiro de

xadrez tiveram suas posições claramente definidas. De um lado, os cidadãos que

carregam a pecha de fichados, com as dificuldades que esse estigma lhes impõe;

de outro, os que desejam empregar as prerrogativas constitucionais de acesso à

informação, mas que se vêem tolhidos pelos argumentos de preservação da

intimidade individual. É nessa seara, mais da dúvida do que das conclusões, que

uma polêmica de quase uma década atrás retorna à pauta atual dos pesquisadores.

Os momentos de imposição de sigilo e os instantes de quebra dessa

“normalidade imposta” permitem refletir acerca da trajetória brasileira vis-à-vis

seus períodos de arbítrio político. As origens de uma sociedade baseada no

autoritarismo e na exclusão dimensionam o peso e o papel de uma cultura censora

e repressiva no esforço de delimitar o legal e o ilegal. No Estado brasileiro

republicano, essa foi uma tarefa, um ato de fundação, que pode ser constatada nos

trabalhos acerca da força e da ação da polícia no início da República, e se

explicita como forma de impor um determinado modelo de cidadão ideal. Essas

questões, assim como as da construção de uma identidade nacional e do perfil do

seu cidadão, foram tratadas exaustivamente em diversos trabalhos elaborados

desde meados dos anos de 1980.

Todo mundo deve ser poupado da tentação de ver

13

“OAB contesta lei que regulamenta sigilo de documentos”, 20/11/2007. Publicado no site: <http://www.direitodoestado.com/noticias/noticias_detail.asp?cod=4999>. Acessado em 21/7/2008.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 12: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

12

Sentença do ex-ministro da Justiça do governo do General Ernesto Geisel

(1974-9), a frase de Armando Falcão14 parece que, no Brasil, torna-se atemporal.

A prática específica de vigiar e reprimir politicamente, implementada em certos

períodos pelo Estado brasileiro, teve início há, pelo menos, 80 anos, com os

primeiros decretos de estruturação de uma polícia política, que abrigava

departamentos de investigação e repressão à vadiagem e aos “estrangeiros

perigosos” − muitas vezes anarquistas ou organizadores do embrionário

movimento sindical15. Precursoras dos DOPS, desde o início da República as

Quartas Delegacias de Polícia foram responsáveis por esse gênero de segurança

pública. Era atribuição da polícia em geral e, em particular, dos DOPS, como um

dos seus braços políticos, manter a ordem pública. Assim, a essa instituição

competia

(...) coletar, fichar, anotar e arquivar os informes obtidos pelos órgãos de busca (...) ou constantes da correspondência sigilosa, realizar a coleta complementar, preparar pedidos de busca; elaborar informações; preparar a difusão de informes e informações; instruir pedidos de passaporte e de “vistos” de saída do território nacional; fornecer certidões negativas de antecedentes políticos e sociais; realizar as atividades administrativas correntes.16

No papel de acumulador e gerenciador de informações, fazendo-as circular

e abastecendo de dados os órgãos de inteligência, os DOPS estaduais viveram, de

1968 a 1979, ou seja, do AI-5 à Anistia, seu apogeu, seguido de crise e início do

processo de extinção. Geralmente, a atuação dos DOPS está associada aos

períodos de ditadura na República brasileira. No entanto, conforme mencionamos

inicialmente, esses departamentos, assim como outras instituições de informação

política do Estado, não são recentes e nunca foram efetivamente extintos, tendo

sobrevivido ao longo do tempo, quer o governo fosse mais ou menos democrático,

14 “A censura de Sarney”. Veja, 12/2/1986, pp. 60-2. 15 Decreto nº 3.610, de 14/4/1900, regula o Serviço Policial do Distrito Federal e o vincula exclusivamente às ordens do chefe de Polícia, de acordo com as instruções do Ministério da Justiça (Coleção de Leis do Brasil, ano 1900, p. 440). 16 GUANABARA. Decreto “e”, nº 3.002, de 15/8/1969. Relatório da Divisão de Informações, de 1972. Fundo DGIE, Série: Pasta Temática, Sub-série: Administrativa, nº 104 (PEREIRA, Márcia Guerra; REZNIK, Luís. “De polícia federal a departamento estadual – o DOPS: evolução administrativa”, in: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. DOPS: a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Justiça, 1993, p. 26, nota 20).

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 13: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

13

ou mais ou menos ditatorial. A preocupação com a informação sempre foi uma

“questão de segurança nacional”. O que demarca as diferenças de atuação nesses

períodos é, entre outros aspectos, as formas de obtenção dos dados, ou seja, as

origens das informações sobre as condutas individuais e as nuanças no respeito,

ou não, aos direitos civis.

Não por acaso, o jornal carioca O Globo, em 4/8/1996, anunciou o envio

ao presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo chefe da Casa Militar, general

Alberto Cardoso, do projeto de lei para a criação da Agência Brasileira de

Inteligência (ABIN). Segundo esse militar, a ABIN teria a seu dispor todos os

instrumentos do Poder Judiciário para manter bem informado o presidente.

Desfrutaria, portanto, de liberdade para “(...) plantar escuta telefônica, quebra de

sigilo de correspondência e a infiltração de agentes em movimentos sociais, como

o Movimento dos Sem-Terra” 17.

Além disso, o órgão centralizaria um sistema de inteligência espalhado

pelos ministérios e organismos federais, estaduais e municipais. Ainda segundo o

general Cardoso, muito embora dirigida por um militar, a ABIN seria um órgão

com características civis, não querendo ser herdeiro ou descendente do Serviço

Nacional de Informações (SNI).

Dez anos após a regulamentação desta agência, seus funcionários utilizam,

em causa própria, a referida Lei nº 11.111/2005. Durante a Comissão Parlamentar

Mista de Inquérito dos Correios (CPMI), em junho de 2005, dois servidores da

ABIN ali prestaram depoimento, e, ao serem questionados sobre os relatórios

investigativos que produziram, um deles se valeu da mencionada lei. Alegou o

caráter sigiloso desses documentos para não responder aos questionamentos feitos

pelos parlamentares.

Mais recentemente, quando da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI)

dos cartões corporativos, a 11.111/05 foi novamente acionada. Desta vez, foi o

próprio governo que recorreu a ela, declarando questões de segurança nacional

para não revelar a natureza de inúmeros dos gastos feitos com esses cartões.

Vozes em contrário a este ato sustentam que a Constituição Federal não permite

17

“Agência de informações do Governo vai acompanhar os movimentos sociais”. O Globo, 4/8/1996, p. 12.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 14: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

14

quaisquer despesas sem observância dos princípios da publicidade e da

transparência. Tudo deve ser mostrado ao público.

Neste sentido, a classificação de documentos e a sua colocação no patamar

de sigilosos não pode ser feita aleatoriamente, mediante aposição de carimbo

“confidencial” ou “reservado” neste ou naquele documento. É função, segundo

determinação jurídica, precedida de análise criteriosa, da Comissão de

Averiguação e Análise de Informações Sigilosas18 no âmbito da Casa Civil da

Presidência da República.

No caso o governo, e não o Estado, alega não ser prudente expor-se. Mas

no outro extremo da discussão está a premissa da privacidade individual. Os

governos, investidos na premissa de Estado, acham legítimo instituir instrumentos

de vigilância e informação. Quando os documentos por eles produzidos adquirem

o caráter de corpus de pesquisa, novas regras, contudo, são implementadas para

restringir o seu acesso. A ambigüidade dessa situação está registrada até mesmo

na Declaração Universal dos Direitos Humanos, particularmente nos artigos 12 e

19.

Se o primeiro artigo instrui que:

[...] todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, as informações e idéias por qualquer meio de expressão.

O segundo indica que:

Ninguém sofrerá intromissões em sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda pessoa tem o direito à proteção da lei.

Como se vê, trata-se de uma questão polemica, em que limites delicados e

ambíguos parecem separar o que deve ser permitido e o que deve ser considerado

18 As Comissões Permanentes de Acesso tiveram sua competência regulada nos artigos 6º, 7º e 9º do decreto nº 2.134/97. Já a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, pelo decreto nº 5.301, de 9 de dezembro de 2004, que regulamentou o disposto na Medida Provisória no 228, de mesma data, e que dispõe sobre a ressalva prevista na parte final do disposto no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição e dá outras providências.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 15: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

15

ilegal; o que é público para a sociedade e o que fere a dimensão privada da

história de cada cidadão. Esse é o aspecto central da discussão quando se tem um

acervo policial e/ou de Estado como fonte de pesquisa. Assim, os pesquisadores

encontram-se em uma encruzilhada: por um lado, dependem da informação

produzida pelo Estado, que – sob a égide da segurança da nação – crêem no

direito de “conhecer” os atos dos seus cidadãos; por outro, percebem-se limitados

em suas pesquisas pelas pessoas alvo dessa vigilância, que desejam preservar sua

vida pessoal, sua intimidade e sua honra.

Eis algumas reflexões iniciais acerca das fontes comuns aos historiadores

que se debruçam sobre a história do tempo presente, sendo, por isso mesmo,

crucial analisar as políticas de formação dos acervos arquivísticos em geral. A

dificuldade está em que, muitas vezes, desconhecemos exatamente como lidar

com a classificação dos documentos − secreto, confidencial etc. −, como também

não temos a noção exata daquilo que pode ser mencionado sem ferir a

suscetibilidade das pessoas envolvidas. Além disso, não sabemos quanto do

conjunto original se manteve intacto após a doação às instituições de guarda,

ocorrida com a extinção legal das agências repressivas.

O arquivo não é apenas um lugar de reunião de documentos ou o locus de

trabalho do arquivista. O historiador/pesquisador precisa conhecer suas regras de

formação para intervir nesse processo, reconhecendo-lhe definitivamente a

importância no desenvolvimento do seu ofício. No caso dos arquivos do DOPS,

há que se ressaltar uma peculiaridade: durante a sua vigência, funcionaram como

acervo interno de um órgão de segurança; após a sua extinção, assumiu o caráter

de arquivo público. Esse perfil concede ao conjunto uma característica própria.

Se, num primeiro momento, ele é um instrumento restrito de um órgão público,

“vivo” e constantemente realimentado, numa segunda fase, ele é deslocado para a

seara pública e as informações ali contidas passam das mãos de poucos para um

acesso, a princípio, irrestrito.

A norma diferenciada de acesso aos acervos do DOPS do Rio de Janeiro

demonstra uma realidade inusitada: muitos ex-militantes de esquerda dos anos de

1960 defendem a restrição à abertura de seus prontuários ao público, pois eles

expõem publicamente seu passado e suas ações políticas. Um exemplo disso está

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 16: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

16

na tese de Elizabeth Ferreira19, que entrevistou treze ex-presas políticas e, após

um processo de negociação, optou pela não utilização de seus nomes

verdadeiros.20 Justificando esse sigilo como forma de defesa de sua privacidade,

alguns “fichados” explicam que o acervo reunido pelo DOPS é fruto das incursões

policiais nas suas residências e contém documentos extremamente íntimos, além

de cartas e objetos de uso pessoal. Assim, a composição dos prontuários desses

arquivos faz com que alguns militantes sejam contrários a sua abertura ao público

de maneira indiscriminada. Os que reivindicam o silêncio talvez acreditem que os

relatos ali contidos são a “verdade” de suas histórias de vida depois de terem

caído nas teias da polícia.

Cabe ainda lembrar que os trâmites legais, franqueadores do acesso do

público ao material reunido pelos DOPS, foram viabilizados pela Constituição de

1988 e pelo estabelecimento do habeas-data, instrumento que, em última

instância, legalizou o direito civil dos “fichados” e de seus familiares. Ao

consultar a documentação, antes tida como secreta e/ou sigilosa, as famílias

puderam reconhecer juridicamente seus direitos civis21. Na verdade, foi essa

situação legal que determinou a transformação dos acervos dos DOPS em material

de arquivo público.

Os arquivos não falam, respondem

Ao refletir acerca da formação do acervo em arquivo, Henry Rousso22

sublinhou as características do trabalho de cientistas sociais europeus na abertura

19 FEREIRRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: FGV, 1996. 20 Cerca de dois mil prontuários anteriores a 1964 encontram-se on-line no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Em um prontuário que compreenda o período de 1930 a 1970, as informações contidas nos últimos sete anos foram retiradas pelos funcionários do Arquivo e só há a possibilidade de se conhecer o período 1930 a 1963. Essa medida foi feita, segundo as regras que regem a instituição, para preservar a privacidade exposta nos registros mais recentes. 21

COSTA, Célia Maria Leite; FRAIZ, Priscila Moraes Varella. “Acesso à informação nos arquivos brasileiros”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n° 3. 1989, pp. 67-69. 22

Uma versão modificada da palestra apresentada encontra-se publicada no número 17 da Revista Estudos Históricos. Cf. ROUSSO, Henry. “O arquivo ou o indício de uma falta”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 17, 1996a.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 17: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

17

dos arquivos da antiga URSS.23 A problemática era semelhante à brasileira:

transformar o acervo em um instrumento de pesquisa, manter sua organização

original e estabelecer critérios para a sua consulta pública. Igualmente,

preocupava-se com a seara dos direitos civis, a manutenção da privacidade dos

indivíduos fichados e, principalmente, o que realmente se poderia esperar daquele

tipo de fonte.

Nesse contexto, Rousso ponderou sobre as funções e os limites dos

arquivos para a tessitura da história. Sendo ele um estudioso preocupado com a

história do tempo presente, suas análises mostram que, mais do que as fontes

escritas, o tema em questão amplia o conceito de “vestígios do passado”, ao

incluir a história oral na metodologia de trabalho. O cerne da preocupação é o

questionamento da “verdade histórica”. Ou seja, em que situação o historiador se

sente mais seguro: no registro escrito ou no depoimento a posteriori. Com a instituição do habeas-data, em meados da década de 1980, em

meio ao processo de recolhimento da documentação de policia política, essa

norma jurídica buscava resolver a situação civil de muitos familiares de

desaparecidos políticos, assim como de indivíduos que sofreram a repressão do

Estado ditatorial brasileiro pós-1964. Essa medida e a necessidade de consulta do

material do DOPS apressaram a liberação do acervo, inicialmente para um público

restrito, fato que, de algum modo, resultou na liberação desses documentos e

permitiu que fossem consultados de forma mais ampla.

Se essa via legal possibilitou aos pesquisadores o acesso à documentação,

permaneceu a dúvida de como ordenar a consulta ao material como pesquisa

histórica. Durante esse debate foi promulgada, em 1991, a Lei de Arquivos. No

início da década de 1990, com a transferência do acervo do DEOPS de São Paulo

para o Arquivo do Estado, foi editado o decreto nº 34.216, de 19/11/1991, que

instituiu uma comissão especial encarregada de receber a “papelada” do extinto

órgão. No início de 1997, institui-se a 2.134, que, como já exposto, alterava a

classificação e as formas de arquivamento de papéis sigilosos.

23

Uma reunião desses estudos encontra-se em: WERTH, Nicolas (dir.). “Pour une nouvelle historiographie de l’URSS”. Les Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps Présent, Paris, nº 35, dezembro de 1996.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 18: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

18

Para Vianna, Lissovsky e Sá, da esfera do jurídico à da constituição de um

acervo, o arquivo é, basicamente, um locus privilegiado de construção de

memória. Para os autores, existem dois processos que transformam um

“amontoado de papéis” em “arquivo”. O primeiro é realizado pelo arquivador e o

segundo pela instituição de guarda que recebe, organiza e torna disponível o

acesso. O arquivador é um colecionador. Sua função é instituir uma memória,

sempre de maneira positiva. Organiza e coleciona os papéis pensando a posteriori. Assim, o arquivador

[...] constitui a sua coleção de documentos segundo critérios que lhe são precisos − precaução, vigilância, pragmatismo político ou administrativo (economia, eficiência etc.), orgulho, fantasia e, até mesmo, senso histórico. De qualquer forma, o arquivador constitui sua coleção como parte de si, segundo um movimento que é, em primeiro lugar, um exercício de controle sobre os eventos e que pode ainda estar erigindo sua eternidade enquanto indivíduo, cujo único critério de aferição, e sólida garantia, é exatamente a memória. 24

O arquivador, o acumulador de informações, no caso dos DOPS, era o

chefe da seção de Arquivo – o seu organizador, enquanto se tratava de um arquivo

vivo da polícia. Para os autores acima mencionados existem quatro modelos de

arquivos:

• Caótico: aquele que chega aos centros de documentação de maneira desordenada e exige que os profissionais da área encontrem uma lógica que permita a sua consulta; • Centrífugo: em que os documentos, geralmente de caráter administrativo, giram em torno da atuação do titular, no seu sentido amplo. Permitem, assim, perceber tanto as atividades do titular nas instituições da qual fez parte como percorrer a trajetória desses órgãos; • Centrípeto: neste tipo, os documentos, geralmente de caráter político, estão voltados para as questões do Estado, possibilitando esboçar um quadro do momento histórico, visto a partir da ótica privilegiada de seu organizador; • Monumental: no qual os documentos são acumulados seguindo a lógica de conferir ao seu titular um papel histórico, o qual, certamente, ele teve, mas cuja pintura se acha carregada nas tintas.

24 VIANNA, Aurélio; LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. “A vontade de guardar: lógica da acumulação em arquivos privados”. Arquivos e Administração, Rio de Janeiro, vol. 10-14, n° 2, 1986, p. 67.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 19: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

19

No caso dos DOPS, os acervos caracterizam-se por uma tipologia mista,

centrífuga e centrípeta. Se, por um lado, tem como objetivo identificar o “fichado”

no mundo social, por outro, trata-se de um arquivo que explicita o universo do

outro a partir da lógica interna de seu titular. Ou seja, da perspectiva da polícia. O

acervo permite tanto reconstituir uma trajetória do “fichado”, a partir da

perspectiva do agente policial, como a do “fichador”.

Quando esses acervos passam ao domínio público, certas nuanças

explicitam-se. O material chega desorganizado aos arquivos estaduais. Certamente

houve uma “limpeza” realizada por ex-agentes do órgão, o que nos leva a crer que

a sua lógica interna tenha sido muitas vezes deliberadamente manipulada. Uma

característica, contudo, é-lhes marcante: contêm informações sobre determinadas

pessoas, mas não são arquivos privados. Por pertencerem a um órgão público, sua

documentação é de domínio da sociedade, sendo esta situação um nó difícil de

desatar. Uma outra forma de apreender o conteúdo dos arquivos do DOPS é

verificar as premissas que ditaram sua acumulação. As informações ali contidas

foram recolhidas sob a orientação do olhar da polícia.

Há, portanto, que se levar em conta a distância entre as atividades políticas

outrora realizadas e o conteúdo das fichas policiais elaboradas, compreendendo-se

que foi a lógica da desconfiança de um Estado autoritário que produziu o acervo.

Por outro lado, foi a lógica da democracia da informação que os transformou em

arquivos públicos, abertos à consulta. Essa abertura é uma forma positiva de falar

de um “silêncio”, como também de permitir ao pesquisador rediscutir a

constituição de uma memória.

Documentos como salvo-condutos

A disputa em torno da construção da memória esteve presente, por

exemplo, na adaptação do romance autobiográfico de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?, para o cinema. Instaurou-se nesse caso uma polêmica acerca

da apropriação e da ficcionalização de fatos históricos, expondo nos jornais e na

TV uma ferida que ainda sangra. Em resposta a essa manipulação do passado,

Daniel Aarão Reis Filho questionou a perspectiva que tenta impor aos anos de

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 20: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

20

1960 uma “memória da conciliação”. Para ele, “seria como recordar esquecendo,

esquecendo a dor” 25. A volta ao passado, para alguns, é um ato de abrandamento e

de eliminação das arestas e das diferenças, é um redesenhar que deve respeitar

uma lógica da harmonia e que dispensa tensões e atritos.

Na análise de Étienne François, na época diretor do então Centro Marc

Bloch-Berlim, há que se redimensionar o fascínio que os arquivos das polícias

políticas despertaram na comunidade acadêmica, quando a esse fascínio se

contrapõem as dificuldades do seu manuseio. Centrando seu foco na

especificidade do que foi a República Democrática Alemã (RDA), François

expõe-nos as exigências que a documentação da Stasi − a polícia política da

Alemanha Oriental − demandou dos pesquisadores que se aventuraram a trabalhar

ali. O deslumbramento de poder consultar um material secreto em um momento

de liberdade política gerou, segundo o autor, a sensação de que todo o segredo do

passado seria finalmente liberto. Todavia,

(...) muito rapidamente (...) renuncia-se a essas pretensões e começa-se a perceber que tudo não é assim tão simples, que os novos arquivos não falam por si só, que, como todos os outros arquivos, eles devem ser submetidos a uma crítica exigente das fontes, que seu manuseio só pode ser feito se forem respeitadas as preocupações éticas e metodológicas elementares, e que mesmo bem utilizados, e interrogados a partir de questões pertinentes, não dispensam o historiador de seu trabalho habitual de reconstituição e de interpretação − e não têm resposta para tudo. 26

A apreciação de François dimensiona o potencial desses arquivos de

polícia política. Ao perceber a onipotência com que alguns os encaram e a

decepção que tamanha expectativa pode gerar, o autor reafirma que tais arquivos

são apenas mais uma fonte para as pesquisas. Um acervo rico e que não pode ser

negligenciado, mas – sublinha o autor – as informações ali contidas necessitam de

o eterno cotejar com outras para melhor se compreender aquele período da

história. Sem dúvida, o mais importante é que, com a liberação desses

25 REIS FILHO, Daniel Aarão. “Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos anos 60”, in: ______________ et al. Versões e ficções: o seqüestro da História. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 35. 26

FRANÇOIS, Étienne. “Os ‘tesouros’ da Stasi ou a miragem dos arquivos”, in: BOUTIER, J. Boutier; JULIA, D. (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ; FGV, 1998, p. 157.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 21: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

21

documentos, houve um “(...) chamado ao trabalho, à exigência metodológica e

ética, à modéstia, à humildade, ao requestionamento das certezas adquiridas”27.

Os arquivos – em especial os que contêm informações de caráter pessoal,

como os dos serviços de segurança – lembra Ana Maria Camargo28, possibilitam

duas constatações: a de que lá se encontram também informações improcedentes,

inexatas e enganadoras; e a de que lá se tem inscrita a história de um órgão de

Estado. Os documentos fruto da repressão política de um Estado autoritário não

devem ser tomados como a verdade da vida dos indivíduos neles registrados, mas

sim como a expressão da lógica da desconfiança que permeava um órgão com

características ditatoriais. O passado, conforme lembra Henry Rousso29, citando

David Lowenthal30, é uma “terra estrangeira”, que exige, no presente, o passaporte

do documento conservado para nele ingressar. Nesse sentido,

[...] acessíveis ou fechados, os arquivos são sintomas de uma falta, e a tarefa do historiador consiste tanto em tentar suprimi-la de maneira inteligível, a fim de reduzir o máximo possível a estranheza do passado.

Referências Bibliográficas

CAMARGO, Ana Maria de Almeida. “Informação, documento e arquivo: o acesso em questão”. Boletim da Associação dos Arquivistas Brasileiros, São Paulo, nº 11, 1993.

COSTA, Célia Maria Leite; FRAIZ, Priscila Moraes Varella. “Acesso à informação nos arquivos brasileiros”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n° 3. 1989.

FEREIRRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

FRANÇOIS, Étienne. “Os ‘tesouros’ da Stasi ou a miragem dos arquivos”, in: BOUTIER, J. Boutier; JULIA, D. (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ; FGV, 1998.

KUSHNIR, Beatriz. “Pelo buraco da fechadura. O acesso à informação e as fontes”, in: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas: história da censura no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.

27

Idem, p. 161. 28

CAMARGO, Ana Maria de Almeida. “Informação, documento e arquivo: o acesso em questão”. Boletim da Associação dos Arquivistas Brasileiros, São Paulo, nº 11, 1993. 29

ROUSSO, Henry. “A memória não é mais o que era”, in: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de M. (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996b. 30

LOWENTHAL, David. “Como conhecemos o passado”. Projeto história, São Paulo, n° 17, nov. 1998.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.

Page 22: Nas teias da lei: limites e interditos no acesso ! informa ... · A cultura política autoritária que está na gênese de nossa sociedade ... no início de 1997, se estabeleceu o

Beatriz Kushnir (org.). Maços da gaveta: reflexões sobre mídia. EdUFF, 2009

22

______________. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

______________. “Decifrando as astúcias do mal”. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, v. XLII, n° I, 2006.

LOWENTHAL, David. “Como conhecemos o passado”. Projeto história, São Paulo, n° 17, nov. 1998.

PEREIRA, Márcia Guerra; REZNIK, Luís. “De polícia federal a departamento estadual – o DOPS: evolução administrativa”, in: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. DOPS: a lógica da desconfiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado de Justiça, 1993.

REIS FILHO, Daniel Aarão. “Um passado imprevisível: a construção da memória da esquerda nos anos 60”, in: ______________ et al. Versões e ficções: o seqüestro da História. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.

RIBEIRO, Renato Janine. “Memórias de si, ou...”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n° 21, vol. 1, 1998.

ROUSSO, Henry. “O arquivo ou o indício de uma falta”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 17, 1996a.

______________. “A memória não é mais o que era”, in: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de M. (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996b.

SILVA, Sergio Conde de Albite. A preservação da informação arquivística governamental nas políticas públicas brasileiras. Niterói, Tese de Doutorado, UFF, Niterói, 2008.

VERNANT, Jean-Pierre. “A bela morte e o cadáver ultrajado”. Discurso, São Paulo, vol. 9, 1978.

VIANNA, Aurélio; LISSOVSKY, Mauricio; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. “A vontade de guardar: lógica da acumulação em arquivos privados”. Arquivos e Administração, Rio de Janeiro, vol. 10-14, n° 2, 1986.

WERTH, Nicolas (dir.). “Pour une nouvelle historiographie de l’URSS”. Les Cahiers de l’Institut d’Histoire du Temps Présent, Paris, nº 35, dezembro de 1996.

Generated by Foxit PDF Creator © Foxit Softwarehttp://www.foxitsoftware.com For evaluation only.