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JUNHO 2019 novembro negro um mês de eventos sobre raça, história, classe, gênero, ancestralidade, cultura e pensamento filosófico- revolucionário a acepusp convida a todos e todas para o novembro negro um mês de eventos sobre raça, história, classe, gênero, ancestralidade, cultura e pensamento filosófico- revolucionário

n e g r o n o v e m b r o - ACEPUSP · 2019-10-31 · Além de forró e bolero, o Mulheres que Conduzem oferecem aulas de samba de gafieira. Antigamente a gafieira era um baile popular,

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JUNHO2019

BOLETIM

CULTURAL

AC E P U S P

n o v e m b r o

n e g r o

u m m ê s d e e v e n t o s s o b r e r a ç a , h i s t ó r i a ,c l a s s e , g ê n e r o , a n c e s t r a l i d a d e ,

c u l t u r a e p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o -r e v o l u c i o n á r i o

a a c e p u s p c o n v i d a a t o d o s e t o d a s

p a r a o

N O V/ 2019

n o v e m b r o

n e g r o

u m m ê s d e e v e n t o s s o b r e r a ç a , h i s t ó r i a ,c l a s s e , g ê n e r o , a n c e s t r a l i d a d e ,

c u l t u r a e p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o -r e v o l u c i o n á r i o

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Sede: Rua da Consolação, 1909Anexo: Rua da Consolação, 1699Cerqueira César - São Paulo/SPpróximo às estações Paulista e Mackenzie da linhaamarela

Associação Cultural de Educadores ePesquisadores das Universidades deSão Paulo

c o n t a t o

www.acepusp.com.br(11) 3258-1436 | (11) 3132-0692facebook.com/acepusp.associacaoinstagram.com/acepusp

c h a m a d a d e p r o j e t o s

Tem algum projeto cultural que gostaria de trazer para o nossoespaço? Entre em contato conosco pelo e-mail:[email protected]@gmail.com

créditoshttp://tarsiladoamaral.com.br/obraocupação são joão

agradecimentosa todos que contribuíram para a construção doNovembro Negro!

í n d i c e

Acepusp em 2019 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eventos culturais - atividades regulares . . . . . . . . .Eventos Mensais ..................................................................Novembro Negro. . . . . . . . . . . . . . . ..................................CALENDÁRIO DE EVENTOS Coluna Perifeérica #7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Pai Contra Mãe Mornas eram as noites (ensaios - literatura caboverdeana A história por trás das tranças

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A Acepusp (Associação Cultural de Educadores ePesquisadores das Universidades de São Paulo) é umainstituição sem fins lucrativos,  formada por estudantes dediversas universidades públicas brasileiras. Fundada em2002, a Associação atua em áreas da educação com ointuito de fomentar o acesso das classes populares àcultura. Localizada no centro de São Paulo, apoiaorganizações autônomas e coletivos, abrigando uma gamade atividades no espaço. A associação é orientadapoliticamente à esquerda e é autônoma em relação apartidos e universidades. O mais antigo projeto da associação é o Cursinho Popular,existente desde 2002, com cursos pré-universitários e deextensão, voltados a estudantes em fase de vestibular.Em 2017, teve início o Centro de Línguas, oferecendo apreços populares aulas de inglês, espanhol, francês,alemão, cursos instrumentais, plantões e clubes deconversação. Em 2019, a ACEPUSP, em parceria com grupos culturais deSão Paulo, visa ampliar o acesso à cultura por meio deeventos, oficinas, cursos de longa e curta duração (comoartes visuais, dança, cineclubs, entre outros). Nosso objetivoestá para além do simples fomento à cultura. Num cenáriopolítico caótico e desfavorável, lutamos por suapermanência, encarando-a não como um ópio dosintelectuais, mas como um bem coletivo, inalienável, umconvite à reflexão. É sobretudo um instrumento deconscientização e transformação das estruturas sociais.

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a t i v i d a d e s r e g u l a r e s

e v e n t o s c u l t u r a i s

dança de salão Lambazouk

O Movimento Lambazouk (dança para todos) oferecerá aulas dedança de salão (especificamente Lambazouk/Lambada). O cursotem turmas de iniciantes e iniciados, formando profissionais dedança de salão em uma nova etapa do projeto a depender dointeresse do aluno. Quando terças e domingos, das 19h às 20hOnde Domingos - Sala PoisÉPraQuê? Terças - Prédio Anexo, Sala 2 ..Valores R$ 100 (mensal)Inscrições tratar direto com o grupo/professoras. Gratuito para alunos Acepusp

tango às quartas

O Tango às quartas, projeto do Tango Entre Mulheres, tem opropósito de ensinar as bases e os princípios de caminhada dotango, levando em conta a consciência corporal, o cuidado e orespeito ao nível de cada pessoa. Tango em turmas exclusivas paramulheres - todas as mulheres! Descontos para mulheres negras etrans. Se você tem alguma dificuldade, não fique sem dançar, fala com agente! Se você é mãe, seu filho ou filha é bem-vindo! Quando Toda quarta-feira, das 19h30 às 20h45 (iniciantes) e das 21hàs 22h30 (intermediárias).Onde Prédio Anexo, Sala 2 .Valores R$80 (mensal) / R$200 (trimestral) Inscrições tratar direto com o grupo/professoras.Descontos para mulheres negras e transsexuais Gratuito para alunos Acepusp.

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Samba de gafieira

Além de forró e bolero, o Mulheres que Conduzem oferecem aulasde samba de gafieira. Antigamente a gafieira era um baile popular,de entrada paga e frequentado por pessoas de baixo podereconômico. Na década de 1960 em diante, frequentado por classesmais abastadas. A proposta do grupo é uma prática livre de gêneroe classe. Não é necessário vir em pares. Quando toda sexta, das 20h às 21h30. Onde Prédio Anexo, Sala 2 .Valores e inscrições tratar direto com o grupo/professoras.Gratuito para alunos Acepusp.

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forró às sextas

O Mulheres que Conduzem voltam com as aulas de forró livre degênero. Não é necessário vir em pares. São duas turmas nomesmo horário, de iniciantes e iniciados. Na aula de conduçãoalternada não é obrigatório aprender os dois papéis, condutor econduzido, você pode escolher estudar apenas um. Valores idem aSalsa Livre de Gênero. Quando toda sexta, das 18h30 às 20h. Onde Prédio Anexo, Sala 2 .Valores e inscrições tratar direto com o grupo.Gratuito para alunos Acepusp.

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O Ballet Koteban oferece as "Aulas de dança mandingue". O curso éaberto tanto a população negra como aos admiradores da culturaafricana. O Ballet Afro Koteban é um grupo de artistas e educadoresnegros cuja pesquisa se volta à cultura do Oeste Africano. Quando todo domingo, das 10h ao 14hOnde Sala PoisÉPraQuê? Valores a confirmar com o grupoInscrições [email protected] pelo site www.acepusp.com.br/eventosGratuito para alunos Acepusp.

koteban - aulas de dança africana

www.acepusp.com.br/eventosPrédio Anexo, Sala 2 [Rua da Consolação, 1699, 2ºandar].Sala PoisÉPraQuê? (Rua da Consolação, 1909, 1º andar).

i n s c r i ç õ e s

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Dia 03/11 teremos a próxima edição da nossa querida prática detango: Las Tardecitas! 17h30 - Aula de Pivôs e suas possibilidades - com MarianaFranco18h30 - Prática! Musicalização de Laura AudiTambém comemoraremos o aniversário da Mari! Pode vir como se sentir confortável, pode dançar com quem quiser,mulher com mulher, homem com homem, até homem com mulherpode! Todes são bem vindes! "¡El Tango será popular o no será nada!"ACEPUSP Data: domingo, 03/11/2019, das 17h30 às 22hOnde: Espaço de convivência PoisÉPraQuê.Entrada gratuita e colaborativaEndereço: Rua da Consolação, 1909. SP.Dúvidas e mais informações:- WhatsApp 11 97975 8800- www.facebook.com/lastardecitastango- Instagram: @lastardecitastango Mais em: http://bit.do/lastardecitasnov

las tardecitas

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e v e n t o s m e n s a i s

03/11

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Mês das bruxas tá passando e o Brasil segue assombrado.Que estamos vivendo tempos sombrios todos sabemos mas nem porisso podemos deixar de lado um pouquinho de diversão né não?Pensando nisso a Juventude do MTST lança a festa BRAZIL HORRORSTORY � Quando sexta-feira, 08/11, às 23h30 Onde: Rua da Consolação, 1909. SP.Valores - R$ 10,00 antecipado- R$ 15,00 na porta- R$ 5,00 (meia entrada p/ alunos da Acepusp com nome na lista)- Gratuito para trabalhadores e associados da Acepusp com nomena listaIngressos antecipados: Daisa (11) 95899-7154, Guilherme (11) 97704-1809* Sujeito a lotação do espaço, garanta seu ingresso antes Mais em: http://bit.do/brhorrorstory

brazil horror story

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O Centro de Línguas da Acepusp convida para o 5º Clube deConversação aberto.VENHA CONVERSAR EM INGLÊS, FRANCÊS, ESPANHOL OU ALEMÃO.Teremos atividades direcionadas para os participantes interessadosem conversar na língua que estão aprendendo. Nas mesas estarãosugestões de temas diversos, além de jogos voltados para a práticados idiomas. O evento acontece no nosso espaço de convivência, oPois é, e tem duração de três horas. Alunos e não alunos do Centrode Línguas estão convidados para participar. O evento contemplatambém os alunos do Intensivo de Inverno.. O evento é gratuito e nãorequer inscrições. Quando: Sábado, 09/11, das 19h30 às 22h30.Onde: Espaço de convivência PoisÉPraQuê.Endereço: Rua da Consolação, 1909. SP.GratuitoMais em: http://bit.do/clubenov

5º clube de conversação do centro de línguas da acepusp

www.acepusp.com.br/eventosOs eventos ocorrem no Espaço de convivência PoisÉPraQuê? Rua da Consolação, 1909, 1º andar.

m a i s i n f o r m a ç õ e s ?

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09/11

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Abordar questões como raça, história e cultura num país onde suapopulação mais expressiva sempre foi posta à margem se impõe hojecomo tarefa urgente e, ao mesmo tempo, de difícil resolução. A pauta surge, atualmente, frente às mudanças histórico-sociais queremontam ao fim da ditadura e à redemocratização do país. Nossamemória coletivamente fragmentária, de um povo vário emnacionalidade e cultura, dentro de seus limites, vê como "novos" aabordagem, bem como o alcance, a afirmação de uma consciênciaracial, como nunca antes vista na história desse ornitorrinco que é oBrasil. Mas isso é novo, de fato? Dizê-lo pressuporia ao mesmo tempo negar a presença de umaconsciência anterior. E cabe também a pergunta: como se entendiamos negros antes da redemocratização? Como pensavam seu passado,sua cor, seu cabelo, suas matrizes, bem como eram vistos frente aomeio que os aprisionou? A imagem que temos do negro hoje (produtode séculos, produto de brancos), e que se transforma, é de fato umconstruto coletivo, de quem se entende como parte do sistema derelações imposto na era do Capital? Hoje em dia palavras como "empoderamento", "consciência racial","lugar de fala" e tantas outras se apresentam como meios de seconquistar um espaço, antes negado pelo poder de uma classe - e aomesmo tempo, raça - hegemônica. Todavia o Brasil não é um clone deseu vizinho ao norte, os Estados Unidos. Apesar da extensão e origemhistórica quase similares, cada país viveu um processo e organizaçãoestrutural diferente, - logo, elas são mais do que esperadas. Os EUA,por exemplo, aboliram a escravidão antes de seu vizinho - o que nãosignificou a chegada de tempos prósperos às terras da liberdade. Esta.na verdade. era e continua a ser para poucos.

n o v e m b r o n e g r o

a c e p u s p c u l t u r a l a p r e s e n t a :

u m m ê s d e e v e n t o s s o b r e r a ç a , h i s t ó r i a , c l a s s e , g ê n e r o ,

a n c e s t r a l i d a d e , c u l t u r a e p e n s a m e n t o f i l o s ó f i c o - r e v o l u c i o n á r i o

A P R E S E N T A Ç Ã O p o r M A R C O S M E D E I R O S

( D I R E Ç Ã O C U L T U R A L - a c e p u s p )

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As consequências da abolição nos Estados Unidos levaram àconstrução de comunidades negras, cuja base de formação era racial.Ao mesmo tempo que não os privavam dos ataques dos brancos, erapossível se organizar - tal como se viu na luta por direitos civis, nadécada de 1960, e bem antes disso na criação de um movimento delibertação dos escravizados, como retrata o filme 12 anos deescravidão, de Steven McQueen e os romances de Toni Morrison,sobretudo Amada, autora recém-falecida. Quando se fala em Brasil, no entanto, transpor conceitos como lugarde fala, empoderamento e consciência de raça, sem antes levar emconta as particularidades que nos formaram como tal pode se tornarum entrave à construção de algo valioso. Quando importamos taisideias sem pensar em nossas especificidades, escritores e inclusiveem nosso "suposto inimigo", perdemos toda a riqueza subjacente aosmodos de vida, à memória e à tradição. Esse é um primeiro argumento. Ao meu ver, não cabe tanto usar taisinstrumentos se não refletimos sobre nossa própria história, aquelaque ainda não descobrimos por completo e, mais urgente, aquela daqual fomos privados. Civilização não é oposto de barbárie, pelocontrário, são tão irmãs como arqui-inimigas. O maior absurdo é criaruma nação aos moldes europeus, jogando para debaixo do tapete opassado vergonhosamente colonial. Não digo também que issoacontece entre nós. Mas a semelhança é artifício lógico, e estão aípara provar que, sendo diferentes, surtem efeito semelhante. A construção de um "sujeito negro", "brasileiro", também não é umcaminho confiável a se escolher... Vide os qualificativos (brasileiro,negro). Como se pensam questões de raça num país ondemiscigenação foi política de apagamento de tais raízes? Como sepensa classe como um fator marcante? (Afinal, raça é classe, mashoje em dia a primeira parece se sobrepor a segunda,confortavelmente e para prejuízo dos pobres).

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Como pensar então nos brancos que, não sendo ricos, e postos numaordem onde sobreviver é sinônimo de se deixar cooptar aos gostos daelite que, sendo também branca, vale-se da tirania contra os de suacor, e na mesma medida que os reconheciam como iguais, oshumilhava, excluía, expunha à violência e à necessidade desobrevivência. Seria a classe um elo? Acredito que não, não por si. Mas se há um ponto em comum, podemos dizer que este é a fome, aprivação, a supressão da individualidade, e a possível perda do futuroe da história a que ambos, brancos e negros na ordem escravocrataestavam submetidos. E ao pensar neste conto de Machado ("PaiContra Mãe", que o leitor/leitora apreciará nas próximas páginasdeste boletim), não nos conformamos ante a força da ideologia quecoopta pobres, brancos e negros. Machado de Assis, aliás, filho de negros e portugueses, soubedistanciar-se da mesma ordem social que lhe consagrou e amaldiçoou- a ele e sua obra. Neto de escravos alforriados, filho de pai mulato,pintor de paredes. e de mãe lavadeira, portuguesa e branca - ambosda ilha de Açores - , perdeu sua família ainda jovem, sendoposteriormente "adotado" por uma família de barões, funcionários doimpério, de quem os pais eram "agregados". Era "como" o filho deles,não "o filho" de fato. E o que não passou em vida, à condição deagregado? Usufruía e era privado dos privilégios. Foi justamente essa percepção, esse impasse irresoluto de suasituação que o fez olhar atenta e cautelosamente para a gente brancae agregada como ele, para a gente negra escravizada como seusantepassados. Após o reconhecimento vindo pela via das letras,Machado poderia facilmente esquecer de sua origem e, assim comomuitos agregados e escravizados na ordem, acabar reproduzindo oshábitos de seus algozes. Escolheu um caminho mais difícil, à primeiravista bastante hermético, mas que se explica pelo perigo daempreitada. Ele não queria usar da literatura para denunciar seusalgozes, isso ainda é pouco.

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Seu amor pelas letras equilibrou os impulsos de destruição e criaçãocomo nunca antes vistos num país novo, de literatura nova ecomplicada pelo excesso de nacionalismo e mistificação. Denuncioutodo um século, expôs todo um projeto colonizador e liberal, religioso ecientífico. Não poupou das garras da ironia nem o branco, nem onegro; o conservadorismo ou a barbárie. Sua ironia é inventiva, poisnão tem por finalidade condenar apenas. Muito pelo contrário, expõe aordem escravocrata e seus verdadeiros culpados deixando-os falar,em toda sinceridade. O ataque ao leitor da época é mil vezes mais feroz do que àspersonagens de sua narrativa. Em outros termos, não sendonacionalista, nem se prendendo a tendências de época, e muitomenos aos ódios de um maniqueísmo ingênuo, fez de sua literatura aprosa do mundo pela experiência periférica, como poucos fizeram noséculo XIX. Mas tudo isso só foi possível, imagino, por umamadurecimento gradual e contínuo. Apesar de inconformado com asituação do país, dos negros, dos agregados e pobres, canalizou todaa negatividade, altamente destrutiva, para a mais "revolucionária" dasformas, o romance, assim como para o conto e a crônica. A maior dificuldade (e isso é nítido na primeira fase do autor) erafazer romance em país escravocrata. Isso porque não era uma formatradicional, como a Ilíada de Homero, ou o teatro grego de Édipo Rei.Produto gradativo de uma acumulação de temas e técnicas, o romanceretrata a vida dos indivíduos livres numa sociedade de livrecompetição. É por excelência uma forma advinda do capitalismo. Oindividuo precisava, antes de tudo, ser livre para ser personagem deromance. Assim se dá a experiência em contato com o mundo. O Brasil fazia romance, ou assim queria, no século XIX, a exemplo doseuropeus. Ao subverter a forma para dar conta de nossa realidade,não o fez sem fraturar toda a sua estrutura. Por isso aparecem coisasantes não vistas (narradores inconfiáveis, capítulos em fragmento,ordem temporal confusa, misto de real e sonho, ironia, mal trato aoleitor - o leitor da época). Nada novo é feito sem sacrifício. Deve tersido dificílimo a este Bruxo do Cosme Velho, mas os frutos, essesdevem ter tido um sabor no mínimo agridoce...

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Enfim, isso só foi possível pois o escritor se impôs a tarefa de refletirsobre o país. E apesar de toda dor resultante, pela não aceitação, e osolhares tortos, e p apagamento de suas origens, e a deturpação deseu trabalho pelos críticos, ainda assim Machado vestiu seusnarradores com a pele dos brancos, para melhor denunciá-los emostrar, da mesma maneira que são algozes e vítimas de umprocesso maior. Logo, foram tais inquietações que levaram à ideia de construir um mêssobre o que entendemos por raça, classe, gênero, ancestralidade,cultura, política e pensamento neste MÊS NEGRO DA ACEPUSP. Oseventos foram concentrados sobretudo na Semana da ConsciênciaNegra, e não somente. A intenção assim, é estimular o debate, semcom isso reduzi-lo a uma questão de lugar de fala onde o outro nãotem opinião - precisamos disso, ninguém nasce sabendo, muitomenos sobre o poder de ideologias seculares, as quais demoramséculos de luta para se romper. Se ocorrer empoderamento, - eespero que sim! - que venha da força de nossas consciências empensar, juntos, um sentido para além do que é facilmente aceitável porausência de imaginação ativa e política.. Para isso o Mês foi idealizado. Espero que inquiete e estimule umareflexão saudavelmente crítica e em sintonia com os nossos sentidose percepções.

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c h i m a m a n d a n g o z i a d i c h e

g i l b e r t o g i l

f r a n T z f a n o n

c o n c e i ç ã o e v a r i s t o

m a r i e l l e f r a n c o

p a u l o l i n s

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C A L E N D Á R I O D E E V E N T O Sn o v e m b r o n e g r o

02/11

No sábado, 02/11, a Acepusp receberá o Grupo Interdisciplinar de estudos deRaça e Política (GIRA/ FFLCH - USP), para uma Mesa Redonda sobre ointelectual revolucionário Frantz Fanon. Pensador influente e atuante, abordoutemas como descolonização e psicopatologia da colonização na África. Suasideias influenciaram toda uma geração de movimentos culturais africanos,conduzindo aos grandes acontecimentos revolucionários, como a Independênciade Angola. Seu pensamento é fundamental para refletir sobre questõespertinentes a sociabilidade do negro no mundo dos brancos, escravidão, bemcomo as relações entre brancos e negros em solo brasileiro. Data: sábado, 02/11, às 19h30.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuitohttp://bit.do/fanonacepusp

m e s a r e d o n d a : p o r q u e l e r f r a n T z f a n o n ?

c o n v .   g r u p o i n t e r d i s c i p l i n a r d e e s t u d o s d e r a ç a e p o l í t i c a

( g i r a / f f l c h - u s p )

16/11 No sábado, 16/11, a professora Roberta Quirino dará aula sobre África pré-

colonial, mostrando as contradições desse conceito e o continente africano, paraalém da imagem de empobrecimento presente no imaginário popular. Data: sábado, 16/11, às 18h30.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

d e b a t e s : a á f r i c a p r é - c o l o n i a l  

c o n v . r o b e r t a q u i r i n o

11/11

No entre aulas do dia 11/11, segunda-feira, receberemos Viviane Pereira,mestranda em geografia, para uma roda de conversa sobre sua pesquisa naárea de Geografia Humana. Trata-se da questão de raça a partir de Moçambique,considerando as particularidades da colonização e uma comparação com oBrasil em relação ao processo de independência e em como incide nesse tema. Data: segunda-feira, 11/11, às 18h às 19h.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

r o d a d e c o n v e r s a : M O ÇAM B I Q U E , RAÇA E L I B E R TAÇ Ã O

c o n v . v i v i a n e a l v e s p e r e i r a

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19/11

O objetivo é compreender duas tendências em alta dentro dos movimentosnegros. De um lado o pan-africanismo de Marcus Garvey e de outro omaterialismo de Frantz Fanon e Aime Cesaire. Qual a relação dialética entreesses autores e os paradigmas colocados para a negritude a partir deles? Comisso, o professor Ranon Sobral pretende explorar os manifestos, trabalhos ecomo moldam os movimentos negros hoje. Outro ponto é como a música negracontemporânea expressa tais ideias, mostrando assim a atualidade destesparadigmas para a negritude. Data: terça-feira, 19/11, a partir das 18h Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

a U L A : d i a l é t i c a e n t r e P A N A F R I C A N I S M O E M A T E R I A L I S M O N A

M Ú S I C A N E G R A

C o n v . R A N O N S O B R A L T A R G A

20/11

A identidade afro-brasileira da arte se define a partir da declaração de cor dxartista, ou dos conceitos plásticos internos e/ou inerentes à obra, ou darecepção do público? O que define uma obra como Afro-Brasileira ou artenegra? Quem são os artistas afro-brasileiros? Para quem e como é consumida aarte Afro-Brasileira? Essas e mais questões serão tratadas por Caio Netto dosSantos (Artes Visuais - UNESP), professor de Historia da África no Cursinho daFFLCH e integrante do GIRA - Grupo Interdisciplinar de Raça e Política. (USP) Data: quarta-feira, 20/11, das 17h45 às 19h15.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

d e b a t e s : a b o r d a g e n s s o b r e o c o n c e i t o d e a r t e a f r o -

b r a s i l e i r a   c o n v . c a i o n e t t o d o s s a n t o s

21/11

No dia 21/11, quinta-feira, o professor Fernando Filho apresenta recorte de suadissertação de mestrado "'o pensamento sexual brasileiro", pretendendoapresentar as teorias raciais e como o negro era interpretado nestas teses. Data: quinta-feira, 21/11, das 18h às 19h.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

d e b a t e s : O P E N S A M E N T O S E X U A L B R A S I L E I R O : T E O R I A S R A C I A I S E

R E P R E S E N T A Ç Ã O D O N E G R O c o n v . f e r n a n d o f i l h o

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22/11

Na sexta-feira, 22/11, a professora Emily Ouros apresentará aspepctos daliteratura contemporânea através de autores negros da prosa e da poesia. Oobjetivo é marcar a presença de uma literatura atuante e combativa, levando aoincentivo da leitura e reconhecimento destes. Data: sexta-feira, 22/11, das 18h às 19h.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

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c o n v . E M I L Y O U R O S

23/11

No dia 23/11, os professores e professoras do Centro de Línguas da Acepuspapresentam a palestra "Intercâmbios Culturais". O objetivo é apresentar, peloexperiência deles, as possibilidades de intercâmbio dentro e fora do âmbitouniversitário, além das experiências de viagem e choque cultural vividos. Data: sábado, 23/11, às 18h30.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

d e b a t e s : i n t e r c â m b i o s c u l t u r a i s

C O N V . C E N T R O D E L Í N G U A S D A A C E P U S P

22/11

No dia 22/11, o professor de literatura, Marcos Medeiros, irá discutir a escravidãoe o negro em Machado de Assis. Machado não só foi um abolicionista como fezde sua literatura um espelho de sua época, expondo as contradições sociais, cujabase, a de uma sociedade colonial e escravocrata, continua inalterável. Data: quinta-feira, 22/11, das 12h40 às 14h.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

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c o n v . m a r c o s m e d e i r o s

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30/11

O grupo apresentará o primeiro episódio da série "O Preto Som das Ruas". Nelatrazem um estudo sobre os bailes e a musicalidade negra divididas em quatroepisódios. Para esse evento na ACEPUSP, será exibido o primeiro episódio dasérie "Uma história de luta e dança". O filme tem duração de cerca de 30minutos. Nele o grupo traz alguns relatos de frequentadores de bailes negros,Djs, músicos e pesquisadores. Partindo do período pós abolição até surgimentodo Movimento Hip-Hop, o propósito do coletivo com essa série é a valorização eresgate da memória e cultura negra presente em São Paulo. Data: sábado, 30/11, às 16h.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

c i n e a c e p u s p : o p r e t o s o m d a s r u a s , e p # 1

C O N V . c o l e t i v o a u d i o v i s u a l

30/11

Neste evento, buscamos promover apresentações musicais dos alunos e dopúblico externo, fornecendo equipamento e infraestrutura para taisacontecimentos. A dinâmica é simples: primeiro, disponibiliza-se o espaço eequipamentos para as apresentações musicais dos interessados. Data: 30/11, às 19h.Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Entrada franca, com comercialização de comes e bebes nas dependências.

E N C E R R A M E N T O : p a l c o a b e r t o - n o v e m b r o n e g r o

a t r a ç ã o e s p e c i a l   b a l l e t k o t e b a n

29/11

A confirmar Data: domingo, 29/11, às Local: Espaço de Convivência PoisÉPraQuê?Gratuito

D E BA T E S : RAC I S M O E S T R U T U RA L E A Q U E S T Ã O CAR C E RÁR IA N O B RAS I L

C O N V . S I L V I O D E A L M E I D A , B O I T E M P O E D I T O R I A L

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JUNHO2019

p a i c o n t r a m ã e

c o l u n a p e r i f é r i c a # 7

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m a c h a d o d e

a s s i s

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A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terásucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhossenão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro aopescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aosescravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous paraver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por umcadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar,porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam comque matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e asobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas aordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, ealguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda,na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginaiuma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou àesquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava,naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugiaassim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e compouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Erammuitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucediaocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam deapanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; haviaalguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não eramau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação,porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casoshouve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenascomprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas dacidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos,pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora,quitandando.

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Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quemlho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais dofugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro poronde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha aquantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", - ou"receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia emcima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo,vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo origor da lei contra quem o acoutasse. Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não serianobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a leie a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das açõesreivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ouestudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão paraoutros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também,ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentiabastante rijo para pôr ordem à desordem. Cândido Neves, – em família, Candinho, – é a pessoa a quem seliga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu oofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave essehomem, não aguentava emprego nem ofício, carecia deestabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por quereraprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempopara compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante;foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção,era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para umarmarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-ona corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava narua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartiçãoanexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foramdeixados pouco depois de obtidos.

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Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais quedívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo,entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obteremprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomaraalgumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendoaprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nemcomplicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns paracadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e ocasamento não se demorou muito. Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, moravacom uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que nãonamorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam mataro tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavammuito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher paraa costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixavasaudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nomede muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, umpescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava delonge; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves,sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único.O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiroofício do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, quetinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-seonze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dosnoivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja,tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentilezado noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes;diziam que era dado em demasia a patuscadas.– Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso comdefunto.– Não, defunto não; mas é que...Não diziam o que era. Tia Mônica,depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar,falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só,embora viesse agravar a necessidade.

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– Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia àsobrinha.– Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quandoele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga depatuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo.Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido;não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se semesforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousae outra; não tinha emprego certo. Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendodaquele desejo específico, deixava-se estar escondido naeternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão oufêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal asuspiradaventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dosseus sustos.– Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais queespreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora commais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuraspagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. Àforça de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhecamisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônicaajudava, é certo, ainda que de má vontade.– Vocês verão a triste vida, suspirava ela.– Mas as outras criançasnão nascem também? perguntou Clara.– Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, aindaque pouco...– Certa como?– Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é queo pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo? Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter coma tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lheperguntou se já algum dia deixara de comer.

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– A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e issomesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter onosso bacalhau...– Bem sei, mas somos três.– Seremos quatro.– Não é a mesma cousa.– Que quer então que eu faça, além do que faço?– Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, ohomem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm umemprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio,mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas semvintém.– Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra.Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo nãobrinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daía pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previauma patuscada no batizado. Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abriramão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidostrouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horassentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e umpedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os,metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória.Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastavapouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A forçaera muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina,conversando de cousas remotas, via passar um escravo como osoutros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, acasa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás dovicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de umsalto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue,as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele osvencia sem o menor arranhão.

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Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidosnão vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de CândidoNeves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse,mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aosjornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairrohavia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas deCândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentosprontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-sedifícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhoriomandava pelo aluguéis. Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido,tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava asobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhepela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata dealgum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa,e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era acegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhederam os parentes do homem.– É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, edepois de ouvir narrar o equívoco e suas consequências. Deixe-sedisso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão doconselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria ummodo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava àmão negócio que aprendesse depressa. A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado àmãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias enecessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispensotambém. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam sermais amargos.– Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho queme custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

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Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deuao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dosenjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura detolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la,guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitarcomo? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando ummurro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada,esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio.– Titia não fala por mal, Candinho.– Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for,digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; acarne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro,como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; maistarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos quevierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior.Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda éalguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguémmorre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua.Enfim... Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu ascostas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução,mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, –crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como aamparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, echamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foiinterrompida por alguém que batia à porta da rua.– Quem é? perguntou o marido.– Sou eu. Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinhaem pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.– Não é preciso...– Faça favor.

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O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobíliapara ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receberos aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cincodias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado pararegalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário;mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre CândidoNeves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa esúplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.– Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta esaindo. Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegavanunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabiacomo nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios.Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desdemuito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Aofim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos,foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que aordem de mudança. A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam compessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Nãocontavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento paraos três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeuemprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, paraos lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nadaaos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crisecomeçasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meioseguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouviaas queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar.No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-iaespantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do quecuidassem.

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Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento defavor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foienorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criançaà Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Ruados Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, queele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos ospais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite;mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda nanoite seguinte. Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. Asgratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam asoma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abriramão do negócio; imaginou que algum amante da escrava ahouvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e anecessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grandeesforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua eLargo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar,segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Ruada Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga,três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. CândidoNeves parecia falar como dono da escrava, e agradeceucortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos degratificação incerta ou barata. Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. TiaMônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinhajá o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordofeito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer oque tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade.Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Nãopodia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou amulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criaçãodo menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filhoachasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado acumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto doleite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, opai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

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Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, écerto; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava,que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Ruada Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.– Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la;foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavamaquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar àdireita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vultode mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção deCândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Umadjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu eletambém; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera ainformação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-lasem falta.– Mas... Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido,atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulhersem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S.José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulatafujona.– Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendotirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços daescrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível.Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e diziaque andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltaralguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo queninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltassepelo amor de Deus.– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria temalgum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tuaescrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhormoço!– Siga! repetiu Cândido Neves.– Me solte!– Não quero demoras; siga!

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Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si eao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendiao que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que osenhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes, –cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Comcerteza, ele lhe mandaria dar açoutes.– Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugirdepois? perguntou Cândido Neves. Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficarana farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumavadizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dosOurives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Naesquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuoucom grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de sera casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera.Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda aliajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu aochamado e ao rumor.– Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.– É ela mesma.– Meu senhor!– Anda, entra... Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escravaabriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. CândidoNeves guardou as duas notas de cinquenta mil-réis, enquanto osenhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, ondejazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta aescrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre osgemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Nevesviu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer quefossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem quererconhecer as consequências do desastre.Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lheentregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudoa tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambosentraram.

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O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara aescrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria deamor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para aRoda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho eos cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação,perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis.Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, porcausa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho,entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava doaborto.– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. In: http://bit.do/machadopaicontramaePublicado no livro de contos, Relíquias da Casa Velha (1906)

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Bernardina Oliveira Salústio, conhecida como Dina Salústio,nasceu na ilha de Santo Antão em 1941. Além de escrever, atuoucomo professora, assistente social e jornalista em Cabo Verde,Portugal e Angola. Sendo destacada como uma das vozes maisinfluentes da literatura cabo-verdiana produzida após adescolonização, Salústio iniciou o seu percurso literário em 1991,publicando poemas na antologia Mirabilis, de veias ao sol. Em1998, publicou A louca de Serrano (1998), primeiro romance cabo-verdiano de autoria feminina. O Instituto Geledes, dedicado aoativismo antirracista e antissexista, destacou o romance comouma das “10 obras fundamentais da Literatura africana de línguaportuguesa”. Além de promover uma releitura do papel histórico das mulheresem Cabo Verde, a obra da escritora é fundamental para acompreensão do papel da mulher na sociedade africanacontemporânea. Em entrevista concedida à pesquisadora SimoneCaputo Gomes, Dina Salústio afirma que a sua escrita nasce da“necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres,histórias de vida que passam por mim [...].”. Nesse sentido, escreveo livro de contos Mornas eram as noites (1994), tendo como fiocondutor das narrativas as vidas e as experiências múltiplas dasmulheres que habitam o país.  Cabo Verde é um país insular, em que a maior parte da populaçãoé negra. As mulheres compõem mais da metade da população dopaís (53%). Muitas vezes, os homens deixam o país por um longoperíodo de tempo para trabalhar na diáspora. Portanto, são asmulheres que trabalham, plantam e cuidam das terras, chefiam asfamílias e carregam nas costas a cultura do país. As mulherescriam rede de apoio e de solidariedade entre si, transmitindodessa forma os saberes ancestrais para as gerações mais novas.A morna, evocada pelo título do livro, consiste em um gêneromusical próprio de Cabo Verde. Originalmente, era um gênerotocado e cantado exclusivamente por grupos de mulheres. Comisso, a autora pretende lançar luz para uma forma de expressão,força e voz estritamente feminina.

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O conto “Tabus em saldo” é iniciado com uma paráfrase doprimeiro capítulo de O segundo sexo (1949) de Simone deBeauvoir: “Ninguém nasce mulher. Torna-se mulher.”.  A voz quenarra o conto, por sua vez, afirma: “Se tivesse nascido macho eraum rapaz, mas como nasceu fêmea é mulher. As fêmeas sãosempre mulheres. Mas mesmo mulheres, elas são de todos nós.Para serem protegidas.”. Conforme a autora de O segundo sexo afirma, o corpo da criançaé a primeira irradiação da subjetividade, o instrumento que efetuaa compreensão do mundo. Dessa forma, o conjunto da civilizaçãoelabora o produto intermediário entre o macho e o seu oposto queé qualificado como feminino. Nesse processo de mediação, amulher é sempre constituída como um outro em relação aohomem. Ao homem é dado o direito de vir a ser um indivíduosingular, conforme enfatiza o artigo indefinido em “Se tivessenascido macho era um rapaz [...]” (grifo meu). Em contrapartida, aexistência das mulheres não pode ser escolhida por elas.Pensando na domesticação dos corpos femininos, a civilizaçãoanulou progressivamente a pluralidade dos corpos e dasexperiências das mulheres como forma de manutenção dasestruturas de poder masculinas — “As fêmeas são sempremulheres. Mas mesmo mulheres, elas são de todos nós.” Entretanto, o rumo do discurso que poderia indicar a mulher comoum ser que pode ser apropriado e dominado por “todos nós” érapidamente invertido na medida em que a voz que narra o contoacrescenta que elas são nossas “para serem protegidas.”. Apostura adotada faz ressoar o eco de uma voz coletiva, colocandoem cena a mulher que reivindica por meio da escrita literária acondição de contadoras de estórias ou porta-vozes deexperiências, conforme aponta Maria Teresa Salgado. A narradora, no entanto, aponta para uma antinomia no interiorda sociedade, afirmando que “[...] há outros de nós [...]”. Essesoutros “já têm tudo para serem motivo de tudo [...] as desejampara o folclore da fantasia [...]”. Então, a narradora revela atemática tratada pelo conto: a pedofilia infantil. Na medida em queo conto avança, a violência passa a se expandir em direção aoutros territórios:

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Não satisfaz mais a orquestrada exploração da candura dasmeninas européias, a sedução das orientais, a instrumentalizaçãodas americanas do sul e do norte. [...] A noite, na televisão, passouum filme sobre prostituição infantil, em várias nunces. Eramcrianças americanas. Podiam ser cabo-verdianas.

Em Dialética do sexo (1970), Shulamith Firestone chama atençãoao fato que a difusão de um conceito para a infância encontra umparalelo no conceito difundido para a feminilidade. Em tese, tantoas crianças quanto as mulheres foram sistematicamente educadaspara manter o silêncio diante da rotinização da violênciapraticada contra elas. O silêncio promove a manutenção daviolência masculina. Por meio do silêncio, a vítima indica a suaaquiescência em relação ao seu próprio opressor. Entretanto, todo o livro de Dina Salústio é perpassado por vozesfemininas que buscam “a oportunidade do grito”. Nesse caso, aoportunidade encontrada pela narradora é a de abordar um temarelativo à sexualidade feminina que, além de ser um tabu nasociedade em que vive, coloca a experiência da feminilidade emrisco. Por outro lado, ao assumir para si a preocupação com aintegridade das crianças, a narradora reproduz uma funçãoeminentemente feminina: a da criação. Ainda na esteira deFirestone, o vínculo entre as crianças e as mulheres não passa deuma opressão compartilhada. Dessa forma, é preciso adotar umaperspectiva que seja realmente libertadora e repensar a noção demasculinidade, de modo que os homens não contem com acomplacência da sociedade para perpetuar a prática de violências. De todo modo, desempenhar a função de ser uma porta-voz paraas crianças em situações de vulnerabilidade e vitimização sexualé uma necessidade premente. Conforme afirma a sociólogaHeleieth Saffioti,

[...] não existe prostituição infantil sem que haja um adultoresponsável. Ou ele é cliente ou é o explorador que se beneficiado ponto de vista econômico com a prostituição dessa criança, ouele se beneficia de uma outra forma, não economicamente, porqueé ele próprio que explora os serviços sexuais dessa criança.Enfim, o problema da prostituição infantil é um problema dosadultos e não da criança. As crianças não têm discernimento paradecidirem aquilo que é melhor para elas. [...] Por isso é quedevemos defender as crianças.

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O fortalecimento do combate à violência sexual e de gênero pedea intervenção de toda a sociedade civil, que deve estar sempreatenta, vigiando e garantindo políticas públicas. Além disso, aeliminação da opressão de gênero também exige um esforçocoletivo para que a sociedade seja repensada, pois ali estãofixadas as bases da violência sexual. Saffioti destaca o núcleofamiliar como uma das formas que facilitam a reprodução decasos de abuso e violência, afirmando: “É preciso reestruturar afamília e, junto com isso, reformular as relações de gênero.” O vínculo entre as mulheres e as crianças também é representadonos contos “Mãe não é mulher” e “Forçosamente mulher,forçosamente mãe”, cujos títulos estão em sequência no livro ecriam uma contradição entre si. No primeiro conto, conformeobserva Simone Caputo Gomes, o título proposto por DinaSalústio dinamita a máxima patriarcal da assexualidade materna,que propugna que as mulheres devem servir apenas para aprocriação e ao prazer dos seus maridos. No segundo conto, umaadolescente de dezesseis anos chamada Paula está prestes a terum filho sem o apoio do pai do bebê. A subjetividade femininaencontra o seu eco na voz da narradora do conto que, em umgesto de extrema solidariedade com Paula e com o grupo dejovens em que ela está inserida, contradiz o que o título do contoprocura afirmar ao dizer:

Queria vê-la revoltada. Com raiva. Decidida. [...] Queria que ela etodas elas se juntassem e calassem para sempre os latidosdaqueles que perseguem manhosamente as nossas meninas naquietude das noites. Com o seu ódio. E que os desfizessem com assuas mãos de mães abandonadas. E os afogassemimpiedosamente nas lágrimas de todas as crianças traídas.

De todo modo, a imposição da maternidade é parte do conjunto denormas sociais que permeiam a existência das mulheres, sendosustentada por meio de narrativas sociais que propagam o mitodo amor parental. Em “Liberdade adiada”, primeiro conto do livro,é a lembrança dos filhos que faz com que a personagemabandone a ideação suicida. A mesma lembrança é utilizada comoargumento quando a narradora do conto, em uma conversa com apersonagem, questiona o motivo pelo qual a mulher não parte embusca de outros rumos para a sua vida — apontando oterralongismo como uma solução.

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A despeito de todas as considerações que podem ser feitas arespeito da solidão de uma mulher que é responsável pelatotalidade do provimento financeiro e afetivo de sua família,conforme a ausência de uma figura paterna no conto pareceindicar, a narradora não assegura a incondicionalidade do amorque a personagem sente por seus filhos. Desse modo, apresentalogo no início do texto o ódio que a mulher sente ao pensar neles:“Imaginou os filhos que aguardavam e que já deviam estaracordados. Os filhos que ela odiava!”. Em suma, as narrativas de Mornas eram as noites fazem surgir a“oportunidade do grito” — novamente, adoto a expressão porempréstimo. As narradoras e as personagens das histórias curtasde Dina Salústio sempre têm muito para dizer: seja sobre arealidade insular, que chega ao leitor de maneira suave como osom de uma morna; seja para atacar a violência patriarcalexpressa em nível psicológico, físico ou econômico na sociedadecabo-verdiana.

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Referências bibliográficas BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.FIRESTONE, Shulamith.Dialética do sexo: um manifesto da revolução feminista. Traduçãode Vera Regina Rebello Terra. Rio de Janeiro: Editora Labor doBrasil, 1976. GOMES, Simone Caputo. “Mulher com paisagem ao fundo: DinaSalústio apresenta Cabo Verde” e “O texto literário de autoriafeminina escreve e inscreve a mulher e(m) Cabo Verde”. In: CaboVerde: literatura em chão de cultura. Praia-Cotia: Instituto daBiblioteca Nacional e do Livro, Ateliê Editorial e UNEMAT, 2008. GOMES, Simone Caputo. “O conto de Dina Salústio: um marco naliteratura caboverdiana”. Rio de Janeiro: Idioma, nº 25, 2º sem.: 52-70, 2013. Disponível em:www.institutodeletras.uerj.br/idioma/numeros/25/Idioma25_a05.pdf. Acesso em: 4 nov. 2018. QUEIROZ, Sonia. Literatura e representação social das mulheres emCabo Verde: Vencendo barreiras. 2010. Dissertação (Mestrado emEstudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) –Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade deSão Paulo, São Paulo. SAFFIOTI, Heleieth. “A exploração sexual de meninas eadolescentes: aspectos históricos e conceituais”. In: A exploraçãosexual de meninas e adolescentes no Brasil. Brasília: Editora daUNESCO, 1995. SALGADO, Maria Teresa. Noites nada mornas de Dina Salústio: aoportunidade do diálogo. Abril – NEPA / UFF, [S.l.], v. 1, n. 1, p. 36-40, aug. 2008. ISSN 1984-2090. Disponível em:<http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/276/227>. Acesso em: 26 oct. 2018.SALÚSTIO, Dina. Mornas eram asnoites. Praia: Instituto da Biblioteca Nacional, 2002.

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A Trança Africana, especificamente a nagô, é bastante antiga naÁfrica. Penteados com tranças abrangem um amplo terreno social:religião, parentesco, estado, idade, etnia e outros atributos deidentidade podem ser expressados em penteado. Tão importantequanto o desenho é o ato da trança, que transmite os valoresculturais entre as gerações, exprime os laços entre amigos eestabelece o papel do médico profissional. Há uma grande variedade de estilos tradicional de trançasafricanas, que vão desde curvas complexas e espirais para acomposição estritamente linear. Pode parecer estranho olhar ummodelo de trança e comparar a geometria, mas estes são osestilos bastante tradicionais na África. A matemática faz parte dopenteado Africano e, como muitos outros africanos no NovoMundo (escravidão), o conhecimento sobre ele sobreviveu. Termos étnicos como Nagôs, Angolas, Jejes e Fulas representavamidentidades criadas pelo tráfico de escravos, e cada termo continhaum leque de tribos escravizadas de cada região. Nagô era o nomedado a todos os negros da Costa dos Escravos que falavam oIorubá. Mas muita gente não sabia que as divisões ereconhecimentos de cada um era feito devido a seu penteado quecontém sempre um mapa para ajudar nas suas longas caminhadase traçados.Na Grécia, e depois em toda a Europa durante a IdadeMédia (essa é outra história que vou contar pra vocês depois), atrança foi adotada pela maioria das mulheres.

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No início do século XV, com a escravidão das sociedadesafricanas, o cabelo exerceu a importante função de condutor demensagens. Nessas culturas, o cabelo era parte integrante de umcomplexo sistema de linguagem. A manipulação do cabelo era umaforma resistência e de manter suas raízes. Coisa que nos diasatuais vem tendo um grande poder não só nas mulheres e sim nasociedade como um todo.As tranças serviram como pano de fundode diversos movimentos como, Marcha dos Direitos Civis nosEstados Unidos, o aparecimento de movimentos negros como oBlack Power e os Panteras Negras, que lutavam pelos direitos eenaltecem a cultura afro. Na década de 70, em meio ao movimento hippie, a cultura negraficou em evidência. Movimentos negros originados da reunião deseus afrodescentes mostraram sua marca e cultura. Além do BlackPower, as tranças e os dreadlocks, também se destacaram. Omovimento Hippie, com sua variedade, possibilitou a diversidadede culturas. E naquela época, os afrodescendentes ficaram emevidência, mas foi pelo ano 2000 que as tranças dominaram,fazendo a cabeça de todo mundo e com isso vieram asapropriações culturais. Apropriação cultural é a adoção de alguns elementos específicosde uma cultura por um grupo cultural diferente. Ela descreveaculturação ou assimilação, mas pode implicar uma visão negativaem relação a aculturação de uma cultura minoritária por umacultura dominante. Não é porque está na moda que devemos sairfazendo sem saber de onde veio e sua história. Todo lugar tem suacultura e deve ser respeitado. Usar tranças designa origem edemonstra o orgulho por sua história.

“Minhas tranças são minha coroa, nunca diga que tá tentando criar coragemde fazer um dia no carnaval, pois minha história não é fantasia.”

– Juliana Henrik Obs: os dreads não vieram da Jamaica, do movimento Rastafári oucom Bob Marley, e sim da Índia. Mas foram os jamaicanos quepropagaram o penteado. A palavra dreadlock usada pelos Rastasvem da união das palavras lock (o penteado com tranças) e dread(a pessoa que usa a trança). IN: http://bit.do/artedekrioulla (Acesso em 27/10/2019, às12h53).

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1) MESA REDONDA "POR QUE LER FRANZ FANON? Com o GIRA (grupo de estudos de raça e política - FFLCH-USP) - 02/11, às19H30 2) RODA DE CONVERSA: MOÇAMBIQUE: RAÇA E LIBERTAÇÃOCom Viviane Alves pereira - 11/11, das 18h às 19h 3) DEBATES: A ÁFRICA PRÉ COLONIALCom Roberta Quirino - 16/11, das 18h30 às 20h30 4) DEBATES: DIALÉTICA ENTRE PAN AFRICANISMO E MATERIALISMO NAMÚSICA NEGRACom. Ranon Sobral Targa. - 19/11, às 18h 5) DEBATES: ABORDAGENS SOBRE O CONCEITO DE ARTE AFRO-BRASILEIRAPartic. Caio Netto dos Santos - Dia 20/11, das 17h45 às 19h15 6) DEBATES: O PENSAMENTO SEXUAL BRASILEIRO: TEORIAS RACIAIS EREPRESENTAÇÃO DO NEGROPartic. Fernando Filho. 21/11, das 18 às 19h 7) DEBATES: A ESCRAVIDÃO E O NEGRO EM MACHADO DE ASSISPart. Marcos Medeiros. - 22/11, das 12H40 às 14h 8) DEBATES: AUTORES NEGROS NA POESIA E PROSA CONTEMPORÂNEAS.Partic. Emily Silva - 22/11, das 18 às 19h 9) DEBATES: INTERCÂMBIOS CULTURAISPartic. Centro de línguas da acepusp - 23/11, das 19h30 às 21h30 10) DEBATES: RACISMO ESTRUTURAL E A QUESTÃO CARCERÁRIA NO BRASILPartic. Silvio de Almeida, Boitempo Editoral29/11, a confirmar 11) CINE-DEBATE: O PRETO SOM DAS RUAS, ep#1Partic. Coletivo Audiovisual - dia 30/11, das 16h às 18h - Pois é 12) ENCERRAMENTO: PALCO ABERTO - NOVEMBRO NEGROatração especial: BALLET KOTEBAN - 30/11, das 19h às 23h

PROGRAMAÇÃO - NOVEMBRO NEGRO

Para mais informações, acesse: www. acepusp.com.br/cursosextras

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Para mais informações - inclusive o processo de inscrição em alguns eventos,acesse: www.acepusp.com.br/eventos

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Para ma is in formações , a cesse : www.acepusp . com .b r