Monografia - O afásico na clínica de linguagem

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Suzana Carielo da FonsecaSignature Not Verified

Digitally signed by Suzana Carielo da Fonseca DN: cn=Suzana Carielo da Fonseca, o=PUC-SP, ou=LAEL, c=BR Date: 2004.04.27 17:28:05 -03'00'

Suzana Carielo da Fonseca

O AFSICO NA CLNICA DE LINGUAGEM

Doutorado em Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem

Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo So Paulo 2002

Suzana Carielo da Fonseca

O AFSICO NA CLNICA DE LINGUAGEM

Tese apresentada banca examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem, sob orientao da Prof. Dr. Maria Francisca Lier-De Vitto.

Comisso Julgadora

Dedico esta tese ao verton, pela presena serena, e ao Andr, que colore os meus dias e enche de alegria a minha vida companheirismo pelas palavras amorosas, pelo

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA TCNICA DERDIC PUCSP

TD 410 F

Fonseca, Suzana Carielo da O afsico na clnica de linguagem So Paulo: s.n., 2002. 264f ; il. fig. quadros ; 30cm. Tese (Doutorado) - Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. rea de concentrao: Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem. Orientador : Maria Francisca de Andrade Ferreira Lier-De Vitto

1. Afasia. 2. Fonoaudiologia. 3. Aquisio de linguagem

Palavras-chave: Afasiologia Clnica de linguagem Lingstica Linguagem.

Autorizo exclusivamente para fins acadmicos e cientficos a reproduo total ou parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrnicos. Assinatura: ___________________________ Local e data: __________________________

Agradecimentos

A Dra. Maria Francisca Lier-De Vitto, pela slida e inquieta reflexo que tem encaminhado no Projeto e pelo toque especial que imprimiu orientao deste trabalho em que competncia, rigor e seriedade se harmonizaram com sensibilidade, carinho e bom humor. Mestre , de um lado, a palavra que define esse bom encontro (que em voc se encarna) e, amiga , de outro, a que estenografa a sua presena forte e generosa.

A Dra. Lcia Arantes, pelas pontuaes fundamentais no exame de qualificao, pelo incentivo constante e pelo carregar o fardo no momento de aflio. Agradeo por sua verdadeira amizade.

A Dra. Cludia Thereza Guimares de Lemos, pela valiosa contribuio no exame de qualificao e pela presena confiante ao longo desse meu percurso de formao.

A Dra. ngela Vorcaro, pela arguio precisa na banca de qualificao e pelas discusses em torno da afasia.

Aos Doutores Elisabeth Braith, Kanavillil Rajagopalan e Christian Ingo Dunker, pela leitura rigorosa e pelas sugestes importantes no exame de qualificao.

A Tati, pela sincera, disponvel e afetuosa amizade: cumplicidade nos momentos de alegria e nos de nem tanta. Agradeo, ainda, por sua escuta para as minhas questes clnicas que, de algum modo, faz presena aqui.

A Cleybe, cuja aproximao se deve s discusses sobre a afasia, agradeo por elas, pela amizade e pelo carinho.

A Rosana e Roseli, pelos laos slidos de amizade que, tambm, nos unem em torno da clnica de linguagem. Em especial a Rosana, pela leitura de minha reflexo sobre a fala em sofrimento .

A rika e Rejane, pelo companheirismo na DERDIC e fora dela.

A Luciana Carnevale, Renata Leite, Snia Arajo, Mariana Trenche de Oliveira, Milena Trigo e Rosana Benine, pelo encontro nas discusses do Projeto.

A Juliana Marcolino e Daniela Spina-de-Carvalho, ex-alunas , agora colegas e amigas.

A Luciana Leite que, com tanto empenho e disponibilidade, no poupou esforos para localizar Canguilhem na biblioteca de Cambridge - meu muito obrigada.

Ao Osvaldo, um grande amigo cujas indagaes encontraram movimento nesta reflexo.

A Direo da DERDIC que, ao sustentar um compromisso que envolve atendimento, formao e pesquisa, foi decisiva na realizao deste trabalho. Agradeo particularmente a Kathy, companheira de percurso no doutorado, pelo incentivo.

Sou grata tambm Graa, ao Joo e Marilei que, to pronta e carinhosamente, me atenderam nas idas e vindas biblioteca. No me esqueo das secretrias da Clnica e, tambm, da Dinah, sempre delicadas e atenciosas.

Meu agradecimento especial aos meus supervisionandos ecos de nossas discusses podem ser reconhecidos aqui e aos pacientes, aqueles cuja voz (e mesmo o silncio) tm instigado minha escuta.

A minha famlia, porto seguro e festivo: minha me, pela exatido da palavra sempre temperada com muito amor e confiana; ao meu pai, um semblante cujo sorriso me faz falta. A Christiana, em cuja amizade encontro o conforto para os momentos difceis e a alegria cmplice naqueles de conquista. Tambm ao Bira e Mariana, pelos incontveis gestos carinhosos. A Andra, amiga generosa, pelo privilgio de poder contar contigo. A Dbora, Nathlia e Paulo Fernandes, pelo olhar afetuoso e a Martha e Renato, pela lio de perseverana. Ao Victor, pela presena radiante. Ao Paulo Carielo, pela presena amorosa e a Slvia, agora uma irm querida. Aos meus cunhados, cunhadas e sobrinhos Nelson, Everli, Carolina, Edson, Cida, Gustavo, Lucas, Edna e Marcos pela amizade sincera. Aos meus sogros, Antnio e Lina, pelo calor da acolhida.

A Cila e Rose, pelo cuidado e dedicao ao Andr, garantia de tranqilidade enquanto estive ausente.

Finalmente, agradeo a Leninha, por todos esses anos de presena (mesmo que na ausncia) e pela palavra certeira.

ndiceIntroduo .........................................................................................................1 I. Um percurso: identificando questes .............................................................. 1 II. O mistrio da linguagem na afasia: de sua incontornvel persistncia ......... 3 III. Das primeiras convices a outras indagaes ............................................ 7 IV. Interveno na afasia: questes acerca da viabilidade da superao do sintoma .................................................................................................. 10 Captulo I A afasiologia mdica: configurao discursiva e abordagem clnica ................................................................... 16 1.1 A primazia do olhar: a visibilidade do crebro e a articulao das noes de causa e sede ................................................................................... 16 1.1.1 Corpo mudo/sofrimento dos rgos ........................................... 22 1.2 Jackson e a doutrina de concomitncia: um pensador alm de seu tempo ................................................................................................. 34 1.3 O ponto de vista funcional: Freud e a complicao da noo de causalidade mecnica ............................................................................... 53 1.3.1 Prolegmenos monografia A Afasia ............................................. 53 1.3.2 1891: A Afasia ................................................................................. 62 1.4 Goldstein: mdico e/ou ...? ....................................................................... 73 1.5 Luria: o tratamento da afasia .................................................................... 92 Captulo II A clnica da afasia ................................................................. 115 2.1 Consideraes preliminares ................................................................... 115 2.2 A interveno na afasia na confluncia de uma visada interdisciplinar ......................................................................................... 118 2.3 Tendncias de tratamento da afasia ....................................................... 139 2.3.1 Os centros de afasia e a formao de terapeutas ....................... 139 2.3.2 Guias/Manuais: o passo a passo da reeducao .................... 142 2.3.2.1 A reeducao do afsico ............................................... 148 2.3.3 A centralidade da tcnica .............................................................. 158 2.3.4 Eficincia das tcnicas x prognstico da afasia ............................ 171 Captulo III Consideraes sobre o lingstico .................................. 176 3.1 Fundamentos da reflexo: proposies discriminantes ........................... 176 3.2. O Interacionismo em Aquisio da Linguagem ...................................... 178 3.3 Patologias de Linguagem e Clnica de Linguagem ................................. 189 3.3.1 Fonoaudiologia: no sentido da linguagem .................................... 192 3.3.2 Fonoaudiologia e Aquisio da Linguagem .................................. 198 3.3.3 Aquisio da Linguagem e Patologias da Linguagem .................. 200 Captulo IV O afsico na clnica de linguagem ...................................... 207 4.1 Nota Introdutria ..................................................................................... 207 4.2 Caso 1 ...................................................................................................... 211 4.3 Caso 2 ..................................................................................................... 218 4.4 Caso 3 .................................................................................................... 226 4.5 Caso 4 ..................................................................................................... 238 Concluso ..................................................................................................... 246 Referncias Bibliogrficas ......................................................................... 251

Resumo

Este trabalho traz uma reflexo sobre a afasia. Na Medicina, ela erigida enquanto questo terica e clnica. Na Fonoaudiologia que, oficialmente, toma para si o tratamento do afsico, a partir do caminho aberto por Goldstein, produzem-se propostas de reabilitao e cede-se tacitamente ao discurso organicista da causalidade. Ao inscrever-se nessa linhagem terico-clnica, esse campo tem encontrado dificuldades para instituir-se como uma clnica de linguagem, como espao de acolhimento da fala em sofrimento que faz sofrer um sujeito. Esta tese procura exatamente dar contorno especfico clnica de linguagem que envolve afsicos, em que fala e questo subjetiva so centrais. Nela, esto em jogo na entrevista, na avaliao da linguagem e na direo do tratamento: a) a singularidade de cada paciente e sua fala; b) a heterogeneidade no (de cada) caso; c) a necessria articulao entre teoria e aes clnicas; d) a impossibilidade, para um leigo, de conduzir um atendimento; e) o distanciamento/ruptura com propostas de reeducao. Para dar visibilidade a essa proposta, casos clnicos foram apresentados e discutidos. Procurou-se mostrar que mudanas que ocorrem na fala do paciente e na sua relao com a prpria fala so tributrias de uma causalidade clnica instanciada no jogo da interpretao lingstica. Interpretao que implica o contingente, o singular - ela no comporta previsibilidade mecnica. Na clnica de linguagem, o imprevisvel marca o encontro do paciente com o terapeuta e de ambos com o sintoma. No mbito dessa clnica, o Interacionismo (C. Lemos, 1992, 1997, 2002 e outros) propicia a aproximao trama significante e a Psicanlise movimenta consideraes sobre a clnica. Entretanto, circunscrita fica a posio do Interacionismo e, tambm, a da Psicanlise. Procurou-se mostrar que a abordagem da fala sintomtica envolve escuta clnica afetada pela fala em sofrimento e pelo sofrimento do afsico - e que a clnica de linguagem no clnica psicanaltica. Este trabalho (e o que ele pde produzir) tem assento nas reflexes que vm sendo encaminhadas no Projeto Aquisio da Linguagem e Patologias da Linguagem, coordenado pela Profa. Dra. Maria Francisca Lier-De Vitto, no LAEL-PUC/SP (CNPq 522002/97-8), com a colaborao da DERDIC.

Abstract

This study focuses on theoretical and clinical issues concerning the field of aphasiology. It was within the realm of Medicine that aphasia was first settled as object of inquiry and clinical (medical) actions were envisaged. As to non-medical actions, it was within the area of speech therapy that re-education methods and procedures were introduced to deal with aphasic patients. It should be pointed out, however, that, following the path opened by Goldstein and by maintaining the causal relation lesion symptom, re-education methods are sustained. That being the case, the area of rehabilitation of aphasia has faced strong difficulty in being recognized or admitted as a language-speech clinic a scenario in which symptomatic speech and its effects on the speaker/hearer are at stake. The point of view adopted here is that it is unreasonable to propose a speech clinic that provides no theoretical insights/discussion on language and on the subjectspeaker. The assumptions sketched out below should provide a specific clinical contour. It is argued that: a) singularity, concerning both the aphasic condition and the aphasic speech manifestations must be considered, b) heterogeneity, among clinical cases and within each one, must not be ignored; c) the idea of praxis should be sustained, d) specific clinical background is required; e) clinical and teaching procedures belong to completely different domains and refer to opposite ethical commitments. It must be added that four clinical cases involving aphasic patients were presented and discussed in order to illustrate the above mentioned assumptions. The hypothesis advanced in the present study is that changes in speech are determined by linguistic causality, i.e., they come up as an effect of the interplay between the aphasics speech and the therapists interpretation (which cannot be, in logical terms, neither pre-determined nor mechanical). Therefore, this thesis puts forward an alternative proposal that emphasizes a theoretical commitment to a language theory which allows for the consideration of the specificity of pathological speech. De Lemoss reflections on language and language acquisition as well as psychoanalytic views are implied in the discussion developed here. Nevertheless, it is stated that a language clinic must not be equated to psychoanalytic clinic, nor language evaluation should be reduced to linguistic data analyses. The CNPq sponsored project Language Acquisition and Language Pathology supervised by Dr. Maria Francisca Lier-De Vitto, at LAEL PUCSP (as well as at DERDIC), provides this study with specific theoretical background.

Introduo

I. Um percurso: identificando questes Minha inquietao com a afasia1 remonta a alguns anos: do atendimento do primeiro paciente afsico, ainda no curso de graduao de Fonoaudiologia (em 1988), at o momento atual. Questes de natureza terico-clnicas tm sido suscitadas ao longo do meu percurso como terapeuta e pesquisadora desse quadro sintomtico e tem adquirido contornos cada vez mais singulares. Tm, antes de tudo, representado um desafio constante: como explicar o que tem me surpreendido ao longo desses anos? Posso dizer que o meu trabalho de mestrado (defendido em 1995) e seu desdobramento na reflexo, que ora empreendo, constituem passos que, espero, venham produzir alguns discernimentos mais precisos. Quando da elaborao de meu mestrado, intitulado Afasia: a fala em sofrimento (Fonseca, 1995), delimitei duas questes bsicas. Uma, relacionada natureza enigmtica da manifestao sintomtica apresentada pelos pacientes afsicos. A atividade clnica havia me colocado frente uma diversidade de ocorrncias que iam desde o no falar at comprometimentos de ritmo, prosdia, imprecises articulatrias,

desarticulao em nvel sinttico e textual. Desordens relativas linguagem escrita no eram menos intrigantes. Por isso, entendo que essa diversidade heterognea apontava para a necessidade do reconhecimento de

singularidades (na fala e do sujeito afsico) abrigadas sob o rtulo afasia. Tal constatao clnica levou-me enunciao de um primeiro problema e ele se

1

Afasia um termo que sinaliza um duplo acontecimento: leso cerebral seguida de uma pertubao na linguagem. 1

referia, como pontuei naquele momento, ao mistrio da afasia, ele mesmo. Em outras palavras, o que reconheci foi a necessidade de esclarecimento relativamente natureza de uma condio de fala dita patolgica que, na clnica fonoaudiolgica, se apresentava em toda sua complexidade e especificidade. Uma questo, como se v, sobre essas falas e, portanto, propriamente lingstica. Outra, relacionada a um problema (no menos complexo) que se referia prpria configurao da atividade clnica fonoaudiolgica com pacientes afsicos. Uma reflexo acerca do delineamento do processo denominado reabilitao da afasia aparecia como necessidade incontornvel j que a demanda de superao do sintoma na fala , digamos, o que funda essa clnica e impe ao fonoaudilogo a exigncia de responder indagao: como enfrentar a diversidade sintomtica imprevisvel na realizao de um diagnstico e na conduo do tratamento? Dito de outro modo: o que o diagnstico da afasia na clnica fonoaudiolgica?; sobre que bases se sustenta esse ato clnico que deve considerar a particularidade da fala (presente ou no), o sujeito falante que no mais se reconhece (e/ou reconhecido nessa condio) e sua dor frente violncia desse acidente2? Mais que isso: sobre que bases se realiza o tratamento?. Ento, caso se assuma a demanda de superao de sintomas lingsticos: qual a natureza das aes clnicas que podem atender tal demanda?. A minha experincia j indicava, tambm, a necessidade de

enfrentamento de outro problema: tendo em vista que mudanas so operadas e observadas ao longo do tratamento (tanto na fala quanto na posio de falante) - mudanas, essas, que no implicam o retorno a uma condio prafasia -, problematizar a noo de cura no mbito deste processo teraputico aparece como necessidade. Tendo em vista a constatao emprica de que a esperada reverso do sintoma (um falar como falava antes) configura-se como um impossvel, eu me pergunto: o que subjaz deciso de uma eventual proposio de trmino do tratamento?. Questo que se coloca,2 O termo acidente aqui sinaliza no s que ele pode ser conseqente de um AVC (acidente vascular cerebral) mas, e principalmente, o inesperado dessa ocorrncia que transforma a condio de falante e a

2

tambm, quando a deciso sustentar um atendimento, mesmo que no se atinja um estado ideal de fala 3. No , sem razo que, em minha dissertao, optei por focalizar e enfrentar os desafios da primeira questo enunciada, aquela que envolve mistrios da linguagem na afasia. Acreditei que, para encaminhar a segunda questo relativa configurao da atividade clnica , era indispensvel refletir, primeiro, sobre a linguagem j que o sintoma afsico se manifesta no corpo da fala. Quero dizer que refletir sobre a natureza da linguagem, sobre seu funcionamento e seus efeitos na fala, imps-se como passo logicamente anterior e necessrio. Assumi, com isso, que uma relao com a Lingstica, mais especificamente com a reflexo encaminhada no Interacionismo em Aquisio da Linguagem4, era indispensvel. Isso porque, ali, a relao lnguafala-falante proposio problemtica5. Contudo, quero sublinhar que a opo inicial de mergulho no lingstico e na Lingstica foi motivado por inquietaes originrias da clnica.

II.

O mistrio da linguagem na afasia: sua incontornvel persistncia.

A estrutura bsica da discusso da minha questo de mestrado pode ser assim resumida: realizei, primeiramente, uma anlise crtica do discurso organicista6 sobre a afasia, motivada por uma constatao perturbadora: a Fonoaudiologia, via de regra, adere a tal discurso no s relativamente tipologia afsica (assentada na idia de localizao da leso cerebral7), como

vida do sujeito. O trabalho de Cleybe Vieira (a sair), versa sobre a questo do luto nas afasias. Este trabalho ser comentado nesta tese, em momento oportuno. 3 Refiro-me, aqui, a casos em que o terapeuta deve considerar a demanda do paciente relativamente sua permanncia num espao em que ele possa falar. 4 Proposta cujos pressupostos foram assentados por Cludia Lemos, na rea de Aquisio da Linguagem, e cujos desdobramentos, no campo das Patologias da Linguagem, vm sendo realizados sob a coordenao de Maria Francisca Lier-De Vitto. 5 Remeto o leitor, sobre essa discusso, a Fonseca (1995), Afasia: a fala em sofrimento. 6 Representado pelo trabalho dos neurologistas: Broca, Wernicke, Goldstein, Freud e Luria. 7 Tal afirmao no pretende esconder a polmica localizacionismo x holismo presente no discurso organicista. Ela apenas sinaliza uma abordagem terica que no abre mo, salvo rarssimas excees, de colocar a linguagem como produto do funcionamento cerebral e um mtodo clnico classificar ou 3

tambm s explicaes (praticamente leigas) dos neurologistas acerca dos sintomas lingsticos. A adeso ao discurso organicista, pareceu-me, fazia perder de vista a especificidade da afasia como questo terico-clnica na Fonoaudiologia. Devo dizer que, no mnimo, confundem-se perspectivas e objetos (crebro e linguagem). Ou seja, a afasia pede para ser discernida enquanto problema terico e clnico uma vez que Neurologia e Fonoaudiologia dela se ocupam e duas clnicas (mdica e fonoaudiolgica) a acolhem. Esses campos e clnicas deveriam levantar hipteses e avanar argumentos no simetrizveis acerca desse quadro e, portanto, visualizar aes clnicas que respeitem diferenas constitutivas. A identificao desse equvoco numa homogeneizao discursiva levou-me, princpio, a examinar a afasiologia mdica porque um outro problema de base me impedia de aprofundar a crtica s propostas fonoaudiolgicas e indicar direes alternativas: o meu conhecimento da abordagem mdica da afasia era insuficiente. Talvez eu pudesse, naquele momento, apenas identificar nomes de afasiologistas e apontar para alguns dos tipos de distrbios afsicos mas, jamais, esclarecer o que sustentava teoricamente tais propostas. Pareceu-me, ento, um caminho apropriado ir s fontes. Foi exatamente essa direo que tomei no mestrado: fiz um mergulho na Neurologia: li Broca, Wernicke, Freud, Goldstein e Luria. Depois do mestrado, li Jackson e reli Freud. Deparei-me com o que pode ser tomado como a controvrsia do campo localizacionismo x holismo8. Foi no interior desse debate que pude identificar, apesar das divergncias relativamente ao funcionamento cerebral, um princpio norteador comum: propostas localizacionistas ou holsticas mantinham entre crebro e linguagem uma relao de causalidade, baseada na sucesso temporal dos eventos que remetem afasia, qual seja, leso cerebral sintoma na linguagem. Enquanto acontecimento antecedente, a leso cerebral admitida, pelos mdicos-pesquisadores, como causa da

perturbao no lingstico (acontecimento subseqente). Sustentei que o

produzir tipos segundo a apreenso de uma relao entre, de um lado, um elenco de sintomas descritos e, de outro, regies cerebrais lesionadas. 8 A corrente localizacionista caracteriza-se pela postulao de uma correlao direta entre dados clnicos (sintomas) e reas circunscritas na cortex cerebral. J a corrente holstica, defende a idia de que o crebro um sistema funcional complexo, o que torna invivel a relao um a um leso -> sintoma. 4

raciocnio causal promoveu, no espao da Medicina, a naturalizao da relao crebro linguagem (e da linguagem!), dado o submetimento do lingstico ao funcionamento cerebral. Como, na Neurologia, o crebro o objeto mistrio a investigar -, a linguagem (sua ordem prpria) resultou desproblematizada, foi reduzida a mero sinal, i.e, a comportamento desviante e motivado (desadaptado). Note-se que a afasiologia foi historicamente edificada com base na sustentao dessa causalidade. Entretanto, pude tambm constatar que, no mbito dos estudos mdicos, alguns trabalhos j se ofereciam como ilhas de resistncia adoo desse princpio. Destaquei, na referida dissertao, a monografia de Freud (a partir de Jackson), A afasia. Tomei-a como exemplar de uma viso alternativa e revolucionria. Isso porque a discusso, por ele encaminhada, abala a proposio-eixo do discurso organicista e coloca em xeque sua articulao lgica. Ao postular um aparelho de linguagem, na qualidade de concomitante dependente (1891/1987: 70), cujo funcionamento no pode ser reduzido ao funcionamento cerebral, Freud estabelece um paralelismo entre duas ordens distintas de funcionamento: o cerebral e o do aparelho da linguagem. O ponto nodal e subversivo da visada de Freud o seguinte: como estabelecer causalidade entre eventos que remetem a duas ordens de funcionamento paralelas?. Romper com a noo de causalidade mecnica, sustentada no discurso organicista sobre a afasia, foi, para ele, a sada para uma outra explicao acerca do sintoma lingstico via postulao do funcionamento de um aparelho da linguagem. Eu entendi que o gesto de Freud indicava uma direo instigante: para discutir a afasia sob um ponto de vista lingstico, parecia preciso romper com os parmetros do discurso organicista. Como assinalou Freud, o dispositivo terico invocado, para dar conta do sintoma na linguagem, deveria ser aquele que envolve hipteses sobre o lingstico sobre o aparelho da linguagem. Assumir esse compromisso pareceu-me imperativo. Ressaltei que, nem por isso, seria preciso recusar a relao misteriosa entre crebro e linguagem. Seria necessrio, no entanto, admitir uma afetao de outra ordem: propus que ela fosse entendida como uma relao de implicao, com o objetivo de

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marcar, ao menos, que essa relao deveria ser mais complexa do que a subsumida no discurso da causalidade direta e estrita9. A releitura de Saussure e Jakobson, realizada por Cludia Lemos (1992, 1995) e o trabalho de Lier-De Vitto (1994/98), implicam a ordem prpria da lngua nas consideraes sobre a fala e o sujeito. De fato, iluminam o funcionamento da lngua na fala de um falante10. O sintoma na afasia ultrapassou, para mim, o estatuto de sinal (comportamento observvel) de um acontecimento cerebral j que trazer a ordem prpria da lngua, suas leis de referncia interna, permitiu que eu chegasse mais perto da lgica que comandaa sintaxe de uma fala (Lier-De Vitto, 2002e) e possibilitou tocar o mistrio que a

afasia coloca para um fonoaudilogo. Pelo vis da articulao lngua-fala-sujeito11, pude discernir o modo singular de articulao da lngua na fala de pacientes afsicos e o modo - no menos singular de relao dos mesmos com a fala (prpria e dos outros). Os resultados da interpretao da fala de meus pacientes foram decisivos no s na realizao de diagnsticos da afasia, como tambm na configurao de sua especificidade na clnica que fao12. Mas, mistrios persistem. Entre eles, para mim, pensar outras conseqncias clnicas (a questo da teraputica, por exemplo) do ganho de ter me aproximado de um entendimento do movimento da lngua na fala e de seus efeitos na escuta do sujeito. Mistrio esse que deve interrogar um clnico de linguagem. A concluso maior desse meu percurso foi o encontro com uma primeira convico: a de que a afasia, para um fonoaudilogo, um problema lingstico. Certeza que resultou na necessria ruptura com o discurso

9 Reconheo que entender a relao crebro linguagem como de implicao imprprio pelo simples fato de que ela no sustentvel na afasia. Nem toda leso cerebral produz sintoma na fala e nem todo sintoma com caractersticas afsicas decorre de leso. Desse modo, p q no sustentvel. O que procurei com essa substituio terminolgica de causalidade por implicao foi mostrar que, embora, haja relao entre crebro e sintoma afsico, ela no mecnica. 10 Entender a fala (sintomtica ou no) como produto do funcionamento da lngua (um sistema cujas leis foram postuladas por Saussure e ampliadas por Jakobson) foi a base sobre a qual eu pude propor que se tomasse a afasia como um problema lingstico. S que fala implica um falante. Inclu-lo na reflexo uma exigncia incontornvel para quem, alm de tudo, tem que falar de clnica. Ora, articular lngua-falafalante o empreendimento que tem marcado a investigao no campo do Interacionismo Brasileiro (seja na Aquisio da Linguagem ou na Patologia da Linguagem). 11 Proposta pelo Interacionismo em Aquisio da Linguagem para explicar as diferentes posies de falante da criana (ver Lemos, 1995; Lier-De Vitto, 1995, entre outros). 12 O que se esclarecer quando, no corpo deste trabalho, eu me detiver na clnica que fao.

6

organicista da causalidade leso-sintoma. Duas concluses que abriram novas e muitas questes.

III.

Das primeiras convices a outras indagaes:

O trmino do mestrado e a satisfao de ter encontrado uma proposio que circunscrevesse o problema que a afasia colocava para mim, como fonoaudiloga, foi fomentada, a princpio, pela leitura de um artigo que, apesar de sugerido por Lier-De Vitto, eu no pude enfrentar quando da elaborao daquele trabalho. Tratava-se, no de uma reflexo sobre a afasia, mas de uma discusso sobre a causalidade, realizada pelo filsofo Granger (1989). Ali, como disse, um lugar de conforto mas de deteco de um primeiro grande problema que, sem dvida, responde tambm pela realizao deste trabalho. O autor inicia sua discusso fazendo referncia a Russel (1913),

segundo quem, a idia de causalidade seria, no campo da cincia, um "relquiade pocas idas". Isso significa que a cincia moderna rompeu com raciocnios do

tipo causal: "o pensamento causal caracterstico de um estado rudimentar, aindainsuficientemente elucidado, da explicao" (Granger, 1989: 20) (grifo meu). Nesse "estado rudimentar", diz ele, a relao de causalidade estabelecida entre "acontecimentos prprios", quais sejam, aqueles "[referidos] por um sujeito a seu mundo como modificao desse ltimo" (idem, ibidem), a partir de sua

experincia. Trata-se, portanto, de uma relao entre eventos captvel pela percepo imediata. Nessa perspectiva, o uso da noo de causalidade equivale ao seu emprego no senso-comum, j que ela " apreendida mais comoum sentimento do que como conceito, e seguramente permanece aqum da cincia" (idem, ibidem).

Segundo Granger, no campo da cincia moderna (dita

tambm

galileana), essa intuio causal cede lugar a "conexes proposicionais" cada vez mais abstratas - questionamento do poder da experincia, dvida da percepo imediata. Pode-se dizer que a cincia moderna produz um duplo deslocamento: da posio do homem e da posio do emprico (Milner, 1989; Lier-De Vitto, 1999/2002). De fato, Granger faz meno a dois tipos de

7

acontecimento: (1) o acontecimento referenciado aquele em que se abandona a conexo do percepo-experincia e "o pensamento refere essaexperincia a um quadro espao temporal abstrato". Seu "ndice de localizao" ou

sua "origem absoluta" o lugar "de onde parte um sistema de lugaresmatematicamente construdo" (1989: 20).

Isso

significa

que

localizar

o

acontecimento depende de se considerar uma rede formal, definida como referncia. J, no (2) acontecimento genrico - forma ainda mais abstrata de acontecimento, o "ndice de localizao" figura na descrio formal como "varivellivre", ou seja, ele indica mais uma potencialidade de localizao do que uma

localizao verdadeira:

"a localizao efetiva do acontecimento genrico ento considerada como dependendo de parmetros que foram dissociados como no pertinentes para o estudo do

condicionamento do acontecimento tal como a cincia, provisoriamente, o recortou" (op. cit.: 28).

A diluio do acontecimento como lugar da verdade est relacionada, ento, transposio da noo de causalidade para o interior do conhecimento cientfico. Em outras palavras, a localizao do acontecimento dependente da teoria e de sua formalizao ela que diz o que dado paraela (Lier-De Vitto, 1999/2002).

O que se pode ver, levando em conta as palavras de Granger, que "cientfico" um atributo que envolve reduo do pensamento causal a um clculo e, por isso, abstrao da noo de acontecimento. Pois bem, se de um lado, no mbito do empreendimento terico realizado no mestrado, eu me senti confortada com a afirmao de Granger de que o pensamento cientfico moderno afastava um pensamento causal, j a idia de que ele havia dado lugar ao clculo me causava desconforto, assim como a abstrao da noo de acontecimento. Ora, de fato, eu recusei a causalidade direta lesosintoma. Entretanto, a lngua, objeto terico em Saussure, no equivale a um clculo e a relao lngua-fala, em Jakobson e no Interacionismo, implica a noo de acontecimento implica a lgica de um funcionamento no imprevisvel da fala de um sujeito. o imprevisvel ligado a acontecimento que

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impede entender acontecimento, seja como referenciado, seja como genrico. A lngua no clculo, embora suas leis de referncia interna sejampermanentes e universais (Saussure, 1916/1987: 13).

Isso me leva a concluir que o meu trabalho de mestrado nem se articula propriamente cincia moderna, nos termos apresentados por Granger, nem se restringe aos limites do observvel, no sentido daquilo que dado percepo sensvel, base experimental que a precedeu. Importante que as questes tericas/cientficas debatidas em minha dissertao (causalidade leso-sintoma, afasia como problema lingstico) foram suscitadas pela clnica, lugar em que o acontecimento, incontornvel e imprevisvel, interroga e pede explicao. A resistncia de grande parte dos fonoaudilogos de aproximao Lingstica, o que implicitamente uma recusa ao enfrentamento da fala, no diminui mas ilumina a natureza opaca, densa, do acontecimento. Digo isso porque a manifestao de uma fala perturbada afeta o outro e introduz a dimenso do estranho, que no encontra explicao nos limites estritos do observvel. Entende-se porque mesmo afetados pela fala, grande parte dos fonoaudilogos dela se afastam e cedem a discursos outros em que o fator etiolgico proeminente fator que recrusdece o pensamento causal sobre a afasia no campo da Fonoaudiologia. Como o meu caminho foi da inquietao da clnica para o enfrentamento terico da afasia e das falas afsicas, agora, no doutorado, procurarei fazer um movimento de retorno clnica. Quero dizer com isso que aposto numa articulao, que entendo necessria, entre teoria e prtica. Mais

particularmente acredito na viabilizao de uma teoria da tcnica no campo da clnica de linguagem. Mas, nessa direo, vale considerar o que disse Granger:

[...] logo que o conhecimento objetivo serve de ponto de apoio a uma tcnica de produo ou de ao, o pensamento causal parece recuperar todos os seus direitos. A teoria cientfica manisfesta estruturas, a arte de execuo, em qualquer nvel que se produza, designa causas e efeitos [...]. Portanto, quando um conhecimento se situa, por necessidade ou por

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escolha, bem prximo de uma prtica, ele usar a causalidade, cujo verdadeiro valor estratgico. (1989: 31) (grifo meu).

Pois bem, a idia de clnica, de processo teraputico propriamente dito, coloca irremediavelmente no foco da discusso a questo da mudana. Pensar em mudana d margem a um raciocnio causal: afinal, na prtica clnica, o que est em questo a implementao de procedimentos que visem a transformao do sintoma. Deveria eu, que havia debatido e recusado a noo de causalidade para pensar falas afsicas, ressuscitar o pensamento causal para pensar a clnica? Paradoxo ... encruzilhada ... impasse que, admito, a questo desta tese. Questo que remete problemtica da relao teoria-prtica. Ao voltar minha ateno para a clnica, dou-me conta de que o raciocnio causal pressiona com vigor. Ou seja, como sustentar a possibilidade de mudana no mbito da clnica? Seria mesmo o caso de sustentar a noo de interveno?

IV.

Interveno na afasia: questes acerca da viabilidade da

superao do sintoma Chama a ateno que o termo "afasia" tenha sido utilizado, pela

primeira vez, por Sexto, o Emprico, em meados de 200 D.C.. O filsofo o empregou para se referir "atitude dos cticos quando eles se abstinham de sepronunciar sobre algo" (Abbagnano, 1982: 18). Broca (1864) pontua que "afasia"

seria, nessa perspectiva, "o estado de um homem no fim dos argumentos", ou seja,"daquele que no tem nada a responder" a uma interpelao.

V-se que o termo "afasia" no designava, ento, uma condio patolgica mas unicamente uma condio que poderia ocorrer a qualquer homem. Mas, como assinalei, ele foi encampado pelos estudos mdicos ao discurso sobre as patologias cerebrais13. Operou-se, a partir da, a transmutao de seu sentido filosfico: afasia, que era uma referncia

13 Essa migrao do termo para o campo da medicina foi problematizada por Broca (1864), em artigo intitulado "Le mot 'aphasie'".

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(explcita) a uma "condio retrica", passvel de acontecer a um falante comum, tornou-se referncia a um acontecimento cerebral. Como afirmam Fonseca & Vieira (a sair)14:

"no outra coisa o que as classificaes desse quadro sintomtico deixam ver: afasia motora aferente e eferente, afasia sensorial, afasia transcortical, etc. A correlao leso (cerebral) sintoma (lingstico) se enuncia nessas

denominaes" (nfase minha).

Note-se que a adjetivao do termo "afasia" passa a estritamente orgnica: afasia motora, sensorial e transcortical, por exemplo. por essa razo que as autoras sustentam ser necessrio especificar o uso desse termo j que ele faz presena em duas clnicas diferentes: a clnica mdica e a fonoaudiolgica. Se na clnica mdica, ele vem atrelado ao cerebral, na clnica fonoaudiolgica, as autoras afirmam que "ele deveria fazer referncia a umaperturbao lingstica" (a sair)15. Em outras palavras, a presena do termo afasia,

enquanto acontecimento sintomtico, pede ainda uma explicitao lingstica16 numa clnica de linguagem. Feita tal demarcao, pode-se afirmar que a simples existncia dessas duas clnicas da afasia deve-se ao fato de que "o mdico reserva para si mesmo oestabelecer de um diagnstico [orgnico] e o 'intervir' no crebro" (Fonseca, 1995: 138). "Interveno" que no inclui a possibilidade de um fazer que vise uma

transformao na fala17. Deve-se reconhecer, ao meu ver, um implcito nesse gesto do mdico de encaminhamento para a clnica fonoaudiolgica: h limites para a interveno na clnica mdica. De fato, no mbito da Medicina, fala-se em recuperao espontnea ou por tratamento cirrgico, em casos de tumor. Ambas remetem ao raciocnio causal j que, nesses casos, sempre o crebro

14 Essa discusso foi encaminhada no artigo "Aphasia and the Problem of a Convergence between Theory and Clinical Approaches" - texto base de uma palestra proferida na "6th International Pragmatics Conference, realizada em Reims, Frana, entre 19 e 24 de julho de 1998. 15 Essa afirmao acompanha o que disse Jakobson (1954/1988) sobre sintomas afsicos. Para ele, se sintomas na fala, esses acontecimentos seriam de interesse do lingista. Ora, se para o fonoaudilogo de linguagem que se trata, tambm para ele a afasia problema lingstico. 16 Fonseca (1995) j insistia sobre esse ponto de vista em sua dissertao de mestrado. 17 Veremos, em momento oportuno, que Goldstein e Luria propem uma interveno estranha clnica mdica strictu sensu. A abordagem desses autores prev interveno no sintoma lingstico.

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que responde pelas transformaes na fala. Sugere-se, ainda, um outro tipo de interveno mas, diga-se, ela no leva ao restabelecimento da linguagem. Trata-se da reeducao (Goldstein e Luria)18. preciso ressaltar que sobre essa base ltima apiam-se muitas das mais representativas propostas de reabilitao da afasia, no campo da Fonoaudiologia - aquelas que se propem intervir no lingstico. A ttulo de ilustrao19, destaco, neste momento, afirmaes de duas pesquisadoras, que so referncias permanentes no campo da Fonoaudiologia, acerca do processo de interveno: Anna Basso terapeuta da afasia da Clnica Neurolgica da Universidade de Milo, e Schuell - fonoaudiloga americana, que dirigiu um centro de pesquisas e de tratamento das afasias no Hospital de Veteranos de Minnepolis. Para Basso,

o objetivo do terapeuta [...] estimular o paciente para que se produza a integrao cortical necessria linguagem para, assim, fazer funcionar um mecanismo emperrado (1977: 18).

J, Schuell afirma que:

Desde que cheguei concluso de que minha tarefa estimular o funcionamento de processos lingsticos

previamente organizados, eu uso estimulao lingstica. Dependo, em larga escala, da estimulao auditiva porque penso que a linguagem , acima de tudo, dependente do sistema perceptual. atravs desse sistema que padres lingsticos organizam-se, primeiramente, no crebro. H, alm disso, evidncias inequvocas auditivo de que processos de

retroalimentao

exercem

controle

dinmico

permanente sobre processos lingsticos (1974: 139) (grifo meu).

Essa questo ser amplamente discutida em momento oportuno. Neste momento apenas introduzo questes: por isso, no me detenho nas vrias perspectivas teraputicas de reabilitao da afasia j propostas no campo da Fonoaudiologia. A anlise de tais perspectivas se realizar em captulo posterior.19

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Note-se que tanto em Schuell quanto em Basso, a reabilitao dos sintomas afsicos entendida como conseqncia de uma interveno indireta (lingstica) no crebro. Posio essa que, segundo entendo, levanta questes complexas referentes relao entre domnios heterogneos e problemas, no menos complexos, relativos sua demonstrao emprica e clnica: como acessar novos vnculos funcionais no crebro? Nem com toda a sofisticada tecnologia desenvolvida no campo da Medicina isso tem se tornado possvel. Trago, nesse ponto, um outro trabalho de Basso no qual a autora procura discutir a eficcia do tratamento fonoaudiolgico com afsicos. Antecipo que sua reflexo desemboca numa concluso surpreendente relativamente natureza da interveno. Intitulado Fatores de Prognstico emAfasia (1991/1993), o artigo traz uma reviso da literatura e aborda o que se

supe serem fatores determinantes da reabilitao de pacientes afsicos: idade, sexo, preferncia manual, etiologia, localizao e extenso da leso, gravidade e tipo de afasia. O que est em discusso, portanto, a indicao de qual(is) dele(s) participaria(m) ou favoreceria(m) a superao dos sintomas, ou seja, qual(is) poderia(m) ser entendido(s) como causa da recuperao. Vale notar que causas da recuperao no so clnicas, i.e., no dizem de procedimentos teraputicos, ou da eficcia do tratamento fonoaudiolgico. O artigo apresenta, na verdade, uma controvrsia/falta de consenso entre os pesquisadores-clnicos fonoaudilogos quanto identificao de condies do paciente consideradas como fatores determinantes da recuperao. Importa anotar, tambm, que essas pesquisas apoiadas em fatores naturais so declaradas inconclusivas e que o reconhecimento desse fato leva a afirmaes sobre a impropriedade da metodologia de investigao adotada e no a uma suspeita sobre a natureza dos fatores elencados como determinantes da recuperao. De fato, Basso afirma que:

... nenhuma das variveis estudadas em relao evoluo existe in vacuo e devemos buscar suas formas de interao se quisermos prever as possibilidades de recuperao [...] A reeducao no modifica o perfil da recuperao espontnea mas a torna possvel em um nmero de pacientes que no

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apresentariam nenhuma melhora e acelera a recuperao espontnea em outros pacientes (op. cit.: 74) (grifos meus).

Como se v, clinicar identificado a reeducar ou tornar possvel (facilitar e/ou acelerar) - a recuperao espontnea. Nisso reside, para mim, o surpreendente deste artigo porque, de um lado, no se esclarecem quais procedimentos tornariam possvel tal reeducao e, de outro, parece-me que falar em espontaneidade e em estimulao colocar em relao termos que no se harmonizam. Digo isso porque, de um ponto de vista, digamos, estrito, ou bem admite-se no ser possvel intervir no processo (j que a recuperao espontnea) ou, ento, deve-se admitir que estimulao externa afeta o

processo cerebral/interno e que, portanto, a recuperao no espontnea. De todo modo, essa pesquisadora (e toda a Fonoaudiologia tradicional) parece ter assumido um clinicar idealizado no mbito do discurso organicista, clinicar que adquire um perfil de reeducao com vistas a afetar o funcionamento cerebral. Outros fonoaudilogos abordam a questo da interveno a partir de uma reflexo sobre a eficincia dos tratamentos propostos (Howard, 1986; Darley; 1972; Pring, 1986; Hesketh, 1986, entre outros). Nesses trabalhos, nota-se um apagamento da questo linguagemcrebro. A tendncia ratificar a idia de que, de fato, h progresso ou seja, h mudana na linguagem ainda que no se possa precisar quanto de progresso possvel prever em cada caso. Essas consideraes tambm se desdobram numa afirmao consensual: h progresso mas a fala no volta a ser uma fala normal. Diante disso, a discusso gira em torno de questes, tais como: vale a pena dispender tempo e dinheiro?; o mtodo empregado para medir a eficcia adequado?; o tratamento proposto inadequado?. No entremeio da discusso, dois dados interessantes: o primeiro diz respeito constatao de que difcil abordar cientificamente a eficincia da interveno em funo da heterogeneidade encontrada: sintomas e padres de recuperao variam de caso para caso, por exemplo. De outro lado, lem-se constataes um tanto quanto desanimadoras, expressas nas palavras de Hesketh:

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A confiana de alguns terapeutas de fala, que tratam pacientes afsicos, tem sido abalada recentemente por um conjunto de artigos que mostram [...] que a terapia de fala para afsicos [...] no efetiva para todos (1986: 47).

Essa breve visada em trabalhos fonoaudiolgicos parece depor a favor da necessidade de se examinar a noo de interveno no campo da Fonoaudiologia. Se no h recuperao propriamente dita, deve-se levantar suspeita sobre a pertinncia de interveno nas afasias. Impasse que se apia na verificao de que a superao, enquanto remoo do sintoma, no possvel. Isso, por sua vez, porque impossvel intervir no crebro para fazlo voltar a uma condio pr-mrbida. Em crise, portanto, fica a clnica fonoaudiolgica das afasias, sustentada na idia de interveno enquanto reeducao com vistas reorganizao funcional do crebro. Custo de uma adeso ao discurso organicista.

V. O caminho da discusso

Reconhecendo a centralidade da problemtica da causalidade na afasia, pretendo coloc-la em perspectiva, revisitando algumas das mais importantes e representativas propostas no campo da Medicina, para examinar a consistncia entre discusso terica e prtica (exerccio clnico). a partir desse empreendimento, que passa pela discusso acerca da natureza da relao crebro-linguagem, que situarei a prtica fonoaudiolgica na lida com as afasias. Na Fonoaudiologia, essa relao no problematizada, o que no deixa de complicar a relao teoria-prtica, como veremos. Finalmente, a partir da discusso empreendida, volto meu olhar para a minha prtica clnica. A interpretao de dados relativos ao atendimento fonoaudiolgico de pacientes afsicos ter como finalidade movimentar as questes que considero pertinentes a este trabalho.

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Captulo I

A afasiologia mdica: configurao discursiva e abordagem clnica.

1.1

A primazia do olhar: a visibilidade do crebro e a articulao das noes de causa e sede

No que concerne a afasia, o sculo XIX , digamos, um marco: no s porque se admite formalmente que , nesse momento, que a afasiologia nasce e os quadros afsicos recebem um tratamento cientfico no campo da Medicina (principalmente a partir das investigaes realizadas por Broca e Wernicke), como tambm porque se assiste a um grande debate (fomentado

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pelas investigaes de Jackson e Freud) no qual as bases da doutrina clssica so colocadas sob suspeio. Quando da minha dissertao de mestrado, procurei assinalar que alm do embate entre localizacionistas e anti-localizacionistas, esse palco de luta colocava em cena, tambm, uma questo terica relativa causalidade crebro-linguagem lugar que ps a descoberto posies divergentes. Note-se que as controvrsias que marcam este curto (mas frutfero) perodo de tempo mostram que a afasia, ou melhor, que o discurso sobre ela, suscita indagaes que, no sem razo, tem efeitos que excedem um debate interno ao campo da Medicina. Isso porque, a base de sustentao do discurso organicista sobre a afasia o raciocnio causal tem sido, h sculos, problematizado, por exemplo, no mbito da Filosofia20. Problematizao, diga-se de passagem, com desdobramentos decisivos na configurao do conhecimento dito cientfico. Por ora, cabe apenas assinalar a importncia dessa discusso para a necessria problematizao da relao crebro-linguagem num campo como a Fonoaudiologia (que importa da Medicina o rtulo, discursos sobre a afasia e a inerente desproblematizao dessa questo naquele campo). Colocar em perspectiva a especificidade discursiva sobre a afasia uma exigncia que, entendo, pode esclarecer a fronteira entre a sua abordagem (terico-clnica) na Neurologia e numa Clnica de Linguagem. Pretendo, primeiramente, arregimentar uma reflexo relativamente s bases de sustentao do discurso organicista sobre a afasia. Esclareo o porqu deste empreendimento: de um lado porque, parece-me, na dissertao de mestrado eu no pude aprofundar tal discusso. Aquele foi um momento de constatao da existncia desse discurso e de sua conseqncia imediata: a problematizao do funcionamento cerebral e a desproblematizao da linguagem. Ressaltar semelhanas e diferenas relativamente ao modo como cada um dos afasiologistas mdicos postulou a referida causalidade, e as conseqncias de um dizer assim configurado para o fazer clnico, fazem aDe acordo com Chau, o conceito de causalidade central na reflexo filosfica. De tal modo que, conhecer conhecer a causa da essncia, da existncia e das aes e reaes de um ser (1984/1996: 73). Ainda que isso no signifique convergncia de pensamento no que tange s definies de causa, de causalidade ou de operao causal, a autora insiste em que todos [os filsofos], sem exceo, consideram que um conhecimento s pode aspirar verdade se for o conhecimento das causas, sejam elas quais forem e seja como for a maneira como operem. O importante notar que fizeram a verdade, a20

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diferena com o meu trabalho anterior. Um esclarecimento que, entendo, contribuir para que eu encaminhe com maior rigor o exame desta mesma questo no campo da Fonoaudiologia. De incio, cabe assinalar que o discurso fundador de Broca (1861) e Wernicke (1874): a) baseou-se na constatao emprica de que dois acontecimentos - leso cerebral e perturbaes na linguagem - estariam associados entre si. E mais, eles se encontrariam asssociados numa sucesso temporal particular e regular: o acontecimento cerebral evento

antecedente foi, ento, tomado por esses mdicos pesquisadores como "causa" do sintoma na linguagem (evento subseqente); b) referendou experimentalmente atravs da antomo-patologia - o que j era objeto de especulao: uma causa (neurolgica) para as perturbaes (perdas) observadas na linguagem. Diga-se de passagem, especulao manifesta desde os antigos egpcios e que encontrou, ao longo do tempo, outros modos de postulao como, por exemplo, a "teoria ventricular" (de 1150 a 1500) e a teoria das bossas (1810)21.

inteligibilidade e o pensamento dependerem da explicao causal e afastaram a explicao meramente descritiva ou interpretativa (op. cit., p.74) (grifo meu). 21 A especulao sobre quadros afsicos data de sculos atrs. Segundo Sies (1974), a primeira descrio de um quadro patolgico equivalente ao que, mais tarde, veio a ser denominado afasia foi realizada por Imhotep no famoso Edwin Smith Surgical Papyrus (escrito em torno do ano 3000 b.c.). Nesse escrito inaugural estam registradas observaes de casos de perda da fala conseqentes a traumas localizados na tmpora. Brain (1980/1987) assinala que no ano 30, Valrio Mximo tambm descreveu o caso de um ateniense que perdeu a escrita depois de ter sido golpeado com uma pedra na cabea. At mesmo o mdico e evangelista So Lucas teria, no primeiro captulo de seu evangelho, descrito um caso de perda da fala com preservao da escrita. Interessante considerar, ainda, nessa pr-histria da investigao sobre a afasia, a postulao da teoria ventricular. Segundo Luria (1974), na Idade Mdia (perodo marcado pelo dualismo corpo/alma), filsofos e naturalistas consideravam que faculdades mentais poderiam estar localizadas nos ventrculos: no anterior, estariam localizadas as sensaes e a imaginao; no mdio, a razo e no posterior, a memria. Note-se que especulao e introspeco marcam esse perodo. Com o advento do empirismo, a cincia se abre para o experimento cientfico. No campo da medicina, inicia-se um perodo de investigao sistemtica das relaes entre crebro e linguagem com a formulao, por Gall, da Teoria das Bossas. A hiptese que a configurava pode ser assim resumida: o desenvolvimento das faculdades mentais provoca uma hipertrofia de zonas corticais; essa zona hipertrofiada exerce presso sobre a calota craniana e produz neste local uma pequena salincia ssea. quando se d o oposto, ou seja, quando certas funes mentais no se desenvolvem, observa-se uma depresso da superfcie craniana. A cranioscopia ou seja, a anlise cuidadosa do crnio na procura de proeminncias torna-se, ento, o instrumento privilegiado de investigao. A conjuno da hiptese referida anteriormente com essa tcnica permitiu a Gall estabelecer uma cartografia cortical. Nela, o neuro-anatomista reconhece a existncia de 27 rgos cerebrais e suas distintas funes, inclusive a linguagem. Essa investigao das localizaes cerebrais das diferentes habilidades mentais, realizada em 1810, foi denominada frenologia. preciso ressaltar que os mapas frenolgicos de Gall procuravam projetar sem basear-se em fatos (Luria, 1974: 21) - a psicologia das faculdades, muito em voga naqula poca , investigao das relaes entre crebro e linguagem. A permanncia de procedimentos inferenciais marca os estudos que 18

Caso se leve em conta (a) e (b), pode-se concluir que o olhar dos dois mdicos j estava direcionado por um raciocnio causal que clamava ratificao experimental. Nessa perspectiva, a clnica tornou-se espao de observao em que entravam em relao o comportamento lingstico alterado e o crebro lesionado. A partir dela, estabeleceu-se o recrudescimento de uma idia que sancionava a aposta no vnculo causal entre essas duas ordens de fenmenos. Pode-se dizer, ento, que a clnica tornou-se lugar privilegiado para verificao da hiptese prvia de causalidade. Deve-se, contudo, considerar que o passo explicativo, ou seja, a elaborao terica (conhecida como teoria localizacionista estrita ou teoria associacionista) realizou-se a partir da conjugao de duas observaes que, ento, eram realizadas em momentos distintos na linha do tempo. Tendo em vista a impossibilidade de acesso ao crebro vivo, observava-se, primeiro, o comportamento alterado, ou seja, o efeito suposto de uma alterao do

funcionamento cerebral. Descries cumulativas e minuciosas dos quadros sintomticos eram, em momento seguinte, confrontadas com os resultados das investigaes antomo-patolgicas realizadas ps-mortem. A adoo desse mtodo clnico-investigativo, levou Broca a verificar que: 1) quando a leso atinge a 3 circunvoluo frontal esquerda, o efeito a perda da linguagem articulada; 2) j leses no hemisfrio direito no produziam alteraes lingsticas. Por isso, ele postulou que o crebro possua simetria anatmica mas assimetria funcional (ratificando hiptese de diferenciao funcional, formulada por Gall, em 1810/1819). Do mesmo modo, e partindo de concluses de casos que observou, Wernicke no s ratificou as descobertas de Broca, como tambm, estendeu o alcance de suas concluses, ao verificar que leses na 1 circunvoluo temporal esquerda produziam problemas na compreenso da linguagem. Isso o levou a afirmar que:

se seguiram (Bouillaud, 1825; G. Dax, 1836; Lordat, 1843; entre outros). Eles representam tentativas de distino de zonas funcionais da crtex cerebral tendo como base observaes positivas das mudanas de comportamento humano ocorridas depois de leses cerebrais. Tais estudos ratificam, ento, a tese de Gall de que o crebro no indiferenciado funcionalmente (cada regio tem uma funo) e acrescentam a idia de que ele um rgo que apresenta simetria anatmica e assimetria funcional. preciso notar, tambm, que a linguagem entendida como uma habilidade mental e, como tal, tem sua sede no crebro. 19

os quadros clnicos da afasia variam entre dois extremos, da afasia motora pura afasia sensorial pura. A existncia destes dois tipos deve ser considerado uma irrefutvel prova da presena, anatomicamente diferente, de dois centros da linguagem (Wernicke, 1874/1969: 66).

Deve-se esclarecer que os referidos centros tornaram-se sedes de armazenamento de imagens: sensoriais e motoras. Como se l na afirmao acima, a observao de correlao positiva entre leso cerebral e sintoma na linguagem levou a uma concluso que, na sua essncia, distribui o que se consideram aspectos da linguagem em lugares do crebro e a resume a um subproduto do funcionamento cerebral. Razo pela qual as referidas sedes dessa funo cortical foram delimitadas e a presena de leso, nessas localidades especficas, entendida como causa dos sintomas observados. Uma tal concepo, ao reduzir a linguagem a um reflexo cerebral, homogeneizou causa e efeito. Note-se que no empreendimento de Broca e Wernicke, causalidade:

(1) princpio que, ao mesmo tempo, orienta a experincia e se estabelece a partir dela. Experincia fundada na observao de uma regularidade comprovada por uma estatstica correlacional. (2) Princpio que produz uma exigncia: a reduo do lingstico ao cerebral. Em outras palavras, postula-se que a atividade do sistema nervoso e a atividade lingstica so diferentes lados de uma mesma moeda: um ponto de vista compatvel com a idia de homogeneidade entre causa e efeito. (3) Causalidade estabelecida a partir de um caminho que vai do efeito para a causa. Note-se que at o advento da antomo-patologia causa uma hiptese na medida em que o evento antecedente era inacessvel ao observador. Ainda que os casos de traumatismo se oferecessem como eventos sobre os quais a induo pudesse jogar um papel mais determinante.

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Fato que a dupla observao de perturbao na linguagem que se segue a uma agresso cabea (ao crnio) criou, ao longo do tempo, condies para a experimentao antomo-patolgica. Deve-se, ento, levar em conta que o raciocnio causal instituiu um esquema de inteligibilidade acerca da observao desses eventos sucessivos (contguos na linha do tempo). Curioso que, no campo da experimentao, a ordem de observao desses fenmenos foi contrariada e isso no provocou, a princpio, qualquer rudo relativamente determinao do evento causa da afasia: a leso cerebral22. Cabe, ainda, considerar o modo como foi postulada, por Wernicke, a afasia de conduo. Apoiado no conexionismo de Meynert (1870), na sua prpria descoberta a afasia sensorial e nas descobertas de Broca, ele nomeou um quadro sintomtico no qual se observava a ocorrncia de parafasia23 na ausncia de distrbios de expresso e compreenso. A interpretao que ofereceu resultado de um raciocnio puramente dedutivo: a ausncia de sintomas expressivos e de compreenso sinalizaria que os centros motor e sensorial estariam intactos. Mas, a presena de parafasia indicaria presena de leso cerebral. O prprio Wernicke j havia postulado que fibras de associao conectavam os dois centros da linguagem. Diante disso, ele deduz que a ocorrncia de parafasia corresponderia a uma leso nessas fibras. A desconexo cortical entre os dois centros teria como efeito a desconexo entre imagem sensorial e imagem motora. Note-se que a afasia de conduo fruto de uma derivao proposicional assentada numa proposio emprica: o que causa perturbaes na linguagem leso em reas corticais especficas. Isso significa que Wernicke, neste caso, no observou o evento causa a leso cerebral. Ele foi, ao contrrio, deduzido a partir de um raciocnio lgico causal, de base indutiva. De todo modo, quero sublinhar que foi com Wernicke que a afasiologia d seu primeiro salto explicativo, melhor dizendo, explicao de natureza dedutiva, para dar conta de um acontecimento na linguagem que

22 Contrariada na medida em que a ordem da observao (agresso cabeaproblema na fala) ditada pelos limites da experimentao. Isso porque a antomo-patologia s pode ser realizada ps-mortem, o que implica que a obsevao seja feita do seguinte modo: problema na falaagresso cabea (leso cortical). 23 Distrbio que se caracteriza pela substituio de fonemas (parafasias literais) e/ou palavras (parafasias verbais).

21

no poderia ser identificado a sintomas relacionados seja afasia motora, seja afasia sensorial. As descobertas de Broca e Wernicke configuram o que se denomina, na afasiologia, a doutrina localizacionista. Nela, a proposio bsica se traduz, insisto, na correlao positiva e causal entre leses em reas circunscritas no crebro (sedes) e sintomas. Poder-se-ia dizer, tambm, que o localizacionismo identifica sedes de funes em diversas reas corticais, postulando que leses nessas reas so a causa de perturbaes nas funes especficas a elas correlacionadas.

1.1.1 Corpo mudo/ sofrimento dos rgos:

Entendo que as concluses desses dois mdicos e seu impacto no campo terico-clnico da Medicina devem ser analisadas levando-se em conta uma mudana no saber mdico, que se realizou entre os sculos XVIII e XIX. Uma mudana de perspectiva que, segundo Foucault (1980/1994), traduziu-se na passagem da Medicina dos sintomas para a Medicina dos rgos. evidente que tais concluses so operadas e constituem uma parte importante do que se denomina Medicina dos rgos. Entretanto, o raciocnio causal, recrudescido nessa perspectiva, nasce antes dela e cria exigncias que, na verdade, foram a mola propulsora para a sua constituio. Tendo isso em conta, acompanharei a mudana de olhar que caracterizou a investigao cientfica e a prtica clnica no intervalo entre esses dois sculos. Meu objetivo , como j anunciei, aprofundar a discusso relativamente ao raciocnio causal que sustentou a posio desses dois mdicos investigadores e fundou formalmente o estudo sobre a afasia no campo da Medicina. De acordo com Foucault, na Medicina dos sintomas (prpria do sculo XVIII), o olhar do mdico estava voltado para o campo dos signos e dossintomas (op. cit.: 102). Entendidos como transcrio primeira da doena (cuja

natureza/essncia seria inacessvel ao observador), o sintoma seria a forma

22

visvel da doena e o signo esboaria um reconhecimento que, s cegas, avananas dimenses do oculto: o pulso trai a fora invisvel e o rtmo da circulao (idem, ibidem) (grifo meu). O conhecimento e a verdade de uma prtica foram

fundados, ento, nessa poca, na observao da doena atravs de seus sintomas e signos na medida em que: os sintomas permitiram designar: a) um estado patolgico (oposto sade); b) uma essncia mrbida (nomeao desse estado) e c) uma causa prxima determinada a partir da observao de uma sucesso temporal de eventos. O signo (de uma fora invisvel), ento, ressalta Focault diagnostica o que se passa, faz anamnese do que se passou e prognostica o que vai se passar. Esse jogo entre sintoma e signo, nos termos de Focault, seria j um prenncio de um afastamento da observao imediata e um movimento na direo de um pensamento dedutivo, ainda que efeito de um sensvel. Note-se que sobre a conjuno dessa dupla ordem de manifestao da doena que incide a leitura clnica do mdico do sculo XVIII. Vale atentar, tambm, para o fato de que a delimitao de uma causa prxima uma das operaes que do visibilidade doena. H que se considerar que se a essncia da doena no acessvel ao mdico observador, a causa no pode se configurar como algo invisvel. Ela remetida, ento, ao observvel (gramtica dos sintomas) e sua delimitao resulta de quatro operaes que, segundo Foucault, teriam como funo dissipar a opacidade do estado patolgico, quais sejam: 1) a comparao entre organismos24; 2) a rememorao do funcionamento normal25; 3) o registro das freqncias da simultaneidade ou da sucesso26 e, 4) a escruta do corpo e a descoberta, na autpsia, de um invisvel visvel27, operaes que, antecipo, no so estranhas aos estudiosos da afasia no sculo XIX.

Tumor, rubor, calor, dor, palpitaes, impresso de tenso tornam-se signos de fleimo porque se compara uma mo outra, um indivduo a um outro (Foucault, 1980/1994: 105). 25 Um sopro frio em um indivduo sinal do desaparecimento do calor animal e, com isso, de um debilitamento radical das foras vitais e de sua destruio prxima (idem, pg. 106). 26 Que relao existe entre a lngua pesada, o tremor do lbio inferior e a disposio ao vmito? Ignorase, mas a observao mostrou muitas vezes os dois primeiros fenmenos acompanhados deste estado e isto basta para que no futuro eles se tornem signos (J. Landr-Beuvois, 1813: 5, apud Focault, 1980/1994: 106). 27 O exame de cadveres mostrou que, nos casos de peripneumonia com expectorao, a dor bruscamente interrompida e o pulso tornando-se pouco a pouco insensvel so signos de uma hepatizao do pulmo (idem, ibidem). 23

24

Convm

ressaltar

que

elas

envolvem

um

movimento

de

composio/decomposio do perceptvel que tem por finalidade a revelao de uma ordenao que prpria ao estado patolgico. Dito de outro modo:

O sintoma se torna, portanto, signo sob um olhar sensvel diferena, simultaneidade ou sucesso, e freqncia. Operao espontaneamente diferencial, voltada totalidade e memria, como tambm calculadora; ato que,

conseqentemente, rene em um s movimento, o elemento e a ligao dos elementos entre si. O que significa que, no fundo, ele no mais do que a Anlise de Condillac posta em prtica na percepo mdica (op. cit.: 106).

Pode-se concluir, a partir da afirmao acima, que a aproximao daMedicina dos sintomas Filosofia de Condillac , sugerida por Foucault,28

responde por uma mudana no conhecimento mdico que, no perodo imediamentamente anterior o da Medicina classificatria fundamentava-se na noo de semelhana e era essencialmente descritiva29. Sabe-se que, na Filosofia, o embate entre renascentistas e modernos se pautou, principalmente, na crtica desses ltimos idia de que, atravs da semelhana, se poderia chegar verdade das coisas:

Conhecer relacionar. Relacionar estabelecer nexo causal. Estabelecer nexo causal determinar quais as identidades e quais as diferenas entre os seres (coisas, idias, corpos, afetos, etc.). A medida oferece o critrio para essa identidade e essa diferena. Assim, a medida permitir que no se estabelea uma relao causal entre realidades heterogneas quanto substncia. Ela analisa, isto , decompe um todo em partes e estabelece qual o elemento que serve de unificador

28 Condillac foi um filsofo iluminista cuja doutrina caracterizada, segundo Lalande, pelas seguintes teses: a alma uma substncia simples, diferentemente modificada por ocasio das impresses que se fazem nas partes do corpo; todos os fenmenos e todas as faculdades do esprito resultam de um nico fenmeno elementar, ao mesmo tempo afetivo e representativo, a sensao; a realidade que uma idia geral tem na inteligncia consiste apenas num nome; toda cincia uma linguagem bem-feita; a anlise seu instrumento essencial (1926/1999). 29 Sobre a mudana no pensamento mdico na instituio do diagnstico, ver Arantes (2001).

24

para essas partes (a grandeza comum a todas elas). A ordem o conhecimento do encadeamento interno e necessrio entre os termos que foram medidos, isto , estabelece qual o termo que se relaciona com outro e em qual seqncia necessria, de sorte que ela estabelece uma srie ordenada, sintetiza o que foi analisado pela medida e permite passar do conhecido ao desconhecido (Chau, 1984/1996: 78) (grifo meu).

Como se v, no pensamento filosfico moderno, o mtodo que leva ao conhecimento um que visa um conhecimento completo, perfeito einteiramente dominado pela inteligncia (op. cit.: 77). Conhecimento capaz de discernir a identidade e a diferena no nvel da essncia invisvel das coisas (idem, ibidem) (grifo meu). Interessante notar que, na Medicina dos sintomas, como j

foi dito, o discurso se sustentava na mxima: no existe essncia patolgicaalm dos sintomas: tudo na doena fenmeno de si mesma (Foucault, 1980/1994: 103). Dito de outro modo, a doena nada mais do que a coleo de sintomas (idem, ibidem). Note-se que a doena vista do ponto de vista da existncia. A

recusa de uma essncia patolgica deixa ver o afastamento desse discurso de uma explicao metafsica30. Resta indagar, ento, de que modo o pensamento de Condillac teria influenciado a teoria do conhecimento e a prtica clnica num campo que, ao mesmo tempo, parecia assumir a centralidade do raciocnio causal e recusar a possibilidade de operar (teoricamente) no nvel da essncia do objeto que lhe dava o estatuto de campo de investigao terico-clnico: a doena. A sada para esse impasse se apresentar ao longo do texto. De sada, cabe apenas ressaltar que esse aparente impasse no foi reconhecido teoricamente31 j que os desdobramentos da aproximao ao filsofo iluminista que postula a sensao (ou a experincia) como base para todo30 Em Comte, estado intermedirio entre o teolgico e o positivo (propriamente cientfico). Segundo o autor, a metafsica tenta sobretudo explicar a natureza ntima dos seres, a origem e a destinao de todas as coisas, o modo essencial de produo de todos os fenmenos ... (Discurso sobre o Esprito Positivo, cap. 1, # 2). 31 Alm do mais, vale acrescentar que, de acordo com Pereira & Gioia, os filsofos franceses do sculo XVIII so considerados racionalistas empiristas, uma vez que admitem que o conhecimento no pode prescindir da observao, da experincia: ele tem origem na percepo sensorial, mas as impresses dos sentidos devem ser depuradas pela razo para que possam explicar adequadamente o mundo e indicar o caminho do progresso (1988/2000: 286-287). Sob a influncia do iluminista francs, o caminho trilhado

25

conhecimento - parecem ter criado apenas a exigncia, ao clnico, de que ele: veja; isole traos reconhea os que so idnticos e os que so diferentes; reagrupe-os; classifique-os por espcies ou famlias. Essa herborizao dos sintomas32 pesquisador: caracteriza tanto a ao do mdico clnico quanto a do

no sculo XVIII, a clnica no uma estrutura da experincia mdica, mas experincia, ao menos no sentido de que prova: prova de um saber que o tempo deve confirmar, prova de prescries a que o resultado dar ou no razo (op. cit.: 68).

Foucault assinala, no entanto, que apenas no final do sculo XVIII a clnica far corpo com a totalidade da experincia mdica (idem: 70) porque a partir da que ela se tornar, de fato, um campo de investigao33. Momento de cruzamento entre clnica e experimentao. O carter da observao que engendrou o olhar desses mdicos, nas duas dimenses em que ela requerida, pode ser assim traduzida: o observador l a natureza, aquele que faz aexperincia a interroga (Roucher-Deratte, 1807:14, apud Foucault, idem: 122). Ora,

isso significa que quando a clnica se torna um campo de investigao cientfica, o olhar do observador e as coisas que ele percebe tornam-se objeto de indagao. A configurao desse porqu sustentar, como veremos, todo o raciocnio causal que caracteriza teoria e prtica no campo da Medicina. Influenciados, tambm, pelas idias de Laplace, os mdicos, no final do sculo XVIII, descobriram que incertezas poderiam ser tratadas

analiticamente atravs da somatria de graus de certeza. O desdobramento desse pensamento culminou, segundo Focault, com a importao de um saber probabilstico que seria cada vez mais invocado como forma de explicao para o observvel. Isso porque ele:

pelos mdicos do sculo XVII, apia-se na idia de que a sensao est na base de todo conhecimento. Por isso, o privilgio do observvel. 32 Privilegiada no sculo anterior (o da medicina classificatria), no foi ainda esquecida no sculo XIX (Foucault, 1980/1994: 100) 33 Em detrimento do carter pedaggico que a caracterizou durante grande parte do sculo XVIII. 26

dava ao campo clnico uma nova estrutura, em que o indivduo posto em questo menos a pessoa doente do que o fato patolgico indefinidamente reprodutvel em todos os doentes igualmente afetados; em que a pluralidade das constataes no mais simplesmente contradio ou confirmao, mas convergncia progressiva [...] (idem: 110).

O advento do clculo probabilstico no campo da Medicina teve como conseqncia, ento, a idia de que o conhecimento mdico se constituiria a partir de uma multiplicidade inteiramente percorrida de fatosindividuais (idem: 115). Desse modo, o campo mdico adquire uma estrutura

estatstica. A referida passagem do doente doena correlata do acesso do individual ao conceitual: ao campo da generalizao34. No se deve pensar, porm, que essa mudana tenha sido radical. Como atenta Foucault, os mdicos oscilavam entre uma patologia dosfenmenos e uma patologia dos casos. Tal hesitao poderia ser traduzida na

seguinte indagao: a certeza de uma proposio terica se constri a partir de uma srie de fatos cujas leis so determinadas pelo estudo das repeties ou

34 A discusso de Foucault e seus desdobramentos na reflexo que ora encaminho lembraram-me o empirismo aristotlico e a centralidade, para esse filsofo, do raciocnio causal na investigao no campo da investigao cientfica. Para ele: a experincia o conhecimento das coisas individuais e a arte, das coisas gerais [...]. Sem dvida, segundo o senso comum, o saber e a faculdade de compreender so devidos muito mais arte do que experincia e consideram-se os homens da arte superiores aos da experincia [...] a sabedoria est em todos os homens em razo de seu saber ... [mas] uns conhecem sua causa e os outros a ignoram. De fato, os homens da experincia sabem que uma coisa existe mas ignoram porqu existe; ao contrrio os homens da arte conhecem o porqu e a causa (1984: 4) (grifos meus). Note-se que todos os homens constituem experincia mas o que distingue entre instncias de saber o conhecimento (ou no) das causas que instituem o saber, cujo grau maior o da arte, que ultrapassa aquele institudo pela experincia (em que a sensao elaborada). Vale dizer que, em Aristteles, a arte equivale a cincia, razo pela qual os homens da arte conhecem o porqu e as causas. De fato, as consideraes aristotlicas sobre as causas partem todas da existncia das coisas, do mundo exterior. O pensamento, ato prprio do homem, embora distante da sensao, est ligado a ela. Em outras palavras, a sensao subsiste nele enquanto sua origem/causa. Vale ressaltar, que no pensamento aristotlico, o conhecimento dito cientfico encontra-se assentado no encadeamento sensao/percepo (de fatos particulares) memria/experincia (multiplicidade comprimida num fato geral) cincia (conhecimento das causas): a repetio das observaes dos casos particulares permitiria uma operao do intelecto, a induo, que justamente conduziria a um encaminhamento contrrio ao da deduo do particular ao universal. [A deduo] seria, portanto, o resultado de uma atividade intelectual: surge no intelecto sob a forma de um conceito [...] ele no criao subjetiva: estaria fundamentado na estrutura mesma dos objetos que o sujeito conhece a partir da sensao (Os pensadores, pg. 18). Se assim, induo seria experincia subjetiva e deduo experincia objetiva. O conhecimento cientfico, apoiado numa operao indutiva, resulta em conceitos e no dispensa uma reflexo acerca das causas primeiras. o que se pode ler na seguinte afirmao: o princpio de todas as cincias a surpresa de que as coisas so como so [...]. Pois bem, ns devemos concluir com uma outra surpresa [...] quando conhecemos a causa (1984: 8-9).

27

se deveria procurar desvendar uma estrutura natural inerente a um conjunto de signos e sintomas? De acordo com Focault, o caminho que se abriu foi mais favorvel patologia dos casos do que dos fenmenos. Isso porque, com as estruturas

probabilsticas,

a percepo mdica se liberta do jogo da essncia e dos sintomas, como tambm, do no menos ambguo, da espcie e dos indivduos: desaparece a figura que fazia girar o visvel e o invisvel segundo o princpio de que o doente ao mesmo tempo oculta e mostra a especificidade da sua doena (idem: 119)

Em

outras

palavras,

a

doena

comea

a

se

desprender

definitivamente de um pensamento metafsico com que h sculos estava correlacionada (uma essncia no apreensvel). Cabe ressaltar, ainda, que o vnculo coerente de um elemento percebido a um discurso possibilitou ao olhar clnico operar sobre o ser da doena uma reduo nominalista (idem: 135). Dito de outro modo, a doena passou a ser no que concerne o indivduo nada mais do que um nome. Essa reduo nominalista colocava em cena uma outra idia: a de que tratava-se de reconhecer, na variedade das aparncias, a essnciaespecfica (idem: 136). Uma essncia no abstrata porque o advento de um

outro mtodo anatomia patolgica - possibilitar clnica no [..] maissimplesmente ler o visvel; [mas] descobrir segredos (idem: 137), tornando o

invisvel, visvel. Segredos que, portanto, se revelaro a partir da explorao de um novo espao: o espao sensvel do corpo. Esse espao que oculta o mistrio das origens ser alvo de investigaes ordenadas pela anatomia patolgica. Com ela encontra a luz, a Medicina dos rgos, do foco e das causas (idem: 139) e o olhar do mdico no reluta mais em apalpar profundezas (idem, ibidem). Momento histrico a partir do qual as leses passam a explicar os sintomas e a abertura dos cadveres cumpre a exigncia cientfica de observao positiva dos doentes. Como disse Focault, foi na visibilidade da morte que a doena ganhou seu contedo positivo. A seguinte, e esclarecedora, afirmao do autor deixa ver a dimenso da mudana que se opera no saber mdico:

28

a clnica, olhar neutro sobre as manifestaes, freqncias e cronologias, preocupada em estabelecer parentesco entre os sintomas e compreender sua linguagem, era, por sua estrutura, estranha a esta investigao dos corpos mudos e atemporais; as causas ou as sedes a deixavam indiferente: histria e no geografia (idem: 143-144) (grifo meu).

Ora, se o que a antomo-patologia coloca em cena a geografia das sedes e a identificao, pela leso, da causa da doena a partir do corpo mudo, no se pode esquecer que historicamente a Medicina classificatria e, depois, aMedicina dos sintomas j haviam constitudo um espao mais abstrato mas,

tambm, mais complexo em que o que estava em questo era uma gramtica dos sintomas (fundada na observao de sucesses,

coincidncias, isomorfismos e freqncias). Nessa passagem da gramtica dos sintomas para a geografia das sedes o raciocnio causal se reconfigurou. Se, no primeiro caso, a causa era estabelecida na relao entre a contigidade das manifestaes sintomticas, no segundo, a causa ser tributria da descoberta das sedes de doenas. A localizao anatmica de leses em tecidos especficos passa a ser correlacionada observao de perturbao em funes, tambm especficas. Razo pela qual leses passam a ser entendidas como causas de quadros sintomticos. Note-se que, no primeiro caso, o evento-causa delimitado na contigidade sintomtica. Ainda que a sucesso temporal seja a relao privilegiada para que se estabelea a conexo causal, a simultaneidade (os sintomas concorrentes) joga, tambm a, um papel importante porque o raciocnio causal est atrelado ao jogo de semelhanas e diferenas e exigncia de homogeneidade entre causa e efeito. Quando o olhar do mdico desviado para a leso subjacente ao fenmeno sintomtico, a sucesso temporal passa a jogar todas as cartas no raciocnio causal. Ganha primazia, no jogo de semelhanas e diferenas, a visibilidade conquistada do locus da leso, o que diminui a fora, ou distrai o olhar, da relao de simultaneidade. Melhor dizendo, afasta o olhar da inquietante gramtica dos sintomas.

29

Deve-se esclarecer, no entanto, que o sculo XIX, com Broussais35, v florescer um debate interessantssimo que coloca em tela de discusso a, at ento, assumida verdade do mtodo que sustenta tal causalidade. A crtica que lhe dirige Broussais traz para o campo terico-clnico da Medicina algumas indagaes de importncia vital, dentre as quais destacam-se:

a leso a forma originria e tridimensional da doena cujo ser seria, assim, de natureza espacial ou deve-se situ-la imediatamente alm, na regio das causas prximas, ou imediatamente aqum, como a primeira manifestao visvel de um processo que permaneceria oculto? (Foucault,1980/1994:. 200).

Note-se que a dvida, acima enunciada, revolve-se entre a manuteno de um raciocnio caracterstico da Medicina dos sintomas e o da nova Medicinargos. Num certo sentido, o que parece fundamental ressaltar que a

percepo antomo-clnica parecia insuficiente para lidar com a verdade da doena. Em outras palavras, a antomo-patologia parecia revelar apenas a insero espacial da doena, no sua essncia, tendo em vista que a leso poderia ser entendida, inclusive, como efeito de um distrbio particular sobre um rgo especfico. Levando isso em conta, a anatomia patolgica seria um mtodo altamente interessante para delimitar a espacializao da doena. A natureza especfica do estado patolgico, entretanto, parecia reclamar mais que isso: a elucidao do processo que lhe d origem. Processo que, nesse momento histrico, era inacessvel observao do investigador. Outras indagaes, que colocavam sob suspeio o metamorfose da sede em causa, podem ser assim enunciadas:

todas as doenas tm como correlato uma leso? A possibilidade de determinar-lhes uma sede um princpio geral da patologia, ou s diz respeito a um grupo particular de fenmenos mrbidos? E, neste caso, no se pode comear o

35

Broussais leva a cabo , em 1816, uma crtica avassaladora tutela nosogrfica da antomo-patologia em livro intitulado Examen de la Doctrine Gnralement admise. Segundo Foucault, a estrutura da experincia antomo-clnica s pode se equilibrar graas a Broussais (1980/1994: 204). 30

estudo das doenas por uma classificao do tipo nosogrfico (distrbios orgnicos distrbios no orgnicos) antes de entrar no domnio da anatomia patolgica? (op. cit.: 201).

A resoluo dessa controvrsia se pautou na unio de um aporte mais anatmico com um mais fisiolgico, como se pode ler na seguinte afirmao de Foucault:Com Broussais [...] a localizao pede um esquema causal envolvente: a sede da doena nada mais do que o ponto de fixao da causa irritante, ponto que determinado tanto pela irritabilidade do tecido quanto pela fora da irritao do agente. O espao local da doena , ao mesmo tempo e

imediatamente, um espao causal (idem: 218).

Isso quer dizer que o fenmeno patolgico passa a ser entendido como uma reao orgnica a um agente irritante. Essa Medicina dos agentespatognicos insere o fenmeno patolgico:

em uma trama orgnica em que as estruturas so espaciais, as determinaes causais, os fenmenos anatmicos e fisiolgicos. A doena nada mais do que um movimento complexo dos tecidos em reao a uma causa irritante: a est toda a essncia do patolgico, pois no mais existe nem doenas essenciais nem essncias das doenas (idem: 218).

Pode-se dizer, ento, que sempre que h um rgo em sofrimento h um processo fisiolgico que responde por esse sofrimento. Uma srie de ordenaes causais pode ser estabelecida, a partir desse ponto de vista: do fato fisiolgico para o anatmico e do anatmico para o sintomtico. Um mtodo fisio-antomo-patolgico pareceu, ento, ser o mais adequado investigao no campo terico-clnico da Medicina. De acordo com Broussais, seria preciso, portanto, buscar na fisiologia os traos caractersticos das doenas eelucidar, por uma sbia anlise, os gritos muitas vezes confusos dos rgos sofredores (1816, prefcio; apud Focault, 1980/1994: 220).

31

Note-se que esse mtodo implica no s determinar qual o rgo que sofre (anatomia), como explicar como ele se tornou sofredor (fisiologia) e indicar o que preciso fazer para que ele deixe de sofrer (a interveno). O ltimo deles implica, como se pode concluir, a supresso da causa primeira. Essa tarefa essencialmente clnica da Medicina das reaes patolgicas (op. cit.:221) a idia que fundamenta esse novo discurso, qual seja, a de sofrimento orgnico (idem: 220). Noo que comporta as seguintes idias:

a de uma relao do rgo com um agente ou com um meio, a de uma reao ao ataque, a de um funcionamento anormal, e, finalmente, a da influncia perturbadora do elemento atacado sobre os outros rgos (idem: 221).

Uma reorganizao epistemolgica surgir no terreno da afasiologia mdica a partir, principalmente, da idia que grifei na afirmao anterior. Isso porque ela fundamentar a passagem do localizacionismo para o antilocalizacionismo. Uma outra concepo de funcionamento cerebral dar sustentao ao discurso cientfico sobre a afasia. Deve-se indagar, a partir da, quais as suas conseqncias para a clnica mdica no que concerne o raciocnio causal que predominou at esse momento. Antes de iniciar a discusso que envolve a crtica doutrina clssica o localizacionismo gostaria de concluir essa parte assinalando que o discurso fundador de Broca e Wernicke sobre a afasia , como vimos, tributrio do desenvolvimento do conhecimento elaborado no campo terico-clnico da Medicina entre os sculos XVIII e XIX. Ainda que suas investigaes datem do final do sculo XIX, possvel reconhecer, nelas, o vis basicamente empirista que caracterizou o sculo XVIII, assentado, principalmente, na idia de que o conhecimento deriva da experincia; que a observao do repetvel aliada ao clculo das probabilidades (que envolve comparao, registro de freqncias ... uma estatstica do fenmeno) o meio atravs do qual se constri a verdade sobre o que se d a observar; que o raciocnio causal funda-se na observao de regularidades, a partir da sucessividade entre eventos; que deve haver

32

homogeneidade entre causa e efeito; que a doena (conjunto de sintomas) deve ser reduzida a um nome36. Esse conjunto de caractersticas da Medicina dos sintomas se articula ao mtodo antomo-patolgico que fundamenta o conhecimento elaborado ao longo do sculo XIX. Com seu advento, o termo afasia se articula com outros termos - motora, sensorial, de conduo para nomear o estado patolgico observado. Essas designaes articuladas deixam ver a referncia ao rgo sofredor. Com isso a generalidade encoberta no termo afasia ganha especificidade a partir da espacializao da linguagem enquanto funo cortical. Trata-se, no entanto, de uma especificidade que, de modo algum, rompe com a transformao que resultou na primazia do olhar sobre a doena em detrimento do doente. Sintoma mesmo da articulao entre nosologia e nosografia. Chama a ateno, tambm, que a coerncia do empreendimento empirista reclama a recusa da busca da essncia. O que se viu, entretanto, que a essncia do estado patolgico foi um problema que rondou a elaborao terica no campo da Medicina: sua recusa, a princpio, parecia mais a confisso de uma inacessibilidade (em funo do mtodo adotado) do que propriamente de uma proposio cujo sentido fosse absurdo. Digo isso, porque, com a Medicina dos rgos , a teorizao parece, enfim, ter cedido a essa idia quando postula a leso como causa primeira (origem) dos sintomas manifestos. De algum modo, a acessibilidade ao interno do corpo desvelou uma substncia material que poderia responder pela natureza patolgica dos fenmenos. Razo pela qual o quadro afsico ficou entendido como efeito de uma perturbao de natureza (essncia) neurolgica. No que concerne clnica da afasia, deve-se dizer que, poca de Broca e Wernicke, predominava o mtodo que, na Neurologia, se denomina clnico-patolgico. Transformado em uma tcnica pelo neurologista francs Jean Charcot (1825-1893), ele constitua a base do diagnstico neurolgico e a fundamentao do exame de base histrica. Tal mtodo se assentava no estabelecimento de relaes entre a localizao da leso e as funes

36 Interessante notar a decisa influncia do pensamento filosfico na fundao desse discurso sobre a afasia. Como se sabe, a filosofia de vis empirista tm, desde Aristteles, vinculado a noo de causa s relaes de fato e de existncia.

33

comportamentais perdidas ou modificadas (Love & Webb, 1986/1994: 175). Na

verdade, a idia era determinar o local da leso a partir da deficincia observada. Segundo Benton & Joynt (1960), no existiam tcnicas (aparatos descritivos) para avaliao formal dos sintomas lingsticos nessa poca. Por isso, a referncia ao quadro sintomtico constitua-se numa mera anotao imprecisa do distrbio comunicativo. No que diz respeito ao tratamento propriamente dito, no h referncia, na literatura sobre o assunto, a qualquer indicao de metodologia para a reabilitao da funo lingstica, ainda que, como afirmam Benson & Ardila:

desde as primeiras observaes de perda de linguagem devida leso cerebral, os clnicos tm se preocupado com a recuperao e a reabilitao. Recuperao da linguagem, espontnea ou dirigida, em pacientes afsicos tem sido relatada desde o final do sculo XVI (1996: 343).

Como se v, a avaliao e o tratamento do distrbio de linguagem reduziam-se anotaes intuitivas, no primeiro caso, do que se encontrava alterado e, no segundo, do curso da recuperao. A explicao para qualquer dos dois processos no figurava no horizonte terico-clnico da Medicina de ento. Do mesmo modo, tcnicas que objetivassem a supresso do sintoma no faziam parte da arte de clinicar37. Deve-se dizer que, se do ponto de vista da tentativa de explicao do quadro sintomtico das afasias, o

localizacionismo vem como uma resposta, a Medicina perde do conseqente distanciamento do olhar para o acontecimento sintomtico, uma vez que, do ponto de vista clnico, ela pouco pde produzir. Custo mesmo da passagem da gramtica dos sintomas para a geografia das sedes.

1.2

Jackson e a doutrina da concomitncia: um pensador alm do seu tempo.

37 Ainda que essa observao parea estranha, j que a clnica mdica no se ocupa da reabilitao do lings