MonicaGZoppiFontana Sujeitos Ardentes

Embed Size (px)

DESCRIPTION

artigo

Citation preview

  • 1OS FRIOS ESPAOS DA SEMNTICA EXALAM UM SUJEITO ARDENTE1

    Mnica G. ZOPPI-FONTANA

    Universidade Estadual de Campinas

    A Eni Orlandi e a Luziano Lima,

    sujeitos ardentes.

    Este meu texto percorre o livro Les Vrits de la Palice. Linguistique,

    Semantique, Philosophie, de 1975, que foi traduzido e publicado em portugus em

    1988 com o ttulo Semntica e Discurso. Uma crtica afirmao do bvio.2

    Dos vrios textos de Michel Pcheux, o meu preferido. Difcil dizer por

    que. Talvez, pelo desafio que me impe a cada nova leitura, pela riqueza

    inesgotvel do texto, pela originalidade da reflexo terica, pela fora da crtica

    epistemolgica, pela desterritorializao inquieta das fronteiras disciplinares.

    Talvez, pela honestidade intelectual com que (se) expe a (auto)crtica, pela

    urgncia combatente que transpira a teoria, pelo testemunho explcito de uma

    prtica coletiva de produo de conhecimento. Ou talvez seja porque um texto

    que resiste, mais intensamente que outros, a qualquer tentativa de leitura definitiva

    ou totalizante. Talvez, simplesmente, eu seja capturada pela escrita, ao mesmo

    tempo conceitualmente precisa e ironicamente cmplice.

    Seja como for, aqui estou, lendo e relendo o texto, tentando decidir um

    caminho para percorr-lo mais uma vez. Hoje, juntos.

    Poderamos comear pelas ressonncias que sua publicao provocou na

    conjuntura intelectual e poltica da poca.

    Tomemos trs resenhas que apareceram em 1976 e 1980 sobre o livro,

    cujos lugares de publicao j testemunham o efeito do texto nos diversos

    pblicos aos quais Pcheux se dirige explicitamente:

    1 Traduo na edio brasileira (1988:30) de uma frase contida no original francs do livro Les Vrits de la Palice : Lesfroids espaces de la smantique reclent un sujet brlant (Pcheux, 1975:27).2 Traduo de Eni Orlandi et alii. Campinas, Editora da UNICAMP, 1988.

  • 21. uma publicada no JOURNAL DE PSYCHOLOGIE NORMALE ET

    PATHOLOGIQUE (1976)

    2. outra publicada na REVUE PHILOSOPHIQUE DE LA FRANCE ET

    DE LTRANGER (1976)

    3. a terceira publicada na REVUE PHILOSOPHIQUE DE LOUVAIN

    (1980), na seo da revista destinada s publicaes recentes em Filosofia das

    Cincias, Epistemologia e Lgica.

    A esta lista podemos acrescentar um artigo de autoria de J. Guilhaumou e

    D. Maldidier publicado na revista DIALECTIQUES, em 1979, dentro de um dossi

    especial que leva por ttulo Lingstica crescimento zero, e o artigo publicado por

    Mark Cousins e Athar Hussain na revista THE SOCIOLOGICAL REVIEW, em

    1986, aps o lanamento da traduo ao ingls Language, Semantics and

    ideology (1982) de Les Vrits de la Palice3. A leitura destas resenhas nos permite

    tecer algumas consideraes sobre o impacto do livro de Pcheux nos seus

    contemporneos.4

    No campo da Psicologia, o autor da resenha publicada no JOURNAL DE

    PSYCHOLOGIE NORMALE ET PATHOLOGIQUE (1976), Frderic Franois,

    aponta para o alcance epistemolgico amplo e crtico do livro, e, aps fazer uma

    apresentao sumria e favorvel ao texto, tematizando a questo da semntica e

    seus avatares enquanto campo de conhecimento, destaca os percursos tericos

    pelos quais Pcheux prope pensar a gnese ideolgica do sujeito. Na sua

    leitura do livro, o autor chama a ateno para as condies de funcionamento da

    ideologia burguesa e sua forma de interpelar os indivduos em sujeitos livres, com

    todas as manipulaes psicossociais que nos rodeiam5. Da resenha, retenhamos

    esta ltima frase, que interpreta o funcionamento da lngua na interpelao

    ideolgica como um conjunto de manipulaes psicossocias que nos rodeiam.

    3 Agradeo a Vera Regina Martins e Silva (UNEMAT) por ter facilitado o acesso aos textos que aqui se comentam.4 No havendo indicao em contrrio, as tradues dos fragmentos doravante citados so minhas.5 [...] les conditions de fonctionnnement de lidologie de la bourgeousie et sa faon , avec toutes les manipulations psychosociales qui nous entournent .

  • 3Paradoxal e irnica leitura para o texto mais orgnico6 de quem orientou sua

    prtica cientfica no sentido de produzir uma rachadura profunda nos alicerces

    bem fincados da Psicologia Social! Frase reveladora que sinaliza o

    desconhecimento7 necessrio que perpassou os crculos intelectuais da poca em

    relao a incisiva proposta terica e poltica que o livro de Pcheux propunha.Incompreenso constitutiva que posiciona epistemologicamente o campo da

    Psicologia Social nas antpodas de uma escrita forte que corre conceitualmente

    seus fundamentos.

    No campo da Filosofia, se instala um debate entre posies contrrias,

    dentro do qual o desconhecimento ideolgico se traveste de objetividade. Por um

    lado, encontramos uma posio, presente na resenha de Jean-Marc Gabaude

    publicada na REVUE PHILOSOPHIQUE DE LOUVAIN (1980), que sada o livro

    de Pcheux enquanto reflexo inovadora que avana uma srie de hipteses que

    permitem passar ao materialismo e analisar althusserianamente a problemtica

    da produo de sentido, demonstrando a natureza paradoxal da semntica,

    definida como ponto nodal onde se condensam as contradies que organizam

    hoje a lingstica nas suas diversas tendncias.8

    Por outro lado, encontramos uma posio contrria, defendida na resenha

    de Andr Reix publicada na REVUE PHILOSOPHIQUE DE LA FRANCE ET DE

    LTRANGER (1976), que conclui que a pesar das brilhantes discusses, M.

    Pcheux corre o risco de converter somente aos crentes, entre outras razes por

    no demonstrar a tese segundo a qual as pesquisas neste domnio [da

    semntica] esto subordinadas a uma questo prvia de natureza ao mesmo

    tempo terica e poltica. Conforme o autor da resenha, justamente isto que

    necessrio demonstrar9, juntamente com a afirmao de que a semntica tem a

    6 Conforme Maldidier (1990/2003), Les Vrits de la Palice constitui, no trajeto terico de M. Pcheux, o grandemomento de ordenao dos conceitos.7 No sentido de mconnaissance, isto , de efeito ideolgico de desconhecimento, conforme definido por Pcheux(1975/1988:32).8 La smantique qui, au mme titre que phonologie, morphologie et syntaxe, se prtend partie de la linguistique et,comme telle, science, constitue plutt le point nodal o se condensent les contradictions organisant aujourdhui lalinguistique dans ses diverses tendances.9 Na sua verso orginal em francs possvel perceber um forte tom irnico perpassando todo o texto da resenha, emespecial no fragmento que comentamos: Les recherches en ce domaine sont donc

  • 4ver com a filosofia. Retenhamos esta ltima frase, porque nela vemos refletidos

    os traos de uma abordagem neopositivista da cincia que reduz uma tomada de

    posio epistemolgica (pelo materialismo histrico) a uma questo tcnica de

    metodologia e escrita cientficas (procedimentos de demonstrao e falsificao

    de hipteses). Vemos, tambm, a impossiblidade para esse lugar epistemolgico

    (do neopositivismo) de pensar dialeticamente a contradio que constitui os

    objetos de conhecimento das cincias sociais e humanas em geral, e da

    semntica em particular, impossiblidade que leva a rejeitar uma teoria cuja escrita

    foge das malhas redutoras do dilema lgico (disjuno exclusiva ou...ou) e afirma

    corajosamente a natureza terica e poltica de seus objetos.

    No campo da Sociologia encontramos, como comentrio verso em ingls

    do livro, algumas afirmaes que nos interessa reter; os autores Cousins e

    Hussain (1986) iniciam seu artigo afirmando que:

    Teorias marxistas da ideologia se movem em profundaconformidade com as linhas dominantes de pensamento daSociologia. A sociedade concebida como um objeto de tipoespecial, de um tipo tal que a diferencia estritamente deoutros objetos. Um elemento deste seu carter especial ofato de que a sociedade funciona como uma unidadecoerente e deve ser portanto concebida como tal. Umacondio constitutiva e fundadora deste objeto serconcebido como produto de dois elementos: agenciamento eestrutura. Tomada em conjunto a ao do agenciamento eda estrutura um sobre outro se produz a sociedade. Paraconhecer isto, para conhecer como a sociedade produzidadesta forma, h um tipo apropriado de conhecimento: ascincias sociais. Este conhecimento um conhecimento aomesmo tempo de objetos e causas. (p.158-9)10

    de nature la fois thorique et politique>. Ce quil faut dmontrer. Secondement, et par voie de consquence, affirme M.Pcheux, . De brlants problmes sont visiblemet en jeu qui, par le biais dequelques hypothses, permettront de . As aspas que destacam no texto as formulaes citadasdo livro de Pcheux sinalizam para ns, analistas, as fronteiras desenhadas imaginariamente pelo autor da resenha para seproteger do discurso adversrio que o assombra.10 Marxist theories of ideology move in profound conformity with the dominant lines of thought within sociology. Societyis conceived as an object of a special type, a type strictly distinguished from other objects. One element of its specialcharacter is that it functions as a coherent entity and must be conceived in that light. An enduring and constitutivecondition of this object is that it is conceived as the product of two elements agency and structure. Taken together theaction of agency and structure upon each other produce society. But to know this, to know how society is produced in this

  • 5Estas so as evidncias com que comea um artigo que, por outra parte,

    consegue apresentar com justeza o texto de Pcheux e sua reflexo sobre os

    mecanismos de interpelao do sujeito e de constituio do sentido. Evidncias

    contra as quais Pcheux elabora os conceitos da Teoria do Discurso, justamente

    para desmontar teoricamente as interpretaes que levam a descrever a

    sociedade como uma unidade coerente. Na linha althusseriana, Pcheux rejeita

    a tese de que a sociedade um objeto de tipo especial, assim como rejeita as

    descries que a consideram um organismo (um todo orgnico) ou um conjunto

    ordenado de indivduos (o resultado da somatria dos indivduos que a compem).

    esta posio materialista na teoria que permanece incompreendida nas

    resenhas produzidas, tambm no campo da Sociologia.

    Este rpido percurso pelas leituras feitas na poca sobre Les Vrits de la

    Palice nos permite aproximarnos ao livro de Pcheux a partir de algumas

    constataes.

    Sua reflexo, que conforme indicado no subttulo da verso original em

    francs, percorre os campos disciplinares da Lingstica, da Semntica e da

    Filosofia, produziu pouco impacto no domnio dos estudos lingsticos da poca,

    mas ressou de diversas maneiras nos domnios da Filosofia, das Cincias Sociais,

    da Psicologia11. Porm, essas ressonncias retomam todas um mesmo ponto

    inicial a partir do qual produzem diversos efeitos de leitura; esse ponto de partida

    consiste nas anlises lgico-semnticas e na crtica terica e epistemolgica ao

    campo da Semntica desenvolvida por Pcheux no seu livro. por apresentar

    uma reflexo sobre o sentido e sobre as regies de conhecimento que constituem

    o sentido como seu objeto de conhecimento que filsofos, psiclogos e sociolgos

    respondem de diversas maneiras provocao terica lanada por Pcheux no

    way, a special type of knowledge is appropriate the social sciences. Such a knowledge is both a knowledge of objectsand causes [...].11 Guilhaumou & Maldidier (1979:7) descrevem o incio da Anlise do Discurso em 1969 da seguinte maneira: Unenouvelle discipline, lanalyse du discours devait ds lors se constituer. Elle sassignait un champ la limite de laLinguistique et de lHistoire. Cela nallait pas sans rsistances : linguistes, historiens et sociologues refussaient de luicder du terrain...Aujourdhui il apparat plus clairement que lanalyse du discours, en se constituant, a empit sur desdomaines aussi divers que lanalyse de contenu, lhistoire des ides, la psycologie sociale, la smiotique, voire lapsychanalyse .

  • 6seu livro. fcil conferir esta convergncia se olharmos a frase inicial dessas

    resenhas:

    A semntica se pretende uma cincia. Mas ela hoje umaoutra coisa: o ponto nodal onde se condensam ascontradies que assombram a lingstica atual. Assimdeclara o autor, que como bom discpulo de Althusser, reveladentro deste ramo do saber extenses singulares em direo lgica, certamente, mas tambm retrica e a teoriacientfica da propaganda. (Revue de Philosophie de laFrance et de ltranger, p.104)12

    O subttulo do livro oferece uma idia da amplitude do campo de

    questes visadas. O autor quer inicialmente precisar o que se deve

    entender por semntica para assim criticar as evidncias ideolgicas

    subjacentes s anlises lingsticas tradicionais. Depois prope uma

    anlise marxista do funcionamento da ideologia e das prticas

    discursivas.(Journal de Psychologie normale et pathologique,

    p.490)13

    Eis aqui uma anlise althusseriana da semntica, que critica tanto o

    idealismo metafsico quanto o empirismo e formalismo aliados no

    neopositivismo, e que ademais denuncia a reinscrio deste ltimo

    em um materialismo histrico desviado em humanismo. (Revue de

    Philosopie de Louvain, 159)14

    12 La smantique se prtend une science. Elle est aujourdhui tout autre chose : le point nodal o se condensent lescontradictions qui hantent la linguistique actuelle . Ainsi anonne lA. qui, en bon disciple dAlthusser, dcle dans cettebranche du savoir de singulires extensions en direction de la logique, certes, mais aussi de la rhtorique et de la thoriescientifique de la propagande.13 Le sous-titre du livre donne une ide de lampleur du champ des questions envisag. Lauteur veut dabord prciser cequon doit entendre par smantique, et dans cette vise critiquer des vidences idologiques sous-jacentes aux analyseslinguistiques traditionnelles. Puis proposer une analyse marxiste du fonctionnement de lidologie et des pratiquesdiscursives. Enfin, mettre en place idologie et, dune part rationalit scientifique, de lautre pratique politiqueproltarienne.14 Voici une analyse althussrienne de la smantique, critiquant tant lidalisme mtaphysique quempirisme etformalisme allis dans le no-positivisme et, en outre, dnonant la rinscription de ce dernier dans un matrialismehistorique dvi en humanisme.

  • 7O que a Semntica, e mais amplamente, a questo do sentido, tal como

    pensados por Pcheux, convocam nesses outros espaos de produo de

    conhecimento?

    Voltemos agora ao texto de Pcheux para tentar alguma resposta.

    Aps uma nota prvia onde se descrevem os campos de questes da

    Semitica, da Semntica e da Semiologia, Pcheux inicia o primeiro captulo do

    livro Les Vrits de la Palice se interrogando sobre as relaes entre Estado e

    movimento operrio nas sociedades socialistas existentes. a partir dessa anlise

    da conjuntura poltica e da necessidade de desenvolver uma reflexo crtica sobre

    o estalinismo que se introduz no texto a questo da semntica. Citando Pcheux

    (1975:17):

    Em suma, o ressurgimento das pesquisas semnticas luzdo marxismo contemporneo ao XX Congresso do PCUSe, tambm, ao comeo da, assim chamada, era informticae espacial. Desde essa reabilitao, o tempo passou e,tanto no Leste como no Oeste, os estudos nesse domnio semultiplicaram.

    Assim, para julgar sobre fatos, como diz o prprio Pcheux, ele vai

    proceder a uma anlise de textos de semanticistas, filsofos e lgicos para

    desnaturalizar as evidncias que fazem da Semntica uma disciplina cientfica

    complexa e moderna, reconhecida como um ramo da Lingstica. Comeando

    pelo texto de Adam Shaff, Pcheux resume a lista de evidncias que habitam o

    campo e que se encontram modelarmente representadas no autor russo:

    1- h coisas (objetos e processos materiais) e pessoas, sujeitosdotados da inteno de comunicar (ns comunicamos por meiode...)

    2- h objetos que se tornam signos, isto , que remetem a outrosobjetos, pelo processo social da semiose

    3- h enfim as cincias humanas, que tm cada uma o que dizersobre a linguagem e a fala, formando um verdadeiroentroncamento interdisciplinar.(Pcheux, 1975/1988:19)

  • 8Pcheux vai acompanhar o trajeto percorrido por essas evidncias na

    histria do pensamento lgico-filosfico ocidental e, para isso, vai utilizar como

    observatrio uma estrutura lingstica: a oposio entre aposio explicativa e

    determinao, em particular no caso das construes relativas do tipo o homem

    que racional livre, exemplo analisado no texto Effets discursifs lis au

    fonctionnement des relatives en franais de 1979, onde o autor prope duas

    interpretaes possveis:

    - Todo homem, sendo racional, , portanto, livre;

    - Somente os homens racionais so livres.15

    O interesse das subordinadas relativas adjetivas para a Teoria do Discurso

    se encontra justamente no fato desta estrutura dar lugar, como j vimos, a pelo

    menos duas interpretaes semnticas cuja pertinncia enquanto leitura

    apropriada da frase no pode ser decidida exclusivamente por critrios

    gramaticais, permitindo observar, desta maneira, os efeitos dos processos

    discursivos sobre o funcionamento da sintaxe16. Por outro lado, a essa oposio

    formal se acrescenta uma srie de oposies conceituais que funcionam como

    grade interpretativa do funcionamento dessa forma lingstica. Nas palavras de

    Pcheux, descrito por Maldidier (1990/2003) como um filsofo inquieto com a

    lingstica:

    [essa oposio lingstica] chama, irresistivelmente, para areflexo lingstica, consideraes sobre a relao entreobjeto e propriedades do objeto, entre necessidade econtingncia, entre objetividade e subjetividade, etc. queformam um verdadeiro bal filosfico em torno da dualidadeLgica/Retrica. (Pcheux, 1975/88:28)

    15 Pcheux (1979/1990: 275) conclui, em relao ao exemplo comentado: Le choix entre les deux interprtations nestvidemment pas de nature linguistique. Il en va de mme, plus forte raison, dans le cas des discours politiques .16 Observamos a impossibilidade de discernir gramaticalmente a interpretao adequada no seguinte exemplo, adaptadodo texto de Pcheux j citado (1979/1990): na frase os sindicatos que defendem os direitos dos trabalhadores apoiaro agreve, a subordinada relativa adjetiva pode ser interpretada, conforme a posio de sujeito na qual se inscreve o leitor,tanto como determinativa/restritiva (s os sindicatos que se alinham com os trabalhadores, o que supe a existncia desindicatos pelegos), quanto como explicativa/apositiva (todos os sindicatos, dado que a defesa do direito dostrabalhadores seria uma propriedade essencial e constitutiva da definio dos sindicatos).

  • 9Perseguir esses pares no texto de Pcheux e descrever a maneira como o

    autor analisa as evidncias filosficas e ideolgicas que os sustentam ultrapassa

    em muito o tempo reduzido desta apresentao.

    Apenas vou trazer a citao de um fragmento do primeiro captulo de Les

    Vrits de la Palice para iniciar um percurso por outros textos de Pcheux e poder

    retomar, assim, a anlise das frases que retivemos das resenhas j comentadas.

    Comeo, ento, por uma questo colocada ironicamente nesse primeiro

    captulo. Aps uma anlise sumria das prticas tericas e polticas da esquerda

    da poca, sobretudo nos pases socialistas, e de uma reviso crtica das

    evidncias que perpassam as anlises semnticas propostas por autores como A.

    Schaff, N. Chomsky, P. Kiparsky, a Filosofia Analtica da Escola de Oxford e a

    Sociolingstica (atravs de W. Labov, U. Weinrich), M. Pcheux conclui:

    Uma questo terica, portanto, que procuraremos apreendertanto em seu desenvolvimento filosfico quanto nas suasrepercusses lingsticas; mas veremos que essa questo tambm, diretamente, uma questo poltica: o fato de queLnin se tenha preocupado, em seu tempo, em intervir naquesto do empiriocriticismo constitui, a esse respeito, umprimeiro ndice. As condies polticas atravs das quais omarxismo contemporneo tem, entre outras coisas, seencontrado com a semntica a saber, como dissemos, oXX Congresso do PCUS e o incio da era atmica eespacial constitui um outro ndice; os frios espaos dasemntica exalam um sujeito ardente. (Pcheux,1975/1988:30; grifos do autor)

    Logo a seguir, Pcheux alerta o leitor da seguinte maneira:

    A propsito, uma observao de passagem, que o leitorpoder guardar num canto de sua cabea ao longo dodesvio dos dois primeiros captulos: os semanticistas seutilizam de bom grado, como veremos, de classificaesdicotmicas do tipo abstrato/concreto, animado/no animado,humano/no humano, etc., que, se fossem aplicadasexaustivamente at o limite mximo, constituriam umaespcie de histria natural do universo:

    - por exemplo, uma cadeira seria, segundo J. Katz,caracterizada pelos seguintes traos: (objeto) (fsico)

  • 10

    (no animado) (artificial) (porttil) (com ps) (comencosto) (com assento) (para uma pessoa);

    - da mesma forma, um solteiro ser caracterizado como (fsico) (animado) (adulto) (masculino) (no casado), o queautoriza a tirada La Palice (alis bastante suspeita) quefaz com que, se algum no casado, porque solteiro;

    - mas suponhamos que se queira abordar, por meio dessaclassificao, realidades to estranhas quanto a histria, ouas massas, ou ainda a classe operria... O que dir osemanticista? Trata-se de objetos, ou de coisas? Ou desujeitos, humanos ou no-humanos? Ou de colees desujeitos?Gozado como a mquina de classificar de repente seenrola... No entanto, ela funcionava com respeito a pessoase coisas! Ser que, por acaso, para funcionar, ela temnecessidade do espao universal abstrato do direito tal comoo modo de produo capitalista o produziu?[...]Em todo caso, o leitor j deve estar agora com a pulga atrsda orelha, e se alm disso, leu um dos recentes textospublicados por Althusser17, sabe ento que, apesar de elenunca ter falado de Semntica, nesse texto levantada aquesto de saber se, a exemplo do homem (com hminsculo ou maisculo), a histria, as massas, a classeoperria so ou no sujeitos, com todas as conseqnciasque da resultam...(op.cit.:30-31; grifos do autor)

    Assim, de forma singela e incisiva, Pcheux coloca a pulga atrs da orelha

    dos vrios leitores com os que dialoga no seu texto:

    do semanticista, ao alertar sobre a perversa banalidade de seus quadrosclassificatrios;

    do filsofo, ao colocar em questo a oposio dicotmica, instvel e noevidente, entre sujeito/objeto;

    do sociolgo, ao lembrar do funcionamento do aparelho jurdico naorganizao do real e de sua representao imaginria;

    do militante, ao chamar a ateno para os processos deidentificao/subjetivao na prtica poltica;

    do lingista, ao mostrar o equvoco inerente a toda nomeao e ofuncionamento tendencial da interpretao.

    17 Idologie et Appareils idologiques dEtat , em LA PENSE, n 151, 1970 ; p.3-38.

  • 11

    Leitores todos para o quais se revelam, sob a simulao de um campo de

    questes prprio da Semntica, problemas teorica e politicamente ardentes18.

    Nos captulos do livro dedicados ao estudo dos trabalhos de Frege que

    descrevem o funcionamento da nomeao19, Pcheux volta a abordar esse

    problema. Conforme Maldidier (1990/2003):

    por uma (re)leitura materialista de Frege que MichelPcheux empreende (re)trabalhar a questo lgico-lingstica das relativas....Esta leitura desemboca na anlisede dois funcionamentos: o pr-construdo e a articulao dosenunciados. Estas noes chaves permitem passar doterreno lgico-lingstico ao da teoria dodiscurso...Apreendemos como o pr-construdo podearticular ao mesmo tempo o efeito de anterioridade ou dedistncia e o efeito de identificao ou de reconhecimento. Areleitura de Frege faz tambm voltar a poltica. A questo deFrege sobre a denotao da expresso a vontade do povofaz parte dessas questes obsidiantes que estimulam opensamento de Michel Pcheux. Uma questo que conjuganele o amor lngua e poltica. (Maldidier, 1990/2003:47).

    Nesses captulos20, Pcheux desenvolve uma reflexo crtica sobre a

    oposio nomes prprios/nomes comuns apresentada por Frege, apontando para

    o equvoco idealista que impede de ver a funo constitutiva e no derivada,

    inferida ou construda da metfora (da metonmia = a Frana/o rei da Frana/os

    Franceses) e correlativamente, leva a igonorar a eficcia material do imaginrio

    (1975/88:119; grifos do autor). Pcheux avana, ainda, uma hiptese:

    em relao origem do equvoco positivista, que leva araciocinar fora da questo, a partir do momento em que, deuma maneira ou de outra, a poltica entra em cena: tudo sepassa, nesse caso, como se a desconfiana antimetafsicase convertesse em cegueira com respeito seriedade das

    18 Retomamos aqui uma frase presente na quarta capa da edio original francesa : Sous la smantique, des problmesthoriquement et politiquement brlants sont donc en jeu . (Pcheux, 1975: Quarta capa).19 Cf. os artigos de G. Frege Sentido e referncia e Funo e conceito, publicados em Lgica e Filosofia daLinguagem. So Paulo, Cultrix/Edusp, 1978.20 Cap. 2 Determinao, formao do nome e encaixe e cap.3 Articulao de enunciados, implicao de propriedades,efeito de sustentao da II Parte Da Filosofia da Linguagem Teoria do discurso.

  • 12

    metforas e sua eficcia; nem por um instante aparece aidia de que, para que Dupont pertena ao conjunto dosfranceses, necessrio que ele seja produzido comofrancs, o que supe a existncia eficaz no de Marianne,mas da Frana e de suas instituies polticas e jurdicas(1975/88:118-9; grifos do autor)

    Vemos, ento, como, para Pcheux, a questo do sentido est sempre j

    constitutivamente ligada questo do sujeito do discurso e como ambas as

    questes tm, de forma inseparvel, um estatuto terico e poltico ao mesmotempo. Assim, o autor adianta, neste captulo, o que ser uma das teses principais

    do livro, a da figura da interpelao ideolgica e seu funcionamento na produo

    do sentido e do sujeito no discurso.

    Adiantaremos, neste momento, a idia de que o que estem jogo a identificao pela qual todo sujeito sereconhece como homem, ou tambm como operrio,empregado, funcionrio, chefe, etc. ou ainda como turco,francs, alemo, etc. e como organizada sua relao comaquilo que o representa. (1975/88:117; grifos do autor)

    a partir destas questes que o autor define o objetivo do livro como uma

    abordagem terica materialista do funcionamento das representaes e do

    pensamento nos processos discursivos (grifos do autor), o que supe uma

    teoria da identificao e da eficcia material do imaginrio (Pcheux,

    1975/1988:125)21.

    A questo est, pois, colocada: como trabalhar na descrio e anlise de

    realidades complexas com o quadro interpretativo da Semntica Lingstica (e

    poderamos acrescentar da Sociologia, da Psicologia Social, da Lgica),

    dicotmico, oposicional, configurado na forma de dilema lgico-lingstico

    (disjuno exclusiva ou...ou) que impede qualquer abordagem dialtica que faa

    trabalhar as contradies que fundam essas oposies? Quais so as evidncias

    na Lgica e na Lingstica que suportam materialmente essa oposio? Quais os

  • 13

    efeitos dessa oposio sobre a anlise semntica das formas lingsticas? Quais

    os efeitos sobre a reflexo filosfica? Quais os efeitos sobre a prtica poltica?

    Essas questes, trabalhadas no livro Les Vrits de la Palice (conforme

    mostramos), so tematizadas, tambm, em um artigo de Pcheux publicado em

    ingls em 1978 com o ttulo: So as massas um objeto inanimado?22

    Nesse texto o autor afirma:

    O que se chama geralmente de pensamento moderno estmarcado por uma oposio entre pessoa e coisa, seja nonvel jurdico onde aparece como uma distino entrecontrato e propriedade; seja no nvel filosfico, entre sujeito eobjeto; seja no nvel moral, entre intencional e nointencional. Esta oposio jogou sempre um papel importantena anlise lgico-filosfica da linguagem e central hoje nalingstica atual para qualquer discusso de semntica. [...]Podemos citar muitos exemplos em diferentes correntes dalingstica moderna para mostrar como esta distinoaparece semanticamente como auto-evidente nas reflexesque tangem a lgica, o direito, a tecnologia ou a sociologia.Neste captulo, vou mostrar e defender uma tese que voucolocar inicialmente na sua forma negativa: O par semnticopessoa/coisa que se aplica sem nenhum problema aosenunciados da vida cotidiana, no de forma algumaapropriado para a poltica no sentido no burgus do termo,i.e. para a poltica das massas.Falar das massas, de transformao poltica e de revoluo em outras palavras, de histria em termos de pessoas ecoisas, sujeitos e objetos, intenes e estado de coisas,como se fossem distines do sentido comum que serefletem de forma no ambiga na linguagem, perdercompletamente a natureza essencialmente ideolgica dodiscurso e do sentido (Pcheux, 1978:251-252; grifos doautor).[... ] A concluso que pode ser tirada que no existe umaleitura objetiva de textos polticos porque no existe um

    21 Cf. o trabalho de Ana Zandwais apresentado junto com este meu texto no mesmo painel do I SEAD (Porto Alegre,novembro de 2003) e publicado neste volume. Cf. tambm Indursky (2000), Orlandi (2001) e Zoppi-Fontana (2002).22 Observe-se que o artigo Are the masses an inanimate object? aparece em uma coletnea de artigos organizada porDavid Sankoff com o ttulo de Linguistic Variation, publicada em Nova York pela Academic Press. A incluso do textode Pcheux, fortemente crtico s teorias sociolgicas, no seio de um livro dedicado a estudos de Sociolingstica, permitecompreender o carter polmico das intervenes do nosso autor no campo da Lingustica e seus efeitos de interfernciaterica e poltica.

  • 14

    entendimento do senso comum em poltica. Nenhumasemntica universal ser capaz de fixar o que se deveentender por planejamento, transformao poltica,reforma radical, ao de governo, etc. porque as palavras,expresses e enunciados mudam de sentido de acordo coma posio de onde so proferidas. Isto constitui a formapositiva da tese que levantei na introduo. Somos assimremovidos para longe da transparncia da distino entrepessoa e coisa, sujeito e objeto, inteno e no-inteno,precisamente porque a histria, isto , a luta de classes, no uma pessoa nem uma coisa; as contradies da luta declasses atravessam e organizam o discurso sem jamaisserem claramente resolvidas (op.cit.: 266; grifos do autor)23.

    Nestes curtos fragmentos mostra-se com clareza a complexidade do

    pensamento de Pcheux, que desenvolve, ao mesmo tempo, uma crtica terica

    aos mtodos de descrio semntica; uma crtica epistemolgica ao fechamento

    do campo disciplinar da lingstica e configurao das filosofias espontneas

    que habitam as cincias sociais e humanas; e, tambm, uma reflexo sobre as

    descontinuidades tericas e epistemolgicas que poderiam intervir/possibilitar uma

    prtica poltica proletria.

    Neste sentido, importante lembrar que, conforme Pcheux, uma teoria

    materialista dos processos discursivos deve no s denunciar as evidncias que

    constituem a filosofia espontnea das prticas cientficas de cunho idealista, mas

    deve, tambm, construir suas prprias categorias conceituais para poder intervir

    na luta terica (propondo uma descrio/interpretao materialista do

    23 What was genereally called modern thought is marked by an opposition between person and thing, be it at the juridicallevel where it appears as a distinction between contract and property; at a philosophical level, between subject and object;or at a moral level, between the intentional and the nonintentional. This opposition has always played an important role inthe logico-philosophical analysis of language, and in linguistics today it is central to any discussion of semantics [...] Wecould cite many examples in different currents of modern linguistics to show how this distinction appears semanticallyself-evident in reflections touching on logic, law, technology, or sociology. In this chapter , I wil illustrate and defend athesis, which I will state first in a negative form: The semantic pair person/thing which applies without any obviousproblem to utterances of everyday life, is not at all appropriate to politics in the nonbourgeois sens of the term, to thepolitics of the masses. To speak of the masses, of political change, and of revolution in other words of history- in termsof persons and things, subjects and objects, intentions and the state of things, as common sense, transparent distinctionswhich are necessarily reflected unambiguously in language, is to miss completely the essential ideological nature ofdiscourse and meaning. [...] The conclusion to be drawn from this exercise is that there is no objective reading of apolitical text because there is no common sense understanding in politics. No universal semantics will ever be able to fixwhat should be understood by planning, political change, radical reform, government action, and so on becausewords, expressions, and utterances change their sense according to the position from which they are uttered. We are farremoved from the transparence of the distinction between person and thing, subject and object, intention and nonintention,precisely because history, that is to say, the class struggle, is neither a person nor a thing; the contradictions of the classstruggle run through and organized discourse whithout ever being clearly resolved.

  • 15

    funcionamento simblico das prticas sociais e polticas) e na luta poltica(fornecendo elementos para compreender e, portanto, interferir nos processos de

    identificao/subjetivao que constituem os sujeitos coletivos das prticas

    polticas proletrias)24.

    Nessa mesma direo, no artigo So as massas um objeto inanimado?,

    Pcheux prope:

    Para conceptualizar a luta de classes, ou as lutas dasmassas, e para orientar-se (as massas) nessas lutas, aprtica poltica do proletariado deve desembaraar-se dascategorias do economicismo/humanismo e produzir suasprprias categorias (ie. processo, contradio, etc.)(Pcheux, 1978: 266)25.

    Duas hipteses, longamente desenvolvidas no livro Les Vrits de la Palice,

    permitem essa construo terica e poltica: uma, que diz a respeito da relaolngua/ideologia; outra, que diz a respeito da relao cincia/ideologia. Podemos

    apresentar essas hipteses, resumidamente, como segue:

    1- As contradies ideolgicas que se desenvolvem atravs da unidade da

    lngua so constitudas pelas relaes contraditrias que os processos

    discursivos mantm, necessariamente, entre si, na medida em que se inscrevem

    em relaes ideolgicas de classes (Pcheux, 1975/1988:93). Tese da autonomia

    relativa de lngua e da determinao histrica dos processos de produo do

    sentido, que nos permite compreender o funcionamento da lngua na interpelao

    ideolgica atravs dos efeitos de pr-construdo e sustentao/articulao dos

    enunciados (e, conseqentemente, analisar o funcionamento das representaes

    24 Intervir filosficamente obriga a tomar partido: eu tomo partido pelo fogo de um trabalho critico... Essa tomada departido obriga a discernir as posies que, no campo da batalha filosfica, precisam urgentemente ser abandonadasdaquelas posies que, mais do que nunca, importante ocupar e defender, sob a condio de que sejam ocupadas edefendidas de um modo diferente. uma questo de preciso: a luta filosfica (luta de classes na teoria) um processosem fim de retificaes coordenadas, que se sustentam pela urgncia de uma posio a ser defendida e fortalecida frenteao que se poderia chamar a adversidade no pensamento. E assomando a essa linha de maior inclinao que a filosofiatoca especificamente o real (Pcheux, 1975/1988: 294)25 In order to conceptualize the class struggle, or the struggles of the masses, and in order to orient itself in these struggles,the political practice of the proletariat should divest itself of the categories of economism/humanism and produce its own(e.g., process, contradiction, etc.).

  • 16

    na constituio do sujeito do discurso, ou, como diz Althusser -citado por Pcheux-

    compreender como os sujeitos marcham sozinhos, i.e., por si mesmos).

    2- Existe uma descontinuidade entre conhecimento cientfico e efeito

    ideolgico de desconhecimento (mconnaissance) que atravessa a Lingstica e,

    principalmente, a Semntica, produzindo a iluso de uma continuidade segundo a

    qual se organizariam os enunciados da linguagem, estando os enunciados

    cientficos em um extremo e a conversao corriqueira no outro, e considerando-

    se os primeiros (os enunciados cientficos) como resultado dos segundos (o

    discurso ordinrio, a conversao corriqueira), sobre os quais atuariam processos

    de abstrao/universalizao. Tese apresentada no livro Les Vrits de la Palice

    atravs do mito continusta emprico-subjetivista26, que nos permite compreender o

    funcionamento do discurso na produo de efeitos de intersubjetividade,

    consenso/senso comum e universalidade que trabalham imaginariamente a

    passagem, via identificao, do individual determinado situacionalmente ao

    universal indeterminado27.

    O artigo de J. Guilhaumou & D. Maldidier (1979) assinala, indiretamente,

    esses dois aspectos definitrios da Anlise do Discurso defendida por M Pcheux.

    No artigo, os autores opem os trabalhos contemporneos da Lingstica Social

    (Marcellesi & Gardin, 1974) e da Semntica da Histria (Faye, 1972) aos trabalhos

    da Teoria da Anlise do Discurso (Pcheux e colaboradores de 1969 a 1978) e

    declaram:

    Uma afirmao de sada: os analistas do discurso de cuja prticavamos falar, questionam os postulados fundamentais dasociolingstica:- o simples pr em relao o fato lingstico e o fato social, apesquisa de clivagens sociolgicas a partir de fatos lingsticos;resumindo, tudo aquilo que se designa habitualmente como co-variao. Eles tentam ir alm desta simples justaposio disciplinar;

    26 Cf. Pcheux (1975/1988: 127): Pode-se, alis, constatar que a relao situao/propriedade inelutavelmenteconcebida pela Filosofia da Linguagem (que , como j dissemos, a filosofia espontnea da cincia lingstica) deacordo com o mito continusta emprico-subjetivista, que pretende que, a partir do sujeito concreto individual emsituao (ligado a seus preceitos e a suas noes), se efetue um apagamento progressivo da situao por uma via que levadiretamente ao sujeito universal, situado em toda parte e em lugar nenhum, e que pensa por meio de conceitos.27 O que nos permite compreender no s o funcionamento dos processos de produo de conhecimento, mas, conformedemonstrei em trabalhos anteriores (Zoppi-Fontana, 1999 e 2003), os processos de excluso/deslegitimao de identidadescoletivas diferenciais ou de transio histrica entre formas-sujeito (Miln-Ramos, 2001).

  • 17

    eles se interrogam sobre o estatuo da materialidade lingsticadentro da formao social;- a evidncia do modelo da comunicao segundo o qual passa-segradualmente do fato de que dois individuos em sociedade (se)comunicam necessariamente comunicao entre grupos sociais.Como se as palavras circulassem para o benefcio de uns ou outrossem que seja desvelado o segredo de sua produo (Guilhaumou &Maldidier, 1979:13; grifos dos autores)28.

    Os autores concluem afirmando que, por importantes que tenham sido as

    contribues da Lingstica Social e da Semntica da Histria para o estudo de

    afrontamentos particularmente sensveis -anticomunismo; antisemitismo-, elas no

    so suficientes. Poderamos dizer, junto com Althusser: Este gnero de respostas

    pragmatistas nos deixa na fome de nossas questes tericas29 (Guilhaumou &

    Maldidier, 1979:16).

    justamente para no pensar fora de questo que Pcheux desenvolve

    organicamente em Les Vrits de la Palice um conjunto bem ordenado de

    elementos conceituais (efeito de pr-construdo, efeito de sustentao, discurso

    transverso, intradiscurso, formao discursiva, processos discursivos, autonomia

    relativa da lngua, condies de produo, efeito de sentido, processos

    metafricos, parfrase, etc.), organizados em torno dos conceitos chaves de

    interdiscurso e forma-sujeito do discurso. No o objetivo desta apresentao

    desenvolver teoricamente esses conceitos (nem teramos o tempo necessrio

    para faz-lo). Remetemos, para tanto, aos textos de Maldidier (1990) e Orlandi

    (1999). Queremos destacar aqui o papel central e organizador cumprido nessa

    srie de elementos conceituais pelo conceito de Ideologia (com a inicial em

    maiscula, significando Ideologia geral) e, a partir dele, da figura da interpelao

    28 Une affirmation au dpart: les analystes du discours dont nous allons parler dansleur pratique, mettent en question lespostulats fondamentaux de la sociolinguistique :- la simple mise en relation entre le fait linguistique et le fait social, la recherche de clivages sociologiques partir de faitslinguistiques, en somme ce quon dsigne habituellement par la co-variance. Ils tentent daller au-del de cette simplejuxta-disciplinarit ; ils sinterrogent sur le statut de la matrialit linguistique dans la formation sociale;- lvidence du modle de communication selon lequel on passe graduellement du fait que deux individus en socitcommuniquent ncessairement la communication entre groupes sociaux. Comme si les mots circulaient au bnfice desuns ou des autres sans que soit dvoil le secret de leur production.29 Nous pouvons dire avec Althusser: Ce genre de rponse pragmatiste nous laisse sur la faim de notre questionthorique .

  • 18

    ideolgica. Este o diferencial da Teoria e da Anlise do Discurso proposta por M.

    Pcheux. no conceito de Ideologia que se articulam as proposies tericas que

    descrevem os processos de constituio do sentido e do sujeito no discurso30.

    tambm pelo conceito de Ideologia que Pcheux inscreve sua Teoria do Discurso

    no materialismo histrico. , finalmente, o conceito de Ideologia que serve, at

    hoje, de divisor de guas entre as diversas abordagens discursivas. Conceito

    central e maldito, especialmente nos tempos atuais, quando este nosso mundo

    feliz decidiu enterrar a histria decretando a morte das ideologias sob o imprio

    das democracias libertadoras!

    No seu livro Les Vrits de la Palice, Pcheux comenta o carter crucial do

    conceito de Ideologia na sua teoria:

    Enquanto categoria filosfica, a Ideologia distinta deconceitos cientficos do materialismo hsitrico como os desuperestrutura ideolgica, de formao ideolgica, deaparelho ideolgico de Estado e de prtica ideolgica, deideologia dominante, de relaes ideolgicas de classe, etc. no , pois, o equivalente marxista do erro, da iluso ou daignorncia. Essa categoria designa o espao da luta eternaentre duas tendncias:- a tendncia idealista, que visa identificar o processo semsujeito a um sujeito cf. a saborosa acusao que Hegeldirige, em La Science de la logique, a Espinosa: falta Substncia o princpio de Personalidade!-, tendo como fima unificao do real sob a forma de unificao dopensamento;- a tendncia materialista, que visa desfazer essaidentificao, colocando o real (incluindo-se nele opensamento que, sob uma forma especfica, , por ele,determinado) como um processo no-unificado, atravessadopor desigualdades e por contradies. (Pcheux,1975/1988:275)

    A partir dessa centralidade do conceito de Ideologia, Pcheux (alinhadocom os trabalhos de Althusser) vai diferenciar Ideologia em geral dos outrosconceitos com os quais se articula na teoria do discurso.

    30 Todo nosso trabalho encontra aqui sua determinao, pela qual a questo da constituio do sentido junta-se daconstituio do sujeito, e no de um modo marginal (por exemplo, no caso particular dos rituais ideolgicos da leiturae da escritura), mas no interior da prpria tese central, na figura da interpelao. (Pcheux, 1975/1988:153-4)

  • 19

    A Ideologia em geral, cuja realizao no se dava, comovimos, nos aparelhos ideolgicos de Estado de modo queela no poderia coincidir com uma formao ideolgicahistoricamente concreta- no tambm a ideologiadominante, enquanto resultado de conjunto, forma histricaconcreta resultante das relaes de desigualdade-contradio-subordinao que caracterizam, numa formaosocial historicamente dada, o todo complexo comdominante das formaes ideolgicas que nela funcionam.Em outros termos, enquanto as ideologias tm uma histriaprpria, uma vez que elas tm uma existncia histrica econcreta, a Ideologia em geral no tem histria, na medidaem que ela se caracteriza por uma estrutura e umfuncionamento tais que fazem dela uma realidade no-histrica, isto , omni-histrica, no sentido em que estaestrutura e este funcionamento se apresentam na mesmaforma imutvel em toda histria [...] O conceito de Ideologiaem geral aparece, assim, muito especificamente como omeio de designar, no interior do marxismo-leninismo, o fatode que as relaes de produo so entre homens, nosentido de que no so relaes entre coisas, mquinas,animais no-humanos ou anjos, nesse sentido e unicamentenele: isto , sem introduzir simultnea, e sub-repticiamente,uma certa idia de o homem, como antinatureza,transcendncia, sujeito da histria, negao da negao,etc.[...] Muito pelo contrrio, o conceito de Ideologia em geralpermite pensar o homem como animal ideolgico.(Pcheux, 1975/1988:151-2; grifos do autor)

    Assim, da definio do homem como animal ideolgico, Pcheux deriva

    duas proposies:

    1- S h prtica atravs de e sob uma ideologia;

    2- S h Ideologia pelo sujeito e para sujeitos. (op.cit:149)

    Considerando que a constituio do sujeito do discurso se d juntamente

    com a constituio do sentido no discurso e ambos os processos se articulam

    simultaneamente pela interpelao ideolgica, Pcheux conclui que:

    a ideologia que fornece as evidncias pelas quais todomundo sabe o que um soldado, um operrio, um patro,uma fbrica, uma greve, etc., evidncias que fazem com queuma palavra ou um enunciado queiram dizer o querealmente dizem e que mascaram, assim, sob a

  • 20

    transparncia da linguagem, aquilo que chamaremos ocarter material do sentido das palavras e dos enunciados.(op. cit.:160; grifos do autor)

    Desta maneira, a questo do funcionamento ideolgico da lngua nos

    processos discursivos aparece enunciada e se constitui no alvo principal da

    reflexo desenvolvida no livro Les Vrits de la Palice. Por outro lado, as mltiplas

    anlises que se sucederam publicao do grande livro terico de M. Pcheux e

    que acompanharam as diversas reformulaes da teoria e da metodologia de

    anlise almejavam compreender e descrever como essas evidncias eram

    produzidas pela linguagem em diferentes espaos institucionais/discursivos em

    conjunturas histricas determinadas. Carecemos de tempo nesta nossa

    apresentao para fazer o percurso das modificaes sofridas pela teoria ao longo

    dos anos. Aqui nos interessa, simplesmente, observar as incidncias e os

    deslocamentos produzidos na teoria a partir desse profcuo trabalho de anlise

    que se seguiu a publicao dos livros de Pcheux, especialmente de Les Vrits

    de la Palice. Guilhaumou & Maldidier (1979) apontam para algumas

    conseqncias que tocam diretamente nas questes que perseguimos neste

    texto, a saber, a questo do carter complexo de certas realidades (sociedade,

    grupos sociais, transformao social, dominao, etc.) que constituem o objeto de

    conhecimento de disciplinas distintas (Sociologia, Filosofia, Lingstica, Psicologia,

    etc.) e a natureza paradoxal dos termos e conceitos (massas, histria, classes,

    ideologias dominantes, ideologias dominadas, etc.) que as nomeiam e tentam

    descrev-las.

    Numerosos estudos concretos se inscrevem nestaperspectiva e tentam fazer trabalhar os elementosconceptuais em conjunturas histricas determinadas. No pura coincidncia se o trabalho sobre os conceitos incide aomesmo tempo sobre o Estado de transio do feudalismo aocapitalismo na Frana e sobre as rupturas discursivas (R:Robin) em diferentes momentos da transio (Guilhaumou &Maldidier, 1979: 17).Implicitamente estes trabalhos iam descoberta de diversasespcies discursivas de um gnero ideolgico emprocesso de emergir: a ideologia burguesa dominante. [...

  • 21

    Porm,] paradoxalmente, a fuso dos funcionamentosdescritos nuanava o esquematismo de uma teoria dodiscurso calcada sobre una teoria das ideologias. Esteesquematismo residia em uma concepo simplista dadominao da ideologia dominante. L onde queramosencontrar os processos discursivos dominantes, efeitos daposse do poder de Estado por uma classe dominante,descrevamos, de fato, as formaes intrincadas, as formascomplexas de busca, pela classe dominante e dirigente, doconsenso em conjunturas determinadas. Desta maneira,estes trabalhos concretos desembocaram em uma exignciade reformulao. (op.cit.: 19)Assim, do lado da teoria das ideologias, todo o problemaconsiste em pr a trabalhar a categoria marxista decontradio, aquilo que se designa freqentemente atravsda frmula o primado da contradio sobre a unidade doscontrrios(op.cit.:21)31

    Fazendo trabalhar o conceito de contradio na anlise e,

    conseqentemente, na teoria, Pcheux produz uma crtica das categorias

    materialistas que do fundamento filosfico a teoria do discurso. Essa crtica se

    funda em uma reviso dos conceitos de ideologias dominantes e dominadas e da

    relao entre elas estabelecida, crtica que culmina na afirmao do carter

    paradoxal destes conceitos. Isto obriga a repensar o funcionamento das prticas

    histricas de dominao ideolgica e a revisar criticamente a descrio proposta

    at ento pelas teorias marxistas. Diversos so os textos onde encontramos

    desenvolvida esta crtica, entre eles: Remontmonos de Foucault a Spinoza

    (1980/1990); Dlimitations, retournements, dplacements (1982/1990); Ideology:

    fortress or paradoxical space (1983a); Ideologie Festung oder paradoxer

    Raum? (1983b). Conforme Pcheux, essas elaboraes tericas podem ser

    31 De fait de nombreuses tudes concrtes sinscrevent dans cette perspective et tentent de faire travailler les lementsconceptuels dans des conjonctures historiques donnes. Ce nest pas un hasard si le travail sur des concepts porte lafois sur lEtat de transition du fodalisme au capitalisme en France et sur les ruptures discursives (R.Robin) dans lesdiffrents moments de la transition. [... ] Implicitement ces travaux allaient la dcouverte de diverses espcesdiscursives dun genre idologique en train dmerger : lidologie bourgeoise dominante. [... ] Paradoxalement lefoisonnement des fonctionnements dcrits nuanait le schmatisme dune thorie du discours calque sur une thorie desidologies. Ce schmatisme rsidait dans une conception simpliste de la domination de lidologie dominante. L o onvoulait retrouver les processus discursifs dominants, effets de la dtention du pouvoir dEtat par une classe dominante, ondcrivait de fait des formations intriques, les formes complexes de recherche par la classe dominante et dirigeante duconsensus dans des conjonctures donnes. Ainsi ces travaux concrets dbouchent, eux aussi, sur une exigence dereformulation. [...] Ainsi, du cot de la thorie des idologies tout le problme est celui de la mise en oeuvre de la

  • 22

    entendidas como tentativas (se bem-sucedidas ou no uma outra questo!) de

    compreender algo do fato especfico da ideologia, e, tambm, uma tentativa deretificar a noo de ideologia proletria no marxismo-leninismo com a esperana

    de se livrar da praga do estalinismo (Pcheux, 1983a:33; grifos nossos)32.

    Assim, em Ideology: fortress or paradoxical space (Ideologia: fortificao

    ou espao paradoxal -1983a), retomando o texto de sua autoria Zu rebellieren

    und zu denken wagen (Ousar rebelar-se e pensar) ainda indito, Pcheux afirma:

    O texto trata de conceber a resistncia, a revolta e atendncia revolucionria dentro da ideologia como rupturasinternas do processo de assujeitamento e de interpelao. Aprincipal idia ai defendida que a ideologia dominante no jamais dominante sem contradio; que no haver jamaisqualquer ritual ideolgico sem falhas; e que estas mltiplasfalhas so, de fato, o espao para a constituio dasideologias dominadas. Estas no so nem um simplesreflexo da ideologia dominante na ideologia dominada nemum germe independente sui generis. Desta maneira, asideologias dominadas parecem estar atrapadas no paradoxode uma ambigidade que nunca pra de desloc-las atravsda desregionalizao: uma tendncia desidentificadora dasmassas para o no- Estado. (Pcheux, 1983: 32; grifos doautor)33

    A mesma crtica aparece desenvolvida no texto Remontmonos de

    Foucault a Spinoza (1980/1990):

    O proletariado no pertence pois a um outro mundo queconteria como um germe independente sua prpria ideologia,logo, uma essncia ideolgica certamente entravada,rejeitada, dominada, mas que estaria, contudo, pronta para

    catgorie marxiste de contradiction, ce quon dsigne souvent par la formule lunit des contraires sous le primat de lacontradiction .32 The theoretical elaborations which I have just recalled can be understood as atempts (successful or not is anothermatter!) to comprehend something of the specific fact of ideology, as well as an attmept to rectify the notion ofproletarian ideology, as within marxism-Leninim with the hpe of getting rid of the plague of Stalinism.33 [The text] tries to conceive resistance, revolt and revolutionary tendency within ideology as internal ruptures to theprocesses of subjection and of interpellation. Its principle idea is that the dominating ideology is never dominating withoutcontradiction that there never will exist any ideological ritual without slips and that these multiple slips are in fact thespace for the constitution of dominated ideologies. These are neither a simple reflection of the dominating ideology onthe part of the dominates classes, nor an independent germ sui generis.

  • 23

    surgir toda armada como Athena para dominar tambm, porsua vez, quando chegasse o dia. Trata-se de uma falsaconcepo da ideologia dominada: no se trata na realidadede uma dominao externa constituda como a tampaburguesa sobre a marmita das idias revolucionrias, mastrata-se, sim, de uma dominao que se manifesta pelaorganizao interna mesma da ideologia dominada. [...]Trata-se de pensar, ento, a propsito da ideologia, acontradio de dois mundos em um s, pois conforme afirmaMarx, o novo nasce no antigo, afirmao que foireformulada por Lnin como O Um se divide em dois (op.cit:257-258)34.O Trait des autorits thologique et politique de Espinosamostra que o axioma da identidade no se aplica ao objetoideologia; e toda a prtica da luta de classes sobre o terrenoda ideologia vem confirmar isto: uma ideologia no idnticaa si mesma, ela s existe sob a modalidade da diviso, elas se realiza na contradio que organiza nela a unidade e aluta dos contrrios. (op.cit.:255)35

    A partir desta reviso e reformulao dos conceitos de ideologias

    dominantes e ideologias dominadas Pcheux pde desenvolver uma forte crtica

    torica e, sobretudo, poltica, s correntes marxistas ortodoxas, alertando-as comaguda perspiccia (vlida ainda hoje) sobre o fato de que as representaes e

    prticas polticas esquerda que insistem em estabelecer fronteiras bem

    definidas, em produzir a fortificao e encastelamento das posies ideolgicas,

    em dividir o campo poltico-ideolgico pela oposio polarizada de mundos

    paralelos, impedem no s compreender o funcionamento complexo das

    ideologias dominantes e dominadas no mundo contemporneo, mas, e este seu

    aspecto mais grave, inviabilizam uma prtica poltica eficaz contra as formas

    volteis mas eficientes de dominao ideolgica do capitalismo desenvolvido.

    34 Le proltariat nappartient donc pas un autre monde qui contiendrait comme un germe indpendant sa propreidologie, donc une essence idologique certes entrave, refoule, domine, mais qui serait nanmoins prte sortir toutearme comme Athna, et dominer son tour le jour venu. Cest l une fausse conception dune domination externeconstituant, si lon peut dire, comme un couvercle bourgeois sur la marmite des ides rvolutionnaires, mais aussi, etsurtout, dune domination interne, cest--dire, une domination qui se manifeste par lorganisation interne elle-mme delidologie domine. [...]Il sagit donc de penser, propos de lidologie, la contradiction de deux mondes en un seulpuisque, selon le mot de Marx, le nouveau nat dans lancien , ce que Lnine a reformul en disant : Un se divise endeux .35 Le TTP montre que l axiome didentit ne sapplique pas lobjet idologie ; et toute la pratique de la lutte declasses sur le terrain de lidologie vient le confirmer : une idologie est non identique soi-mme, elle nexiste que sousla modalit de la division, elle ne se ralise que dans la contradiction que organise en elle l unit et la lutte des contraires.

  • 24

    Encontramos esse grito de alerta no texto Ideologie- Festung oder paradoxer

    Raum? (1983b)36, onde Pcheux afirma:

    :

    Finalmente, esta metafsica marxista que continuaconsiderando a classe trabalhadora como um objeto cegapara sua decomposio social, que a afeta principalmentenos pases ocidentais, por meio de um processo combinadode fragilizao do indviduo (experiencia de perder as razes,da solido, do vazio interior) e do Estado cuidando de seubem-estar (Pcheux, 1983:384; grifos do autor).Os campos discursivos do capitalismo desenvolvido, poroutro lado, principalmente aqueles que se desdobraram nombito de seu ncleo, des-locaram o discurso poltico:trabalha-se aqui sem fronteiras pr-estabelecidas, uma vezque esse trabalho diz respeito s fronteiras da prpria lngua,do significado dos enunciados, e da posio de sujeito, quese deixam inscrever aqui: esses campos onde o mesmoest inscrito no outro removem ininterruptamente os pontosdiscursivos de submisso/ assujeitamento ideolgicos e oslugares, a partir dos quais possvel de enunciar aresistncia, sem que a lgica dessa remoo possa jamaisser descrita em um sistema fechado... No existe um Jogode todos os jogos (op.cit.:385)37.

    E aqui nos deparamos com a originalidade da proposta de M. Pcheux e da

    articulao conceitual lngua/discurso/ideologia/histria/sujeito que ele prope.

    Pela linguagem, pelo funcionamento da lngua na histria, pelas evidncias

    produzidas pelo discurso, podemos apreender a natureza paradoxal dessas

    realidades complexas a partir das quais a Lingstica, a Semntica, a Sociologia, a

    Psicologia, a Filosofia constituem seus objetos de conhecimento. tambm pelo

    discurso que podemos compreender os efeitos contraditrios e paradoxais dessas

    36 Ideologia fortificao ou espao paradoxal? (1983b). Agradeo a Jos Horta Nunes (UNESP- S.J. do Rio Preto) porter me facilitado uma cpia do texto na sua verso original em alemo e a Crmen Bolognini Zink (UNICAMP) por mepermitir aceder traduo do texto antes de sua publicao neste volume.37 Schlielich ist diese marxistische Metaphysik, die weiterhin die Arbeiterklasse fr ein Objekt hlt, blind fr derengesellschaftliche auflsung, die sie gegenwrtig vor allem in den westlichen Lndern betrifft, ber einen kombiniertenProze des Brchigwerdens des Individuums (Erfahrungen der Entwurtzelung, der Einsamkeit, der inneren Leere) und derwohlfahrsstaatlichen Bemutterung. [...]Die diskursiven Rume des entwickelten Kapitalismus dagegen, vor allem die in seinem Kernbereich sich entfaltenden,ent-orten den politischen Diskurs : das Schillernde arbeitet hier ohne vorbestimmte Grenzen, da diese Arbeit dieGrenzen der Sprache selbst betrifft, des Sinns der Aussagen und der Subjektpositionen, die sich hier einscreiben lassen:diese Rume, wo das Selbst im anderen gefat ist, verschieben unablssig die disrkursiven Punkte ideologischer

  • 25

    evidncias nos processos de identificaao/subjetivao poltico-ideolgica. ,

    enfim, atentando para o funcionamento primordial da linguagem na luta ideolgica

    que podemos trabalhar teorica e politicamente formas diversas de resistncia:

    A luta ideolgica no tem nada a ver com o chamadomalentendido semntico que daria lugar a problemas delacunas que poderiam desaparecer sob a luz da formulaode uma semntica universal. No terreno da linguagem, a lutaideolgica de classes uma luta pelo sentido das palavras,expresses e frases, uma luta vital para cada uma dasclasses que se confrontam ao longo da histria at opresente.(Pcheux, 1978:266)38

    Neste sentido, Pcheux prope considerar as lutas de deslocamento

    ideolgico que intervm na reproduo/transformao das relaes de classe,

    sem se inscrever na lgica da fortificao ou oposio estvel de posies

    prvias.

    Trata-se, portanto, de uma srie de choques quequestionam a definio e fronteira do discurso poltico, namedida em que se baseia nos processos atravs dos quais odomnio/explorao capitalista se reproduz (no campo dasexualidade, da vida privada, do ambiente, da educao,etc....) adaptando-se, transformando-se, reorganizando-se.Pois reproduo nunca significou repetio do mesmo. Asproposies de Althusser sobre os Aparelhos Ideolgicos doEstado, que procuram dar continuidade a determinadascolocaes de Gramsci a respeito do conceito de hegemoniae da proximidade invisvel do Estado no cotidiano, constituemuma ajuda valiosa nessa direo, se elas forem interpretadasde tal forma que os processos de reproduo ideolgica (queproduzem a evidncia do sentido, na qual o sujeito seconstitui como sujeito pleno de sentido, origem de si mesmo,de seu pensamento, gestos e palavras) sejam tambmconsiderados como lugar de resistncia mltipla. Lugar ondesurge constantemente o imprevisvel, porque cada ritual

    Unterwerfung/Subjektion und die Orte, von denen aus Widerstand sich aussagen lt, ohne da die Logik dieserVerschiebungen jemals in einem geschlossenen System beschrieben werden knnte...Es gibt kein Spiel aller Spiele.38 Thus the ideological struggle has nothing whatever to do with so-called semantic misunderstanding giving rise tovacuous problems which will disappear in the light of the formulation of an universal semantics. On the terrain oflanguage, the ideological class struggle is a struggle for the sense of words, expressions and utterances, a vital strugglefor each of the two opposing classes which have confronted each other throughout history, right up to the present.

  • 26

    ideolgico continuamente se depara com rejeies e atosfalhos de todos os tipos, que interrompem a perpetuao dasreprodues. (Pcheux, 1983b:383)39

    So essas mltiplas lutas de deslocamento ideolgico, pequenas e

    instveis, mas nunca insignificantes na sua originalidade, que necessrio

    compreender se se quer entender o funcionamento da sociedade e da histria,

    que no so nem uma justaposio catica nem uma integrao orgnica de

    sujeitos. Pcheux chama nossa ateno para este aspecto, tambm no seu texto

    O Discurso Estrutura ou Acontecimento (1983/1990):

    No h identificao plenamente bem sucedida. i.e., ligaoscio-histrica que no seja afetada de uma maneira ou deoutra, por uma infelicidade no sentido performativo dotermo- i.e. no caso, por um erro de pessoa, i.e. sobre o outro,objeto da identificao. [...] mesmo talvez uma das razesque fazem que exista algo como sociedade e histria, e noapenas uma justaposio catica (ou uma integrao supra-orgnica perfeita) de animais humanos eminterao...(op.cit.:57; grifos do autor)

    Podemos assim voltar s frases que retivemos das resenhas aparecidas na

    poca da publicao de Les Vrits de la Palice. Nelas podemos verificar o

    equvoco constitutivo das posies contra as quais Pcheux desenvolveu ao longo

    de sua vida uma crtica terica e poltica feroz, a saber, a definio da sociedade eda histria como:

    - uma coisa, um mecanismo, uma mquina que pode funcionar mal e que

    portanto precisa de controle, monitoreio e reparao; ou como

    39 Die Rede ist also von einer Reihe von Zusammensten, die Definiton und Grenzen des politischen Diskurses inFrage stellen, indem sie sich auf die Prozesse beziehen, durch die (auf dem Gebiet der Sexualitt, des Privatlebens, derUmwelt, der Erziehung, usw.) die kapitalistische Herrschaft/Ausbeutung sich reproduziert, indem sie sich anpat,verwandelt, reorganisiert. Denn Reproduktion hie nie Wiederholung des Gleichen. Althusser Aussagen ber dieideologischen Staatsapparate, die Bestimmte Einsichten Gramscis zum Begriff der Hegemonie und sur unsichtbaren Nhedes Staats im Alltag weiterzufhren versuchen, bilden eine wertvolle Hilfe in dieser Richtung, wenn man sie sointerpretiert, da die ideologischen Reproduktionsprozesse (die Sinn-Evidenzen hervorbringen, welche das Subjekt alsSinn-volles Subjekt, Ursache seiner selbst, seiner Gedanken, Gesten und Worte konstituieren) auch als Orte vielfltigerWiderstnde gefat werden, wo unaufhrlich Unvorhergesehenes auftaucht, weil jedes ideologische Ritual fortwhrendsich an Verwerfungen und Fehllesistungen aller Art stt, welche die Ewigkeit der Reproduktion brechen.

  • 27

    - um agente animado, considerado como um projeto articulado em comum a

    partir de tomadas de deciso consensuais; a idia de uma comunidade de

    interesses ou de uma racionalidade do agir coletivo.

    Contra essas posies, Pcheux defende a natureza paradoxal dessas

    realidades complexas e da singularidade das lutas que as atravessam:

    A singularidade dessas lutas de deslocamento ideolgicoque ocorrem nos mais diversos movimentos popularesconsiste na apreenso de objetos (constantementecontraditrios e ambigos) paradoxais, que so,simultaneamente, idnticos em si mesmos e se comportamantagonicamente em relao a si mesmos [...] Esses objetosparadoxais (com o nome de Povo, Direito, Trabalho, Gnero,Vida, Cincia, Natureza, Paz, Liberdade) funcionam emrelaes de fora mveis, em transformaes confusas, quelevam a concordncias e oposies extremamente instveis.(op.cit.: 383)40

    no seio destes paradoxos, na materialidade ideolgica destes nomes, que

    a semntica toca na poltica, indefectivelmente. Fato ao qual aponta Pcheux

    quando, na pgina 30 de Les Vrits de la Palice (1975/1988), destaca os efeitos

    gaguejantes que esses objetos/sujeitos (as massas, a vontade do povo, a Frana)

    produzem nas mquinas semnticas e informticas de classificar. Ento, Pcheux

    escreve concluindo: Os frios espaos da semntica exalam um sujeito ardente.

    Com essa metfora quero terminar este meu texto. Lembrando dos

    milhares de sujeitos ardidos pelo sol, pela sede, pela fome, pela guerra, pela

    indiferena; e lembrando, tambm, dos outros tantos que ensaiam formas vrias

    de resistncia na rua, no campo, na selva, e fazem arder as mquinas de

    classificar que se esforam sempre renovadas em prend-los, enquadr-los,

    esmag-los nas identidades previsveis do discurso administrativo, do direito, do

    40 Die Eigenart dieser ideologischen Bewegungskmpfe, die sich durch die verschiedenen Volksbewegungenhindurchziehen, besteht im Verweis auf paradoxe (stndig widersprchliche und zweideutige) Objekte, die zugleichidentisch mit sich sind und sich antagonistisch zu sich selbst verhalten. [...] Solche paradoxen Objekte (unterBezeichnungen wie Volk, Recht, Arbeit, Geschelcht, Leben, Wissenschaft, Natur, Frieden, Freiheit...) funktionieren inbeweglichen Krfteverhltnissen, verwirrenden Wendungen, die zu ungemein unstabilen bereinstimmungen undGegenstzen fhren.

  • 28

    consenso, do jogo democrtico, das liberdades individuais, do livre mercado, da

    guerra preventiva, da produtividade acadmica.

    E lembrando de e querendo compreender esses sujeitos teimosos,

    ensimesmados e ardentes, que resistem coletivamente ao rolo compressor das

    identificaes individualistas e universalizantes que fazem do sujeito mero suporte

    biolgico de deveres e direitos, que defendo e desejo, nos frios espaos do

    academicismo universitrio, alguns poucos sujeitos ardentes, que levando aos

    extremos as questes imperdoveis, nos sacudam, como Michel Pcheux, com

    seus textos malditos.

  • 29

    BIBLIOGRAFIA

    COUSINS, Mark & Athar HUSSAIN. The question of ideology : Althusser, Pcheuxand Foucault. In: J. LAW (org) Power, Action and Belief. A New Sociology ofKnowledge? London, boston, Routledge& Kegan Paul, 1986.FAYE, Jean P. Langages totalitaires. Paris, Hermann, 1972.FRANOIS, Frdric. Compte-rendu. Michel Pcheux. Les Vrits de la Palice.Journal de Psychologie normale et pathologique. Ano 73, p.490-491. Paris, 1976.FREGE, Gottlob. Lgica e Filosofia da Linguagem. Trad. De Paulo Alcoforado.So Paulo, Cultrix/Edusp, 1978.GABAUDE, Jean M. Compte-rendu. Michel Pcheux. Les Vrits de la Palice.Revue Philosophique de Louvain, vol. 78, nm. 37, p.159-160. Louvain-la Neuve,fevereiro 1980.GUILHAUMOU, Jacques. & D. MALDIDIER. Courte critique pour une longuehistoire. Lanalyse du discours ou les (mal) leurres de lanalogie. Dialectiques.Nm. 26. p. 7-23. Paris, 1979.INDURSKY, F. A fragmentao do sujeito em anlise do discurso. In: INDURSKY,F. & M.C. CAMPO,orgs. Discurso, memria, identidade. Porto Alegre, Sagra-Luzzatto, 2000. p.70-81MALDIDIER, Denise. "(Re)lire Michel Pcheux aujourd'hui". In : L'inquietude dudiscours. Paris, ditions des Cendres, 1990. Trad. de Eni Orlandi. A inquietaodo discurso. Campinas, Pontes, 2003.MARCELLESI, J.B. & B. GARDIN. Introduction la sociolinguistique : lalingusitique sociale. Paris, Hachette, 1974.MILN-RAMOS, J. Guillermo. A impostura da letra: escrita e subjetivao natransio dos assujeitamentos. Dissertao de Mestrado em Lingstica.Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP, 2001.ORLANDI, Eni P. de. Anlise do Discurso: princpios e procedimentos. Campinas,Pontes, 1999.-------------------------. Discurso e Texto. Formulao e circulao dos sentidos.Campinas, Pontes, 2001.PCHEUX, Michel. Les Vrits de la Palice. Linguistique, Semantique,Philosophie. 1 ed. Paris, Maspero, 1975. Trad. Eni P. de Orlandi et alii. Semnticae Discurso. Uma Crtica Afirmao do bvio. Campinas, Editora da UNICAMP,1988.------------------------. Are the Masses an inanimate Object ? In : D. SANKOFF (org.)Linguisitic Variation. Nova York, Academic Press, 1978.------------------------. Effets discursifs lis au fonctionnement des relatives enfranais. Recherche de psychologie sociale, nm 3, p. 97-102. Paris, 1981.

  • 30

    Publicado em D. MALDIDIER. L'inquietude du discours. Paris, ditions desCendres, 1990.------------------------. Dlimitations, retournements, dplacements. LHomme et laSocit, nm. 63-64. p.53-69. Paris, 1982. Trad. Jos H. Nunes. Delimitaes,Inverses, Deslocamentos. Cadernos de Estudos Lingsticos, Nm. 19, p. 7-24.Campinas, Departamento de Lingstica, IEL/UNICAMP, 1991.------------------------. Le discours: structure ou vnement?(1983) In : D.MALDIDIER LInquietude du discours. Paris, Ed. des Cendres, 1990..Trad: Eni P.de Orlandi. O discurso: Estrutura ou Acontecimento Campinas: Pontes, 1990.------------------------. Ideology : Fortress or Paradoxical Space. Das Argument, nmespecial 84 Rethinking Ideology. p.31-35. Berlin, 1983a------------------------. Ideologie Festung oder paradoxer Raum? Das Argument,nm 139, p. 379-387. Berlin, 1983bREIX, Andr. Compte-rendu. Michel Pcheux. Les Vrits de la Palice. RevuePhilosophique de la France et de ltranger, nm 1, p.104-105. Paris, janeiro-maro 1976.ZANDWAIS, Ana. A forma-sujeito do discurso e suas modalidades desubjetivao: um contraponto entre saberes e prticas. In: I SEMINRIO DEESTUDOS DE ANLISE DO DISCURSO, Porto Alegre, UFRGS, novembro 2003(publicado neste volume)ZOPPI-FONTANA, Mnica. Um estranho no ninho: entre o jurdico e o poltico, oespao pblico urbano. RUA-Revista do Ncleo de Desenvolvimento daCriatividade, nmero especial. P. 53-65. Campinas, NUDECRI, 1999.---------------------------------. Lugares de enunciao e discurso. LeituraAnlise doDiscurso. Revista do Programa de Ps-graduao em Letras e Lingstica. Nm.23, Macei, EDUFAL, p. 15-24, jan/jun 1999 (impresso em ) 2002.--------------------------------. Identidades (in)formais. Contradio, processos dedesignao e subjetivao na diferena. Organon. Porto Alegre, 2003, no prelo.