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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES
Mephisto Sobre a Alienação, Paixão e Desejo na Modernidade
Monografia de Graduação
São Paulo, 2010
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Faculdade de Ciências Sociais
Resumo
Mais que um período histórico, mais que uma sociedade
específica, Modernidade é todo um ambiente. Repleta de contradições,
ela se rege pela lógica da mudança constante e ininterrupta, agindo
dialeticamente para destituir o velho e instituir o novo, tornando os
homens súditos no reino do efêmero, escravos da própria tirania.
Surge Mephisto como o condutor da aventura; aquele que torna os
valores e as relações tão fracos que se dissolvem e se perdem antes
mesmo de se solidificar. O presente trabalho se presta a encontrar suas
causas eficiente e final, definir sua forma e matéria, bem como narrar
como se deu seu movimento ao longo dos séculos, fazendo uso da
alegoria de Goethe: o Fausto
Palavras-Chave: Mefistófeles, Modernidade; Alienação; Paixão; Desejo.
Índice
Prólogo................................................................................................... 5
Introdução............................................................................................. 9
Parte I - Do Reino das Trevas
Capítulo I............................................................................................... 12
Capítulo II.............................................................................................. 19
Capítulo III............................................................................................ 29
Capítulo III............................................................................................ 35
Capítulo IV............................................................................................ 44
Parte II - O Vento das Transformações: A Consolidação de uma Era
Revolucionária
Capítulo V.............................................................................................. 45
Capítulo VI............................................................................................ 54
Capítulo VII........................................................................................... 60
Capítulo VIII......................................................................................... 66
Capítulo IX............................................................................................ 74
Parte III - Nos Braços do Demônio: A Aventura Mefistofélica do
Homem
Capítulo X.............................................................................................. 81
Capítulo XI............................................................................................ 89
Capítulo XII........................................................................................... 96
Capítulo XIII......................................................................................... 103
Referências Bibliográficas................................................................... 112
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
1
Prólogo Eu sou Ele, Aquele que Não Nasceu
Ao cair do luar, dissipados os espíritos malignos – invocados a
sombra de um mundo assolado pelo desconhecido –, percebe o sábio
Doutor Fausto que aquilo que procurava com tanta avidez está mais
próximo do que imaginara. Quem poderia supor que um animal
inferior, de baixa casta evolutiva, sempre subjugado ao capricho da
vontade humana, abrigado sob a bandeira do desdém e da compaixão,
conservaria a essência de uma era? Ora, não poderia ser diferente:
Fausto assiste a mutação do cão completamente estarrecido e
impressionado; sente o medo correr desenfreado por suas veias,
alimentando o apetite insaciável de um coração tomado pelo
desespero. No fim, assusta-se Fausto mais com sua falha, do que com a
presença do misterioso visitante. A mente do nobre doutor sofre
assolada pelo fantasma da dúvida: esteve o demônio presente
enquanto fera, escondido na névoa da irrelevância desde sempre, ou,
aquilo que invocou o diabrete fora a ordem expressa exercida em
função de seus velhos hábitos? Desde o início desconfiara que magia
houvesse de se encontrar na besta, mas, deixou-se levar por sua
aparência e seus bons truques – segundo Wagner, tão bom cão era
digno de ser animal de tão bom sábio... Ah como a vaidade é perigosa
– deve pensar o doutor; sem dúvida, pecado terrível... Como pode o
brilhante Fausto deixar-se levar por algo tão desprezível? Logo ele,
aquele que só o amago das coisas interessa, e a aparência não lhe causa
nada, senão tédio... Cair do céu não deve ser tão duro quanto
sobreviver ao impacto... Sofre Fausto.
Seja como for, sabia o nobre homem que não se volta ao
passado, e remorsos antigos não trariam nenhuma ajuda contra
aflições modernas; era preciso uma solução presente, urgente. Seu
coração clamava pelo conhecimento da essência daquilo com que
lidava. Não obstante, Fausto mantém-se firme, põe-se a invocar os
poderes sagrado, questionando a corrupta forma. Afinal, não haveria
de ser da natureza do Blasfemo, inimigo dos Céus, parecer o que não é,
“uma vez que a aparência subjuga a verdade, e é senhora da
felicidade”1 ? Definitivamente, é para este lado que se volta por
completo o Pai da mentira, pois desta arte é mestre. Fausto estava
seguro quanto a isso. E, sem hesitar, dissimuladamente, impetuoso e
altivo, conjura a magia arcana, dominando e prendendo a estranha
criatura, forçando-a a manifestar sua verdadeira face. Agora, cercado
pelo feitiço, perdido na fumaça, o cão negro infla e cresce
vertiginosamente, de maneira colossal; eis que, de trás do fogão,
sorrateira e repentinamente, à medida que o enxofre se dissipa, a besta,
agora transfigurada em um jovem estudante, vem para diante dos
olhos sérios de Fausto – espectador de honra do movimento da
história.
De modo arrogante, o viandante escolar reclama do imenso
estardalhaço feito pela gritaria do perspicaz alquimista. A presença do
dócil menino, de tom satânico, e desenvoltura sarcástica, transmite ar
de inocência, movimenta a incredulidade do resoluto homem, que
apenas ri, manifestando seu desdém ao parecer-ser. Ora, se é preciso
cuidado para distinguir, pois se os bons vêm como ovelhas em meio
aos lobos, não haveria de ser o contrario verdadeiro também? Fausto
não se haveria de se deixar vencer novamente, não desta maneira.
Com agressividade exclama à criatura que se apresente, sabendo que
assim poderia bem saber de suas manhas. Não obstante poderia ter
tido menos audaz resposta o perspicaz doutor:
“Quem eu sou? Parte da força,
que, empenhada no mal, o bem promove. (...)
Eu sou o espírito
que estorva sempre. E, com razão, pois tudo
quanto nasceu merece aniquilado;
portanto era melhor não ter nascido.
Meu elemento é o que chamais vós outros
Destruição, Pecado, o Mal, em suma” 2
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
2
Príncipe da soberba, é no pecado que investe, é da privação que se
diverte, aquele que outrora fora considerado o mais alto e radiante
arcanjo da abóboda celestial, agora se limita à condição de ímpia ave
imunda do mais profundo Tártaro, apresentando-se ao doutor como
Mephistopheles, seu criado e servo. Ao redor do diabo todas as luzes
se apagam, num piscar de olhos todo foco de brilho toma-se em trevas
e se finda rapidamente – a aversão à luz é colossal3 –: o maior dos
lobos, na pele mais sensível e amável de cordeiro, aparece ao
obstinado cientista. Afinal, não reside na astucia a maior virtude do
diabo? Sem sombra de dúvida... Diabole virtus in lumbas est. Vive o
demônio da exploração de seu pecado favorito: a vaidade – algo que
Fausto descobre a duras penas. É nela que reside o maior combustível
a favor de sua dissimulação, simulação e emulação; artes que não
visam outra coisa, senão bem colorir a real natureza das coisas.
Subestimado desde o princípio, um simples olhar jamais diria que o
singelo estudante é o mestre do universo 4; e agora lá esta ele, como
um gênio, pronto para abrir o portal dimensional da mais incrível – e
mortal – viagem do nobre homem, aquela na qual vão se realizar todos
os seus maiores – e mais sombrios – desejos, através das suas maiores
fraquezas.
“Deixa-me entreter-te com minha arte” exclama o demônio de
maneira sórdida; e Fausto, singela e relutantemente, sente-se sem
escolha5, há o anseio, e logo vem à vitória do diabólico: ele se deixa
levar na movimentação da corja de espíritos malignos manipulados a
paixão da poderosa criatura; entrega-se e dá o primeiro passo para
uma ‘nova vida’. Mephisto pode, e vai, dar ao alquimista aquilo que
ele não tem, e seu coração sente a falta, clama e roga todas as noites:
quer Fausto a vida. É no viver, e apenas no viver, que reside a
aventura mefistofélica que irá mergulhar o avido cientista. O Espírito-
Rei da negação vai abrir caminho a Fausto – e posteriormente a todos
no mundo – do rumo desconhecido; é ele o flautista nos portões do
amanhecer, que indica a entrada de um mundo mágico de progresso,
aventura, e realização de prazeres jamais dantes visto. Basta que
Fausto queira, basta que aceite, basta que pactue, e, mediante o bem
emprego do mal, Mephistopheles pode mostrar, demonstrar, formar e
transformar tudo, num simples passe de mágica. O preço é mais do
que simples: sua alma. Deve Fausto então vender sua alma para
alcançar aquilo que tanto sonha.
Ora, o vaidoso Fausto crê que seus desejos não têm satisfação
garantida neste mundo; tem certeza de que a gana que consome seu
espírito é insaciável e jamais triunfaria o demoníaco ser, faça o que
fizer. Ninguém, nem mesmo o grande Arconte, dispondo de todos seus
recursos teria êxito. Aceita está à proposta. Começa a se pintar de preto
todas as coisas: sua rua, sua porta, as flores, as meninas com seus
vestidos de verão, seu coração. Fausto inicia a incrível e fantástica –
terrível e assustadora – aventura na modernidade.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
3
Introdução Correndo com o Diabo
O opositor declarado dos céus e tentador da humanidade, a
astuta e sórdida criatura em questão que surge diante do Doutor
Fausto é, em si, a representação metafórica – o arquétipo – mais
adequada daquilo que se conhece por Modernidade. Naturalmente, a
produção do diabólico personagem tem por espelho aquilo que vem ao
mundo como a grande novidade ao longo dos últimos séculos, e que
percorre toda a vida do autor do celebre ‘Fausto’. Afinal, dentre os que
possuem o mínimo de conhecimento a cerca do assunto, não há quem
acredite que o Magnum Opus do poeta alemão Johann Wolfgang Von
Goethe não seja a construção de toda sua vida, relatada fase a fase: a
personagem muda, como mudam os homens; a personagem forma seu
caráter, como formam os homens, e tudo pode ser percebido por uma
leitura minuciosa e atenta nos monólogos e diálogos do cientista, ao
longo das duas partes da tragédia. O Fausto é sua vida e sua vida é o
Fausto; o trabalho de uma trajetória inteira, inteiramente moderna, do
ímpeto de sua mocidade a cautela de sua velhice. Modernidade é
espectro que persegue o autor, comum a Mephistopheles; nada além
do próprio diabo, figura lendária, que lhe acompanha a compreensão
os adjetivos enigmático e misterioso, aquele que sempre causou
frouxos de temor nos homens, poderia encarnar tão bem a
Modernidade. Sem sombra de dúvidas, a obra é uma reunião do
espírito daquilo que é “viver a Modernidade”, do “andar ao lado do
demônio”.
É o Diabo a encarnação da ideia de Modernidade – tanto
quando o Dr. Fausto o é do ser humano, e neste contexto, um não
poderia existir sem o outro. A poesia de Goethe retrata um dado
momento da civilização ocidental com precisão: o acúmulo de tempo e
espaço que o demônio encarna através do acúmulo do conhecimento,
do montante de experiência, de toda história, revertida em uma era: a
Modernidade. Ela, como demônio que a luz odeia, não possui carne, é
espírito livre e rebelde, vive enquanto acumulo e difusão de costumes
e práticas, engendradas ou despertas; faz seus acordos, realiza desejos
e escraviza vontades; atua, ao mesmo tempo, local e globalmente,
promovendo, por sua vez, de maneira unida, ininterrupta e
simultânea, a destruição e a construção. O Demônio não se apega ao
tempus, mas faz uso dele; tem natureza dupla, mortal e imortal. Ao
longo dos séculos, como um Rei Midas da perdição, vai tomando todo
o espaço que tem contato, transformando tudo, corroendo a solidez,
geração por geração, como um vírus implacável na sua gana de
possuir, controlar e perecer o corpo adoecido. Torna-se, da tímida
condição de besta irrelevante, a margem da sociedade, à poderosa Era
hegemônica, senhora do destino dos mortais humano. Vem como
Princeps Huius Mundi – nas palavras sublimes do apóstolo São João – à
medida que conquista, uma após outra, as almas dos homens,
perdidos em seus pecados, sob sua tentação. Enquanto o Dr. Fausto
carrega em si a toda humanidade: angústias, prazeres, dores, ideais,
vontades, projetos, todos na mira de uma expressão de generalidade
da forma humana, nas mais variadas possibilidades de transito, o
universal da espécie na sociedade, no seu máximo desejo de ser
moderno, de abraçar o demônio a fim de concretizar a seus anseios de
depravação e grandeza, residentes nas paixões da alma, buscando
sempre o avante, e vivendo no ambiente terrível e cruel em que nada
pode ganhar caráter sólido na vida dos homens, pois, todas as coisas
perdem seu encanto muito antes de serem amadas. As flores que antes
pareciam belas e exuberantes por mais tempo, murcham e definham,
tornam-se velhas e ultrapassadas, perdem a vida na velocidade da luz,
e desaparecem derradeiramente: “tudo que é sólido desmancha no ar” 6... Não há máxima mais adequada a sua razão de ser. No fim, todo o
ambiente de Modernidade é Mephisto, bem como é Fausto todos os
homens7.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
4
Parte I
Do Reino das Trevas Ergue-se o Pandemônio Infernal
“Como explicar que na cristandade tenha sempre havido, quase desde
os tempos dos apóstolos, tantas lutas para se expulsarem uns aos
outros de seus lugares, quer por meio de guerra externa, quer por meio
de guerra civil? Tanto estrebuchar a cada pequena aspereza da própria
fortuna, e a cada pequena eminência na dos outros homens? E tanta
diversidade na maneira de correr para o mesmo alvo, a felicidade,
como se não fosse noite entre nós, ou pelo menos neblina? Estamos
portanto ainda nas trevas.”
(Thomas Hobbes)
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
5
Capítulo I
O Reino dos Céus, o Princípio...
Naturalmente, a ciência, na sua máxima excelência, se presta,
em suas buscas, à investigação das causas primeiras dos fenômenos,
pois é fato que tudo nesta terra deva ter aquilo que lhe dá princípio.
Quanto a Modernidade, é de conhecimento de muitos os mais variados
fatos históricos dispersos (comércio, modernização, urbanização,
revolução, alteração político-econômico-social, etc.), os quais,
irracionalmente, vão conferindo mudanças significativas ao mundo
antigo, alterando seu contexto, permitindo, mais adiante, que o
ambiente moderno tome seu espaço. É, metaforicamente, a invocação
dos espíritos diabólicos em função das necessidades aparentes que se
seguem ao longo das mudanças. Mas, seria razoável mais precisão:
verificar qual é de facto sua causa eficiente, isto é, a ação que
desencadeia todo o processo, aquilo que traz o cão infernal a casa do
jovem necromante – tendo ciência, naturalmente, que a Modernidade é
a rompedora total do curso da história vigente, destruidora de toda
uma tradição, para ditar e escrever a sua história e a suas tradições,
fazendo o mundo a sua imagem e semelhança. Não obstante, devemos
partir então do ponto em que a dinâmica de mudanças aparece com
força, se acentua, demonstra relevância no cenário histórico e ocasiona
adiante consequências graves para a ruptura do espírito em vigor: a
saber, o movimento político que tinha como finalidade maior colocar a
Terra Santa de Jerusalém sob a soberania cristã ocidental, as gloriosas
Cruzadas8.
O movimento cruzado força uma imensa transformação na
sociedade europeia, forjando as bases para a ruptura, que doravante,
iniciaria uma nova Era. Esse fato se deu muito pela condição que vivia
a sociedade ocidental. Em meados do século XI, período histórico
denominado ‘Baixa Idade Média’, ela caracterizava-se,
sociologicamente, como uma Sociedade de Ordem Tradicional, regida
por uma matriz comum de valores, os quais se conservavam pela
tradição relevada a partir da vinda do Cristo-Rei, assegurada pela
detentora legitima do poder espiritual na terra: a Igreja Católica9;
extremamente pragmática nas ações sociais, reinava na sociedade
europeia a experiência comum e a eficácia dos fins; rudimentar em
assuntos comerciais, imperava a condição agrária; de população larga
e crescente ao passo que novas técnicas de arado e aproveitamento da
terra surgiram, aumentando a produção de alimentos; inundada por
uma longa paz, após o fim das invasões bárbaras e assentamento dos
reinos; em suma, de relativa estabilidade sócio-política. Com o
surgimento das Cruzadas, esse cenário vai, aos poucos se modificando,
até alcançar um estágio de total negação a seu princípio regente,
adquirindo caráter radical e extremo, contrariando-o, dando forma a
uma ruptura. Resta, pois, verificar a razão pela qual essa oposição se
dá empiricamente. E, para responder essa questão devemos olhar para
o ponto que é axioma da discussão: a filosofia (o modo de vida) em
vigor anterior ao fenômeno.
Como fora dito, a Igreja Católica Apostólica Romana era
senhora absoluta na questão da organização social. A ela cabia o
“monopólio” dos valores engendrados intrinsecamente nas leis de
cada localidade da Europa, os quais tomavam forma ao passo se
faziam hábito no comportamento dos homens, cotidianamente,
alcançando assim a naturalização. Seria ingenuidade supor então que
os valores humanos estariam apartados da questão religiosa. Ora, não
existe Idade Média laica. Todos os valores tinham como base a
natureza, o bem e a virtude – mesmíssimos dos antigos – somados a
carga da tradição revelada da ética católica segundo o Evangelho,
tendo por finalidade primeira se constituir como freio necessário à
tendência de uma possível conduta malévola do homem, atuando
como regramento da vida terrena em consonância com a razão. Em
suma, a lei, enquanto relação necessária entre partes, era, em essência,
aquilo que deveria “forçar” o homem a fazer o bem e fugir do mal10,
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
6
isto é, recobrar sua verdadeira natureza, retirada com o paraíso
perdido, no momento do pecado original. Na tradição católica vigente
naquele momento, encontram-se os cristãos no neste mundo apenas
‘de passagem’. Seu fim está na transcendência, no reencontro com o
Reino do Altíssimo, na redenção em Cristo (que veio a Terra para dar a
possibilidade de salvação aos homens). Desse modo, tudo quanto é
feito na terra tem importância apenas quando tem esse fim em vistas.
A Igreja, enquanto guardiã da fé e da moral, e detentora legítima da
mediação do plano terreno com o plano espiritual, centra o mundo no
Eterno (Deus é o centro da sociedade, e não o homem... Ele criou a
sociedade, as leis são de uma maneira, as coisas são de uma
determinada maneira, e assim devem permanecer), tudo devendo ser
sólido e imutável. Para isso, segue os postulados expressos de ordem,
estática e conservação dos valores de toda a comunidade de Cristo (a
Europa Cristã) através da manutenção da tradição vigente.
Ademais, à visão vigente, o Estado se constitui então como
aquele que vai, através do império da lei, coibir o pecado, tornando-se
instrumento que cessa o mal pelo mal – na posição agostiniana da
Cidade dos Homens11. Fato que justificava a condição política da
época: descentralização e dispersão12. A Europa estava pulverizada por
diversas unidades políticas autônomas de esfera de poder e influência
reduzidíssima, tendo sempre a Igreja Católica como tribunal a que se
possa recorrer. A Santa Sé flutuava sobre todos eles, como mediadora-
chefe de todos os conflitos. Era seu o poder de aplicar o direito
(herdado da antiga Roma), e aos reis, príncipes, barões, condes, bem
como todo e qualquer tipo de senhor, cabia o dever de reconhecer e
acatar sua autoridade como palavra final na instancia de jurisdição de
direito e justiça. O alcance do poder dos soberanos restringia até onde
“iam os olhos”, e as fronteiras eram indefinidas ou naturalmente
constituídas (domínios iriam até vales, planícies, rios e etc.). Neste
momento não existia uma ideia de nação, os domínios estavam
atrelados unicamente para com seus senhores. Um homem mata e
morre a serviço da glória do domínio a que serve, seja este da Igreja
(por servidão a Santa Sé, pois o Papa era, como muitos outros, apenas
mais um príncipe neste momento, detendo todas as funções que lhe
cabia como tal), do imperador (quando do Sacro Império Romano-
Germânico), dos reis e da nobreza (constituindo obrigação de
suserania e vassalagem, na condição de súdito), mas, jamais por uma
pátria. Ir à guerra, ao combate e a violência por um domínio estava
estritamente ligado à proteção da fé, da família, dos amigos e da
comunidade, e não de uma ideia de nação.
Neste panorama começa o deslocamento e movimentação dos
europeus em direção ao Reino dos Céus. As Cruzadas enfrentam então
problemas gravíssimos nos âmbitos políticos e militares, afinal, para
que fossem eficazes e se tornassem uma realidade neste cenário, existia
a necessidade de uma logística de ação que estava longe de ser uma
realidade naquele momento. Como deficiência central podemos
destacar (1) a inexistência de um exército católico unitário, de ofício,
ordenado e liderado por lei comum, na realidade, o que se tinha era
uma verdadeira colcha de retalhos, um grande conglomerado dos
exércitos dos diversos domínios, contrariamente ao inimigo árabe,
sempre em unidade; (2) os exércitos dos reinos feudais não eram
unitários, muitos menos organizados e unificados, (3) compunham-se
da milícia real, somada a inúmeras milícias independentes, movidas
por seus próprios interesses, oriundas de vários domínios, servos de
vários senhores, (4) que estavam ou sob o julgo de comandante
provindo da nobreza feudal (o qual no mais das vezes nem possuía
experiência alguma em combates), ou de um capitão, seja mercenário
(neste caso, um oportunista que visava apenas sua própria glória) ou
do feudo (o único caso realmente adequado, pois este era sim fiel e
estrategista de ofício), ademais (5), outrora essas milícias chegavam a
ponto de serem mercenárias, emprestadas ou oportunistas (quando
uma reunião de camponeses, vilões, criminosos e oportunistas, que,
sem ofício, tomados pelo ócio, viam na guerra uma maneira de
acumular algum tipo de poder, saciar suas paixões e desejos). A
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
7
situação não prestava condições para a empresa desejada pela
Europa13.
A dificuldade para a formação da Cruzada, como se nota, era
monstruosa. Um exemplo prático desta tragédia se tem na terceira
cruzada, denominada A Cruzada dos Reis (1189-1192)14, a qual falhou
em seu fim máximo: a retomada de Jerusalém pela cristandade, mesmo
tendo comandantes tão nobres quanto Richard I Coração de Leão
(1157-1199), Philippe II Augusto o Dieudonnê (1165-1223) e Friedrich I
Barbarossa (1122-1190), respectivamente, reis de Inglaterra e França, e
o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, os principais
soberanos da Europa naquele momento. Atendendo aos apelos do
Papa Gregório, em função da ameaça dos sarracenos, formaram seus
exércitos e partiram em direção a Jerusalém. Como resultados simples,
pode-se dizer que o primeiro lutou bravamente, e foi mais longe,
conquistou o Acre, o Chipre e Jaffa, a duras penas, com exércitos
doentes e despedaçados, mas foi obrigado a retornar sem nunca ter
pisado na Terra Santa, por conta de problema no trono; o segundo
abandonou a batalha após o assalto e tomada do Acre, retornando a
França por conta de problemas na linha de sucessão da região de
Flandres, sua condição física também não colaborou (o rei ficou
extremamente doente, caiu em febre algumas vezes e até perdeu uma
das vistas); e o terceiro, apesar de sua exímia virtude (fora homem que
conseguiu colocar o Sacro Império em posição de respeito em toda
Europa, frente ao papado e aos demais reinos), sofreu com terrível
revés da sorte, nem chegando a ir aos Estados Latinos, morrendo no
caminho, por afogamento, na Cilícia, fator que levou seus exércitos a
dispersarem, retornando as cidades do Império, agora sobre o julgo de
seu filho, ou ainda simplesmente desertando.
Se vamos atribuir a Fortuna os males impostos a essa
empreitada, devemos antes lembrar, como já nos disse Maquiavel, que
o rio da Fortuna age livre, impetuosa e violentamente onde não
encontra barragens como resistência15. A Europa lidou com algo de
natureza distinta de tudo que tinha feito até então, isso é fato.
Contudo, a situação presente impediu a seus agentes o
desenvolvimento das virtudes necessárias para a adequação de ordem
técnica, que poderiam constituir obstáculos válidos para a ação de toda
sorte das adversidades enfrentadas. Evidentemente, a ruína corre por
conta das condições: o imenso tempo de percurso da Europa ao
Oriente era percorrido por caminhos tortuosos traçados no reino da
“arte” pragmática (no sentido de conhecimento comum, fruto de
experiência vivida), logo, ditava o caminho aqueles que um dia já
estiveram lá, ou de algum modo sabiam; má disposição dos exércitos,
a falta de incentivo e equipamento, em função do clima e do relevo
(guerrear no deserto não era como guerrear nas florestas geladas);
terríveis condições de trabalho para todas as classes de “profissionais”
trabalhadores; falta de interação entre os cruzados, rivalidades
político-territoriais, inexistência de uma ordem intrínseca a cruzada;
conspirações constantes nas cortes reais; e a desunião que tinham os
cristãos entre si perto da união que tinham os pagãos entre os seus. Em
função desses problemas muitos soldados morriam, desertavam,
caiam em doença, fugiam, voltavam pra casa ou se recusavam a lutar;
ademais, os reinos não podiam preterir das milícias, muito menos de
seus soberanos ou comandante localmente, pois estavam
constantemente ameaçados internamente pelos conspiradores; e
quando iam à guerra de fato, encontravam um inimigo sagaz e feroz,
que lutava segundo uma unidade.
Contudo, naturalmente, o movimento não foi um desastre
completo, muito embora não tenha obtido êxito em seu fim máximo –
erradicar os muçulmanos do Reino de Deus –, conseguiu várias
vitórias e várias derrotas, como seria razoável de algo que durou mais
de cento e setenta e cinco anos, com nove cruzadas organizadas e
vividas por diferentes agentes. O fato é que sofreu demasiadamente.
Mas, esse sofrimento fora o responsável pela melhoria da sociedade
medieval, mediante as novas necessidades que surgiram. Em todo o
período, as transformações foram se iniciando, e perdurando as
gerações vindouras. O panorama da Europa vai mudar drasticamente.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
8
Capítulo II Sob o Domínio do “Mal”
As Cruzadas tiveram uma imensa importância para a evolução
histórica da Europa. Primeiramente, o incentivaram a mudança no
panorama estagnado por conta da necessidade decorrida do advento
das guerras, fator que trouxe inúmeras modernizações necessárias
para viabilizar os planos de conquistas, tais como a comunicação mais
rápida, urbanização de aldeias, melhora nas estradas, novos povoados,
o pensamento do relevo e da geografia em função do social, etc.
Ademais, criou de um canal de comunicação com o oriente
muçulmano através da constituição dos Estados Latinos e das rotas
usadas pelos peregrinos e cruzados. Por fim, fixou três importantes
alterações diretas, as quais seriam semente de uma Modernidade
futura: impulso a ao florescimento do comércio, das cidades e do
conhecimento.
A partir do contato com o estilo mais sofisticado dos
bizantinos e dos árabes do oriente, os nobres descobriram novos
produtos; a partir dos saques, espólios e também das compras diretas,
eles importavam o luxo para a Europa; esse movimento, junto da
abertura forçosa do Mediterrâneo através das derrotas árabes
despertou novas rotas do comércio e um mercado de trocas numa
Europa estritamente agraria. Desse movimento, merece destaque o
norte da Itália, nas cidades de Genova e Veneza, as quais já se
voltavam à prática do comércio antes, no entanto, as Cruzadas deram
ocasião para que elas exercessem um verdadeiro império marítimo de
compra e venda no Mediterrâneo; no norte Europeu, a região do
Flandres, produtora de tecidos de excelente qualidade, através das
cidades de Antuérpia e Bruges, controlava o comércio de peles, peixes
e madeira pelo Mar Báltico e Mar do Norte; ainda, vale destaque para
a planície do Champanha, que, abastecida por produtos do oriente e
de toda Europa pelas estradas interiores e o a rota fluvial do Rio Reno,
promovia feiras anuais de comércio, na qual os nobres e camponeses
podiam dispor de tudo que não tinham tempo para buscar ou fabricar.
(2) Junto deste movimento, veio o renascimento das cidades livres,
organizações urbanas fora do controle da nobreza feudal. Essas
cidades floresciam em função do comércio e do mercado formado nas
rotas econômicas estabelecidas, abrigando o centro de trocas e a
produção artesanal (que se desenvolveu e se estabeleceu dentro delas).
Como se localizavam nas terras a aristocracia, as cidades eram
obrigadas a pagar tributos ao senhor do domínio, fato que diminuía o
fator de rendimento de todos; em função disso, travaram-se inúmeras
disputas, por meio de guerras violentas ou acordos diplomáticos entre
os cidadãos e os nobres. (3) Outro dos fatores essenciais foi o fato dos
cruzados resgatarem os textos aristotélicos, traduzidos e comentados
pelos Árabes, desde a Idade Antiga. O pensamento aristotélico,
expressado pela escolástica tomista, vai instaurar o quesito do
progresso na sociedade tradicional europeia, reformando algumas
concepções culturais, nas esferas mais variadas esferas; aflora o
conhecimento e se reforma a escolástica. Começa então a criação e a
expansão das universidades e dos corpos docentes especialistas nas
mais variadas artes – as tradicionais universidades de Bolonha (1088),
Paris (1150) e Oxford (1167) são posteriores ao inicio do movimento
das Cruzadas. Este fator tem tamanha importância, não obstante, isso
se deve a duas consequências que ele criaria: a primeira, a Europa
Medieval alcançaria a apoteose de sua ciência, avançando a filosofia e
as demais disciplinas através e por influência, principalmente, dos
trabalhos de Santo Tomás de Aquino – mudam-se as concepções sobre
a política, a ética e a retórica, bem como as teorias epistemológicas das
ciências naturais; vem uma nova conciliação da filosofia da
antiguidade com a fé cristã, agora livre do neoplatonismo agostiniano;
a questão é de suma importância, pois, surge toda uma nova visão de
mundo. Em segundo lugar, em decorrência da necessidade de levar a
cabo as modernizações, surgem os intelectuais no cenário político; em
geral, personagens não nobres, de origem média, estudiosos e
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
9
detentores de conhecimento especialista sobre determinados assuntos,
necessários para colocar em prática algumas das ideias, a fim de
minimizar custos, administrar recursos, e dominar toda a sorte das
adversidades que se abatia sobre a ação dos homens. Eram os homens
do pensamento, que através do conhecimento poderiam viabilizar,
planejar e organizar empreitadas que a força técnica deveria colocar
em prática.
A partir de então, começa uma profunda modernização das
instancias práticas, e o panorama começa a se alterar. Exemplos dessas
ações são as urbanizações dos burgos, a construção de estradas, o
desvio do curso de rios, o ordenamento dos exércitos militares dos
domínios, expansão da medicina e da farmácia, a arquitetura e a
engenharia, a administração política, etc. Aflora-se o conhecimento, e
vem à modernização. Nesse contexto, vale dizer que de todas as
figuras, do cenário Europeu Medieval, a que mais se beneficiou com o
novo panorama fora a do rei. Esses souberam fazer bom uso da ocasião
que se encontravam para tornarem a si mesmos protagonistas de seu
tempo. Ao passo que ocorreram as mudanças propagadas pelas
Cruzadas no curso dos séculos, os reis centralizaram os recursos
financeiros e os meios para sustentação do domínio, empregando,
através de seus novos operadores técnicos e intelectuais que pudessem
viabilizar seus planos, aumentando assim, vertiginosamente, seu
poder e influência sob seus territórios e súditos. Ademais, vai
encontrar apoio tanto nas cidades livres, quanto nos grupos
comerciantes e artesãos produtores; esses se apresentavam mais
favoráveis a uma autoridade central que pudesse garantir sua ação, e
protege-los da abusiva ação dos nobres, tanto pela força (saqueando e
tomando), como pela lei (através da cobrança de pesados impostos).
Com espaço devido e apoio necessário, os reis, que acumulavam cada
vez mais força, realizaram suas próprias cruzadas, unificando seus
reinos, destronando rivais, findando milícias extra reais, extinguindo
todos os poderes que lhes pudessem fazer frente. A nobreza, antes
detentora de um status seguro, vai, gradativamente, perdendo seu
prestígio junto ao poder político, tanto nas artes das profissões
(substituída agora por uma nova classe de profissionais, especializados
e detentores do conhecimento adequado à prática das tarefas, fruto do
impulso das ciências), quanto na ambição de governas seus próprios
súditos (o rei vai assumir este lugar). Sobre este assunto, como seria
impossível dar conta de todos os casos, faz-se razoável citar dois
exemplos, os mais notáveis, a fim de elucidar a ideia: o caso dos
ibéricos e o caso franco-saxão. Esses são, além dos mais notáveis, os
mais importantes para conhecer a Modernidade que viria doravante
tomar toda Europa, pois, em razão da ambição e do desejo dos reis o
comportamento que alterou a disposição interna das esferas da
sociedade, criando, irracionalmente, uma nova organização.
Os primeiros, movidos pela fé católica e a ambição de unificar
seus povos, empreenderam uma cruzada particular, vulgarmente
conhecida como Guerra da Reconquista, a fim de expulsar os mouros
de toda a Península Ibérica. O Condado Portucalense, fora um dos
principais expoentes dessa empresa. Território concedido a Dom
Afonso Henrique (1109-1185), pelo Rei de Castela por mérito na luta
contra as invasões dos infiéis, declarou-se independente, tornando-se
Portugal em 1139, sob a tutela de Afonso I, investindo fortemente na
guerra a partir de então. Ao longo dos anos, expandiu seu domínio,
extinguiu várias milícias árabes e desenvolveu uma estrutura
mercantil que não se interessava pela estrutura feudal da nobreza, pois
via nela um entrave para o desenvolvimento. Chegado o ano de 1383,
morre Rei Fernando I (1345-1383), criando a vacância de poder: não
havia deixado herdeiros masculinos o nobre governante, apenas uma
filha, Beatriz; esta, por sua vez, estava prometida a Juan I (1358-1390)
de Castela. As cortes veem esse matrimonio com maus olhos, pois ele
representava a ameaça da unificação de Portugal de volta a Castela,
por conseguinte, a perda da independência conquistava a duras penas.
Não havia tempo a dispor. Dá-se início a Revolução de Avis: os
exércitos portugueses, apoiados por grupos mercantis e a nobreza
interessada na independência, sob a égide de Nuno Alvares Pereira –
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
10
general comandante –, a mando de João de Avis (1358-1433) – meio-
irmão do Rei moribundo –, destronam todos os apoiadores da princesa
Beatriz e os simpatizantes do rei Juan I. Portugal faz-se monarquia
nacional sob o cetro da Dinastia de Avis, tendo em Dom João I seu rei.
Mas, descrente que a queda da base lhe seria obstáculo, não vendo
legitimidade na monarquia recém-criada, Juan I investe contra
Portugal a fim de aumentar seu domínio. Com ajuda dos Ingleses,
conseguida por um tratado de cooperação, e a falta dos poderes
paralelos no reino que facilitassem ou apoiassem o invasor, a unidade
do trono português esmagou os exércitos castelhanos em Aljubarrota,
e consolidou sua posição. Dom João I consolida a casa de Avis,
solidifica o poder central, fortifica os exércitos e prepara todas as bases
que, doravante, lançariam Portugal nas aventuras ultramarinas,
formando um vasto e poderoso Império.
Já na Espanha a situação era mais complexa, tanto quanto
exigiu homem de maior virtude para doma-la. Dissolvida em
pequenos domínios, a luta da reconquista era particularíssima. Não
obstante, os senhores católicos obtinham êxitos constantes na expulsão
dos árabes; consolidando, a partir das guerras, frutos da junção de
vários domínios menores, o nascimento de Castela, Navarro, Leão e
Aragão como reinos independentes. A ambição interna de cada um
ainda era um obstáculo tanto para a centralização do poder, quanto
para uma possível unidade hispânica: os barões não abriam mão de
governar e oprimir por si, fator que dissolvia o poder e enfraquecia o
rei, igualando seu poder a de todos os outros Grandes. No entanto
existia a ameaça moura, que ainda pairava na península, sobretudo no
reino de Granada; todos os senhores sabiam que o inimigo era sagaz, e
que abandonados à própria sorte, cairiam frente ao poder bélico árabe.
Não era conveniente alienar seu poder em favor do rei, contudo,
parecia menos razoável perder o domínio. Esse contexto favoreceu a
criação de uma autoridade forte e centralizada, que fizesse frente ao
inimigo e garantisse a paz. Esta vem então encarnada por Fernando II,
o Católico (1452-1516) de Aragão, nas palavras do filosofo florentino
Nicolau Maquiavel:
“A este pode-se chamar, quase, príncipe novo, porque de um rei
fraco tornou-se, por fama e por glória, o primeiro rei dos
cristãos; e, se considerardes suas ações, as achareis todas
grandiosas e algumas mesmo extraordinárias. No começo de seu
reinado, assaltou Granada e esse empreendimento foi o
fundamento de seu Estado. Primeiro ele o fez isoladamente, sem
luta com outros Estados e sem receio de ser impedido de tal;
manteve ocupadas nesse empreendimento as atenções dos
barões de Castela que, pensando na guerra, não cogitavam de
inovações e ele, por esse meio, adquiria reputação e autoridade
sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem. Pode manter
exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa
campanha, estabeleceu a organização de sua milícia que, depois,
tanto o honrou. Além disto, para poder encetar maiores
empreendimentos, servindo-se sempre da religião, dedicou-se a
uma piedosa crueldade expulsando e livrando seu reino dos
marranos, ação de que não pode haver exemplo mais miserável
nem mais raro. Sob essa mesma capa, atacou a África, fez a
campanha da Itália e, ultimamente, assaltou a França; assim,
sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais em todo
o tempo mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos
súditos, ocupados em esperar o êxito dessas guerras. Essas suas
ações nasceram umas das outras, pelo que, entre elas, não houve
tempo para que os homens pudessem agir contra ele”16
O impetuoso rei, através de um exército forte e bem estruturado toma
Navarra, anexando a Aragão; na sequência, casa-se com Isabel I (1451-
1504) de Castela (que, por casamento, já havia anexado Leão
anteriormente) unindo assim todos os reinos; com o fim da campanha
de Granada, e expulsão dos mouros de uma vez por todas da
Península Ibérica, Fernando inicia uma implacável perseguição aos
infiéis, forçando a conversão ao Catolicismo, sob pena de morte, a fim
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
11
de unificar os costumes e as práticas de todo o reino, através da
instauração da Inquisição. Estava feita a Espanha em 1492, que, sem
perder tempo, investe na expansão marítima, por conseguinte,
princípio de um dos mais poderosos impérios que o mundo já viu
(esse ano também ficaria marcado pela descoberta da América).
Já os segundos, tiveram um curso diferente, e um tanto mais
complicado. Na Inglaterra medieval os barões detinham imenso poder
político, e liberdade para gozarem de seus prazeres e vontades sem
limitações. Esse status se fixou ao longo da história, quando
conseguiram vitórias importantes, dando sustentabilidade à estrutura
de descentralização do poder: aumentaram seu raio de ação, poder e
influência no reinado de Richard I Coração de Leão, por conta de sua
constante ausência do território; obtiveram a Magna Carta assinada
por John I Sem-Terra ‘Lackland’ (1166-1216), a qual limitava o poder
real de apoderar-se de feudos, ou cobrar impostos, realizar prisões e
julgamentos sem consulta aos nobres; por fim, conseguiram com
Henry III (1207-1262) a construção de um parlamento, que na prática
tinha o poder de reprovar ou aprovar as leis do monarca, regulando
sua ação. Ademais, como detinham armas próprias, fortes e bem
organizadas, estavam tanto assegurados contra a força de outrem,
quanto obrigavam o rei para consigo quando este tinha de empreender
investidas militares grandiosas. Apoiados no binômio de segurança e
legitimidade, podiam se dedicar mais os nobres as suas atividades
particulares, como a administração das pastagens e o comércio da
matéria prima, gozando de boa vida, sem preocupar-se de fato com o
Estado.
Na França a situação era diferente: o processo foi o inverso do
caso britânico. Após anos de descentralidade em função do racha do
Império Carolíngio, o rei não passava de um senhor feudal igual a
todos os outros barões. Durante os anos de 1180 e 1223, Philippe II
Augusto se volta à unificação, a fim de elevar em glória a dinastia
Capetiana. Como umas das primeiras medidas, em 1182, ele rompe
com a comunidade judaica, expulsa todos os judeus do território e
confisca seus bens, sob a razão de que eram causadores de várias
calamidades; fato é que essa medida vai preencher os cofres da coroa,
pobre e deficitária naquele momento (mesmo porque, a medida de
interdição é revogada em 1198, permitindo o transito judeu nos
territórios). Com recursos, começa a organizar exércitos mercenários
poderosos, os quais, sob seu comando, destroem os barões mais fracos,
devastando seus territórios, para assim conquista-los. Após algumas
vitórias significativas, o rei abandona os mercenários e fortalece os
exércitos próprios da coroa, criando uma milícia forte e poderosa, a
fim de fazer frente à alta nobreza. A partir de então, por guerra ou por
meio de uma diplomacia perspicaz, o rei aumenta significativamente
os territórios francos. E, se podemos dizer bem da astúcia, não seria
razoável desconsiderar seu maior expoente: a maneira como se
aproveitou da fragilidade da coroa inglesa. Como fora exposto, a
situação inglesa era demasiada distinta do caso francês, e a nobreza era
poderosíssima perto do próprio rei britânico; muitos dos territórios
dessa aristocracia residiam em território franco. Philippe devassa os
feudos fracos, abandonados a própria sorte, e de localidade geográfica
mais inacessível. Aproveitando a rivalidade entre os sucessores da
Coroa Inglesa, e as constantes lutas internas inglesas, assalta as regiões
dominadas pelos Plantagenetas (dinastia real britânica), da
Normandia, Vexin e Bretanha, e, após anos de combate, sela a paz
através da intermediação do Papa, mediante a formação da Cruzada
dos Reis, na qual Inglaterra renuncia a soberania no local; pós a
Cruzada dos Reis, com Richard I, o Coração de Leão, capturado por
Leopold V (1586-1632), duque da Áustria, Philippe ataca novamente as
terras dos Plantagenetas, e, John I Sem Terra (que não estava
interessado na volta do irmão e queria colocar a si mesmo no trono,
com ajuda dos francos), negocia com o astuto rei, cedendo às terras do
leste da Normandia, Le Vaudreuil, Verneuil e Évreux; quando Richard
I é libertado e retoma a coroa, empreende uma investida contra
Philippe, forçando-o a recuar, contudo, a sorte sorri ao virtuoso rei, e
Richard I, atingido por uma flecha durante o cerco militar de Vexin, cai
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
12
enfermo, e morre doravante. Na sucessão, Philippe apoia o jovem
Arthur, da Bretanha, contra John I Sem Terra (como havia feito antes
com John I, contra Richard I), obtendo a obrigação de vassalagem de
todo o ducado da Bretanha; John I mergulha na guerra contra seu
rival, sitiando Mirebau, captura o jovem, que desapareceu
misteriosamente (possivelmente assassinado); no entanto, já era tarde
para parar a ambição de Philippe, que toma de assalto toda a
Normandia e o Condado de Anjou. Doravante, John I Sem Terra
(agora rei de Inglaterra), e seus aliados são derrotados pelos exércitos
francos, perdendo Falaise, Caen, Bayeux e Ruen em 1204, Verneuil e
Arques caíram imediatamente depois. Concluída a campanha no norte,
Philippe se volta para o vale do rio Loire, tomando Poitiers em 1204, e
depois Loches e Chinon em 1205.
A fragilidade do poder real inglês vai ser fator preponderante
para o fortalecimento da centralização do poder francês; bem como a
nobreza inglesa vai se apoiar neste argumento para revoltar-se contra a
coroa e infringir lhes as devidas amarradas (como já fora dito, John I
assina a Magna Carta, não obstante, suas derrotas foram consideradas
fruto do excesso e do desregulamento do poder central, dessa maneira,
cabia enfraquece-lo para controla-lo). Começa a aparecer à ideia de
uma França. O nome rex francorum (rei dos francos) é substituído por
rex Franciæ (rei de França), a Flor-de-lis, símbolo real utilizado antes
pelo pai de Philippe, é altamente difundida. No espaço de anos,
Philippe II Augusto começa uma cruzada na mira da extinção dos
feudos da nobreza britânica em território franco, fator que aumentaria
os territórios da coroa significativamente. Para assegurar as posses e
manter a administração, nomeia funcionários para a aplicação e
manutenção das leis a nível local. Seus sucessores continuaram essa
empresa, estendendo-a aos feudos dos condes e duques franceses. Esse
processo apenas travaria quando encontrasse a região de Flandres. Um
problema desde as épocas de Philippe, a região se revolta e recusa o
julgo da coroa francesa, muito por conta de sua matéria-prima ser de
origem inglesa, vinda dos feudos da nobreza britânica, e de sua larga
relação de venda com os senhores ingleses. Ademais, um ano após
começar a empresa, o rei francês Charles IV (1294-1328) morre, e, de
jures, por linhagem dinástica, o sucessor a assumir o trono francês seria
o então Rei da Inglaterra, Edward III (1312-1377); no entanto, a
aristocracia francesa nem sonhava em ceder a coroa a um inglês, assim,
elege um nobre da casa de Valois como novo rei, Phillipe VI (1293-
1350), que começa uma nova dinastia. Tal fato enfureceu Edward III.
Irado o rei, e a nobreza ameaçada pelo avanço franco, a Inglaterra
declara guerra França. Começa a chamada Guerra dos Cem Anos.
A guerra dura 116 anos (apesar de seu nome), e teve diversos
pontos conflitantes; naturalmente, não vamos entrar em pormenores
destes, pois estes são dispensáveis aqui; apenas vale citar alguns, dos
mais importantes. Primeiramente, como a ideia de nação ainda
vigorava, a guerra era, no fim das contas, o grupo de nobres ingleses a
favor do livre comércio e exploração da região, contra a coroa francesa
que desejava impor sua administração e recolher impostos de seus
súditos (vale dizer, de uma das regiões mais ricas e poderosas da
Europa). Ademais, ao longo do conflito, diversos foram as tensões
entre nobres do mesmo lado, chegado a ponto de mudarem de
posição. O ponto alto da guerra foi quando Henry IV (1366-1413), rei
britânico e pretendente do trono francês, assediou a família da nobreza
francesa dos Borguinhões, e passou a tê-los como aliados, governando
o norte da França, por intermédio da vassalagem. Essa situação criou
um clima de indignação por todo o território franco. A partir de então,
Charles VII O Vitorioso (1403-1461) organizou um exército militar mais
moderno, abandonando a força medieval, prezando pela leveza e
mobilidade moderna (a fim de fazer frente aos arqueiros ingleses); pela
primeira vez, via-se na França um sentimento de unidade, acima das
relações servis dos feudos. Exemplo desse sentimento fora Joanna
d’Arc (doravante Santa Joanna, em 1920), que, a frente do exercito
ajudou a França a retomar Orleans. Por sua vez, responder a força de
França foi preciso deixar florescer a autoridade do rei inglês, depois de
tantos anos. Por fim, à medida que caminhava a guerra, os reis foram
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
13
demonstrando que somente o fortalecimento do poder central traria a
vitória sobre grandes milícias organizadas e disciplinadas, não
obstante, os nobres foram obrigados a reconhecer tal premissa.
Embora em guerra, a Inglaterra era sacodida pelo conflito
interno da Guerra das Duas Rosas, entre as casas de York e Lancaster,
as duas maiores famílias nobres da Inglaterra. Esse movimento, que
lutava pela hegemonia do controle do Conselho Real, acabou por
enfraquecer o parlamento, extinguindo contingentes importantes para
uma política descentralizada; o episódio, não teve outra consequência
senão abrir caminho aos Tudor, com Henry VII (1457-1509), ao futuro
da nação inglesa. Os pequenos feudos são extintos, subjugados pelo
poder central, a fim de formar grandes territórios, destituindo o caráter
local dos costumes, instaurando os primórdios da ideia de nação. Na
França, aproveitando-se da situação instável inglesa, e inspirado com o
mártir de Joanna, o rei investe contra os ingleses tomando as fortalezas
e destruindo os exércitos inimigos. Se deve ser licito considerar que há
males que vem para bem, podemos dizer que as sucessivas derrotas no
início da guerra, e a capitulação de vários domínios – muitos nobres
morreram ou foram a total falência – facilitou a empresa de uma
nação-uno na França, ademais, não só isso, mas, a força econômica
estava debilitada: com a guerra, a produção artesanal e agraria foram
paradas, e os mercadores não encontravam maneira de escoar a
produção, por conta de um comércio terrivelmente desorganizado e
afetado por um país fragilizado e ferido. A figura do líder central, forte
e virtuoso, emerge como única solução para os males franceses. Ao
fim, a Guerra dos Cem Anos transforma a Europa, terminando por
fortalecer as monarquias inglesas e francesas rumo à consolidação
total.
Este contexto traz a figura do Estado, encarnado no rei,
enquanto unidade política central, como grande expoente de força,
única unidade capaz de garantir a paz e a felicidade do homem, por
meio de suas leis e suas armas, protegendo da invasão estrangeira e do
braço armado local. Formam-se exércitos fortes e preparados,
financiam-se guerras e conquistas, realizam-se matrimônios
convenientes, e incentiva-se o comércio e tudo mais na mira de
aumentar e expandir o domínio. O rei, como senhor da nação, torna-se
poderosíssimo, guiados pela ambição a fim de consolidar a expansão,
fronteiras e unidade de seus territórios. Bons exércitos e boas leis
guiavam o apetite daqueles que, por excepcional virtude, construíram
grandes impérios. Restavam dar cabo de alguns “pequenos” entraves a
fim de alcançarem o status de “Rei-Sol”.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
14
Capítulo III Vestíbulo do Inferno
Logo viria a nascer na mente fértil da realeza audaciosa e
astuta a semente da ideia de contestação da obediência fiel: por que se
submeter à Santa Igreja se assim não fosse conveniente? Doravante,
germinada, ela dá gênese ao fruto da árvore maldita: a maçã
dourada17: os reis e a Igreja começam então a se desentender, pois era
fato que a Santa Sé fez-se, durante séculos, fora um entrave para o
crescimento virente do poder real. Depois de vários conflitos menores,
um episódio particular fica marcado e torna-se importantíssimo para o
desenrolar da história: O Cativeiro Babilônico dos Papas. Conhecido
popularmente como “Crise de Avignon”, este evento se dá quando o
rei de França em exercício naquele momento, Philippe IV o Belo (1285-
1314) se irrita com a Igreja Católica Romana em função do
impedimento que ela fazia ao recolhimento de impostos das unidades
eclesiásticas da França. Furioso, o monarca arbitrariamente muda a
residência do papado, levando o próximo papa (vale dizer, um francês,
a seu gosto) para estabelecimento em Avignon. O evento choca a velha
Europa. A partir deste momento, outros papas franceses foram eleitos,
todos residentes em Avignon, desencadeando uma crise em todo
mundo cristão. A Igreja Católica leva o papa de volta a Roma após a
gestão de seis pontífices em Avignon (sessenta e cinco anos, de 1305 a
1370), na gestão de Gregório XI (1160-1241).
O problema, no entanto, estava apenas começando. Com a
morte de Gregório, o napolitano Urbano VI (1318-1389) sobe ao posto
de Papa. Eleito em Roma, ele tinha o apoio do povo italiano, que
gostaria de ver um italiano como sumo pontífice, a fim de consolidar o
estado em território itálico. Contudo, quando começou a agir,
mostrou-se terrivelmente rígido e intempestivo, tinha fama de furioso,
de ímpeto indomável. Urbano acarreta para si diversos inimigos, os
quais começam a conspirar para sua deposição. Recusando-se a levar a
residência de volta a Avignon, o conselho de cardeais elege outro
Papa, Clemente VI (1342-1394), que retorna a França. Evento que dá
origem ao que muitos chamam de Cisma Papal, tendo o Papa romano
e Antipapa francês. Extrapolando a esfera religiosa, o evento torna-se
um problema de cunho político diplomático, afinal, doutores da igreja
tendiam a apoiar o papa escolhido de seu país, e esses, não obstantes,
estavam divididos segundos seus interesses. O evento divide a
Europa. Doravante, adiante, outro Antipapa seria eleito, em Pisa, para
agravar ainda mais a situação. A Igreja convoca o Concílio de
Constança, destituem os três papas e elege outro, unificando
novamente o pontificado. A crise duraria de 1378 a 1414, tendo a
conclusão final por conta do abalo social: a Igreja já não parecia
inviolável e todo-poderosa como outrora e a autoridade dos reis torna-
se sinônimo de força. Por conta da diminuição de seu poder e
influência, alguns daqueles valores que eram tão fortemente
assegurados pelo poder da Santa Sé, agora passavam as mãos dos reis,
transfigurando-se do caráter universalista (de atingir a toda Europa)
para relativista (atingir somente a unidade política em questão). E,
sobretudo, já não eram intocáveis e inquestionáveis como outrora
foram. Cria-se a brecha para a insurgência de movimentos reformistas
da doutrina religiosa. É nesse terreno que vem a Reforma Protestante.
Creditada principalmente ao monge germânico Martin Lutero
(1483-1546) com suas 95 teses e o humanista Jean Calvino (1509-1564),
a Reforma surge como um evento puramente religioso, com fins de
alteração da questão espiritual – muito embora os dois divergissem em
seus fins, pois, o primeiro acreditava que a Igreja Católica precisava ser
reformada, e o segundo, que estava tão perdido que era preciso criar
uma nova, com bases na igreja primitiva. A questão é que a razão de
ter explodido e adquirido força não reside propriamente na questão
religiosa – muitos outros reformistas surgiram pós-Cisma, alguns
considerados até hereges, condenados a fogueira, e não tiveram tal
repercussão. A questão é que este movimento conquistou espaço
político para o acontecimento, e, sobretudo, vontade dos Grandes para
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
15
apoiá-lo, pois nada seria mais benéfico para seus interesses. Ora, para
não perder a matéria de vistas neste argumento, tomemos o caso da
Alemanha, no Sacro Império Romano-Germânico. A nobreza e os
camponeses estavam descontentes com a Igreja Católica, que por sua
vez, possuía a maior porção das terras, e assim cobrava pesadas taxas e
tributos. Essa medida fazia com que as jornadas de trabalho dos
camponeses fossem mais duras e mais longas, a fim de cobrir o
excedente do tributo, bem como diminuía o rendimento da nobreza.
Ademais, a Reforma também fora muito bem aceita pelos reis, que
vislumbraram nela a extinção da influência da Igreja sob seus
territórios na questão política. E, apesar de já terem rompido com a
soberania do direito da Igreja, ainda existiam certos procedimentos
que limitavam o pode real, especificamente, duas questões centrais: a
ideia de excomunhão do soberano e a nomeação dos bispos.
A primeira questão tratava da (1) legitimação da
desobediência civil, pois, o rei é ungido pela Santa Sé, a qual
sacramenta que seu poder vem de Deus, entretanto, aquele que
expulso da comunhão não partilha mais da graça do Altíssimo, seu
poder torna-se nefasto, bem como a utilização do mesmo sempre será
iníquo, injusto e temerário, por natureza. Dá-se apenas em opressão
tendo em vistas o mal e não o bem, já não podendo garantir a
felicidade da polis. A obediência do povo e o respeito dos Grandes não
se justificam e nem se fazem razoáveis: o primeiro deve simplesmente
se negar a realizar tudo que lhe é devido nesta relação e os segundos
se ocuparem em disputar a ocupação da vacância do poder legítimo.
Naturalmente, estes são perigos terríveis para a realeza que se anseia
senhora do destino de tudo e de todos, afinal, o Papa dava a
excomunhão, cabia ao rei à observação de certos cuidados para não
sofrer com este problema. (2) Já a outra questão diz respeito ao poder
de nomear seus próprios bispos, e, por conseguinte, organizar as
dioceses e arquidioceses a bel-prazer. Esse fato possibilitaria amarrar
os líderes religiosos, pela obrigação do favor, à coroa, desenvolvendo a
lealdade e obediência ao rei. Vale lembrar que uma diocese estava no
centro de uma comunidade, vila ou cidade, detinha tanta importância
politica que subjugava até mesmo a própria administração pública,
não obstante, a questão de nomear aquele que rege esse poder era
então de extrema valia. Para o rei, se sua autoridade não fosse retirada
por mais nenhum procedimento e se pudesse obrigar as localidades
para consigo, somado ao poder que já reunia a riqueza do Estado que
controlada e os exércitos nacionais, o rei tornar-se-ia a maior
autoridade de facto e de jures em seu território.
Com tanto espaço, a Reforma se alastra. Na Escandinávia, o
luteranismo se expandiu tão rápido como rastilho de pólvora,
conquistando a simpatia e aceitação na Suécia, Dinamarca e Noruega.
O calvinismo toma a Suíça, Holanda e Escócia. Já a Inglaterra, apesar
de aderir à ideia, apresenta um tipo próprio: o Anglicanismo, fruto de
um caso particular, é protagonizado pelo rei Henry VIII (1491-1547) e
suas necessidades circunstanciais. Este caso talvez exprima melhor a
questão política da reforma, pois é o mais emblemático, afinal, Henry
VIII defendia a Igreja Católica contra Lutero, atuou contra suas teses,
era um religioso fiel a Igreja Católica. Mas, era casado com Catarina de
Aragão, donzela que, por fatalidades da fortuna, não podia lhe
conferir filho varão, muito embora não faltassem esforços e tentativas –
vale dizer que este é fator terrivelmente arriscado em âmbito politico,
pois deixa a questão de sucessão do trono em risco, muito embora
tivesse uma filha legitima com a consorte, Maria I “Bloody-Mary”
(1516-1558). Motivado por essa necessidade, e embalado pela paixão a
Srta. Anne Boleyn, o rei recorre ao Papa Clemente VII para anulação
de seu casamento; após a negação, Henry VIII vê no surgimento da
Reforma a ocasião perfeita para romper com a Igreja Católica, se
declarando chefe da Igreja Inglesa, perante o parlamento (com sua
aprovação). Nasce a Igreja Anglicana: estatal e nacional, sem
interferência externa, a qual, o chefe máximo o rei. Nos países
protestantes, os católicos passam a ser perseguidos e expulsos do
território, e se dá inicio a intolerância religiosa. O mundo era sacudido
então pela questão religiosa que ardia em chamas, sem freios.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
16
A Europa estava dividia neste momento entre protestantes e
católicos. Doravante, tal rivalidade cresceria de maneira tão
vertiginosa que, por conta de disputas territoriais, rotas comerciais e
questões de sucessão dos tronos, iniciaria o terrível período da Guerra
dos Trinta Anos, colocando os reis católicos contra os reis protestantes,
maior ponto de divergência registrado entre as “posições religiosas”.
Este cenário fazia florescer na mente dos homens, marcados pelas
duvidas já acareadas até então, o questionamento relativo ao objeto de
sua fé. “Com quem está Deus?” “Em quem deve se acreditar: nos
católicos ou nos protestantes?” “Faz sentido a tradição vigente que se
tem?” Cria-se então o conflito, que ao passo que cai no conhecimento
do vulgo, toma toda a Europa, e desencadeia a questão: a quem se
deve obediência, aos reis das unidades políticas, ao Imperador do
Sacro-Império ou ao papa da Santa Sé? Enfim, diga-se de passagem, a
posição vencedora, como se constata ao longo do curso da história, foi
do rei.
Monarcas se tornam imperadores de seus próprios reinos –
detém total poder de vida e morte sobre tudo que diz respeito a seu
domínio. A Igreja já não tinha poder no que diz respeito às decisões
finais de questões de Estado, perdendo seu status soberano de
operadora do Direito na política; agora, é o rei e sua autoridade
comandava a comunidade. O problema criado por está ação é tão
grande que vai dar inicio ao período de guerras mais sangrento já visto
pela Europa. Afinal, simples poderia ser um rei julgar e condenar um
cidadão de seu domínio, mas, em âmbito internacional? Como eram
muitos os reis, e assim muitos os domínios, consequentemente,
demasiado singular seriam os interesses por eles manifestados, era
inevitável o choque. O direito passa não ver mais espaços na política
internacional, afinal todos passam a serem, simultaneamente, os
árbitros, réus, vítimas, advogados e promotores; ora, no lugar onde
todos os homens são de tudo, na verdade ninguém é absolutamente
nada, e vale a lei de Trasímaco18. Inevitavelmente, como única saída, a
guerra vem como recurso e real delimitador da política externa. O que
antes era decidido, prezando a equalização das partes residente na
justiça, por um árbitro comum, único mediador dos conflitos, agora
deve ser decidido na ponta da espada, pois não há paz e acordo onde
não há freio às ambições dos Grandes.
O período moderno se inicia. Em meio a desbravamentos e
descobertas, tudo era muito novo, muito chocante, muito violento, “as
pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal
fazem ideia do que as atingiu”19. Nunca na história do mundo tinha se
visto tanta fome, peste e destruição, nunca se queimou tantas
“bruxas”, nunca se fez tanta guerra... Fora uma época banhada a
sangue e imersa em um profundo terror... O mundo é assolado pela
dúvida. O medo faz-se descomunal, todos vivem na desconfiança, e a
esperança pífia, nada floresce neste estado... Abrem-se as portas do
Inferno, vem o demônio, e entramos, pois, no verdadeiro Reino das
Trevas, contudo, travestido da luz.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
17
Capítulo IV “Deixai Toda Esperança, Ó Vós que Entrais!”
Ao passo que a tradição vigente é rompida, o estado de dúvida
fez com que a arte, a ciência e a filosofia crescessem independentes da
religião, fugindo dos valores da Ética Católica, em busca de novas
respostas. O pensamento escolástico estava em declínio, já não possuía
a hegemonia de antes, seus produtos se viam ameaçados; buscava-se
uma nova fonte de certezas. Francis Bacon e sua ideia com base sólida
no sensível caracterizada pelo Novo Organon, bem como René
Descartes (1596-1650) e seu cogito de existência, são frutos dessa
situação. No entanto, se as perspectivas são otimistas, e o progresso e o
desenvolvimento disparam como antes nunca visto, digo que não o
fizeram sem cobrar um preço. Thomas Hobbes de Malmesbury (1588-
1689) foi um homem que sentiu na carne esse preço, muito embora
tenha realizada a leitura mais precisa da condição inicial da
Modernidade no tocante de seu fundamento, relatando algumas
características tão essenciais do andar ao lado do demônio que
permanecem até atuais até nossos tempos.
Nesse sentido, a vida de Hobbes é ponto importante: de parto
prematuro, no susto, a espreita de ataque espanhol, no corrente receio
da investida da Invencível Armada, em retaliação ao cisma religioso
feito por Henry VIII (e o abandono de Cataria de Aragão), vem ao
mundo Hobbes e seu gêmeo: o medo20. Esta paixão acompanha o
filosofo por toda sua vida: presenciou e viveu toda a mazela terrível
dos sangrentos conflitos da Guerra dos Trinta anos e da Guerra Civil
na Inglaterra de Cromwell; foi perseguido, exilado, mal visto e
condenado por suas posições e concepções acerca da religião e do
Estado; assistiu a peste, as inúmeras execuções e as caçadas e fogueiras
feitas com as ‘bruxas’. Seria temerário dizer que tais fatores
influenciaram seu pensamento. Hobbes dedicou seu tempo aos
problemas criados por uma era de incertezas religiosas, políticas e
sociais; em suma, a quem se deve obedecer – pois, reside nela, a
obediência, o problema. Afinal, em um mundo abalado, agitado e
instável, seu anseio por respostas tinham em mira a paz – expoente
máximo do direito natural para Hobbes21 –; em paz seria possível viver
seguro, coibindo o estado de intolerância que conduz a guerra. A
questão que intrigava Hobbes, no entanto, era a causa da dessa
instabilidade, a razão pela qual o ambiente moderno é o “reino das
trevas”.
Grosso modo, podemos dizer que sua resposta se inclina a
afirmar que, deixados à própria sorte, a singularidade das paixões de
cada homem, em particular, conduz todos ao caos e a desordem. Não
seria senão o julgo de cada um em choque que criaria a guerra,
aumentando o medo e minando a esperança? Eis seu famoso estado de
natureza. Afinal, a opinião, fenômeno essencial para o diabo moderno,
vai surgir como pilar central de comportamento. Anterior ao período
vivido por Hobbes, a matriz filosófica é comum, o coletivo determina o
mundo, pois a sociedade é natural – a visão aristotélica, por exemplo,
“o homem é, por natureza, um animal político”, sendo natural sua
vivência em sociedade (aqueles que não o fazem, são, ou muito menos
que um homem, ou muito mais que um homem), pois é a polis “o bem
mais elevado”22. No “inferno”, não existe modo comum de vida, cada
um é imperador de si e de seu meio, segundo seu jugo; não
pertencente à sociedade naturalmente, pois é ela apenas uma
convenção, feita na reunião de todos; sendo cada particular uma
máquina, movida por desejos, oriundos de suas paixões, alcançados
através do uso da razão.
Acompanhemos o raciocínio hobbesiano, que, muito embora
pareça trágico demais, tem seu sentido. Hobbes parte do homem, e,
através de uma epistemologia inovadora, de cunho mecanicista,
contraria toda a física tomista-escolástica, afirmando que tudo o que se
conhece é fruto das sensações particulares de cada um. Cada homem
cria sua própria ideia de algo, diferente e distinta do outro, Em suma,
afirma Hobbes que a imagem das coisas realiza uma espécie de fricção
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
18
nos órgãos operadores dos sentidos humanos (ação), permitindo ao
sujeito conhecer aquela determinada coisa, de maneira singular,
criando uma representação (reação). Toda ideia é, portanto, reação ao
movimento que realiza frente ao mundo. Os homens então agrupam e
categorizam percepções da natureza, as quais, por sua vez, são apenas
particulares, jamais gerais; o geral é fruto da imaginação humana. Não
existe “cavalo” na natureza, apenas este ou aquele cavalo específico. O
termo geral é apenas convenção celebrada, por conseguinte, artificial.
Essa convenção parte da linguagem, a qual, para Hobbes será o nível
objetivo, pois cria comunicação entre mais de um homem, celebrando
nomes para o conjunto de representações. Seguindo está lógica,
Hobbes buscará as ideia dos valores da sociedade na natureza: o belo,
o justo, o injusto, o bem, o certo, o errado, o leal, o corajoso e etc., a fim
de verificar onde está sua correspondência empírica. A conclusão
tirada é uma só: eles não existem objetivamente, pois não há nada que
corresponda em si, por exemplo, ao justo ou ao belo na natureza. Os
valores estariam apenas dentro de cada ser humano, sendo seu
significado completamente relativo às paixões de quem os profere e
classifica, pois são recursos de linguagem que tem um significante
particularíssimo23.
Vem então o ponto central: são as paixões, os movimentos
internos do homem, que determinam a finalidade das ações24; as quais,
não são nem boas nem más, nem pecados nem virtudes, pois, frente à
natureza não existe regra da vida em função do justo, certo, errado e
belo, tudo que o homem faz é indiferente perante a natureza, pois é
relativo a quem faz e a quem sente, por conseguinte, quem julga.
Todos os homens buscam o que suas paixões valorizam. Não há busca
pela felicidade da polis, somente a realização dos desejos pessoais. A
razão, por sua vez, antes delimitadora dos valores, passa a condição de
instrumento: calcula e elege os meios (escolhe os poderes, isto é, as
qualidades disponíveis) mais adequados para maximização dos
desejos, alçados pela paixão25. Age naturalmente o homem quando usa
todos seus poderes em direção de seus fins. Notemos, pois, que a
opinião singular torna-se imperatrix mundi, determinando os rumos
que cada homem deve seguir, particularmente, independe da
sociedade, não havendo moderação da alma.
Ora, se cada um faz o mundo a sua maneira, e todos são
diferentes, Hobbes busca saber então, se há a alguma dimensão que
iguale todos os homens, e se sim, qual é. Sua resposta: no poder.
Afinal, por mais que existam diferenças, o mais forte ou inteligente,
por exemplo, ainda pode ser morto por qualquer outro homem que
tenha amigos, conhecimento, armas, e estes, por sua vez, também
podem ser subjugados e destronados por outros que tenham outras
qualidades. Naturalmente, as divergências e as desigualdades se
igualam no quesito do poder, mais precisamente, de matar26. Hobbes
considera que tudo é poder: amigos, riqueza, força, armas, beleza,
prestígio, astúcia, etc., pois, tudo pode ser utilizado para subjugar o
próximo. O homem mais fraco pode ser mais esperto ou arrumar
aliados, ter armas, ou ainda armar uma emboscada, e matar o mais
forte e mais rico, e etc. E, como não existe moral na natureza, pode o
homem utilizar-se de todos os meios para matar uns aos outros.
Ademais, “os homens não tiram prazer alguma da companhia alheia (e
sim, pelo contrário, um enorme desprazer)” pois "se dois homens
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser
gozada por ambos, eles tornam-se inimigos", vivendo a sombra da
desconfiança, da competição e da glória uns dos outros:
"A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o
lucro; a segunda, a segurança; a terceira, a reputação. Os
primeiros usam a violência para se tornarem senhores das
pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os
segundos, para defenderem-nos; e os terceiros, por ninharias,
como uma palavra, um sorriso, uma opinião diferente, e
qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido
às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, amigos,
nação, profissão ou ao seu nome"27
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
19
Ninguém está seguro; todos estão sujeitos à morte violenta. Afinal,
para ter o rico, deve-se ter o pobre; para existência do louvado, faz-se
necessário uma plateia que o glorifique; e para que alguém esteja no
topo da hierarquia, deve, necessariamente, existir os que se dispõe a
estar abaixo. Estas razões são a causa dos conflitos. Bem como bem e
mal, justo e injusto não existe, essa condição coloca o homem em
insegurança constante, tendo apenas como razoável que se subjugue
quantos homens forem necessário para preservar ao máximo a própria
vida. É então o “homo homini lupus” em virtude da ausência de um
poder que os mantenha em respeito comum. Atentar contra tudo e
todos é a única maneira de garantir a sua segurança própria28.
A saída que Hobbes vislumbra para findar o estado de guerra,
colocar os homens em respeito, criar a segurança e trazer a paz foi à
fundação do grande Leviatã, o Estado. Somente quando estão todos
sob o mesmo cetro é que a humanidade é forçada ao convívio o
homem vive pacificamente. Ademais, é o Soberano o único a
determinar aquilo que é justo, o bom, belo, certo, errado, etc. Para que
está condição se faça presente, os homens fixam um pacto, por sinais,
subjetivos: todos abrem mão de todo seu poder, em função do
Soberano, o qual disporá de todos os meios a vida dos súditos.
Pactuam ‘eu’ e ‘tu’, “Ele”, o soberano, ainda permanece em estado de
natureza. É racional a submissão a ele, pois, o pacto que funda o
Estado tem como finalidade máxima à proteção da vida dos homens
mediante o fim do estado de guerra, assegurando cada particular da
violência de seus iguais. Seja como for, está no axioma da ideia de
Hobbes a secularização deste Soberano: não interessa se católicos ou
protestantes, o racional era estar submetido a um poder comum,
redator dos valores e mantenedor da paz. Esta relação é uma
conveniência que pode por fim ao poder de opressão dos particulares
sobre outros particulares. O que Hobbes buscava era a paz, o fim das
guerras e do terror. O Leviatã é o grande protetor da vida e senhor da
paz29.
Ora, muitas são as opiniões, em sua maioria, se voltando à
condenação e contraposição da filosofia hobbesiana. Aqui, no entanto,
cabe tocar alguns pontos por conta da reverberação da leitura de
Hobbes para a constituição do ambiente moderno, pois destes não
seria razoável calar-se, afinal, reside o real conhecimento das coisas
nas consequências que elas criam. É fato que, ao passo que se nega a
existência de algo comum e objetivo, e apenas o indivíduo e suas
paixões são válidos, estão todos à mercê da opinião alheia; uma
dedução lógica. Hobbes nos demostra como poder terrível, cruel,
sórdido e mortal estar no caminho ou sob o julgo do gosto de outrem.
No fim, os desejos alheios nos causam o medo, bem como ferem a
esperança que temos de prosperar com nosso trabalho, a fim de
realizar nossos próprios desejos. Essa é a conclusão terrível que traz o
pensamento hobbesiano. Naquilo que a lei não toca, faz de tudo o
homem para concretizar seus desejos, quando muito seus anseios não
são de tal modo que não lhe custa infringi-la em nome das suas mais
ardentes paixões ansiando a segurança e afastando o perigo – Fausto
nos ensina isso com exatidão quando se põe a luta e assassinato do
irmão de sua amada Margarida.
Ademais, é nesse estado que se cria o “meu mundo”, o “teu
mundo”, o “mundo dele”, bem como tudo aquilo que está relacionado
com o particular – aquelas tão corriqueiras visões unilaterais e
dogmáticas, fundadas no gosto e na paixão que, arbitrariamente,
impõe sua vontade sobre os demais, no mais das vezes, travestidas de
valores vulgarmente nobres, largamente propagadas em nossos
tempos. A consequência do pensamento hobbesiano, na prática, é um
mundo de Trasímacos: com o “por natureza” o homem pode tudo,
pois não há a referência de certo e errado, apenas as leis positivas do
Estado, o homem, em instancia particular, molda a justiça como
conveniência do mais forte, tendo a “força e a fraude como virtudes
cardinais”, utilizando e meios justos quando convenientes e injustos
quando necessários, sendo que o maior bem será praticar uma injustiça
sem sofrer suas consequências (assim como o maior mal será não
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
20
poder vingar-se quando a sofres), fazendo valer sua opinião e seu
gosto, acima de todos, sob a falsa bandeira de liberdade; no fim os
homens aceitam a lei, isto é, a justiça, por medo das consequências,
asseguradas pela a espada (lei sem a força para mantê-la não passa de
palavra fiada, já afirmava Hobbes) e não por seu princípio em si, o
bem30.
De todo modo, essa concepção rompe completamente com a
ideia dos antigos da condição de desigualdade dos homens. Dizia
Aristóteles que os homens eram divididos, segundo suas naturezas
distintas, aqueles que podiam prever, e por natureza seriam senhores,
pois mais inclinados à prática da virtude estavam, e aqueles que
somente a força bruta dispunham, portanto, estavam aptos aos
trabalhos braçais. Hobbes contraria esta premissa, pregando uma
igualdade dentre os homens, ditada pela lei natural, sendo, pois,
orgulhoso aquele que não acate este preceito. Afirma ele que
“(...) Aristóteles, no livro primeiro de sua Política, como
fundamento de sua doutrina, afirma que por natureza alguns
homens têm mais capacidade para mandar, querendo com isso
referir-se aos mais sábios (entre os quais se incluía a si próprio,
devido a sua filosofia), e outros têm mais a capacidade parar
servir (referindo-se com isso aos que tinham corpos fortes, mas
não eram filósofos como ele); como se o senhor o escravo não
tivessem sido criados pelo consentimento dos homens, mas pela
diferença de inteligência, o que não é só contrário à razão, mas é
também contrário a experiência. Pois poucos há tão insensatos
que não prefiram governar-se a si mesmos a ser governados por
outros”
A Modernidade vem então libertar os escravos; bem como prender os
senhores; quando, em base de uma igualdade na abstração dos corpos,
coloca todos em respeito comum sob a égide de um ‘soberano’. Não
interessa mais aqueles que são livres, de facto ou de jures, não interessa
mais aqueles que sabem governar a si ou a cidade, não interessa se
olham a si ou ao coletivo. Não importa se senhores e escravos, nobres e
servos, barões e camponeses. Todos estão sujeitos apenas à lei
soberana do Estado.
De todo modo, a realização do pacto hobbesiano não finda
totalmente o de guerra. São coibidas a violência e a fraude nos tocantes
máximos, mas, em seus pontos particulares, aqueles governados pelo
cuidado de si de cada um, a ética que suas ações devem conter, ele
vigora, criando um mal que, embora não seja mortal, é danoso e
terrivelmente nocivo. Ou arriscaríamos a dizer que, no mais das vezes,
em nossos tempos atuais, não vivemos em desconfiança, competindo
por lucro ou em busca de glória, destronando tantos quanto forem
razoáveis pra isso? Ora, essa lógica torna-se “pilar moral” da
sociedade moderna; não honestamente, mas travestida de justiça.
Afinal, não necessariamente devemos dizer que a guerra consiste
apenas no combate propriamente dito, que tem como fim a morte
violenta. É perfeitamente possível subjugar e oprimir sem causar
morte, a violência não se restringe ao campo de força. Ademais, não
devemos tomar o estado de guerra apenas no sentido de hipótese pré-
social (afinal, a esta via careceria muito substrato), mas sim como
situação presente; o próprio Hobbes utiliza argumento bastante
razoável neste sentido:
"Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado
bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os
homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos
outros. E poderá, portanto, talvez desejar, não confiando nesta
inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja
confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-
se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e
procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha
suas portas; que mesmo quando está em casa tranca seus cofres;
e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos
armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa ser
feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
21
armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus
filhos servidores, quando tranca seus cofres?” 31
Ora, desse e não de outro modo se vive, essencialmente, na
Modernidade. Ou, um homem não tranca a porta da residência ou de
um automóvel ao deixa-la? Não se constroem casas fortificadas,
fortalezas, imensos prédios ou condomínios fechados? Não se clama
por mais proteção, armas e efetivo policial? Ora, pactos são feitos por
signos. Naturalmente devemos ter ciência das variações acidentais da
matéria, pois é fato que as coisas são diferentes ao longo de cinco
séculos, contudo observar o essencial. Por essas evidências comuns
devemos dizer que, em Modernidade, ainda vivemos em estado de
guerra. Mesmo que por um lado invista em findar o medo da morte
violenta, pela civilização, acaba por criar a barbárie, incutindo mais
medo32. O homem olha para seu semelhante na desconfiança do pior,
em desespero. O anseio por segurança torna-se uma obsessão do
sujeito tanto quanto seu medo é crescente frente aos perigos impostas
pelo meio. Não faltaram homens ilustres para afirmar que o sujeito da
Modernidade é o sujeito do medo. Portanto, não podemos ter em
mente que o estado de guerra não existe na Era Moderna, pelo
contrário, mais razoável parece ser afirmar que ele é seu estado
natural.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
22
Parte II
O Vento das Transformações: A Consolidação de uma Era Revolucionária
“Sabemos que as revoluções não se fazem de água de rosas”
(Maximillian de Robispierre)
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
23
Capítulo V A Natureza d’Aquele Que Desvia
É certo, como demonstram as evidências, que ao observamos o
correr da história, nada permite uma afirmação segura acerca de uma
data e local precisos para o surgimento da Modernidade. Conhecemos
apenas o período e o espaço na qual as modernizações vão tomando
corpo, dando forma ao espírito, desdobrando a potência, fazendo ato
aquilo que, doravante tornar-se-ia o senhor deste mundo. Contudo, é
de consenso de muitos estudiosos do assunto, dentre eles, Giddens,
Featherstone, e Berman, que o demônio eclode no auge do chamado
Renascimento Cultural. A partir deste ponto estouram as consequências
dos processos anteriores, intensificando as mudanças. O panorama da
Europa – que já havia se alterado com as Cruzadas –, no século XVI, se
transforma radicalmente. As mudanças institucionais tocam todas as
esferas da sociedade, alterando o modo de vida do homem, muito
principalmente por conta daquela convicção que está no centro do
pensamento renascentista (e porque não dizer em todo o pensamento
moderno): a filosofia humanista. Afinal, acreditavam os gênios do
renascimento que o homem estava no centro do mundo, portanto, todo
conhecimento deveria ser voltado a ele. Este antropocentrismo vai se
estender dai em diante, contrapondo as explicações espirituais e
sobrenaturais, principalmente relativas à existência de uma autoridade
superior – como posta na Idade Média. Quem haveria de negar que é a
Modernidade, em si, humanista convicta?
“Estou aqui com o meu nariz no chão desde que tudo começou!
Eu nutri cada sensação que o homem foi inspirado a ter. Eu me
preocupei com os seus desejos e nunca o julguei. Por quê?
Porque eu jamais o rejeitei, apesar de suas imperfeições… Eu
sou um fã do homem! Eu sou um humanista. Talvez o último
humanista” 33.
No pandemônio criado no alvoroço da ruptura Mephisto
desenvolve-se e atinge a mocidade, trazendo consigo o sentimento que
toma o coração dos homens: as coisas nunca mais serão as mesmas. A
partir de então o termo ‘modernidade’ ganha espaço, cabendo tanto ao
período e local, quanto ao modo de vida da sociedade que caracterizou
este mesmo momento na civilização Ocidental34. Os autores da época,
recuperando o humanismo clássico Greco-Romano, fundiram o
conceito de modernidade a cristandade para distinguir as sociedades
antigas das ditas por eles “modernas”.35 Cria-se então uma exagerada,
e de certo modo agressiva – quando não grosseira –, aversão para com
a Idade Média, pois acreditavam os Renascentistas que seu legado não
poderia ser continuidade daquele tempo de trevas. Trataram, pois de
obscurecê-lo, e batizar seu período como o renascimento da cultura
helenístico-romana, morta em tempos melancólicos medievos. Mais
tarde, o Iluminismo do Século XVIII criou a divisão clássica dos
períodos, interpôs Medieval entre aquilo que é Antigo e o que é
Moderno, bem como fez a identificação de Moderno como tudo aquilo
que “é aqui e agora”, dando um caráter de fluidez muito maior ao
conceito. Doravante, a Sociedade Moderna era aquela em que vive o
homem ocidental, seja no XVIII, XIX ou no hoje. Sociedade Ocidental
torna-se então sinônimo de Modernidade, principalmente quando
comparada com as demais sociedades do mundo ou sociedades de
épocas anteriores36. Mas, se este esclarecimento é importante, tanto
mais é a ressalva que jamais se deve confundir Idade Moderna com
Modernidade. O primeiro conceito corresponde a um período de
tempo estabelecido, tendo em vistas fins didáticos, o qual tem seu
princípio na tomada de Constantinopla pelos turcos e seu final com o
advento da Revolução Francesa; agora, muito mais do que isso é a
Modernidade: é mais que um período histórico, pois é a
transcendência de barreiras e a destruição de fronteiras; é mais que
caracterização, pois não se prende a padrões ou modelos; é mais que
um espectro ou fantasma, pois é todo um ambiente. Modernidade é
tempo-espaço, detém tanto o período quanto à sociedade que lhe é
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
24
inerente. É o seio que traz a aventura, o prazer, à autotransformação e
a transformação do meio, uma dinâmica de mudança de si e do tudo
que está ao seu redor37, que se mistura e se confunde com nossa
própria história.
Do Renascimento em diante o mundo começa a experimentar
o viver da vida Moderna, que, pouco a pouco, vai se intensificando e
se consolidando como hegemônica. Marshall Berman trata desse
processo com extrema perspicácia, dividindo o advento da
Modernidade em três grandes fases38: (1) a primeira se inicia com o
renascimento, em meio as avassaladora incerteza das grandes guerras
e as aventuras das grandes navegações, envolvendo toda a era que
vulgarmente se conhece como Idade Moderna. Nesse estágio o
demônio ainda é sutil, tem aparição tímida, se espalha vagarosamente,
explorando um mundo permeado de caos e desordem, tomado pelo
medo e o desespero. As pessoas ainda mal sabem o que passam, mal
sabem com o que lidam, estão ‘reaprendendo a viver’. (2) O segundo
cobre o imenso vento das transformações do século XVIII, o intenso
fervor da era das revoluções sociais, econômicas e política. Trata-se já
de uma Modernidade mais madura, um ambiente de ação firme e já
postado, onde as pessoas se sentem parte do mundo das mudanças, do
velho e do novo, há um sentimento de participação no social; em vias
de aparência existe o compromisso com o coletivo que impulsiona os
homens a transformações do mundo. É a era de consolidação sólida do
demônio, da mocidade para fase adulta. E por fim, (3) o terceiro toma
o fim do século XIX e início do XX, marcada pelo “boom” tecnológico,
as grandes e sangrentas guerras, bem como o ritmo frenético do
neocolonialismo mediante a corrida das potências a fim do controle do
globo terrestre, tudo já está envolto pela rede da Modernidade, a
tecnologia reina soberana no mundo. Mephisto é senhor do tempo-
espaço: “Quem, em sã consciência, poderia negar que o Século XX não
foi meu? O século todo Kevin! Todo meu. Estou no topo. É a minha
vez agora(...)”39.
No entanto, muito embora essa classificação seja bastante
razoável, atualmente, ela carece de uma pequena complementação,
pois não se estende até os tempos atuais – dado a data de escrita de
Berman. Problema que muitos autores se dispuseram a resolver;
alguns, em especial, chegaram à conclusão de um fim da
Modernidade, como se alcançado o terceiro estágio, ela se
transformasse em outra coisa – a crença, altamente difundida, na
chamada teoria da “pós-modernidade”. O presente trabalho não
compartilha desta perspectiva. Não há indícios de que a Modernidade
findou-se por completo ou que vivemos um período hibrido ou
totalmente diferente do que se seguiu até agora. Quando dizemos que
o mercantilismo foi período hibrido, nem totalmente capitalista, nem
totalmente feudalista, como afirmou Marx, temos em perspectiva o
passado, isto é, olhamos para o mercantilismo portando conhecimento
tanto sobre o feudalismo, quanto sobre o capitalismo, de um ponto de
vista muito adiante a ocorrência do fenômeno; do mesmo modo
quando afirmamos que a Modernidade tomou o lugar das Sociedades
Tradicionais dos tempos antigos, estamos baseados na ideia de ruptura
e abandono da ordem anterior. Creio serem, ambos, raciocínios
precipitados de estabelecer para a Modernidade nos dias de hoje;
constituir-se-ia, no mínimo, ação temerária sustentar tal lógica,
arriscado a arrependimentos futuros. De todas as características que
este trabalho apresenta (e pretende apresentar), não há como preterir a
ideia do ambiente (ainda) ser moderno, de sua formação até nossos
tempos; uma ideia de Era pós-moderna ainda carece de muito
substrato40.
Devemos ter em mente que a mudança e a transformação
comportam um ambiente moderno, e se ainda se mantém a essência e
os postulados centrais que conduzem (e conduziram) seu movimento,
sistemicamente, penetrando e corroendo as diversas esferas da
sociedade. Argumento no sentido de dizer que a Modernidade apenas
parece ter dado lugar a outro fenômeno por conta da aparição de novos
fenômenos, antes nunca vistos, mas, em essência, o ente não se alterou;
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
25
portanto, muito mais coerente parece ser a ideia de que ela apenas vai
se radicalizando em si própria, como afirmou Giddens41, crescendo, se
intensificando e se expandindo, com base no excesso. Não há indícios
razoáveis para crer numa “superação” da condição de moderna.
Portanto, devemos acrescentar mais um período a esta contagem, um
quarto estágio, de total radicalização, que eclode com o fim da guerra
fria e o advento da chamada revolução cibernética; a democracia, o
racionalismo e a secularização reinam nos âmbitos político, social e
econômico absolutas; há interligação e interconexão, não há mais
espaço para revoluções; os valores são efêmeros, e o culto é no sentido
do eu cria o sentimento de exclusão e incentivo do à tirania da
vontade. É na radicalidade, a fase mais agressiva e traiçoeira, na qual o
demônio se presta justamente a seu maior trunfo: convencer o homem
de que ele não existe.
Ademais, a razão pela qual se pode dizer que um período
histórico é Modernidade, e outros não, reside na identificação do
comum, da sua forma. Ora, como o Doutor Fausto, a maioria dos
homens letrados se dá conta da presença do diabo quando este já
aparece declaradamente. Como é natural, os homens se dão conta das
coisas quanto mais às necessidades se aproximam de sua vida; e, é
nesta situação que os mais virtuosos identificam a natureza dos
problemas em si, enquanto a grande maioria vê apenas uma imagem,
não transcendendo nada além do que seus olhos podem ver. Ao longo
dos anos, a Modernidade vai dar demonstrações suntuosas,
despertando o olhar crítico da sociologia e da filosofia. Na sociologia,
por exemplo, dos seus três grandes expoentes clássicos, nenhum falou
do demônio da Modernidade propriamente dito, contudo, trataram
com precisão de fenômenos importantes que nela se desenvolvem
como órgãos necessários a sua forma. E se alguém dirá que não
fizeram contribuições razoáveis para esta discussão, devemos então
perguntar se não é útil para conhecer um homem suas obras e ações,
bem como o efeito delas? Ou ainda se não é útil para o conhecimento
da natureza do homem o conhecimento da razão? Bem como para
conhecer o corpo saber sobre seus órgãos? Enfim, não é possível dizer
que a Modernidade se define e só se caracteriza como fruto da
crescente e vertiginosa industrialização, de constante revolução,
principiada na ordem capitalista, como sistema político-cultural, como
expresso nos pensamentos de Marx; nem pela impulsão da nova
divisão social do trabalho e a positividade da ciência, como constatou
Durkheim; nem mesmo por uma ética de convicção, que modificou a
racionalidade vigente, e, por produções irracionais formou um novo
espírito, ou ainda da expansiva e maximizada burocratização e
secularização presente nas instituições do mundo como coloca Weber.
Ora, do mesmo modo que não se define um homem por seu pulmão,
coração ou cérebro, mas também, jamais se dirá que estes são apenas
acidentes de seu ser, não há de desconsiderarmos a matéria que se une
à forma. A Modernidade é espírito, de todo um ambiente, como
afirmou Marshal Berman, que retém a tudo isso em si, absorvendo
suas criações como sua parte integrante, essencial e natural, no
entanto, sem se deixar definir por elas, mas permitindo sua confusão
quando olhado superficialmente. No fim, todo ambiente de
organização social, que tem e teve engendrado a si um conjunto de
experiências vitais dados no Capitalismo, Estado-Nação e Lógica de
Vida Moderna, foi e é Modernidade.
Essa forma é comum, mesmo que ocorram variações por conta
do grau de desenvolvimento – em certos casos há potências melhores
desdobradas, em outros não –, ou exista a relatividade acidental
imposta pelos fatores do plano terreno – afinal, a Modernidade no
Brasil não é igual à Modernidade da Alemanha, bem como essa difere
da Modernidade nos Emirados Árabes. A matéria muda, mas se existe
o específico é fato que exista necessariamente o geral, portanto, ainda
que as particularidades separe, o universal junta. Afinal, chimpanzés e
gorilas são igualmente símios, do mesmo modo que o Fulano e o
Cicrano são igualmente homens, e assim por diante; ninguém haveria
de contradizer isso. Mesmo que o demônio mude sua persona, não
muda sua essência – vimos isso claramente em sua aparição ao Doutor
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
26
Fausto, primeiro como um cão treinado, posteriormente como um
estudante. Modernidade é então forma que contem formas: os
Tentáculos de Modernização. Instrumentos direto da ação, é o meio pelos
quais as experiências de viver a Modernidade se dão. Seus frutos, suas
crias, surgem e se desenvolvem no ambiente moderno, englobam seu
meio, diluem-se em seu seio, consolidam-se como poderosos agentes
da transformação, e, ao fim, enquanto prole, confunde-se com sua
própria mãe-geradora.
Podemos dizer que cada um dos Tentáculos nasce e se
desenvolve em uma esfera autônoma da sociedade: Política,
Econômica e Social42. Respectivamente, (1) Estado-Nação, o todo-
poderoso órgão controlador dos homens, é, como diz Weber,
reivindicador do monopólio legítimo da utilização da violência física43,
bem como senhor do exercício do direito, mantenedor da lei e da
ordem por seus códigos e constituições; (2) Modo de Produção
Capitalista, sistema econômico que prima pela eficiência dos meios e
eficácia dos fins em vistas do lucro, incentivando a livre competição,
transformando tudo que toca em produto ao passo que direciona os
anseios para o consumo; (3) Lógica de Vida Moderna, o sedutor e
envolvente modo de vida que liquefaz as relações sólidas, sustentado
pelos dois primeiros, permite que cada mortal seja príncipe de seu
próprio mundo, elevando o querer a imperador da existência a partir
da alienação decorrente do pacto moderno. Como instituições
primeiras e essenciais, primam pelo fim e pela função do diabo,
auxiliando em sua realização a partir do principiar das instituições
modernas – criações com uma natureza diferente de tudo dantes visto44
– sempre a partir do movimento único que marca a toda a Era
moderna: a dialética da transformação.
Em especial, Anthony Giddens, coloca que a Modernidade é
uma ordem pós-tradicional, tendo como característica básica à mudança
– e não nos deixa mentir as falas do diabo ao Dr. Fausto, referindo-se a
nova vida: viver é mudar e mudança é a vida – centrada em duas
características básicas únicas: o ritmo de mudança, uma dinâmica
absurda do movimento, que impressiona pela rapidez da velocidade
que as instituições vêm e vão no ambiente; e o escopo da mudança, o
imenso contato que se infringe as localidades do globo faz com que as
transformações sociais penetrem em todos os âmbitos, corroendo
valores, diluindo postulados e atentando contra aquilo que se anseia
eterno e perpétuo45. Essa estrutura se diferencia, gritantemente, de
toda e qualquer Era antes vista. Os tentáculos promovem, asseguram e
perpetuam a mudança, nos mais variados âmbitos da vida. Razão pela
qual Mephisto se apresenta como o gênio que a tudo nega46; ora, é em
impelir na negação, no estorvo do que existe é em que consiste essa
mudança. Esse fator torna-se a essência do funcionamento da lógica do
movimento que impulsiona a sociedade a seu fim, pois sua ação
consiste, basicamente, na não fixação de nada perpetuamente,
mantendo tudo em constante estado de vigília. Tudo no mundo
moderno, que tem criação, está em constante transformação, a fim,
naturalmente, de realizar todas as potências permitidas por seu ser, até
a plenitude completa, quando alcança o esgotamento, para assim,
posteriormente, pagar o preço da complementação da ‘ausência’ que
fora preenchida, a saber, sua existência mundana, causando então a
destruição, a qual, por sua vez, dará espaço à aparição de outra coisa,
recomeçando o processo. Tudo aquilo que se solidifica e adquire
caráter de perpetuo e eterno Mephisto torna sinônimo de velho,
colocando em oposição à inovação. É, portanto, moderno o que
ascender como novo em detrimento ao velho já existente e
previamente consagrado, bem como é velho tudo que já perdeu o valor
frente ao aparecimento da novidade. Logo, o velho só existe frente ao
novo e o novo só existe frente ao velho; contraditórios e
complementares, necessariamente.
Dessa maneira, podemos dizer que a Modernidade não se liga
ao passado, e nem estabelece ligações com ele. O demônio o tem
apenas como referência. Aquilo que já cumpriu sua função deve agora
dar espaço ao novo, pois sempre há outra alma a ser comprada frente a
que foi levada, o Salão das Almas está longe de se esvaziar. A
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
27
mudança é então, completa, pois nunca deixa vácuo de necessidade, e
ao mesmo tempo, incompleta, pois deixa tudo em constante
transformação, dando fluidez ao progresso; em suma: é aquela força
que empenhada no mal, só o bem promove. Dada no esquecimento do
passado e na fé do futuro – afinal, quando pensam em vida moderna,
raros, ou quase ninguém, tem em vistas as origens de séculos, e as
transformações radicais do fim da Idade Média, ao contrário, estão
sempre depositando a fé e a crença do moderno como algo que ainda
está por vir, o portador de um futuro glorioso. Essa matéria que dá
forma ao ente Modernidade traz, invariavelmente, ao mesmo tempo, a
ideia de movimento eviterno, de início dado, sem final previsto,
transcendente a matéria, impregnada como conjunto de experiências, o
espírito de uma época; e, de constante transformação material do
espaço, do meio e de si mesmo, revolucionando tudo que existe,
constantemente.
Constitui-se, pois, tanto para as coisas, quanto para o homem,
ser moderno como viver e conviver constantemente com as forças em
choque, em meio à criação e a destruição, na lógica da mudança. O
doutor Fausto descobre pelas palavras de Mephisto que deve
empenhar-se na destruição para construir, e na construção para
destruir; deve viver a dialética para então ser moderno. O modo de
vida, pois, se diferencia de todos os modos tradicionais que se fizeram
presentes na história da humanidade até então, nas próprias palavras
de Giddens:
Os modos de vida produzidos pela modernidade nos
desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social,
de uma maneira que não tem precedentes. Tanto em sua
extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as
transformações envolvidas na modernidade são mais profundas
que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos
precedentes. Sobre o plano extensional, elas serviram para
estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo;
em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais
íntimas e pessoais características de nossa existência cotidiana.47
Modernidade, pois, torna-se “o conceito de contraste” utilizado a
partir de então, extraindo seu significado tanto daquilo que nega,
como do que afirma48. Mephistopheles é implacável: realiza os maiores
e mais profundos desejos dos homens, ao passo que lhe cobra valor
danoso. Com a mesma força que constrói, destrói, para depois
construir de novo o que mais a frente será destruído. Esta premissa é o
que dá vida ao seu maior braço, o espectro de transformação da
Modernidade: a Modernização. Ela age em função do ambiente e,
reforma ou destrói o espaço, de acordo com a necessidade ou
conveniência da Modernidade, mantendo a mudança, em estado de
constante vigília, por meio da revolução permanente – característica
marcante que vai consolidar os tentáculos, as instituições e os produtos
de todas as criações sob a influência e poder do diabo infernal. Traz
satisfação e insatisfação; prazer e dor; alegria e tristeza, explorando,
através de características peculiares, formadas ao longo da história, a
nova vida do homem: a vida faústica.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
28
Capítulo VI O Aborto do Esclarecido
Naturalmente, Hobbes não fora o único que buscou uma
solução para o problema posto ao nascer da Modernidade. John Locke
(1632-1704) aparece posteriormente com o fim de buscar o melhor
pacto que funde a sociedade. Hobbes demonstra como as paixões
movem o homem em busca de seus desejos, bem como podemos ir à
guerra pela razão, por conta do medo e da esperança que cada um tem
– como já fora explanado anteriormente. Por isso é necessário o
Leviatã, o homem artificial49, que coloque todos em respeito, e force os
homens a tirar proveito da companhia uns dos outros. Locke crê que o
pacto que funda o soberano não põe fim à guerra, apenas a leva para
outra instancia, mais perigoso e mais terrível, pois é o próprio
soberano um particular que oprime os outros particulares: em suma,
ela cria um déspota absoluto, pois é o soberano também um particular.
Seus argumentos se baseiam na inversão do Leviatã, pois, o
pacto que funda sociedade civil é anterior ao pacto que funda o
Estado. Como são todos iguais e irmãos, vindos do mesmo Ser, não é
racional que se atente contra a vida do outro, o direito de preservação
é então coletivo, de toda a humanidade, e não do particular. Criar o
mal a um igual significa criar um mal a si próprio; atentar contra a
propriedade natural significa atentar contra a si pela igualdade e a seu
Dono pela criação. Para Locke, aquele que se presta a tal ação
temerária não está dizendo que merece ou pode receber igual
tratamento como em Hobbes, apenas está se declarando diferente dos
demais, isto é, fora da humanidade. É razoável então caçar e executar
este homem por justiça: fazendo-lhe um mal que criará dois bens, (1)
evitará que se repita e (2) desenvolvera a obrigação da reparação do
dano, fatores que manterão a estabilidade do coletivo. Para Locke o
poder executivo é dado pela força dos homens, do coletivo da
humanidade, existe naturalmente, não precisa ser criado. O poder
artificial, o político, é apenas legislativo, deve se pautar na criação das
leis positivas que assegurem o principio de justiça natural (citado
anteriormente). Locke fará então a distinção entre governo e Soberano,
pois o governo é fundação artificial, administrador e executor, o
funcionário do Soberano, que, por sua vez, é o próprio povo, a
assembleia reunida. Um governo não deve ser Soberano, pois, neste
caso, significa que um particular usurpou o poder, declarando-se mais
que os outros. O Estado de um déspota absoluto é um mal particular,
travestido de público, que atenta contra os particulares. Neste caso, é
razoável decapitar um rei, é justo derrubar o governo, é legitima a
insurreição contra o Estado, pois se tem um caso claro de violação do
direito natural – Locke é o primeiro a assegurar uma revolta civil como
direito. Ao contrario de Hobbes, Locke não está atrás da segurança,
mas sim da legitimidade, dada apenas quando não se há poder
absoluto, e o Soberano é a própria reunião da comunidade, pela
confraternização, limitada pela razão e o direito natural, não atentando
a propriedade50.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) segue o raciocínio do
direito natural, contudo, atenua dizendo que os homens não escolhem
a sociedade, eles são empurrados a ela, em um dado momento que não
pode ser apontado. Para Rousseau, quando os homens não se
bastaram por si só, foi preciso à união; pois o homem é um animal que
não possui vantagem alguma, sozinho ele jamais iria procurar a
guerra, nem mesmo a companhia alheia51; contrariando Locke e
Hobbes, simultaneamente. No estado de natureza, o homem apenas
busca a sua conservação, guiado pelo amor a si, que vem do coração,
única fonte de verdade legítima52. A questão é que, desta união, dado
pelo montante de homens, conjura-se a força, mas, em compensação,
cria-se a alienação. O argumento de Rousseau centra-se na ideia de
que, em sociedade, o homem precisa olhar para o outro. Esse
movimento vai afasta-lo do ‘amor de si’ e conduzi-lo ao ‘amor a sua
persona’, isto é a máscara que ele veste perante todos. Em suma, o
mais importante não é como alguém vê a si mesmo, mas como os
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
29
outros o veem. Cria-se uma sociedade marcada pela perda do ‘eu’ e a
supervalorização de uma imagem social, nas múltiplas representações
que cada um usa no cotidiano, as quais, juntas, formam o ‘eu’. No fim,
o homem nasce livre, contudo, está cercado de grilhões por todos os
lados, pois sai de sua liberdade individual natural para entrar na
liberdade civil artificial53. Sua critica aos seus antecessores se dá no
sentido de que as soluções propostas perdem o homem como
referencial sempre, impulsionando uma sociedade que não deixa o
indivíduo florescer: seja por Hobbes, em sua alienação empírica do
homem em função da sobrevivência; ou por Locke, em sua alienação
metafísica em função das posses. Perder-se, para Rousseau, é viver no
mundo das sombras.
A sociedade é o problema. A união social traz a necessidade de
olhar a si mesmo pelos olhos alheios. Ela traz o estado de mal quando
corrompe a natureza dada. Precisa ser ‘refeita’. Segundo Rousseau, em
toda a natureza pode se encontrar ordem, mas, na sociedade não, ela é
a expressão do caos54. A esperança de Rousseau em fazer uma
sociedade mais justa reside na máxima de seu pacto: em tornar o
homem tão livre quanto no estado de natureza, resgatando seu amor a
si. Rousseau vai dar total ênfase ao indivíduo. Não mais Deus ou a
Sociedade são o cerne do pensamento, agora, o homem é o único fator
de importância, e só a ele deve-se voltar todo o pensamento. Rousseau
será o homem que vai influenciar fortemente os ilustrados de seu
futuro, homens que, analisando sua presente sociedade observavam a
filosofia católica enfraquecida, o social em crise, e a onda crescente da
filosofia em busca de respostas ao século de terror e perigo.
Ao chegar do famoso Século das Luzes, vem o Iluminismo55:
aquele aspecto que vai ajudar a dar forma e corpo à ideia de destruição
dos valores tradicionais ainda vigentes. Apaixonados por Rousseau e
suas proposições tão positivas, estouram a corrente filosófica que, ao
passo que se cria com base nos filósofos do Século XVII, como Rene
Descartes, Francis Bacon de Verulamio, Michel de Montaigne (1533-
1592), Baruch Spinoza (1632-1677), Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac
Newton (1643-1727) também lhes dá novo significado e novas
perspectivas56. Trazia a união da razão e da observação em um método
só, alegando que a mente pode apreender o conhecimento,
questionando a ideia de que tudo está pronto, dado por Deus. Em
suma, viam nas proposições do racionalismo e do empirismo fatores
para criar um método, que poderia refazer a sociedade. Grosso modo,
esse método passava pela transformação radical do sujeito em relação
aos antigos, com base no resgate e ressignificação de Descartes e
Montaigne. (1) o primeiro, por conta do tocante da razão e de sua
busca. Descartes parte de si, de suas dúvidas, a fim de encontrar aquilo
que faz do homem ‘Homem’. Concebe assim o seu cogito de existência:
o sujeito enquanto racional conhece o mundo objetivo, pelo contato
com as ideias, a partir da abstração de toda a matéria. É a razão a
essência do homem, bem como único modo de conhecer todas as
coisas57. (2) Já Montaigne, por outro lado, não vê um mundo objetivo,
tudo é um para si, e o conhecimento das coisas é dado apenas na
experiência particularíssima. Existe uma ética nas ações do homem
para consigo mesmo, que despreza qualquer existência de uma
natureza ou coisas que estão além do conhecimento subjetivo, afinal,
estes não podem ser provados, não há nada que assegure essa
existência58. A questão é então uma ‘combinação’ dos preceitos: o
sentido subjetivo do homem que conhece a si e não carece de ajuda
externa do social preenche em matéria aquele espírito capaz de
conhecer o mundo objetivo. O sujeito é, portanto, racional e ético, tem
a capacidade de conhecer e reconhecer, através de juízos a priori e a
posteriori59; faz-se então capaz de transformar a sociedade da melhor
maneira possível, baseado na razão e na observação, focando a
verdade, verificando o que é lógico, razoável e adequado.
Para o Iluminismo a maneira pela qual a sociedade estava
organizada estava errada, o indivíduo é o dono de si mesmo, somente
precisa da consciência para exercer sua liberdade. Como relata
Immanuel Kant (1724-1804) o Iluminismo é a libertação do individuo
das amarras que o prendem:
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
30
"O Iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma
tutelagem que estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são
aqueles que se encontram incapazes de fazer uso da própria
razão independentemente da direção de outrem. É-se culpado
da própria tutelagem quando esta resulta não de uma
deficiência do entendimento mas da falta de resolução e
coragem para se fazer uso do entendimento independentemente
da direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso
da tua própria razão! - esse é o lema do Iluminismo” 60
O era o que faltava à Modernidade. Sua filosofia agia contra
aquilo que o demônio negava, combatendo a tradição revelada, e se
chocando com a estática proveniente da naturalização da sociedade
pelos valores e dogmas da ética católica e de toda antiguidade.
Segundo a perspectiva do movimento, as Intuições Tradicionais das
sociedades da Antiguidade e Medievalidade eram contrárias à
natureza do homem61; o homem nasce bom, limpo e puro, é a
sociedade que o corrompe; naturalmente, ele tinha posses e o direito a
elas, bem como suas paixões nada tinham de pecado ou maldade,
retomando partes do discurso de Locke e Hobbes. Não se faziam
necessários os freios sociais propagadas pela Igreja Católica ou pela
filosofia antiga. A índole humana não carece de controles. O medo e o
desespero só vinham por conta da organização social que travava o
homem, prendendo- o numa hierarquia violenta e abusiva.
Ademais, o Iluminismo vinha para destituir aquilo que se
colocava como fanatismo em relação ao pensamento, tendo por base a
esfera do dogma, e, portanto, instaurado sem base racional, cerceando
o desenvolvimento das forças da humanidade. Era preciso demolir a
Cidade de Deus62, dar um basta à hegemonia do pensamento que
favorecia o social e preteria o indivíduo, pois já se fazia insuportável a
partir da tomada de consciência pensar na sociedade e suas
instituições (as castas sociais, a Igreja, o Estado, a ética e moral católica)
que sufocavam e prendiam o homem. Os valores tradicionais
“antigos” não permitiam o florescimento das potencialidades
humanas; somente a razão e a vontade-livre do homem devem ter
espaço no seio social. O poderoso espírito de mudanças pretendia
alterar tudo aquilo que se apresentava a seus olhos como irracional e
infundado.
O fato é que o papel aceita tudo – como lembrou Catarina II da
Rússia ao iluminista Voltaire – diferente da realidade, um tanto mais
trágica. A construção de sujeito, confeccionada no iluminismo, ora
resgatando os preceitos convenientes dos filósofos anteriores, ora
reinventando outros, não figurou da maneira fixa e determinada como
esperado. Quando foi a realidade, naturalmente, não obteve os
resultados ansiados, como nos mostra o correr da história. Prestou-se
mais a um ideal de homem a ser perseguido, um objeto de crença, do
que uma realidade propriamente dita. Procurava-se deixar de lado os
dogmas religiosos que anteriormente organizavam a sociedade, mas,
na prática, apenas substituiu o objeto de crença: da religião par aa
ciência – “a razão se converteu como o Deus desses filósofos”63. No
movimento que faz o homem em busca de seus desejos, dispondo de
tudo para tal, esquece-se do cuidado de si mesmo e da busca do bem,
deixando a ética de lado, centrando apenas no sentido subjetivo do
gosto e da paixão; a razão conhecedora do mundo objetivo reduz-se a
instrumento de calculo, perdendo seu sentido deliberador e
moderador; no fim, a supervalorização da própria ‘persona’ faz com
que os homens deem mais valor a representações que os demais têm
dele, ao que realmente é...
No fim, efetivamente, o projeto Iluminista se degenera nas
mãos do demônio, provando serem vãs as tentativas de controle do
poder da Modernidade. Não nos deixam mentir as revoluções
políticas, sociais e econômicas.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
31
Capítulo VII A Onda Revolucionaria e suas Reverberações
Vem então a Revolução Francesa. Oportunidade de ouro para
valer os preceitos iluministas na prática. Acreditavam os homens que
este era o grande momento de mudança, o mundo jamais seria o
mesmo. E, de certo modo estavam certos. Só esperavam que os
resultados das mudanças lhe fossem favoráveis ao fim. Todavia, a
realidade fora muito mais cruel. O sonho d’A Revolução Francesa de
tornar o mundo mais esclarecido, racional e adequado, a bel-prazer
dos homens ‘iluminados’ transformou-se num pesadelo de sangue e
fúria.
O fenômeno da revolução foi parido no desejo de cassar os
privilégios do primeiro e do segundo estado, e dar devida participação
política com peso ao terceiro estado (em número absoluto,
absurdamente maior que os outros dois juntos), bem como o findar a
fome e a miséria, que tornavam a vida cada vez mais terrível. Em
geral, a situação do povo nunca na história tinha conduzido a uma
revolução, haviam criado revoltas ou insurgências, mas nada tão fora
do controle. Dessa vez era diferente. A França era um país no qual a
maioria de seu povo encontrava-se na pobreza derradeira, as
condições de trabalho eram horríveis, e a miséria e sofrimento era a
regra na vida das pessoas. Ademais, o modelo de administração
política adotado (o absolutismo monárquico), passava por uma imensa
perda de força com as dívidas conseguidas com a derrota na Guerra
dos Setes Anos e a ajuda fornecida aos americanos em sua
independência, fora os gastos astronômicos da corte com a nobreza e o
clero. O surgimento do movimento era inevitável. O terceiro estado se
revolta e toma a Bastilha. A Revolução estava instaurada. Agora, os
homens, impulsionados pelos ideais iluministas, se debruçam a criar a
‘sociedade perfeita’.
Em um curto espaço de tempo (quando falamos da história da
sociedade, dez anos não são nada) se criam as assembleias constituinte
e legislativa, a monarquia é deposta, o rei é caçado e decapitado,
declarações de direito e constituições são promulgadas, os partidos
entram em conflito, conspirações dominam a política, a França é
invadida pela Áustria e pela Prússia, enfim, em meio a revolução a
instabilidade, a insegurança e a efemeridade são a regra. Nada
permanece, tudo é fugaz e passageiro. Um período em especial deve
ser destacado: A República Jacobina. Este período é marcado como
sendo o ponto mais intenso e agressivo de toda a Revolução. Os
Jacobinos (a pequena burguesia), com a ajuda da Comuna de Paris e
do sans-culottes, assumem o poder. Em 1793, Luís XVI e Maria
Antonieta foram executados em praça pública, fato que fez as outras
nações monárquicas formarem uma aliança contra a França
Revolucionária, naturalmente, liderada pela Inglaterra (inimiga
histórica dos franceses), a qual financiava contingentes militares para
conter o ímpeto da burguesia francesa, bem como incitava a discórdia
nas facções, tendo ajuda da nobreza e do clero. A situação vai
tornando-se crítica, e os conflitos se intensificando. Os Girondinos (alta
burguesia) começam a ficar receosos com os rumos da Revolução, pois
tinham suas posses e bens para zelar, tentam então freiam os ânimos,
contudo, sem sucesso. O povo, revoltado, cerca a Convenção, e pede a
cabeça dos deputados girondinos. Instaura-se a fraqueza econômica, e
o movimento contrarrevolucionário cresce. É neste momento que
Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794), Jean-
Paul Marah (1743-1793) e George Jacques Dalton (1759-1794) assumem
o controle do governo, através da Convenção Montanhesa.
Começa então o ponto mais crítico de toda a Revolução. Os
Jacobinos, liderados por Robispierre, instauram diversos comitês para
conter os movimentos contrarrevolução, mobilizam contingentes a
lutar pela França e controlam o governo; dentre as medidas, destaca-se
aquela que vai ser ponto principal: O Tribunal Revolucionário, o qual
julgava e condenava os inimigos do movimento. Estima-se que de
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
32
trinta a quarenta mil pessoas tenham sido guilhotinadas neste período.
Os inimigos eram caçados, julgados e condenados. Arbitrariamente.
Os direitos civis foram cancelados temporariamente. Dava-se inicio ao
Terror. Ora, a instabilidade cresce de maneira tão vertiginosa, a revolta
adquire tamanha proporção que envolve a tudo e a todos, por todos os
cantos, de maneira selvagem, indestrutível e incontrolável, jamais visto
em toda a história do mundo. Nem a monarquia e nem a burguesia,
nem os jacobinos e nem girondinos, nem príncipes e nem os padres,
sobretudo, nenhum poder humano podia controlar o terror e a
desordem e seus efeitos que explodem com o movimento
revolucionário. Ademais, parece que uma revolução não tem amigos, e
seus inimigos só crescem. Nela, tudo é mais intenso, a raiva, a
ganância, a cobiça, a mentira, a vaidade, a inveja, a ira, a opinião, e os
dogmas; as paixões afloram de modo mais intenso, e no fim, aquilo
que tinha por fim fazer um “mundo melhor” instaura um período de
guerra e terror.
Por uma ironia do destino, apesar de demonstrar conhecer a
lógica daquilo que estava envolvido, o próprio Robispierre tem um fim
trágico. A lâmina voraz e cruel criada para destruir os inimigos do
movimento revolucionário possuía uma sede de sangue tão grande e
furiosa que somente cessou quando a cabeça de seu maior comandante
foi ao chão64. A falta de virtude de Robispierre, somada a sua
imoderação desastrosa, o conduziu a este triste fim. Desgastada com os
excessos da revolução, a burguesia queria paz e segurança para
administrar seus negócios, sem os congelamentos de preços – posição
defendida por Danton, por exemplo. Ora, não é o fim do medo da
morte violente e o fortalecimento da esperança de prosperar com o
trabalho que falamos aqui? Mas, Robispierre queria mais, tomou uma
série de medidas impopulares, em nome da pátria, destruindo os
radicais da direita e da esquerda, permanecendo sozinho no poder. Os
sobreviventes do Terror, aliados aos deputados descontentes,
articulam um golpe, e em 9 Termidor (de acordo com o calendário
revolucionário), tomam o poder, e derrubam Robispierre, que, já não
tinha defensores ou aliados que pudessem salvar sua vida.
Desencadeou tanto ódio de seus inimigos, quanto o desprezo de seus
amigos. Os jacobinos são perseguidos e guilhotinados. O projeto
burguês surge: os preços são descongelados, os clubes políticos
dissolvidos, o Tribunal Revolucionário encerrado, chega ao fim às
prisões e os julgamentos arbitrários, e se estabelece o Diretório. É o fim
do sonho popular. A alta burguesia Girondina retorna ao poder. A
Revolução ainda vai se desdobrar outras várias vezes, até que o
processo revolucionário culmine na chegada do Imperador Napoleão
Bonaparte.
A onda revolucionária e seus efeitos que atingem a Europa e as
colônias americanas, por um longo período de tempo. E antes de
iniciar a este assunto, àqueles que argumentam acerca do fato das
“libertações coloniais” não serem revoluções propriamente ditas, devo
dizer-lhes que não cabe aqui discutir o que é e o que não é revolução,
pois o presente trabalho não se presta a isso; ademais, estão estas
incluídas na “onda revolucionária”, pois nascem da influência do
iluminismo e contribuem para a transformação do Estado-Nação em
que se desenvolvem, razões mais do que justa para considera-las.
Além do mais, o primeiro movimento, e muito provavelmente o mais
bem sucedido, fora a Guerra de Independência dos Estados Unidos.
Os ideais iluministas motivavam e incendeiam a guerra pela libertação
das Treze Colônias do julgo da Coroa Inglesa; pela primeira vez na
história da expansão europeia, uma colônia se tornava independente
da por ato revolucionário; e não, obstante, a redação de sua carta
proclamava o direito de liberdade de escolha e a independência de
cada povo e de cada pessoa (buscando em Locke, todos têm o direito
inalienável à vida, a liberdade e a procura da felicidade). Na França, a
Revolução Francesa, vem para destruir por total os privilégios de
nascença, oriundos da era Feudal, e instaurar a burguesia como classe
dominante em detrimento aos nobres aristocráticos. Na Inglaterra a
Revolução Gloriosa põe fim definitivo à possibilidade de retorno à
guerra civil depondo o rei católico James II, para estabelecer a
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
33
monarquia protestante com Willian de Orange, agora parlamentar e
constitucional, com os poderes do monarca descrito no Bill of Rights,
destituindo o terror do absolutismo. No Brasil, após a Revolução
Liberal do Porto, em Portugal, e a noticia de que o Brasil deveria voltar
ao status de colônia, influencia por José Bonifácio (chamada depois de
O Patriarca da Independência) e seus ideais iluministas, o príncipe
regente, Dom Pedro I, impelido pelas circunstâncias, declara o
processo de independência a fim de romper com o Reino Unido de
Portugal e Algarves, fundando o Estado brasileiro. Entre tantos outros.
E, muito embora os camponeses, pequenos comerciantes e
trabalhadores autônomos sentiram-se abraçados e participaram nas
linhas de frente das revoluções, por diversas vezes até pegando em
armas, todos os movimentos revolucionários se constituíam como a
universalização de um particular para o todo, não eram nada mais que
a tomada de poder por uma vanguarda “iluminada”, liberal burguesa.
E claro, naturalmente, todo o processo da onda revolucionário não se
deu de forma unificada no mundo. Uns foram mais tardios, outros
mais precoces, uns mais pacíficos e rápidos como a Inglaterra e sua
Monarquia Parlamentar outros mais violentos e complexos como a
França e seu processo revolucionário do Terror Jacobino ao imperador
Napoleão. No entanto, não é relevante aqui às particularidades delas, e
sim a lei geral, pautada no único fato que une a todas: a consolidação
do Estado-Nação em seus respectivos países.
As revoluções são feitas em nome do princípio lockeano de
insurreição, por conta do abuso de poder por parte dos soberanos.
Distingue-se o governo do soberano, assegurando o primeiro como
funcionário do segundo65, portanto, dissolúvel e efêmero dentro dos
padrões. É o Estado, na forma das assembleias –isto é, do governo – o
único a fazer as leis, como nas ideias lockeanas, mas, por Hobbes se
pactuam a soberania nacional com o direito de guerra do Estado contra
qualquer outro que possa lhe conferir mal, bem como a manutenção da
ordem e da segurança interna. O Estado é, como diz Weber66, aquele
que vai requerer o monopólio legítimo da utilização da coerção física
exclusivo, pois conjurou a força a união de todos os homens como já
colocava Rousseau67. A Montesquieu recorre-se para separar os
poderes (executivo, judiciário e legislativo), de forma a dar corpo a um
esquema que poder contenha poder e se evite a usurpação68. Com a
criação dos parlamentos e assembleias, o controle, a aplicação e a
criação das leis, antes dispersos nas mãos de senhores e reis, passa ao
Soberano, e assim, logo vem às constituições nacionais de direito:
regentes da conduta do cidadão nas mais variadas instâncias, sempre
genéricas e abstratas, de cunho racional, tem como fim prever e regrar
todos os movimentos necessários à manutenção da ordem. Os homens
abrem mão de sua ‘liberdade natural’ para ganharem a paz,
assegurada pelo direito e força, podendo dispor de tudo que a lei não
toque. Não obstante, adotam a sua moral, sua religião, suas crenças,
sua ‘ciência’, suas opiniões, e tudo aquilo que da esfera privada
puderem dispor.
A máquina administrativa do governo estatal absorve a razão
instrumental, assimilando a impessoalidade nos seus procedimentos
legais, se pautando em fixar aquilo que é razoável para se alcançar o
objetivo (a adequação de meios a fins). É neste contexto que vem a
burocracia, a qual, segundo Weber, é o principio de eficiência para
alcance da eficiência, em si. Surge então um novo corpo técnico,
diferente do anterior, dando-se por meio da especialização das
variadas técnicas e áreas de saber – radicalizando o processo iniciado
nas cruzadas de redistribuição do conhecimento. Essa burocracia
constitui passa a regular todas as instancias que cabem a sua rotina
administrativa, as quais, por definição, pertencem ao setor público –
desde a as relações externas até o modo pelo qual se dão os serviços de
utilidade, como saúde, habitação, transporte, educação, etc.,
permanecendo neutra e imutável (no mais das vezes, o serviço
burocrata estatal é feito por servidores públicos, os quais tem relativa
instabilidade; e, mesmo que não, é fato que não mudam a cada
eleição).
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
34
No mais, o Estado mantém, por meio do voto democrático a
constante revolução das instâncias políticas dirigentes – aqueles que
Weber vai chamar de Políticos por vocação –, sustentando a alienação
do homem do governo de si e dos outros na esfera pública. Pois, não
importa a roupagem que adote: socialista, liberal, democrático,
conservador, etc., o racionalismo estatal constitui-se como o bem em si,
e não mais o instrumento que deveria busca-lo, desvirtuando
sordidamente o princípio que buscava o geral – aquilo que seria
comum à comunidade – na forma da lei, anterior a modernidade. No
fim, mantem-se a constante revolução que dá liga a efemeridade do
mundo moderno.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
35
Capítulo VIII Deus Ex Machina, Vem o Capitalismo
Enquanto tocante à economia, como se constata
historicamente, o período ambientado em uma Modernidade ainda em
formação, é marcado por uma forma híbrida, nem totalmente
feudalista, nem ainda totalmente capitalista, isto é, tomada pelo
comércio já expandido, mais ainda com fortes traços da cultura
agrária. É o processo de definhamento do primeiro e surgimento do
segundo, contudo, sem hegemonia de qualquer um que seja. A esse
momento dá-se o nome de Mercantilismo. Em teoria, o Mercantilismo
é o conjunto de praticas econômicas, que, dentre outras coisas se valia
da crença que as riquezas das nações estariam na acumulação de
metais preciosos (chamado metalismo), no comércio externo com alto
teor de ganhos, monopólio comercial, incentivo ao desenvolvimento
do comércio das Nações e crescimento econômico acentuado. Assim, a
ordem dos príncipes era que o Estado vendesse seus produtos
manufaturados com valor altíssimo a qualquer comprador que
pudesse pagar seus altos preços arbitrários, garantindo assim uma taxa
de lucro elevada. O direito natural era cerne do pensamento
mercantilista - “o homem tudo pode por natureza” vale a economia
também.
Assim, as grandes expedições exploravam locais conquistados
(as colônias) e extorquiam os compradores das outras nações. Criava-
se um “estado de natureza” semelhante ao dito por Hobbes, onde,
justiça era fazer uso de todo o poder que detinha em prol de seu
Estado. Isso legitimava a gigantesca onda de saques e pirataria, na
qual, a corrida era sempre em função do metal precioso (ouro e prata).
Uma das maiores prejudicadas por essas práticas fora a Espanha. Em
virtude das inúmeras remessas de ouro e prata que enviava da
América Espanhola para o Velho Mundo, os navios da coroa
espanhola atraiam a atenção dos piratas, e assim, frequentemente eram
atacados e pilhados. Valido ressaltar que, como não existia norma
internacional, e a fiscalização marítima era pífia, muitos Estados se
valiam da pirataria para alcançar seus objetivos, seja contratando
piratas (chamados corsários) ou criando sua própria frota de piratas
(piratas da coroa, por mais estranho que possa parecer). A Inglaterra e
a Holanda utilizaram demasiadamente esta técnica. Em suma, as
grandes nações europeias, potências militares e econômicas,
enriqueciam mais e mais à custa da exploração das colônias e das
nações menos favorecidas. Essa acumulação viria a ser
importantíssima para o desenvolvimento do Capitalismo.
Grosso modo, pode-se dizer que esse período da sustentação e
forja as bases do que posteriormente seria o real Capitalismo. O
Mercantilismo era sistema perfeito para os Estados-Nação ainda em
menoridade. Enriquecia-se e o poder político-econômico aumentava
cada vez mais à medida que (1) o Pacto-Colonial assegurava a retirada
de matéria-prima das colônias sem custo algum, bem como o
monopólio do comércio entre a Metrópole e a colônia; (2) a rapinagem,
os constantes saques e a pirataria legal preenchiam os cofres em
caráter de “presente”; (3) o protecionismo alfandegário, sob a cultura
da balança comercial favorável (mais exportação do que importação)
assegurava grandes ganhos; (4) bem como os inúmeros impostos de
valores elevadíssimos asseguravam arrecadações fora do comum.
Ademais, essa situação impulsiona o comércio e a estrutura financeira-
bancária à medida que faz circular os produtos, exige manufatura e
requer financiamentos para produção e empresas estatais. No entanto,
a estrutura que se tinha começa a se tornar insuficiente para atender a
demanda do novo mundo moderno. Não se tinha espaço para
produção de matéria-prima e nem trabalhadores que se dispunham à
produção... Um novo problema começa a se desenhar.
Ora, a necessidade é a rainha de todas as invenções: inicia-se a
política de destruição da vassalagem. A Inglaterra é pioneira nessa
empresa. Com sua nobreza “aburguesada”, disposta e inclinada a
novas práticas de produção, e o Estado, através do “cercamento”69,
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
36
expulsam os camponeses dos antigos mansos servis, separando-os, ao
mesmo tempo, da terra e dos meios de produção que dispunham para
sua subsistência; não obstante, existiam imensos acres de terras
ociosas, de posse da Igreja Católica, que, com a explosão da Reforma
Protestante, e instauração do Anglicanismo, passam a ser
“secularizadas”70. Com essas medidas, cria-se uma alta concentração
de propriedade, em posse da nobreza ou do Estado (que por titulo
mobiliário certifica a posse71 a outros nobres menos favorecidos
naturalmente, a fim de incentivar a produção). O esquema servil é
dissolvido, os privilégios de nascimento entram em ruína e cria-se a
propriedade privada. Era preciso então garantir que a massa de
potenciais trabalhadores não criasse problemas e caminhasse para seu
lugar na manufatura. O Estado cria então as chamadas Leis
Sanguinárias: (1) a Lei da Vadiagem, que impedia o desemprego livre
e a esmola nas ruas, forçando o camponês a procurar emprego, e (2)
Lei do Rebaixamento do Trabalhão, principal impedimento que tinha
um trabalhador de ganhar mais que um determinado valor, mantendo
a concorrência estável. Ademais, segundo Karl Marx, tais medidas,
somadas a explosão do comércio e das atividades financeiro-bancárias
pelo mundo impulsionado pelas cidades Italianas (Genova e Veneza
principalmente) e o sistema Mercantilista dão início a três novas
classes devidamente transformadas: a primeira, uma nobreza
reformada, detentora ainda detinha alguns privilégios naturais,
senhora da renda da terra; a segunda, uma massa ociosa de
camponeses, destituída de seus meios de subsistência, chamada de
proletariado; e, por fim, uma terceira, e muito importante classe, a
burguesia72.
Naquele momento, início da Idade Moderna, a burguesia não
detinha respeito algum por parte da classe dominante, a saber, a
nobreza aristocrática e a realeza das cortes. Como, desde época dos
burgos medievais73, por falta de opções melhores, senão as vias
celeradas, os burgueses se prestavam às práticas voltadas ao comércio
e o serviço monetário, e estritamente por isso eram desprezados. Fato é
que nunca imaginaram com sua atividade simples enriquecer, muito
menos tomar o poder, contudo, com a ascensão do ambiente moderno,
o comércio desperta novamente, a circulação financeira ganha nova
vida, e aqueles que já eram versados nesta arte ganham posição
especial. Mais tarde, as nações passam a importar matéria-prima e
exportar produtos, os quais abasteciam o mercado da compra e venda,
dando condições ao enriquecimento e ascensão social dessa classe
outrora condenada a mediocridade. Muitos burgueses ricos casam-se
com filhas de nobres importantes, e outros até compravam títulos de
nobreza74. Ademais, esse enriquecimento vai possibilitar a burguesia
assumir o papel preponderante no sistema capitalista: detentora dos
meios necessários a viabilizar a produção. A dinâmica era muito mais
complexa e completamente diferente do feudalismo. No capitalismo,
para dar principio a uma comunidade econômica industrial era
estritamente necessário o capital. Somente por meio dele que era
possível adquirir as posses: prédios, máquinas, instrumentos
(classificados como capital constante, isto é, aquilo que não muda),
matéria-prima e mão-de-obra (classificados como capital variável,
aquilo que se altera e se deteriora ao longo do tempo). A soma do
capital variável e do capital constante se dá o nome de meios de
produção. A burguesia era a classe que se encarregava de providenciar
o capital, para assim administrar os meios de produção e arrendar a
terra da nobreza, e ditando o ritmo da manufatura.
Naturalmente, os países protestantes foram pioneiros nesta
ação. Fora neles que melhor se desenvolveu as atividades capitalistas,
manufatureiras e comerciais, com intensa produção, compra e venda
no mercado externo, ao contrario dos países fiéis ao catolicismo, os
quais apresentavam um considerável atraso neste sentido. A Inglaterra
foi à pioneira neste movimento. A corrente expansão de seu mercado
interno pela conquista de inúmeras novas colônias, estendendo o
Commowealth, bem como a necessidade de abastecimento do mercado
externo em função da fraca produção de países como Espanha e
Portugal, e dos acordos comerciais favoráveis para venda de seus
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
37
produtos com exclusividade e preços vantajoso, criaram a necessidade
de que se investisse, constantemente, em ciência e tecnologia para
revolucionar as técnicas de produção. Inegavelmente, o Império
Britânico foi o melhor Estado-Nação que empregou as riquezas
acumuladas na época do mercantilismo, por rapinagem ou vendas a
altos preços; ademais, detinha abundancia de ferro e carvão, minérios
de alta utilização neste período, bem como a abundancia de mão-de-
obra e grandes latifúndios em função dos cercamentos. O Capitalismo
comercial e manufatureiro que se tinha não dava mais conta da
necessidade do mundo, para se alcançar o novo fim (de larga
produção, e consequentemente maiores lucros) era preciso uma nova
forma de ação, revolução dos meios. Doravante, nasce ali a chamada
Revolução Industrial.
Surge a máquina, na substituição da manufatura e os motores,
alimentados pelo carvão como nova forma de energia, em detrimento
ao trabalho braçal do homem. A instalação das máquinas a vapor na
tecelagem aumentava vertiginosamente a produção, e, por
conseguinte, o lucro da burguesia. Os investimentos em tecnologia
tornam-se imensos, e por toda a Grã-Bretanha (posteriormente, o
mundo), inovações surgem, como novas máquinas fiadoras e
lançadeiras que economizavam a ação humana em até duzentos para
um. O real Capitalismo começa a se firmar, e a dinâmica é
intensificada. Em resposta a essa necessidade que nasce à fábrica
moderna, financiada pelo capital da burguesia. Era uma unidade
completamente diferente de tudo que se conhecia até então, dotada de
maquinários automatizados, múltiplos esquemas de operações,
confeccionada pela lógica racional e embasada nas ciências exatas, seu
maior fim era a transformação da matéria-prima em produto final.
Mas, apenas os meios de produção, mesmo que dotados de forte
tecnologia a produção não sobreviveria. A “escravidão” procederia,
pois as fiandeiras não fiavam sozinhas, muito menos as lançadeiras
lançavam sozinhas75 – embora muitos achassem naquele momento,
diante das transformações que esta situação era questão de tempo –;
era preciso a presença dos trabalhadores assalariados, pois se as
máquinas aumentavam a produção, também aumentava a necessidade
de operação das mesmas. A fábrica torna-se também o local de reunião
dos trabalhadores: todos sob o mesmo teto, unidos pelo trabalho, sob
uma nova dinâmica de produção, a qual instaura uma nova divisão
social do trabalho como reação necessária.
É fato que, como constata Marx, a cooperação existe em toda
organização social, pois não existe sociedade sem relação entre os
homens. Nas sociedades primitivas, no que toca a questão do trabalho,
a cooperação vai se dar pela relação homens na trocas dos produtos
(aquele que faz o jarro troca com quem faz o arco e flecha, que por sua
vez troca com quem tira leite das vacas e assim por diante); bem como
a divisão das tarefas reside na questão sexual: homens fazem
determinadas coisas, mulheres fazem determinadas coisas76. Na
Modernidade industrial muda-se então o foco da questão sexual, para
uma atividade em conjunto, maximizadora da produção: cada um faz
sua parte devida, assumindo seu lugar no processo produtivo, sendo
que ninguém tem contato com toda a produção; o trabalhador está
então, alienado do processo como um todo; o artesão que antes
administrava a confecção de um produto, do início ao fim, com a
dinâmica capitalista, passa a conhecer e ser responsável apenas por
parte dela, perdendo assim, por conseguinte, a noção da quantidade
de trabalho para realizar a confecção de cada produto77. Toda
produção se concentra na ação do homem, por sua determinada
função, em determinada etapa, exercida através do maquinário
existente. Essa nova situação traz duas consequências: a destruição da
relação homem-natureza e a criação da relação homem-máquina e a
separação do trabalho intelectual do trabalho manual.
O homem, pré-capitalista, tinha seu trabalho relacionado à
natureza. Todos os homens eram independentes, confeccionavam o
produto por inteiro, há seu tempo, interagindo diretamente com a
natureza, através de suas próprias ferramentas e meios de produção.
Com os cercamentos e a recente industrialização o camponês perde
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
38
espaço no campo e é forçado a migrar para cidade. A fábrica reduzia
ao status de “brincadeira” todo o tipo de produção visto anteriormente
no que diz respeito à quantidade e tempo. O ambiente moderno já não
tinha espaço para pequenos artesões e comerciantes. Sem meios de
produção, ele perde sua independência, sendo levado à falência caindo
em vadiagem ou forçado a se render às garras da fábrica, absorvido
como parte da grande massa dos trabalhadores industriais. O homem
passa a ser uma extensão da máquina. O tempo é redimensionado do
natural – o tempo do sol, passagem do dia e das estações, o qual ele
controlava – para o mecânico – adequação da psique humana ao
relógio de 12 horas –, consolidando-se assim a produção industrial. É
o advento do capital industrial como fator hegemônico de
transformações. Essa condição leva, invariavelmente, a segunda
consequência. O homem não pensa mais, não desenvolve suas
potências, pois apenas executa um trabalho, em si mecânico e
repetitivo. O ritmo da produção é ditado pelo sistema, pensado pelo
trabalho intelectual, da burguesia. É o proprietário capitalista que
planeja, organiza, dirige e controla toda a produção, seja por si ou por
intermédio de outros técnicos que cumpram tal função. Ao trabalhador
cabe apenas a adaptação. O ritmo está na mão da intelectualidade:
quanto melhor for o planejamento e os investimentos em tecnologia,
melhores serão os resultados e menor será o tempo de produção, e, por
conseguinte, a utilidade do operário, em número. Essa é uma premissa
terrível e cruel, mas verdadeira do Capitalismo. Em suma, pode-se
dizer que a ciência empregada no desenvolvimento das novas
tecnologias visam apenas maximizar a produção, pois com máquinas
melhores, mais velozes e mais fortes, menos será necessário o fator
humano. Vale lembrar que a lógica aqui visa produzir mais, em menos
tempo, com menos custo. Ora, a equação é simples: se o investimento
do capitalista em capital constante será maior, só o será uma vez, ao
passo que no capital constante ele precisa manter um ritmo; é muito
mais vantajoso que se invista em tecnologia do que em pessoas.
É de se saber que, em matéria de gênese e desenvolvimento,
aquilo que se conhece como Capitalismo acompanha a Modernidade.
Uma vez que ele se inicia e toma forma dentro do ambiente moderno,
é quase impossível dissociar a Modernidade do “deus” das riquezas e
dos lucros, empiricamente. No fundo, a Modernidade é capitalista e o
Capitalismo é moderno. Contudo, seria demasiado simplista dizer que
em essência são a mesma coisa, mesmo que em muitas vezes se
misturem e se confundam entre si. Atribui-se em muito essa confusão
ao fato de que quando o capitalismo atinge sua posição de hegemonia
como sistema, em sua fase industrial plena, a Modernidade se firma
como ambiente completo. Daí a conclusão errônea de que são a mesma
coisa. Na verdade, fato é que o ambiente moderno já vinha tomando
espaço há muito tempo, e, necessitava de um sistema econômico que
acompanhasse sua dinâmica de transformação. A ideologia industrial
torna-se parte integrante de uma Modernidade consolidada. Por um
panorama geral, o capitalismo se consolida como sistema, e passa a
acompanhar a dinâmica de mudanças e transformações no mundo,
pois tal como a Modernidade, ele não é, nem foi, nem sempre será o
mesmo.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
39
Capítulo IX O Espírito Encarnado
A experiência revolucionária francesa, que tenta fazer o
Iluminismo na prática, embora falhe, desperta uma reação do
pensamento conservador, os inimigos de Mephistopheles. Os
conservadores tinham o social como único seio válido para o homem.
O conceito de individuo é uma abstração, pois na existe homem fora
da sociedade – Durkheim vai defender posteriormente que só existe
individualização quando há sociabilização. Não era razoável destruir
as instituições naturais existentes, para que se faça construa outras,
artificiais, pois, somente por meio da tradição constituída ao longo dos
anos e da comunidade cultural é que o individuo se desenvolve78.
Priorizar o indivíduo somente trará catástrofes incontroláveis como as
revoluções, o terror, a insegurança e o risco à vida. A Revolução
Francesa é então taxada como uma resposta à ousada atitude do
homem de desafiar as leis da natureza querendo impor suas vontades
ao social. A sociedade tem regras e leis que não se submetem à
vontade do homem. A ciência, a indústria, o desenvolvimento e a vida
urbana só trazem males para a vida do homem, é preciso voltar ao
passado, realizar uma restauração, e investir nos valores medievais. A
sociedade moderna degrada a família, o Estado e a Igreja79.
Assim, se compõe uma ambivalência, polarizada e dialética, da
condição da Modernidade. Por um lado, o Iluminismo e suas
premissas do individuo dono de si e agente do mundo; de outro os
Conservadores alegando ter a sociedade suas leis próprias e naturais,
não respeitando a ação humana; o primeiro querendo a radical
transformação do mundo e o segundo restaurar tudo já perdido. Neste
contexto de contradição surgirá o espírito positivo de Augusto Comte,
com a finalidade de resolver essa questão. Com a superação das duas
posições, criando um termo moderado, prezando por uma estática e
dinâmica conjuntas, Comte elabora uma síntese: não se volta ao
passado, deve-se sempre avançar, no entanto, é preciso controle das
instancias sociais para evitar desastres. Dessa maneira, deve existir
invariavelmente, uma ordem e um progresso. Mas, a ordem não deve
ser tão rígida que contenha a dinâmica do desenvolvimento, bem
como o progresso não deve ser tão acentuado que rompa com a ordem
fixada. A doutrina comtiana do Positivismo visa coibir o radicalismo
revolucionário iluminista e o retrocesso reacionário conservador,
administrando a sociedade de maneira “positiva”, conduzindo-a a seu
ponto mais alto de evolução, através do desenvolvimento das ciências
positivas. Para Comte, tudo aquilo que não for objeto de prova pela
ciência está no campo metafísico, e não há porque perder tempo
voltado a um estudo disso. O conhecimento se limita, não a conhecer
causar primeiras (fazer a sociedade como se quer está descartada
aqui), mas sim em estudar os fenômenos e suas leis de funcionamento.
O progresso da humanidade depende então unicamente do
desenvolvimento científico. Este é o novo ritmo que a sociedade deve
adotar. O positivismo foi extremamente triunfante quanto a sua
adoção no mundo. A Modernidade chega a um estágio menos
selvagem, agora sua sociedade caminha a passos contínuos e calmos,
com desenvolvimento e ordem. O Espírito Positivo torna-se parte
integrante da Modernidade, vigente a partir do século XIX.
Contudo, desencadeou críticas severas, por exemplo, da parte
do Socialismo e do Anarquismo que adquirem força nas figuras de
seus mais célebres escritores – Karl Marx, Friedrich Engels, Mikhail
Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon, entre tantos outros. Este era ainda
um mundo em que o homem ainda sabia o que era viver material e
espiritualmente80, que flutuava entre a razão e a fé, um mundo que, em
sua constituição absoluta, não era de todo moderno, nem antigo, mas
sim dicotômico, repleto de contradições insolúveis, na qual não se
tinha certeza dos valores. Um momento tomado pela melancolia e
desencanto, como também repleto de avanços e novidades. Era uma
vida radicalmente contraditória em suas bases mais fundamentais. O
homem e a sociedade estavam em constante choque. Era a força que
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
40
empenhada no mal, o bem promove, em si, moderníssima em toda a
sua raiz:
“De um lado, tiveram acesso à vida forças industriais e
cientificas de que nenhuma época anterior, na historia da
humanidade, chegara a suspeitar. De outro lado, estamos diante
de sintomas de decadência que ultrapassam em muito os
horrores dos últimos tempos do Império Romano”.81
Vive-se nessa ambigüidade. A evolução das ciências, da técnica e a
indústria fazia a sociedade caminhar, ininterruptamente, para o
desenvolvimento, ao passo que a vida social ia se degradando,
rumando ao abismo. Com heranças dos Iluministas e Conservadores,
pode-se dizer que a Modernidade adota o indivíduo sim, mas como
meio e não fim, bem como naturalizou a condição de desenvolvimento
e evolução pela razão. A partir do Século XIX a sociedade e indivíduo
seguem em direções opostas. O positivismo dá força a Modernidade
quando concilia suas contradições, prendendo-as em um mesmo
sistema, permitindo o seu desenvolvimento dialético, agora, sem o
radicalismo de antes. O indivíduo só existe na sociedade, e a sociedade
só existe para o indivíduo: pensar em si e no desenvolvimento pessoal
é centrar o material e o progresso, ao passo que nega o coletivo e o
espiritual, pois será necessária a condição de “engrenagem” do
sistema. Por fim, a Modernidade vai caminhar tendo como base à ideia
de desenvolvimento a preço do “desencantamento do mundo” – como
já afirmava Weber.
Como prova disso, pode-se dizer que o advento da revolução
industrial, tomada pela ascese intramundana protestante, deu novo
espírito à dinâmica do desenvolvimento social do mundo, ao passo
que a lei do Estado controla e ordena a vida. A Europa enfrenta agora
uma nova forma de organização por influência da gigantesca e larga
produção e consumo. Explodem por todos os cantos grandes centros
urbanos industriais, formam-se as cidades, e com elas um novo ser
social: o operário urbano. O fervor dessa época foi terrível. O espírito
avassalador do capital industrial se espalha na velocidade de um
pensamento. A paisagem se modifica radicalmente, “engenhos a
vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas
industriais”82, o maquinário se espalha, o carvão das fornalhas e das
locomotivas torna o céu mais cinza e poluído, espalha-se a sombra da
grande indústria. A consequência disso é uma crescente mecanização
das relações humanas em função da modificação espacial. Ao contrario
do que se possa pensar, estando na fábrica, o homem tem menor
interação com os seus iguais, pois, apesar de ter acesso ao demais,
estar junto de todos, não tem tempo para o contato em função da
adequação que sofre para melhor produção: seus instintos e paixões
são contidos, pois aquele não é espaço para que se aflorem os apetites
da alma (este se dá no momento do consumo); sua humanidade é
delimitada a partir do novo contato homem-máquina, alijado do
processo de produção completo; ele deve realizar os procedimentos
burocráticos da maneira mais eficiente, racional, útil e eficaz possível,
pois cada perda de tempo é também uma perda financeira para o
capitalista. Como demonstra com precisão o filme Tempos Modernos
(Charles Chaplin, 1936), os processos de trabalho são enlouquecedores.
Não resta aos homens tempo a dispor ao cuidado de si e de suas
famílias. São encarcerados a seus trabalhos, e escravizados por seus
desejos de consumo, fechados no sistema, no qual produzem para
consumir mais e consomem para produzir mais. A indústria passa
então ao papel de feitor-mor, podendo produzir tudo aquilo que pode
fazer com que o homem deseje. Tudo aquilo que se tinha como valor
sólido caia por terra. Não há mais regra para nada. O único valor a ser
conservado é não possuir valor algum. A humanidade é lhe roubada.
As pessoas transferem-se para as cidades, localizadas em sua
maioria nas grandes metrópoles urbanas, que vem como uma
expressão puramente moderna, tal como expresso por Giddens. Muito
diferente das de épocas anteriores, não segue o mesmo preceito de
criação e desenvolvimento, é agora o centro de produção e consumo,
moradia das classes e cenário dos acontecimentos:
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
41
“Os modernos assentamentos urbanos freqüentemente
incorporam os locais das cidades tradicionais, e isto faz parecer
que meramente expandiram-se a partir delas. Na verdade, o
urbanismo moderno é ordenado segundo princípios
completamente diferentes dos que estabeleceram a cidade pré-
moderna em relação ao campo em períodos anteriores”.83
As cidades vão adquirir aquilo que, para Max Weber, vai defini-las
essencialmente como modernas: o povo satisfaz sua demanda diária,
com, parte do que é produzido pela especialização permanente da
produção, com destino ao mercado interno, e, parte com produtos que
são produzidos fora do perímetro urbano, e trazidos para abastecê-la.
Dessa maneira, a cidade é um local de mercado84, diferente das
medievais, que no mais, tais como as orientais, só podem ser chamadas
de aldeias ou vilas. Ademais, a própria configuração da cidade,
projetada de modo a abrir as grandes fábricas, os imensos prédios e o
as vilas operarias, prejudica nas relações sociais, que, ao contrário das
casas e do campo, não se pauta pelo contato humano, mas
intermediada pelo concreto. As relações sociais se dão então nas vilas
operarias, no comércio e serviço de pequeno porte, ainda familiar, e
nas famílias, dentro das casas, embora, extremamente limitada pelo
tempo (naturalmente, esta se configura como mais uma contradição da
Modernidade: ao passo que as relações são mecânicas e impessoais em
certos pontos, em outros são extremamente humanas, conflitando no
cotidiano).
Com a prosperidade das cidades, a larga produção industrial e
a grande gama de comércio, a sociedade adquire uma estratificação
piramidal. As classes da ponta ditam o ritmo da política e da
econômica, em efeito cascata. Os empresários e industriais vão
enriquecendo mediante a exploração dos meios de produção e
acumulação financeira dos lucros obtidos; por conseguinte, adquirindo
mais poder e prestígio. Em contraste a essa “belíssima” modernização
e a condição de luxo de uma classe em ascensão, a vida das classes da
base da pirâmide neste meio era terrível: as condições sociais de
moradias e a alimentação eram precárias e os salários baixíssimos, em
geral, em sua grande maioria, todos presos a uma vida miserável e
terrível. O pouco que o trabalhador ganhava, era obrigado a gastar nos
produtos “necessários” a subsistência da vida, que vinham
invariavelmente da produção industrial, por conseguinte, da
burguesia. Assim, à medida que as classes abastadas abriam uma mão
para pagar os salários, já baixos e insuficientes para a subsistência,
estendiam a outra para receber o preço dos produtos. Fora à
exploração que existia em si. Criava-se um ciclo vicioso de miséria.
A profunda efemeridade que marca o ambiente moderno
transborda as relações sociais, arrastando esse culto ao passageiro para
o consumo da produção capitalista, criando uma interação entre as
duas, na qual os desejos sempre devem ser fugazes e jamais perpetuas;
é parte de sua cruzada contra aquilo que se coloca como “eterno”.
Assim, o capitalismo toca uma paixão, que cria o desejo e leva a um
produto, mas não digno de se tornar sólido, pois, doravante, outro
desejo se fará necessário.85 E o a dinâmica do “consuma” se consolida.
É notável como os “fantasmas” circulam próximo aos indivíduos, sem
sequer tocá-los ou mesmo possuí-los. E, é natural que assim seja. A
Modernidade vem contra a ideia estática de mundo, contra tudo
aquilo que deveria durar para sempre. Munida de seu espírito de
aventura, ela se presta a modificar aquilo que se apresenta como
imodificável. Dá ao homem a sensação de liberdade completa,
imbuída em um risco máximo. O horror da vida moderna parece
assolar demasiadamente o homem. A Sensação que se cria no
indivíduo é de sozinho em meio a uma imensa multidão. Todas as
sensações são efêmeras, rápidas e passageiras. A vida constitui-se em
uma solidão social. Os grandes centros urbanos são impessoais, mas o
homem busca sempre a sua participação no todo.
Tomada pelo espírito do efêmero e fugaz, da democratização
das capacidades, da secularidade das coisas, do profundo racionalismo
asceta intramundano e da supervalorização da vontade, essa lógica se
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
42
impõe como hegemônica na formação das personalidades, dentro das
casas, das escolas, das ruas e nos locais de trabalho, e assim, toma
todas as mentes e se faz senhora do destino dos homens. Dessa forma,
a Lógica da Vida Moderna se constitui e se consolida por sua natureza
fundada em contradições, inerente a si a ausência de valores uniformes
pré-estabelecidos ou fixos. Os indivíduos buscam os valores onde
desejam, dando tendo ‘toda liberdade’ para o pensamento, dentro de
um ambiente sistemático e fechado. Um paradoxo sem solução: ao
passo que a vida moderna traz a melhoria e o desenvolvimento, as
suas contradições trazem o sofrimento e melancolia, e tanto um quanto
o outro é fator inerente a sua natureza; acabar com o sofrimento e com
a prisão é, por conseguinte, acabar com a vida moderna.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
43
Parte III
Nos Braços do Demônio A Aventura Mefistofélica do Homem
Então se encontrar-me/ Seja cortês,/ Seja simpático e tenha bom gosto/
Use de toda etiqueta que conhece/Ou então tomarei sua alma.
Prazer em conhecê-lo/ Espero que tenha adivinhado meu nome/ Mas o
que está o intrigando/É a natureza de meu jogo, de verdade, divirta-se.
(The Rolling Stones)
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
44
Capítulo X Da Simpatia pelo Demônio
O mais espantoso é como evoluiu esse ambiente moderno. O
que antes, na época de desenvolvimento era limitado, pois o mundo
ainda estava em processo de contaminação, ao fim do século XIX e
início do século XX, inicio da consolidação, parece já tomar
virtualmente o mundo por completo86, todas as coisas, todas as vidas.
A Modernidade fora se difundindo pouco a pouco, a medida dos
acontecimentos, sem pressa, sem gana, sem desespero; foi como
derramar tinta preta em papel branco: pouco a pouco ele vai
absorvendo a tinta e ficando cada vez mais preto. Tudo ocorria lenta e
gradativamente, como se fosse natural. Os bens eram homeopáticos e
vistosos, todavia os males, silenciosos e súbitos. Aqueles que viveram
a crescente Modernidade mal sabiam o que lhes atingia, o que viviam,
pelo que passavam. Jean-Jacques Rousseau era, como coloca Berman, o
homem que viveu le tourbillon social87 mais intensamente. A retratação
feita do ambiente moderno nascente em seu romance, Julia ou A Nova
Heloisa, demonstra um pouco sobre a sensação da novidade e do que é
viver nesse novo mundo, nas palavras de seu personagem principal:
“Eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e
tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos
desfilando diante dos meus olhos, eu vou ficando aturdido. De
todas as coisas que em atraem, nenhuma toca meu coração,
embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a
fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar”.88
Diziam os antigos que o maior trunfo do diabo era convencer o
homem que ele não existia; pois bem, este foi o postulado na expansão
da Modernidade; os homens não possuíam consciência do que estava
ocorrendo. A humanidade observava maravilhada o progresso técnico
científico, o avanço da das artes e da filosofia, a explosão da variedade
de produtos, e o desenvolvimento de todas as formas institucionais,
que apensas conseguiam ver as “vantagens” que essa condição trazia a
seu próprio ser, agora livre das amarras morais: a possibilidade de
realização dos seus desejos mais profundos. Este obviamente é o fator
que contribui para a fixação do ambiente, justificando sua ascensão
meteórica. Pois, se se pode dizer que a Modernidade evoluiu tanto,
abarcando o mundo inteiro, como se constata, a única razão que
sustenta esse fato reside da ideia de que ela tinha aceitação. Portanto, o
que intriga aqui, como diziam Keith Richards e Mick Jagger, em
música sobre o sórdido diabrete, é “a natureza de seu jogo”.
Primeiramente, devemos dizer o diabo possui tanto um fim,
quanto uma função, que compõe sua razão de ser, como é da natureza
dos entes. A primeira está em mira de um bem, como é razoável de
todas as finalidades, pois será esse bem o maior interesse que se faz
todas as outras coisas que se seguem a partir dela, isto é, objetos das
partes que compõe o todo; já a segunda é o exercício prático que deve
estar em consonância para a realização da primeira, necessariamente. É
de saber difundido que a finalidade da medicina é a saúde, e sua
função, procurar a cura das moléstias, está em consonância de realizar
sua finalidade com a máxima excelência. Tendo isso em vistas,
analisando a obra de Goethe, podemos afirmar que, em suma, o anseio
maior do Dr. Fausto é alcançar o próprio todo da humanidade. Este é
ponto importante para entender a questão, pois quer o jovem
alquimista encontrar-se com a natureza do gênero humano: sofrer as
frustrações, angústias, a melancolia, a tristeza, gozar de seus prazeres,
amores, alegrias; ser a tudo e todos, sentir a tudo e a todos, conectar-se
a tudo e a todos. Ele deseja acompanhar o movimento em rede,
encarnando aquilo que se põe como fim da Modernidade: o
desenvolvimento. Devemos então, entender desenvolvimento como a
mudança gradual de um estado inferior para um estado superior e
avançado, isto é, um processo de crescimento e expansão que implica
em um progresso ininterrupto. O movimento do mundo moderno –
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
45
como pode se constatar empiricamente sem sombras de dúvida –
realiza este fim por excelência; e é a ele que busca o Doutor Fausto.
Dirá Marshall Berman que os anseios do Fausto não são os bens em si,
as coisas sem si, nem muito menos que delas pode-se tirar ou
imaginar, mas sim todo o processo, ele deseja em seu âmago viver à
enigmática e complexa dinâmica moderna em sua apoteose,
superando a condição humana, elevando-se ao mais alto grau. É em si,
um desejo de superação da condição de próprio homem – a que hoje
damos o nome de faústico – que se alinha ao desenvolvimento.
No entanto, o demônio demonstra terrível desprezo por essa
ideia vindo dos homens, e comprara o ser humano a um inseto juvenil
quando dá seu primeiro vôo, e inevitavelmente cai desajeitado sobre o
pântano sujo. Pois, como nos conta a literatura, é da obra diabólica o
ódio a toda condição do homem; e não é diferente e incoerente para
com esse princípio o Sr. Mephisto; vários são os momentos e passagens
que ele destila suas injúrias contra o homem. Seria a finalidade de
Mephisto então o desenvolvimento tanto quanto é a da modernidade
mesmo sob essa condição de ódio e desprezo pela natureza do
homem? Ora, devemos afirmar que sim, e não obstante, dar as razões
que justifiquem essa posição. Esse desenvolvimento que se fala não
passa necessariamente pelo desdobramento das potências do próprio
homem se assim não for preciso, e jamais será essa a mira; é a
sociedade todo o objeto, o homem é apenas o meio, o instrumento que
vai mover a evolução das instituições modernas, continua e
ininterruptamente. E, é na ação tendo em vista esse fim de superar as
suas próprias condições que Mephisto vê a possibilidade de perdição
do homem, pois, é no interesse dela que se realiza a máxima excelência
de sua função, compartilhada também pela Modernidade: a realização
dos desejos mais mundanos... No fim, o Dr. Fausto anseia a dinâmica
da vida moderna, tanto quanto todos os homens possam desejar. Não
devemos esquecer que é este mundo o reino do diabo, não seria
razoável que não o quisesse em constante superação.
Ademais, o desenvolvimento da sociedade vai se dar através
da alienação da alma de cada homem em particular... Ora, não é esta a
meta do diabo? Por sua natureza, seu fim é a tentação, atormentação,
perdição do homem, mas, apenas por influência, jamais por poder; o
agir pela violência tiraria o sentido de prova que ele precisa para
sustentar sua posição: a natureza do homem é corrupta, bem como seu
livre-arbítrio o voltaria ao pecado se assim lhe fosse permitido. Aos
olhos do demônio, Fausto, e todos os homens, eram como “insetos
pensantes” (uma mescla de pernilongo, cigarra e gafanhoto), que
cheiravam e pousavam em tudo, sempre “a cata de imundices”,
querendo a tudo conhecer, a tudo desejar, sem se dar conta dos seus
próprios limites, sem consciência da situação, sem conhecimento de
sua natureza, de si mesmo89. Mephisto despreza totalmente o exercício
de superação de si que se presta o homem. Em sua concepção, o
homem pode fazer coisas assombrosas justamente porque da razão
não sabe dispor, e, no mais das vezes agira para o mal, não sabendo
bem escolher, isto é, preterindo a virtude. É fato que Mephisto nunca
forçou o Dr. Fausto a nada. Muito pelo contrário. Suas palavras
melodiosas, doces e sutis provinham de uma retórica adaptada àquilo
que seu ouvinte estava predisposto a encarar.
Deus, naturalmente, crê no contrário. Quando aceita o desafio
da matreira criatura, o Altíssimo tem segurança que o Dr. Fausto não
sairá do caminho bem-aventurado, pois, apesar de considerar a
natureza do mundo, de “Onde há cobiças, é natural o errar”90, deu aos
homens a luz que neste mundo chama-se razão; pois bem, saberia dela
o homem bem usar. Ao demônio, como à Modernidade, essa razão que
se fala aqui é tanto nociva, quanto incomoda, pois, seria ‘sua função’
controlar as paixões da alma, coibindo as disposições de caráter
voltadas ao mal. Os truques sórdidos e sagazes do demônio não
triunfariam se caso nela o homem confiasse. Somente tem êxito àquele
que odeia a luz, pois se torna ela instrumento dando espaço para
fluírem o que o bom doutor, como todo homem, tem: as paixões.
Fausto queria, Fausto ansiava, Fausto desejava. E, com ele, os homens
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
46
partilham da mesmíssima natureza – este assunto é de conhecimento
do vulgo, em séculos de tradição do pensamento.
O homem dá o espaço; deixa-se levar pelas ofertas e suas
vantagens. Fausto, como a maioria dos homens modernos, deixa de
lado o seguir da razão reta em nome de seus desejos mais profundos.
Sua cobiça era imensa: vivia ele no fio da navalha, na dialética do
medo e da esperança por conta de suas angustias físicas e metafisicas.
Por um lado, existia a ânsia pelo conhecimento, por outro, a mesma
vontade pelos prazeres terrenos. Fausto precisava escolher.
Manifestava o desespero máximo, criando vontade de morrer pelo
sofrimento que sentia frente sua angustia do irrealizável desejo do
saber divino, além-humano, ao mesmo tempo, que alimentava uma
gigantesca esperança de continuar a busca, impedindo seu suicídio,
apegado às boas experiências físicas mundanas que já teve. O medo é
aliviado pela esperança do ‘é possível’, do ‘existe algo além’, ao passo
que a esperança é ameaçada com ‘não é possível’ e ‘tudo está perdido’.
A angústia de Fausto se dá em via de mão dupla, ao mesmo tempo em
que existe a esperança de transcender, existe o medo de falhar nesse
processo. Mas, a paixão de Fausto pelo saber era maior do que suas
aspirações mundanas. Fausto escolhe.
Todavia, toda busca tem um preço. O de Fausto é a solidão. A
vida contemplativa, da busca do saber e do conhecimento, leva-o a
infelicidade de estar sozinho em meio a uma multidão, pois requer o
afastamento de tempo-espaço, invariavelmente. Parece que Fausto na
procura do ‘saber’ do bem viver e bem agir não pode executá-lo. Não
seria então viciosa essa atitude? Ora, definitivamente sim. A conduta
de Fausto o inclinava a uma disposição de caráter excessiva, pois, não
soube dosar, dedicou-se a uma única atividade, invariavelmente,
deixando de lado o resto. Embora Fausto tenha adquirido o
conhecimento sobre muitas artes e ciências, este nunca lhe foi útil no
tocante do fim do homem, a saber, a felicidade91. Segundo Aristóteles,
não há duvidas que o fim do homem seja a felicidade – afinal, não
haveria homem que, em sã consciência, de vontade-livre, diga que não
anseia ser feliz. Ademais, é do conhecimento do vulgo, e largamente
difundido que, ser feliz é o sumo bem, pois o desejamos acima de
tudo, consequentemente, todas as outras artes e todos outros bens
menores estão subordinados a ele, pois os desejamos em função do
primeiro92; e nisto incluímos as satisfações dos desejos pessoais.
Ademais, não há felicidade que não seja completa, pois, se há
felicidade, de nada a vida carece, basta-se sozinha. A questão é então
que a aquisição dos bens menores não garante o sumo bem; razão pela
qual Fausto, e seu grande conhecimento, não é feliz.
Mas também, vale dizer que satisfação dos desejos, enquanto
bem, não deve ser confundida com o sumo bem, isto é, prazer é
diferente da felicidade, mas está contido nela, pois, como foi dito, os
bens menores se conquistam em função dos maiores. Apenas os leigos
e o vulgo confundem as duas coisas, pois os homens que julgam bem
são aqueles que conhecem bem (pela experiência) ou foram bem
instruídos a respeito93. Fato é que os primeiros sempre estarão
condicionados as necessidades aparentes – o doente considerará
felicidade a saúde, bem como o miserável a comida, assim como o sem
educação a escola –, já os segundos preferem se perder em prazeres,
abraçando uma vida de gozos; e assim é o Fausto. Pois, primeiro,
porque considerará ‘o saber’ que anseia felicidade, confundido um
bem em si com o sumo bem, depois, doravante, perceberá que não
‘vive’, sob as palavras do demônio, daí por diante vai considerar
felicidade o viver a vida de prazeres terrenos. Como ele, muitos são na
Modernidade.
O saber, enquanto bem de segunda ordem, é escolhido por si, e
por suas consequências, ao passo que os prazeres apenas por suas
consequências. Mas, a felicidade ninguém escolhe por uma ou outra
coisa, ela é a finalidade da ação, residente no bem viver e bem agir de
cada um, em consonância com uma atividade racional do homem –
que se constitui como sua função – inclinado ao bem, isto é, a virtude,
somado a uma vida completa, entendida em nível do todo, e não da
parte – isto é, a toda a comunidade, e não apenas a um homem
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
47
particular94. Podemos então entender mais claramente porque o
demônio maldiz tanto a luz da razão: o justo bom uso dela (o Logus
aristotélico) modera as paixões, através da virtude, por hábito – isto já
denota um processo contínuo, jamais efêmero –, que, no mais das
vezes, coloca o homem no caminho do bem, ordenamento e
harmonizando a alma. Quando Mephisto encontra com Fausto, seus
argumentos estão na direção do “é preciso viver e agir”, e não no “é
preciso bem viver e bem agir”; aqui encontramos uma diferença
crucial: não há obrigação com a virtude nos fins, portanto não há
ordenamento da alma no caminho oferecido pelo demônio.
Ademais, a felicidade está desatrelada da obra mefistofélica.
Não é a isto que se volta. Diz o diabo que todas as artes e todas as
ciências estão direcionadas ao viver, necessariamente, em função da
satisfação pessoal de cada um. Isto equivale afirmar que um homem
que se presta a medicina não deve fazê-lo por conta do fim pelo qual
ela se presta – a saúde –, e o bem que traz, mas apenas pelo contato
maior que terá com as mulheres, portanto, aumentando suas
possibilidades de realização sexual se este for seu desejo; ou ainda,
alguém que se torna cantor não deve se ater a divertir e entreter
aqueles que lhe escutam, apenas tirar proveito do prestígio gerado
para alimentar-se da melhor maneira, saciando seus apetites se comer
bem for sua ânsia. Ocorre, pois, um desvirtuamento dos fins.
Naturalmente, não podemos dizer que está situação nos é estranha;
existe, e talvez sempre tenha existido; a experiência nos confirma a
máxima do diabo. O que não, necessariamente, quer dizer que
Mephistopheles tem razão, pois que algo ocorra e que seja justo são
coisas distintas; devemos admitir que seu ponto de vista é real, mas
não necessariamente está certo. Sustento essa negativa sob o
argumento simples de que a perversão dos fins se dá na falta de
consideração. Essa virtude (a consideração), por sua vez, nos inclina a
bem ver a si mesmo e aos outros, em justo equilíbrio. Não obstante, a
consideração, não poderia se realizar sem prudência; Maquiavel diz
que o príncipe prudente é aquele que tem virtude, bem como todo
virtuoso é prudente; a prudência é mãe de todas as virtudes: ela
predispõe a razão para identificar, em uma dada ocasião, o verdadeiro
bem e a escolher os justos meios para o atingi-lo. Seria, pois, contraria
a prudência, preterir o bem maior da saúde pelo bem da satisfação
sexual, no caso do médico. A esta atitude jamais poderemos chamar
‘virtude’, pois somente levado por paixões, isto é, preterindo a razão,
um homem faria tal escolha. Ao ‘pecado’ que conduz essa ação
chamamos vulgarmente: soberba95, que, por lógica, é a ausência de
prudência, e conduzirá, por sua vez, a falta de consideração,
propriamente dita.
É na soberba que investe o demônio. E esta, como rainha de
todos os excessos, guia o homem à realização constante de seus
prazeres mundanos, ignorando toda disposição da razão reta em
qualquer circunstancias, sob qualquer condição. Todos abrem mão dos
valores e princípios comuns que traziam o maior bem humanamente
realizável, e cada um se ilude com a sombra ou com as migalhas de
‘felicidade’ que podem conseguir, representada pela momentânea
satisfação pessoal dos apetites, a realização da vontade do eu-mesmo,
desconsiderando a existência o restante do mundo. Mephistopheles
tira vantagens e explora aquela parte do homem sensível à tentação
das ânsias terrenas, materiais e corpóreas: as paixões. Quando se
declara inimigo dos freios e da moderação da noética que tem como
fim à harmonia da alma, controlando as ânsias do corpo, Mephisto se
faz senhor do mundo ao passo que liberta o homem para seu
desenvolvimento temporal particular. Nada se adapta mais a condição
mundana do tempus, sujeita à geração e corrupção, que a
Modernidade e sua prole. Portanto, não por conta da venda da
virtude, mas do pecado, vinga a Modernidade96.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
48
Capítulo XI O Senhor das Moscas
“Santos e pecadores, algo dentro de nós, somos os Senhores
das Moscas”97. As paixões da alma humana são então a chave da
questão para entender a Modernidade. É razoável, pois, esclarecer
claramente o que é a paixão, dizer quais são elas, qual seu princípio
ativo, como se manifestam, a que movimentam e que instancias
influenciam para melhor compreendermos sua dinâmica de ação.
Segundo Aristóteles – e está é a definição mais razoável dentro
da perspectiva tratada aqui – é paixão (pathos) aquilo que impulsiona o
homem para a ação98; em geral, impressões, fruto das sensações
humanas, através do choque com os sentidos, acompanhando dor e
prazer. Neste sentido, uma lista imensa poderia ser formada se nos
inclinarmos a catalogar todas; contudo, é mais útil e vantajoso
separarmos elas por suas forças diferenciais, isto é, aquelas que, por
serem paixões primeiras, dão princípio a outras, em razão de sua
maneira de ser. Platão dizia que as paixões habitavam as partes não
racionais da alma: a concupiscente e a irascível, sendo que a primeira
refere-se ao apetite, aproximando o prazer, e a segunda a aversão,
afastando a dor. Neste sentido, podemos considerar como paixões
principais o amor, o ódio, a cólera e a acídia, bem como o medo, a
audácia, a esperança e o desespero99 como matrizes de outras que
exercem essas funções. Afinal, dessas se originam todas as específicas,
pois, pela experiência comprovamos que carregam algum destes
princípios básicos em si; a exemplo disso podemos dizer que a
ambição carrega o amor à vontade de exercer governo, como a
ganancia carrega o amor à busca pela riqueza, ou bem como é o pânico
o medo súbito na surpresa, ou a raiva é a cólera para com alguém, e
assim por diante. Ademais, a paixão, no mais das vezes, se dá
mediante um acidente: quando existe amor, necessariamente existe por
algum objeto, em determinada circunstancia, de algum modo, sob um
tempo, em algum lugar, no mais das vezes, por algum motivo. A partir
de então, em uma situação especifica, cria-se o movimento de encontro
do sujeito com o objeto, o qual, por sua vez, mexe com uma paixão,
podendo desencadear o desejo. Vamos dar dois exemplos práticos do
assunto: (1) quando um homem é ameaçado de morte por uma ladrão
que lhe aponta uma arma à cabeça pode ocorrer à movimentação do
medo para com a morte, o ódio para com o ladrão, a acídia por conta
da falta de sorte, o desespero pela falta de horizonte de sobrevivência,
e assim por diante. (2) Ou, quando uma moça encontra-se com o rapaz
por quem guarda uma afeição, e este lhe abraça ela pode sentir o amor
pelo rapaz, medo pela situação de novidade, esperança de se casar,
cólera em beijá-lo, etc. Por fim, naturalmente, as paixões se manifestam
como explicado anteriormente, mas, vale dizer, que tudo está no
campo da possibilidade, pois, a singularidade e particularidade dos
homens e de suas sensações é tão grande que não há garantias de que
vão ocorrer. No mais, podemos supor, pela experiência que
determinados eventos movimentam determinadas paixões, não por
uma regra ou lei, mas por sua ocorrência empírica, no mais das vezes.
Seja como for, o movimento dado pelas paixões desencadeia
um desejo de afastamento ou aproximação. Para Aristóteles, os desejos
conduzem os homens a quatro tipos de disposição de caráter, a saber,
a temperança, intemperança continência e incontinência, os quais vão
influenciar na construção da virtude. A primeira (1), temperança, é à
disposição de um homem capaz de se bem guiar pela razão, em função
de possuir um apetite leve, (2) já seu contrário, a intemperança, é
quando o homem não é capaz de se controlar e preteri a razão em
função de seus desejos apetitivos. Nestes casos, é razoável destacar a
ausência do conhecimento das consequências de seus apetites. Quando
um desejo se revela e o homem tem ciência deles, bem como aquilo
que vai gerar, chama-se (3) continente o homem que pode preterir
esses impulsos e optar pela via da razão, pois sabe da maldade que
causaria, bem como (4) incontinente é aquele que tende a buscar os
desejos, louca e excessivamente, mesmo sabendo que é contrária a
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
49
razão e causarão terríveis problemas100. São, portanto, duas disposições
de caráter tendenciosas ao vício aqui: a intemperança e a incontinência,
sendo que o primeiro se diferencia do segundo pelo simples fato de
que não tem conhecimento do mal que causa, busca os prazeres
excessivos, além do necessário, pela crença que possui nesta conduta
como correta, ao passo que o incontinente não o faz por convicção, ele
sabe que seu impulso é malévolo, mas não se detém.
Naturalmente, como se observa, as ações deliberadas dos
incontinentes produzem, quando habituais, o pecado, contudo, a
ausência de dolo nos instintos excessivos ruins não faz do
intemperante menos pecador. Dante, em sua alegoria do Inferno,
demonstra que os primeiros círculos infernais são preenchidos
daqueles pecadores de natureza intemperante. Falando da importância
que as classificações de caráter têm para Modernidade, pode-se dizer
que, apesar de aparentemente não parecer, o intemperante é mais útil,
pois a falta de conhecimento das consequências dos instintos, somada
a sua visão distorcida daquilo que deve ser feito, faz dele um
incorrigível moderno, alienado e preso aos prazeres, ao passo que o
incontinente, ainda pode encontrar a razão reta, o que faz dele uma
constante dúvida, muito embora sua disposição mais impetuosa para
preterir o justo e agarrar-se aos prazeres excessivos, torna-o mais
intenso em sua busca. Mais nos primeiros que nos segundos confia o
andamento da Modernidade, pois são mais tendenciosos a cair em
alienação.
No entanto, como já previnem os antigos, aqueles que têm
caráter bem formado, apresentam devida inclinação às virtudes com
mais facilidade, pois já estão habituados há tempos, tendo menos
chance de entregar-se ao pecado. Serão mais facilmente continentes e
temperantes. Afinal, não podemos chamar prudente, forte, corajoso ou
justo aquele que, no mais das vezes, não tem o hábito destas práticas.
Quando leva Fausto a taverna o diabo percebe que o velho Fausto já
não se dobra facilmente as tentações terrenas; como há muito não tem
o costume engendrado, não lhe faz falta e pode recursar com mais
facilidade. Não está ele preparado para o “grande mundo”. Para
inseri-lo na vida é preciso torná-lo jovem de novo. Maquiavel já nos
mostrou que os jovens sim são mais impetuosos, portanto menos
circunspectos, assim, têm o caráter menos pronto e estão mais aptos a
se voltarem para o lado que os ventos sopram101. Ora, o diabo conhece
tal premissa muito bem, razão pela qual ao pacto com Fausto ele
investe no rejuvenescimento – uma bela metáfora para demonstrar a
abertura para novas experiências. Os jovens são mais volúveis as
paixões da alma, portanto deixam-se mais conduzirem-se pelos
apetites, o que, por conseguinte, aumentam a chance da proximidade
do pecado.
Além do mais, reside nos jovens à disposição a um estado da
alma que contribui a intemperança e incontinência, simultaneamente:
o apaixonar-se. Isto é, a facilidade de render-se a Paixão – esta deve ser
entendida aqui diferente da primeira definição, pois se centra no
movimento de perturbação de todos os sentidos, ignorando os
acidentes, elegendo um objeto único, movimentando todas as paixões
e pervertendo todas as nossas artes e ciências na direção desse. Ou não
seria verdade que quando estamos apaixonados por algo sentimos ao
mesmo tempo, sob várias circunstâncias, de vários modos, em todos os
lugares, medo, amor, ódio, cólera, inveja, esperança, desespero, por
conta de um mesmo objeto? Essa situação pode ser branda ou
avassaladora, fugaz ou duradoura; infelizmente, não seguinte lógica
decifrável, senão pela experiência do vulgo. O estado de ‘apaixonado’
é constante, e se liga a objetos particulares, eleitos pelo sujeito (frente
ao gosto, por opinião, do mesmo modo que já foi explicado quando
comentamos sobre a teoria de Hobbes). Nesse estado tende muito mais
a razão à perturbação, caindo em vícios do pensamento, os desvios
que, por soberba, destoando à compreensão justa da realidade,
tornando-a dificílima102. Podemos encarar essas manifestações como
fugas do sofrimento ou ilusões criadas pelo próprio sujeito a fim de
minimizar a dor e o sofrimento. Chamemos estas variantes de (1)
romantização, quando consiste o pensamento em considerar que as
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
50
coisas poderiam ser diferentes do que são, centrando o compromisso
com o bem (em otimismo) ou com o mal (em pessimismo). Esse
movimento, normalmente, está atrelado ao que o sujeito tem por
gostos, portanto, adequa a realidade a suas paixões, negando a
compreensão real, ora imputando “sua visão” de mundo na realidade
e agindo segundo isso, na ânsia de fazer tudo a sua imagem e
semelhança, ora crendo que sua visão é a própria realidade, cegando-
se para qualquer outra coisa. Esse movimento tem caráter
degenerativo, logo, é corrupção do entendimento por deficiência de
razão. Isto é, a razão é, em suma, inoperante. E (2) idealização quando
tem compromisso com um ideal, isto é, com um estado de perfeição
construído a partir da abstração do modo como se vive, em prol do
modo pelo qual se deveria viver. Presta-se esse movimento a levar a
razão como crença, além do limite da realidade, por excesso e
atribuições predicativas a seres que, em suma, nãos os possuem.
Vendo o real como errado, a idealização elege o ‘molde’ como única
realidade válida: deste modo, seu ideal deve ser buscado e instaurado,
quando nunca existiu, ou restabelecido, quando se perdeu no passado.
Em ambos os casos, desvirtuada a compreensão do real, liga-se
o homem ao imaginário, fruto das sensações que acompanham as
paixões. Esse movimento acaba por causar uma perda substancial da
referência do sujeito, pois, como a perversão das artes e ciências,
citadas anteriormente, também manifesta um afastamento da
consideração. No mais das vezes, o sujeito desconsidera na “sua visão
de mundo” os outros e a até a si mesmo, caindo em um estado de
alienação. Muito embora pareça um absurdo dizer que existe o
afastamento de si mesmo, não seria razoável admitir que aquele que se
esconde atrás de fantasias vive a realidade, tem ética ou é justo. A
insegurança gerada pela proximidade da dor e do sofrimento faz com
que os homens criem ‘mundos de sonhos’, acreditem neles, e vivam
sob suas regras, a fim de inibir a frustração da não realização de um
desejo, abarcando, ao mesmo tempo, o prazer tirado de uma fantasia.
Esse movimento é muito comum nas crianças. Por conta de seu estado
de formação da razão e compreensão do mundo, limita-se ela a
imaginar o real, a rigor de suas próprias paixões, afinal, não conhece
da vida a experiência das coisas. Sua percepção é ainda restrita. Não
obstante, vemos esse problema nos dias de hoje em homens e
mulheres que de crianças já não tem mais nada fisicamente. Contudo,
a questão, como afirma Aristóteles em sua Ética, é a infantilidade do
caráter. Aquele que não é bem educado, e da vida não possui o
montante de experiências necessárias, jamais poderá comportar-se
como virtuoso, pois da virtude, é preciso hábito da prática.
No mundo em que os valores são efêmeros e a educação não se
volta a dar ao homem condições de ser senhor de si mesmo, é razoável
que se crie uma crescente e expansiva infantilização da sociedade. Os
intemperantes, são, no fundo, homens que não cresceram, pois
alimentam a convicção do mundo ser como querem que são, afinal,
toda ‘criança’ se comporta como um déspota, vivendo o estado de
natureza, onde só existe ‘o meu mundo’ e aquilo ‘que eu quero’, pois
das coisas nada conhecem. Romantizar e idealizar são as armas da
imaginação de si. Ao passo que incontinentes serão aqueles que, tendo
a oportunidade (no mais das vezes forçosa, triste e cruel) de crescer,
escolheram pela via nefasta da covardia e do vício, negando à ética,
pois preferem renegar as suas responsabilidades a assumir as
conseqüências de seus atos. O diabo, portanto, investe na
infantilização do mundo, pois, não seria nenhum absurdo dizer que
tanto o Estado de Direito, quando o Capitalismo, inclinam-se no
sentido de administrar a vida do homem de modo que a sua Lógica de
Vida Moderna não careça da responsabilidade de decisões, afinal,
desenvolver bons hábitos seria nocivo, melhor que todos sejam mais
suscetíveis às paixões, apaixonem-se e desapaixonem-se com mais
facilidade, romantizem e idealizem mais as realidade, bem como se
tornem alienados.
Sabe-se então que Mephisto não cria o desejo, ele é natural do
homem. Contudo, a tentação e possibilidade de realização são
artificiais, e estas sim são frutos da ação da Modernidade. O demônio
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
51
age e investe de maneira a dar conta de todos os desejos, dos mais
honestos aos mais nefastos, seja dos intemperantes ou dos
incontinentes. O demônio alça a condição de “necessidade” para que
os desejos humanos floresçam, deixa que cada homem busque
“livremente” seus valores onde desejar, dá toda a liberdade para o
pensamento, cultivando a soberba. A luz do Logus é inútil à
Modernidade, apenas aquela razão instrumental, delimitadora dos
meios é útil, pois é ela que guia os homens na realização dos seus
interesses. Volta-se aqui a ideia hobbesiana citada anteriormente: as
paixões fixam os fins, a razão instrumental estipula os meios
adequados para alcançá-los, e o movimento moderno, de ausência de
valores, por natureza, manda que se faça o que for preciso para atingir
um interesse.
O que se tem então? A resposta é simples e claro, no entanto
terrível: tirania. São os tiranos aqueles que, escravos de suas paixões,
buscam máximo prazer e mínima dor, perdendo-se de si mesmos. Ora,
o que é a “perda da alma” – preço exigido por Mephisto – senão a
alienação de si mesmo, a perda da consciência, a falta do conhecimento
e cuidado de si? Começa o homem então a distanciar-se de si mesmo, e
a perder sua humanidade. Não importa se burguesia ou proletariado,
se homem ou mulher, se rico ou pobre, se empregador ou empregado,
todo, em absoluto, todos, no ambiente moderno estão sujeito a sua
lógica de funcionamento: realização dos desejos mediante a venda da
alma. Quando aceita o pacto, e firma as condições para correr atrás dos
apetites excessivos, ele começa a esquecer-se que existem coisas além
do prazer e da dor, deixa a razão reta de lado, e a possibilidade de
felicidade vai abandonando a sociedade em prol do desenvolvimento.
Cria-se o movimento em direção ao progresso, o qual, ao homem,
infelizmente, não tem melhor final que o destino de Fausto. “Santos e
pecadores, algo dentro de nós nos dispõe a sermos Senhor das
Moscas”.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
52
Capítulo XII O Mal que os Homens Fazem
A lógica de funcionamento está dada: é através do empenho
na realização dos desejos dos homens, mediante sua alienação, que a
Modernidade age. Resta saber agora, se esta é a premissa que dá
princípio ao movimento do sistema. Segundo o Sr. Adam Smith (1723-
1790), em sua obra magna, a Riqueza das Nações,
"Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do
padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que
ele têm pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade,
mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades,
mas das vantagens que eles podem obter."103
para que toda a economia se movimente. Sua ideia se centra na não
interferência nas esferas privadas por uma força controlada, pois a
econômica, feita em base dos interesses dos homens, resultaria em
uma certa ordem, como se estivesse sendo conduzida por uma “mão
invisível”. Abstraindo qualquer ideia que defenda um liberalismo
econômico, estado mínimo, não interferência na economia, e etc., pois
a ideia deste trabalho não é essa, é preciso verificar o ponto principal
do argumento de Smith, o qual se encaixa com a ideia de movimento
na Modernidade: a orientação de cada um voltada a seus próprios
interesses que vai bem-guiar a sociedade para o progresso. O grande
problema está em considerar que é então da ganância, da cobiça, da
luxuria (ou qualquer outro pecado, depende do objeto em questão)104,
pautada pelo egoísmo (self-interest) de cada homem que tudo se
movimenta, pois o pecado não pode dar princípio a nada, é sandice
tirar bem de mal, pois o mal não é, só existe enquanto ausência,
privação (a steresis em termos aristotélicos) de bem.
Para resolver essa questão, primeiro, é preciso considerar que
os desejos humanos que Mephisto se propõe a realizar não são meios,
são fins a serem alcançados pela ação do homem, através do ambiente
moderno. Cada homem então, positiva um significado para a
realização deles, e, pela razão instrumental, estipula os meios
adequados para a obtenção do êxito. O racionalismo ocidental, ponto
extremamente relevante para a Modernidade, se pauta na excelência e
eficiência dos meios, os quais, se vingam e atingem o fim, não o fazem
senão por virtude. Evidentemente, não é por meio do mal que age um
homem quando busca seus interesses (mesmo que sejam estes
maléficos), pelo contrario, para que uma tarefa atinja seu objetivo, sua
execução precisa se dar investida no bem. Vale lembrar que nenhuma
realização de potências opera sem a virtude, pois, até o mais perverso
e nefasto dos criminosos não tem êxito em um crime, em uma ação que
visa o mal, senão pela virtude do bem fazer e executar aquela arte,
mesmo que se mova por vias celeradas105. Destarte, é a somatória das
ações racionais, remetidas a fins que vão dar princípio motor à própria
Modernidade. Pode-se concluir então, que é a instancia da técnica e
não da ética que movimenta o sistema. As paixões da alma que
comandam os desejos pecaminosos dos homens servem apenas
“molas” que impulsionam o agir, pois não existem enquanto objetivas
no momento da ação. A Modernidade, por sua vez, incentiva e
alimenta essa condição para que ela incentive a geração de ações
racionais, as quais criam o desenvolvimento, através da destruição e
da construção das coisas. Assim, a “mão invisível” do demônio pode
bem guiar a realização dos anseios, sendo “parte da força” – pois
apenas exerce influência e não age – “que empenhada no mal” – pois
o foco é os desejos de excessos, portanto pecaminosos – “o bem
promove” – o desenvolvimento da sociedade.
Empiricamente, o resultado das ações racionais dos homens é
a instauração das Instituições Modernas – as formas de organização
citadas anteriormente – como a fábrica, a escola, os condomínios de
prédios, as redes sociais virtuais, os órgãos públicos, entre tantas
outras coisas. Estabelecendo-se no ambiente, elas agem em prol da
Modernização, assumindo a função de instrumentos, direcionadores
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
53
do movimento ao futuro, ao novo, ao moderno, cumprindo uma
determinada função especifica, em função da satisfação de um desejo.
Ademais, como são frutos dos meios, as Instituições Modernas,
também respondem a uma necessidade imediata, dada pelas condições
objetivas do mundo; e como são empíricas, necessitam de espaço real.
Para maior esclarecimento, um exemplo prático: a fábrica. Quando
instaurada, no início da Revolução Industrial ela respondia ao desejo
de ganância e cobiça das nações, dentre elas principalmente a
Inglaterra, para uma necessidade de expandir e aumentar a produção
a fim de atender o mercado crescente, requerendo o término da
manufatura. O princípio que diz respeito este último item é fator
importantíssimo para entender a dialética da Modernidade: o espaço.
Criar espaço é, por conseguinte, “investimento nas forças da
destruição”. Como o Dr. Fausto, a ação racional dos homens deve se
empenhar na destruição para adentrar o mundo da criação; destituir o
velho, aquilo que não tem mais serventia racional e útil, para instaurar
o novo faz parte da ordem moderna. Esta é razão pela qual Marx
afirma que a burguesia deve revolucionar constantemente os meios de
produção106. “Destruir-construir” é o que torna possível responder a
novos desejos e novas necessidades.
É valido ressaltar que não existe lei que assegure que uma
Instituição Moderna particular deva existir essencialmente para a
Modernidade. Todas estão sujeitas a dar espaço. O que se pode dizer
com segurança é que seguem a lógica da modernidade: fluidas,
mortais e efêmeras. Procedem enquanto puderem responder as
necessidades do meio e aos desejos dos fins, quais mudam de acordo
com as circunstancias. Neste sentido, as palavras de Mephisto, quando
afirma ser “o espírito que tudo estorva” e “tudo que existe deve
perecer miseravelmente”, operam para externar que ele (e a
Modernidade) age em função da degeneração do que existe para poder
dar princípio ao que ainda não existe, pois tudo que existe tem um
tempo, uma vida, nada pode ser eterno... É literalmente, a destruição
do historicamente velho e a construção do historicamente novo.
Contudo, isso também não significa dizer que se pode tirar
bem do mal. Um movimento degenerativo em si, que corrompe a
forma, ou seja, “anda para trás”, não pode ao mesmo tempo promover
o movimento de realização das potências, em mesma instancia. O que
ocorre, na verdade, são movimentos separados, em instancias
diferentes, nos mais variados entes, que ora se pauta em realização, ora
em degeneração. A dialética reside nas contradições do movimento
ininterrupto de construção-destruição e nas consequências que ele cria
aos homens, e não nas coisas em si – ela é, como já dizia Marx, método
de análise. A manufatura não é necessariamente contradição direta da
fábrica, enquanto instituições, tal como a República Jacobina não é
diretamente contradição do Diretório, mas dentro de cada movimento
– que diz respeito à produção no Capitalismo ou da Revolução
Francesa, por exemplo – existe uma tese, uma antítese, e uma síntese,
que tornar-se-á outra tese, dando procedência ao movimento; isto é, a
criação e a destruição sempre estarão presentes, bem como as
contradições da natureza das coisas – por exemplo, é contraditório que
os revolucionários da República Jacobina tenham subido ao poder
para governar em nome dos direitos, ao passo que instauraram o
Terror que os diminuía, em suma, aumenta para diminuir, e isso, em
vez de melhorar, pirou a experiência empírica, fator que leva o
impulso de novas paixões, por conseguinte, novos desejos e
necessidades. As instituições carregam em si as contradições. Como
diz Marx, esse movimento cria a condição de que uma não exista sem a
presença da outra, caso contrario o movimento pararia, e, a dialética
não para. A exemplo disso, no quarto momento da Modernidade,
existe um sentimento de exclusão presente nas mentes das pessoas,
sentimento este que faz com que cada homem sinta-se sozinho quando
age no mundo, não pertencente a grupo algum, contudo, ao mesmo
tempo, estão todos interligados e em constante contato uns com os
outros, em rede, através de celulares, sites de relacionamento,
comunidades digitais, etc., assim, do choque das duas, pode se
concluir que o homem se sente sozinho, mas está ao mesmo tempo
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
54
conectado a todos, no entanto, aquele que se conecta a todos, ao fim
das contas não esta conectado a ninguém, configurando uma
contradição em termos.
Este tipo de ação está alinhado ao ser do demônio. Faz parte
do conflito moderno. A Modernidade em si, enquanto ambiente, é a
negação das Ordens Tradicionais do mundo antigo e medieval, as
quais, ambas, tem em sua essência o desejo do perpetuo, sólido e
eterno, quando ela é em si, naturalmente, o efêmero, fluido, e mortal.
Ora, quando se fala deste mundo, não se pode rejeitar a idéia de que é
a Modernidade está em total sintonia com ele, função da aceitação,
fruto das paixões com já foi dito. Contudo, há de se dizer que a mola
que movimenta as Ordens Tradicionais é tão mais honesta, paixão tão
mais pura, que somente se realiza na morte, pois anseia o mais alto
grau de perfeição, que toque o eviterno, algo que, necessariamente
exige a transcendência do mundano, regido pelo tempus – preceito
bem observado nas religiões místicas extramundanas, antes do
asceticismo intramundano que se dá na Modernidade. Dentro da
Modernidade isso vai se configurar como não-ser, a privação de seu
fim, o desenvolvimento. O demônio, por sua natureza de movimento,
impede que qualquer relação se ossifique: a realização dos desejos
existe, mas seu tempo é fugaz, do contrário, outros desejos não
floresceriam, e não haveria ações racionais para movimentar o
desenvolvimento. Este não é preceito aceitável facilmente pela
natureza humana. Quando decide pelos seus apetites e firma o
contrato com Mephisto, o homem vende a alma, mas, é com realização
de seus desejos que ela lhe é retirada. Todos os tiranos anseiam a
satisfação de seus prazeres, concordam com o custo, entretanto, creem
que o bem jamais lhe será tirado, pois o prazer que anseia é eterno,
perpétuo e sólido. Ora, todos aqueles que se empenham no não-ser
estão fadados ao fracasso. Quando se realizam, eles duram tempo
suficiente para cumprir uma função, até darem lugar a outro desejo.
Esta é uma contradição que a Modernidade desenvolve: na busca de
suas realizações mundanas, os homens creem que o resultado será
eterno, quando esta premissa é irrealizável. Destarte, vem o
sofrimento, decorrente de viver o conflito eterno.
Entretanto, os incontinentes são aqueles que sofrem mais, pois
não agem por convicção, e sabem das consequências nefastas que o
demônio pode criar. Os intemperantes têm o hábito de ser moderno,
portanto estão mais alienados, até do sofrimento. Essa diferenciação é
importantíssima. Pois reside nestes últimos o ser da Modernidade (o
que não quer dizer que ela não se movimente pelas ações dos
incontinentes, mas, como sua natureza é mais complexa, podem, tanto
abandonar a busca pela satisfação encontrando a ética, quanto
impulsionar mais agressivamente as instituições modernas, ao passo
que sua corrida é tão mais intensa, por conta do conhecimento que
tem). Da intemperança virá o consumo excessivo, a produção
excessiva, os relacionamentos múltiplos, a democratização, a
secularização e o gosto por tudo e todos, pois se acham na arrogância
constante de poderem fazer tudo, a todo o tempo, sem medidas, sem
impedimentos; e, como aceitam a condição por conta da alienação, não
sofrem, pois o apego não existe. Os intemperantes não possuem o
conhecimento de si e do seu meio. Não há consciência e não há razão.
É a entrega da alma. O contato com o sofrimento vai se dar então, a
partir da magoa alheia – o intemperante, quando causar o mal a um
terceiro, se da conta de que tem responsabilidades, bem como é gente
do mal.
Ademais, aos incontinentes, o sofrimento ora será tão grande
que, por escolha, conhecendo as consequências, vão preferir a entrega
da alma. Parece absurdo de se expor, mas, para atingir o fim que lhes
assola a alienação da alma é condição necessária, de outro modo seria
tortuoso demais pensar que uma construção será demolida, que um
bem parará de funcionar, que um lugar não existirá mais, que um
prazer será findado, que um relacionamento terminará. E da negação
da tragédia iminente e certa em função de uma fantasia (em geral,
construída racionalmente, como projeto romântico ou ideal) que o
incontinente vive; pautado sempre pelo medo de sofrer, alinhado a
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
55
esperança de findar qualquer dor, seu e daqueles que estão a seu redor
– o que é, naturalmente, uma ação vã, e que, no mais das vezes,
quando se choca com a virtude dos continentes e temperantes, ou até
mesmo incontinentes, cria tanto mais mal que as coisas fogem do
controle. O incontinente abandona a virtude e a razão, acha melhor
estar na mão do demônio, do que no caminho dele.
Essa condição de alienação que vive o homem moderno (tanto
os intemperantes por convicção, ou os incontinentes por escolha),
causa o esvaziamento humano, trazendo a ideia de relações efêmeras.
Como tudo na Modernidade, as relações vêm e vão rápido demais.
Elas se tornam obsoletas antes de adquirirem o caráter humano. É o
apaixonar-se e desapaixonar-se. Os sentimentos que pautam as
relações humanas são como fantasmas presos ao mundo dos vivos:
assombram os indivíduos, lhes criam mal e bem, e até lhes possuem,
contudo, não encarnam, não se fixam. As relações, pois, são mantidas
num status de suspensão e vigília constante. A Modernidade “dá” o
poder para que os homens criem seus próprios valores a bel-prazer,
amem e odeiam na ‘velocidade da luz’ e ajam tomando por base
unicamente sua vontade. Reduz então os homens a pobres espíritos
famintos, os quais, a todo tempo, rondam a carne morta, sedentos de
vontade de findar sua fome, movidos por seus preceitos
individualistas e egoístas, abandonados a gula de alimentar seus
imensos estômagos, fadados a esquecerem-se de suas pequenas
gargantas. Todos os sentimentos e suas ligações se desmancham ao
passo que a história caminha; tudo é duvidoso e incerto ao descer dos
círculos do inferno; jamais se sabe o que se encontrará no amanhã. “Eu
não sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte” 107, frase do
personagem Saint-Preux, contida no romance Julia ou A Nova Heloisa,
exprime o que realmente significa o viver nesse “novo” ambiente. Pois
é esta a lógica vigente, uma vida de momentos, de passagens e do
agora, que não se pode cultuar o sólido, somente o presente importa e
o futuro jamais pode ser projetado, embora seja esperado como
solução de todos os males.
A condição de vida do homem moderno em momento de
perfeita sociedade do desenvolvimento se equipara em atributos à
vida que Thomas Hobbes tem como inerente ao estado de guerra, de
todos contra todos108, pois neste período, a vida do homem é “solitária,
pobre, sórdida, embrutecida e curta”.109 Solitária, pois, viver na
Modernidade é viver na contradição de estar sozinho em meio a uma
multidão. A família, os amigos e os relacionamentos afetivos pautados
em emoções não se fixam, ou estão em choque com as relações
contratuais-burocráticas. É Pobre, de espírito e de coração, pois os
valores sociais e as ligações emocionais não são sólidos e não
conseguem se sustentar diante da vida moderna. Sórdida, pois, à
medida que mais trabalham, mais são explorados e escravizados (seja
do homem pelo homem, seja do homem pelo desejo), e nem veem à
gravidade de tudo isso; firmam o pacto, vendem e entregam a alma,
sofrem e perdem sua humanidade. Embrutecida, pois, as condições
cruéis do dia-a-dia, o tempo de vida gasto, a falta de consciência e de
intelectualidade tiravam toda a delicadeza e exuberância da vida. E
por fim, curta, pois, afinal, tendo todos estes atributos, é natural que
não se tenha uma grande expectativa de vida: vive-se para ser
moderno e não se é moderno porque se vive, e, da vida que realmente
vale à pena, aproveita-se pouco.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
56
Capítulo XIII A Valsa Sem Fim
Como se constata ao longo de sua constituição, a
Modernidade, o grande espírito-rei da negação, apresenta
características marcantes, elementos inerentes e uma natureza peculiar,
que não se altera em essência em momento algum, muito embora sua
forma evolua e mude gradativamente, como é natural a todos os entes
terrenos. É dentro dela que se apresentam as grandes contradições,
vivendo uma ambivalência continua e constante. São forças em
choque, das quais, na constante dinâmica de movimento, sempre se
reformam entre si, reestruturando sua constituição. Esse movimento é
coordenado pelos espectros de Modernizações, os tentáculos ativos da
Modernidade, com função básica de sempre atingir naquilo que
ameace o interesse do sistema como um todo. A dinâmica de ação da
Modernidade se dá sempre por absorção ou destruição daquilo que
existe. Os tentáculos agem, pelas instituições modernas, instauradas
pela ação racional humana, de maneira a deteriorar os valores
estabelecidos, corroendo a sua solidez, deixando que estes se derretam
e se percam em seu meio, e jamais se perpetuem, daí permite-lhes
emergir novamente somente se estiverem claramente adaptados a sua
ordem, caso contrário, são extintos miseravelmente. Dessa maneira,
especificamente, no que diz respeito à ação, se pode dizer que
permeado pelo ambiente moderno, a dinâmica ativa modifica as coisas
de modo a adaptá-las a lógica de consumo, razão e utilidade. Assim,
legitimado pelo Estado-nação através de suas leis, o capital age
racionalmente, respaldado da tecnologia para infringir as
modernizações necessárias, destruindo o velho e erguendo o novo,
dando força a Lógica da Vida Moderna, criando sempre novos desejos
e fomentando novos valores.
Embora o desenvolvimento da Modernidade se dê de forma
“natural”, viver na modernidade é viver em planejamento. A
racionalidade está presente na sociedade moderna sempre, não existe
organização sem calculo racional em função dos fins, (aos moldes de
Max Weber). Assim, as empresas inseridas na sociedade industrial
traçam o planejamento para executar as propostas que estão alinhadas
a ideologia do capitalismo110. O Capital industrial toma nova vertente e
chega a pontos periféricos do mundo onde antes apenas dava
demonstrações tímidas. Ele traz o desenvolvimento e o progresso
técnico, sempre a serviço de tornar as coisas mais integradas à
sociedade, homens passam a estar interligados, uns aos outros, como
numa rede. Neste momento, já é quase impossível pensar em ações
isoladas: Capitalismo, Lógica de Vida Moderna e Estado-nação, os três
“demônios” já se entrelaçam e usam um do artifício e poder do outro
para criar uma dinâmica de sistema. Na negligencia de um, os outros
cobrem a falta; um interfere no outro na medida do necessário ou
conveniente.
Uma grande característica dessa etapa é a noção de fazer local
aquilo que é global111; respaldado pelo advento da alta tecnologia
impulsionada pela chamada Revolução Cibernética que modernizou a
comunicação, o espectro da modernidade cria o ambiente de rede, e a
sensação de que tudo está conectado e interligado; já é possível ter
conhecimento de acontecimentos do outro lado do globo em tempo
real, na velocidade de um pensamento. Todo esse constante
investimento tecnológico faz parte de uma ideologia de reificação e
culto aquilo que é moderno, fruto das ciências positivas instauradas
pela Modernidade, a fim de atingir a finalidade maior de consolidação
do ambiente a nível global.
A pergunta que fica no ar então é referente às implicações
dessa consolidação para o panorama social. Para compreender esse
ponto se fazem necessários alguns esclarecimentos. (1) Primeiro, é que,
de fato, pode-se considerar que o indivíduo vive em um “cárcere de
ferro” sim, bem como toda essa ordem da Modernidade “determina o
destino do homem, até que a última tonelada de carvão fóssil fosse
consumida”112, mas, somente se se aceitar que o mesmo admite tal
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
57
condição. Os homens estão presos àquilo que eles mesmos criaram, e
assim aceitam, por conveniência. A ausência de valores morais
universais, comum a todos, faz com que o indivíduo vá buscá-los em
seus desejos, contudo, eles, como já foi exposto, não passam pela razão
reta, pois se deixa levar pela influência do meio: a ação publicitária do
Capitalismo impulsiona os valores que homem precisa pra coordenar
sua vida. Ele deixa que imaginem e pensem por ele, e gosta disso,
prefere ser governado a se governar. (2) Outro fato diz respeito à
condição da Modernidade. Ora, sociedade não é escravizadora e
opressora ativamente dos homens. Pensar dessa maneira eximiria o
individuo de todas as responsabilidades para com sua própria vida e
seu meio de convívio social. Destruiria a possibilidade de agir de
maneira razoável, centrado na virtude, eticamente. Existe sim um
sistema pronto e planejado, contudo, ele é formado por homens e
homens. Seguindo o raciocínio, (3) chegamos ao ponto que diz respeito
à natureza deste espírito. É preciso abstrair a ideia errônea que a
Modernidade é viva, tal como um homem. Ela não é um animal, não é
um homem, nem uma coisa. Não se fala aqui de uma grande máquina
com vida, que oprime e prende o indivíduo, a qual pode ser destruída
fisicamente, a exemplo do filme Matrix (Irmãos Wachowski, 1999). Ela
é um ambiente, um espírito, que dá respaldo a um sistema, com
dinâmica, o qual deve ser compreendido e analisado. Embora se mova
sozinha, pela ação do das ações racionais, não é física.
Todo esse panorama de esclarecimentos já traz a primeira
consequência: todos os valores estão dissolvidos. Como coloca
Marcuse, nem Marx e nem Freud, agora ambos já são obsoletos, lutas
sociais e conflitos psicológicos já foram destruídos e liquefados pelo
Estado de administração total113. Não existe mais a importância e a
preocupação de se fazer parte de um todo ou da história. Em
detrimento as fases anteriores, com incentivo ao social, agora o
favorável nos “novos” tempos modernos é somente o “eu”. Cria-se
uma atualidade individual, as relações sociais e afetivas são mais
fugazes e existe um fechamento em si mesmo. O indivíduo não se liga
absolutamente a nada, evita o desagradável, para que possa fazer
aquilo que quiser, a hora que quiser, quando quiser. É notável aqui
que o “tudo posso por natureza” ainda é presente na vida moderna,
ganhando novo contexto e nova aplicação.
A Modernidade rompe com as barreiras tradicionais anteriores
que limitavam o indivíduo ao campo de sua capacidade (aquilo que se
pode fazer) e no nível de realidade (aquilo que dá para fazer),
instaurando a única limitação na vontade (aquilo que se quer fazer).
Dessa maneira, cria-se uma reviravolta no sentido do poder e querer, e
aquilo que conta é o que se quer e não o que se pode. Essa destruição
da barreira do “poder” e do “dar” faz com que aqueles que não detêm
certas capacidades creiam possuí-las, o que os guiará a percorrer
objetivos dos quais jamais irão alcançar, fazendo com que encontrem a
ruína quando se depararem com as limitações da realidade. A cruel e
sórdida Modernidade dá poder de decisão a todos, e deixa que
desejem e consumam para por mais lenha na máquina a vapor infernal
do sistema. Essa lógica traz a reforma da vida como um sonho. Mas
não a concepção de “que toda a vida é sonho”114 católica da Idade
Média, onde o sonho é do Criador e não do homem, e assim, todos
reconhecem a existência nessa “estranha ilusão” quando percebem que
são figuras de sonho no sonho do Outro. Fala-se de um sonho
individual, moderno, “livre” de um Senhor, no qual tudo se pode, e
cada homem é senhor de seu próprio mundo. O grande problema é
que o mundo é um só, e não é um sonho, bem como os homens são
inúmeros e dos mais variados tipos, logo, o choque de interesse será
inevitável no convívio social da realidade. Ao passo que, cada um vai
querer fazer valer sua vontade sobre o outro, a Modernidade retoma a
guerra de todos contra todos. Assim, se tem uma sociedade em que o
egoísmo é rei e a vontade única legitimação para os atos. E, não que
este seja um problema para a Modernidade, pelo contrario, o egoísmo
e a soberba são os pais das ações que tem por meios a obtenção de
produtos e o consumo, dessa maneira, estão alinhadas as dinâmicas
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
58
modernas, afinal, o Capitalismo vende pecado, para os compradores
passionais.
Essa condição de vida, fruto da ação de deterioração dos
valores, faz com que os indivíduos sintam-se em si perdidos no
ambiente, muito embora demonstrem ao mundo sua posição firme e
resoluta. É diferente do momento inicial, retratado por Rousseau.
Embora exista a sensação de perdido em um turbilhão, existe também
um conformismo para com a situação. O povo se dispõe a ser
“escravizado”. Tudo parece natural, pois alienação esta presente. Em
comparação àquela época anterior, o homem perdeu a noção do
advento do novo. Aquele risco inerente à aventura prossegue,
contudo, agora passa a ser programado. É um risco seguro, tal como
andar na montanha russa de um parque de diversões, a qual, cria no
indivíduo aquela sensação de perigo, desencadeia a adrenalina, e traz
o prazer e aventura, no entanto, mecânicos, pois se encontram em um
determinado espaço, devidamente programado e controlado, próprio
para isso. E isso não ocorre apenas com o risco, mas sim com todas as
coisas. Tudo passa a ter seu devido espaço neste estágio. Tudo é
predeterminado e previsto. A ação do demônio ilude o homem
alienado, lhe fazendo crer que é livre e escolhe, mas que na verdade
esta em um estado de falsa sensação de escolhas. Isto é, aquele que
trabalha, vivendo no capitalismo da Modernidade, crê cegamente que
escolhe, e que é dono de si, por conta dos desejos que sente; mas, por
trás dessas opções “conscientes” está o sistema pronto e planejado,
com todas as possibilidades cobertas, somente aguardando um
direcionamento, deixando com que o indivíduo viva numa falsa
sensação de comando, calcado numa liberdade quimérica.115 Ademais,
jamais será liberdade a escravidão dos prazeres e excessos, que ignora
a razão e o bem comum.
Essa sensação de escolha é coordenada dentro de um espaço
de fantasmas efêmeros, dada por um modelo de conduta, que faz com
que as competências sejam confundidas: trata-se homens como
máquinas, e as máquinas, ferramentas em si, viram extensão do
homem. A tendência então é que não criam ligações com alguém em
si, mas por aquilo que ele agrega – por exemplo, ninguém ama fulano
por ser ele, apenas por aquilo que ele traz de vantagem ao convívio, o
que representa. Retornamos a Rousseau: a sociedade dá mais valor a
persona, as máscaras que cada homem usa do que a seu caráter.
Quando se trata de um ferramenta, um celular por exemplo, ama-se a
ele em si, como extensão do corpo – como se fosse um braço, que pode
ser substituído, por exemplo, afinal, não se criam ligações com uma
coisa específica, ninguém ama o modelo BKT5600 da marca X de
celular, e sim o celular que esta em evidência no momento, como mais
avançado e que pode propiciar o maior número de vantagens. A
relação então é vantagem por tempo, em função do que algo
representa. Tanto para pessoas, quanto a ferramentas, o que importa é
aquilo que elas trazem no momento, pois com a finalidade de que os
homens escolham e se relacionem com tudo e todos, a Modernidade
fomenta paixões simples e passageiras, deixando com que a
efemeridade mantenha sua essência de fugaz, mas assuma uma
aparência sombria de valor sólido, sendo admitido pelos indivíduos
como correto e aplicável, como único modo de proceder à vida
naquele momento. No entanto, do dia seguinte tudo pode se alterar.
Tudo é substituível. É proibido neste ambiente o apego e a
consolidação de uma relação, seja qual for.
Nunca antes se teve tanto apelo ao “momento”, ao “agora”, ao
“hoje”, como nas propagandas televisivas atuais: “a vida é o que você
vive”, “a vida é agora”, “viva a vida intensamente”. É o culto ao fugaz,
a pseudo-felicidade por sensações momentâneas. Como já sabido
desde os antigos, apenas uma ilusão:
“(...) Pois uma andorinha não faz verão (nem o faz um dia
quente); da mesma forma um dia só, ou um curto lapso de
tempo, não faz um homem bem-aventurado e feliz.” 116
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
59
Dentro de toda essa perspectiva, cria-se a idéia do tempo na
Modernidade. O que importa é o agora, o momento. Já o passado,
pouco ou nenhum sentido tem ele e aquilo que suas memórias
representam, sejam encarnadas ou não. Ele é apenas algo que não tem
serventia, são valores sem utilidade, por lógica racional, deve dar lugar
a outras coisas, mais novas e modernas. Dentro dos indivíduos, a
ligação emocional se perde em meio aos desejos da vida de momento.
Não existe a referência do antes, assim, o horizonte é o presente,
restrito a um curto espaço de tempo simbólico, e o que importa é tão
somente o agora. Nasce então um conformismo em virtude dessa falta
de referências. Uma vez que a visão dos homens, sem conhecimento de
passado, tudo parece que sempre foi dessa maneira, parecerá também
que é natural que assim seja, logo, não há alternativa de mudanças
nem razões para tal.
Alinhado a essência da Modernidade, a visão de futuro é
sempre de amanhã melhor do que o hoje, exprimindo bem a ideia
Comtiana de progresso continuo. Na mente dos indivíduos, sempre se
espera que o dia seguinte vá propiciar muito mais que o dia presente,
assim, vive-se o presente, mas aguarda-se sempre um futuro melhor,
prende-se a tola máxima de que no amanhã tudo “magicamente” irá se
resolver. É uma ideia de “Paraíso Perdido” 117 invertido, pois, espera-se
um futuro do qual nunca se viu e nunca se teve, tendo a fé como única
base de apego; o tempo ganha o caráter de solucionador de problemas,
pois virá como o “santo remédio” do amanhã. Perde-se assim o caráter
de previsão de ação, de virtude e de prudência em detrimento a
provisão do agora e a fé no amanhã. É a crença tola e absurda que o
tempo é aquele que a tudo dará jeito – condenada, desde os antigos,
pela ausência de coragem, sabedoria e força que apresenta o homem
que confia na fortuna pra resolver suas coisas. Ora, o tempo é
degenerador. Sua ação é apenas em deteriorar, corroer e consumir
aquilo que existe, ele leva por diante todas as coisas, mudando bem em
mal e transformando mal em bem118. Aquilo que hoje é, amanhã pode
não ser, as circunstancias mudam, e remediável de hoje será um câncer
eterno no futuro. Mesmo que se argumente dizendo que em certos
casos, a ação temporal melhore as coisas, o que pode ser verdade,
afinal, ele transforma o que não é no que é também, a questão é não
está voltada a eficiência de sua ação, mas sim na crença dele como
agente e autor, no lugar no homem.
Mesmo assim, reclama-se sempre para o futuro por aquilo que
é racional, em prol do desenvolvimento e do progresso, como ordem
do que é útil, mas que, contraditoriamente, no mais das vezes, nem se
quer chega a avizinhar a vida os seus “tão fervorosos defensores”, seja
por falta de tempo, ou excesso dele. O homem não dura para sempre,
nem mesmo as coisas são feitas da noite para o dia, e, muito embora a
noção do tempo seja distorcida, a realidade é como é, e não como se
idealiza. Mas, nada é por acaso, não existe ação desinteressada. Viver o
agora é também consumir o agora. A efemeridade como hábito na
conduta dos indivíduos, significa não se ligar a nada, assim, estar em
constante transformação. Por lógica, essa inconstância inibe uma
possível estática dos desejos, o que possibilita, por conseguinte, que o
capitalismo possa explorar todas a vontades a todo o tempo, e
desenvolver as mais variadas “necessidades” de consumo. Viva o
momento é sacie o desejo e vontade hoje, consuma hoje, no amanhã se
tem outro desejo se consumirá outra coisa, e assim sucessivamente a
máquina se sustenta.
Ademais, a explosão dos meios de comunicação propiciou
para o indivíduo o contato com todo o mundo já abarcado pela
Modernidade. Desenvolve-se o pensamento nos indivíduos de que o
mundo é menor do que se pensa. Celulares, computadores, televisões,
etc., dão a sensação de “plugado” e conectado ao mundo e todos os
outros, mas, contraditoriamente, cria o sentimento de
individualização, pois diminui os contatos humanos diretos. Os
indivíduos passam a se esconder sob a sombra da tecnologia, atrás da
tela fria de um monitor ou de um aparelho celular, por medo de
contato ou de desenvolvimento de uma ligação emocional e afetiva.
No ambiente moderno relacionar-se é sinônimo de estar preso,
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
60
sinônimo de anulação e sofrimento, ademais, contraria a idéia de útil e
racional, “retirando” aquilo que os homens consideram sua liberdade.
Ao intemperante algo abominável, ao incontinente, medonho. O
primeiro foge da “prisão”, e o segundo nega sua existência. Dentro de
um paradoxo inexorável, as contradições da Modernidade guiam as
ações para uma nova ordem que tem como função integrar para
desintegrar, relacionar para não se relacionar, enfim, de socializar para
individualizar. Os homens passam o tempo todo na condição de
conectados uns aos outros, mediante a segurança de suas ferramentas-
braço, as quais, contraditoriamente, lhes desconectam de tudo, pois as
ligações são efêmeras e liquidas.
A Modernidade cria os tiranos, os quais se comportam como
déspotas uns com os outros, impondo e ordenando suas vontades com
base em seu máximo prazer e mínima dor, mas frente ao sistema são
escravos, pois todas as suas vontades arbitrárias têm direcionamento e
estão previstas na lógica; cumprem apenas o previsto e o natural.
Alegam a racionalidade e o realismo, mas, vivem uma vida de sonho,
alienada e vendida em si. Acreditam governar a sua própria vida, mas
na prática são governados pelos valores do sistema que imagina e
sonha por eles. Por fim, correm continuamente, sem moderação, sem
parar, com ímpeto e gana, atrás da felicidade perpetua e eterna,
contudo vivem de momentos, e se perdem em sensações fugazes,
buscando-a na realização de suas paixões fugazes e mundanas. Dessa
maneira, grande parte dos indivíduos se permite a vida dentro do
sistema como um homem vazio e fútil, sem ligações humanas, sem
valores, sem sentimentos, sem identidade. Apenas uma pequena peça,
tratado pelo sistema como trata os iguais. Sem a real consciência da
condição, permeado por um conformismo e falsas ideias de liberdade e
escolha. Fatores que, invariavelmente levam a triste e melancólica
condição de prisão perpetua no “cárcere de ferro”.
“Perdi meu amor, perdi minha vida nesse jardim de medo. Eu
tenho visto tantas coisas em apenas uma vida solitária (...)
Desnorteadora casa de dor, ela não faz sentido algum (...) O que
você vê, não é real. Aqueles que sabem não vão te contar. Tudo
está perdido, venda sua alma, para este Admirável Mundo
Novo”
(Dickinson, Harris, Murray in Brave New World)
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
61
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LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
65
Notas de Fim
1 Nota do Autor: A frase é proferida por Adimanto, um dos interlocutores no
dialogo Da Justiça, redigido por Platão, o qual tem Sócrates como personagem
principal. Cf. PLATÃO. A República. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Nova Cultural, 2004.
2 Nota do Autor: Como as traduções, no mais das vezes, não dão atenção
devida às palavras e suas implicações, faz-se conveniente certa hermenêutica,
mais detalhada e mais precisa de alguns termos e passagens importantes foco
do presente trabalho. A passagem “que estorva sempre” pode ser também
traduzida como “que sempre nega”, bem como o “era melhor não ter nascido”
pode também ser entendido como “pois, melhor não vir a ser mais”. As
segundas premissas dão mais sentido e conferem mais com a ideia de presente
trabalho – em momento oportuno, as passagens serão melhores abordadas,
por ora, vale apenas a sinalização. Sobre a tradução utilizada (tanto neste
trecho, quanto ao longo de todo o trabalho) Cf. GOETHE, Johann Wolfgang
Von. Fausto. In Coleção Clássicos Jackson. São Paulo: Gráfica Editora
Brasileira, 1952, (pg. 85, para a passagem em questão).
3 Nota do Autor: A palavra “Mephisthopeles” vem do grego, apontada com
uma possível etimologia a combinação da partícula negativa grega μὴ, φῶς
(luz) com φιλής (o que ama), ou seja, "o que não ama a luz". Na película O
Motoqueiro Fantasma, o personagem Mephisto aparece majoritariamente em
ambientes escuros e sombrios, e, quando se depara com a luz elétrica,
demostra certa repulsa; em certa passagem, quando surge diante de seu filho,
em um parque, ao passo que caminha na direção dele, as luzes vão se
extinguindo, criando a sensação de que as trevas o acompanham. Cf. “Ghost
Rider”, Mark Steven Johnson, 2007.
4 Nota do Autor: John Milton, o diabo em pessoa, personagem de Al Pacino em
Advogado do Diabo, diz a seu aprendiz e filho, Sr. Kevin Lomax (Keanu
Reeves), que seu maior trunfo é passar despercebido às vistas do mundo. Ser
imprevisível e surpreendente é uma arma poderosa quando se lida com a
natureza humana nos seus instintos selvagens, pois a vaidade cega o
entendimento real de si e dos outros, tornando os feitos daqueles que foram
subestimados, aos olhos do vulgo, maiores e mais grandiosos. Cf. Devils’
Advocate, Taylor Hackford, 1997.
5 Nota do Autor: Dizia o padrasto de Johnny Blaze – o futuro Motoqueiro
Fantasma, o Fausto do mundo das histórias em quadrinhos – “Quando se age
sem pensar, você não esta escolhendo, está sendo escolhido”; e não há vontade
que não seja livre, a escravidão às paixões nunca será liberdade de escolha; o
diabo sabe disso, tanto quanto doravante Fausto vai saber. Cf. “Ghost Rider”,
Mark Steven Johnson, 2007.
6 Cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre. L&PM. 2006.
7 Nota do Autor: Todavia, vale a ressalva de que a comparação entre a Era da
Modernidade e demônio Mephisthopheles, bem com o Doutro Fausto e o Ser
Humano em si, não é absoluta; afinal, seria impossível dizer que o diabo segue
todos os passos da Modernidade, tal como Fausto cobre todas as
possibilidades da natureza do homem; metáforas são metáforas, não há de se
exigir delas mais que podem dar. Portanto, aqui nos dispomos a transcendê-
las. Pois, a análise científica requer certo rigor metodológico, principalmente
quando nos inclinamos ao entendimento de entes tão complexos, que não
poderia se limitar a referências literárias.
8 Nota do Autor: Evidentemente, não convém aqui discorrer de maneira
exaustiva sobre a necessidade, a conveniência ou as circunstancias que
levaram ao movimento das Cruzadas em si, pois destas coisas não deriva a
Modernidade, portanto não nos interessa. Agora, é no fato do movimento
exigir a modificação do panorama atual, alterando radicalmente a
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
66
configuração do Velho Continente, existente até aquele dado momento, que se
encontra nosso objeto de análise. Daremos, pois, foco nesta direção.
9 Nota do Autor: Segundo a tradição católica, São Pedro fora aquele que deu
princípio a Igreja de Cristo na Terra. O argumento está apoiado na passagem
“Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue
que te revelaram isso, e sim Meu Pai que está nos céus. Também Eu te digo
que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei Minha Igreja, e as portas do Sheol
nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que
ligares na terra será ligado nos céus. E o que desligares na terra será desligado
nos céus” (Mt 16, 16:19). Como é possível constatar, São Pedro, através da fé,
por revelação divina, obteve o conhecimento do Filho; Este, por sua vez, em
função de tão nobre virtude do apóstolo, deu-lhe a missão de edificar a sua
igreja (do grego, ekklesia, que significa assembleia, normalmente, aparecendo
no sentido de reunião do povo). A Igreja de São Pedro vem então com o fim da
salvação através da revelação da Santíssima Trindade, sendo sua, e somente
sua, a legítima autoridade sobre a religião (do latim, religio, ‘religar’ ou ‘ligar
novamente’), que estabelece a união do terreno e do transcendental através da
fé e da moral. Ademais, como se estende a todos os homens, e não admite
outras, faz-se Católica (do grego, kathólikos, ‘universal’). São Pedro é
considerado o príncipe dos apóstolos, tornando-se o primeiro bispo de Roma,
(o primeiro papa), sendo que, todos os posteriores carregam seu legado; esse
fato atribui a soberania da Santa Sé sobre todas as outras dioceses, que
originaria, doravante, os títulos ‘Apostólica’ e ‘Romana’ à Igreja Católica.
10 Nota do Autor: Essa premissa representa, para Santo Agostinho e a
escolástica de seu tempo, o estado de natureza do homem. A busca do bem e o
afastamento do mal (do pecado) é aquilo que ele tem por fim de vida, através
da boa conduta moral de fé, por intermédio de seu livre-arbítrio (a razão) dado
por Deus. Portanto, a razão é o que inclina o homem ao bem. Cf.
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus (Contra os Pagãos). Petrópolis: Ed.
Vozes, 1990.
11 Nota do Autor: Para Santo Agostinho, tudo vem de Deus; essa premissa lhe
conduz ao problema do mal (tão largamente debatido em sua filosofia). Para o
autor, o pecado (o mal) não é substantivo, é apenas ausência do bem, não fora
criado por Deus, pois não tem existência material. Desse modo, o Estado vem
na direção de coibir o mal que ofende a Deus, por intermédio do outro mal: a
opressão do homem pelo homem. As sociedades livres são aquelas que estão
alinhadas a natureza (citada acima), por conseguinte, tem a menor intervenção
do Estado quanto for possível. Cf. idem.
12 Nota do Autor: Segundo Maquiavel, é Estado o domínio (relação senhorial
do homem pelo homem instituída) que tem Império (poder de vida e morte
sobre o súdito) – “Tutti gli stati, tutti e' dominii che hanno avuto e hanno imperio
sopra gli uomini, sono stati e sono o republiche o principati” – , nesse sentido, para
Santo Agostinho, é um mal. Podemos supor, portanto, que alimentar a
descentralização do poder, e o aumento dos domínios, ao invés do Estado,
seria um mal menor, preferível as cidades “dos homens”. Afinal, a salvação
não reside mais na Polis, ela é agora individual, vinda da reunião dos
indivíduos (ekklesia, a saber, a Igreja Católica). Para o pensamento Agostiniano
sobre a cidade, cf. Ibidem; para a definição de Estado de Maquiavel, Cf.
MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In Coleção os Pensadores. São Paulo: Ed.
Abril. 1973. Cap. I, pg. 09.
13 Nota do Autor: Não convém discutir e aprofundar o assunto em questão,
pois a este não se dirige nosso objetivo aqui. Contudo, podemos ver em
Maquiavel uma discussão sobre a modernização dos exércitos em tempos de
renascença (fim dos tempos antigos), tanto em seus Escritos Políticos, como
n’O Príncipe. Não faltam exemplos para demonstrar a importância da
constituição de boas armas para um Estado, e como é razoável bem organizar
os exércitos, abandonando as concepções anteriores em prol da necessidade
presente. Vale lembrar que Maquiavel é de um tempo posterior as Cruzadas,
no qual já se deu o triunfo do pensamento aristotélico, por Santo Tomás de
Aquino (momento novo da Escolástica), portanto, sua visão da organização
política, alinha-se agora a comunidade que visa o maior bem, ao invés de
organização institucional que tem por fim coibir o mal pelo mal. Essa mudança
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
67
é importante quando levamos em conta o progresso que se instaura na Idade
Média a partir do pensamento tomista, o qual Maquiavel corrobora. O
Pensamento agostiniano, de certo modo, repele a organização militar e todo
seu fim, bem como o desenvolvimento da comunidade política. Para as
situações militares, Cf. MACHIAVELLI, Niccolo. “O Príncipe” e “Escritos
Políticos”. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril. 1973; para o
pensamento tomista em Maquiavel, Cf. NUNES, Edison. A Política a Meia
Luz. Ética, Retórica e Ação no Pensamento de Maquiavel. São Paulo: Educ,
2008.
14 Nota do Autor: Neste momento Jerusalém estava sob domínio dos
muçulmanos, liderados pelo Sultão Saladino. Com a morte do Rei Balduíno IV
– após alguns anos de contorno da degeneração nas garras da lepra e da
conspiração dos Grandes sempre a sua sombra – ascende ao trono Guy de
Lusignan, desposando a irmã do falecido, tornando-se assim rei-consorte.
Muito embora de status inferior, era Guy que governava – e não bem o fazia,
diga-se de passagem. De seus feitos estúpidos, se seguem uma série de ações
imprudentes e temerárias que não conseguiram nada mais que colocar o
Estado em risco (para adiante perdê-lo). Mas, se se pode dizer que a perda
deste principado deriva dos vícios de seu administrador, seria injusto
desconsiderar a virtude de Saladino nesta circunstancias como exímio
conquistador. Ao contrario dos exércitos cristãos, os muçulmanos tinham
unidade, estavam o sob o julgo de um príncipe de eximia habilidade e astúcia,
que não desperdiçava ocasiões e soube bem ordenar toda milícia. Sabendo da
situação que se passava com o Rei em vida, o sultão se assegurou de assaltar e
tomar alguns pontos estratégicos ao redor da região, e com o ataque gratuito e
tolo feito à caravana de sua irmã por Raynald de Chatillon, a mando secreto de
Guy, Saladino convocou uma Jihad (Guerra Santa) contra os cristãos.
Rapidamente tomou Damasco e Alepo, avançando para a Galileia, onde mais
adiante enfrentaria os exércitos de Guy de e com superior habilidade e
artimanha, os destronaria, tirando proveito do das más condições dos
soldados, da falta de água, do cansaço, e da inexperiência de logística. Era
tarde demais para salvar Jerusalém das mãos dos muçulmanos, agora
armados, organizados e liderados por um líder que se da Fortuna precisou
apenas das ocasiões. Guardadas as devidas ressalvas, parte deste momento é
retratado de modo bem razoável no filme “Cruzadas”. Cf. Kingdom of
Heaven, Ridley Scott, 2005.
15 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril. 1973. Cap. XXV, pg. 109.
16 MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril. 1973
17 Nota do Autor: Segundo a mitologia grega, a Maçã Dourada fora presente
trazido pelo cometa de Éris, deusa da discórdia, a um banquete oferecido no
Olimpo por Zeus, endereçado ”a mais justa das deusas”. Como era razoável de
se supor, o presente “inocente” desencadeou um imenso atrito entre Athena,
Hera e Afrodite, as damas presentes. Para resolver o impasse, Zeus elege Páris
de Tróia como juiz. Tentado pelas três partes, tendo a primeira lhe oferece toda
sabedoria do mundo, a segunda o poder e o prestígio como senhor do mais
poderoso reino da Terra, e a terceira a mulher mais bela e exuberante que já
fora vista como esposa, acaba escolhendo esta última. Diga-se de passagem, a
mulher oferecida é Helena, esposa de Menelau, Rei da Lacedemônia, irmão de
Agamémnon, Rei de Micenas, razão pela qual, posteriormente, se dá início a
guerra mais famosa da antiguidade. Por todas as consequências terríveis, o
fruto fica conhecido então como “pomo da discórdia”.
18 Nota do Autor: Trasímaco é um personagem d’A República de Platão. Na
presente obra, em dialogo com Sócrates, ele defende que é a Justiça, na
verdade, a conveniência do mais forte. Pode-se dizer então que, dentre os reis,
onde não há tribunal a que se possa recorrer, vale o exercício daquele que
puder forçar como o justo e devido; e ao povo é justa a submissão à lei daquele
que detém o poder, portanto a força. Justiça como conveniência do mais forte
retorna com o nascer da Modernidade, ideia tão combatida e repudiada na
antiguidade e na Idade Média, obcecada pela jurisprudência do direito
romano. Sócrates argumenta no sentido contrário de Trasímaco, a fim de
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
68
demonstrar que a ruína de uma cidade está quando a lei e os hábitos do povo
se sujeitam a vontade arbitraria do governante, pois o justo reside no império
da lei, tanto na cidade, quanto nas almas dos homens. Concordam com ele:
Aristóteles, os Teólogos da Idade Média, Dante, Maquiavel, entre outros
notáveis dos tempos antigos, pois não pode haver bom governo se aquele que
exerce tal poder o fizer de bel-prazer, tirânica e absolutamente, sem se atentar
aquilo que é razoável: o bem. As leis governam os homens, e não à vontade.
(para melhor panorama sobre a discussão presente Cf. PLATÃO. A República.
In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004).
19 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da
Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005.
20 Nota do Autor: Como relata em sua biografia, já na companhia do medo:
“minha mãe pariu gêmeos, eu e o medo”. Cf. Ribeiro, Renato Janine. Ao leitor
sem Medo: Hobbes Escrevendo Contra o seu Tempo. São Paulo: Brasiliense,
1984.
21 Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.
Abril, 1974.
22 Cf. ARISTÓTELES. Política. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova
Cultural, 2004. Cap. 1, Livro I.
23 Nota do Autor: Para melhores discussões sobre a epistemologia mecanicista
de Hobbes, Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São
Paulo: Ed. Abril, 1974. Cap. I a IX.
24 Cf. Idem. Cap.VI. Pg. 44-46
25 Nota do Autor: Mais adiante trataremos da questão da transformação da
razão com mais atenção, por ora, cabe apenas mencionar sua função no
teorema hobbesiano.
26 Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.
Abril, 1974. Cap. XIII. Pg. 78.
27 Cf. Ibidem. Cap. XIII. Pg.79
28 Cf. Ibidem. Cap. XIII. Pg.79
29 Cf. Ibidem Cap. XVI, XVII e XVIII, e, sobre a questão das guerras religiosas, e
das perseguições, ver a última parte Cf. ‘Do Reino das Trevas’. Pg. 356
30 Nota do Autor: A teoria de Hobbes – e o advento da Modernidade –, de
certo modo, retoma toda a discussão travada na Grécia antiga por Platão
acerca da Justiça. Em sua República, os personagens Trasímaco, Glauco e
Céfalo, discutem com Sócrates, defendendo diversas concepções de justiça de
pontos de vista extremamente particulares. Ao contrário de seus opositores,
Sócrates alega que é preciso olhar a justiça de cima, do ponto de vista do todo,
isto é, da Cidade. Naturalmente, Hobbes discorda desta posição, e corrobora
com seus adversários, pois, para ele, tudo está relativo ao indivíduo e sua
conveniência, a sociedade é apenas uma convenção artificial. Cf. PLATÃO. A
República. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
31 Cf. HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.
Abril, 1974. Cap. XIII. Pg. 80.
32 Nota do Autor: Giddens coloca que Modernidade se construirá em meio ao
medo e o perigo, representados pela experiência dada ao longo de sua
constituição, contrariando a crença ‘romântica’ de que a modernização da
sociedade findaria com todos os males. Pelo contrário, a Modernidade tem um
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
69
lado tão sombrio quanto pode emanar de luz. Os frankfurtianos abordaram
essa questão de maneira impar, principalmente no tocante de uma sociedade
que ao mesmo tempo em que constrói a civilização, carrega em si a barbárie.
Não obstante, nas palavras de Marx essa ideia já poderia ser identificada,
embora ainda tímida. Cf. GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da
Modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991;
ADORNO, T. “Educação após Auschiwtz” in COHN, G. (org.). Theodor
Adorno. São Paulo: Ática, 1994; e cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.
Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal.
Porto Alegre. L&PM. 2006.
33 Nota do Autor: Parte do dialogo final entre John Milton, o Diabo (Al Pacino)
e Kevin Lomax (Keanu Reeves) acerca do livre-arbítrio do homem. O excerto
em questão pertence a Milton. Cf. Devils’ Advocate, Taylor Hackford, 1997.
34 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul
Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
35 OUTHWAIT, Willian e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento
Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. P. 473
36 Idem. P. 473
37 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da
Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P. 15
38 Idem. P. 16
39 Cf. Devils’ Advocate, Taylor Hackford, 1997.
40 Nota do Autor: Não falamos aqui de uma ‘consciência pós-moderna’ ou de
‘pós-modernismo’. Estes conceitos são totalmente diferentes de uma Era pós-
moderna (isto é, Pós Modernidade). Cf. GIDDENS, Anthony. As
Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora
UNESP, 1991.
41 Cf. GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul
Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
42 Nota do Autor: Claro, naturalmente, vale uma ressalva importantíssima: não
seria razoável afirmar que o Capitalismo se restringe apenas a economia, ou
que o Estado-Nação não interfere em nada mais que a esfera política, ou ainda
que a Logica de Vida Moderna restringe-se ao social; pelo contrário, pois,
enquanto componentes da modernidade, eles se misturam e interferem uns
nos outros, extrapolando suas áreas, tocando em todas as esferas, agindo
juntos para a transformação constante do meio. A separação existe apenas por
conta da geração – e permanece para fins didáticos. A complexidade é
tamanha que seria injusto delimitar suas “fronteiras”.
43 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política, Duas Vocações. São Paulo: Ed. Cultrix,
2009.
44 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul
Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 09-11-12
45 Idem. Pg. 11
46 Cf. GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. In Coleção Clássicos Jackson.
São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1952, Pg. 85.
47 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul
Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 10
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
70
48 OUTHWAIT, Willian e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento
Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. P. 473
49 Nota do Autor: Na capa original do livro de Hobbes (Leviatã or The Matter,
Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiasticall and Civil) existe a
imagem de um grande homem, coberto por escamas, coroado, detendo um
cetro em uma mão e a espada em outra. O ponto importante fica por conta de
que cada uma de suas escamas é um pequeno indivíduo, simbolizando,
claramente, a ideia hobbesiana de que ele seria a junção de vários homens.
50 Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil. Petrópolis: Ed. Vozes,
1994.
51 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Ed. Abril, 1973.
52 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do
Emile). in Coleção Clássicos Jackson, Pensadores Franceses. São Paulo: Gráfica
Editora Brasileira, 1952.
53 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Ed. Abril, 1973.
54 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do
Emile). in Coleção Clássicos Jackson, Pensadores Franceses. São Paulo: Gráfica
Editora Brasileira, 1952.
55 Nota do autor: O termo Iluminismo deriva do latim iluminare, em alemão
Aufklärung, em inglês Enlightenment, em italiano Illuminismo, em francês
Siècle des Lumières ou illuminisme e em espanhol Ilustración.
56 Cf. ZEITLIN, Irving. “O Iluminismo e Seus Fundamentos Filosóficos”. in
Ideologia y Teoria Sociológica. Tradução Edimilson A. Bizelli. Amorrortu
Editores, Buenos Aires, 1982.
57 Cf. DESCARTES, Rene. “Discurso do Método”. in Coleção Clássicos Jackson.
São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1952.
58 Cf. MONTAIGNE, Michel de. “Ensaios”. in Coleção Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1980.
59 Cf. KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. in Coleção os Pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 1999.
60 KANT, Immanuel. “Resposta a Pergunta: O Que é o Iluminismo?”. in A Paz
Perpetua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições Setenta Colecções, 1995.
61 Cf. ZEITLIN, Irving. “O Iluminismo e Seus Fundamentos Filosóficos”. in
Ideologia y Teoria Sociológica. Tradução Edimilson A. Bizelli. Amorrortu
Editores, Buenos Aires, 1982.
62 Alusão clara à obra de Santo Agostinho, norteadora de parte do pensamento
católico, vigente por toda Idade Média. Para maiores informações, Cf. idem.
63 Cf. Ibidem.
64 Nota do Autor: O contexto citado se refere à invenção da guilhotina. Maior
instrumento de execução, ela, ao longo do Terror da revolução, decapitou
incontáveis inimigos da “nova ordem”. As execuções não paravam, nem se
limitavam a grupos específicos, chegando a atingir até mesmo aqueles que a
principio julgavam e executavam, saindo do controle de todos os ideais,
terminando somente ao extinguir a vida de seu maior líder, Robespierre. Esse
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
71
fato, entre outras coisas, exprime o poder social incontrolável de uma
revolução.
65 Cf. LOCKE, John. Segundo Tratado do Governo Civil. Petrópolis: Ed. Vozes,
1994.
66 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política, Duas Vocações. São Paulo: Ed. Cultrix,
2009.
67 Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. In Coleção Os Pensadores.
São Paulo: Ed. Abril, 1973.
68 Cf. MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. Espírito das Leis. in
Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1973.
69 Nota do Autor: Da língua inglesa Enclousures. Para o Feudalismo, a terra era
o bem comum para a produção do camponês; dela ele tirava seu sustento e
seus impostos (a nobreza e ao Estado). Com o inicio da transição passa a ser
encarado como bem de produção. A nobreza e o Estado vêm nisso uma
oportunidade, e rapidamente agem: começa então a cercar as terras, expulsar
os camponeses, e arrenda-las para pastagem de ovelhas.
70 Nota do Autor: Com a criação da Igreja Anglicana, Estatal e sem
interferência de Roma, as terras da Igreja Católica são expropriadas e passam
ao Estado, sendo dadas aos nobres como títulos mobiliários, arrendadas
posteriormente as pastagens e produção de algodão.
71 Cf. MARX, Karl. O Capital (Crítica da Economia Política). São Paulo: Difel,
1982. Livro I, Cap. XXIV.
72 Cf. Idem.
73 Nota do Autor: O termo ‘burguesia’ vem exatamente desta palavra: burgos.
Os burgos eram pequenas cidades, voltadas ao comércio, localizadas próximas
ao castelo dos senhores feudais.
74 Nota do Autor: A Nobreza, naturalmente, ainda nutria o sentimento
negativo quanto à burguesia; a sua visão nunca abandonou o estereotipo dos
antigos comerciantes, nefastos e corruptos. Contudo, se se dispunha a vender
títulos, receber dotes matrimoniais ou partilhar do mesmo espaço, tais fatos
residiam, no mais das vezes, apenas na necessidade de sobrevivência, pois os
privilégios aristocráticos estavam em franca decadência, perdendo espaço a
cada dia que passava, era preciso ignorar a vaidade e agir, a fim de se manter
no topo da cadeia, ou enfrentar o definhamento. Fato é que a nobreza nunca
foi presa a uma convicção que impedisse tal coisa, se deixava levar pelo
pragmatismo; portanto, aqueles que identificaram a ocasião, aproveitaram.
Existe um pequeno conto, daqueles de saber popular, sem autor conhecido, já
do início do Século XX, o qual relatava a conversa de um conde e outros
nobres, em uma festa das classes abastadas da sociedade, a respeito de um
americano, senhor do ramo industrial, rico e poderoso; a conversa se volta às
ideias de que o dinheiro não compra nobreza, pois ela é natural e vem da alma,
o conde diz então que um burguês de smoking jamais terá classe, será sempre
um “mágico”. Para melhor compreensão deste problema, Cf. LAMPEDUSA,
Tomasi di. O Gattopardo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000.
75 Nota do Autor: Em sua Política, Aristóteles afirma que a sociedade produz a
quantidade de escravos que necessita para suprir sua demanda de trabalho e
produção. Essa afirmação ele “Pois se cada instrumento pudesse realizar seu
trabalho obedecendo ou antecipando a vontade de outros, como as estátuas
feitas por Dédalo ou os trípodes giratórios de Hefesto, os quais, diz o poeta
‘sozinhos entravam na assembleia dos deuses’; se, da mesma maneira, a
lançadeira do tear tecesse sozinha e a palheta tocasse a lira, os manufatureiros
não precisariam de trabalhadores, nem os senhores de escravos”. Cf.
ARISTÓTELES. Política. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
2004. Pg. 148/149
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
72
76 MARX, Karl. “Divisão do Trabalho na Manufatura e divisão do Trabalho na
Sociedade” in O Capital (Crítica da Economia Política). São Paulo: Difel, 1982.
Livro I. Vol.
77 Cf. Idem.
78 ZEITLIN, Irving. “Bonald e Maistre”. in Ideologia y Teoria Sociológica.
Tradução Edimilson A. Bizelli. Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1982.
79 Nota do Autor: Retirar o indivíduo do centro de tudo e colocar o social tende
a apoiar uma Ciência baseada na sociedade. Nota-se então que os
Conservadores acabam dando base para uma coisa que criticavam tão
ferrenhamente. É neste preceito (o social está no centro de tudo) que vai se
apoiar o pensamento sociológico posteriormente, no mais das vezes, crítico a
Modernidade.
80 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da
Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.18
81 Nota do Autor: O fragmento refere-se a Karl Marx, e é retirado do livro de
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da
Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.20
82 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da
Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.19
83 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul
Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 12
84 WEBER, Max. Conceito e Categoria da Cidade. In O Fenômeno Urbano. Org.
VELHO, Otavio Guilherme. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1967.
85 Nota do Autor: Necessário aqui não deve ser entendido como aquilo que é
preciso. Pode-se dizer, que a mágica do capitalismo é transfigurar aquilo que é
apenas conveniente para o grau de necessidade. Assim, faz com que os
homens precisem de coisas das quais realmente não precisam.
86 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A Aventura da
Modernidade. São Paulo: Cia. Das Letras, 2005. P.17
87 ROUSSEAU, Jean-Jacques. A Profissão de Fé do Vigário Saboiano (Do
Emile). in Coleção Clássicos Jackson, Pensadores Franceses. São Paulo: Gráfica
Editora Brasileira, 1952.
88 Nota do Autor: A passagem descrita refere-se à obra já citada de Jean-
Jacques Rousseau, contudo, contida em: BERMAN, Marshall. Tudo que é
sólido desmancha no ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo: Cia. Das
Letras, 2005. P.18
89 GOETHE, Johann Wolfgang Von. Fausto. In Coleção Clássicos Jackson, Vol.
XV. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira, 1952. Pg. 24
90 Idem Pg. 24
91 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril, 1973.
92 Cf. Idem.
93 Cf. Ibidem.
94 Cf. Ibidem.
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
73
95 Nota do Autor: Soberba, segundo Santo Tomás de Aquino é um pecado tão
grande que deve ser tratado aquém dos sete pecados capitais propriamente
ditos. Ela define-se pela desvirtuação do Logus, uma insanidade tão forte que
conduz invariavelmente aos demais pecados. É força que faz com que o
homem creia-se muito mais ou muito menos que é. Ademais, fora este o
pecado cometido pelo Arcanjo da Luz, Querubim mais altivo dos Céus:
Lúcifer. Como era detentor de todos os atributos, o mais belo, mais inteligente,
mais forte anjo de todo o céu, não via ‘razão’ para a atenção depositada por
Deus aos homens, achou-se então na soberba de ser mais alto que o Altíssimo.
O argumento que se segue tem por base a ideia de que, apenas em instancia de
razão completamente desregulada um ente poderia ver algo de razoável em
ser mais que o Ato Puro, eterno. “(...) o primeiro pecado dos anjos maus não
pode ser outro se não o da soberba“. A soberba equivale a hybris grega. Cf.
TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. Vol. I. Q.63.
96 Nota do Autor: Visto a questão polêmica, não é razoável calar-se sobre este
assunto. Por vezes, como é natural do ambiente moderno, a palavra “pecado”
carrega um estigma negativíssimo: traz a conotação religiosa, conduz ao
moralismo simplista, em termos maniqueístas, e por isso é desconsiderada
quando se fala de ciência. Ora, pecado nada mais é do que um vício. Ações
pecaminosas são aqueles que, julgadas em si, por suas consequências, são o
caminho do excesso, ou da negação da natureza; desvirtuam a alma. A gula, a
cobiça, a luxuria, a vaidade, entre outros pecados, enquanto não-ser, não
existem substancialmente, eles são, nada mais, que ações que geraram um
resultado negativo, pelo desencadear de um determinado mal, e que a nada
deu princípio. O simples desejo não caracteriza o pecado, mas sim sua
consequência, quando celerada e nefasta. Cf. TOMAS DE AQUINO. Sobre o
Ensino (De Magistro) e Os Sete Pecados Capitais, São Paulo: Martins Fontes,
2001; TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2000. Vol. II.
97 Nota do Autor: Frase da música “Lord of the Flies”, da banda do heavy
metal inglês Iron Maiden, de composição de Blaze Bayley, Janick Gers e Steve
Harris, com base em livro homônimo de Willian Golding.
98 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril, 1973.
99 Nota do Autor: A lista de paixões primordiais exibidas aqui tem por base a
ideia de Santo Tomás de Aquino dos movimentos passionais do homem,
contudo, fora modificada e alterada, em sua essência, misturada aos conceitos
de Platão, Aristóteles, Descartes, Hobbes e Maquiavel. Razão pela qual atribuir
a ele tal classificação seria injusto.
100 Cf. Idem.
101 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril. 1973
102 Nota do Autor: Naturalmente, a perturbação da razão é possível também
fora do estado de ‘apaixonado’, mas devemos, necessariamente, admitir que
nele é mais forte e se manifesta com mais ímpeto.
103 Cf. SMITH, Adam. Investigação Sobre a Natureza e as Causas da Riqueza
das Nações in Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
104 Nota do Autor: Vale a ressalva que o Sr. Adam Smith não diz isso
literalmente, e nem coloca dessa maneira, contudo, se se olhar à prática e a
verdade efetiva das coisas, essa conclusão não parece tão absurda, muito
menos incabível. De todo modo, a conclusão é de inteira responsabilidade do
presente trabalho, pois não há de se atribuir aos autores àquilo que eles não
disseram, portanto, a nota é justificável.
105 Nota do Autor: Não se discute aqui se é ético ou não, a questão não é essa.
Evidentemente, se fosse necessária uma resposta a tal questão, ela estaria
atrelada ao fim do crime, ou seja, a que ele se presta em si, se vai promover o
bem ou se não, como no exemplo dado por Maquiavel em O Príncipe sobre
LEANDRO RAMOS-GONÇALVES MEPHISTO
74
Agátocles o Siciliano, quando, por via de crime tomou o principado, mas
promoveu o bem. Seria loucura dizer que as vias celeradas são boas, pois, seu
risco e sua execução exigem tanto mais virtude e habilidade que as torna
impassíveis de serem objetos de glória e emulação. Portanto, se não se pode
dizer que foi glorioso ou entrou para história, foi ao mesmo ético em sua
finalidade. Mas aqui, a questão é pura e simplesmente o meio. A Modernidade
instaura a excelência dos meios, pois precisa dela para continuar a vida.
106 Cf. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
Tradução de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre. L&PM. 2006
107 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ob.cit.
108 HOBBES, Thomas. O Leviatã. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed.
Abril, 1974. P.79
109 Idem. P. 80
110 Cf. MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro:
Zahar Editor, 1964
111 GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Tradução Raul
Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. Pg. 22
112 WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo:
Cia. das Letras, 2004
113 Cf. MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro:
Zahar Editor, 1964.
114 CALDERON DE LA BARCA, Pedro. A Vida é Sonho. Tradução Renata
Pallottinii. São Paulo: Ed. Hedra, 2007.
115 Cf. MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro:
Zahar Editor, 1964
116 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicomaco. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril, 1973.
117 Nota do Autor: O Paraíso Perdido é uma obra de John Milton, na qual
descreve, entre tantas coisas, em âmbito católico, a perda do paraíso tanto por
Satanás quanto por Adão e Eva. Em alusão a este fato, diz que os indivíduos
buscam um Paraíso Perdido quando querem retornar a um regime ou estado
de coisas que já ocorreu anteriormente, e, idealmente, era melhor que o atual.
118 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. In Coleção Os Pensadores. São Paulo:
Ed. Abril. 1973