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4ª ediçao - revista Efêmero Concreto

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Arte na cidade cidade na arte

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BR ITADEIRA.02BR ITADEIRA.02

Alessandra Duarte Luz em Túlia (2013)

Óleo sobre tela

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02.BRITADEIRAOs escombros de Alessandra Duarte.

06.EM OBRASUma estação no inferno

O rapper Dexter e o grupo Dragão 7 promovem uma tarde de música e teatro na penitenciária sem muros chamada Cracolândia.

22.OBSERVATÓRIOAchados e perdidos

Sujeitos aglomerados – e desencontrados – em ensaio fotográfico de Luiza Prado.

32.REPORTAGEMAs histórias que os prédios contam

Há um quê de Olavo Bilac no Theatro Municipal, há pegadas de Dom Quixote na Galeria do Rock... O arquiteto e urbanista Luís Antônio Jorge lê a arquitetura do centro de São Paulo.

44.CONFLUÊNCIAEm Istambul (pensando em Lisboa)

A cidade que habita dois continentes também se estende pela poesia do português Gonçalo M. Tavares.

52.ARTIGONós que sonhávamos cidades

Assim como a criatura do Dr. Frankenstein, os espaços urbanos são fruto do engenho e da arte dos humanos – e exigem cuidados constantes para que não se tornem destrutivos.

62.TAPA-BURACOAs viagens de um fotógrafo solitário.

Correr os olhos pelas páginas desta quarta edição da Efêmero Concreto é como bater perna pela região central da cidade de São Paulo, num percurso que passa por temas que vão da violência à dependência química, do teatro à arquitetura, da música à literatura.

Quem chega de trem e salta na estação Júlio Prestes pode caminhar até a praça de mesmo nome e conferir a intervenção que o rapper Dexter bolou para a área Em Obras da revista. Com a trupe de teatro Dragão 7, o MC se misturou aos frequentadores – ou habitantes – da chamada Cracolândia, cantando para e com pessoas que têm males de sobra para espantar.

Findo o espetáculo, pode-se descer a avenida Rio Branco, pegar a rua Dom José de Barros – onde a fotógrafa Luiza Prado registrou as imagens que compõem o ensaio da seção Observatório – e, caindo no Theatro Municipal, acompanhar o arquiteto e urbanista Luís Antônio Jorge num passeio até o edifício Copan, durante o qual são discutidas as relações entre projetos arquitetônicos e obras literárias.

E, por falar em literatura, é com os versos do escritor português Gonçalo M. Tavares que o leitor caminhante deixa a capital paulista e vai parar em Istambul, a cidade que ocupa dois continentes.

Boa leitura. E boa caminhada!

direção Deco Benedykt, Nucci edição Thiago Rosenberg arte Nucci assist. de arte Laila Szafran, Sérgio Goulart Faria articulação Deco Benedykt colaboradores Alessandra Duarte, Alessandro Sbampato, André Seiti, Camila Fortes, Catarina Bessell, Fabio Cobiaco, Felipe Portugal, Gonçalo M. Tavares, Jonas Tucci, Luiza Prado, Paula Desgualdo, Ronaldo Bressane revisão Rachel Reis agradecimentos Bernardo Mendes, Breno Benedykt, Bruno Bertogna, Candice Cruvinel, Danilo Rosa, Dexter, Erica Kou, Fabio Maleronka, Gregorio Candeloro, Grupo Dragão 7, Guilherme Conte, Janaina Carrer, Jessica Mancini, Joana D’arc, Lucas Girard, Luís Antônio Jorge, Marcio Black, Mariana Begel, Natália Garcia, Paloma Mendes, Raffaela Pastore Meneguetti, Rodrigo Bolzan, Rubens Peterlongo

capa Nucci tiragem 5 mil exemplaresdistribuição gratuitagráfica PANCROM

[email protected]

AO LEITOR CAMINHANTE

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O rapper Dexter e a companhia Dragão 7 levam música e teatro para a praça Júlio Prestes, no coração da Cracolândia paulistana.

por_RONALDO BRESSANEfotos_JONAS TUCCI

EM OBRAS.06

uma estacãono inferno

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exter entra no carro, um SUV prata zero, liga o som. No talo.

– Foda. Botar um rap aqui pra des-baratinar, irmão.

E aperta a tecla mute em si mesmo enquanto os falantes tremem ao som de uma inédita de Sabotage, faixa a ser incluída em álbum que, produzido por Daniel Ganjaman, conta com par-ticipação sua. O rapper de 39 anos dá ignição e espera à saída do estaciona-mento até que lhe abram caminho três homens, carregando pesados vasos com pinheiros – o que os faz parecer árvores com perninhas. O sol das cinco da tarde que doura as calçadas sujas da rua General Osório, centro de São Paulo, o céu totalmente azul da hora mágica, a lírica afiada de Sabota vinda do pós-túmulo: tudo conspira para

tornar irreal o que a Efêmero Con-creto acabou de vivenciar. Os homens- -árvores passam e Dexter parte can-tando pneu. Segue guiando imerso em um negro silêncio. Só abre a boca quarenta minutos depois.

É um Dexter bem diferente do que tinha entrado no mesmo carro, cinco horas antes, à saída da produtora Boia Fria, na Vila Anglo, zona oeste pau-listana. Era então o Dexter gente fina, aberto a falar de qualquer tema com voz rouca e gentil, pontuada por mui-tos “morou?” e “meu irmãozinho”. E pronto para pôr em prática a interven-ção criada para a EC: encenar um tre-cho de O mundo mágico de OOOhs!! em plena Cracolândia. A peça, monta-da pelo grupo Dragão 7, com drama-turgia de Néviton Freitas e direção de Creusa Borges, imagina que o deus

Dionísio visite este mundão velho sem Deus nem porteira e se espante com os excessos cometidos pelo homem. A direção musical é de Dexter, o que torna a encenação crua do Dragão 7 ainda mais contundente.

Ainda mais contundente se você pen-sar que uma cena ambientada na Cracolândia retornaria ao lugar de gênese. Tendo como protagonista um ex-usuário de crack.

O próprio Dexter.

***

Dexter nasceu na favela do Jardim Calux, em São Bernardo do Campo, Grande São Paulo. Como acontece com muitas crianças nascidas na pe- riferia, foi criado distante de uma

figura masculina forte (ainda está por ser escrito um ensaio relacionando o hip-hop brasileiro, muitas vezes sexista e misógino, ao fato incontornável de que seus líderes cresceram em ambi-entes dominados por mulheres). Dex-ter conheceu o pai biológico apenas aos 17 anos e não cresceu aos cuida-dos da mãe biológica, e sim de uma vizinha viúva, Maria Marina de Omena, que o adotou aos 13 dias de idade e o batizou Marcos Fernandes de Omena, sobrenome espanhol de um homem que ele nunca viu.

“Minha mãe foi gari por 17 anos”, conta o MC. “Enquanto trabalhava, eu ficava com outros meninos cujas mães também trabalhavam. Isso inte-gra as famílias: compartilhamos tudo, todo mundo brinca no quintal de terra. Desde a escravidão já é assim, se for

D

Os atores do grupo Dragão 7 em ação na Cracolândia

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ver. Por que apanhavam cada um de uma tribo africana diferente? Pra ficar mais fácil escravizar. Mas isso fundou a ideia da família coletiva, que ficou enraizada nas classes menos favoreci-das”, reflete Dexter, um olho em mim, outro olho no trânsito.

Na mesma época em que conhe-ceu o pai, o negro Juscelino, cami-nhoneiro que tinha espalhado várias famílias pelo país, Dexter descobriu o rap. Também descobriu, na auto-biografia de Martin Luther King, seu nome verdadeiro. No mundo do rap, o nome real é uma identidade secreta: Pedro Paulo é Mano Brown, Mauro Mateus é Sabotage, Antônio Luiz é Rappin’Hood, Alex Pereira é MV Bill. “Vi que um dos filhos de King se cha-ma Dexter em homenagem ao nome da rua da primeira igreja em que ele pregou. Achei interessantíssimo: o X me remeteu a Malcolm X, e X, no is-lamismo, representa o sobrenome africano perdido. O X integra todos em uma mesma família; e o X é o desco- nhecido. Além disso, Dexter quer dizer destro, direito, correto, que também passa pelo sagaz, esperto, ligeiro. E na periferia se você não é um cara direito você morre cedo – e pelas mãos dos seus iguais: pode ser polícia, pode ser ladrão. Daí adotei o nome. Hoje só a mãe e as irmãs me chamam de Mar-cos”, conta Dexter, acendendo mais um cigarro.

Sete anos depois, lutando contra os perrengues financeiros e na tentativa de arranjar grana para gravar o primei-ro álbum, Dexter pegou em armas.

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E foi pego. Um assalto a mão armada lhe valeu a pena de cinco anos e oito meses. Desesperado, fugiu da de- legacia onde estava detido: em qua-tro dias, roubou um carro e assaltou um mercado e um posto de gasolina. Foi recapturado. E teve a pena multi-plicada por dez. Cumpriu turnê pelo sistema prisional: Atibaia, Serra Negra, Itapira, Bragança, Carandiru – onde entrou a 1º de abril de 1999, sete anos depois do massacre dos 111 –, Fran-co da Rocha, Guarulhos, Presidente Bernardes, Hortolândia, São Vicente, Tremembé, Guarulhos de novo. Até sair, em 2011, não se considerava pre-so, mas exilado: “Esses 13 anos foram fundamentais como crescimento in-telectual, social, espiritual”, diz. “Li muito. De Alex Haley a Sidney Shel-

don. Aliás, adoro Sheldon. Li tudo. As estruturas das minhas músicas devem muito aos livros dele, que descobri com aquele Se houver amanhã. Louco, né?”, ri.

Na prisão, Dexter, ao lado do MC Afro-X, criou o 509-E – número da cela do Carandiru que ambos ocupavam –, primeiro grupo de rap formado dentro de uma prisão brasileira a gravar um álbum, Provérbios 13, produzido por nomes como Mano Brown e Zé Gon-zales. O trabalho teve enorme reper-cussão, mas o grupo se dissolveu com a saída de Afro-X da cadeia. Em 2005, Dexter lançou Exilado sim, preso não, um dos álbuns mais importantes do hip-hop nacional; faturou cinco prê-mios, além do Hutúz. “Escolhi um lado

da calçada seguro na prisão”, conta Dexter. “Teve a ver com minha religiosi-dade. A prisão é fria, tenebrosa, mas lá plantei o respeito, o amor. Quando você é um cara notado, corre o risco da inve-ja”, lembra. Aconteceram perrengues? “Nunca sofri violência de um preso. Da polícia, sim. Essa cicatriz [aponta a testa] veio do escudo de um PM numa blitz. Os caras esculacham, mandam descer de joelhos do quinto andar até o primei-ro...”, descreve, a voz contendo a raiva.

Sobre o fato de a violência policial só ocupar espaço na mídia após a classe média senti-la na pele, durante as mani-festações dos idos de junho, ele diz: “O rap fala dessa violência há 25 anos, mano. O Emicida tem uma frase inte-ressante: o papel sujo sempre sobra pro

rap. A classe média já sabia dessa violência, porque também ouve rap, mas sentiu só agora. E foi só 10%, morou? Na periferia a bala não é de borracha, os tapas na cara não são de brincadeirinha”, exalta-se. “Um pouco antes das manifestações, tava rolando uma guerra na periferia. Car-ros à paisana chegando na calada da noite e zerando nossos irmãozinhos lá. Isso nunca aparece no jornal. E continua acontecendo!”.

***

Entramos no centrão e nos aproxi-mamos da Cracolândia. Dexter para o carro, desce, é cumprimentado por passantes, entra em uma loja de instrumentos musicais, dá um alô ao

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dono. Aos poucos somos cercados pe-los dependentes de crack que vivem nas imediações da rua Santa Ifigênia. Dexter acende o décimo cigarro des-de que começamos o papo. Experi-mentou crack na prisão?

“Já usei maconha e cocaína. Crack fumei um ano direto, no exílio. Mano, é muita decepção, saudade, frus-tração, tristeza: natural você enveredar nesse caminho. Não cheguei à dete-rioração, mas foi uma experiência ter-rível. Você se descobre um ser humano totalmente diferente. Lá não tem crack toda hora, então acabam rolando umas abstinências, é foda”, faz uma pausa. E o que o motivou a parar? “Na cadeia também tem tampa de bueiro, morou? Vi um cara pegar uma dessas

tampas e dar na cabeça de outro, que morreu bem na minha frente. Briga-vam por causa de crack. Tempos de-pois eu me olhei no espelho, tive uma conversa comigo mesmo e falei: já era. Nunca mais. Quis viver. Graças a Deus e ao rap, saí dessa.”

Na praça Júlio Prestes já podemos ver o DJ Loo preparando o set e a trupe de teatro à procura de um espaço para montar sua cena. Os dependentes de crack que vivem no local e nos arre-dores se aproximam, olhando de es-guelha. Dois fotógrafos da revista chamam a atenção. Quem são eles?, eles perguntam. Quem são eles?, nos perguntamos. Virão roubar nossas al-mas?, pensam eles. Virão roubar nos-sos equipamentos?, pensamos. De to-

dos os lados há dúvidas. A essa soma de medos, frissons e mal-assombros se dá o nome de noia. Nem é preciso usar crack para ser um cara noiado.

Observando os frequentadores da praça, o rapper problematiza a legali-zação das drogas. “É verdade que, não liberando, as pessoas matam, morrem e faturam. Mas será que, com a libe- ração, não vai continuar a mesma coi-sa, à exceção de o cara não ser preso se comprar uma cotinha ali?”, questio-na. Embora soe conservador, seu dis-curso é pensado sob o ponto de vista dos párias sociais. “Prefiro pensar na educação das pessoas primeiro, aí elas decidem o que querem. Se você che-ga nessa praça e diz, ‘ó, tá liberado’, os irmãozinhos ali vão continuar rou-

bando. OK, você acaba com os barões da droga. Mas e o problema DELES?”, aumenta a voz, apontando para os dependentes. “A droga é uma forma de anestesiar a vida, morou? Tenho que comer a comida do lixo, dormir no chão, e a droga me anestesia, não me dá fome. Olha, não sou o dono da verdade. Na periferia os caras não têm dinheiro, chapa. Eles vão continuar te roubando, hein? E o câmbio negro vai continuar mesmo assim. Talvez o play-boy queira a liberação, porque pra ele vai ficar mais fácil: ele tem grana pra comprar. Mas quero saber é do pro-blema DELES”, conclui.

Dexter sobe ao “palco” – um pedaço do gramado da praça Júlio Prestes, que, em frente à linda estação fer-

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roviária de mesmo nome, acolhe a Sala São Paulo, uma das salas de concerto de melhor acústica no mundo – e dá boa-tarde a seu respeitável público: os cerca de cem dependentes de crack espalhados por ali.

*** “Acharam que eu estava derrota-do/ Quem achou estava errado/ Eu voltei, tô aqui, se liga só, escuta aí/ Ao contrário do que você queria, tô firmão, tô na correria/ Sou guer-reiro e não pago pra vacilar/ Sou

vaso ruim de quebrar, oitavo anjo, do apocalipse, tenebroso como um eclipse/ É, seu pesadelo tá de vol-ta/ No puro ódio, cheio de revolta/ Vou te apresentar o que você não conhece/ Anote tudo, vê se não es-quece/ Você verá que não deixei me envolver, pra sobreviver por aqui tem que ser/ Mesmo no inferno é bom saber com quem se anda/ Senão embaça, vira, desanda/ Vejo vários irmãos tomando baque/ O barato é feio, bem pior que o crack...”

Difícil imaginar algo pior que o crack.

As cerca de cem pessoas na praça caminham incessantemente para lá e para cá com seus cachimbinhos e seus sacos de plástico preto, nos quais le-vam os parcos pertences. A maioria está suja e cheira mal. Acima do odor de suor, mijo, merda, lama, saliva seca e sangue pisado, o cheiro do crack, es-pécie de mistura de plástico queima-do com gás sulfúrico, é onipresente. Muitos pedem um real, dois reais à reportagem. Não abro a carteira: se começar não vou conseguir parar. En-quanto alguns se aproximam do rap-per, aos gritos de “Mano, não acredi-

to, é o Dexter aqui!”, muitos não estão nem aí. Durante toda a encenação, das duas às cinco da tarde, cerca de trinta dependentes nem sequer saem de seus postos: permanecem encolhidos sobre os cachimbos, de costas para o “palco”. Nada pode ser mais interes-sante do que o crack. O crack é tudo.

“Não é o traficante que vende a heroí-na para você, é você quem ele vende para a heroína”, escreveu William Bur-roughs em Junky, em que trata de ex-periências com a rainha dos opiáceos, a heroína. O mesmo se pode dizer do crack. Droga barata, de efeito entor-pecedor rápido, duro e rasteiro. Droga burra, que, como sua mãe, a cocaína, não fornece expansão da consciência. Ao contrário: oprime-a. Provei duas vezes. A sensação é a de bater em um muro de concreto a 200 km/h. Em quinze minutos a porrada vai passan-do e, nessa dinâmica rumo à percep-ção natural, enquanto o ritmo cardíaco explode e os músculos estão endure-cidos, a realidade parece mais vívida, brilhante e acelerada. Logo você quer voltar à porrada inicial. Mas na segun-da porrada o carro está a 190 km/h, na terceira, a 180 km/h...

Nada será como antes. Como acon-tece com qualquer droga, aliás – de ta-baco a LSD, passando por internet, TV, compras ou sexo –, conforme defende no obrigatório In the realm of the hungry ghosts o médico canadense Gabor Maté, especialista em cuida-dos paliativos para a população de rua dependente de drogas. Sua tese é a de que todo dependente procura

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preencher um infinito vazio interior. Então vai ficando entorpecido; seu sis-tema nervoso, esfrangalhado; o hábito de encolher-se sobre a luz mínima de seu cachimbo torna-se tudo o que in-teressa, e logo seu corpo se torna, ele mesmo, uma pedra. O médico Marce-lo Clemente, que atuou durante quase um ano na Cracolândia, escreveu um diário de crueza impressionante, no qual denunciou: na região, 100% da população de rua é dependente do crack, e muitos o compram da própria polícia. (Infelizmente, um edema pul-monar levou o corajoso médico aos 27 anos, em 2011; suas vivências foram reunidas pela viúva e podem ser lidas em blogdacraco.blogspot.com.br.)

***

Aqui todos os dias se parecem um com o outro, e não é fácil contá-los. Desse modo brutal vivem muitos ho-mens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente cur-to. Poderíamos, então, nos perguntar se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória. Mas estou convencido de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular. Aqui, a luta pela sobrevivên-cia é sem remissão, porque cada qual está só, desesperada e cruelmente só.

O parágrafo acima não é meu: é de Primo Levi e foi tirado de É isto um homem?, relato de sua experiência em Auschwitz. Cabe perfeito, como uma

pedra em um cachimbo, para descre-ver a praça Júlio Prestes – um campo de concentração a céu aberto, uma penitenciária sem muros. “Só mesmo se o céu se abrisse e Jesus descesse pra vir tirar a gente daqui”, afirma o “detento” Palmares, a voz rouca e áspera, o corpo vestido com o uni-forme do Palmeiras, incluindo boné e chuteiras. “Só assim pra acabar com o bagulho.”

Portando farrapos como figurino, os atores do Dragão 7 misturam-se en-tre os frequentadores da praça. A certa altura, uma discussão entre duas atrizes – ou melhor, duas personagens – pega fogo, com direito a tapas e tabefes. Uma senhora vem apartar e aconselha as duas: “Se a briga é por pedra, eu arranjo outra aqui, vocês parem!”. E Dexter segue emparelhan-do hits: vêm “Saudades mil” e, dos Racionais, “Jesus chorou” e “Negro drama”, com suas quilométricas letras cantadas em jogral pelos 50 que per-manecem na plateia.

No meio de “Sou função”, parceria en-tre Dexter, Mano Brown e Lelê Função, uma surpresa: o próprio Lelê aparece – tinha escutado o som lá das Grandes Galerias e veio correndo. Depois da participação de Lelê, é dada a deixa para uma session de freestyle. MC Dexter não contém a emoção quando percebe que até mesmo naquele ape-lidado inferno há talentos inegáveis. Cerca de 50 pessoas dançam em torno de Dexter e DJ Loo. Um rapaz muito negro e alto, de cerca de dois metros, que havia se aproximado de modo va-

Lelê Função aparece na praça

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cilante e muito desconfiado, começa a gingar em movimentos espasmódicos, lembrando um zumbi que lentamente volta à vida. Dez pessoas se enfileiram, secas pelo microfone. Garotas e garo-tos testam coreografias, tirando onda entre si, rindo. Crianças, velhinhas e grávidas assistem fumando cigarro, maconha e crack, tudo entremeado a goles de cachaça. Um garotão bran-quelo, usando roupas negras dois números maior, circula oferecendo pedras coloridas, “preciosas”, se-gundo ele. Com um bicho de pelúcia rosa enrolado no pescoço à guisa de cachecol, uma menina revela: “Este é o dia mais feliz da minha vida desde... Pra falar a verdade, não sei se tive dia feliz na vida”, a frase nascendo sorri-dente e terminando oca.

Uma dupla de visual maneiro, um de azul (o Meio-Dia) e o outro de rosa (o Meia-Noite), chega portando sound-systems diminutos – lembram os rap-pers dos anos 1980 que carregavam enormes boombox nos ombros. Meia--Noite arrepia: monopoliza o micro-fone por dez minutos contando uma história absurda sobre quando Fábio Júnior se perdeu na Disneylândia e foi parar na Zumbilândia. Dexter me en-cara com os olhos arregalados a cada surpreendente rima do sujeito, que, por causa da voz muito rouca, lembra Funk Buia, do Z’África Brasil, mas com um flow muito mais rápido. Depois da sessão de freestyle, Meia-Noite me diz que seu sonho era gravar um dis-co – mas só chegou a abrir o show de

uma amiga em Osasco. Tem 30 anos e mora na Cracolândia há 15, vendendo soundsystems com o irmão Meio-Dia. “Nunca vi show grátis aqui pra gente, isso nunca aconteceu. Ninguém vem aqui ver a gente”, afirma. Ao seu lado, o capoeirista Miguel Castilho gira um passo de break com as costas na lama da praça.

Findo o freestyle, Dexter é cercado pela extravagante plateia – um mini--Woodstock do crack –, que lhe pede conselhos. Seu dom de pastor não nega um sermão ao pé do ouvido de cada um. Mas também ouve muita confissão. Um rapaz de cachimbo na mão diz algo que o deixa bolado. In-terrompe o papo, puxa o microfone e manda: “Vamos pra última?”. E puxa o clássico: “Ei, irmão, nunca se esqueça/

Na guarda, guerreiro levanta a cabeça, truta/ Onde estiver, seja lá como for/ Tenha fé, porque até no lixão nasce flor”. Enquanto alguns prosseguem no ritual de acender o cachimbo de cos-tas para Dexter, muitos não seguram o choro ao som da poderosa “Vida loka”. “Às vezes eu acho/ Que todo preto como eu/ Só quer um terreno no mato/ Só seu/ Sem luxo, descalço, nadar num riacho/ Sem fome/ Pegan-do as frutas no cacho/ Aí, truta, é o que eu acho/ Quero também/ Mas em São Paulo/ Deus é uma nota de cem/ Vida loka.”

E a hora mágica chega. Mágica para os fotógrafos; para os seres da praça é a hora trágica, a anunciar a noite, outra longa noite ao relento. A equipe des-monta o set; o MC dá os últimos salves

à rapaziada. A trupe de teatro sai leve, empolgada com a troca de energia com os frequentadores da praça, mas Dexter segue de cara amarrada. “O foda é isso, meu irmão”, murmura, a caminho do estacionamento, “a gen-te vai, eles ficam. Conheço bem essa sensação”. A pior prisão, ladrão, é a da mente.

***

Mergulhamos no trânsito em silên-cio por uns 40 minutos. Pouco antes de chegar à produtora, Dexter afinal abre o bico. “Mano, naquela praça encontrei cinco caras que estiveram comigo no exílio.” Interrompe a fala e me olha no olho. “Sabe quantos caras encontrei do lado de fora que hoje estão bem, com família, casa, carro e tal? Dois. E lá, cinco. Um de-les foi da minha cela. Sabe o que ele me disse, irmão? Que se eu precisasse de qualquer coisa era só pedir. O cara quis me vender pedra”, conta. “Às vezes dá vontade de concordar com aquele palmeirense, mano, que disse que só se o céu se abrisse e Jesus descesse pra acabar com o bagulho, morou?” E, olho no trânsito, volta ao mutismo enquanto ouvimos de novo o rap póstumo de Sabotage. No olhar de Dexter, uma lágrima dura, lutando para não cair.

Ronaldo Bressane é escritor e jornalista.

Roteirista da graphic novel V.I.S.H.N.U.

(Companhia das Letras, 2012), mantém o

site Impostor, em ronaldobressane.com.

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A artista visual Luiza Prado mostra o seu ponto de vista sobre a fragilidade do homem, sempre em busca de si

mesmo, em meio às multidões das grandes cidades.

O ensaio foi realizado no prédio da Trackers,espaço dedicado à formação de produtores

de música e vídeo localizado na rua DomJosé de Barros, centro de São Paulo.

OBSERVATÓRIO.22

aCHADOs e

pERdIdoS

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Luiza Prado é artista visual. Além de atuar

com novas mídias e intervenção urbana,

aplica na fotografia técnicas e conceitos

da pintura. Site: luizaprado.nu.

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REPORTAGEM.32

Mire e veja: os edifícios têm algo a dizer. Arquitetura e literatura têm mais do que um sufixo em comum. E o arquiteto e urbanista Luís Antônio Jorge está no centro de São Paulo para ler os enredos e as personagens embrenhados no concreto.

por_PAULA DESGUALDO fotos_ANDRÉ SEITI

AS HISTÓRIAS QUEOS PRÉDIOS CONTAM

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as, hoje em dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda parte, poderão os prédios falar e se-rem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?! A pergunta é quase a mesma que faz o narrador de “Con-versa de bois”, conto publicado no livro Sagarana, de João Guimarães Rosa. Só não está entre aspas, feito citação, porque no lugar de prédios, como deve ter suspeitado o leitor atento, o original traz a palavra bois.

A alteração herege no texto roseano tem um motivo. Ao lado de “Recado do morro”, outro conto do escritor, a narrativa que se inicia com o trecho mencionado serviu de inspiração para que, em 2005, o arquiteto e urbanista

Luís Antônio Jorge, professor e pes-quisador da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), projetasse a reforma da Casa de Cultura do Sertão, no Mor-ro da Garça, que fica no miolo do esta-do de Minas Gerais. Antes de esboçar os primeiros traços, Luís estabeleceu um longo e profundo diálogo com os escritos do autor. A compreensão do espaço e da paisagem, o desenho de cada peça de madeira, tudo se deu a partir de uma interpretação do uni-verso poético de Guimarães Rosa e de um confronto entre a obra literária e o lugar no qual ela seria traduzida em obra arquitetônica. Quem visita o centro cultural encontra uma pequena casa restaurada e um pavilhão anexo. A varanda que conecta esses dois am-

bientes faz uma homenagem à silhue-ta do morro e ao carro de bois, minu-ciosamente estudado pelo arquiteto, que acompanhou um mestre carreiro em seu ofício.

E eis que agora, agorinha mesmo, Luís está no centro de São Paulo para falar justamente sobre a relação entre arquitetura e literatura. Nessa vereda de mão dupla, as personagens e os enredos fictícios são referência para a intervenção no espaço, e o espaço, por sua vez, possibilita uma leitura imaginativa digna de trama literária. Aqui não tem sertão, não tem res-tinga, muito menos boi. Mas, assim como Guimarães Rosa, a literatura extrapola contextos – e também se esconde no concreto da cidade.

Interpretador sagaz de concreto, o ar-quiteto logo começa a ler em voz alta o Theatro Municipal, aquele edifício arrojado, erguido no nascer do século passado: “Veja toda essa pompa. Os olhos vão pregando nas colunas, na sobreposição delas. Tem uma ordem embaixo e outra lá em cima, tem o dórico e o coríntio, tem figuras de per-sonagens importantes que retratam as artes... É uma narrativa muito marcada pela figuração”.

Traduzido de jeito que bem entendam os outros, parece que o tal do teatro quer mostrar que somos todos letra-dos, cultos, brancos, europeus até. Na época em que ele foi desenhado

BIBLIOTECA NO ASFALTOM

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por Ramos de Azevedo, tendo como base a Ópera Garnier, de Paris, a ar-quitetura acadêmica de belas-artes que o caracteriza era considerada indispensável a qualquer cidade que se pretendesse civilizada.

Para Luís, a forma do edifício se asse-melha à de um poema parnasiano, que valoriza a beleza, os detalhes, o vocabulário rebuscado e o resgate de temas clássicos. Ornamentado e im-ponente, o Municipal diz “olha-me!”, como que recitando o primeiro verso do poema de mesmo nome escrito por Olavo Bilac. Tal qual poeta parna-siano, o arquiteto que projetou o tea-tro se baseia em uma métrica rigorosa, em códigos preestabelecidos.

Se cada estrutura do espaço urba-no pode ser lida como texto – seja poesia, seja prosa –, será possível, enfim, pensar a cidade como uma grande biblioteca? O homem silencia pensativo antes de responder: “As boas bibliotecas normalmente são or-ganizadas. Aqui fica difícil ordenar por gênero ou assunto”.

Já viu prédio que é puro fluxo narra-tivo? O Copan, de Oscar Niemeyer, é desse tipo. Desde 1950, insinua seus 140 metros ondulantes no recheio da capital paulista. Para o pedestre que

chega da calçada, o térreo é uma continuação da rua. Não tem degrau nem entrada nem qualquer obstáculo que atravanque o seu trajeto. Luís faz gosto: “É uma forma muito generosa de convidar o pedestre e não inter-romper a narrativa urbana”.

No núcleo arquitetônico central de São Paulo, ele gosta mesmo é das passagens, das travessias, das ruas in-ventadas no meio dos lotes, dos des-vios que costuram ruas e dão nó no asfalto, como a Galeria do Rock, na avenida São João, e as galerias Metró-pole, na praça Dom José Gaspar, e Nova Barão, na rua Barão de Itapeti-ninga. Esses acessos o fazem lembrar grandes personagens caminhantes

da literatura, aqueles tipos urbanos esquisitos e ociosos caracterizados por Charles Baudelaire no livro As flores do mal ou por Edgar Allan Poe no conto “O homem na multidão”. Sem falar em Dom Quixote, o errante de Miguel de Cervantes que transita tanto por territórios físicos quanto pelos fantasiosos.

É verdade que a imaginação não de-pende só de referências literárias. Os elementos visuais da cidade estão aqui, aí, ali, e em toda parte, para que cada um os interprete como bem entender. Nesse sentido, é uma leitura muito mais democrática, uma leitura inclusive para iletrados, para qualquer um que deixe o pensamento passear quando vê

DOM QUIXOTE NAS GALERIAS

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O fluxo narrativo do edifício Copan

Galeria do Rock: por onde passam os roqueiros, skatistas e dom-quixotes

da cidade

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uma janela entreaberta, uma parede descascada, uma porta colorida. A princípio, tudo na metrópole, inclusive uma fachada lacônica e impessoal, pode render uma boa novela. Ou se-ria uma crônica? Que tipo de texto, afinal, seria a cidade? O apreciador de atalhos reflete: “Tão estranha narra-tiva, tão truncada, de tão difícil leitura. Que texto seria esse? Um texto in-compreensível, em que os conflitos se exacerbam, as vozes se sobrepõem e os desenhos se digladiam”.

Como qualquer meio de expressão do ser humano, a arquitetura pos-sui uma linguagem própria. Tanto é que, assim como as ideias e os sen-timentos transcritos em frases, ela tem uma sintaxe e até uma semân-tica. “Estudar a linguagem, nesse caso, é entender a cidade como um sistema organizado de informação,

GRAMÁTICA URBANA

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pensar se esse espaço informa e se faz parte de um sistema informa-tivo”, comenta Luís. “É assim o dis-curso da sintaxe urbana, formado basicamente pelo construído e o não construído.”

Os elementos sintáticos seriam os edifícios, as portas, as coberturas, que se trançam em um baile coeso, como se fosse texto mesmo. Já a semântica, um tema emaranhado para os conhecedores do assunto, está relacionada ao uso do edifício, mas não só isso. Alguns pesquisa-dores dizem tratar-se do significa-do cultural que ele tem, de como se insere na história e no cotidiano

Paula Desgualdo é jornalista e estuda

letras latino-americanas. Escreve em

yrodar.wordpress.com.

do lugar. Porque é no dia a dia, em um dia qualquer como hoje, que se desenvolve o enredo da cidade. O nascer, morrer e transitar das per-sonagens – de ferro, concreto, ma-deira, carne, osso e fantasia – é o que dá o tom da narrativa. E, como vida de caminhante é caminhar, os andarilhos agora pedem licença para seguir seus passos rua adentro, em toada de carro de boi.

VOCÊ JÁ LEU ESSE PRÉDIO?

A reforma da Casa de Cultura do Sertão, no Morro da Garça, é um entre vários casos em que a ficção extravasa os limites das páginas do livro para se materializar em estrutu-ra arquitetônica. O site Flavorwire listou – em flavorwire.com/286088 – alguns edifícios erguidos em di-versos cantos do globo em tributo a grandes autores e seus escritos.

Na pequena ilha de Martha’s Vine-yard, nos Estados Unidos, por exem-plo, Steven Holl usou madeira para construir a casa que, em Moby Dick, de Herman Melville, foi feita com

ossos de baleia por uma tribo indí-gena. Já em Barcelona, na Espanha, um conjunto residencial reproduz a fortaleza onde o protagonista de O castelo, de Franz Kafka, não con-segue entrar.

Existem ainda versões para Cidades invisíveis, de Italo Calvino – que, aliás, é uma referência de diálogo literário com a arquitetura –, O hob-bit, de J.R.R. Tolkien, e Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Provas não faltam de que, como ci-mento e tijolo, a palavra também edifica – em sentido literal.

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em iStaMbuL(pensando em Lisboa)

Para o escritor português Gonçalo M. Tavares, estar em Istambul é como estar num barco: “Os pés balançam”, comenta ele, “balançam entre o Ocidente e o Oriente”. A cidade, afinal, é a única do mundo que habita dois continentes, Europa e Ásia, cada um à sua margem do Bósforo.

E é num ponto dessa região partida ao meio que o autor – também ele dividido: o corpo em Istambul, os pensamentos em Lisboa – escreve este texto,que transita entre Turquia e Portugal, entreÁsia e Europa, entre o verso e a prosa.

por_GONÇALO M . TAVARESilustração_CATARINA BESSELL

CONFLUÊNCIA.44

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b.No período cerebral podes olhar pela janela que nada acontece. Mesmo se do lado de lá da janela a revolução estiver na fase pior ou acelerada, se os teus olhos pertencerem ao corpo na sua fase-cérebro, nada de nada, nem som, nem cor, nada de forma; o exterior de facto não existe quando a revolução não é sequer suficiente para te fazer virar a cabeça, como acontece quando o senhor do restaurante tropeça e parte um copo(e tu não olhas).

c.Apesar de tudo, gritar não abranda a força do vento, talvez (experimenta) entrares para dentro de casa, fechares a porta e aí, sim, berra à vontade – e acredita no que quiseres.

1. Considerações gerais

a.Turquia; nem toda a coragem tem disposição para abdicar do belo; atacam, sim, e sozinhos, mas com a camisa abotoada. O corajoso feio é, de forma imperial, ignorado. Assim não, dizem.Queremos jovens, sim, mas com critério estético. Destruir como quem dança, por exemplo.

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2. Num restaurante em Istambul (pensando em Lisboa)

a.Peço copos: não vêm. Na Turquia, os copos: uma dificuldade. Inaugurada em 537 uma igreja, pelo imperador Justiniano, construída sobre duas igrejas anteriores. No século XV foi transformada em Mesquita Haghia Sofia (a igreja da sagrada sabedoria).Pois bem, de duas faz-se uma; mudança de quantidades; depois essa uma igreja transformou-se numa mesquita; mudança qualitativa.(Em filosofia: distinção entre quantidade e qualidade. Diferente qualidade significa diferença nas características essenciais.) No entanto, de resto, todos com o mesmo medo.

b.Caio na mesa; devoro o que há: nada para comer, mastigo o que existe ainda de excitante na minha cabeça. Torço o pescoço para ver o mundo: não está. Estou eu: grito; tenho dois duendes nos bolsos: em Istambul exijo pagar com a moeda dos malucos: os gritos.Dou 1, 2 gritos, mas não os aceitam: dizem que a distorção da voz não é doida o suficiente. Fico em dívida: deixo a minha cabeça para pagar uma dívida mínima; dívida é dívida, cabeça é cabeça.Salto para cima de um buraco: caio. Devo cortar a inteligência; vou a uma loja e pergunto: quanto é? Não levo nada

mas pago. Sou 1, masculino e culpado; a culpa em 2012 (passou) do espírito para a contabilidade. Se és culpado, pagas: não se trata de sofrer mas de aritmética: 2 + 2 não resolve muitos problemas mas resolve um. E isso basta (a solução é 4). Olho para cima e digo adeus ao mapa do mundo; estou abrigado da chuva debaixo de um mapa impermeável.Tenho a cabeça debaixo da Ásia-Istambul, o braço direito protegido pela Istambul europeia e assim espero que a chuva pare de cair. Uma camioneta com mobília antiga; só não leva os velhos de Sutanamed lá dentro porque eles protestam. Tenho dois pés e, no meio, o Estreito do Bósforo. Um pé asiático, um pé europeu. Sou o ginasta.Meu caro, eis a diferença: na Ásia a circunferência não se traça assim, de uma vez; a circunferência é diferente, tem duas linhas rectas de cada lado e quando não vai a direito é porque não consegue (ou por aborrecimento) – nada tem a ver com aritmética. Que sabe você do erotismo geométrico, se você veio de outro país? As mulheres avançam com pratos quentesna mão: atiram comida ao Estreito do Bósforo, e nem sempre um lenço na cabeça evita um assobio atrevido.Na Ásia não se calcula: dá-se saltos e tenta abrir-se o tecto com a cabeça de um ou dos outros; na Europa apenas por tédio se interrompem as linhas rectas.É isso. Na Europa só se interrompe a linha recta por aborrecimento, minha Excelência. Em Lisboa é assim. Aquinão. Estamos em Istambul.

fimGonçalo M. Tavares é escritor. Publicou, entre

outros, os livros Jerusalém (Companhia das Letras,

2006) e Uma viagem à Índia (Leya, 2010), pelos

quais ganhou os prêmios José Saramago e Portugal

Telecom de Literatura, respectivamente.

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ARTIGO.52

Não há fórmulas, não há um manual de instruções para lidar com as cidades, esses seres em metástase, que crescem sem parar e sem lógica. A única certeza é que, além delas, não nos resta muita coisa.

por_ALESSANDRO SBAMPATO ilustração_FABIO COBIACO | NUCCI

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O ônibus atravessa a ponte Cruzeiro do Sul, e o trânsito escoa lento

como o magma do Tietê. Motoboy descansa no asfalto, mirando

o próprio rosto, sem ver, no espelho vermelho que cresce, quente,

morno, esfriando. Homem dorme, sem sonhos, batendo a cabeça

no vidro suado do ônibus. Traz sobre as pernas um pacote de

cabides de camelô. Subiu no Mappin, vai saltar na Casa Verde, ou

não vai; vai é perder o ponto, acordar no final, cobrador rindo da

baba que pende e empapa a camisa. Vai chegar no fim do segundo

tempo do futebol, jantar o prato frio deixado pela mulher, que

foi dormir. Sem sonhos.

e tempos em tempos, alguém resolve decretar o fim de algo grande e durável: o fim da história, o fim do cinema, o fim das religiões. E o mesmo se passa com as cidades. Mas, a despeito dos rótulos pos-síveis, que levam em conta aspectos como tamanho, tipo de arranjo físico, planejamento ou influência, o que te-mos são isto: cidades. Agrupamentos maiores ou menores, mais ou menos perenes, destinados a abrigar uma infinidade de sonhos humanos. E, no fim, o que acaba somos nós, e nossas teorias. As coisas permanecem. Mu-dam, mas permanecem.

Além das cidades não há muitas op-ções: como paradigmas diversos, só o nomadismo e o isolamento individual.

Exemplos raros nos dias atuais. Não parto de números – isto não é um texto científico –, mas creio que eles sejam estatisticamente irrelevantes comparados aos dos indivíduos que adotam as cidades como arranjo. Até as zonas rurais, ao longo dos últimos dois séculos, emulam aspectos ur-banos. Isso mostra a perenidade do modelo. Uma roupa que já não serve, apertada, mas é a que temos. Sem ela, resta a nudez.

Despir a cidade de seus excessos – em vez de nos despirmos da cidade – se-ria um rumo? Já presenciei essa visão idílica, a de retorno às origens, ser de-fendida com seriedade, por pessoas ornadas de credibilidade, em mais de um encontro sobre meio ambiente.

D

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O abandono das cidades e suas de-mandas para vivermos, simples, belos e nus, à beira de um regato e um bosque em flor. Não somos tão belos assim, nus, e quanto aos rega-tos e bosques... Bem, as notícias não são muito boas: acabo de consultar o worldometers.info, que fornece os números da população do mundo em tempo real, e lá encontro a informação de que somos mais de 7 bilhões. Imaginem que lindo seria: todos es-ses humanos vivendo felizes e equili-brados com a natureza. Como se já não tivéssemos destruído rios o sufi-ciente e ainda restasse canto do pla- neta aonde não chegam nossos efei-tos. Como se a natureza nos fosse sem-pre benéfica e não usássemos grande parte de nosso engenho criando brin-quedos para proteger nossos órgãos vitais. Melhor continuar administrando nossas ocupações – e preocupações – nas cidades, onde podemos eventual-mente colaborar, gastando o resto do tempo contendo conflitos.

O que importa nas cidades são as pessoas: uma cidade sem pessoas é um sítio arqueológico, um diorama. Tudo o que criamos resulta do pro-cessamento de poucos materiais que, disponíveis desde sempre e arranja-dos de modos diversos, geram artigos diversos, como bicicletas, croissants

ou microchips. Artefatos humanos. Somos feitos de engenho e arte, que compensam nossas frágeis couraças. Alguém pode lembrar que a parte de nós que pensa também está contida nessa couraça. Não digo sim nem não, ou pisaríamos terreno pedrego-so, para o qual não temos tempo nem sabedoria.

Mas a sabedoria nos distingue. Neste momento, não há no planeta outra espécie lendo bobagens que um se-melhante escreveu usando um có-digo criado pela própria espécie, impressas em papel produzido por máquinas elaboradas pela espécie, codificadas e transmitidas por recep-tores também feitos pela espécie. Se isso não é distinção, não sei o que é. E isso não nos faz só melhores, faz- -nos responsáveis. Pensamos o mun-do já há algum tempo, com certo êxi-to e pequenos erros, embora de efei-tos devastadores. De vez em quando, algum de nós escreve uma canção razoável, molda uma escultura media- na, desenha uma cadeira confortá- vel. Vamos tentando. Dessas epifanias, mais do que de esforço retilíneo de pesquisa, surgem pontos de ele-vação: a arte nos distingue e nos faz capazes tanto de nos levarmos a sério quanto de nos ironizarmos. No dese-quilíbrio está a graça. Nessa perene explicação de que somos assim mes-mo e, ora, que bom que somos assim. Nossa velha autoestima.

ENGENHO E ARTE

Despir as cidades de seus excessos seria mais lúcido. Cotidianos mais sim-ples e eficientes, sistemas mais justos e inclusivos. Uma cidade é uma ilusão. Uma tentativa, um acordo tácito de convivência, um aglomerado de ex- pectativas. Pode dar certo e germinar. Pode gerar prosperidade, arte, felici-dade e conforto. Uma cidade é uma promessa de patrimônios materiais e imateriais, mas que quase nunca se cumpre, mesmo se mantida. Até hoje, independentemente de sua longevi-dade ou de seu poder, nenhuma cidade na história trouxe esses benefícios nem ao mesmo tempo nem para todos.

Cidades são o nosso espelho, e os defeitos da criatura são também os nossos defeitos. Na novela de Mary Shelley tantas vezes adaptada e pou-cas vezes lida, o super-humano cria-do por Dr. Frankenstein tem nossos traços no superlativo. É belo e dese-quilibrado. Sua trajetória destrutiva começa com o abandono da criatura pelo criador. Cidades exigem cuida-dos constantes, ou tornam-se violen-tas. Sistemas complexos, em perma-nente mudança, as cidades crescem aos solavancos.

Tudo vale, portanto, tudo faz sentido e ao mesmo tempo se desvanece quando tratamos da cidade. Não

CRIADORES E CRIATURAS

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há certezas, há suposições e apos-tas. Palpites e desejos, vontades e estratégias. Fórmulas, não. Porque fórmulas são para situações estáveis: cidades são seres em metástase, não em crescimento ordenado. Cidades não têm manual de instruções.

E não há terapias para as cidades. A cidade é um ponto de vista. A cidade do viajante não é a mesma do men-

Faz a via-sacra na hora de comprar o pão, saudando os

velhinhos simpáticos que aproveitam o sol da manhã de Santana

para aquecerem as mãos “artritosas”. Torturadores aposentados,

avôs zelosos, torcedores fiéis. Na banca, lê as manchetes,

pensando como os jornais ainda existem, se tudo o que acontece

está fora deles, e o que interessa acontece agora, quando o papel

já levou tinta. Entra na luz artificial da padaria, dois pãezinhos,

um litro de leite, duzentos gramas de mortadela, por favor.

E o sonho? Acabou de sair. Não, sonho não. Piada batida.

O sonho ainda não acabou.

Alessandro Sbampato é arquiteto.

Especialista em gestão ambiental e

mestrando em design e arquitetura,

trabalha em parceria com o arquiteto

Roberto Godoy na Oficina AR

(oficinaar.com) desde 2000 e integra,

desde 2008, o coletivo artístico Unidade

de Arte Urbana e Ambiente (UAUA).

sageiro. A paisagem do pintor diverge da análise do planejador. Qual é a real? A resposta é: não há tal coisa. Tudo é um delicado caleidoscópio, um ajuste entre fragmentos de so- nhos individuais, justapostos e refleti-dos. Quando achamos uma certeza e queremos mostrá-la, orgulhosos, notamos que, sob outro ponto de vis-ta, seus fragmentos se movem, e tudo muda. Tudo é sonho.

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Muito obrigado, Alan Berenstein, Alan Dubner, ale_rl, Alessandra Duarte, Alex Fisberg, Alexandra Klen, Alexandre Wahrhaftig, Aline Trazzi, Altair Vilela Marques, Aluizio Marino, amanda, Ana de Fátima Sousa, Ana Julia Toledo, Ana Mohallem, Ana Paula Roselli Marques, Anali Dupré, André Dib, André Lombardi, Andre Melman, Andre Vicentini, Andrea Lombar-di, Andres Tobal, Angela Correia Dias, Anna Carolina, Anna Julia Di-etzsch, Antonio Freitas, Antonio Meneguetti, Armando Vilhena Moraes Nogueira, arthurrosa, Augusto Portugal, Barba, Beatriz Barros, Beatriz Bouskela, Bernardo Carvalho, Bob Dylan, Brenda Gottlieb, Breno Cas-tro Alves, Bruno Bertogna, Cacá Meirelles, Caio Gonçalves, Caio Palazzo, Cal, Camila Haddad, Camilla Cardoso, Camilla Cristini, Carla Bea, Car-lota Mingolla, Carol Gutierrez, Carolina Ferrés, Caroline Riley, cath, Cauê Castellani, Chen Brosh, Ci, cifas, Cinedelia, clarissa morgenroth, Cláudio Cruz, Damaris Faria, Dandara Hahn, Dani Sun, Daniel, Daniel Adler, Dan-iel Green, Daniel Joppert, Daniel Klepacz, Daniele Kielmanowicz, Danilo Guglielmo, Deia, Diego Borin Reeberg, Diego Kuffer, Digo Castello, Dino Siwek, Diogo, Elenice Tamashiro, ENTRE, Estevan Pelli, Fabio Audi, Fabio Picarelli, FalaCultura, fefun, Felipe Celline, Felipe Dias Cavallini, Fernanda de Almeida, Fernanda Goto, Flavia Mielnik, Flora Porlan Ostrovsky, Gabi Juns, Gabriel Issler, Gabriel Mairon Cortilio, Gabriel Simas, Gabriela Or-landi, Gabriela Rassy, Gabriela Serfaty, gabrielkogan, Gigik, Giovana Pas-quini, Graziela Araújo, Gui Neves, Guilherme Braga, Guilherme Garcia, Guiora, Guseraphim, Gustavo Freiberg, gustavogalante, Helena Nabuco, Helga Vaz, Helô Nicodemo, Houston da Paz, iarapedo, ingo, Ingrid Etges Zandomeneco, Instituto Escola São Paulo, irisb, Jess Huber, Joana Primo, João Roquer, Joy Till, Ju, Ju Vidigal, Julia Krauss Stabel, Julia Simão Cav-alcante, juliaanversa, Juliana, Juliana Diaz, Julio Canholi, Karoline Maia, kath, Keren Chernizon, Laís Grilletti, Larissa Vaz, Laura Davis Mattar, Laura Sobral, Leandro Pereira, Léo, Leon Harari, Lia Buschinelli, liba, Lidiany

Duzentos e tantos, às vezes, é um número mais forte do que 5.000.

Sem a colaboração das duzentas e tantas pessoas e entidades listadas a seguir, afinal, os 5.000 exemplares desta quarta edição da Efêmero Concreto não existiriam...

Schuede, Lis Bedini, Livia sitta, Lolô, luanieljamal, Lucas Abreu, Lucas Berberich Freire Moers, Lucas Carvalho, Lucas Corvacho, Lucas Krauss, Lucas Malaspina, lucasbizarria, Luciana Capuani Masini, Luciana Telles, Luís, Luis Eduardo de Leon, luisanc, Luiza Caspary, Luiza Itokazu, Luiza teani, Maite Casacchi, Marcela Moraes, Marcelo Estraviz, Marcelo Terça-Nada, Marcia Kuperman, Marco Vianna, Marcos de Luca, marcos lage gozzi, Mariana Martins, Mariana Stierli, Marie Cabianca, Marilia Caputo, Marina Goulart Faria, Marina Nacamuli, Marina Vilas Bôas Bernardes, MateriaBrasil, Mateus Vieira Villela de Lima, Maurício Chades, Mauro Moreira, Mauro Silva, Mayer Mrvcz, Melchert, Michelle, Miguel Bene-dykt, Miguel Gally, MilaZamith, miscigno, Mônica Ribeiro de Souza, Nancy GS, Nanda, Nat Mada, Natalia Lucki, Natalia Vitti Lino, Nathan Rabinovitch, Nayara Martins, Nina Rahe, Noemy Benedykt, Oswaldo Ol-iveira, Pati Ottoni, Patricia Zendron, Paty Colombo, Paul Zanon, Paula Prinet, Paulo Proença, peu, Plinio Calil, Polyana Lima, Priscila Pilger, Rafael Duek, rafaelcanova, Raffaela Meneguetti, Rajão, Ramon de Sou-za, Rejane Rosenberg, Renata Frignani, Renata Strengerowski, Renato Corch, Renato Garcia, Rodolfo Bellarosa Júnior, Rodrigo Notari, Rod-rigo Storch, Roni Benedykt, Rosana de Lucena, Sabine Holler, Sarda, sbairon, Sergio, Sérgio Guimarães Lopes, sergio sayeg, sofiatsi, Stefan Podgorski, Suzana Siwek Sala, Tais Berenstein, Talita Nozomi Kusunoki, Tamara B Perlman, Tamara Furman, Tamiris Gomes Sobral, Tathy Yazigi, tatiana waldman, Teatro Para Alguém, Thaís Rosenberg, Thiago Man-cini, Thiago Pigioni, Tim Maia, Tre Lara Campos, Tulio Malaspina, Valé-ria Scavone, Verdi, Vicente Martos, Vivi, Wanderley Rosenberg, Willian Pereira César e Zé Luiz Grillo!

[Os nomes foram retirados do perfil cadastrado pelos apoiadores na plataforma de financiamento coletivo Catarse (catarse.me).]

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TAPA-BURACO.62

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