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MEMÓRIAS DO VÔ JOÃO
Sob este título nós recebemos no ano de 1981 um caderninho, mimeografado por meu irmão
Oscar Falk, contendo a história da vida de nosso pai João Henrique Falk. O pai escreveu de
próprio punho, com sua letra impecável, as suas memórias e as entregou ao nosso primo
Gilberto Dücker que as datilografou. Mais tarde, o Oscar as mimeografou com mimeógrafo
a álcool. Para quem não conheceu o mimeógrafo vai aqui uma explicação. O texto era
datilografado sobre um papel especial chamado estêncil, o qual, era preso depois no rolo do
aparelho chamado mimeógrafo, alimentado com álcool. Ao rodá-lo, manualmente, tiravam-
se uma determinada quantidade de cópias em papel sulfite enquanto houvesse tinta no
papel matriz. Acontece que o álcool, muitas vezes, borrava as folhas e com o passar do
tempo pela umidade, evaporação e calor apagava a escrita. Depois de 30 anos era isso o que
estava acontecendo com o caderninho contendo as memórias de nosso pai. Temendo que
elas pudessem se tornar inelegíveis e se perdessem para a posteridade resolvemos digitá-las
e imprimi-las. Ao mesmo tempo, aproveitamos para ilustrar o texto com as fotografias em
poder de nossa familia. As notas de rodapé, com a tradução dos termos em alemão,
explicação de gírias e regionalismos, e outras informações são de minha autoria. Até o dia
de hoje a descendência de nosso pai soma 55 descendentes, sendo 7 filhos, 21 netos, 25
bisnetos e 2 trinetos. Na foto abaixo ele está com o uniforme da Banda Municipal de Getúlio
Varga seu instrumento e a neta Alexandra.
Itapoá, 04 de fevereiro de 2012 (data do 930aniversário de nascimento de nosso pai)
Osmar Falk
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Nada tenho a fazer e nada a perder, portanto procurarei escrever alguma coisa de minha
vida, ou de minha infância, apesar dos erros ortográficos e de linguagem que irei cometer,
pois não tive a felicidade de uma escola melhor.1
Não sei, mas me parece que quanto mais velho a gente fica, mais se lembra daquele tempo
da infância e até procura saber mais daqueles tempos. E quem muito me conta daqueles
anos que passaram, para os quais a minha memória não alcança, ou seja, antes dos meus
seis anos de idade, é meu mano Roberto. Para este já pedi algumas vezes como era tudo
naqueles tempos. E é ele quem conta:
Era o ano de 1918. Ele estava com a idade de nove anos e eu ainda não havia nascido. Os
nossos pais moravam em Passo Fundo, eram muito pobres, possuíam um boteco numa casa
alugada na avenida Brasil e a mãe cozinhava para alguns pensionistas.
Grassava naquele ano em Passo Fundo, bem como em todo o país, uma doença muito
contagiosa chamada Influenza Espanhola. Conta meu mano que ele como guri curioso, não
conhecendo perigo, andava pela cidade sem se preocupar com a grande mortandade,
vítimas daquela espanhola. Tanta era a mortandade que as autoridades tinham proibido o
tráfego de entradas e saídas da cidade para evitar a expansão cada vez maior desta horrível
doença. Também por ordem das autoridades eram visitadas todas as moradias e onde fosse
encontrado um doente este era recolhido, queira ou não queira, para uma enfermaria que
consistia num grande casarão com precárias condições de higiene e poucos recursos
médicos, de maneira que a maioria dos doentes
não saía vivo de lá, ao contrário, podia quase
contar com a morte certa. Os mortos eram
carregados, sem caixão, em carroças e levados
para o enterro em valas comuns. Conta meu
mano que certo dia ele também acompanhou
um enterro e viu quando um cadáver foi
atingido por outro, e que este com o golpe que
levou teria suspirado. Diz que deste dia em
diante não mais acompanhou estes enterros.
Bem, na casa paterna a essas alturas a doença já
se fazia presente. O pai estava acamado como
também o meu mano mais velho, o Germano. Minha mãe que não estava doente estava
grávida de mim. Aí meu pai lembrou-se de um fazendeiro que morava no campo, o qual, lhe
fizera uma proposta para morar lá. Nestas circunstâncias aceitou-a e mandou vir o dito
fazendeiro e com duas carroças fizeram a mudança da noite para o dia. Deixaram Passo
Fundo para morar no Mato Castelhano, onde com a troca de clima, ar puro do campo e o
bom cuidado da mãe com os doentes, estes em seguida recuperaram a saúde. Ficando
naquela fazenda tinham um pedacinho de terra para plantar. O pai trabalhava como
professor particular para a família do fazendeiro, o qual, tinha filhos e filhas analfabetos que
já pensavam em casar, e por isso, queriam aprender a escrever o nome o que de fato sem
muita demora aprenderam.
1 Modéstia de meu pai. Na realidade ele era um autodidata, pois, lia muito em português e alemão. Durante algum tempo, senão anos, foi assinante do diário Correio do Povo de Porto Alegre.
3
Enquanto isso chegou o dia 04 de fevereiro de 1919. Neste dia o meu pai deu toda a
liberdade a meus irmãos. Mandou que fossem
até aquele pedacinho de terra já mencionado,
onde já tinha melancia madura para comer e
que ficassem lá brincando, com a recomendação
que não voltassem sem serem chamados.
Quando a dita chamada aconteceu era tudo
alegria, pois, em casa tinha nascido um guri, o
qual, foi batizado2 dois anos e três meses depois
com o nome de JOÃO HENRIQUE FALK.
Como já disse, éramos pobres e fizemos muitas
mudanças. Mudamos do Mato Castelhano para
Rio Formigas (hoje Souza Ramos), de lá outra
vez à Passo Fundo e novamente para Rio
Formigas e de lá para o Rio Ligeiro. Algumas vezes moramos em casas bem modestas, com
cozinhas de chão batido. O pai sempre foi procurado e contratado como professor, apesar de
não se ter formado nesta profissão. Mais tarde também minha mãe, sem formação, foi
professora durante onze anos na comunidade de Rio Ligeiro Baixo. Ambas as aulas eram da
Comunidade Evangélica e funcionavam dentro do recinto da própria igreja.
Escola Evangélica de Rio Ligeiro Baixo Escola Evangélica de Rio Ligeiro Alto
A mudança para o Rio Ligeiro deu-se da seguinte maneira: O pai e meus irmãos Germano e
Valter se locomoveram a pé puxando uma égua (de nome Gretel), com “cargueiro”3que
continha roupas e o material mais necessário. Foi nesta viagem, durante um descanso, em
que o pai teve que apertar melhor a barrigueira da Gretel, esta não gostando mordeu o
Germano na cabeça. Quem conta isso é o Valter que ainda hoje ri. A mãe e nós outros da
família fomos buscados, três semanas depois, por colonos em três carrocinhas.
2 Tradução: CERTIDÃO DE BATISMO – JOÃO HENRIQUE – Filho de João Falk e Bertha nascida Gross, nascido em 4 de fevereiro de 1919 no (munic.) de Passo Fundo onde foi batizado no rito evangélico em 15 de maio de 1921. Padrinhos são: Karl Schimmelfennig, Katharina Schimmelfennig, Friedrich Frank, Elisabeth Frank, Franz Model, Wilhelmine Model. - Col. Rio do Peixe (munic. Passo Fundo) aos 9 de agosto de 1921 – Em substituição ao Pastor – Diácono J. Algayer. 3 Expressão regionalista. Constava de uma armação que se colocava sobre o animal de carga - daí a expressão “cargueiro” - contendo dois grandes cestos que ficavam em ambos os lados do animal.
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Como a escola da mãe ficava longe de casa ela sempre ia à cavalo, só que não era mais a
Gretel e sim , entre outros, o Picasso. Este tinha só um olho, pois, o outro o proprietário
anterior tinha vazado com um relhaço. A mãe usava, em vez de arreio, um selim próprio
para damas sentarem de lado sobre o cavalo, pois, montar como homem era considerado
indecente para uma senhora. Ambas as aulas funcionavam em meio turno. Só que naquele
tempo não tinha férias, por exigência dos colonos. Meus pais aceitavam isso de bom grado
para que tivessem também na época de férias os seus míseros vencimentos. Muitos pais de
alunos, porém, ficavam devendo as suas mensalidades e outros procuravam pagá-las com
produtos coloniais ou mesmo com serviço nas roças, como capinar, roçar ou ajudar a colher.
A nossa terra era meia colônia, me consta que tinha 250 metros de largura por 1000 metros
de fundos. Ficava numa ladeira (morro) danada que fazia divisa com o rio Ligeiro lá embaixo.
Tinha apenas um pedaço de terra plana até a nossa casa coberto com mato e moitas e uma
lagoa. Este pedaço, entre nossa morada até o rio, foi cercado para dois potreiros sendo um
só para porcos e outro para vacas, bois e cavalos.
Quando chovia muito que dava enchente, o rio alagava quase que totalmente estes
potreiros e vinha até por baixo da nossa casa. Estas enchentes para mim e meu irmão de
criação (Arnaldo Grünewald) eram sempre um espetáculo4. Nós corríamos à beira dágua e
gritávamos muito. O mencionado Arnaldo
Grünewald que nós chamávamos de
Naldo tinha sido abandonado por sua
mãe, aos dois anos de idade, para que ela
pudesse se ajuntar com outro homem.
Minha irmã Irene, ainda solteira, como
madrinha de batizado dele buscou-o para
nossa casa onde permaneceu conosco até
os quinze anos de idade, ou seja, até os
meus pais falecerem. O Naldo era, então,
meu companheiro de brincar, jogar bola,
pescar, etc. Mas também para muitas briguinhas entre nós dois e algumas surras que
levávamos de nosso pai. Certa vez brigamos dentro de um grande caixão feito para
armazenar cereais. Eu estava com os bolsos cheios de ovos de galinha que eu tinha recolhido
dos ninhos para levar à cozinha. Meu pai veio com uma vara, me dobrou sobre os seus
joelhos, e começou a me surrar. Como resultado eu fiquei com a bunda ardida e os ovos
quase todos quebrados, escorrendo a meleca por dentro e por fora das calças. O danado do
Naldo ainda ficou debochando e se gabando que ele teria levado a melhor, pois teria
recebido só seis varadas e eu oito. Pensem só no capricho do cara em contar as varadas que
cada um recebera.
A nossa primeira casa no Rio Ligeiro era coberta de tabuinhas de madeira rachada, não tinha
paredes duplas e nem foro no teto, também não tinha repartições, salvo um puxado onde
tinha algumas camas para dormir. O nosso fogão era um grande caixão cheio de terra, por
cima deste duas filas de tijolos, os quais, sustentavam uma chapa de ferro. Também tinha
4 Na foto vê-se: de camisa branca João H. Falk, de camisa branca com suspensórios e chapéu o Naldo e, no meio, um amigo.
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uma chaminé provisória, mas que nem sempre funcionava, basta dizer que todo interior da
casa era preto de fuligem. Guarda-roupa não tinha, esta era pendurada na parede; guarda-
louça também não, os pratos eram colocados em cima de uma prateleira onde uma ripa de
proteção segurava-os de pé; os talheres eram guardados de pé dentro de uma latinha
aberta. Ainda me lembro que um dia derrubei esta dita lata com todos os talheres em cima
de meu pé e que algumas facas me feriram e um dos garfos ficou cravado no meu pé, pois,
eram bem pontudos e com um cabo bem pesado. As camas eram feitas à mão, de madeira
bruta e continham um saco de palha de milho (Strohsack) do tamanho da cama que servia
como colchão; esta palha tinha que ser revolvida todos os dias para ficar bem fofa para o
noite seguinte. De cadeiras não me lembro, talvez tinha uma ou duas; para a mesa nas
refeições nós tínhamos bancos de madeira. O que tinha de bom era um grande relógio de
parede e uma máquina de costura manual marca Singer. Tinha também um baú de tampa
chata, quase sempre coberto com um pelego, lugar disputado por mim e pelo Naldo para
deitar. Estão em uso ainda hoje pela minha irmã Edith a máquina e com o irmão Valter está
o baú.
Quando tinha culto, o Pastor se hospedava em nossa casa, pois, pastor e professor sempre
tinham algum problema a respeito da Comunidade a resolver. Nesta ocasião era sempre
feita uma repartição com o nosso pano para colher cereais (Dreschtuch) que media, mais ou
menos 6X6 metros. Apesar deste pano ser bastante sujo servia para improvisar a dita
repartição que rodeava a cama do Pastor, a qual, ele gabava chamando-a de cama do céu
(Himmelsbett).
Mas falando do pano que nós ocupávamos para trilhar nosso feijão, trigo ou cevada. Era
necessário nivelar um pedaço de terreno, pois quase tudo era morro, cuidar para não deixar
alguma pedra ou toco que pudessem furar o pano e aí estender e cobri-lo com o produto que
nós queríamos debulhar, colocando o produto com palha e tudo, mais ou menos, numa
altura de 80 cm. Então eu, o Hanni (assim que me chamavam), tinha que montar o cavalo
Picasso e andar por cima do cereal a debulhar até que este se soltasse da espiga ou vagem. O
cavalo tinha que ser conduzido sempre ao redor e quando ele fazia a sua necessidade
fisiológica em cima do produto o ajudante tinha que entrar em ação e recolher o estrume
(Pferdeäpfel) junto com alguma palha e atirar fora. Todo este serviço era realizado no verão
e nas horas mais quentes do dia, pois, com o calor facilitava a colheita.
O Picasso sempre tinha muito serviço. Além de levar minha mãe para a aula, ele era usado
por mim para ir ao moinho. Sobre o seu lombo era colocado um saco de milho ou trigo que
no moinho era trocado por farinha. Pelo trigo se recebia uma parte de farinha de primeira
qualidade, outra de farinha inferior que nós chamávamos de rolão e o respectivo farelo. Para
separar uma qualidade da outra era necessário três bolsas, sendo uma o indispensável
“Quersack” 5 que tinha uma abertura no meio. Estas referidas três bolsas em cima do cavalo
já davam uma boa altura e lá em cima montava o Hanni e olha lá que as distâncias, às vezes,
eram grandes, pois, muitas vezes se ia até o moinho dos Pastro e até na Floresta de Charrua.
Também fiz muitas viagens para São Lourenço com um saco de feijão na garupa, o qual, eu
vendia na venda (Casa Comercial de Jacob Braatz). Com o dinheiro obtido comprava, então,
5 Tratava-se de um saco duplo, com uma abertura no meio, para colocar sobre o encosto da sela ficando de cada lado do animal uma bolsa.
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entre outras coisas, um quilo de açúcar usina em pedras, meio quilo de café moído, um quilo
de farinha de mandioca, um pacote de fósforos, uma latinha de um quilo de soda cáustica
para fazer sabão, etc. Também muitas vezes eu ia em casa de colonos onde estavam
carneando porcos, às vezes, dez até doze, onde eu comprava os ossos ainda com carne, os
quais, nós assávamos e deixávamos encobertos com banha numa lata; assim nós tínhamos
carne para muito tempo.
Com a idade entre 10 e 13 anos muitas vezes eu anoitecia na estrada. Então eu ficava com
medo, pois tinha que passar um trecho de mato onde a estrada tinha um barranco alto. Os
moradores contavam que um leão baio ou mesmo um tamanduá eram capazes de saltar na
garupa de um cavaleiro para atacá-lo. Minha arma para espantar o medo era dar uns
relhaços no Picasso para fazê-lo galopar e assobiar bem alto. Quando, por acaso, um galho
qualquer na beira da estrada estalava, os meus cabelos ficavam em pé. Quando ao chegar
em casa me pediam: “Como é Hanni, você passou medo?”, a minha resposta era: onde se
viu ter medo, eu não! Mas este Picasso era
de ter pena dele, apesar de ter sido um
empacador daqueles. Quando se queria
passar por casas onde ele já tinha chegado
uma vez ele empacava, isto é, ele não se
deixava governar. Longe ainda ele
começava a correr e só parava quando
chegava ao atador de cavalos.6 Aí não
adiantava puxar as rédeas, nem surrar,
pois, ele caminhava para trás. Então
muitas vezes eu tinha que colocá-lo com a
cabeça na direção contrária em que eu
queria ir e deixá-lo caminhar para trás.
Dessa maneira, passados uns 100 metros
do local ele se deixava governar outra vez,
virava, e nós dois seguíamos viagem. Ele também parava e não ia mais adiante quando a
gente encontrava um outro cavaleiro na estrada. Era acostumado que quando meu pai saía
com ele parava para tirar uma prosa com as pessoas conhecidas que encontrava na estrada.
Mas eu disse que era de ter pena do Picasso, pois, de tanto trabalho, com os velhos arreios
já com os bastos bem achatados, ele andava com o lombo sempre pelado e, às vezes, com
pisaduras (feridas) grandes. Se houvesse uma sociedade de proteção ao animal, este teria
sido recolhido com toda a certeza.
Quando eu era pequeno, até os três anos de idade minha mãe me vestia com uma camisola.
Desta idade em diante eu vestia um macacão que era inteiriço na frente e tinha uma tampa
atrás. Esta era abotoada com dois botões na altura dos quadris, coisa muito prática para
fazer a necessidade fisiológica, pois, era só desabotoar estes botões e pronto... Não sei com
que idade ganhei as primeiras sandálias que só eram usadas para ir ao culto. Na escola todas
as crianças iam com os pés descalços. No inverno o Naldo e eu sempre tínhamos os pés
6 O cavalo da foto é o Petiço, um dos diversos animais de montaria que serviram a família. O menino que o monta é Walter Falk com três anos e meio de idade. A foto é de 1910.
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rachados do frio, principalmente, em cima da curva dos pés para a perna, na altura dos
tornozelos. Em conseqüência andávamos com os pés sempre bem sujos e encardidos,
porque doíam muito ao lavar. Quando deixei de usar o macacão ganhei calças curtas, o que
me envergonhava muito, porque os outros guris, amigos meus, usavam calças compridas.
Um acontecimento muito grande para mim foi quando vi o primeiro veiculo a motor. Eu
tinha onze anos e aconteceu quando passou o Osvaldo Sander com uma espécie de
caminhonete Ford 29. O ronco me fazia tremer. Assim que passou da nossa casa, eu e o
Naldo corremos para a estrada. Enquanto eu contemplava o rastro xadrez que os pneus
deixaram imprimido na estrada o Naldo chegou a deitar para cheirar o rastro. E quando
passavam veículos à noite (isto de vez em quando) era um espetáculo ainda maior. No
silêncio da noite se ouvia o ronco do motor enquanto o veiculo ainda estava muito longe,
talvez quilômetros . Conforme as curvas ou nível da estrada enxergava-se as luzes por
instantes e quando chegava a passar por nossa casa o espetáculo se completava. Também
gostávamos muito quando passavam tropas de gado. Aí nós procurávamos sempre um lugar
estratégico para olhar. Trepávamos num pessegueiro ou cinamomo para enxergar melhor e
também para não ser atropelado pelo gado. Geralmente vinha um guri à cavalo pela frente e
avisava que o gado era bravo. Algumas vezes também manadas de porcos passavam. Aí
vinha uma pessoa a pé pela frente com uma sacola meio grande pendurada no ombro
contendo milho debulhado. Esta sempre atirava uns grãos para os porcos e chamava “chic...
chic... chic...” fazendo desta maneira os porcos caminharem em sua direção. Atrás da
manada vinham mais homens tocando, armados com varas compridas e cachorros também,
pois, às vezes, as manadas eram bem numerosas contendo 50 a 60 cabeças. Mas contando
das manadas de porcos, meus irmãos Valter e Roberto sempre falam que certa vez também
foram contratados para ajudar a tocar uma manada. Tiveram que passar um rio que não
tinha barca e nem ponte. Então os porcos tinham que ser tocados à força para o rio e
atravessados a nado. Os que se negavam eram levados a nado pelos dois, um de cada lado,
com uma mão na orelha do porco e a outra remando levavam, um após outro, para o outro
lado. Tenho as minhas dúvidas quanto a este heroísmo.
Nós também sempre tínhamos porcos, entre eles uma porca criadeira preta, bem grande,
roceira prá chuchu. Ela só tinha uma orelha, pois, a outra os cachorros tinham arrancado de
tantas vezes que nós os atiçamos atrás dela quando estava na roça. Era lindo de ver e ouvir
aquela corrida da porca com os cachorros atrás latindo. Ela para se salvar nem procurava
mais a brecha da cerca onde tinha saído do potreiro, pois, pulava a cerca em qualquer lugar
com pulos em que poderia concorrer com qualquer cavalo de hipismo. Mas era lindo de ver
o ninho que esta porca fazia quando estava para dar cria. Horas antes ela começava a
quebrar capoeira, moitas, enfim o que encontrava levava de arrasto na boca. Às vezes
buscava este material longe, fazendo um grande monte onde ela se enfiava que a gente
nem mais a enxergava. Então os porquinhos nasciam e ela ficava muito braba. A gente não
podia nem se aproximar do ninho que ela vinha numa corrida furiosa, roncando a toda e o
melhor era a gente correr o quanto antes.
A nossa patente sempre estava localizada a par da cerca, alta do chão, assim que os porcos
podiam entrar em baixo. Muitas vezes podia-se notar que alguém da família estava com
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diarréia, pois, o lombo dos porcos nos mostrava isso. Ainda que nós tínhamos patente, pois,
todos os outros moradores ocupavam a bananeira ou iam atrás do galpão.
O nosso banheiro era o rio Ligeiro para tomar banho, principalmente, no verão. Antes de nós
termos cavado um poço para água perto de casa, servimo-nos da água de uma vertente que
corria na sombra de um capoeirão. Esta era de triste lembrança para meu irmão Roberto,
pois, foi nesta vertente que ele encontrou numa hora de forte calor um baita lagartão
deitado na água. Ele queria matá-lo fazendo uso de uma enxada que trazia consigo. O golpe
que ele queria dar era com a ponta do cabo. Levantando a enxada reta para cima ele deu um
golpe valente. Mas antes de acertar o lagarto, ele atingiu a própria cabeça com a enxada.
Enquanto isso o lagarto escapou ileso e o mano voltou para casa com um considerável
caroço na cabeça. Além disso ser doído os outros ainda gozavam e riam dele. Isto eu posso
confirmar, pois, para mim caiu um malho na cabeça. Eu estava fazendo lenha, por sorte eu
usava um chapéu de feltro, quando ao bater com o dito malho o cabo deste quebrou. Mas
só chegou a se soltar completamente quando já estava no alto para outra batida e desta
maneira aterrissou na minha cuca e me fez sangrar um bocado. Outra pior aconteceu para o
meu pai. De noite, dormindo ele esticou a perna e no mesmo momento começou a gritar:
“Berta” (nome de minha mãe) “acenda a luz que um bicho me mordeu” e “ai, ai, ai, ainda
está pendurado em meu pé”. Quando olharam ele estava com um cravador de celeiro
cravado no pé. Um dos meus irmãos tinha usado esta ferramenta e deixado em cima da
cama. Mas já que estou contando destes casos de azar, vou incluir um que me aconteceu em
Charrua depois de diversos anos já casado. Morreu um porco que nós tínhamos tratado com
casca murcha de mandioca e eu aproveitei para fazer sabão, deixando a carne num tacho
grande, submerso debaixo de um molho bem forte de soda. Quando chegou o dia de
cozinhar o sabão, chamei o Osmar e o Otto para carregar o tacho fora do porão. Eu ia
caminhando na frente e os dois guris atrás. Eles não levaram a tarefa à sério e com muitas
risadas largaram o tacho no chão, momento em que me desequilibrei e caí de costas dentro
do tacho com aquela meleca. Eu com muito receio que a soda ia começar a roer o meu lindo
traseiro, ali mesmo imediatamente tirei a roupa e corri em trajes de Adão e Eva para dentro
de casa onde tomei um banho. Por sorte nada me aconteceu, mas os dois ainda hoje riem do
acontecido.
De pequeno, a nossa alimentação não tinha muita variação. O pão era sempre de farinha de
milho. O café era preto, sem açúcar, e de pura cevada que minha mãe torrava numa
frigideira e depois moía numa pequena moenda. Para passar no pão nós tínhamos quase
sempre melado que era fino e escorria fácil do pão. Manteiga, queijo, leite e lingüiça poucas
vezes se tinha, pois, a nossa vaca estava sempre mais tempo seca que com leite. Lembro
muito dos terneiros que nó criamos. Todos eles eram bichos bravos, porque quando
pequenos e estavam atados com uma corda eu e o Naldo os atiçávamos, fazendo com que
avançassem em nós e chifrassem nosso traseiro. Então tudo era farra e brinquedo, mas isto
com o tempo, conforme cresciam ficava cada vez mais sério e perigoso. Por fim não se podia
ir ao potreiro sem que a gente fosse atacado pelos bichos que então já eram bem fortes.
Aos domingos ou quando o pastor parava em nossa casa tomava-se o verdadeiro café e
podia-se adoçar com açúcar. Também se matava um galo que tinha que ser pego com os
cachorros, pois, nós não tínhamos galinheiro. Todas as galinhas dormiam em cima das
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árvores que rodeavam a casa, pessegueiros, cinamomos e umbus. Para pegar o galo
indicava-se com a mão o bicho preferido e ainda atirava-se um pedaço de lenha atrás dele.
Aí a caçada começava com os cachorros atrás dele. Às vezes o galo também levantava vôo,
mas não adiantava, ele sempre terminava na panela.
Eu gostava muito de recolher ovos de galinha. Quando uma galinha cacarejava eu logo ia
procurar o ninho, muitas vezes nas capoeiras. E como era lindo encontrar um ninho, às vezes
com muitos ovos bem escondidos nas moitas. No tempo da postura, muitas vezes eu sabia
da existência de dez a doze ninhos em lugares diferentes. Todos os dias eu fazia o rodízio de
ninho em ninho recolhendo os ovos. Quando eu achava um ninho novo, eu cantava bem
alto, “ein Ne-e-e-est gefunden”, repetindo por diversas vezes esta frase que queria dizer
“achei um ninho”. Então eu entrava na cozinha muito alegre com o chapéu cheio de ovos e
era bem recebido por minha mãe.
A língua que se falava no Rio Ligeiro era exclusivamente o alemão e de dialeto “Hunsrück”.
Também o ensino era em alemão, pois, todas as crianças só falavam e compreendiam esta
língua. Para aprender o português havia uma hora por semana que este era estudado e
consistia de perguntas que tinham que ser traduzidas de uma língua para a outra, por
exemplo, alemão x português e vice-versa. Esta hora de estudos deu o que falar e rir. Por
exemplo, haviam alunos que entenderam que a resposta deveria soar conforme a pergunta.
Certa vez o professor, então, fez a seguinte pergunta: “A mãe está doente?” e o aluno
respondeu, prontamente: “Die Magd tragt en lahm ent rin” o que em português quer dizer:
“A empregada está carregando um pato manco para dentro”. Outra vez o professor
perguntou em alemão: “Wie heisst der Hahn?” e a resposta foi: “Ei, Gockel!” e “Das Pferd,
wie heisst das”? E a resposta foi: “Ei, Gaul!” E assim toda a turma ria a valer. Mas,
realmente, era muito difícil aprender a língua portuguesa, pois, não se tinha contato com
pessoas que falavam português e uma hora de estudos por semana era insignificante, tanto
que eu até hoje não falo corretamente e sei que isto me prejudica muito.
Um costume que o povo do Rio Ligeiro possuía era o de chamar ou referir-se a alguém
dizendo o prenome da pessoa por último, por exemplo, O Kurtz Wilhelm, o Klitzke Gustav, o
Port Peter ou o Falk Hanni.
Quero falar ainda um pouco do cultivo da nossa terra. Os meus pais nunca tinham
trabalhado na roça e, portanto, não entendiam do cultivo, administração, etc. e nós filhos
estávamos no mesmo. Era muito usado o sistema de roçar capoeiras e fazer a queimada para
plantar milho e feijão. Depois da colheita se deixava crescer outra vez capoeiras para, após
dois ou três anos, repetir a mesma roçada e assim por diante. Também tínhamos pedaços de
terra que dava para lavrar, mas estes estavam infestados com picão, milhã, guanxuma e
outras pragas e ervas daninhas que vingavam no meio da plantação que nem pelos no lombo
do cachorro e quando nos lembrávamos de capinar já era tarde e a plantação aniquilada e
perdida. Bem nos fundos de nossa colônia que nós chamávamos de “hintenberg”, quer dizer,
atrás do morro, nós tínhamos um paiol para milho. Lá se colhia um milho muito bonito que
eu como guri, no inverno, enquanto as outras pessoas quebravam o milho, transportava com
um cavalo cargueiro até o dito galpão. Era um serviço árduo, pois, tinha muitos espinhos,
como pata de vaca, maringá, unha-de-gato e, além de ser morro, tinha uma infinidade de
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tocos e pedras e, desta maneira, eu tinha os pés cheios de feridas, pois, andava descalço.
Como tinha papagaios e periquitos naquele tempo! Eles vinham voando em bandos e de
longe se ouvia o grito, principalmente, do papagaio, aquele “tscha...tscha...tscha”e se
enxergava de longe no horizonte se aproximar uma faixa comprida e escura de, quem sabe,
quinhentas aves. E coitado do milharal onde desciam, estragavam e comiam muito milho.
No verão, em dias bem quentes, se fazia ouvir nos matos ao redor um ronco bem profundo,
semelhante a trovões bem longe. Era o macaco ou bugiu o emitente destes roncos que, por
mais de uma vez, me faziam medo. É admirável que um bicho de porte não muito grande é
capaz de emitir roncos daquela maneira.
Ainda não contei como era quando eu e minha irmã Edith, ela seis anos mais velha que eu,
íamos plantar batatinhas. Ela fazia as covas com a enxada e eu caminhava atrás, com uma
cestinha de batatinhas pondo-as nas covas. Aí nós quase sempre brigávamos. O motivo,
geralmente, era que ela não fazia as covas bem feitas. Quando eu deixava a batatinha cair na
cova ela saltava fora e, então, a briga começava. Eu bombardeava a Edith com as próprias
batatinhas e ela com um chapéu de palha de abas largas usava-o como uma espécie de
escudo para se defender das pedradas em forma de batatinhas que batiam, invariavelmente,
no chapéu. Quando ela achava que era demais, criava coragem e investia contra mim e se
me pegava eu podia contar com uns bofetões bem dados. Geralmente eu corria em tempo
para as capoeiras e aí ela começava a me chamar e me aconselhava que fosse querido e que
voltasse ao trabalho e prometia que não ia me fazer nada. Eu, então, voltava mas sempre
guardando certa distância dela, porque podia acontecer ainda um súbito ataque de raiva.
Lindo era quando eu e o Naldo tínhamos que buscar pasto. Levávamos braçadas de pendão
de milho ou ramas de batata doce ou um cesto com mandioca no ombro. Mas era muito
mais fácil levar abóboras para casa. Nós escolhíamos as maiores e mais redondas e
largávamos morro abaixo. Elas pegavam grande velocidade e também não ficavam só no
caminho, mas entravam em outras plantações derrubando tudo até que encontravam um
toco de árvore ou uma pedra grande onde, então, se espatifavam.
Natal, Páscoa e Pentecostes eram festas muito mais respeitadas do que hoje em dia. Sempre
se fazia dois ou até três dias santos. As duas aulas do pai e da mãe, todos os anos faziam
suas festas de Natal com programa dos alunos em que eram apresentados versos e canções
natalinas. Os alunos de ambas as aulas sabiam cantar muito bem e os programas eram
sempre em noites diferentes. Assim eu sempre participava dos dois programas. Quando se
chegava em casa, na volta do primeiro programa sempre de surpresa os pais acendiam as
velas do pinheirinho e nós, eu e o Naldo, podíamos entrar. E como nós nos alegrávamos com
os presentes que nunca faltaram, apesar das dificuldades financeiras em que vivíamos. Já
muitas vezes pensei como os meus pais devem ter-se sacrificado para proporcionar-nos um
Natal feliz. Creio que muitas vezes os manos mais velhos colaboraram.
No programa de aula da mãe nós íamos com carroça de boi e como este animal é vagaroso
nós chegávamos sempre já de madrugada em casa. Entre os presentes sempre havia revólver
de espoletas ou pistolas de molas que atiravam dardos, bolas de borracha, galo de lata
pintado que fazia “kikiriki” quando soprado ou gaita de boca, etc. O Naldo tocava tanto a
gaita de boca que ficava com os lábios todo esfolados e a sangrar. Nestas ocasiões de festas,
11
minha mãe sempre fazia bastante cuca, bolachas, pão-de-ló ou cuca de mel e nós éramos
muito felizes.
Lembrando dos cultos quero contar que tinha um tal de Rothmann João que vinha no culto
de manga de camisa e que desta maneira facilitava para ver, além de um baita bocó,
também uma grande pistola pendurada na cinta. A dita pistola do tipo garrucha de dois
canos, comprida e carregada pela boca, ao sentar batia no banco provocando um certo
barulho. Atrás da orelha ele sempre carregava um grande toco de cigarro crioulo. Mas
apesar de sua aparência de valentão não passava de um humilde e pacato colono que
carregava esta arma consigo só por costume. Ao terminar o culto, o tesoureiro da
Comunidade parava ao lado da porta com um prato esmaltado na mão recolhendo a coleta.
Ainda hoje eu distinguiria, entre outros, aquele barulho que as moedas faziam ao caírem no
prato. Eram moedas de 100 réis, 200 réis, 400 réis, 500 réis e 1.000 réis, mas quem largava
uma dessas últimas mencionadas pedia o troco ou, por conta própria, recolhia do prato o
troco desejado.
Os moradores do Rio Ligeiro sempre tentavam confirmar seus filhos o mais cedo possível,
antes da idade mínima que o estatuto da Igreja exigia, que era para rapazes treze e para
meninas doze anos. Por este motivo, muitas vezes, encrencaram com o pastor. O motivo
para tal procedimento e vantagens que achavam ter era o seguinte: em primeiro lugar, o
jovem confirmado era considerado entre eles
emancipado, adulto, não freqüentava mais a
escola, não pagava mais a mensalidade para a
escola e tinha o dia inteiro para trabalhar na roça.
Logo o jovem adaptava na sua cinta um lindo
bocó, geralmente, de couro verniz com enfeites
brancos ou de ilhós ou rebites, como fecho tinha
duas fivelas. Quando o seu usuário corria, as
moedas que eram guardadas nele faziam um lindo
barulho. Aqui eu quero confessar o meu maior
desejo naquele tempo: que eu já fosse confirmado
também, pudesse usar calça comprida, ter uma
cinta de couro, na qual, colocaria o bocó e uma
faca com bainha. A calça comprida e a cinta
cheguei a ter, mas o bocó e a faca nunca usei.
Logo depois que fui confirmado7, passei uns anos
de muita alegria e prazer, pois, tive ocasião de fazer parte de uma pequena banda de música
que existia no Rio Ligeiro. Aqui em Getúlio Vargas nós éramos conhecidos e chamados de
“Ligeiros Bube”8. Os componentes desta bandinha eram: Arnaldo Kurtz (I Clarinete), Luiz
Metzger (II Clarinete), Roberto E. Falk (Trombone), Reinaldo Model (Pistão), Edvino Kurtz
7 A Lembrança da Confirmação, em letras góticas, diz o seguinte: “Bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o reino de Deus” – Lucas 6,20b. HANS HEINRICH FALK, nascido em 4 de fevereiro de 1919, batizado em 15 de maio de 1921, confirmado em 9 de abril de 1933 na igreja de Rio Ligeiro Alto. Edm. Burkhardt - Pastor 8 Os Garotos do Ligeiro.
12
(Bombardino), Wilmut Kurtz (II Trompa) e eu João H. Falk (I Trompa). O meu instrumento e
ingresso na banda9 me custaram 70 mil réis, o que cheguei a pagar com “tocadas” que
variavam em torno de 10 mil réis por noite de baile. Fomos muitas vezes contratados para
festas escolares, de igrejas, bailes e “Kerb”10, em lugares como Linha das Pedras, Linha
Frederico, Cachoeira, Charrua, Getúlio Vargas e Erebango. Para todos os lugares nós íamos a
cavalo. Muitas vezes
tocamos duas ou até
três noites em
seguida. No Rio Ligeiro
o Kerb era sempre
festejado com três
noites de baile. Ainda
me lembro de toda
aquela cerveja, a qual,
naquele tempo eu
nem gostava e tomava
só porque os outros
diziam que era coisa
boa. Mas hoje em dia
meu gosto já mudou e aprecio um copo de cerveja. Lembro-me quando os rapazes que
vinham à cavalo para o baile, se despediam para ir para casa, pagavam uma rodada de
cerveja a mais para nós músicos tocar um dobrado em frente ao salão. Enquanto tocávamos
eles escaramuçavam seus cavalos fazendo-os empinar e, ao final, descarregavam os seus
revólveres dando tiros para o ar. Nós músicos, em seguida, retornávamos para o salão onde
o baile continuava com aqueles que ficaram. O dono do “Kerb”, ou seja, o proprietário do
salão que realizava a festa fazia-a por conta própria, pois, não existia uma sociedade ou
clube para este fim. Dois rapazes de mais destaque na colônia eram convidados como
“Kerbbube” que significa Reis do Kerb. Estes, por sua vez, convidavam seus pares, se tinha
namorada esta era a convidada, e se não convidavam uma moça amiga. Os “Kerbbube” e
seus respectivos pares recebiam, como distinção, grandes fitas de seda pregadas por meio
de um alfinete em suas roupas, colarinho ou blusa. O dia que antecedia a terceira noite de
baile, costumava-se visitar os moradores das redondezas para convidá-los para este baile.
Isto era chamado de “Kerbufziehe”11. Os “Kerbbube”, nossa bandinha e mais os fãs da farra
se juntavam a este grupo. Em casa se tocava uma música e eram soltados foguetes. Em troca
nos era ofertado cuca, doces e bebidas. Ainda me lembro quando estivemos na casa do
irmão Germano, uma meia dúzia de foguetes enfiados na cintura de um acompanhante
pegaram fogo e este só teve tempo de arrancá-los da cintura e deixá-los cair dentro da casa
mesmo. Foi um lindo pipoquear e a casa encheu-se de fumaça, mas nada aconteceu e as
9 Em todos os lugares em que meu pai morou ele fez parte de um grupo musical. A foto é da Bandinha de Charrua Alta no casamento de um de seus músicos. O pai está sentado à direita da noiva e à sua direita, em pé, de roupa clara, o tio Roberto Falk. 10 O “Kerb” era uma festividade germânica trazida ao Brasil pelos imigrantes alemães. Originalmente acontecia em comemoração ao lançamento da pedra fundamental, inauguração ou aniversário de uma igreja. Constava de 3 noites de baile e visita aos moradores, pelos quais, os festeiros eram recebidos com boa comida e bebida. Hoje ainda é uma festa comum nas colônias alemãs no Rio Grande do Sul. 11 Tradução literal: “puxar o Kerb”, ou seja, os puxadores do Kerb.
13
risadas eram muitas. Em Getúlio Vargas, chamado naquele tempo de Erechim, nós da
bandinha éramos chamados e conhecidos por “Os Ligeiro Bube”. Foi numa desta ocasiões
em que tocamos em Getúlio Vargas que fiquei conhecendo luz elétrica. Fiquei muito
admirado de ver as filas de postes instalados e fiquei conhecendo a geladeira e o rádio. Vi
também, pela primeira vez, um ciclista andar numa bicicleta. Achei que o cara era um
verdadeiro mágico. Também fiquei conhecendo a sapataria do velho Kebelmann, onde
compramos chuteiras para jogar futebol. Nesta sapataria, mais tarde, fui aprender o ofício
de sapateiro.
Em casa, muitas vezes, ouvi meus pais falarem e fazerem planos que eu, o mais novo da
família, deveria ir estudar em São Leopoldo se conseguissem uma bolsa de estudos. Eu não
queria, de maneira alguma, ir estudar e me afastar tão longe de casa, apesar de que eu
também não demonstrava a minha contrariedade, pois, no Rio Ligeiro era mais bonito, tocar
música e jogar futebol. Creio que cheguei a rezar para não acontecer a realização destes
planos. Mas quando um dia me falaram em aprender o ofício de sapateiro em Getúlio
Vargas, no Kebelmann, onde fabricavam chuteiras tão bonitas, eu superei o sacrifício de
deixar da banda e do futebol do Ligeiro para me mudar no dia 04 de julho de 1935 para
Getúlio Vargas.
No dia em que me mudei do Rio Ligeiro para Getúlio Vargas começou a chover muito
durante a viagem. Quando chegamos na Linha Frederico, já estávamos bastante molhados,
eu e o Roberto que me acompanhava para levar de volta o cavalo que eu montava. Ainda
pedimos emprestado uma capa de chuva do Adão Grieger, mas esta era velha e deixava
passar água e assim chegamos em Getúlio Vargas molhados como dois pintos. Eu ganhei um
quarto no porão do meu mestre Kebelmann. Só que eles não tinham providenciado ainda
um colchão para minha cama e a empregada, então, arrumou um monte de maravalha e
espalhou dentro da cama para eu dormir em cima. Só que ela não se deu o capricho de
separar os pedaços de madeira que se achavam no meio da maravalha e estes me
machucavam as costas. Mas depois de uma semana ganhei um colchão de palha de milho
(Strohsack).
Mas quero retornar ao tempo da minha infância para relembrar algumas coisinhas que ainda
não contei. Por exemplo, o nosso engenho de cana que servia para esmagar as canas e
extrair desta maneira a garapa, da qual, nós fazíamos o melado, a rapadura e o açúcar
amarelo. Depois de ter cortado uma boa carroçada de cana, encostava-se esta a par do dito
engenho, num dia anterior, para no dia seguinte iniciar bem cedo o trabalho. O dito
engenho consistia em três rolos de madeira da grossura de uma árvore, ou seja, de um
diâmetro de mais ou menos 50 cm, bem torneados, colocados em fila. No meio era colocado
um tronco de madeira por cima na altura de 2 metros, no qual, eram “embroxados12” os bois
para mover o engenho, o qual, ao ser movido rangia que se ouvia a algumas centenas de
metros distantes. O meu serviço era tocar os bois, caminhando com uma vara atrás deles,
sempre ao redor. Não demorava muito e os bois tinham formado dois trilhos no terreno
onde pisavam e, às vezes, até barro formava. Quando a primeira garapa corria eu já
começava a tomar aquela delícia.
12 Regionalismo que significa prender os animais pelo pescoço com a canga para ligá-los ao engenho de cana.
14
Acho que também não faz mal se conto alguma coisa da escola ainda. Nos terrenos em redor
tinha um capoeirão bem alto e muitas plantas da qualidade rabo-de-bugiu que não quebra.
Na hora do recreio nós trepávamos nestas plantas até a ponta e as fazíamos vergar num arco
até o chão. No pátio da escola crescia um capim bem alto e forte, no qual, nós atávamos
laços às escondidas. Depois convidávamos as meninas para brincar de pegar passando por
perto dos laços onde elas enroscavam e caíam. O capoeirão também estava cheio de trilhos
onde corríamos no jogo de pegar. Dentro da escola, o instrumento de castigo era uma tala
de couro curtido e bem grosso, com uns 50 cm de comprimento e 2 cm de largura, o efeito
que fazia era uma dor imensa no lombo da gente. O professor fumava cigarros de palha e
nas horas vagas picava fumo na beirada da mesa, assim que esta com o tempo quase furou
de tanto picar fumo.
Chego outra vez ao tempo de aprendizagem do ofício de sapateiro, mas quero contar
primeiro do tempo do Integralismo. Em Getúlio foi fundado o Núcleo dos Integralistas, no
dia 02 de agosto de 1935, do qual, mais tarde fiz parte. Também usei a camisa verde com sua
insígnia, freqüentava as reuniões, geralmente, em companhia da Erna Figur que era
empregada dos Kebelmann. No mesmo tempo existia também uma Juventude Hitlerista
muito forte aqui em Getúlio, da qual, eu não podia fazer parte por ser Integralista. Na
Juventude Hitlerista faziam parte meus companheiros de trabalho, o Rudi Lein, o Herrmann
Donat e, também entre muitos outros, o tio Joãozinho Schiessl, minha futura namorada
Alzira a tia Trudi, etc.
No Rio Ligeiro, naquele tempo, a política chegou quase a tornar-se trágica. Formaram-se
duas correntes adversárias. Os Integralistas, liderados por meu irmão Germano, eram
perseguidos pelos que se declaravam Vermelhos. Fazendo uso desta cor, enfeitavam seus
cavalos quando saíam com fitas vermelhas, usavam lenço vermelho no pescoço, fita
vermelha no chapéu e eram apoiados pela autoridade que consistia na personalidade de um
Comissário. Este se fez de pombo correio, levando muita mentira e fazendo muita fofoca
junto ao sub-prefeito de Charrua para combater os Integralistas. Os Vermelhos, então,
vendo-se apoiados pela autoridade começaram a fazer desaforos e provocações onde dava.
Para meus pais que também eram Integralistas atiraram um porco morto no poço de água
potável e, não que o poço não tivesse proteção, pois, tinha um bocal com um metro de
altura. Na cisterna de água de meu irmão Germano apareceu um gato morto e a cobertura
de zinco da casa do mesmo foi alvejada com tiros durante a noite. Meu irmão Roberto sofreu
uma emboscada por um homem armado e não foi morto naquele dia, porque o algoz
pateteou no momento exato. O lugar na estrada onde minha mãe faleceu foi difamado com
uma cruz com dizeres de deboche. Podia-se contar muita coisa ainda, mas me pergunto,
como um povo como este do Rio Ligeiro poderia chegar a tal ponto, onde o certo seria a
união de todos para o bem de todos. O bom foi que naquele tempo eu não parava mais no
Rio Ligeiro e aqui em Getúlio não era assim.
O meu tempo de aprendizagem na sapataria foi bom. Já de início recebia pensão e roupa
lavada e não demorou eu recebi três mil réis por semana e logo passou para cinco mil réis.
Neste tempo eu fazia muita economia, guardava todas as notas de cinco até que deu para
encomendar uma fatiota de tecido tropical na alfaiataria Gremmelmeier, a qual custou 65
mil réis. Ainda comprei uma linda camisa de tricolina azul e uma gravata. O sapato eu
15
mesmo fiz com o auxílio do patrão. Aí julguei que estava com a minha vestimenta a altura de
meus companheiros e outros conhecidos.
Muitos domingos visitei minha irmã Irene13 que morava em Souza Ramos. Aí eu caminhava
28 km, ida e volta, e ainda jogava peladas de futebol naquele dia. Também toquei música
junto com uma banda
aqui em Getúlio, a
qual, naquele tempo
era dirigida pelo
mestre Belim Tagliari
e que tinha como
músicos os Liberali, o
Sebem, o Adolfo Graf
a outros mais.
Em 16 de dezembro
de 1937 faleceu meu
pai João Waldemar
Falk vítima de um
câncer interno. Mal apenas eu tinha voltado de uma visita que fiz em casa, quando chegou o
nosso vizinho Hugo Schimmelpfenig para dar a notícia do falecimento. Ele já trouxe consigo
um cavalo encilhado para eu voltar ao Rio Ligeiro para o enterro. A minha mãe Berta Falk
(nascida Grohs) faleceu no dia 19 de janeiro de 1939 a apenas o intervalo de um ano e um
mês depois. A causa de sua morte foi uma parada cardíaca que aconteceu na estrada para a
escola onde ela lecionava.
Ainda trabalhando no Kebelmann, um dia fui
procurado por outros jovens para formar um Tiro de
Guerra, o que aceitei, para livrar-me de uma futura
incorporação no exército. Assim prestei meu
compromisso militar neste Tiro de Guerra. Nosso
instrutor era um sargento do exército. Cada aluno
teve que pagar todo o seu fardamento do próprio
bolso, mas tinha a vantagem de prosseguir no seu
emprego, trabalhando de dia e tendo as instruções e
aulas de noite, às vezes de madrugada e aos
domingos. Às vezes acampamos fora. Tivemos como
recreação um time de futebol e também jogamos
bola militar. Na verdade não aprendemos o que um
bom soldado deve saber e se um dia tivéssemos de
13 A foto é do casamento da tia Irene com Erich Dücker em frente à sua casa em Souza Ramos. Do lado do noivo está a família Dücker e do lado da noiva a família Falk. À direita da noiva estão seus pais João Waldemar e Berta Falk. O meu pai, com 15 anos de idade, está entre os noivos tendo ao seu lado o irmão Roberto e, ao lado deste o irmão Walter com a esposa Hilda e, ao lado desta, a irmã Edith. O menino na extremidade é o irmão de criação Naldo e na frente dele a menina Elvira Braatz que parava na casa dos Falk para ir à escola. O irmão Germano não veio ao casamento.
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entrar em combate para defender nossa pátria nós iríamo-nos dar mal. No fim do curso
vieram dois examinadores, também do exército, e nós prestamos exame. Depois não
demorou e eu recebi a chamada para servir ao exército, então, apresentei minha carteira de
reservista do Tiro de Guerra e fui excluído e isentado deste. Ah, ainda me lembro que um dia
no treinamento de atirar granadas nós estávamos num gramado onde tinha muito esterco
seco de cavalo. Quando o instrutor ordenou “apontar...atirar” o ar estava cheio deste
esterco que nós atiramos, pois, queríamos imitar da melhor maneira possível a granada.
Assim vocês podem notar que as instruções não foram levadas muito a sério.
Bem, cheguei ao tempo em que eu tinha a idade de 18 a 19 anos e a gente já gostava de
arriscar um olho pelo sexo oposto e se notava que era correspondido por este. Um dia fui
até a casa dos
Schiessl14. Lá o
Walter, o Joãozinho e
não sei mais quem
estavam fazendo um
muro dentro do rio
que passava perto da
casa deles para
represar a água e
colocar um “paris”
para pegar peixes.
Botaram-me a
trabalhar com eles a
valer, apesar de que
meu interesse era
bem outro. Eles tinham uma irmã e, de fato, juro por Deus, que quem pegou o maior peixe
do mundo fui eu e isto fora da água, fiquei com ele mais do que dois anos no anzol até que
levei-o para casa e que era a filha do velho Fritz. Bem, este dia foi o início de um namoro feliz
e gostoso. Eu ia todos os sábados à noite, domingos à tarde e à noite outra vez na casa dela,
onde ela me esperava na janela. Eu nem sabia que pertencia a uma boa educação pedir
licença aos pais da namorada para freqüentar a casa. No dia e na hora “H” de eu pedir ela
em casamento, o velho se cobrou e me esfregou no nariz minha falta cometida, mas o que
fazer, já era tarde. Na mesma época deste namoro houve a troca de empregada na casa do
patrão Kebelmann, saiu a “E” e entrou no lugar dela sua irmã mais nova, a “S” que logo
começou a me dar confiança. Então surgiu um pequeno namoro entre nós dois, pois,
parávamos na mesma casa e assim a oportunidade era boa. Eu namorava durante a semana
a “S “ e nos fins de semana a filha do velho Fritz. Mas houve alguém que não gostou disso,
achando injusto que eu tivesse duas namoradas e ele nenhuma. Era meu companheiro de
trabalho, o “H“, que de todas as maneiras queria a empregada “S“, mas esta não queria ele e
não correspondia as gentilezas dele. Eu, de minha parte, me julgava inocente, pois, que
14 Foto da família Fritz Schiessl e Anna Wagner. Do lado do meu avô está a minha mãe Alzira. Do lado da minha avó está minha tia Elsa e atrás desta o tio Helmut Wagner, filhos do 1o matrimônio da avó. Ao lado deste, por ordem, os meio-irmãos Frederico, Erich, Walter e João. Também o meu avô vinha de um casamento desfeito.
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culpa eu tinha se a “S” não queria ele. Mas o fulano não pensava assim e desta maneira não
nos “topamos”, nem no serviço onde trabalhávamos na mesma sala e nem na sala de
refeição. Assim foi até que um dia nós nos pegamos durante o serviço, ele me esbofeteando
e eu com o martelo na mão não hesitei em largar este na cara dele. Fomos, então, apartados
pelos outros trabalhadores, ele sangrando com uma ferida no rosto e eu meio tonto pelas
bofeteadas. Fiquei mais umas semanas trabalhando lá, debaixo de uma atmosfera nada
agradável, propícia a estourar a cada momento nova batalha, quando então apareceu na
janela onde eu trabalhava o sapateiro Testa que me convidou para trabalhar com ele. Lá não
estive muito tempo, pois, logo fui procurado pelo Alfredo Dücker que naquele tempo
morava em Floriano Peixoto e fazia muito esforço para levar alguns profissionais para aquela
vila. Este Dücker me ofereceu dinheiro emprestado e eu comprei a sapataria Testa por dois
contos e quinhentos mil réis e me instalei lá em Floriano Peixoto. Fiquei pensionista na casa
dele e, mais tarde, na casa do Luis Rostirola. O Dücker também construiu uma casa para mim
e quando esta estava pronta resolvi me casar.
Nosso casamento se realizou no dia 16 de agosto de 1941 num dia de muita chuva. Parti de
manhã cedo, acompanhado da família de minha
irmã Irene, num caminhão Ford 29 que tinha tolda
de lona para proteger-nos da chuva e que
pertencia ao comerciante Caramori de Floriano
Peixoto, o qual, eu tinha contratado para fazer
esta corrida. Chegando em Getúlio, logo tratei de
mudar de roupa, botando uma fatiota nova preta,
uma camisa branca, gravata do tipo borboleta e
um par de sapato de verniz preto que eu mesmo
fiz. O sapato da noiva também era do meu feitio,
de naco branco tinha como enfeite pequenos
bicos trabalhados em redor. Fizemos o casamento
civil de manhã e o religioso à tarde. Ao meio-dia
houve um almoço na casa dos sogros, do qual
tomaram parte todos os familiares destes, e, da
minha parte, a família Erich e Irene Dücker. Os
meus outros irmãos não vieram devido ao máu
tempo e também por morarem muito distantes,
em Santa Catarina. Antes da noite iniciamos a
viagem de volta para Floriano, porém, eu muito feliz com meu amor ao meu lado. O nosso
início de vida de casados era bem pequeno, pois, nem eu e nem ela tínhamos muito coisa. Eu
me lembro que comprei um fogão número 1 preto, envernizado, e uma cama de casal do
tipo patente que tinha uma tela de arame e as madeiras torneadas e envernizadas. O
guarda-roupas nós ocupamos aquele que eu tinha de solteiro e que era muito comum. Ela
trouxe de casa as outras coisas mais necessárias, como duas mesas, um guarda-louça,
algumas cadeiras, panelas, louças, talheres, etc. Ainda hoje, 40 anos depois, existem o
guarda-louça, algumas cadeiras e uma mesa daquele tempo. Quase que esqueço, estes dias a
vó Alzira me disse que o vestido da noiva eu teria comprado também.
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Lá em Floriano, certo dia, aceitei de sócio na sapataria um rapaz de nome Onofre Piva. Ele
era seleiro e se dizia entendido em curtir couro. Fizemos dois caixões grandes e colocamos
numa vertente de água e compramos muito couro cru para curtir. Mas tudo deu em nada,
não conseguimos curtir um único couro que fosse aproveitável, todos ficaram finos e duros
que nem lata, perdemos todo material empregado e nem os caixões aproveitamos mais.
Aquela sociedade ou firma girava em meu nome e quando a dissolvemos combinamos pagar
as dívidas em conjunto. Mas isto não aconteceu, pois, o ex-sócio dizia que nada tinha a ver
com as dívidas que estavam em meu nome e não me restou outra alternativa do que pagá-
las sozinho e do meu bolso.
Então nos mudamos para Getúlio Vargas. Compramos uma casa com terreno pertinho da
casa dos sogros. Só que esta casa era muito ruim, cheia de frestas, bastante velha e muito
fria. Formamos uma firma que foi registrada com o nome de Falk, Schiessl & Wagner. Meus
sócios eram meus cunhados Helmut e Fritz. Começamos a fabricar chinelos coloniais em
grande quantidade que vendíamos para os comerciantes. Esta firma deu bons lucros, só que
não durou muito tempo por motivos de encrenca entre os sócios. Tinhamos instalado nossa
fábrica na casa dos meus sogros, os velhos Schiessl. Nesta
época a sogra, dona Ana, já padecia de um câncer no útero.
Não demorou ela veio a falecer, no dia 20 de novembro de
1945, com a idade de 51 anos. Aí nos mudamos outra vez para
Floriano, onde trabalhei de empregado na Cooperativa de
Floriano. Lá fomos visitados ainda, algumas vezes, pelo sogro
e pai Frederico Schiessl, o qual, veio a falecer vitimado por um
enfarto cerebral no dia 15 de abril de 1946, com a idade de 57
anos e só alguns meses depois de sua esposa dona Ana.
Mas já estou chegando a tempos mais recentes. Sobre minha
infância e adolescência já escrevi bastante e dos outros anos
de vida, por certos motivos, não tenho muito a contar. Sei que
tenho trabalhado a valer, muito mesmo, e sei que só de trabalhar não se fica rico. Além de
trabalhar é preciso ter muitas virtudes, ser calculista, matemático, ter previsão e uma porção
de coisas mais. Eu tentei diversas vezes ser comerciante, mas sempre tive que pegar de novo
no meu ofício de sapateiro, o qual, eu iniciei e larguei por três vezes. Fui cotista da fábrica de
calçados Borba e da fábrica de gaitas Somenzi. As duas faliram e lá se foi um dinheiro
ganhado com muito sacrifício. Mas eu escrevi antes uma frase: só de trabalhar não se fica
rico. Isto não quer dizer, caro leitor, quem sabe lá, netos ou bisnetos que um dia irão ler o
que escrevi que não se deve trabalhar, ao contrário, todos devem trabalhar e quem não tem
serviço que procure um para ser útil a si mesmo e a sociedade. E mais, quero aproveitar e
lembrar para você jovem que naquele dia em que nada dá certo para você, quando tudo
parece errado, quando passar por sacrifícios, quando estiver aborrecido, levante a cabeça e
faça uma comparação da tua vida com a infância e adolescência deste que vos escreve. Você
tem tudo ao alcance da mão, você é um privilegiado, está morando na cidade, num mundo
moderno, conhece tudo desde pequeno, pode estudar o que quiser e ter de todas as
vantagens. Só de uma coisa eu advirto, você tome muito cuidado para não cair no vício dos
entorpecentes, tóxicos ou drogas, pois, isto seria a tua perdição. Nem tente fazer a
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experiência pensando que uma vez não faz mal, pois, tenho a certeza que esta “uma vez”
seria fatal para você, seria o teu fim.
Bem, quero lembrar também a querida banda de música 15Carlos Gomes de Getúlio Vargas,
da qual fiz parte durante doze anos e que me proporcionou muitas alegrias, mas também
alguns dissabores. Em primeiro
lugar quero lembrar os
municípios, cidades e lugares
onde a banda se apresentou
quase sempre sob o patrocínio
da Cervejaria Serramalte S/A,
estabelecida aqui em Getúlio
Vargas. São os seguintes:
Sertão, Passo Fundo, Cruz Alta,
Ibirubá, Cerro Largo, Santo
Angelo, Santa Rosa, Três Passos,
Tenente Portela, Erechim,
Marcelino Ramos, Maximiliano
de Almeida, Paim Filho,
Machadinho, São José do Ouro,
São João da Urtiga, Lagoa Vermelha, Tapejara, Charrua, Nova Prata, Caxias do Sul,
Concórdia, Maravilha, Piratuba, Pato Branco, Aratiba, Campinas do Sul, Jacutinga, Treze
Tílias, Erebango, Ipiranga, Vista Alegre, Estação Getúlio Vargas, Fazenda dos Padres, Floriano
Peixoto, Rio Ligeiro Alto, Rio Ligeiro Baixo, Souza Ramos, Kilômetro 13, Kilômetro 25, Linha
Vanini, Rio Bonito, Cachoeira, Área dos Indios do Rio Ligeiro, Igreja de São Paulo (Charrua),
Linha Florentina, São Lourenço, Gramado (Getúlio Vargas) e na nossa cidade de Getúlio
Vargas.
A nossa banda era composta de muita gente “boa” que fizeram acontecer as coisas. Tinha
dois músicos já de bastante idade que eram o Baptista Guidi e o João Kerber (hoje já
falecidos) que tiveram que agüentar algumas brincadeiras. Por exemplo, estávamos tocando
em Lagoa Vermelha e hospedados num hotel. Estávamos sentados numa roda e a turma
descobriu um jeito de colocar uma bombinha na ponta de um cigarro aceso. Colocaram-no
às escondidas debaixo das cadeiras dos dois e ficaram na expectativa do susto e dos pulos
dos dois. No dia seguinte quando nós nos aprontávamos para o regresso colocaram um bule
velho do hotel na mala de viagem do Baptista e combinaram com o hoteleiro que este
insistisse na inspeção do conteúdo da mala o que também aconteceu e o Baptista ficou
muito bravo. Mas ninguém foi que fez aquilo. E falando do Baptista, este aprontou uma boa
para o Fritz, mas sem querer. Nós estávamos tocando uma festa em Pato Branco. De tarde,
no melhor momento da festa chegou a faltar o livro de música do Fritz. Procurou-se em
todos os lugares e nada do livro. Como a banda precisava do Fritz e este do seu livro, o
presidente da banda foi até ao alto-falante e fez publicar o seguinte aviso: “Alô, alô, está
15 Na foto vemos na fila da frente, da esquerda para a direita, meu pai, e no final desta fila, meu tio Walter Falk e atrás dele meu tio Erich Schiessl. Atrás de meu pai, de óculos escuros, meu tio Roberto Falk..
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faltando um livro de notas da banda de música e pedimos à pessoa que levou este livro,
talvez por brinquedo, que devolva o quanto antes. Muito obrigado.” Alguém da banda se
lembrou, então, que talvez o Baptista estivesse sentado em cima deste livro. Dito e feito, o
Baptista levantou e o livro apareceu em cima da cadeira.
O velho Kerber uma vez ficou muito bravo. Estávamos festejando um aniversário na sede de
ensaios da banda e, depois de alguns comes e bebes, voltamos a tocar. Só que durante o
intervalo o clarinete do velho tinha “crescido” muito. Alguém tinha enfiado um cartucho de
foguete no clarinete. O pior foi que o velho não notou e tocou assim mesmo fazendo uma
figura cômica. Na volta de uma tocada em Ipiranga, o velho chegou a pedir ao motorista do
ônibus que parasse, pois, ele queria voltar a pé para casa, tanto era judiaria e algazarra de
outros músicos com ele. Alguém teve que intervir e fazer com que o velho ficasse no ônibus.
O caso de esquecer o instrumento aconteceu para diversos músicos. Nós íamos à Cruz Alta e
já estávamos próximos da cidade quando o Fritz se lembrou que o seu instrumento estava
bem pendurado na sala de ensaio em Getúlio. Como a festa era de encontro de bandas, ele
emprestou um instrumento da banda de Erechim que também estava participando. O meu
compadre Júlio, presidente da banda, também conseguiu repetir a façanha. Desta vez,
porém, estávamos perto de casa, lá na Estação, onde ele emprestou um auto e voltou para
buscar seu instrumento. Outro foi o clarinetista Albuquerque. Estávamos em São José do
Ouro e tínhamos combinado com os festeiros de tocar uma alvorada. Subimos a pé um
morro, ainda meio escuro, e quando todos estavam prontos para tocar, o Albuquerque
estava sem instrumento. Tocamos sem ele e os festeiros soltaram os seus foguetes.
Mas um músico de raça é o Timm. Ele toca trompa e em duas tocadas, durante os intervalos,
às escondidas, alguém desligou uma das diversas voltas que o instrumento tem. O Timm não
se deu conta e ajudou a soprar durante toda a peça, só que não fez efeito e se tivesse tocado
errado ninguém ouviria, pois, o instrumento estava mudo, sem passagem do ar.
Estávamos tocando no Rio Ligeiro Baixo e, na hora do almoço, todo mundo comendo, o Boff
estava se divertindo a valer com o garfo do prato para a boca. O cara, porém, deu azar, pois,
numa dessas quando ele quis fisgar mais um pedaço de carne, derrubou o prato por baixo de
mesa e as risadas não foram poucas.
Quando, certa vez, tocávamos em Passo Fundo a farra era boa e divertida durante toda a
tarde. Na despedida inventamos tocar a valsa “Sinos da Noite”. Só que aconteceu que deu
um “bugiu” na parte final e um músico após outro deixou de tocar, dando assim a aparência
de que a corda dos sinos tivesse arrebentado. Foi uma triste despedida.
O mestre comete “sola” em Sertão. Estávamos tocando numa festa de igreja e de tarde,
quando todo mundo já estava alegre, nós músicos tínhamos formado uma roda com as
estantes de pé e os livros abertos. Como acontece em muitas festas, dois bêbados estavam
dançando ao redor de nós. Num descuido deles deram um baita empurrão em nosso mestre
que não chegou a cair, mas com o golpe que levou derrubou diversas estantes e livros
fazendo aquele estripulia. E aí veio o gesto engraçado de nosso mestre que na gíria do
futebol chama-se sola. Ao se refazer do golpe virou-se rapidamente e tentou um pontapé no
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“bum-bum” do bailarino. Só que este foi mais ligeiro ainda e se livrou da falta cometida pelo
mestre. As risadas eram muitas e nós continuamos a tocar.
Em Ipiranga a coisa ficou feia para nós uma vez. Estávamos tocando numa festa de igreja e à
tardinha o nosso baixista “Judeu” já não estava mais sozinho e alguns outros também já
sentiam o efeito do chopp, quando foi resolvido tocar um dobrado, poucas vezes ensaiado.
Não podia ser diferente, tocamos muito mal quase derrubando o dobrado. Mal terminado o
nosso mestre guardou o instrumento para não tocar mais conosco. Depois de faltar por dois
ensaios consecutivos voltou a ensaiar conosco. Provavelmente por alguém implorar e por
sua própria vontade de tocar música fizeram-no voltar.
Rinha de galos e que galos! Recém chegados de uma festa em Rio Bonito, no momento de
guardar os instrumentos, os irmãos Otfinoski, músicos de nossa banda, se engalfinharam
numa luta tremenda. Não sei se devo chamar isto de rinha de galos, luta livre ou boxe, só sei
que os dois se batiam a valer. Se não fosse o Fritz, o Júlio e o Armando Hirt apartarem eles
hoje ainda estariam brigando. Resultado da briga: O João Otfinoski foi para casa
praticamente sem camisa e com as costas toda arranhada; o Hirt como apartador quebrou os
óculos; não sei se foi o Fritz ou o Júlio que ficou com as costelas machucadas e não sei mais
de tudo o que aconteceu.
Um dos dissabores que mencionei no início e que me deixava descontente era a saída, ou
melhor dizendo, a partida para uma viagem. O presidente, meu compadre Júlio, dava então
o seguinte aviso no ensaio: “Olha turma, no domingo vamos tocar e todos devem
comparecer às seis e meia em ponto para sairmos todos juntos às sete horas”, e
recomendava, “todos limpinhos”, só faltava ele dizer lavem bem o pescoço. E quantas e
quantas vezes acontecia que a gente saía com duas ou duas horas e meia de atraso, só
porque alguns músicos não compareciam e, por fim, tinham que ser buscados em casa.
Bonito era quando nós íamos tocar na cidade, em nossa bela Getúlio Vargas, então sempre
tinham uns apressados que já iam caminhando na frente. Então, meu compadre Júlio,
gritava lá de trás: “Ei turma, esperem por favor, vamos todos juntos, vocês parecem colonos
que vão para a roça”.
Aqui vou terminando as memórias. Creio não ter ofendido ninguém, pois, contei só a pura
verdade. E quero ainda dizer, como foi difícil escrever esta pequena história do passado, isto
quando não se aprendeu redação e nem escola para isso se tem. Um tchau para vocês do
VÔ JOÃO