Mecanismos Oníricos e Figuras de Linguagem

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  • 8/17/2019 Mecanismos Oníricos e Figuras de Linguagem

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    Mecanismos oníricos e figuras de linguagem

    RESUMO

    A partir do sonho de um paciente, o autor contesta, com base em Laplanche, aassimilação lacaniana dos mecanismos oníricos, condensação e deslocamento,às figuras de linguagem metáfora e metonímia. Em seguida, analisa o estatuto dasmetáforas do inconsciente enquanto “esquecidas da tensão sem!ntica que lhes deuorigem.

    Palavras-chave: Elaboração onírica, "ondensação, #eslocamento, $etáfora,$etonímia.

     %%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%%% 

    #epois de Lacan, pretende&se e'idente a assimilação dos mecanismos oníricos,condensação e deslocamento, às figuras de linguagem metáfora e metonímia. A análisede um sonho permite discutir esta suposta e'id(ncia.

    Era o meu terceiro ano de estágio com )aulo *ette, no ambulat+rio de psiquiatria do'elho )edro , no -ecife. diretor de uma escola agrícola do interior encaminhou paraatendimento um estudante com um quadro depressi'o&ansioso, no qual se destaca'auma dor de cabeça tão forte, que o impedia de estudar. #iscutido o caso e descartada a

     possibilidade de um problema neurol+gico, ele me foi encaminhado para que oatendesse em psicoterapia.

     /um tom de 'o0 lacrimoso, de quem implora'a por a1uda, começou por me pedir desculpas porque ainda não tinha lido 2reud. )ara o 1o'em intelectual que ele era,submeter&se a uma psicoterapia sem essa leitura pr3'ia parecia indesculpá'el. /ãoqueria, certamente, que o tomasse por um adolescente igual aos outros, igual aoscolegas que despre0a'a, porque “s+ pensa'am em futebol e mulher. Esses colegas aquem 1amais ocorreria a preocupação de me fa0er saber, atra'3s de uma confissão deignor!ncia, que não ignora'am o que era psicanálise e quem era 2reud. Era um rapa0complicado4

    5inha de uma família muito pobre, não conhecia o pai. A mãe era la'adeira, a irmã prostituía&se. diretor, tendo descoberto seu potencial, protegia&o na escola agrícola, pedindo&lhe em troca uma esp3cie de reforço 1unto aos colegas, esses colegas que, “por s+ pensarem em futebol e mulher, fraque1a'am nos estudos. ra, a dor decabeça impedia&o de e6ercer a função que lhe tinha sido confiada e que lhe da'ainegá'el prestígio. Esta'a numa situação difícil.

    $orando na escola, distante do -ecife, s+ podia 'ir ao ambulat+rio uma 'e0 por semana. E, uma sessão atrás da outra, era sempre a mesma quei6a7 as dores de

    cabeça persistiam, não conseguia sequer estudar, quanto mais a1udar os colegas. diretor era compreensi'o, não lhe e6igia o que ele não podia, mas, para al3m do

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    sofrimento físico, atormenta'a&o, di0ia&me em tom lamuriento, a impossibilidade decumprir suas funç8es. As quei6as em torno do sintoma ocupa'am boa parte da sessão eclama'am pela urg(ncia de uma a1uda que eu, partilhando da sua ansiedade, sentia&meincapa0 de dar. 2oi então que me trou6e este sonho.

    Viajava à Lua num foguete. Lá chegado, saiu a passear com uma moça. E davam grandes pulos porque não tinha gravidade. Depois voltou à erra, mas a erra estava

    deserta. !" havia um russo, mas ele não falava russo.

    s americanos, que tinham partido atrasados na corrida espacial, acaba'am de reali0ar o grande feito de colocar dois homens na Lua. mundo inteiro 'ira, pela tele'isão, aimagem tr(mula desses primeiros passos. conte6to remetia, portanto, à “guerra fria,à disputa entre americanos e russos.

    9ma marchinha de "arna'al contesta'a, por3m, a pretensão dessa disputa, afirmandoque “todos eles estão errados : a lua 3 dos namorados. "omo todo o estudante de 2ísicaaprende, sendo menor a gra'idade na Lua, um mesmo impulso permite pular maisalto que na ;erra. Apoiando&se na contestação da marchinha e apro'eitando o duplosentido do termo, lá se foi o rapa0 dar “grandes pulos com uma moça na Lua, 1á quenão precisa'a sentir&se culpado nem se censurar por “pensar em mulher7 isso “nãotinha gra'idade.

     Depois voltou à erra, mas a erra estava deserta. !" havia um russo, mas ele não

     falava russo.

    Essa ;erra deserta remetia à sua solidão e ao seu desalento. 9m em que ele a'isara que ainda não tinha lido2reud4

    sonho foi construído em cima de algumas figuras de linguagem. As metáforas da“guerra fria entre americanos e russos para representar a relação transferencial? da terradeserta para representar a solidão? do pular, no sentido físico, para representar a superação de obstáculos morais. passear com uma moça como metonímia dareali0ação se6ual. A comunicação humana como capacidade de falar uma língua e a Luacomo espaço da reali0ação das fantasias @por oposição à ;erra, lugar da realidade = “p3sna terra, ao mesmo tempo, metáforas e metonímias. 2inalmente, a polissemia dotermo “gra'idade e a homofonia entre “ russo e “ruço.

    2reud denominou este processo de “processo primário e caracteri0ou&ometapsicologicamente, de um ponto de'ista t+pico, como característico doinconsciente? do ponto de 'ista econBmico, como um processo pelo qual a energia sedesloca li'remente de uma representação a outra, segundo os mecanismos de

    condensação e de deslocamento? do ponto de 'ista din!mico, como processo de

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    rein'estimento de representaç8es ligadas às e6peri(ncias de satisfação, constituti'as dodese1o @LA)LA/"CE? )/;AL*, DFG.

     /o entanto, para 2reud, o sonho não se redu0 ao inconsciente. sonho, o sintoma, afantasia, o ato falho e o chiste são, para ele, não “formaç8es do inconsciente, como

     pretende Lacan, mas “formaç8es de compromisso entre o dese1o inconsciente e ase6ig(ncias defensi'as. #esde o início, 2reud '( no sintoma esse caráter bifronte7 ahist3rica, que se rasga, reali0a o dese1o de se desnudar para sedu0ir? mas, ao se rasgar, sedescomp8e, fa0&se feia e, dessa maneira, pune&se pela reali0ação do dese1o proibido. *eo sonho, a “formação de compromisso que aqui analisamos, fosse simplesmente uma“formação do inconsciente, não precisaria ser interpretado, seria transparente como ossonhos das crianças. processo primário limitado, neste caso, à reali0ação alucinat+riado dese1o, os morangos negados durante o dia seriam saboreados, à noite, em sonho.

    Hual, então, o sentido de representar o com3rcio se6ual por um inocente passeio na Luae a ri'alidade transferencial pela guerra fria entre americanos e russosI Aqui, 3 preciso

    fa0er inter'ir a censura onírica, consequ(ncia do conflito inconsciente entre doisdese1os7 o dese1o proibido e o dese1o narcísico, metafori0ado, no sonho, pelo dese1o dedormir. J a ser'iço desta censura onírica que entram em ação os mecanismosdecondensação e de deslocamento. #ondensação e deslocamento que não de'em ser assimilados à metáfora e àmeton$mia, posto que não se configuram como figuras delinguagem.

    ;ratando desta diferença, Laplanche @KF começa por situar o problema no conte6todas cadeias associati'as formadas por representaç8es @de pala'ra ou de coisa ligadasora por analogia ora por contiguidade.

     /uma relação de analogia, o 'inho, por e6emplo, pode ser associado ao sol, porqueambos esquentam. calor 3 o elemento comum que liga as duas representaç8es. 9marelação de contiguidade, por sua 'e0, comporta modalidades tão di'ersas quantocontinente&conte. /este caso, ha'erá que procurar o

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    que 3 comum às duas. ;amb3m aqui, na condensação, a relação entre as representaç8es pode ser por contiguidade e não apenas por analogia.

    "ondensação e deslocamento, mecanismos do processo primário, não correspondem, portanto, à metáfora e à metonímia. $as o fato dos tipos de ligação que caracteri0am

    estas figuras de linguagem = analogia e contiguidade = se 'erificarem no sonho e nasdemais formaç8es de compromisso, não autori0a o uso dos termos metáfora emetonímia para caracteri0ar o funcionamento de um inconsciente estruturado como umalinguagemI

    )ara ficar no e6emplo da metáfora, uma relação transferencial pode ser,metaforicamente, uma guerra fria, mas, literalmente, não o 3. J nesta tensão sem!nticaentre o sentido literal e o sentido metaf+rico, entre o ser e o não ser da metáfora, quereside a sua força. ra, as metáforas do sonho e do inconsciente em geral são metáforasque esqueceram a tensão sem!ntica que lhes deu origem. Esquecidas do sentido literal,elas ainda são metáforasI

    #ois e6emplos permitem esclarecer essa questão. ;rata&se daquilo que o primeiro 2reuddenominou simboli0ação hist3rica7 o soldado luta pela bandeira porque ela representa a

     pátria? o ca'aleiro bate&se pela lu'a porque ela representa a dama. A bandeira 3 e não 3 a pátria? a lu'a 3 e não 3 a dama. Cist3rico seria o soldado que se batesse por uma bandeira que não representasse mais nada, fosse apenas um pedaço de pano. Cist3rico, oca'aleiro que lutasse por uma lu'a, inteiramente esquecido de sua dama. Essa bandeiraainda seria uma metáfora da pátriaI Essa lu'a permaneceria uma metonímia da damaI

    Em fa'or da sua caracteri0ação como figuras de linguagem, no entanto, há queconsiderar que o processo analítico permite reconstituir a relação de significação entre osentido literal e o sentido metaf+rico @ou metonímico, restabelecendo aquilo que o

     processo primário apagou. Esta possibilidade de reconstituição do sentido, que se'erifica na neurose, parece, por3m, irre'oga'elmente perdida na psicose.