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    ADVERTNCIA AOS LEITORESDO LIVRO I DO CAPITALa

    Louis Althusser

    O que O capital? a grande obra de Marx, qual ele dedicoutoda a sua vida desde 1850 e sacrificou, em provaes cruis, amaior parte de sua existncia pessoal e familiar.

    Esta a obra pela qual Marx deve serjulgado. Por ela apen-as, no por suas obras de juventude ainda idealistas(1841-1844); no por obras ainda muito ambguas, como Aideologia alemou mesmo os Grundrisse, esboos traduzidospara o francs com o ttulo errneo deFondements de la cri-tique de lconomie politique[Fundamentos da crtica da eco-nomia poltica]1; nem pelo clebre Prefcio Contribuio crtica da economia poltica(1859)2, em que Marx define emtermos muito ambguos (porque hegelianos) a dialtica dacorrespondncia e da no correspondncia entre as forasprodutivas e as relaes de produo.

    Esta obra gigantesca que O capitalcontm simplesmenteuma das trs grandes descobertas cientficas de toda a histria

    humana: a descoberta do sistema de conceitos (portanto, dateoria cientfica) que abre ao conhecimento cientfico aquiloque podemos chamar de Continente-Histria. Antes de Marx,dois continentes de importncia comparvel j haviam sidoabertos ao conhecimento cientfico: o Continente-Matemtic-as, pelos gregos do sculo V a.C., e o Continente-Fsica, porGalileu.

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    Estamos ainda muito longe de apreender a dimenso dessadescoberta decisiva e extrair todas as suas consequnciastericas. Em particular, os especialistas que trabalham nocampo das cincias humanas e (no campo menor) das cin-cias sociais, ou seja, economistas, historiadores, socilogos,psicossocilogos, psiclogos, historiadores da arte e da liter-atura, da religio e de outras ideologias, e at mesmo linguistase psicanalistas, todos esses especialistas devem saber que nopodem produzir conhecimentos verdadeiramente cientficos emsuas especialidades sem reconhecer que a teoria fundada porMarx lhes indispensvel. Essa a teoria que, a princpio,

    abre ao conhecimento cientfico o continente em que elestrabalham, em que at agora produziram apenas uns poucosconhecimentos iniciais (a lingustica, a psicanlise), uns poucoselementos ou rudimentos de conhecimento (a histria, a soci-ologia e eventualmente a economia) ou iluses puras e simplesque so abusivamente chamadas de conhecimentos.

    Somente os militantes da luta de classe proletria extraramas concluses dO capital: reconhecendo nele os mecanismosda explorao capitalista e unindo-se em organizaes de lutaeconmica (os sindicatos) e poltica (os partidos socialistas e,depois, comunistas) que aplicam uma linha de massas na lutapela tomada do poder de Estado, uma linha fundada na an-lise concreta da situao concreta (Lenin) em que devem

    combater (anlise esta efetuada por uma aplicao justa dosconceitos cientficos de Marx situao concreta).

    um paradoxo que especialistas intelectuais altamente cul-tos no tenham compreendido um livro que contm a teoriade que necessitam em suas disciplinas e que, por outro lado,esse mesmo livro tenha sido compreendido, apesar de suas

    grandes dificuldades, pelos militantes do movimento operrio.

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    A explicao desse paradoxo simples e dada com toda aclareza por Marx emO capitale por Lenin em suas obras3.

    Se os operrios compreenderam to facilmenteO capital, porque este fala, em termos cientficos, da realidade cotidianacom a qual eles lidam: a explorao de que so objeto por con-ta do sistema capitalista. por isso queO capitalse tornou torapidamente, como disse Engels em 1886, a Bblia do movi-mento operrio internacional. Por outro lado, se os especialistasem histria, economia poltica, sociologia, psicologia etc.tiveram e ainda tm tanta dificuldade para compreender Ocapital, porque esto submetidos ideologia dominante (a da

    classe dominante), que intervm diretamente em sua prticacientfica para falsear seu objeto, sua teoria e seus mtodos.Salvo poucas excees, eles no suspeitam, no podem suspeit-ar do extraordinrio poder e variedade do domnio ideolgico aque esto submetidos em sua prpria prtica. Salvo poucasexcees, so incapazes de criticar por si mesmos as iluses emque vivem e que ajudam a manter, porque elas literalmente oscegam. Salvo poucas excees, so incapazes de realizar are-voluoideolgica e terica indispensvel para reconhecer nateoria de Marx a teoria mesma de que sua prtica necessitapara enfim tornar-se cientfica.

    Quando se fala da dificuldade dO capital, necessriofazer uma distino da mais alta importncia. A leitura dessa

    obra apresenta, de fato, dois tipos de dificuldades, que no tmabsolutamente nada a ver um com o outro.

    Adificuldade n. 1, absoluta e maciamente determinante, uma dificuldade ideolgica logo, em ltima instncia,

    poltica.H dois tipos de leitores diante dO capital: aqueles que tm

    experincia direta da explorao capitalista (sobretudo os pro-letrios ou operrios assalariados da produo direta, mas

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    tambm, com nuances de acordo com seu lugar dentro do sis-tema produtivo, os trabalhadores assalariados no proletrios) eaqueles que no tm experincia direta da explorao capit-alista, mas, por outro lado, esto dominados, em sua prtica eem sua conscincia, pela ideologia da classe dominante, aideologia burguesa. Os primeiros no tm dificuldade poltico-ideolgica para compreender O capital, porque este simples-mente fala de sua vida concreta. Os segundos experimentamuma extrema dificuldade para compreender O capital (aindaque sejam muito eruditos; eu diria: sobretudo se forem muitoeruditos), porque h umaincompatibilidade polticaentre o

    contedo terico do livro e as ideias que eles tm na cabea,ideias que eles reencontram (porque ali as depositam) emsuas prticas. Por isso, a dificuldade n. 1 dO capital, em l-tima instncia, uma dificuldadepoltica.

    MasO capitalapresenta outra dificuldade, que no tem ab-solutamente nada a ver com a primeira: adificuldade n. 2oudificuldadeterica.

    Diante dessa dificuldade, os mesmos leitores se dividem emdois novos grupos. Aqueles que tm o hbito do pensamentoterico (logo, os verdadeiros eruditos) no experimentam ouno deveriam experimentar dificuldade para ler esse livrotericoque O capital. Aqueles que no esto habituados sobras tericas (os trabalhadores e muitos intelectuais que,

    mesmo que tenham cultura, no tm cultura terica) devemou deveriam experimentar grandes dificuldades para ler umaobra de teoria pura como essa.

    Utilizo, como se pode notar, condicionais (no deveriam/deveriam). Fao isso para evidenciar um fato ainda mais para-doxal do que o precedente: mesmo indivduos sem prtica com

    textos tericos (como os operrios) experimentaram menos di-ficuldades diante dO capitaldo que indivduos habituados

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    prtica da teoria pura (como os eruditos ou pseudoeruditosmuito cultos).

    Isso no deve nos eximir de dizer umas poucas palavrassobre um tipo muito particular de dificuldade presente nO cap-ital, enquanto obra deteoria pura, tendo sempre em mente ofato fundamental de que no so as dificuldades tericas, masas dificuldades polticas que so determinantes em ltima in-stncia para qualquer leitura dO capitale de seu Livro I.

    Todos sabem que, semteoriacientfica correspondente, nopode existir prtica cientfica, isto , prtica que produza con-hecimentos cientficos novos. Toda cincia repousa sobre sua

    teoria prpria. O fato de essa teoria mudar, se complicar e semodificar de acordo com o desenvolvimento da cincia consid-erada no altera em nada a questo.

    Ora, o que essa teoria indispensvel a toda cincia? umsistema de conceitos cientficos de base. Basta enunciar essasimples definio para que se destaquem dois aspectos essenci-ais de toda teoria cientfica: 1) os conceitos de base e 2) seusistema.

    Esses conceitos so conceitos, ou seja, noes abstratas.Primeira dificuldade da teoria: habituar-se prtica da ab-strao. Essa aprendizagem pois se trata de uma verdadeiraaprendizagem, comparvel de uma prtica qualquer, por ex-emplo, a da serralheria realizada, antes de tudo, em nosso

    sistema escolar, pela matemtica e pela filosofia. Marx nos ad-verte desde o prefcio do Livro I que a abstrao no apenasa existncia da teoria, mas tambm seu mtodo de anlise. Ascincias experimentais dispem do microscpio, a cinciamarxista no tem microscpio: ela deve se servir da abstraopara substitu-lo.

    Ateno: a abstrao cientfica no em absolutoabstrata, ao contrrio. Exemplo: quando Marx fala do capital

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    social total, ningum pode toc-lo com as mos; quandoMarx fala do mais-valor total, ningum pode toc-lo com asmos ou cont-lo: contudo, esses dois conceitos abstratos des-ignam realidades efetivamente existentes. O que torna cientficaa abstrao justamente o fato de ela designar uma realidadeconcreta que existe realmente, mas que no podemos tocarcom as mos ou ver com os olhos. Todo conceito abstratofornece, portanto, o conhecimento de uma realidade cuja ex-istncia ele revela: conceito abstrato quer dizer, ento, frmulaaparentemente abstrata, mas, na realidade, terrivelmente con-creta pelo objeto que designa. Esse objeto terrivelmente con-

    creto porque infinitamente mais concreto, mais eficaz, do queos objetos que podemos tocar com as mos ou ver com osolhos, contudo no podemos toc-lo com as mos ou v-locom os olhos. Da o conceito de valor de troca, o conceito decapital social total, o conceito de trabalho socialmente ne-cessrio etc. Tudo isso pode ser facilmente esclarecido.

    Outro ponto: os conceitos de base existem na forma de umsistemae isso que os torna uma teoria. Uma teoria , comefeito, um sistema rigoroso de conceitos cientficos de base.Numa teoria cientfica, os conceitos de base no existem numaordem qualquer, mas numa ordem rigorosa. Portanto, precisoconhec-la, e aprender passo a passo a prtica do rigor. O rigor(sistemtico) no uma fantasia ou um luxo formal, mas uma

    necessidade vital para qualquer cincia, para qualquer prticacientfica. isso que, em seu prefcio, Marx chama de rigor daordem de exposio de uma teoria cientfica.

    Dito isso, preciso saber ainda qual o objeto dO capital,em outras palavras, qual o objeto analisado no Livro I dOcapital. Marx diz: o modo de produo capitalista e as re-

    laes de produo e de circulao que lhe correspondem.Ora, trata-se de um objeto abstrato. De fato, e apesar das

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    aparncias, Marx no analisa uma sociedade concreta, nemmesmo a Inglaterra, da qual ele fala insistentemente no Livro I,mas o MODO DE PRODUO CAPITALISTAe nada mais. Esse objeto abstrato: isso significa que ele terrivelmente real enunca ex-isteem estado puro, porque s existe em sociedades capitalis-tas. Simplesmente: para poder analisar essas sociedades capit-alistas concretas (Inglaterra, Frana, Rssia etc.), necessriosaber que elas so dominadas por essa realidade terrivelmenteconcreta e invisvel (a olhos nus) que o modo de produocapitalista. Invisvel, portanto abstrata.

    Naturalmente, isso no acontece sem mal-entendidos, e de-

    vemos estar extremamente atentos para evitar as falsas di-ficuldades que eles causam. Por exemplo, no devemos pensarque Marx analisa a situao concreta da Inglaterra quando faladela. Marx fala dela apenas para ilustrar sua teoria (abstrata)do modo de produo capitalista.

    Em resumo: h realmente uma dificuldade de leitura dO

    capital, e essa dificuldade terica. Est ligada natureza ab-strata e sistemtica dos conceitos de base da teoria ou da anl-ise terica. Devemos ter em conta que se trata de uma di-ficuldade real, objetiva, que s pode ser superada por umaaprendizagem da abstrao e do rigor da cincia. preciso terem conta que essa aprendizagem no se faz de um dia para ooutro.

    Da umprimeiroconselho de leitura: ter sempre em mentequeO capital uma obra deteoriacujo objeto so os mecanis-mos do modo de produo capitalista e apenas dele.

    Da umsegundoconselho de leitura: no buscar nO capitalum livro de histria concreta ou um livro de economia polt-ica emprica, no sentido em que os historiadores e os eco-

    nomistas entendem esses termos, mas um livro de teoria que

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    analisa o MODO DE PRODUO CAPITALISTA. A histria (concreta) e aeconomia (emprica) tm outros objetos.

    Da esteterceiroconselho de leitura: ao encontrar uma di-ficuldade de leitura de ordem terica, levar isso em consider-ao e tomar as medidas necessrias. No se apressar, mas sim,voltar para trs, cuidadosa e lentamente, e no avanar at queas coisas estejam claras. Ter em conta que a aprendizagem dateoria indispensvel para ler uma obra terica. Entender queandando que se aprende a andar, desde que as condies cita-das sejam escrupulosamente respeitadas. Entender que no seaprende a andar na teoria logo na primeira tentativa, sbita e

    definitivamente, mas pouco a pouco, com pacincia e hu-mildade. Esse o preo do sucesso.

    Na prtica, isso quer dizer que, para ser compreendido, oLivro I precisa ser relido quatro ou cinco vezes consecutivas.Esse o tempo necessrio para aprender a andar na teoria.

    A presente advertncia destina-se a guiar os primeiros pas-

    sos dos leitores na teoria.Mas antes devo dizer algumas palavras sobre o pblico queler o Livro I dO capital.

    Quem, naturalmente, vai compor esse pblico?1) Proletrios ou assalariados diretamente empregados na

    produo de bens materiais.2) Trabalhadores assalariados no proletrios (desde os

    simples empregados at os administradores de empresas de m-dio e alto escalo, engenheiros, pesquisadores, professoresetc.).

    3) Artesos urbanos e rurais.4) Profissionais liberais.5) Estudantes universitrios e do ensino mdio.

    Entre os proletrios ou assalariados que lero o Livro I dOcapitalfiguram certamente homens e mulheres para os quais a

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    prtica da luta de classes em organizaes sindicais e polticasdeu uma ideia da teoria marxista. Essa ideia pode ser mais oumenos correta, conforme se v dos proletrios aos assalariadosno proletrios: ela no est fundamentalmente falseada.

    Entre as outras categorias que lero o Livro I dO capitalfig-uram certamente homens e mulheres que tambm tm certaideia da teoria marxista. Por exemplo, os universitrios e, emespecial, os historiadores, os economistas e numerososidelogos de disciplinas diversas (pois, como se sabe, hoje emdia todos se declaram marxistas nas cincias humanas).

    Ora, 90% das ideias que esses intelectuais tm acerca da

    teoria marxista so falsas. Essas ideias falsas foram expostas en-quanto Marx ainda vivia e desde ento tm sido incansavel-mente repetidas, sem nenhum esforo notvel de imaginao.Essas ideias tm sido inventadas e defendidas h um sculo portodos os economistas e idelogos burgueses e pequeno-burgueses4 para refutar a teoria marxista.

    Essas ideias no encontraram nenhuma dificuldade paraganhar um amplo pblico, porque este j estava ganho porconta de seus preconceitos ideolgicos antissocialistas e antim-arxistas. Esse amplo pblico composto, antes de tudo, por in-telectuais, mas no por operrios, pois, como disse Engels, elesno se deixam levar, mesmo quando no conseguem penet-rar as demonstraes mais abstratas dO capital.

    Por outro lado, mesmo os intelectuais e os estudantes maisgenerosamente revolucionrios se deixam levar, de umamaneira ou de outra, porque esto maciamente submetidosaos preconceitos da ideologia pequeno-burguesa, sem a contra-partida da experincia direta da explorao.

    Assim, nesta advertncia, sou obrigado a considerar

    conjuntamente:

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    1) as duas ordens de dificuldades j assinaladas (dificuldaden. 1: poltica; dificuldade n. 2: terica);

    2) a distribuio do pblico em dois grupos essenciais:pblico operrio-assalariado de um lado e pblico intelectualde outro, levando em conta ainda que esses grupos sesobrepem em sua margem (alguns assalariados so ao mesmotempo trabalhadores intelectuais);

    3) a existncia, no mercado ideolgico, de refutaes pre-tensamente cientficas dO capital, que afetam mais oumenos profundamente, conforme sua origem de classe, certaspartes desse pblico.

    Considerados todos esses dados, minha advertncia assum-ir a seguinte forma:

    Ponto I: conselhos de leitura para evitar provisoriamente asdificuldades mais speras. Esse item ser breve e claro. Esperoque os proletrios o leiam, porque foi escrito sobretudo paraeles, ainda que se dirija a todos.

    Ponto II: indicaes sobre a natureza das dificuldadestericas do Livro I dO capital, para as quais apelam todas asrefutaes da teoria marxista. Esse item ser necessariamentemais rduo em razo das dificuldades tericas de que trata edos argumentos das refutaes da teoria marxista que seapoiam em tais dificuldades.

    Ponto IAs maiores dificuldades tanto tericas como de outros tipos,que impedem uma leitura fcil do Livro I dO capitalesto con-centradas, infelizmente (ou felizmente),no inciodo livro, maisespecificamente na seo I, Mercadoria e dinheiro. Dessaforma, meu conselho o seguinte:deixarPROVISORIAMENTE ENTRE

    PARNTESES TODA A SEO Ie COMEAR A LEITURA PELA SEO II, A trans-formao do dinheiro em capital.

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    A meu ver, s se pode comear (e apenas comear) a com-preender a seo I depois de ler e reler todo o Livro Ia partir daseo II.

    Esse conselho mais do que um conselho: uma re-comendao que me permito apresentar, com todo o respeitoque devo aos meus leitores, como uma recomendaoimperativa.

    Cada um pode fazer a experincia na prtica.Se o leitor comear a leitura do Livro I pelocomeo, isto ,

    pela seo I, ou no a compreender e desistir, ou entopensar que a compreendeu, e isso pior, porque existe grande

    possibilidade de que tenha compreendido algo muito diferentedo que h ali para compreender.

    A partir da seo II (A transformao do dinheiro em capit-al), as coisas aparecem s claras. O leitor penetra diretamenteno corao do Livro I.

    Esse corao a teoria do mais-valor, que os proletrioscompreendem sem nenhuma dificuldade, j que simples-mente a teoria cientfica daquilo que eles experimentam no diaa dia: aexplorao de classe.

    Vm em seguida duas sees muito densas, mas muitoclaras e decisivas para a luta de classesainda nos dias atuais: aseo III e a seo IV. Elas tratam das duasformasfundamentaisdomais-valorde que a classe capitalista dispe para levar ao

    mximo a explorao da classe operria: aquilo que Marxchama de mais-valor absoluto(seo III) e mais-valor relativo(seo IV).

    O mais-valor absoluto (seo III) diz respeito durao dajornada de trabalho. Marx explica que a classe capitalista inex-oravelmente faz presso para aumentar a durao da jornada

    de trabalho e que o objetivo da luta de classe operria, mais do

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    que centenria, conseguir uma reduoda durao da jor-nada de trabalho, lutandoCONTRAesse aumento.

    As etapas histricas dessa luta so conhecidas: jornada de12 horas, de 10 horas, depois de 8 horas e, finalmente, com aFrente Popular, a semana de 40 horas.

    Todos os proletrios conhecem por experincia prpriaaquilo que Marx demonstra na seo III: a tendncia irresistveldo sistema capitalista ao mximo aumento da explorao pormeio do prolongamento da durao da jornada de trabalho (ouda semana de trabalho). Esse resultado obtido ou a despeitoda legislao existente (as 40 horas semanais nunca foram ap-

    licadas de fato), ou por intermdio da legislao existente (porexemplo, as horas extras). As horas extras parecem custarmuito caro aos capitalistas, j que eles pagam 25%, 50% oumesmo 100% a mais por elas do que pagam pelas horas nor-mais de trabalho. Mas, na realidade, elas so vantajosas paraeles, porque possibilitam que as mquinas, cuja vida cada

    vez mais curta por conta dos rpidos progressos da tecnologia,funcionem 24 horas ininterruptas. Em outras palavras, as horasextras permitem aos capitalistas extrair o mximo de lucro daprodutividade. Marx mostra claramente que a classe capit-alista no paga e jamais pagar horas extras aos trabalhadorespara lhes fazer um agrado ou para permitir que complementemsua renda (em detrimento de sua sade), mas para explor-los

    ainda mais.O mais-valor relativo (seo IV), cuja existncia pode ser

    observada em segundo plano na questo das horas extras, sem dvida a forma nmero 1 da explorao contempornea. uma forma muito mais sutil, porque menos perceptvel doque a extenso da durao do trabalho. Os proletrios, en-

    tretanto, reagem por instinto, se no contra ele, ao menos,como veremos, contra seus efeitos.

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    O mais-valor relativo diz respeito intensificao damecanizao da produo (industrial e agrcola) e, portanto, aocrescimento da produtividade que da resulta. A automao asua tendncia atual. Produzir o mximo de mercadorias pelopreo mais baixo, para extrair da o mximo de lucro, atendncia irresistvel do capitalismo. Naturalmente, ela vemjunto com uma explorao crescente da fora de trabalho.

    H uma tendncia em falar de mutao ou revoluona tecnologia contempornea. Na realidade, Marx afirma desdeoManifesto Comunistab e demonstra nO capitalque o modode produo capitalista se caracteriza por uma revoluo inin-

    terrupta dos meios de produo, sobretudo dos instrumentosde produo (tecnologia). Tem-se anunciado grandiosamentecomo sem precedentes o que aconteceu nos ltimos dez ouquinze anos, e verdade que, recentemente, as coisasavanaram mais rpido do que antes. Mas uma simples difer-enade grau, no de natureza. A histria do capitalismo todaela a histria de um prodigioso desenvolvimento da produtivid-ade por meio do desenvolvimento da tecnologia.

    Isso resulta hoje, como tambm no passado, na introduode mquinas cada vez mais aperfeioadas no processo de tra-balho que permitem produzir a mesma quantidade deprodutos em tempo duas, trs ou quatro vezes menor e, port-anto, num desenvolvimento manifesto da produtividade. Mas,

    correlativamente, isso tem efeitos precisos no agravamento daexplorao da fora de trabalho (acelerao do ritmo de tra-balho, supresso de empregos e postos de trabalho), no apen-as para os proletrios, mas tambm para os trabalhadores as-salariados no proletrios, inclusive certos tcnicos, at mesmode alto escalo, que no esto mais atualizados com o pro-

    gresso tcnico e, portanto, no tm mais valor de mercado: dao desemprego subsequente.

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    disso que Marx trata, com extremo rigor e preciso, naseo IV (A produo do mais-valor relativo).

    Ele desmonta os mecanismos de explorao pelo desenvol-vimento da produtividade em suas formas concretas. Demon-stra, assim, que o desenvolvimento da produtividade nunca

    pode beneficiar espontaneamente a classe operria, mas, aocontrrio, feito precisamente para aumentar sua explorao.Demonstra, assim, de maneira irrefutvel, que a classe operriano pode esperar nenhum benefcio do desenvolvimento daprodutividade moderna antes de derrubar o capitalismo e tomaro poder de Estado atravs de uma revoluo socialista. Demon-

    stra que, daqui at a tomada revolucionria do poder que abraa via do socialismo, a classe operria no pode ter outro objet-ivo, logo tambm no tem outro recurso, a no ser lutarcontraos efeitos da explorao gerados pelo desenvolvimento daprodutividade, para limitaresses efeitos (luta contra a aceler-ao do ritmo de trabalho,contraa arbitrariedade dos bnus deprodutividade, contra as horas extras, contra a supresso depostos de trabalho, contra o desemprego causado pelaprodutividade). Luta essencialmentedefensivae no ofensiva.

    Aconselho o leitor que chegou ao fim da seo IV que deixeprovisoriamente de lado a seo V (A produo do mais-valorabsoluto e relativo) e passe diretamente para a luminosa seoVI sobre o salrio.

    Nela, os proletrios esto literalmente em casa, porqueMarx examina, alm da mistificao burguesa que declara queo trabalho do operrio pago de acordo com seu valor, asdiferentes formas de salrio: primeiro, o salrio por tempo e,depois, o salrio por pea, ou seja, as diferentesarmadilhasemque a burguesia tenta prender a conscincia operria para

    destruir toda a vontade de luta de classes organizada. Aqui, osproletrios reconhecero que sua luta de classe s podese opor

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    de maneira antagnica tendncia de agravamento da explor-ao capitalista. Reconhecero que, no que diz respeito aosalrio ou, como dizem os ministros e seus respectivos eco-nomistas, no que diz respeito ao nvel de vida ou renda,a luta de classe econmica dos proletrios e de outros assalaria-dos s pode ter um sentido: uma luta defensiva contra atendncia objetiva do sistema capitalista ao aumento da explor-ao em todas as suas formas.

    Digo claramente lutadefensivae, portanto, lutacontraa di-minuio do salrio. claro que toda lutacontraa diminuiodo salrio , ao mesmo tempo, uma luta para aumentar o

    salrio existente. Mas falar apenas de luta para aumentar osalrio designar o efeito da luta, arriscando-se a ocultar suacausa e seu objetivo. Diante da tendncia inexorvel do capit-alismo diminuio do salrio, a luta para aumentar o salrio, por seu princpio mesmo, uma luta defensiva contra atendncia do capitalismo de diminuir o salrio.

    Est perfeitamente claro ento, como Marx aponta na seoVI, que a questo do salrio no pode de modo algumse re-solver por si mesma atravs da distribuio, entre operriose outros trabalhadores assalariados, dos benefcios do desen-volvimento, ainda que espetacular, da produtividade. A questodo salrio uma questo de luta de classe. Ela se resolve nopor si mesma, mas pela luta de classe, sobretudo pelas diver-

    sas formas de greve que mais cedo ou mais tarde levam grevegeral.

    Que essa greve geral seja puramente econmica e, portanto,defensiva (defesa dos interesses materiais e morais dos trabal-hadores, lutacontraa dupla tendncia capitalista ao aumentoda durao do trabalho e diminuio do salrio) ou tome uma

    forma poltica e, portanto, ofensiva (luta pela conquista dopoder de Estado, a revoluo socialista e a construo do

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    socialismo), todos os que conhecem as distines de Marx, En-gels e Lenin sabem que diferena separa a luta de classe polt-ica da luta de classe econmica.

    A luta de classe econmica (sindical) defensiva porque econmica (contraas duas grandes tendncias do capitalismo).A luta de classe poltica ofensiva porque poltica (paraatomada do poder pela classe operria e seus aliados).

    preciso distinguir bem essas duas lutas, embora, na prt-ica, elas se confundam entre si, mais ou menos segundo aconjuntura.

    Uma coisa certa, e a anlise que Marx faz das lutas de

    classe econmicas na Inglaterra no Livro I a prova disto: umaluta de classe que queira deliberadamente se restringir aocampo da luta econmica e sempre ser defensiva, portantosem esperana de derrubar o regime capitalista. Essa a maiortentao dos reformistas, fabianos, trade-unionistas de que falaMarx e, de maneira geral, da tradio social-democrata da Se-gunda Internacional. Somente uma luta poltica pode mudar orumo e superar esses limites, portanto deixar de ser defensiva ese tornar ofensiva. Podemos ler essa concluso nas entrelinhasdO capital, e podemos l-la com todas as letras nos textospolticos do prprio Marx, de Engels e de Lenin. a questonmero 1 do movimento operrio internacional, desde que elese fundiu com a teoria marxista.

    Os leitores podero passar em seguida seo VII (O pro-cesso de acumulao do capital), que muito clara. Marx ex-plica que a tendncia do capitalismo reproduzir e alargar aprpria base do capital, j que consiste em transformar em cap-ital o mais-valor extorquido dos proletrios e j que o capitalvira uma bola de neve para extorquir cada vez mais mais-

    trabalho (mais-valor) dos proletrios. E Marx o mostra em umamagnfica ilustrao concreta: a Inglaterra de 1846 a 1866.

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    Quanto ao captulo 24c (A assim chamada acumulaoprimitiva), que encerra o livrod, ele traz a segunda grandedescoberta de Marx. A primeira foi a do mais-valor. A se-gunda a dos meios incrveis pelos quais a acumulao prim-itiva se realiza, graas aos quais, e mediante a existncia deuma massa de trabalhadores livres (isto , desprovida demeios de trabalho) e de descobertas tecnolgicas, o capitalismopde nascer e se desenvolver nas sociedades ocidentais.Esses meios so a mais brutal violncia, o roubo e os massacresque abriram para o capitalismo sua via rgia na histria hu-mana. Esse ltimo captulo contm riquezas prodigiosas que

    no foram ainda exploradas, em especial a tese (que devemosdesenvolver) de que o capitalismo nunca deixou de empregar,e continua a empregar em pleno sculo XX, nas margens desua existncia metropolitana, isto , nos pases coloniais e ex-coloniais,os meios da mais brutal violncia.

    Aconselho insistentemente, portanto, o seguinte mtodo deleitura:

    1) deixar deliberadamente de lado, em uma primeira leitura,a seo I (Mercadoria e dinheiro);

    2) comear a leitura do Livro I pela seo II (A transform-ao do dinheiro em capital);

    3) ler com ateno as sees II [A transformao do din-heiro em capital], III (A produo do mais-valor absoluto) e

    IV (A produo do mais-valor relativo);4) deixar de lado a seo V (A produo do mais-valor ab-

    soluto e relativo);5) ler atentamente as sees VI (O salrio), VII (O pro-

    cesso de acumulao do capital) e o captulo 24 (A assimchamada acumulao primitiva);

    6) comear a ler enfim, com infinitas precaues, a seo I(Mercadoria e dinheiro), sabendo que ela continuar

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    extremamente difcil de ser compreendida, mesmo depois devrias leituras das outras sees, se no houver ajuda de umcerto nmero de explicaes aprofundadas.

    Garanto que os leitores que quiserem observar escrupu-losamente essa ordem de leitura, lembrando-se do que foi ditosobre as dificuldades polticas e tericas de qualquer leituradO capital, no se arrependero.

    Ponto IIPasso a tratar agora das dificuldades tericas que impedem umaleitura rpida, ou mesmo, em certos pontos, uma leitura maisatenta do Livro I dO capital.

    Lembro que apoiando-se nessas dificuldades que a ideolo-gia burguesa tenta se convencer mas consegue realmente? de que ela refutou h muito tempo a teoria de Marx.

    A primeira dificuldade de ordem muito geral. Ela se refereao simples fato de que o Livro I somente oprimeirode uma

    obra composta dequatrolivros.Eu disse bem: quatro. Se conhecida a existncia dos LivrosI, II e III, e mesmo que tenham sido lidos, h um silncio emgeral sobre o Livro IV, supondo-se ao menos que se suspeite desua existncia.

    O misterioso Livro IV s misterioso para os que pensamque Marx um historiador entre outros, autor de umaHistria das doutrinas econmicas5, porque foi com esse ttuloaberrante que Molitor traduziu se que se pode chamar as-sim uma determinada obra profundamente terica, denomin-ada, na verdade,Teorias do mais-valor.

    Sem dvida, o Livro I dO capital o nico que Marx pub-licou em vida, os Livros II e III foram publicados depois de sua

    morte, em 1883, por Engels, e o Livro IV por Kautsky6. Em1886, no prefcio edio inglesa, Engels pde dizer que o

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    Livro I um todo em si mesmo. De fato, como no se dis-punha dos livros seguintes, era preciso consider-lo uma obraindependente.

    No mais o caso hoje. Dispomos, com efeito, dos quatrolivros em alemo7 e em francs8. Observo queles que podemque de seu interesse reportar-se constantemente ao textoalemo para controlar a traduo no s do Livro IV (que estcheio de erros graves), mas tambm dos Livros II e III (algumasdificuldades terminolgicas nem sempre foram bem resolvidas)e do Livro I, traduzido por Roy, em uma verso que o prprioMarx revisou por completo, retificando-a e at mesmo

    aumentando-a significativamente em algumas passagens. Marx,duvidando da capacidade terica dos leitores franceses, em al-gumas passagens atenuou perigosamente a clareza das ex-presses conceituais originais.

    O conhecimento dos trs outros livros permite resolvermuitas das grandes dificuldades tericas do Livro I, sobretudoas que se encontram na terrvel seo I (Mercadoria e din-heiro), em torno da famosa teoria do valor-trabalho.

    Preso a uma concepo hegeliana da cincia (para Hegel,s h cincia filosfica, e por isso toda verdadeira cinciadevefundar seu prprio comeo), Marx pensava que em qualquercincia todo comeo difcil. De fato, a seo I do Livro I ap-resenta uma ordem de exposio cuja dificuldade se deve em

    grande medida a esse preconceito hegeliano. Alm disso, Marxredigiu esse comeo uma dezena de vezes, antes de lhe darforma definitiva como se lutasse contra uma dificuldadeque no era apenas de simples exposio , e no sem razo.

    Dou em poucas palavras o princpio da soluo.A teoria do valor-trabalho de Marx, que todos os eco-

    nomistas e idelogos burgueses criticaram com condenaesridculas, inteligvel, mas s inteligvel como um caso

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    particular de uma teoria que Marx e Engels chamaram de leido valor, ou lei de repartio da quantidade de fora de tra-balho disponvel segundo os diversos ramos da produo, re-partio indispensvel reproduo das condies daproduo. At uma criana a compreenderia, diz Marx em1868, em termos que desmentem, portanto, o inevitvel difcilcomeo de toda cincia. Sobre a natureza dessa lei, remeto,entre outros textos, s cartas de Marx a Kugelman de 6 demaro e 11 de julho de 18689.

    A teoria do valor-trabalho no o nico ponto difcil noLivro I. necessrio mencionar, naturalmente, a teoria domais-

    valor, o pesadelo dos economistas e dos idelogos burgueses,que a acusam de ser metafsica, aristotlica,inoperacional etc. Ora, a teoria do mais-valor s inteligvelcomo um caso particular de uma teoria mais vasta: a teoria domais-trabalho.

    O mais-trabalho existe em toda sociedade. Nas so-ciedades sem classe, ele , uma vez separada a parte necessria reproduo das condies da produo, repartido entre osmembros da comunidade (primitiva, comunista). Nas so-ciedades de classes, ele , uma vez separada a parte necessria reproduo das condies da produo, extorquida dasclasses exploradas pelas classes dominantes. Na sociedade declasses capitalista, na qual, pela primeira vez na histria, a

    fora de trabalho se torna mercadoria, o mais-trabalho ex-torquido assume a forma domais-valor.

    Mais uma vez, no vou desenvolver a questo: limito-me aindicar o princpio da soluo, cuja demonstrao exigiria ar-gumentos detalhados.

    O Livro I contm ainda outras dificuldades tericas, vincula-

    das s precedentes ou a outros problemas. Por exemplo: a teor-ia da distino que deve ser introduzida entre ovalore aforma

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    de valor; a teoria da quantidade de trabalho socialmente ne-cessrio; a teoria do trabalhosimplese do trabalhocomplexo; ateoria das necessidades sociais etc. Por exemplo, a teoria dacomposio orgnica do capital ou a famosa teoria dofetichismo da mercadoria, e de sua ulterior generalizao.

    Todas essas questes e muitas outras ainda constituemdificuldades reais objetivas, s quais o Livro I d solues ouprovisrias ou parciais. Por que essa insuficincia?

    preciso saber que, quando publicou o Livro I dO capital,Marx j tinha escrito o Livro II e parte do Livro III (este ltimona forma de rascunho). De todo modo, como prova sua corres-

    pondncia com Engels10, ele tinha tudo na cabea, ao menosno fundamental. Mas era materialmente impossvel quepudesse pr tudo isso no Livro I de uma obra que devia com-portar quatro livros. Alm disso, embora tivesse tudo nacabea, Marx no tinha todas as respostas para as questesque ele tinha em mente e isso se percebe em certos pontos doLivro I. No por acaso que somente em 1868 portanto, umano depois da publicao do Livro I Marx escreva que a com-preenso da lei do valor, da qual depende a compreenso daseo I, est ao alcance de uma criana.

    O leitor do Livro I deve se convencer de um fato, perfeita-mente compreensvel se consideramos que Marx desbravava,pela primeira vez na histria do pensamento humano, um con-

    tinente virgem: o Livro I contm algumas solues de prob-lemas que s sero colocados nos Livros II, III e IV e certosproblemas cujas solues s sero demonstradas nessesvolumes.

    essencialmente a esse carter de suspense, ou, se sepreferir, de antecipao, que se deve a maior parte das di-

    ficuldades objetivas do Livro I. Portanto, preciso ter isso em

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    mente e assumir as consequncias, isto , ler o Livro I levandoem conta os Livros II, III e IV.

    Existe, no entanto, uma segunda ordem de dificuldades queconstituem um obstculo real leitura do Livro I e dizem re-speito no mais ao fato de queO capitalcompreende quatrolivros, mas aos resqucios, na linguagem e mesmo nopensamento de Marx, da influncia do pensamento de Hegel.

    Talvez o leitor saiba que recentemente11 tentei defender aideia de que o pensamento de Marx fundamentalmente difer-ente do pensamento de Hegel e, portanto, h entre Hegel eMarx um verdadeiro corte ou, se se preferir, ruptura. Quanto

    mais o tempo passa, mais penso que essa tese justa. No ent-anto, devo reconhecer que dei uma ideia demasiado rgidadessa tese, defendendo que tal ruptura poderia ter ocorrido em1845 (Teses sobre Feuerbach,A ideologia aleme). Na verdade,algo decisivo comea em 1845, mas foi necessrio que Marxfizesse um longussimo trabalho de revolucionarizao parachegar a formular em conceitos verdadeiramente novos a rup-tura com o pensamento de Hegel. O famoso Prefcio de1859 (Crtica da economia poltica) ainda profundamentehegeliano-evolucionista. Os Grundrisse, que datam dos anos1857-1859, tambm so bastante marcados pelo pensamentode Hegel, do qual Marx tinha relido com admirao aGrandelgica, em 1858.

    Quando lanado o Livro I dO capital(1867), ele aindaapresenta vestgios da influncia hegeliana. Estes s desapare-cero totalmentemais tarde: a Crtica do Programa de Gotha(1875)12, assim como as Glosas marginais ao Tratado de eco-nomia poltica de Adolfo Wagner (1882)13, sototal e definit-ivamente destitudos de qualquer vestgio de influncia

    hegeliana.

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    Para ns, portanto, da maior importncia saber de ondevinha Marx: ele vinha do neo-hegelianismo, que era um retornode Hegel a Kant e Fichte, em seguida do feuerbachismo puro edo feuerbachismo impregnado de Hegel (os Manuscritos de1844)14, antes de reencontrar Hegel em 1858.

    E tambm interessa saberpara onde ele ia. Atendnciadeseu pensamento o levava irresistivelmente a abandonar radic-almente,como se v naCrtica do Programa de Gothade 1875e nas Glosas marginais ao Tratado de economia poltica deAdolfo Wagner de 1882, qualquer sombra de influncia hegel-iana. Mesmo abandonando irreversivelmente qualquer influn-

    cia de Hegel, Marx reconhecia uma dvida importante com ele:a de ter concebido pela primeira vez a histria como um pro-cesso sem sujeito.

    levando em conta essa tendncia que podemos apreciarcomo vestgios prestes a desaparecer os traos de influnciahegeliana que subsistem no Livro I.

    J identifiquei tais vestgios no problema tipicamente hegeli-ano do difcil comeo de toda cincia, do qual a seo I doLivro I a manifestao clara. Mais precisamente, essa influn-cia hegeliana pode ser localizada no vocabulrio que Marxemprega nessa seo I: no fato de que ele fala de duas coisascompletamente diferentes, a utilidade social dos produtos e ovalor de troca desses mesmos produtos, em termos que s tm

    uma palavra em comum, a palavra valor: de um lado,valorde uso, de outro, valorde troca. Se Marx expe ao ridculo,com o vigor que conhecemos, o tal Wagner (essevir obscurus)nas Glosas marginais de 1882, porque Wagner finge acred-itar que, como Marx utiliza nos dois casos a mesma palavra(valor), o valor de uso e o valor de troca provm de uma ciso

    (hegeliana) do conceito de valor. O fato que Marx notomou o cuidado de eliminar a palavra valor da expresso

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    valor de uso e falar simplesmente, como deveria, deutilidadesocialdosprodutos. por isso que em 1873, no posfcio se-gunda edio alem dO capital, Marx pde voltar atrs e re-conhecer que havia corrido o risco de, no captulo sobre ateoria do valor (justamente a seo I), coquetear aqui e alicom seus modos peculiares [de Hegel] de expresso. Devemosassumir as consequncias disso, o que pressupe, no limite,reescrever a seo I dO capital, de modo que ela se torne umcomeo que no seja difcil, mas simples e fcil.

    A mesma influncia hegeliana se encontra na imprudentefrmula do item 7 do captulo 24 do Livro If, no qual Marx,

    falando da expropriao dos expropriadores, declara: anegao da negao. Imprudente, porque ainda faz estragos, adespeito de Stalin ter tido razo de suprimir, por conta prpria,a negao da negao das leis da dialtica, se bem que emproveito de outros erros ainda mais graves.

    ltimo vestgio da influncia hegeliana, e dessa vez flag-rante e extremamente prejudicial (j que todos os tericos dareificao e da alienao encontraram nele com o quefundar suas interpretaes idealistas do pensamento deMarx): a teoria dofetichismo(O carter fetichista da mercador-ia e seu segredo, quarto item do captulo 1 da seo I).

    Compreende-se que eu no possa me estender aqui sobreesses diferentes pontos, que exigiriam uma ampla demon-

    strao. Apenas os assinalo, porque, com o mui equivocado eclebre (infelizmente!) prefcio Contribuio crtica da eco-nomia poltica, o hegelianismo e o evolucionismo (sendo oevolucionismo o hegelianismo do pobre) que os impregnamfizeram grandes estragos na histria do movimento operriomarxista. Assinalo quenem por um instante sequerLenin cedeu

    influncia dessas pginas hegeliano-evolucionistas, do con-trrio no teria conseguido combater a traio da Segunda

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    Internacional, construir o partido bolchevique, conquistar, frente das massas populares russas, o poder de Estado para in-staurar a ditadura do proletariado e engajar-se na construo dosocialismo.

    Assinalo tambm que, para a infelicidade do mesmo movi-mento comunista internacional, Stalin fez do prefcio de 1859seu texto de referncia, como se pode constatar naHistria doPartido Comunista (bolchevique)g, no captulo intitulado: Ma-terialismo histrico e materialismo dialtico (1938), o que ex-plica muitas coisas daquilo que se chama por um termo queno tem nada de marxista: o perodo do culto da personalid-

    ade. Voltaremos a essa questo em outro lugar.Acrescento ainda uma palavra para evitar ao leitor do Livro

    I um grande mal-entendido, que dessa vez no tem nada a vercom as dificuldades que acabei de expor, mas refere-se ne-cessidade deler com muita atenoo texto de Marx.

    Esse mal-entendido concerne ao objeto tratado a partir daseo II do Livro I (A transformao do dinheiro em capital).Marx fala ali da composio orgnica do capital, dizendo que,na produo capitalista, h, para todo capital dado, uma frao(digamos, 40%) que constitui o capital constante (matria-prima, edifcios, mquinas, instrumentos) e outra (digamos,60%) que constitui o capital varivel (despesa com a compra dafora de trabalho). O capital constante chamado desse modo

    porque permanece constante no processo de produo capit-alista: ele no produz um novo valor, portanto permanece con-stante. O capital varivel chamado de varivel porque produzum valor novo, superior ao seu valor anterior, pelo jogo da ex-torso do mais-valor (que ocorre no uso da fora de trabalho).

    Ora, a imensa maioria dos leitores inclusive, claro, os

    economistas, que, ouso dizer, so fadados a esse equvocopor sua deformao profissional como tcnicos da poltica

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    econmica burguesa acredita que Marx elabora, ao abordar acomposio orgnica do capital, uma teoria da empresa, ou,para empregar termos marxistas, uma teoria da unidade daproduo. No entanto, Marx diz exatamente o contrrio: elefala sempre da composio orgnica do capital socialtotal, masna forma de um exemplo aparentemente concreto quando dcifras por exemplo, sobre 100 milhes, capital constante = 40milhes (40%) e capital varivel = 60 milhes (60%). Portanto,Marx no trata, nesse exemplo cifrado, de uma ou outraempresa, mas de uma frao do capital total. Ele raciocina,para a comodidade do leitor e para fixar as ideias, com um

    exemplo concreto (com cifras, portanto), mas esse exemploconcreto serve simplesmente de exemplo para falar do capitalsocialtotal.

    Desse ponto de vista, assinalo que no se encontra em lugaralgum nO capitaluma teoria da unidade de produo ou umateoria da unidade de consumo capitalistas. Sobre esses doispontos, a teoria de Marx ainda deve ser completada.

    Assinalo tambm a importnciapolticadessa confuso, quefoi definitivamente dissipada por Lenin em sua teoria do imperi-alismo15. Sabe-se que Marx planejava tratar nO capital domercado mundial, isto , da extenso tendencial ao mundointeiro das relaes de produo capitalistas. Essa tendnciaencontrou sua forma acabada no imperialismo. muito import-

    ante pesar a importncia poltica decisiva dessa tendncia, queMarx e a Primeira Internacional perceberam perfeitamente.

    Com efeito, se verdade que a explorao capitalista (extor-so do mais-valor) existe nas empresas capitalistas, onde socontratados os operrios assalariados (e os operrios so suasvtimas e, portanto, suas testemunhas imediatas), essa explor-

    aolocalsomente existe como uma simples parte de um sis-tema de exploraogeneralizado, que se estende gradualmente

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    das grandes empresas industriais urbanas para as empresas cap-italistas agrrias e depois para as formas complexas dos outrossetores (artesanato urbano e rural: empreendimentos agrofa-miliares, empregados e funcionrios etc.) no somente emumpas capitalista, mas no conjunto dos pases capitalistas, e, porfim, ao resto do mundo (primeiro pela explorao colonialdireta, apoiada na ocupao militar colonialismo , e depoispelaindireta, sem ocupao militar neocolonialismo).

    Existe, portanto, uma verdadeira internacional capitalista defato, que desde o fim do sculo XIX se tornou a internacionalimperialista, qual o movimento operrio e seus grandes diri-

    gentes (Marx e depois Lenin) responderam com uma inter-nacional operria (a Primeira, a Segunda e a Terceira Inter-nacional). Os militantes operrios reconhecem esse fato em suaprtica do internacionalismo proletrio. Concretamente, issosignifica que eles sabem muito bem que:

    1) so diretamente explorados na empresa (unidade deproduo) capitalista em que trabalham;

    2) no podem travar a luta unicamente no plano de sua pr-pria empresa, mas devem trav-la tambm no plano daproduo nacional correspondente (federaes sindicais dametalurgia, da construo, dos transportes etc.), em seguida noplano do conjunto nacional dos diferentes ramos da produo(por exemplo, Confederao Geral dos Trabalhadores) e depois

    no plano mundial (por exemplo, Federao Sindical Mundial).Isso no que diz respeito luta de classe econmica.Ocorre o mesmo, naturalmente, no que diz respeito luta

    de classe poltica, apesar do desaparecimento formal da Inter-nacional. Essa a razo por que se deve ler o Livro I luznosomente do Manifesto (Proletrios de todos os pases, uni-

    vos!), mas tambm dos estatutos da Primeira, da Segunda e da

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    Terceira Internacional, e, claro, luzda teoria leninista doimperialismo.

    Dizer isso no significa de modo algumsairdo Livro I dOcapitale comear a fazer poltica a propsito de um livro queparece tratar somente de economia poltica. Muito pelo con-trrio, significa levar a srio o fato de que Marx, por meio deuma descoberta prodigiosa, abriu ao conhecimento cientfico e prtica consciente dos homens um novo continente, oContinente-Histria, e, como a descoberta de toda nova cin-cia, essa descoberta se prolongou na histria dessa cincia e naprtica dos homens que se reconheceram nela. Se Marx no

    conseguiu escrever o captulo dO capitalque planejava escre-ver com o ttulo de Mercado mundial, fundamento do inter-nacionalismo proletrio, em resposta internacional capitalistae depois imperialista, a Primeira Internacional, fundada porMarx em 1864, j tinha comeado a escrever nos fatos, trsanos antes da publicao do Livro I dO capital, esse mesmocaptulo, cuja continuao Lenin escreveu em seguida no sem seu livroImperialismo, estgio superior do capitalismo, mastambm na fundao da Terceira Internacional (1919).

    Tudo isso, claro, ou incompreensvel, ou ao menosmuito difcil de compreender quando se um economista oumesmo um historiador, e mais ainda quando se um simplesidelogo da burguesia. Em compensao, tudo isso muito

    fcil de compreender quando se um proletrio, isto , um op-errio assalariado empregado na produo capitalista (urbanaou agrria).

    Por que essa dificuldade? Por que essa relativa facilidade?Creio poder responder a essas perguntas seguindo textos doprprio Marx e esclarecimentos que Lenin faz quando comenta

    O capital, de Marx, nos primeiros tomos de suasObrash

    . O queacontece que os intelectuais burgueses ou pequeno-burgueses

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    tm um instinto de classe burgus (ou pequeno-burgus), aopasso que os proletrios tm um instinto de classe proletrio.Os primeiros, cegos pela ideologia burguesa, que faz de tudopara escamotear a explorao de classes, no conseguem ver aexplorao capitalista. Os segundos, ao contrrio, apesar daideologia burguesa e pequeno-burguesa, que pesa terrivelmentesobre eles, no conseguemno vera explorao capitalista, jque ela constitui sua vida cotidiana.

    Para compreenderO capitale, portanto, seu Livro I, pre-ciso adotar as posies de classe proletrias, isto , situar-seno nico ponto de vista que tornavisvela realidade da explor-

    ao da fora de trabalho assalariada, que forma todo ocapitalismo.

    Guardadas as devidas propores, e desde que lutem contraa ideologia burguesa e pequeno-burguesa que pesa sobre eles,isso relativamente fcil para os operrios. Como eles tm pornatureza um instinto de classe formado pela rude escola daexplorao cotidiana, basta uma educao suplementar, polt-ica e terica, para que compreendam objetivamente o quepressentem de forma subjetiva, instintiva. O capitald essesuplemento de educao terica na forma de explicao edemonstrao objetivas, o que os ajuda a passar do instinto declasse proletrio a uma posio (objetiva) de classe proletria.

    Mas isso extremamente difcil para os especialistas e out-

    ros intelectuais burgueses e pequeno-burgueses (inclusiveestudantes). Uma simpleseducaode suas conscincias no suficiente, tampouco uma simples leitura dO capital. Eles de-vem realizar uma verdadeiraruptura, uma verdadeirarevoluoem suas conscincias para passar do instinto de classe neces-sariamente burgus ou pequeno-burgus para posies de

    classe proletrias. Isso extremamente difcil, mas no impos-svel. A prova o prprio Marx, filho da boa burguesia liberal

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  • 7/24/2019 MARX. Intro [Althusser]

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    (pai advogado), e Engels, da alta burguesia capitalista e, durantevinte anos, capitalista em Manchester. Toda a histria intelectu-al de Marx pode e deve ser compreendida deste modo: comouma longa, difcil e dolorosa ruptura para passar do instinto declasse pequeno-burguesa para posies de classe proletrias,que ele prprio contribuiu para definir, de modo decisivo, nOcapital.

    Um exemplo sobre o qual podemos e devemos meditar, le-vando em considerao outros exemplos ilustres: em primeirolugar, o de Lenin, filho de um pequeno-burgus esclarecido(professor progressista) que se tornou dirigente da Revoluo de

    Outubro e do proletariado mundial, no estgio do imperial-ismo, o estgio supremo, isto , o ltimo do capitalismo.

    Maro de 1969

    Louis Althusser(1918-1990), filsofo marxista e um dos principais autores

    do estruturalismo francs, foi professor da cole Normale Suprieure deParis. So de sua autoria as obrasPour Marx(Maspero, 1965) eLire Le cap-ital(Maspero, 1965), entre outras.

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