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CENTRO UNIVERSITÁRIO CUITIBA
FACULDADE DE DIREITO DE CURITIBA
LUIZA MOURAD SOTSEK
ANÁLISE DO DIREITO REAL DE LAJE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA DE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA
CURITIBA
2018
LUIZA MOURAD SOTSEK
ANÁLISE DO DIREITO REAL DE LAJE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA DE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA
Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito, do Centro Universitário Curitiba.
Orientador: Prof. Dr. Francisco Cardozo Oliveira
CURITIBA
2018
LUIZA MOURAD SOTSEK
ANÁLISE DO DIREITO REAL DE LAJE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA DE RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA
Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Faculdade de Direito de Curitiba da Faculdade de Direito de Curitiba, pela
Banca Examinadora formada pelos professores:
Orientador: _____________________________
______________________________________
Prof. Membro da Banca
Curitiba, de de 2018.
Dedico este trabalho à DEUS,
que com sua infinita bondade me proporcionou
sabedoria e coragem durante toda esta jornada,
e ao meu pai Luiz (in memoriam),
que com sua presença em meu coração
me incentiva a ser digna de seu eterno amor.
AGRADECIMENTOS
Ao término de um trabalho de tamanha responsabilidade, muito se aprende para além de conhecimento científico.
Agradeço ao Prof. Dr. Francisco Cardozo Oliveira, por aceitar orientar este trabalho, e por todo o auxílio prestado nesta tarefa árdua.
Às minhas queridas Sálua (mãe) e Gabriela (irmã), que muito me compreenderam e contribuíram às suas maneiras para que este trabalho fosse finalizado com toda a dedicação que requer.
Ao meu namorado Gabriel, que foi mais do que essencial nesta jornada de estudos, me fazendo crer a cada dia que sou capaz de conquistar todos os meus sonhos, dedicando a mim os melhores momentos de sua vida.
À todos que contribuíram à sua maneira, agradeço infinitamente.
“ A tarefa não é tanto ver aquilo que ninguém viu,
mas pensar o que ninguém ainda pensou
sobre aquilo que todo mundo vê”.
(ARTHUR SCHOPENHAUER)
RESUMO
O presente trabalho objetiva realizar uma reconstrução histórica acerca do direito à moradia no Brasil, levando-se em conta os diferentes contextos socioeconômicos brasileiros, que contribuíram para com a situação fundiária atual que por conseguinte, culminaram na criação de um novo direito real, exclusivamente destinado à consolidar e legalizar moradias clandestinas. Para além da reconstrução histórica, levou-se em consideração os princípios constitucionais norteadores do direito à moradia, como o princípio da função social da propriedade e princípio da dignidade da pessoa humana, buscando-se brevemente estabelecer uma sequência normativa de direitos reais que atenderam às situações de laje até a criação desse mais novo direito real. Por fim, buscou-se expor alguns dos pontos que diferenciam o novo direito real dos anteriormente utilizados em situações semelhantes.
Palavras-chave: reconstrução histórica, direito real de laje, direito à moradia, função social da propriedade
ABSTRACT
Work aims to carry out a historical reconstruction about the right to housing in Brazil, taking into account the different Brazilian socio-economic contexts, which contributed to the current land situation which therefore culminated in the Creation of a new real right, exclusively designed to consolidate and legalize clandestine dwellings. In addition to the historical reconstruction, the constitutional principles guiding the right to housing, such as the principle of the social function of the property and the principle of the dignity of the human person, were taken into account, seeking to establish a Normative sequence of real rights that attended the slab situations until the creation of this newer real right. Finally, we sought to expose some of the points that differentiate the new real right from those previously used in similar situations.
Keywords: historical reconstruction, Royal right of slab, right to housing, social function of property
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 11
2 PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL DO DIREITO REAL DE LAJE ......................... 13
2.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA ......................................................... 15
2.2 A COMPREENSÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À PROPRIEDADE ........ 18
2.3 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ................................. 20
3 HABITAÇÃO, UMA QUESTÃO SOCIAL ............................................................................. 24
3.1 HISTÓRICO DA HABITAÇÃO NO BRASIL ......................................................... 27
3.2 INTERVENÇÃO ESTATAL NA QUESTÃO HABITACIONAL .............................. 32
3.3 A CASA PRÓPRIA .............................................................................................. 33
3.4 O FENÔMENO DA AUTOCONSTRUÇÃO .......................................................... 35
3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS DE HABITAÇÃO POPULAR ......................................... 38
4 CONFIGURAÇÃO DO DIREITO REAL DE LAJE ............................................................ 50
4.1 CARACTERÍSTICAS DO DIREITO REAL DE LAJE ........................................... 57
4.2 O DIREITO REAL DE LAJE E AS NORMAS URBANÍSTICAS ........................... 62
4.3 IMPACTOS ECONÔMICOS DECORRENTESDO REGISTRO IMOBILIÁRIO .... 64
CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................... 70
11
1 INTRODUÇÃO
Recém chegado ao ordenamento jurídico brasileiro, o direito real de laje surge
juntamente com uma série de medidas previstas na Lei de Regularização Fundiária
Urbana e Rural (Lei 13.465/17), com vistas a viabilizar mecanismos jurídicos hábeis a
promover políticas públicas de desenvolvimento urbano, que dentre outros meios,
encontrou na regularização fundiária uma ferramenta de promoção de direitos
fundamentais previstos na constituição, porém, desprovidos de normas
infraconstitucionais coerentes com o contexto socioeconômico atual.
Pretende-se realizar uma análise constitucional do direito à moradia, bem como
dos princípios norteadores desse direito fundamental, presentes implícita e
explicitamente, no direito à propriedade e no princípio da função social da propriedade.
Nesse contexto, bem como considerando a inclusão do direito à moradia no rol
dos direitos fundamentais apenas no ano 2000, através de uma Emenda
Constitucional, mostra-se prudente realizar uma reconstrução histórica da habitação
popular no país, enquanto uma questão social, a fim de compreender o contexto
normativo e socioeconômico em que surge esse novo direito real.
Realizada tal análise através do histórico da habitação popular no Brasil,
pretende-se examinar os meios de intervenção do Poder Público na questão
habitacional, de modo a ponderar os reflexos nas escolhas habitacionais
hodiernamente presentes e massivamente difundidas no país, dentre elas, a
realização do sonho da casa própria, que, enquanto uma realidade extremamente
distante da imensa maioria das famílias brasileiras, acabou tornando-se viável através
da prática da autoconstrução, procedida em zonas irregulares desprovidas de amparo
público.
Ciente da problemática habitacional, o Estado instituiu, no decorrer da história,
uma série de políticas públicas, com o intuito de solucionar a questão da habitação
popular, sendo que as mais relevantes também foram objeto de breve análise.
Após as considerações acerca do desenvolvimento habitacional no Brasil, será
realizada a análise da configuração do direito real de laje, bem como de suas
12
características, procedendo-se uma breve comparação com os institutos jurídicos
anteriormente aplicados às situações análogas à laje.
Conquanto se tenha conhecimento acerca das normas urbanísticas, buscar-se-
á ponderar as observações feitas pelo Decreto n. 9.310/18, que regulamentou
algumas das questões urbanísticas que deverão ser observadas para concessão do
registro imobiliário.
Analisando-se os reflexos decorrentes do registro imobiliário, analisar-se-á os
impactos econômicos advindos da possibilidade de viabilização de crédito à
população que passará a dispor de matrícula imobiliária, hábil a receber as devidas
averbações inerentes à concessão de garantias reais
Para que seja possível alcançar os objetivos pretendidos, será utilizado o
método de pesquisa bibliográfica, realizada através de livros físicos e digitais, bem
como periódicos, artigos científicos, entre outros.
13
2 PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL DO DIREITO REAL DE LAJE
Embora o enfoque atual sobre o direito de laje esteja primordialmente
debruçado sobre a sua configuração enquanto direito real, normatizado pelo Código
Civil Brasileiro, necessário estabelecer um paralelo entre a norma infraconstitucional
e a norma constitucional.
Até o surgimento do direito real de laje, infraconstitucionalmente, o direito real
de superfície atendeu às situações fáticas similares, entretanto, o surgimento desse
novo instituto evidencia que o Poder Público tem empregado esforços a fim de
promover medidas que contribuam com a regularização fundiária no país.
Já pelas lentes constitucionais, a Lei da Regularização Fundiária de 2017,
surge como mecanismo de efetividade à direitos fundamentais, que embora presentes
na Carta Magna, não encontravam amparo do Poder Público.
É de imponente notoriedade a expressiva relevância que detém o princípio da
dignidade humana no ordenamento jurídico brasileiro, no entanto, diversas são as
legislações esparsas de âmbito internacional, que se encarregam de promover os
direitos fundamentais à nível mundial, à exemplo disso, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos.
Acerca da dignidade da pessoa humana, define Ingo Sarlet como sendo:
a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”1
1 SARLET. Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 71.
14
A dignidade da pessoa humana ostenta, enquanto princípio, eficácia normativa,
considerando que a partir dele, surgem demais princípios autônomos.2
Ingo Wolfgang Sarlet atribui dupla função ao princípio: a função defensiva e a
função prestacional. A função defensiva consiste em normatizar direitos subjetivos de
caráter negativo, ou seja, a não violação da dignidade humana. Já a prestacional,
segundo Sarlet, "impõe condutas positivas no sentido de proteger e promover a
dignidade"3
Assim, seguindo esta lógica, enquanto a função defensiva versa sobre uma
competência proibitiva do Estado, a função prestacional se trata de um dever estatal
de agir em prol da satisfação de direitos.
Levando-se em conta que o direito real de laje nada mais é do que a
normatização em busca da proteção e promoção de direitos constitucionais,
analisando sob a perspectiva de Sarlet, a criação do direito real de laje seria fruto da
função prestacional da dignidade humana.
Nesse momento, prudente diferenciar direitos humanos de direitos
fundamentais, primordialmente porque, mesmo que de vital relevância assinalar o
princípio da dignidade humana dentro do tema abordado, são os direitos fundamentais
que acabaram por delinear as diretrizes que levaram o legislador a regulamentar o
direito real de laje.
Nessa perspectiva, valem os ensinamentos de Canotilho:
direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente.4
2 SARLET, 2001, p. 71. 3 SARLET. loc. cit.
4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1998. p. 369.
15
Nesta medida, pode-se compreender que embora haja uma diferença
meramente formal, são os direitos fundamentais que serviram de substrato ao
nascimento do direito real de laje.
2.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA
O direito à moradia fora elevado ao patamar de direito fundamental através da
Emenda Constitucional 25/2000, que alterou o artigo 6º da Constituição da República,
incluindo-o no rol de direitos fundamentais. Embora este seja o panorama atual, a
compreensão pelo que se entende hoje por moradia sofreu diversas modificações no
decorrer da história da humanidade.5
Entretanto, prudente diferenciar moradia de habitação, na medida em que a
moradia se materializa em modelos de habitação que se adaptaram ao
desenvolvimento humano, dentro das condições econômicas, sociais e culturais a que
pertencem os seus detentores, e neste sentido leciona Souza:
[...] a noção de habitação tem como prisma uma relação de fato, sendo o local em que a pessoa permanece, temporária ou acidentalmente. A habitação conceitua-se como o direito ao exercício de uma faculdade humana conferida a alguém por norma jurídica ou por outrem, permitindo a fixação em um lugar determinado, não só física, como também onde se fixam os interesses naturais da vida cotidiana, exercendo-os, porém, de forma temporária ou acidental, iniciando-se e extinguindo-se sobre determinado local ou bem, tratando-se de uma relação de fato, sendo, porém, a relação humana e imóvel, objeto de direito, logo tutelável juridicamente. A moradia, conceitualmente, é um bem da personalidade, com proteção constitucional e civil. É um bem irrenunciável da pessoa natural, indissolúvel da sua vontade, exercendo-se de forma definitiva pelo individuo; secundariamente, recai o seu exercício em qualquer pouso ou local, mas é objeto de direito protegido juridicamente. O bem moradia é inerente à pessoa e independente de objeto
5 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: set. 2017
16
físico para a sua existência e proteção jurídica. Existe independentemente de lei, porque também tem substrato no direito natural [...]. [grifos do autor]6
Importante destacar que a moradia “materializa-se” porque é uma situação de
direito, um bem extrapatrimonial, notadamente reconhecida pelo ordenamento
jurídico. Assim, embora a habitação adeque-se a diversas culturas, o direito à moradia
em si não se modifica, permanecendo latente em sua essência de ser. Neste sentido,
Sérgio Iglesias Nunes de Souza dispõe que:
[...] Se alguém for privado de sua habitação, quando direito ali lhe assistir, violará, irremediavelmente, o bem da moradia da pessoa natural por ser um dos bens extrapatrimoniais da personalidade que garante a dignidade da pessoa humana.[...] Na criação das leis e na aplicação do direito para o ato de retirada da habitação, em quaisquer de suas formas, ainda que o direito de habitação não incida sobre o bem, deve-se fazer com prazo concedido de respeito à dignidade da pessoa humana.7
Analisando a perspectiva do direito à moradia no âmbito internacional, nota-se
que, embora incluído no rol dos direitos fundamentais no ano 2000, a proteção ao
direito à moradia já existia no âmbito internacional desde dezembro de 1948, por
intermédio da Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada através da
resolução 271 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil.
Embora trate de maneira implícita, o direito à moradia encontra-se sempre
presente em meio aos demais direitos unanimemente considerados essenciais ao ser
6 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à moradia e de habitação: análise comparativa e suas implicações teóricas e práticas com os direitos de personalidade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 45-46.
7 SOUZA. Sérgio Iglesias Nunes de. Exclusão do imóvel do fiador da penhora e o direito à moradia. Diferenças ontológicas de fiança e caução na Lei 8.245/1991. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 55.
17
humano. À título de exemplo, eis alguns artigos da referida Declaração Universal dos
Direitos Humanos no tocante ao direito à moradia:
Artigo XVII
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XXV
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. 8
Adotado pela ONU, o PIDESC (Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais) foi o mais importante instrumento internacional ratificado pelo
Brasil e outros 138 países, onde tratou-se do tema moradia e destacou-se a
necessidade de assegurar a moradia como um dos pressupostos para um
desenvolvimento de vida adequado 9, assim o dispondo em seu artigo 11:
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo,
8 ONU. Declaração Nacional dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em 30 mar. 2018.
9 PIEDADE MORAIS, Maria da et al. Monitorando o direito à moradia no Brasil (1992-2004). 2006. Disponível em:
<http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4510>. Acesso em 30 mar. 2018.
18
nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento[...]".10
Assim, embora o direito à moradia tenha sido expressamente introduzido na
Constituição Federal apenas no ano 2000, já havia menção à ela na própria
Constituição de maneira indireta, o que acabava por dar margem a questionamentos
quanto à sua essencialidade e necessidade de real aplicabilidade.
2.2 A COMPREENSÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À PROPRIEDADE
Embora os demais direitos reais encontrem seu espaço no ordenamento
jurídico através da legislação infraconstitucional, o direito real de propriedade possui
espaço na Constituição da República, dada a importância atribuída pelo legislador.
Evidente que, embora possua diretrizes constitucionais, o direito à propriedade
está normatizado no Código Civil de 2002, entretanto, neste momento o aspecto
analisado será sob o viés constitucional.
A Carta Magna de 1988, em seu artigo 5º, XXII e XXIII estabelece
respectivamente que: “é garantido o direito de propriedade” e “a propriedade atenderá
sua função social”.11
Nem a Constituição Federal, nem o Código Civil de 1916, e sequer o Código
Civil de 2002 se ocuparam de definir o que é propriedade, se limitando a delinear as
faculdades que o proprietário possui, elencando-as no artigo 1228 do CCB e
seguintes.12
Assim, para uma melhor compreensão do tema, necessário buscar o
ensinamento na doutrina, a exemplo de Orlando Gomes, que assim conceitua
propriedade:
10 BRASIL. Decreto n. 591 de jul. de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Brasília, DF, 1992.
11 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. 1988.
12 LÔBO. Paulo. Direito Civil. Coisas. 2. Ed. São Paulo: Saraiva. 2017. p. 92.
19
A propriedade é um direito complexo, se bem que unitário, consistindo num feixe de direitos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto.
Direito absoluto também é porque confere ao titular o poder de decidir se deve usar a coisa, abandoná-la, aliená-la, destruí-la, e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo, por desmembramento, outros direitos reais em favor de terceiros. Em outro sentido, diz-se, igualmente, que é absoluto, porque oponível a todos. Mas a oponibilidade erga omnes não é peculiar ao direito de propriedade. O que lhe é próprio é esse poder jurídico de dominação da coisa, que fica ileso em sua substancialidade ainda quando sofre certas limitações.” 13
Embora muito bem lecionado por Orlando Gomes, necessário compreender o
direito à propriedade como um conceito amplo, tendo em vista que a ausência de um
conceito legal expresso permite que situações fáticas alterem a sua compreensão, na
medida em que a sociedade evolui e apresenta necessidades antes não existentes.
Acerca desta perspectiva, ensina Caio Mário:
Não existe um conceito inflexível do direito de propriedade. Muito erra o profissional que põe os olhos no direito positivo e supõe que os lineamentos legais do instituto constituem a cristalização dos princípios em termos permanentes, ou que o estágio atual da propriedade é a derradeira, definitiva fase de seu desenvolvimento. Ao revés, evolve sempre, modifica-se ao sabor das injunções econômicas, políticas, sociais e religiosas. Nem se pode falar, a rigor, que a estrutura jurídica da propriedade, tal como se reflete em nosso Código, é a determinação de sua realidade sociológica, pois que aos nossos olhos e sem que alguém possa impedi-lo, ela está passando por transformações tão substanciais quanto aquelas que caracterizaram a criação da propriedade individual, ou que inspiraram a sua concepção feudal.
A princípio foi o fato, que nasceu com a espontaneidade de todas as manifestações fáticas. Mais tarde foi a norma que o disciplinou, afeiçoando-a às exigências sociais e à harmonia da coexistência. Nasceu da necessidade de dominação. Objetos de uso e armas. Animais de presa e de tração. Terra e bens da vida. Gerou ambições e conflitos. Inspirou a disciplina. Suscitou a
13 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2012. p. 104.
20
regra jurídica. Tem sido comunitária, familial, individual, mística, política, aristocrática, democrática, estatal, coletiva.”14
Assim, compreendido o direito à propriedade sob a perspectiva doutrinária, é
possível realizar uma análise mais profunda sobre a intenção do legislador ao incluir
o direito à propriedade na Constituição Federal, mais precisamente delineando o que
se entende por função social da propriedade.
Por todo o disposto, resta claro que, embora assegurado pela Constituição
Brasileira o direito à propriedade, seu exercício fora claramente limitado, e estes
limites esbarram justamente nos interesses coletivos que prevalecem sobre o privado.
2.3 O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
No ordenamento jurídico brasileiro, a função social da propriedade é um
princípio vinculado ao conceito de propriedade de tal maneira que seus fundamentos
integram a estrutura do direito de propriedade. 15
A Constituição Federal delineia o que deve ser compreendido por função social
em dois momentos. Primeiramente no artigo 182, que prevê:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar
14 PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil. 25. ed.. Rio de Janeiro: Saraiva. 2012. P.62.
15 TEPEDINO. Gustavo. Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano 6, n 6, Jun. 2005. Disponível em:
<egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/30793-33014-1-PB.pdf>. Acesso em: set. 2017.
21
o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.16
Logo após, em seu artigo 186, estabelece que:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.17
16 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: set. 2017.
17BRASIL, loc. cit.
22
Doutrinariamente, há divergências no que se refere à incidência da função
social da propriedade.
Eros Grau entende que existe uma diferença entre a função social e função
individual, e afirma que a função social incide somente sobre bens de produção.18
Godinho, no entanto, opõe-se ao posicionamento de Eros Grau, assim
dispondo:
Em que pese a autoridade dos ilustres doutrinadores, não podemos concordar com a restrição imposta à incidência do princípio da função social da propriedade nos bens de consumo. O fato de um bem ser utilizado para a subsistência individual não lhe exclui do campo de incidência do princípio da função social. Isso porque a função social da propriedade não se justifica apenas pela destinação econômica de determinado bem. Assim, se determinado bem, dada a sua natureza, se destina apenas a utilização individual ou familiar, mas é efetivamente assim utilizado, este bem não representa um desperdício de potencialidade para a sociedade. Desta forma, esse bem cumpre a sua função social pois torna a sociedade mais rica, apesar de, quantitativamente, a sua contribuição para a riqueza nacional ser pequena ou mesmo insignificante” 19
Nessa perspectiva, uma propriedade que cumpre sua função social, atende ao
desenvolvimento nacional, contribui para a diminuição da desigualdade social,
diminuição da pobreza e eleva o princípio da dignidade humana ao seu patamar de
prevalecimento sobre os demais.
Embora exista um desmembramento do conceito de função social, existindo
também o conceito de função social econômica da propriedade, que em breves
contornos representa a função social que permite que o titular extraia do bem os
benefícios que lhe sejam inerentes,20 prudente neste momento, limitar os estudos
18 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. 8. ed. p. 207-216.
19 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. Problemas de Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 1. ed. p. 429.
20 VAZ, Isabel. Direito Econômico das Propriedades. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 145.
23
sobre o enfoque da função social da propriedade, já que é este o princípio tocado pelo
legislador que encontrou no meio social a necessidade de regulamentar o direito real
de laje, na medida em que, por todo o contexto social que adiante será exposto,
passou a existir substancialmente por conta da necessidade de habitação, não sendo
derivada pelo menos em sua essência, da função social econômica da propriedade.
24
3 HABITAÇÃO, UMA QUESTÃO SOCIAL
Justifica-se a análise da habitação como questão social mediante um recorte
de reconstrução histórica de modo a, na sequência, elaborar uma reconstrução
normativa do direito real de laje.
O paradigma reconstrução opera mediante um recorte no tempo histórico que
permite elaborar um outro comparativo entre o que se propôs como objetivo de
evolução social a ser concretizado e o que de fato, se realizou no presente.
A cada dia que passa a população mundial aumenta, de modo que, para cada
novo ser humano a habitar a Terra, necessário um pedaço de terra.
Nesta perspectiva, é fácil compreender a habitação enquanto inserida na
sociedade hodiernamente, no século XXI. Entretanto, até que se chegasse à situação
atual, vasto caminho foi percorrido de modo que diversos fatores contribuíram para
que a questão habitacional viesse a ser uma questão de ordem pública.
Para que seja alcançada a compreensão que se tem hoje à respeito da
habitação, necessário conduzir um estudo voltado ao passado para que o caminho
percorrido pela evolução da sociedade seja entendido em sua totalidade, e enfim seja
possível analisar as possíveis intenções do legislador ao instituir um novo direito real.
Segundo o arquiteto Flávio Villaça, o “problema” da habitação assumiu sua
forma enquanto uma problemática a ser resolvida, a partir do momento em que o
capitalismo surgiu no mundo, para Villaça:
A casa, entretanto, é uma mercadoria especial. Normalmente o capitalismo não tem possibilidade de oferecer a todos os membros da sociedade as mercadorias que ele tem condições de produzir e que os consumidores teriam condições de consumir. Em outras palavras, o capitalismo precisa de escassez para sobreviver. A escassez precisa ser produzida e controlada na sociedade capitalista pois sem ela o mercado não funcionaria enquanto mecanismo fixador de preços. O capitalismo precisa criar permanentemente a escassez para poder haver concorrência, sem a qual ele também não sobreviveria. A escassez não precisa necessariamente ser criada entre as classes mais pobres, mas ela
25
também é criada nessas classes, fazendo inclusive parte da manutenção do chamado “exército de reserva” e sendo um dos mecanismos de rebaixamento dos custos de reprodução da força de trabalho. Se o capitalismo não tem possibilidade de oferecer aos trabalhadores as mercadorias básicas necessárias à sua reprodução e compatíveis com o crescimento da riqueza social, isso é mais verdade ainda para o caso da habitação, dadas algumas de suas peculiaridades. Há razões estruturais que impedem o modo capitalista de produção de oferecer habitação decente a todos os membros da sociedade.21
Analisando o contexto histórico, de fato é possível perceber que atualmente a
habitação encontra espaço também como mercadoria, evidenciando que a evolução
a elevou a um patamar onde sua função deixa de ser apenas abrigo do sol, da chuva
e dos perigos noturnos, e passa a ser mais um bem necessário a atender às novas
exigências humanas, muitas das vezes excedentes às necessidades básicas,
mormente quando se trata das classes mais bem assalariadas.
Nesta perspectiva, possível concluir que o “problema habitacional” não é
exclusividade brasileiro, de modo que sob a ótica capitalista, a habitação tornou-se
um problema à nível mundial.
Isso porque, com o surgimento do capitalismo, houve uma necessidade da
classe burguesa evidenciar que este era um sistema muito mais vantajoso do que o
sistema feudalista, e para isso, lançou a ideia de liberdade que o trabalhador detinha,
a ideia de “homem livre”.22
Nessa perspectiva, o trabalho difundiu-se na sociedade e o trabalhador passou
a ser assalariado.
Para Ermínia Maricato, a moradia é objeto de consumo, que nas sociedades
capitalistas ostenta características específicas, fruto de tais fatores:
21 VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. 1 ed. São Paulo: Global Editora, 1986. p. 6.
22 VILLAÇA, 1986, p. 7.
26
1) A vinculação da moradia com a terra, ou seja, bem não reproduzível; 2) O alto custo da moradia para a compra; 3) O longo tempo de giro do capital empregado na construção, o que exige constantemente financiamento à produção”. 23
Assim, surge então um mercado de vendas dos produtos produzidos pela força
do trabalho, comprados com o salário dos próprios trabalhadores que contribuíram
para a evolução do capitalismo. Fácil concluir que o capitalismo é mantido pela
escassez, ou seja, cada necessidade humana passou a ser satisfeita pelos produtos
do trabalho, e pago pelo salário, fruto do trabalho.
Nesta medida, o salário propiciava a possibilidade de suprir as necessidades
básicas, como por exemplo os alimentos, vestuário e habitação.
Ocorre que a habitação não se encaixa neste modelo capitalista de produção.
Primordialmente pelo vínculo que a habitação detém com o solo, a construção está,
portanto, atrelada à terra, não havendo possibilidade de colocá-la em uma linha de
produção e disponibilizá-la no mercado de produtos. Esse modelo diferenciado de
produção, portanto, dificulta sua inserção no mercado. Esta é, em grande medida, a
explicação para o fracasso do mercado de habitação popular, o que acaba por
dificultar demasiadamente a oferta de habitação popular adequada à população.24
Nesta perspectiva, dispõe Villaça:
Com o desenvolvimento do capitalismo, juntamente com os demais bens necessários para atender as necessidades humanas, a habitação começa – embora lenta e penosamente – a assumir a forma de mercadoria. Entretanto, o sistema econômico privado, não consegue oferecer habitações a todos, quer sob a forma de mercadoria ou não. A obrigação de oferecer habitação àqueles que não têm condições econômicas de pagar por uma, passa progressivamente a ser do Estado. Este, contraditoriamente, ao mesmo tempo que reconhece essa obrigação como sua, da provas concretas
23 MARICATO, Erminia. Política urbana e de habitação social: um assunto pouco importante para o governo FHC. São Paulo: Revista Praga, 1998. p. 67-68.
24 VILLAÇA, 1986, p. 4.
27
de que é incapaz de, desincumbir-se satisfatoriamente dela. Uma das formas pelas quais tenta livrar-se dessa contradição e exatamente a produção, pela classe dirigente, do conceito ideológico do “problema habitacional” e da idéia já exposta de que esse problema “sempre existiu e sempre existirá”. Aliás, o uso da ideologia é um dos estratagemas de que a burguesia mais lança mão para livrar-se do problema da habitação. 25
Para além desta questão, há que se considerar a terra enquanto propriedade
privada, o que acaba por encarecer largamente o “produto habitação”, obrigando a
população menos afortunada a buscar regiões menos evoluídas e amparadas social
e economicamente na cidade.26 No Brasil são conhecidas por subúrbios e favelas.
Naturalmente, surge a necessidade de esmiuçar o problema da habitação, na
tentativa de encontrar uma solução. Ocorre que há muito se fala sobre o problema da
habitação popular no Brasil.
3.1 HISTÓRICO DA HABITAÇÃO NO BRASIL
O surgimento do capitalismo no Brasil ocorreu na segunda metade do século
XIX, momento em que, se inicia o problema da habitação popular. Com isso, em
decorrência da saída do agora “homem livre” das zonas rurais onde trabalhava em
fazendas ou era escravizado com destino às cidades, houve um adensamento
populacional, ampliando então o problema habitacional, primordialmente pela cidade
não possuir estrutura para abrigar novos moradores, passando a ser uma questão
social de grande relevância.27
25 VILLAÇA, 1986, p. 4.
26 BONDUKI, Nabil. As origens da habitação social no Brasil. 6. Ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2013. p. 248.
27VILLAÇA, 1986, p. 4.
28
Outra questão básica na compreensão da problemática urbana e da sua relação com a legislação urbanística no Brasil é a questão da propriedade da terra. A promulgação da Lei de Terras de 1850 marcou uma profunda mudança em relação à propriedade de terra no Brasil, quando restringiu o acesso a sua propriedade somente através da venda e da compra, desconsiderando o processo de ocupação. Dessa forma, a terra adquiriu status de mercadoria, e por isso passou a ser acessível apenas à aqueles que tinham rendimentos para adquiri-la (Rolnik, 1997)
Logicamente que a associação dessa Lei com a substituição do trabalho escravo foi a condição básica para a transição de uma sociedade escravocrata para um país capitalista de elite. Da mesma forma, a conjugação dessas leis com a substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado do imigrante e a falta de uma política de inserção social dos ex-escravos, que representava por volta de metade da população na época, criaram grande parte dos problemas urbanos do país, que persistem até os dias de hoje.
Dessa forma, o ideário e os instrumentos urbanísticos foram se desenvolvendo dentro desse contexto, apresentando diferentes períodos e contextos, sem contudo transformar de fato as condições urbanas.28
Num primeiro momento, o cortiço foi a solução imediata, se desenvolvendo
enquanto produto de iniciativa privada, considerando que os cortiços são habitações
alugadas, surgindo assim a primeira habitação destinada ao “homem livre”.29
Considerando que os cortiços abrigavam em sua grande maioria a classe
operária, era visto pela burguesia como uma ameaça, principalmente em decorrência
das epidemias que acometiam a população, como por exemplo a cólera. Por outro
lado era necessário para abrigar a classe trabalhadora, de modo que se iniciou um
processo de normatização das situações fáticas habitacionais que haviam surgido, de
modo a atender as necessidades das classes burguesa e operária.30
28 NOBRE. Eduardo Alberto Cuscé. O ideário urbanístico e a legislação na cidade de São Paulo: do Código de Posturas ao Estatuto da Cidade. Disponível em: <http://www.labhab.fau.usp.br/biblioteca/textos/nobre_ideariourb.pdf>. Acesso em 10 de nov. 2017.
29 BONDUKI, 2013, p. 248.
30 VILLAÇA, 1986, p. 14.
29
O Código de Posturas Municipais do Município de São Paulo de 1986 é um
exemplo disso, onde houve a inserção de dispositivos que regulamentavam a
localização adequada dos cortiços: distante dos comércios, e com condições
sanitárias que atendessem as dimensões dos cômodos.31
LEI Nº 10.105, DE 2 DE SETEMBRO DE 1986.
Dispõe sobre a concessão de licença para construção de moradia econômica, e dá outras providências.
Art. 1º Esta lei disciplina a concessão de licença para construção de moradias econômicas, de caráter popular, e reformas em prédios da mesma categoria.
Art. 2º Considera-se moradia econômica, para os efeitos da presente lei, a residência:
I - Unifamiliar, que não constitua parte de agrupamento ou conjunto de realização simultânea;
II - Destinada exclusivamente à residência do interessado;
III - De que não possua estrutura especial;
IV - Com área não superior a 80m².
Parágrafo Único. Para ser enquadrada como moradia econômica, a residência deverá apresentar todos os requisitos referidos nos incisos I a IV deste artigo.
Art. 3º O beneficiário dos direitos previstos na presente lei deverá comprovar ter renda mensal igual ou inferior a 5 (cinco) salários mínimos e não possuir outro imóvel no Município de São Paulo.
Art. 4º As construções e reformas de moradia econômica gozarão dos seguintes benefícios:
I - Isenção do pagamento da Taxa de Licença para Obras, Construção, Arruamentos e Loteamentos, do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, bem como do pagamento de quaisquer preços de serviços de cunho administrativo;
II - Fornecimento gratuito, pela Prefeitura, de:
a) projeto arquitetônico;
b) projeto de instalação elétrica e hidráulica;
c) estimativa de quantidade de material;
d) célere tramitação e licenciamento final;
III - Aceitação de documentação simplificada, na forma regulamentar.
31 VILLAÇA, 1986, p. 18..
30
Parágrafo Único. Os benefícios a que se refere este artigo somente poderão ser concedidos uma única vez, por período não inferior, a 5 (cinco) anos.
Art. 5º VETADO.
Art. 6º A concessão de licença para moradia econômica, excetuadas as disposições da presente lei, deverá observar, no que for aplicável, a legislação federal, estadual e municipal pertinente.
Art. 7º Fica conferida à Secretaria das Administrações Regionais - SAR, através das Administrações Regionais, competência para proceder ao desdobro econômico do lote, na forma prevista na legislação municipal, quando este for necessário para a construção de moradia econômica, observado o disposto no artigo 3º.
Art. 8º Esta lei será regulamentada por decreto do Executivo, onde deverão ser fixados os procedimentos necessários à fiel execução das presentes disposições.
Art. 9º As despesas com a execução desta lei correrão por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 10 - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário e, em especial, a Lei nº 9842, de 4 de janeiro de 1985.32
A questão de saúde pública era latente, de modo que por vezes se fazia
necessária a demolição dos cortiços que certamente eram substituídos por obras que
atendessem à população burguesa, com o intuito de modernizar a cidade.33
Paralelamente ao surgimento dos cortiços, adveio o crescimento das vilas
operárias que surgiram do esforço de socialistas inconformados com a precariedade
de condições a que estavam submetidos os trabalhadores da classe operária. Havia
a idéia por parte dos idealizadores de que o capitalismo havia sido um erro, no qual a
sociedade deveria se desvirtuar.34
Os estudos dispensados pelos idealizadores acabaram por resultar no que eles
chamaram de nova ordem social, sendo as vilas operárias, exemplos concretos de
32 BRASIL. Lei nº 10.105, de 2 de setembro de 1986. Dispõe sobre a concessão de licença para construção de moradia econômica, e dá outras providencias. Disponível em: <http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-10105-de-02-de-setembro-de-1986/>. Acesso em 12 de nov. 2017.
33 BONDUKI, 2013, p. 33.
34 VILLAÇA, 1986, p. 16.
31
sociedade ideal, que surgiram acompanhadas de campanhas de conscientização
contra o capitalismo35.
Adotados por todos os níveis de governo e regiões do país, os estímulos à iniciativa privada foram sempre muito bem aceitos por todos: higienistas, poder público e empreendedores. Para estes, a vantagem era óbvia, pois aumentariam seus lucros; para o poder público, mesmo que os resultados fossem pífios, era uma forma de mostrar uma iniciativa em favor da melhoria da habitação dos pobres: por fim, para os higienistas, era a oportunidade de difundir o padrão o padrão de habitação recomendável. Nesse contexto, foram propostas várias leis de estímulo à construção de vilas operárias.
Baseada na casa unifamiliar, a vila operária era o modelo de habitação econômica e higiênica, o ideal a ser atingido. Desde o Império, surgiram incentivos, inclusive isenção de impostos de importação de materiais, para facilitar sua construção.36
Considerando que alguns desses idealizadores eram industriais, foram
construídas algumas dessas vilas ao redor das indústrias, para atender aos próprios
trabalhadores e suas famílias, parecendo-se com verdadeiras cidades. Foram
construídas vilas operárias ao redor de todo o mundo, porém, fracassaram em grande
medida pela maneira como era conduzida a vida dos moradores dentro das vilas, de
maneira rígida e conveniente aos patrões dos operários.37
Poucas foram as vilas operárias brasileiras, destacando-se dentre todas a da
Usina Siderúrgica Nacional, que fora construída por necessidade pelo governo nos
anos 40, haja vista a inexistência de qualquer cidade próxima à usina, conforme
evidencia Nabil Bonduki, através do o trecho extraído do livro de Flávio Villaça:
35 VILLAÇA, 1986, p 17.
36 BONDUKI, 2013, p. 41.
37 VILLAÇA, op. cit., p. 17.
32
Citando um levantamento realizado pelo Departamento Estadual do Trabalho em 1919, Nabil Bonduki revela que das 227 empresas pesquisadas no Estado de São Paulo apenas 37 forneciam casas a seus operários; destas, apenas 11 (28%) se localizavam na cidade de São Paulo onde estavam 57% das empresas pesquisadas. Mesmo nas indústrias que mantinham casas para
seus operários, estas eram um número irrisório.38
De modo geral, as vilas operárias foram mais bem aceitas do que os cortiços,
porém novamente houve a necessidade por parte do Estado de legislar, a fim de que
fossem construídas longe dos perímetros em que houvesse maior aglomeração
urbana, havendo inclusive, a possibilidade de isenção de impostos nesses casos.39
3.2 INTERVENÇÃO ESTATAL NA QUESTÃO HABITACIONAL
O mercado da habitação atualmente disponível não possui condições de
atender à grande maioria da população. Assim, uma das maneiras de intervenção do
Estado na questão da habitação popular é o subsídio, que implica na destinação de
dinheiro público à habitação popular sem a expectativa de qualquer lucro. Entretanto,
tal medida abriga críticas pela classe burguesa, mormente em face de não ver
resguardados os seus interesses. Ocorre que por muito tempo o subsídio foi a única
intervenção estatal na questão habitacional.40
[...] Uma delas é o subsídio, ou seja, a aplicação de recursos públicos sem a expectativa de um retorno. Os moradores das habitações construídas pelo
38 VILLAÇA, 1986 apud. BONDUKI, Nabil. 1974. p. 16-17.
39 VILLAÇA, 1986, p.17.
40 VILLAÇA, op. cit..
33
Estado, por não terem condições de cobrir seu preço, pagariam por elas uma quantia menor que esse preço. Os recursos necessários aos subsídios, entretanto, teriam que ser retirados do processo acumulativo e assim não produziriam lucros. Essa solução, a burguesia procura a todo custo evitar. Ela sempre lutará por soluções que promovam a acumulação, soluções de mercado. Fica clara então a contradição na qual se debate a burguesia. De um lado, ela é forçada a reconhecer que não é possível atender às necessidades habitacionais das camadas de baixa renda através do mercado, transferindo, então, o problema para o Estado. Por outro lado, a burguesia procura evitar a todo custo que o Estado aplique recursos maciços na produção de moradias subsidiadas.41
Outra forma de intervenção estatal é através de legislação que estabeleça
critérios que devem ser observados, contidos basicamente nas Leis de Zoneamento,
Leis de Loteamento e o Código de Posturas e Obras. Essas regulamentações
estabelecem critérios a fim de resguardar direitos básicos ao cidadão como
saneamento adequado e higiene. Necessária tal intervenção primordialmente pelo
crescimento do mercado habitacional privado, momento em que o Estado precisou
proteger o cidadão dos abusos praticados pelas construtoras.42
3.3 A CASA PRÓPRIA
A partir da segunda metade do século XX, em decorrência do processo de
industrialização, por conseguinte, a urbanização “setorizada”, prevaleceu a divisão
territorial, acompanhada da divisão social, o que fez com que a renda dos
trabalhadores fosse o marco divisório de agora, uma cidade separada em duas partes:
41 VILLAÇA, 1986, p. 17.
42 MARICATO, 2013, p. 95.
34
a legalizada, donde provém bens e serviços adequados e de qualidade, e a ilegal
reflexo de pobreza e precariedade, fruto da exclusão.43
Sabendo das desigualdades que permeiam a sociedade brasileira
hodiernamente, resta evidente que é uma pequena parcela da população que de fato
possui condições de pagar um aluguel ou investir no sonho da casa própria. Desse
modo, a invasão de loteamentos ilegais, distantes das áreas urbanas e desprovidos
de condições mínimas de vida saudável acabam se tornando uma opção.
Entretanto, embora hoje seja possível estabelecer esse panorama geral da
questão habitacional, na década de 40 diversos foram os fatores que contribuíram
para essa migração, conforme dispõe Flávio Villaça, sob a perspectiva de Nabil
Bonduki:
Segundo Nabil Bonduki, a década de 40 marca a superação do modelo “casa de aluguel” em Sao Paulo. Os aluguéis vinham aumentando já desde a década anterior e atingiram níveis elevadíssimos naquela década quando foi promulgada a Lei de Inquilinato. Essa não foi nenhuma medida “social”, nem de proteção aos interesses dos inquilinos como alardeava o Estado Novo, mas sim uma intervenção do Estado que contribuía para destruir o modelo da casa alugada e implantar o da casa própria. Ainda segundo aquele autor, enquanto desapareciam os empreendimentos destinados exclusivamente a aluguel, começavam a surgir as incorporações visando à venda de apartamentos em altos edifícios. Segundo Queiróz Ribeiro, no Rio a crise de moradias de aluguel se acentuou no período 1910-1930, sendo que na década de 20, o item de despesas básicas familiares que mais aumentou de preço foi o aluguel. O desenvolvimento do capitalismo brasileiro, com crescentes opções de investimento, tornava assim cada vez menos atraente, o investimento em casas para alugar”44
Movidos pela necessidade de sair do aluguel, cada vez mais a população migra
para as zonas mais distantes dos centros urbanos, em busca de loteamentos mais
baratos ou ilegais.
43 MARICATO. Erminia. Conhecer para resolver a cidade ilegal. Urbanização brasileira: redescobertas. Belo Horizonte: Arte, 2003. p. 78-96.
44 VILLAÇA, 1986, apud BONDUKI, 1974, p. 22
35
3.4 O FENÔMENO DA AUTOCONSTRUÇÃO
O fenômeno da autoconstrução no Brasil difundiu-se em larga escala,
contribuindo com o crescimento das favelas no país.
A extraordinária expansão do auto-empreendimento não é um processo isolado mas faz parte da “desmercantilização” do processo de produção da moradia popular, ou seja, da desestruturação do mercado de moradias populares produzidas por empreendedores privados. Nesse quadro, transferiu-se para o Estado e, sobretudo, para o morador, a responsabilidade
pela produção da moradia.45
São três os gastos dispensados à construção de uma habitação, e o primeiro
deles é a terra, que evidentemente possui alto valor dentro das zonas urbanas mais
desenvolvidas. Quanto mais próximo aos comércios, maior o custo do metro
quadrado. Quanto mais distante, portanto, menor o preço da terra e menor o
investimento público em saneamento básico. 46
Neste momento, o Estado precisou legislar, regulamentando os parâmetros
ideias do produto “lote”, protegendo a população de abusos, e visando paralelamente
atender aos parâmetros exigidos pela sociedade burguesa, tendo em vista que, na
expectativa de obter uma casa própria com baixíssimo investimento, o produto
entregue acabava sendo de qualidade extremamente inferior ao ideal.47
Logo após o custo com a terra, surgem os custos com materiais de construção
que de modo geral também possuem alto dispêndio, principalmente quando se leva
45 BONDUKI. 2013. p. 283.
46 VILLAÇA, 1986. p. 28.
47 VILLAÇA, 1986. p.29.
36
em consideração que a análise permeia justamente a disponibilização de valores
percebidos por trabalhadores que em sua grande maioria recebem um salário mínimo,
de modo que o salário compromete-se em sua maior proporção com os custos básicos
de vida, como alimentação e transporte. Fácil perceber que muitas das vezes sequer
sobra dinheiro, sendo o material empregado na construção o de segunda mão, a sobra
de outras construções ou até mesmo a adaptação de diversos outros materiais sequer
destinados à construção.
Por fim o custo com a mão de obra, que vem sendo substituído pela ajuda
mútua, que passou a contribuir vastamente para o crescimento do sistema de
autoconstrução no Brasil, tendo início a partir dos anos 50, progredindo de tal maneira
que após 20 anos, a autoconstrução passaria de sistema predominante nas cidades
grandes para o sistema predominante de habitação em muitas cidades pequenas.
Resta evidente que esse sistema acabou sendo largamente adotado pela população
de baixa renda, contribuindo muito para o crescimento das favelas.48
Acerca da ajuda mútua, há que se fazer algumas ponderações, tendo em vista
que, por vezes, a visão que se tem sobre a colaboração de vizinhos, familiares e
amigos acaba por ser um pouco romantizada.
Este é o ponto de vista da arquiteta Erminia Maricato, que se dedicou à estudar
o sistema de autoconstrução, ora evidenciado sob a perspectiva de Flávio Villaça:
Maricato apresenta pesquisa feita em São Bemardo do Campo que indica que em 14,3% dos casos de moradias autoconstruídas, estas foram produzidas pelo proprietário sozinho (marido, mulher e filhos), e em 66,8% por proprietários, amigos e familiares, sem qualquer ajuda de profissional remunerado, caso este que correspondeu a 19% do total. O espírito alegre, a fraternidade e a solidariedade podem até existir, porém ocorrem sob o sacrifício do trabalho duro que consome as horas que deveriam ser de descanso49
48 VILLAÇA, 1986, p. 26.
49 VILLAÇA.1986 apud MARICATO. Ermínia. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global Editora. 1986, p. 26 .
37
Considerando a vasta expansão da autoconstrução, percebe-se que este não
é um processo isolado, mas sim o início da compreensão da habitação popular como
sendo de responsabilidade conjunta entre Estado e o próprio morador, colaborando
para a desestruturação do mercado de moradias populares produzidas por iniciativa
privada.
Em contraponto ao crescimento da autoconstrução, o Estado passou a intervir
legislativamente, primeiramente através da regulamentação das locações, e logo após
através de produção e financiamento de casas próprias. Por outro lado, não empregou
esforços a fim de estancar as ocupações periféricas nas maiores cidades do país,
acabando por “permitir”, através de sua omissão, a ocupação irregular do solo em
imensuráveis proporções. Para Nabil Bonduki:
A omissão do poder público na expansão dos loteamentos clandestinos fazia parte de uma estratégia para facilitar a construção da casa própria pelo próprio morador que, embora não tivesse sido planejada, foi se definindo na prática, como um modo de viabilizar uma solução habitacional “popular”, barata, segregada, compatível com a baixa remuneração dos trabalhadores e que, ainda, lhes desse a sensação, falsa ou verdadeira, de realizar o sonho de se tornarem proprietários.50
Com o crescimento das periferias, a classe média alcançou dois objetivos há
muito tempo almejados: segregar e desafogar o adensamento populacional que
assolava as cidades grandes. Assim, os investimentos públicos puderam ser voltados
às áreas habitadas pela classe média e por outro lado, fora viabilizada uma maneira
de permitir o acesso dos trabalhadores à casa própria com baixo custo.51
50 BONDUKI, 2013, p. 288.
51BONDUKI, 2013, p. 289.
38
3.5 POLÍTICAS PÚBLICAS DE HABITAÇÃO POPULAR
Até 1930, o Brasil não possuía representação política para as grandes massas
urbanas, de modo que o país era governado exclusivamente para a população mais
afortunada. A legislação acompanhava as necessidades da população mais rica, de
modo que o cidadão de baixa renda não possuía representatividade. Nessa
perspectiva, até a Revolução de 1930 o país não detinha qualquer legislação com a
finalidade de instituir medidas governamentais de moradias populares. A preocupação
que assolava as autoridades era basicamente o perigo que os cortiços e moradias de
baixa renda representavam ao cidadão que habitava as grandes cidades. Era
necessário, portanto, proteger a população rica dos riscos que a população pobre
representava.52
Em relação ao que se propunha antes de 1930, houve portanto uma mudança significativa na abordagem do problema habitacional. Antes, a questão central era a salubridade da moradia, independentemente do seu estatuto de propriedade (sendo um pressuposto que os trabalhadores moravam em casas de aluguel), e as propostas invariavelmente sugeriam isenções de taxas e impostos para que os donos das casas pudessem baixar os aluguéis e, assim, atender às famílias de renda mais baixa.53
Após a Revolução de 1930, pode-se observar que houve uma mudança no
contexto político e atividades governamentais, considerando que além do Estado
buscar aumentar sua legitimidade, ganhou maior confiança da população de baixa
renda.54
52 VILLAÇA, 1986, p. 21-23.
53 BONDUKI, 2013, p.88
54 VILLAÇA, op. cit. p. 21-23.
39
A partir de 1930, a questão principal passou a ser viabilizar o acesso à casa própria, A salubridade e a eliminação das formas coletivas de morar continuavam sendo um objetivo meritório mas, de maneira geral, alcançável em consequência da difusão da casa própria.55
Embora fosse evidente que o discurso prometia muito mais do que era possível
cumprir, o fato de incluir a questão da habitação popular em pauta foi um grande
avanço, pois houve uma intenção de resolver um problema que crescia
exponencialmente e não vislumbrava possibilidades de avanço, de modo que
finalmente o Estado assume para si a responsabilidade pela habitação.
Foram os institutos de pensão e aposentadoria as primeiras entidades que se
envolveram com a construção de moradias populares, porém, esses institutos
alcançaram apenas uma pequena parcela da população, notadamente aquelas em
que o trabalhador era vinculado, como por exemplo os institutos voltados aos
bancários que auxiliavam apenas os bancários, não sendo portanto uma solução à
nível nacional.56
O primeiro órgão criado com o objetivo de solucionar nacionalmente o problema
da habitação popular foi a Fundação da Casa Popular, que surgiu nos anos 40,
precisamente em 1949. Entretanto, devido à ausência de previsão orçamentária que
garantisse verba fixa e suficiente para a evolução do projeto, fizeram com que a FCP
não lograsse êxito. 57
Em seus pelo menos 20 anos de existência, colaborou para a criação de
milhares de habitações populares, com verba oriunda de contribuição de 1% sobre o
valor da compra de imóveis, seja qual fosse a forma de aquisição. A cobrança era
55 BONDUKI, 2013, p. 88.
56 VILLAÇA. 1986, p. 24.
57 VILLAÇA. 1986, p. 25-26.
40
realizada diretamente do imposto de transição quando o valor do imóvel era igual ou
superior a cem mil cruzeiros.58
A FCP de modo geral representou avanço político ao governo que finalmente
voltava seu olhar às famílias de baixa renda, aumentando seu prestígio perante os
eleitores populares. Quanto ao seu funcionamento, basicamente atuava financiando
moradias populares, além de prover serviços de saneamento básico.59
Em sua formação inicial, o intuito era ser uma instituição autônoma, porém,
passou a depender de repasse de verbas federais ficando à margem do orçamento
que cada governante dispunha, até que finalmente passasse a receber porcentagem
sobre os tributos recolhidos pelo estado quando da venda de imóveis, transferidos à
FCP.60
Com a falta de repasse de verbas, e o pequeno alcance que detinha sobre a
população, a Fundação de Casas Populares foi perdendo forças, até que em 1964,
com o golpe militar, foi extinta, notadamente pelo vínculo que possuía com o governo
anterior, sendo considerada pelas autoridades, ora no poder, um risco.61
Em substituição à FCP, surgiu o BNH - Banco Nacional de Habitação,
primordialmente por interesses políticos, em face da necessidade de aceitação
popular do regime militar. Assim, criar uma organização que visasse atender aos
interesses dos menos favorecidos seria uma boa alternativa para alcançar prestígio
popular, em especial da população de baixa renda que não se via representada pelos
governos que o antecederam.62
Apresentando claras ligações com sua antecessora, embora houvesse uma
tentativa desmedida de apresentá-la como uma instituição nova com propostas
originais, o BNH acabou logrando maior êxito que a FCP, na medida em que alcançou
58 BONDUKI. 2013. apud ANDRADE, AZEVEDO. 1982. BONDUKI, Nabil. A origens da habitação social no Brasil. 2013. 6. ed. São Paulo. p. 121.
59 VILLAÇA, 1986, p. 25.
60 VILLAÇA, loc. cit.
61 VILLAÇA, loc. cit.
62 VILLAÇA, 1986, p. 28-32.
41
maiores números de moradias populares construídas. Entretanto, falhou nos quesitos
de cunho social, como saneamento básico e infraestrutura. 63
Foi neste período que se implantou a Cohab - Companhia de habitação, que se
ocupava de coordenar demais agências que se incumbissem da construção de
moradias populares. A Cohab, portanto, é uma extensão do BNH, cumprindo uma
função de supervisão de demais agências construtoras com o objetivo de baixar os
preços, para que o produto final seja mais acessível. A possibilidade de redução dos
custos advém da inexistência de lucro, considerando que a Cohab se mantém pelo
recebimento de taxas de cunho administrativo.64
Objetivando maior estabilidade financeira ao programa, implantou-se o Sistema
Financeiro da Habitação (SFH), que utilizava-se de poupanças como forma de garantir
a capitalização do Banco, não sendo um risco ao fracasso a possível escassez
monetária. Para tanto, utilizou-se tanto cadernetas de poupança compulsórias (FGTS)
quanto voluntárias, além da instituição da correção monetária sobre as prestações das
unidades habitacionais.65
Acerca desse tema, ensina Flávio Villaça:
[...] a grande característica inovadora do BNH é o fato dele não precisar de recursos do governo. Ele trabalha exclusivamente com recursos privados a maioria absoluta dos quais capta através dos dois mecanismos de poupança que foram instituídos: a poupança voluntária (a das cadernetas de poupança, do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo) e a poupança compulsória representada pelos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. O BNH capta esses recursos que são fundamentalmente dos assalariados – entrega-os a um setor produtivo (o da construção civil) e a um especulativo (o da promoção imobiliária) via intermediários (agentes financeiros) para promoverem a acumulação através da produção e venda de moradias próprias. Esses setores do capital ficam com as rendas e lucros auferidos dessa produção e devolvem, depois de acumular, os recursos aos seus proprietários iniciais. Como bem sintetiza Guglielmi “...os recursos para a sustentação da política habitacional são extraídos do próprio mercado, com subtrações do consumo (dos assalariados) e destinados a produção, onde são acumulados,
63 VILLAÇA, 1986, p.30-32.
64 Ibid., p. 37. 65 ANDRADE, Luis Aureliano Gama. AZEVEDO, Sérgio de. Habitação e poder da Fundação da Casa Popular ao Banco Nacional. Rio de Janeiro: Centro Edelstein, 2011, p.79. Disponível em < http://books.scielo.org/id/xnfq4> Acesso em 20 set. 2017.
42
enquanto sua reposição e remuneração é procedida pela esfera de consumo. Fica claro, portanto, como o Estado procede para promover a acumulação, prossegue Guglielmi, retirando recursos do consumo e transferindo-os para a produção, que é onde se realiza o processo de extração da mais valia”66
Embora tivesse dispensado grande esforço, pode-se dizer que o BNH não
alcançou plenamente seus objetivos, de modo que as famílias que puderam se
beneficiar dos programas de financiamento recebiam em média três salários mínimos
o que corrobora com o entendimento de que a classe verdadeiramente baixa não se
viu amparada pelos programas de financiamento da casa própria.67
Em paralelo aos esforços dispensados a fim de atingir a classe mais
necessitada, questões externas influenciaram no insucesso do BNH. Uma dessas
questões relaciona-se à diminuição do salário mínimo sob os argumentos de “arrocho
salarial”, a fim de dirimir questões econômicas prejudiciais ao desenvolvimento
financeiro do país.68
Em consequência da instabilidade financeira que assolava os trabalhadores,
que, diga-se, ocorreu por pelo menos 10 anos, criou-se um Fundo de Compensação
das Variações Salariais (FCVS). A finalidade era garantir que a inadimplência, que no
momento era alta, não impedisse a construção de casas populares, visto que,
evidentemente com a falta de repasse, não havia possibilidade de implantação de
novas moradias, o que ocasionou uma estagnação na construção de habitações
populares. 69
Entre os anos de 1970 e 1975, houve uma queda brusca no número de
financiamentos, muito pela crise que resultava na inadimplência, que por conseguinte
acarretou a diminuição de construções.70
O crescimento retorna em meados de 1975, quando a inadimplência reduz e a
Cohab retoma os investimentos na construção de demais moradias populares.
66 VILLAÇA, 1986, p. 32.
67 VILLAÇA, loc. cit.
68 VILLAÇA, 1986, p. 34.
69. Ibid., p. 35
70 VILLAÇA, loc. cit.
43
Entretanto, isso se fez possível através de medida instituída pelo BNH que deu
preferência ao fornecimento de moradias à quem detinha salário igual ou superior à
três salários mínimos.71
Tal medida é questionável uma vez que se alterou o foco do programa que é
justamente possibilitar o fornecimento de moradias à população mais pobre. Por outro
lado, se retomou o crescimento de construções de habitações populares.
É possível concluir que, os períodos de maior crescimento do BNH coincidem
justamente com os momentos em que o governo buscava maior apoio popular, sendo
o BNH uma espécie de “porta voz” do governo que não interveio diretamente na
questão habitacional.
Tendo em vista o fracasso do BNH em promover melhoria no saneamento
básico, se detendo mais fielmente ao provimento de financiamentos, se fez necessária
a criação da PLANASA - Plano Nacional de Saneamento, que objetivou logo de início
o fornecimento de abastecimento de água para 80% da população brasileira, em 10
anos. A meta foi alcançada, e isso se fez possível a partir do momento em que os
serviços passaram a ser prestados à preço de custo, e os municípios passaram a
entregar aos órgãos estaduais a problemática do saneamento básico. Tudo por conta
de campanha despendida pelo governo federal.72 Esse é o entendimento de Flávio
Villaça, conforme se vê a seguir:
O governo federal lançou violenta campanha coagindo os municípios brasileiros a entregarem a órgãos estaduais seus serviços municipais de saneamento. Isso foi conseguido sem muito esforço nos anos mais duros da ditadura. As medidas no sentido de calar e sufocar as massas populares não se limitaram ao arrocho salarial, à eliminação da liberdade de imprensa, de organização sindical ou da liberdade de cátedra. Também não se limitaram aos campos político e cultural. Tapar a boca dos municípios, cercear a liberdade das câmaras municipais, impedir qualquer iniciativa dos municípios nos campos social e econômico fizeram parte indispensável da dominação brutal que se implantou no Brasil a partir de 1968. A formação de grandes empresas de saneamento para substituir as organizações municipais, fez parte da dimensão política e econômica de um único e mesmo
71 VILLAÇA, 1986, p. 34.
72 Ibid., 1986, p. 35.
44
processo de dominação, juntamente com a supressão da liberdade entre os estudantes, trabalhadores ou entre as Câmaras Municipais. A centralização de recursos nas mãos dos governos estadual e federal não foi um processo estranho à ditadura, da mesma forma que não o foi a contrapartida desse processo: o crescente empobrecimento dos municípios. Sua perda de independência política veio junto com a perda de independência econômica. 73
Dessa forma, finalmente houve um avanço no quesito fornecimento de água
potável, contribuindo com a saúde pública.74
Retomado o crescimento, portanto, a partir de meados de 1975, a crise
enfrentada pelo país na década de 80 contribuiu vastamente para a queda na procura
de habitações populares, de modo que uma série de fatores somados ao desemprego
que se alastrava cada dia mais, culminaram novamente no aumento da
inadimplência, desta vez em todas as áreas de atuação do Banco Nacional de
Habitação, de modo que em 1983, as parcelas eram superiores ao salário mínimo.75
Tamanho reajuste completamente em contramão às reais possibilidades do
trabalhador alvo dos financiamentos, fez com que grande parcela dos financiados
procurassem o Judiciário, a fim de que fosse feito reajuste das prestações dentro das
possibilidades de adimplemento.76
Diante do desconforto causado perante o governo e população, o BNH
promoveu uma série de mudanças que alteraram as cobranças repassadas ao
trabalhador que aderisse ao financiamento, porém, em decorrência das facilidades
proporcionadas ao novo modelo de financiamento, houve uma queda na arrecadação
monetária ao SFH, o que culminou num questionamento à respeito do desempenho
do BNH, dando-se início ao fim do Banco Nacional de Habitação77.
73 VILLAÇA, 1986, p. 35 e 36.
74 Ibid., 1986, p. 35. 75 Ibid., 1986, p. 47-48.
76 Ibid., 1986. p.34.
77 VILLAÇA, loc. cit.
45
Para além do já suscitado, foram abertas discussões no intuito encontrar uma
solução diversa ao problema da habitação popular, primordialmente pela finalidade
que detinha o BNH não ter sido completamente atingida, ao se considerar que o
público alvo abarcado pelos financiamentos não correspondia ao público alvo
pretendido, de classe baixa78.
Com a saída do general Figueiredo do poder, e o início da Nova República,
houve uma mobilização para que fossem encontradas soluções para a crise
institucional que atingia o SFH. Dentre as questões levantadas, houve propostas que
giravam em torno de medidas que viabilizassem equilíbrio financeiro à instituição,
reforma legislativa, porém nenhuma delas prosperou, tendo sido então declarada a
sua extinção, no governo Sarney79.
A extinção foi recebida com surpresa, principalmente pela forma inesperada
que ocorreu. O BNH foi incorporado à Caixa Econômica Federal, entretanto, sem
qualquer proposta de reajuste, readaptação ou reforma evidenciando que embora
houvesse consciência por parte do governo acerca do problema habitacional popular,
não se buscava concretizar qualquer medida hábil à amenizar o problema.80
Com a instituição do plano real, em 1994, houve uma redistribuição de recursos
econômicos, de modo que os fundos destinados à habitação foram prejudicados.
Contudo, buscando finalizar as obras iniciadas por governo anterior, são lançados dois
programas habitacionais: o Habitar-Brasil e o Morar-Melhor, com subsídios
provenientes do Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, bem como do
próprio orçamento federal.81
78 VILLAÇA, 1986, p. 34-35.
79 FERNANDES. Cássia do Carmo Pires Fernandes. SILVEIRA, Suely de Fátima Ramos da. Ações e Conteto da Política Nacional de Habitação: Da Fundação Casa Popular ao Programa “Minha Casa, Minha Vida”. 2009. Disponível em: <http://www.locus.ufv.br/bitstream/handle/123456789/1933/texto%20completo.pdf?> Acesso em 12 de nov. 2017. p. 14.
80 FERNANDES, op, cit.
81 FERNANDES, 2009, p. 75.
46
Desde então, até que de fato fosse instituído no plano habitacional capaz de
gerar resultados de maior relevância, foram instituídas uma série de medidas que bem
ou mal contribuíram para com a questão habitacional.
A primeira medida ocorre em 1997, que instituiu o Sistema de Financiamento
Imobiliário (SFI) através da Lei 9.514/97. O objetivo era promover uma conexão entre
mercado imobiliário e mercado de capitais. Nesse momento surgem as companhias
de seguro de crédito imobiliário.82
No ano de 1999 surge o Programa de Arrendamento Residencial (PAR),
regulamentado pelo governo Lula, que permitia ao arrendatário adquirir o imóvel que
estivesse arrendado após o decurso do prazo de 15 anos. Nesta modalidade de
arrendamento, o imóvel passava a ser propriedade do próprio Fundo de
Arrendamento Residencial (FAR).83
Em 2001 foi promulgada a lei 10.257, conhecida como Estatuto da Cidade que
finalmente acabou por definir qual a função social da cidade e qual a função social da
propriedade urbana.84
Finalmente, ainda no ano de 2001, surge através de medida provisória,
posteriormente regulamentada pela lei 10.931/2004, o Programa de Subsídio à
Habitação de Interesse Social (PSH). Esse programa objetiva complementar os
financiamentos das famílias de baixa renda através de subsídios diretamente
destinados ao financiamento habitacional.85
Em 2003, surge o Ministério das Cidades, que traz consigo a Política Nacional
de Habitação (2004), com os seguintes objetivos:
[...] universalizar o acesso à moradia digna em um prazo a ser definido no Plano Nacional de Habitação, levando-se em conta a disponibilidade de recursos existentes no sistema, a capacidade operacional do setor produtivo e da construção, e dos agentes
82 DIAS. Edney Cielici. Do Plano Real ao Programa Minha Casa, Minha Vida. Negócios, votos e as reformas da habitação. São Paulo, 2012, p. 38.
83 DIAS, loc. cit. 84 DIAS, loc.cit. 85 DIAS, loc.cit.
47
envolvidos na implementação da PNH; promover a urbanização, regularização e inserção dos assentamentos precários à cidade; fortalecer o papel do Estado na gestão da Política e na regulação dos agentes privados; tornar a questão habitacional uma prioridade nacional, integrando, articulando e mobilizando os diferentes níveis de governo e fontes, objetivando potencializar a capacidade de investimentos com vistas a viabilizar recursos para sustentabilidade da PNH; democratizar o acesso à terra urbanizada e ao mercado secundário de imóveis; ampliar a produtividade e melhorar a qualidade na produção habitacional; e incentivar a geração de empregos e renda dinamizando a economia, apoiando-se na capacidade que a indústria da construção apresenta em mobilizar mão-de-obra, utilizar insumos nacionais sem a necessidade de importação de materiais e equipamentos e contribuir com parcela significativa do Produto Interno Bruto (PIB).86
Em dezembro de 2004, a resolução 460 do FGTS autorizou que fossem
abatidos do valor dos financiamentos, o valor correspondente ao FGTS que dispõe
cada trabalhador, permitindo famílias com renda mensal inferior a R$1.500 a receber
subsídio do seu próprio FGTS, facilitando a compra de imóveis.87
Em 2005, é criado o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social
(SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS).
O SNHIS tem por objetivo a promoção do acesso à moradia mediante a criação
de políticas e programas destinados à esse fim. 88
Já o FNHIS surge em substituição ao Fundo Nacional de Moradia. Possui
recursos oriundos do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), Orçamento
Geral da União, doações, dentre outras formas de arrecadação.89
No ano de 2009, nasce o Plano Nacional de Habitação (PlanHab), e ainda
nesse ano anuncia-se o Programa Minha Casa Minha Vida, que comporta o título de
programa habitacional brasileiro que mais recebeu subsídio na história da política
habitacional.90
Ainda no ano de 2009, surge o programa habitacional minha casa minha vida,
inserido no PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, consistindo basicamente
86 FERNANDES, 2009, p. 10.
87 DIAS, 2012, p. 38. 88 DIAS, loc. cit. 89 DIAS, loc. cit. 90 DIAS, 2012, p..41.
48
em subsidiar moradias com valores dispensados do orçamento da união
conjuntamente com a utilização do FGTS, que também pode ser utilizado na
integralização dos valores dispensados pelo trabalhador à nova moradia.91
Entretanto, houve uma preocupação em de fato alcançar a população mais
necessitada, de modo que, para tanto, se estabeleceu que para aderir ao programa
habitacional, o trabalhador deve ter uma renda máxima de dez salários mínimos.
Gradativamente, os benefícios são estabelecidos de modo a facilitar o ingresso no
programa dos trabalhadores que possuam renda menor, recebendo assim maior
subsídio quem possui menor renda.92
Em linhas gerais, o programa Minha Casa Minha Vida conseguiu de fato
alcançar o status de maior programa habitacional já instituído no país. Porém,
balanços demonstram que o público atingido permanece sendo o de renda mais alta:
[...] o MCMV tem fraca aderência às estratégias de enfrentamento do déficit habitacional, o que o distancia num primeiro momento de uma política habitacional stricto sensu, especialmente de habitação de interesse social. Seguindo esta lógica destacamos que há uma maior correlação das contratações do MCMV, para faixas de maior renda, com a demanda por habitação conforme calculada pela CAIXA, ou seja, com a expectativa de inserção das famílias no mercado por meio da compra de um imóvel. 93
Em linhas gerais, o MCMV se consolidou como um “arcabouço instrumental da política habitacional”94 uma vez que o programa e a Lei de regularização fundiária de
91 DIAS, 2012, 38 92 DIAS, loc. cit. 93 KRAUSE, Cleandro. BALBIM, Renato. NETTO, Vicente Correia Lima. Minha Casa Minha Vida, Nosso Crescimento: Onde Fica a Política Habitacional? Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/91386/1/766214109.pdf). Acesso em 12 de nov. 2017.
94 Ibid. 2013, p..45.
49
2009 ocorreram ao mesmo tempo, contribuindo para com a economia nacional através do “estímulo à construção civil”.95
95 KRAUSE, 2013, p. 45.
50
4 CONFIGURAÇÃO DO DIREITO REAL DE LAJE
Evidentemente, o direito precisou se adaptar às questões existentes em
decorrência de construções de laje, antes mesmo do surgimento desse direito real.
Para tanto, se utilizava no que coubesse, as normas aplicáveis ao direito real
de superfície que por muito tempo atendeu as demandas judiciais.
Pelos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves:
Trata-se de direito real de fruição ou gozo sobre coisa alheia, de origem romana. Surgiu da necessidade prática de se permitir edificação sobre bens públicos, permanecendo o solo em poder do Estado. No direito romano o Estado arrendava suas terras a particulares, que se obrigavam ao pagamen- to dos vectigali, com o objetivo precípuo de manter a posse das largas terras
conquistadas.96
O direito real de superfície passa a integrar o ordenamento jurídico brasileiro a
partir do Código Civil de 2002, surgindo em substituição à enfiteuse.
Nasce com a finalidade de possibilitar juridicamente mais uma forma de atender
à função social da propriedade, considerando que permite ao titular de propriedade
ceder a superfície para construção de obra ou plantação, vide:
96 GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro 5 – direito das coisas, 11. ed.. Disponível em <https://online.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502637276/>. Acesso em 12 de nov. 2017.
51
Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O direito de superfície não autoriza obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da concessão.97
Ainda, conforme ensina Tartuce:
[...] constata-se que o direito de superfície é o mais amplo dos direitos reais de gozo ou fruição, em que figuram como partes dois sujeitos. O primeiro deles é o proprietário, também denominado fundieiro, aquele que cede o uso do bem imóvel a outrem. Na outra ponta da relação jurídica está o superficiário, que recebe a coisa para a realização de construções e plantações, tendo os atributos de usar e gozar do bem imóvel.98
O direito de superfície é um direito relativamente novo, e surgiu com o intuito
de corresponder à nova realidade social. Atualmente, as relações humanas não mais
possuem características de perpetuidade, da mesma forma que as relações jurídicas.
Para Tartuce, a enfiteuse, direito real anterior ao de superfície basicamente
atendia às questões atualmente abarcadas pelo direito de superfície, porém, uma das
características que distinguem ambos direitos reais é que para a enfiteuse, não havia
a possibilidade de constituição temporária de concessão de superfície.99 Novidade
trazida ao ordenamento jurídico através do artigo Art. 1.369 do Código Civil Brasileiro
de 2002:
97 BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, 10 de jan. 2002. 1ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
98 TARTUCE. Flávio. Direito Civil – Direito das Coisas. 9ª edição. Editora: Forense. 2017. P. 382.
99 Ibid. 2017. P. 383.
52
Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.100
Outra característica que o distingue da enfiteuse é a possibilidade de ser
gratuita, já que a enfiteuse era sempre onerosa. Novamente, o legislador adéqua-se
à realidade fática, na medida em que para além de fomentar relações obrigacionais
pessoais, a possibilidade de cessão de superfície gratuita dá margem à aplicabilidade
do princípio da função social de posse.
Pelos ensinamentos de Francisco Cardozo Oliveira:
A posse é fato e como fato revela a amplitude da sociabilidade humana, que escapa a sistematicidade do direito. Tem razão Pontes de Miranda quando ao reconhecer a natureza da posse como fato, afirma que a posse que ocorre no mundo fático deve ser vista a partir do mundo jurídico como fato e não como direito.¹¹ A posse é poder fático que materializa a apropriação direta da coisa , embora seja relação entre pessoas e não entre pessoas e coisas. A apropriação que caracteriza a posse ocorre independentemente de qualquer mediação jurídica. A posse assegura a satisfação imediata das necessidades da pessoa humana. ¹²
O ato da posse é essencialmente finalístico. A função social, portanto, não é exterior à posse mas elemento que se integra ao seu conteúdo, posto que a apropriação de bens é determinada pelas necessidades humanas e pelas relações sociais .¹³ Se no caso da propriedade a função social somente pode ser delimitada à luz da situação concreta tutelada pelo direito, como defende inclusive Ana Prata, no caso da posse, a fortiori, o aspecto contingente e processual da função social tem maior relevância.
A função social da posse configura-se como fato. Qualquer tentativa de definir a função social da posse a priori é limitadora do seu exercício, posto que, conforme afirma Antonio Hernandez Gil, ao contrário da propriedade, onde a função social atua no limite do eliminável, considerada a perspectiva do proprietário, na posse, a funcionalização se insere no âmbito do imprescindível.101
100 BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, 10 de jan. 2002. 1ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
101 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 246.
53
É de se observar que o direito real de laje não nasce com o intuito de substituir o direito
de superfície, tendo em vista que referidos direitos reais possuem finalidade diversa. Ocorre
que, por muito tempo utilizou-se o direito de superfície em casos onde hodiernamente aplicar-
se-á o regramento do mais novo direito real, vide:
CESSÃO DO DIREITO DA LAJE – Ação de reintegração de posse – Decisão judicial que julgou procedente a demanda, entendendo estar comprovada a posse e o esbulho, e ponderando que o apelante residiu no imóvel a título de comodato desde 1995, não efetuou prova de que efetuou gastos com as benfeitorias do imóvel, e que não poderia recobrar da suplicada as despesas feitas com o uso e o gozo da coisa emprestada, bem como o condenou ao pagamento de danos morais fixados em R$ 1.000,00 – Alegação de que a autora cedeu gratuitamente o direito da superfície, por meio do qual ele construiu um imóvel na laje, onde passou a residir, com a concordância dela, e não se tratou de comodato, e que o direito em questão está por ser regulamentado, mas por analogia, estaria regulamentado no art. 21 do estatuto da cidade - Inovação recursal do apelante – Matéria não suscitada em sede de contestação – Exame prejudicado por se tratar-se de verdadeira inovação por parte do banco apelante – Ademais, se a pretensão pudesse ser conhecida, sua articulação mostra-se inconsistente, na medida em que o artigo do estatuto da cidade indicado pelo recorrente para, por analogia, ser aproveitado (fl. 289, caput do art. 21), exige que a negociação do direito da superfície seja realizada mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis – Recurso não conhecido neste tópico. DANO MORAL – Ação de reintegração de posse – Decisão judicial que julgou procedente a demanda, entendendo estar comprovada a posse e o esbulho, e ponderando que o apelante residiu no imóvel a título de comodato desde 1995, não efetuou prova de que efetuou gastos com as benfeitorias do imóvel, e que não poderia recobrar da suplicada as despesas feitas com o uso e o gozo da coisa emprestada, bem como o condenou ao pagamento de danos morais fixados em R$ 1.000,00 – Alegação de que não há dano moral, pois quando intimado da concessão liminar da reintegração de posse, saiu pacificamente da casa, não foi lavrado nenhum boletim de ocorrência, e as testemunhas arroladas tem relação de amizade com a suplicada – Descabimento – Em que pese o aviso de recebimento da notificação extrajudicial ter sido assinado pela Sra. Francisca Borges, restou evidenciada a intenção da recorrida da retomada do imóvel dado em comodato – Além disso, apesar de ter ciência inequívoca da retomada do bem pela recorrida ao menos quando realizada a audiência de justificação, o recorrente somente saiu do imóvel em torno de dois meses depois, quando tomou conhecimento da deferimento da liminar pleiteada – Ademais, o próprio recorrente deixou claro que não pretendia sair do imóvel, conforme alegações firmadas na audiência de justificação, no recurso de agravo de instrumento que interpôs, e em contestação, ou seja, a alegada saída pacífica, é relativa – Em relação a testemunha que afirmou ter presenciado ameaças do recorrente em relação a suplicada, ressalta-se que no momento oportuno não foi apresentada contradita – Decisão mantida –
54
Apelação não provida neste tocante. Dispositivo: Conhecem de parte do recurso, e na parte conhecida, negam provimento.102
Buscando atender mais especificamente ao contexto econômico e social que
assola o país, o legislador instituiu o novo direito real, intitulado de direito real de laje,
que surge no ordenamento jurídico brasileiro conjuntamente com uma série de
medidas que visam a regularização dos lotes urbanos e rurais.
Embora se tenha escolhido a expressão “laje”, esse novo direito real não versa
exclusivamente sobre as moradias comumente construídas em andares superiores à
construção-base, abarcando também as construídas em seu subsolo, figura portanto
nova no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que tal permissivo não era
abarcado pelo direito de superfície.
Com relação a sua natureza jurídica, possível notar que os posicionamentos
divergem, considerando que não restou claro se este novo direito real se configura
como direito real sobre coisa alheia, ou se trata-se de direito real sobre coisa própria,
vide:
“Ao contrário do que insinua uma primeira impressão, o Direito Real de Laje não é um direito real sobre coisa alheia. É, sim, um novo Direito Real sobre coisa própria, ao lado do direito real de propriedade”.103
Para o professor Salomão Viana:
102 TJ-SP - APL: 00218582420138260005 SP 0021858-24.2013.8.26.0005, Relator: Ricardo Negrão, DJ: 27/07/2015, JusBrasil, 2015. Disponível em: <https://tj-sp.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/216685673/apelacao-apl-218582420138260005-sp-0021858-2420138260005>. Acesso em 20 mar.2018 103 TARTUCE, Flávio.Direito Real de Laje à luz da Lei nº13.465/2017. nova lei, nova hermenêutica. JusBrasil, Disponível em: < https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/478460341/direito-real-de-laje-a-luz-da-lei-n-13465-2017-nova-lei-nova-hermeneutica > . Acesso em: 17 mar. 2018.
55
Trata-se, portanto, de um direito real sobre coisa alheia - com amplitude considerável, mas que com a propriedade não se confunde -, limitado à unidade imobiliária autônoma erigida acima da superfície superior ou abaixo da superfície inferior de uma construção original de propriedade de outrem.104
No mesmo sentido, o professor Pablo Stolze Gagliano:
O texto do § 3º permite estabelecer uma dianose diferencial entre o direito de propriedade e o direito real de laje.
Observe-se que, assim como se dá com a superfície - e anteriormente com a enfiteuse - o direito de laje é de ampla dimensão, compreendendo quase todos os poderes inerentes à propriedade, como usar, gozar e dispor.
Mas não poderá, o titular da laje, pretender “reivindicar” o imóvel ou exercer direito de sequela, eis que tais poderes emanam apenas do direito de propriedade.
Com isso, por óbvio, não se pode concluir que esteja, o titular da laje, impedido de lançar mão de interditos possessórios105.
Por outro lado, pela análise do artigo 10 da Lei 13.465, inciso VI, possível
observar que um dos objetivos da criação da Lei é de garantir que a função social da
propriedade e função social da cidade sejam mais efetivas.
Outra característica que o aproxima do direito real de propriedade, se revela
pela necessidade de instituição de matrícula própria junto ao Registro de Imóveis, o
que revela, por intermédio da análise do princípio registral da unicidade matricial,
possui traços de uma espécie de propriedade.
104 STOLZE, Pablo; VIANA, Salomão. Direito Real de Laje, finalmente a lei. BrasilJurídico. Disponível em: <https://salomaoviana.jusbrasil.com.br/artigos/478132365/direito-real-de-laje-finalmente-a-lei>. Acesso em: 17 mar. 2018.
105 STOLZE, loc. cit.
56
Acerca do princípio da unicidade matricial, ensina João Pedro Lamana Paiva:
O princípio da unicidade, ou unitariedade matricial, possibilitou que um único documento público – a matrícula – se concentre a totalidade da propriedade real e dos direitos a ele relativos, fornecendo um histórico completo sobre a unidade imobiliária, formando um verdadeiro curriculum do imóvel.
Esse princípio reforça o caráter de centralização na matrícula de todas as informações alusivas ao imóvel e às pessoas que a ele se vinculam, facilitando a publicidade das informações do fólio real e pessoa, bem como reforçando os fundamentos do Princípio da Concentração. 106
Outro apontamento que se mostra necessário, norteia as semelhanças que o
direito real de laje detém com o condomínio edilício, que, diga-se, é construído em
sobrelevação e possui matrícula própria.
Entretanto, no condomínio edilício o titular da unidade autônoma, para além do
direito real de propriedade e regramento próprio, detém uma fração ideal do solo que
o titular de laje não detém. Ademais, o dispositivo legal determina que ao titular de
laje, deverá existir passagem autônoma, situações essas que acabam por distinguir
definitivamente o direito real de laje do instituto do condomínio edilício.
Já as suas semelhanças com o direito real de superfície levaram os
doutrinadores a tecer críticas a respeito da desnecessidade de criação de um novo
direito real, haja vista a possibilidade de aprimoramento do direito real de superfície,
conforme se posiciona Carlos Eduardo Elias de Oliveira, consultor legislativo do
Senado Federal:
O Direito Real de Laje não foi tratado, no Brasil, como uma espécie de Direito Real de Superfície. Todavia, a proximidade ontológica das figuras é inafastável, de maneira que, quando o jurista se deparar com alguma
106 PAIVA, João Pedro. O Procedimento de Dúvida e a Evolução dos Sistemas Registral e Notarial no Século XXI 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 62.
57
lacuna legal no tratamento do novo direito real, será plenamente viável servir-se, por analogia, de regras destinadas ao Direito Real de Superfície.
21. A propósito, temos que o legislador perdeu uma grande oportunidade: a de atualizar a disciplina do direito real de superfície, superando a injustificável divergência de tratamento legislativo entre o Código Civil e o Estatuto da Cidade. Entendemos que, nessa atualização, deverá ser aproximado o tratamento do direito de superfície ao que foi dado ao direito real de laje, de modo a, por exemplo, determinar que a formalização do direito real de superfície ocorra por meio da abertura de uma matrícula própria, especialmente quando ele for instituído por prazo indeterminado.107
Assim, possível notar que as divergências são muitas, de modo que por ora,
restam as ponderações de ambos os argumentos, aguardando-se as interpretações
que serão abordadas no decorrer de sua aplicabilidade, para que enfim seja possível
compreender a extensão desse novo direito real de natureza incerta.
4.1 CARACTERÍSTICAS DO DIREITO REAL DE LAJE
Da breve leitura do texto legal, algumas figuras antes inexistentes ocuparam
lugar no ordenamento jurídico, notadamente pelas peculiaridades que o direito de laje
detém.
Exemplo disso é a construção-base, figura nova e exclusiva do direito de laje,
que compreende a construção que cede sua superfície ou seu subsolo ao titular de
laje.
O artigo 1.510-A, §6º do Código Civil108, dispõe sobre a possibilidade de
existência de lajes sucessivas, denominadas de laje de primeiro grau, segundo grau,
107 TARTUCE, Flávio.Direito Real de Laje à luz da Lei nº13.465/2017. nova lei, nova hermenêutica. JusBrasil, Disponível em: < https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/478460341/direito-real-de-laje-a-luz-da-lei-n-13465-2017-nova-lei-nova-hermeneutica > . Acesso em: 17 mar. 2018. 108 BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, 10 de jan. 2002. 1ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
58
terceiro grau, e assim sucessivamente. A de primeiro grau é a construída
imediatamente acima da construção base, e assim por diante.
Nesta perspectiva, ensina Carlos Eduardo Elias de Oliveira:
[...] somente se poderá registrar um direito real de laje de segundo grau se, na matrícula da laje anterior, já tiver sido averbada alguma construção. Não se pode estabelecer direitos reais de lajes sucessivos no espaço aéreo sem a existência material e concreta de uma construção. A propósito, uma prova de que a existência concreta de construção é requisito para o direito real de laje no espaço aéreo é a previsão expressa de extinção da laje no caso de ruína do prédio sem posterior reedificação (art. 1.510-E, CC).109
E prossegue:
É diferente do que sucede com as lajes subterrâneas, pois, como o subsolo possui existência concreta, não há necessidade de se exigir uma prévia averbação de uma construção na laje anterior. Veja que a ruína da construção não extingue os direitos de lajes subterrâneas exatamente em razão da intangibilidade desse espaço (art. 1.510-E, I, CC).110
Nesta perspectiva, nota-se que, para que seja concedida matrícula ao titular de
laje, a construção base deve possuir a devida averbação da construção em sua
matrícula.
109TARTUCE, Flávio.Direito Real de Laje à luz da Lei nº13.465/2017. nova lei, nova hermenêutica. JusBrasil, Disponível em: < https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/478460341/direito-real-de-laje-a-luz-da-lei-n-13465-2017-nova-lei-nova-hermeneutica > . Acesso em: 17 mar. 2018. 110TARTUCE, Flávio.Direito Real de Laje à luz da Lei nº13.465/2017. nova lei, nova hermenêutica. JusBrasil, Disponível em: < https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/478460341/direito-real-de-laje-a-luz-da-lei-n-13465-2017-nova-lei-nova-hermeneutica > . Acesso em: 17 mar. 2018.
59
Sabe-se que, uma das características dos direitos reais é a legalidade e que
dentre outros desmembramentos, se manifesta na constituição do título imobiliário
mediante a criação de uma matrícula imobiliária.
A constituição de uma matrícula própria deriva do princípio da publicidade, que
para Luiz Guilherme Loureiro, pode-se definir como sendo uma atividade que visa
produzir conhecimento, a quem queira, acerca do objeto a que fora dada a
publicidade:111
Na sua concepção ampla, publicidade é uma atividade destinada a produzir cognoscibilidade. A doutrina faz referência à cognoscibilidade, e não a conhecimento, porque, sendo seu destinatário a pessoa, o efetivo conhecimento dependerá, efetivamente, da atitude e da vontade do destinatário em conhecer aquilo a que é dada publicidade. Em outras palavras, a publicidade assegura um conhecimento potencial, presumido. Os destinatários podem, voluntariamente e livre de qualquer obstáculo, ter acesso ao objeto da publicidade e, dessa forma,
adquirir o conhecimento concreto e efetivo .112
Já o Registro carrega consigo uma carga do princípio da publicidade,
entretanto, objetiva atribuir efeitos jurídicos decorrentes do direito em questão
Importante questão que permeia o surgimento do direito de laje, gira em torno
da questão registral, que notadamente deve observar os regramentos urbanísticos,
na medida em que, “o Oficial Registrador é um fiscal da Lei”113
Paiva dispõe acerca do dever que o Registrador detém de observar se os
documentos oferecidos pela parte interessada em constituir um registro, estão de
111 LOUREIRO, Luiz Guilherme, 2014. Registros Públicos, Teoria e prática. 6.ed. São Paulo: Gen, 2014. Disponível em: < https://online.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-309-5862-6/cfi/6/8!/4/2/4@0:0> Acesso em 05 abr. 2018. Sem paginação. 112 LOUREIRO, loc cit. 113 PAIVA, 2014, p. 56.
60
acordo com a lei vigente, conferindo ao registro presunção de legalidade, após
procedido o ato registral114.
Ocorre que, pela condição de construção já existente que as lajes detém, a
observância das regras urbanísticas prévias à construção contidas no Estatuto da
Cidade, Plano Diretor e Lei de Zoneamento fica comprometida.
A fim de viabilizar o registro das lajes já existentes, sem a necessidade de
observância das normas urbanísticas, bem como objetivando atenuar os riscos
decorrentes da inobservância das regras urbanísticas, o Decreto Federal 9.310/18
instituiu algumas normas necessárias à concessão do registro imobiliário.
O artigo 63 do referido Decreto Federal, assim dispôs:
Art. 63. Para fins de Reurb, o direito real de laje dependerá da comprovação de que a unidade imobiliária é estável.
§ 1º A estabilidade da unidade imobiliária depende das condições da edificação para o uso a que se propõe dentro da realidade em que se situa o imóvel.
§ 2º Na Reurb-S, caberá ao Poder Público municipal ou distrital a comprovação da estabilidade das unidades imobiliárias de que trata o caput.
§ 3º Para aprovação e registro do direito real de laje em unidades imobiliárias que compõem a Reurb, fica dispensada a apresentação do habite-se e, na Reurb-S, das certidões
negativas de tributos e de contribuições previdenciárias.115
Pela leitura do texto legal, pode-se observar que houve uma preocupação do
legislador em ao menos atribuir condições mínimas de segurança à população, na
114 PAIVA, 2014, p. 56. 115 BRASIL. Decreto nº 9.310/18, de 15 de março de 2018. Instituiu as normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana e estabelece os procedimentos para a avalização e a alienação dos imóveis da União. Disponível em: < https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/556781261/decreto-9310-15-marco-2018> . Acesso em: 26. mar. 2018.
61
medida em que, para fins de Regularização Fundiária Urbana, necessário desenvolver
um olhar realista da situação que acomete as favelas brasileiras, sendo compatível
com a instituição do direito real de laje, a atribuição de mecanismos menos abrasivos,
mesmo porque, manter a obrigatoriedade paulatina de observância dos regramentos
urbanísticos legais inviabilizaria a criação do referido direito real.
Ainda com relação ao Decreto 9.310/18, nota-se que seu artigo 1º, §2º do,
assim dispõe:
Art. 1º Ficam instituídos as normas gerais e os procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana - Reurb, a qual abrange as medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação dos seus ocupantes.
§ 2º A Reurb promovida por meio da legitimação fundiária somente poderá ser aplicada para os núcleos urbanos informais comprovadamente existentes em 22 de dezembro de 2016, nos termos do disposto na Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, e neste Decreto.116
Da leitura do artigo, portanto, pode-se concluir que, para fins de Reurb, o
procedimento para concessão do título imobiliário, observará o disposto no
procedimento administrativo, constante no capítulo III, artigos 21 e ss. do Decreto
9.310/18, ressalvando-se que tal procedimento aplicar-se-á apenas aos núcleos
urbanos comprovadamente pré existentes até o dia 22 de dezembro de 2016.
Assim, pode-se compreender que, para fins de constituição de laje que não
faça parte de núcleo urbano existente até referida data, as normas urbanísticas
deverão ser observadas no ato do registro imobiliário, pelo registrador, de acordo com
as normas urbanísticas municipais que serão devidamente regulamentadas por cada
município
116 BRASIL. Decreto nº 9.310/18, de 15 de março de 2018. Instituiu as normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana e estabelece os procedimentos para a avalização e a alienação dos imóveis da União. Disponível em: < https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/556781261/decreto-9310-15-marco-2018> . Acesso em: 26. mar. 2018.
62
4.2 O DIREITO REAL DE LAJE E AS NORMAS URBANÍSTICAS
Diversos foram os mecanismos utilizados pelo Poder Público para garantir ao
cidadão, ao menos legalmente, estrutura urbana adequada aos parâmetros
garantidores de desenvolvimento urbanístico seguro e em prol do bem coletivo.
Para tanto, diversas leis foram promulgadas ao longo da história do país com o
objetivo de regulamentar tais parâmetros, como o Estatuto da Cidade, os Planos
Diretores e as Leis de Zoneamento.
Ermínia Maricato assim dispõe a respeito:
[...] não foi por falta de planos e leis que nossas cidades tomaram o rumo que tomaram. No amplo arcabouço da legislação urbanística existente, estão disponíveis aos governos municipais instrumentos para: a) ampliar a arrecadação de recursos para o financiamento das cidades; b) regular o mercado visando baratear o custo da moradia; c) a captação da valorização fundiária e imobiliária; d) a recuperação de investimentos em infraestrutura. e) regularizar e urbanizar áreas ocupadas irregularmente, com exceção de parte de áreas públicas; f) constituir estoque de terras para a promoção pública de moradias; g) garantir a preservação ambiental e o crescimento urbano sustentável; h) garantir a preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico. Enfim, mesmo antes da aprovação do Estatuto da Cidade, havia instrumentos para cumprir a promessa de todo Plano Diretor de garantir um desenvolvimento urbano “equilibrado”, “harmônico”, “sustentável” e outros adjetivos semelhantes que invariavelmente são apresentados nas introduções dos PDs117
O Estatuto da Cidade nasce pela necessidade de regulamentar os artigos 182
e 183 da Constituição da República, constantes no Capítulo “Política Urbana”, da
117 MARICATO. Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise. 7. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p. 95.
63
referida Carta Magna, conforme se verifica pelo seu artigo 1º da Lei 10.257de 10 de
julho de 2001, que assim dispõe in verbis:
Art. 1º Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.118
Nota-se que a intenção do legislador foi acolher normas que visem cada vez
mais o bem-estar coletivo, ou seja, vislumbra viabilizar mecanismos que atribuam para
além de demais direitos, efetividade ao direito à cidade.
Sergio Iglesias Nunes de Sousa entende que “o direito à moradia compõe o
direito à cidade119”, notadamente pelo desenvolvimento que exige uma sociedade em
constante evolução:
O direito à moradia compõe o direito à cidade em virtude da necessidade de desenvolvimento das condições da sociedade moderna, especialmente nos grandes centros urbanos, isto é, são os mesmos motivos que ensejaram no desenvolvimento do conceito de domicílio entre os romanos, porém, com sua nova extensão decorrente da crise habitacional (ocupação), a qualidade de vida, de locomoção, bem como a violação do direito de habitar em suas variadas formas, devendo haver implicações quanto ao bem da personalidade da moradia.
118 BRASIL. Lei Federal nº 10.257 de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Lex. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm> Acesso em 26 março 2018.
119 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Exclusão do imóvel do fiador da penhora e o direito à moradia. Diferenças ontológicas da fiança e caução da Lei 8.245/1991, São Paulo, vol. 957. n.104.p. 50., jul. 2015.
64
Analisando-se o disposto no art. 4º do Estatuto da Cidade, observa-se que por
diversas vezes utilizou-se o termo “plano”, em suas diversas derivações, o que
evidencia que o estatuto por si só não se mostra suficiente a atribuir eficácia a referida
norma, sendo necessária a criação pelo poder discricionário de um diploma legal
específico: o Plano Diretor120.
Para João Pedro Lamana Paiva, o plano diretor objetiva “definir o
comportamento e o planejamento da cidade” 121, constituindo-se como “instrumento
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”122, sendo obrigatória sua
criação para municípios que detenham população superior a 20 mil habitantes.
Já a lei de zoneamento preconiza para além de diretrizes gerais, instrumentos
que viabilizem aplicabilidade à função social da propriedade, dispondo de
mecanismos coercitivos para ideal utilização do solo urbano, como por exemplo
edificação compulsória, IPTU progressivo e até mesmo desapropriação 123
Evidentemente, tais regramentos urbanísticos dispõem acerca do direito à
moradia na sua forma mais ampla, possuindo cada uma delas, particularidades que,
juntas, promovem segurança habitacional e bem-estar coletivo.
4.3 IMPACTOS ECONÔMICOS DECORRENTESDO REGISTRO IMOBILIÁRIO
Antes de discorrer acerca dos impactos imediatos da regularização fundiária
urbana, necessário se faz realizar um apanhado histórico do desenvolvimento
econômico brasileiro, desde a colonização do país, o que permitirá uma visão reflexiva
e conclusiva no que diz respeito à finalidade que o legislador pretendeu dar ao instituir
120 PAIVA. 2014. p.155. 121 Ibid. 2014. p. 156. 122 Ibid. 2014. p. 157. 123 MARICATO. 2013.p.114.
65
no ordenamento jurídico brasileiro um novo direito real, especificamente destinado às
famílias economicamente hipossuficientes, à margem da sociedade.
O início da independência econômica brasileira, foi marcada pelo trabalho
escravo e exportação de produção agrícola, prática que se iniciou no Brasil Colônia,
e perdurou até a época do Império, mais precisamente a primeira metade do século
XIX.124
A promulgação da Lei Euzébio de Queiroz, em 1850, finalmente marcou o fim
do tráfico de escravos no país, e com isso, iniciaram-se com mais afinco atividades
financeiras, industriais e comerciais, demonstrando que embora a atividade escrava
colaborasse fortemente com a economia do país, havia outras possibilidades
concretas e eficazes de crescimento econômico 125.
A partir desse cenário, foram fundadas no Brasil, na década posterior a 1850,
um grande número de empresas:
[...] 62 empresas industriais, 14 bancos, 3 caixas econômicas, 20 companhias de navegação a vapor, 23 de seguro, 4 de colonização, 8 de mineração, 3 de transporte urbano, 2 de gás e 8 estradas de ferro. Essa ativa especulação, a inflação de crédito e o papel-moeda, os primeiros passos do capitalismo brasileiro, acabou gerando as crises financeiras de 1857 e 1864126.
Oliveira anota que, pelo desenvolvimento de uma rentável produção agrícola,
mais precisamente da frutífera produção de café, o país alavancou com boas
expectativas de crescimento interno, mas que a grande parcela de responsabilidade
pelo sucesso da produção cafeeira, muito se ateve ao “apoio em uma base financeira
e de crédito, bem como em razoável aparelhamento comercial [...]”. 127
124 OLIVEIRA, Marcelo Salaroli. Publicidade registral imobiliária. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.p. 83. 125 OLIVEIRA Marcelo 2010, apud PRADO, Caio Júnior. Publicidade registral imobiliária. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.p. 83. 126 OLIVEIRA, loc. cit. 127 OLIVEIRA, loc. cit.
66
Tal crescimento coincidiu com o período em que foi instituída a reforma
hipotecária de 1864, o que possibilita através de uma análise indutiva concluir que o
fornecimento de crédito foi beneficiado pela concessão de garantia real.
Corroborando com tal ideia, ensina Paulo Lôbo:
A história dos direitos reais de garantia é marcada pelos interesses dos credores mais poderosos e de atividades econômicas hegemônicas, que repercutiram em legislações que os contemplaram. No Brasil, antes que houvesse um sistema de registro público geral, apenas introduzido em 1890 (Decreto n. 169-A), os credores, principalmente financeiros obtiveram o específico registro público das hipotecas , pela Lei n. 1.237/1864. Lembre-se, ainda, que o Código Comercial surgiu em meados do século XIX, muito antes do CC/1916. 128
Considerando tais apontamentos, pode-se notar que a criação do direito de laje
objetiva para além da regularização fundiária urbana, conceder crédito à população
de baixa renda, notadamente pela viabilização de contratos de crédito com garantias
reais, averbadas no registro imobiliário da laje.
Pode-se ainda observar que, pelo positivo crescimento econômico decorrente
da criação da lei que regulamentou a hipoteca, o legislador encontrou na instituição
do direito de laje um mecanismo de fomento econômico, diante do cenário de crise
que acomete o país hodiernamente, e que atingiu fortemente a população
economicamente mais fragilizada.
Nesse contexto, necessário se mostra explanar a finalidade que detém a
garantia real de atribuir ao credor mecanismo de segurança jurídica, corroborando
para com o fornecimento de crédito mais facilitado, com juros menores e condições
mais favoráveis.
128 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Coisas. 2.ed. Saraiva: São Paulo, 2017, p. 300.
67
A garantia real tem por finalidade assegurar ao credor reforço de responsabilidade patrimonial, para satisfação do crédito, com dupla dimensão: (1) preferência sobre os credores comuns (quirografários) do mesmo devedor; (2) determinação ou afetação prévia da coisa que responderá pelo adimplemento da dívida, destacando-as dos bens econômicos do patrimônio pessoal do devedor.129
Tais apontamentos se mostram necessários na medida em que, para que
possa ser concedida garantia real, necessária a existência de matrícula imobiliária, a
fim de serem procedidas as averbações de garantias reais à margem do registro.
Para Oliveira, os sistemas de registro imobiliário possuem como função
econômica, “prover informações jurídicas relevantes, fornecendo segurança e certeza
de mercado, reduzindo os custos de transação, o que acarreta crescimento
econômico e valorização dos bens.”130
Para além de todos as possibilidades de benefícios e crescimento econômicos
concedidos ao titular de laje, há que se considerar que a constituição de novas
matrículas acarretará o recolhimento de impostos, antes não recolhidos em face da
clandestinidade das moradias.
Ermínia Maricato discorre acerca do recolhimento do IPTU - Imposto sobre a
Propriedade Territorial Urbana- como sendo “o instrumento de arrecadação fiscal
urbano mais importante previsto da Constituição de 1988”131, de modo que a criação
do direito real de laje, contribuirá para além do fomento econômico privado, retorno
aos cofres públicos na forma de recolhimento de impostos.
129 LÔBO. 2017. p.299. 130 OLIVEIRA. 2010. p.31. 131 MARICATO. 2013. p.91.
68
CONCLUSÃO
Procedendo a análise do direito real de laje na perspectiva de reconstrução
histórica da questão habitacional no Brasil, fez-se possível compreender que diversos
fatores contribuíram com a situação habitacional atual.
O êxodo rural, a industrialização e o capitalismo, dentre outros fatores,
contribuíram com o adensamento populacional urbano, obrigando as famílias que não
possuíam condições de pagar um aluguel ou financiamento de casa própria, a
dirigirem-se às zonas periféricas, onde o lote urbano era mais baixo, e onde também
era possível construir as habitações na modalidade de autoconstrução, com a ajuda
mútua de familiares e vizinhos.
Com o passar dos anos, e o surgimento de legislações convenientes aos mais
afortunados, as periferias cresceram exponencialmente, de modo a tornar-se uma
solução habitacional extremamente viável a população, ao mesmo tempo reafirmava-
se enquanto questão de ordem pública, notadamente pela ausência de saneamento
básico, educação, saúde e transporte, dentre outras necessidades básicas, que não
fazem parte do contexto das favelas brasileiras. Ocorre que, as periferias tornaram-se
uma realidade latente, não havendo possibilidade de regularização dos lotes
periféricos individualmente, senão pela via de uma regularização fundiária urbana de
grandes proporções.
Nesse contexto de necessidade de regularização fundiária urbana, surge o
direito real de laje, como alternativa à regularização em bloco de moradias irregulares.
Não por acaso, denominou-se como direito de laje, considerando que, ao utilizar o
termo popular, acaba alcançando com maior efetividade o fim que se pretende atingir.
Para além da questão de regularização fundiária, nota-se que a concessão de
uma matrícula única aos titulares de laje, acaba por viabilizar concessão de crédito no
mercado, contribuindo com uma melhora no contexto econômico do país que, diga-
se, passa por uma crise econômica de expressiva e notória relevância.
Voltando um olhar mais crítico ao passado, em situação semelhante a atual,
mais precisamente em 1864, a reforma hipotecária viabilizou um crescimento
69
gigantesco na economia, o que corrobora com o entendimento de que a viabilização
de crédito através do oferecimento de garantias reais realmente produz impactos na
economia, o que é crucial para o fortalecimento econômico do país em situações de
crise financeira como a presente.
Considerando, portanto, o surgimento do direito real de laje no contexto
socioeconômico atual, entende-se o porque da criação de um novo direito real,
destinado exclusivamente a solucionar questão fundiária urbana, notadamente
periférica, no lugar de aprimorar o direito real de superfície.
Certamente, um aprimoramento do direito real de superfície atenderia a
situações de lajes irregulares, mas não teria o condão de regularizar as habitações
populares em massa, não produzindo os efeitos econômicos que se pretende atingir
com o direito real de laje, notadamente pelo desconhecimento técnico da população
em reconhecer no direito de superfície, possibilidade de regularização das lajes.
Entretanto, prudente realizar uma análise mais crítica quanto aos efeitos futuros
que tal direito real pretende atingir, na medida em que, para a viabilização de
matrículas em lotes supervenientes à data estabelecida na lei de regularização
fundiária em vigência, faz-se necessário ao titular comprovar a observância de
diversas normas urbanísticas que, serão previamente estabelecidas por leis
municipais, colocando-se nas mãos de cada Município a efetividade que o direito real
de laje poderá vir a produzir no futuro, o que provoca incertezas quanto à possibilidade
de constante e crescente regularização fundiária urbana das zonas periféricas
irregulares ainda inexistentes no país.
70
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