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MANUAIS PARA coxcursos  : GRADU ÀCÀÍ ) ( 'i i' (' r/ i, ' í 7 "e ?ví / í.nz i i  . á v i o c o m h s

Luiz Flavio Gomes - Direito Penal - Part - 2o Edicao

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  • MANUAIS PARA

    c o x c u r s o s f:

    GRADUC)

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    .nz i i . v i o c o m h s

  • que cada obra apresentar incontveis testes de compreenso do texto, assim como grande nmero de questes de concursos pblicos.

    Notar o leitor, de outro lado, a inequvoca preocupao de cuidar de todos os assuntos de forma minuciosa e totalmente atualizada, sem perder de vista a clareza e a objetividade caractersticas dos manuais.

    E ainda buscar-se- superar o desafio de oferecer ao pblico uma Coleo que sintetize o dinamismo do Direito. A sociedade atual caminha velozmente, as relaes jurdicas experimentam mudanas em cada instante. Parte-se da premissa de que toda obra jurdica que no retrate as polmicas e os avanos cientficos e tecnolgicos do seu tempo, assim como as tendncias doutrinrias e jurisprudenciais, j nasce desatualizada.

    No se trata de tarefa fcil, mas com certeza todo esforo desenvolvido valer a pena, porque o ser em benefcio do progresso da cincia jurdica, assim como do sucesso de cada ser humano.

    g M ANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    E d it o r a R e v is t a d o s T r i b u n a i s

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS............................................................ 5

    NOTA 1 .a EDIO............................................................. 7

    Captulo ICONCEITO DE DIREITO PENAL......... .......................... 13

    Captulo IIFINALIDADES OU MISSES DO DIREITO PENAL.... 20

    Captulo IIIDIREITO PENAL E CONSTITUIO.............................. 27

    Captulo IVTEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO (NOTAS INTRODUTRIAS).................................................. 60

    Captulo VPRINCPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS................... 112

    Captulo VIFONTES DO DIREITO PENAL......................................... 128

    Captulo VIIPRINCPIO DA LEGALIDADE, LEI PENAL E NORMA PENAL................................................................................ 133

    Captulo VIIIINTERPRETAO DAS LEIS PENAIS........................... 162

  • Captulo IXDA LEI PENAL NO TEMPO............................................ 173

    Captulo XLEI PENAL TEMPORRIA E LEI EXCEPCIONAL...... 191

    Captulo XICONFLITO APARENTE DE LEIS PENAIS..................... 199

    Captulo XIITEMPO DO CRIME.......................................................... 215

    Captulo XIIILEI PENAL NO ESPAO (CP, ARTS. 5. A 9.)............. 221

    Captulo XIVLUGAR DO CRIME.......................................................... 229

    Captulo XVEXTRATERRITORIALIDADE DA LEI PENAL BRASILEIRA............................................................................. 233

    Captulo XVIDUPLA CONDENAO PELO MESMO CRIME.......... 241

    Captulo XVIIEXECUO DE SENTENA ESTRANGEIRA NO BRASIL.............................................................................. 245

    Captulo XVIIIEXTRADIO.... .............................................................. 250

    Captulo XIXEFICCIA PESSOAL DA LEI PENAL............................. 255

    Captulo XXCONTAGEM DE PRAZO (ART. 10 DO CP)................... 279

    10 M ANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • Captulo XXIFRAES NO COMPUTVEIS NA PENA (ART. 11 DO CP).............................................. ................................ 283

    Captulo XXIIAPLICAO DAS REGRAS GERAIS DO CP (ART. 12 DO CP)............................................................................. 286

    ANEXOSI - GABARITO DOS TESTES DE COMPREENSO

    DOS TEXTOS............................................................ 289II - QUESTES DE CONCURSOS PBLICOS............. 289

    III - O DIREITO PENAL NO BRASIL: SNTESE HISTRICA..................................................................... 295

    IV - BIBLIOGRAFIA EM LNGUA PORTUGUESACONSULTADA ElOU INDICADA........................... 313

    DIREITO PENAL - Parte Geral j J

  • Captulo I

    CONCEITO DE DIREITO PENAL

    1. Conceito social de Direito penal: do ponto de vista social (dinmico) o Direito penal um dos instrumentos do controle social formal por meio do qual o Estado, mediante um determinado sistema normativo (as leis penais), castiga com sanes de particular gravidade (penas ou medidas de segurana e outras conseqncias afins) as condutas desviadas ofensivas a bens jurdicos e nocivas para a convivncia humana (fatos punveis = delitos e contravenes).

    No se pode confundir o controle social informal com o formal: o primeiro (informal) no segue o devido processo legal (seus castigos so impostos diretamente, sem nenhuma formalidade, isto , sem ampla defesa, sem contraditrio, pelos seus agentes: igreja, escola, fbrica, famlia etc.); o segundo (formal) tem forma e sanes previamente descritas em lei, permite-se ampla defesa, contraditrio, recursos etc. (controle penal, v.g.).

    O Direito penal um exemplo de controle formalizado (porque necessariamente deve seguir o devido processo legal). Quem detm o direito de impor as sanes penais o Estado (no o particular). Mas o Direito penal no um direito de coao direta (como o , por exemplo, a multa aplicada por um guarda de trnsito). Toda sano penal s

  • pode ser aplicada de acordo com as leis vigentes (princpio da legalidade). Tradicionalmente o Direito penal foi pensado para impor castigos (sanes negativas). Ainda quando falamos em direito premial (diminuio da pena em razo da delao premiada, v.g. - veja art. 159, 4o, do CP, ad exem- plum ; possibilidade de concesso de perdo judicial - Lei 9.613/98 etc.), no h dvida que em sua essncia o Direito penal existe para distribuir castigos (penas ou medidas de segurana). De qualquer maneira, ele no existe para punir todas as condutas desviadas (condutas que no seguem os padres de conduta vigentes), e sim somente as mais nocivas, as que mais perturbam o convvio social (princpio da interveno mnima).

    2. Conceito formal de Direito penal: sob o enfoque formal (esttico), pode-se afirmar que o Direito penal um conjunto de normas jurdico-pblicas que definem certas condutas como infrao (delitos ou contravenes), associan- do-lhes penas ou medidas de segurana, assim como outras conseqncias jurdicas (reparao civil, por exemplo).

    O Direito penal, como se v, pode ser enfocado como instrumento de controle social ou como conjunto de normas. As normas penais tm a misso de descrever (o mais taxativamente possvel) a infrao penal. Por fora do princpio da legalidade, como veremos, a norma penal no pode definir delitos de forma vaga ou imprecisa, sob pena de criar grande insegurana. Tambm a conseqncia jurdica (pena ou medida de segurana) deve ser descrita de forma clara e objetiva (de forma a no causar dvida).

    Nosso sistema jurdico-penal no cuida, em regra, da reparao civil dentro do mbito do Direito e do processo penal (uma importante exceo a essa regra constitui, por exemplo, o Cdigo de Trnsito Brasileiro - Lei 9.503/97, art. 297 que prev a chamada multa reparatria).

    1 4 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 15

    De qualquer modo, como se sabe, a sentena penal conde- natria serve como ttulo executrio no cvel. De outro lado, independentemente da condenao penal, querendo, a vtima pode ingressar com ao civil paralelamente ao penal (CPP, art. 63 e ss).

    3. Direito penal comum e Direito penal especial: o Direito penal comum segue os princpios gerais do Direito penal, tem como fonte normativa principal o Cdigo Penal comum, aplicado pela Justia comum, no tem como objeto (s) um determinado grupo de delito e no se dirige a um conjunto especfico de pessoas (ao contrrio, dirige-se a todos - tem eficcia erga omnes).

    J o Direito penal especial deve ser assim conceituado quando conta com princpios especficos (alm dos gerais), tem como fonte normativa um Cdigo ou um conjunto normativo prprio, aplicado por uma Justia especializada, tem como objeto um determinado grupo de delitos e dirige-se a um conjunto particular de pessoas.

    Sem sombra de dvida, preenche esses requisitos no nosso pas o Direito penal militar, que especial. Do mesmo modo, tambm pode ser considerado como tal (em essncia) o Direito penal eleitoral, que conta com legislao prpria e aplicado pela Justia Eleitoral.

    Duas Justias especializadas contam com jurisdio penal: a militar e a eleitoral. A Justia trabalhista no possui competncia no mbito criminal.

    4. Direito penal objetivo e Direito penal subjetivo: oDireito penal manifesta-se, antes de tudo, como conjunto de normas, como ordenamento (ou melhor, como parte do ordenamento jurdico). A doutrina faz referncia, nesse sentido, ao ius poenale, que eqivale ao Direito penal objetivo.

  • Mas o Direito penal pode ser contemplado, tambm, da perspectiva do titular que dita e faz cumprir essas normas. Fala-se, nesse caso, no ius puniendi, no Direito penal subjetivo, que pertence ao Estado.

    O Direito penal (objetivo), em suma, no se identifica com o direito de punir do Estado (com o ius puniendi), que se expressa: (a) no direito de ameaar (condutas desviadas) com penas; (b) no direito de aplicar tais penas (quando algum infringe a norma penal); (c) no direito de executar as penas impostas de acordo com o devido processo legal.

    As expresses Direito penal objetivo e subjetivo, de outro lado, no se identificam com Direito penal substantivo (que o Direito penal propriamente dito) e Direito penal adjetivo (que o Direito processual penal). Alis, j no se recomenda a diviso do Direito penal em substantivo e adjetivo (tendo em vista a autonomia que o Direito processual conquistou nos ltimos anos).

    5. Sintetizando e recapitulando: o Direito penal, entendido formalmente, um conjunto de normas que cuidam dos crimes e das sanes respectivas. Socialmente enfocado instrumento de controle da sociedade. Alis, meio de controle social formal (porque segue necessariamente o devido processo legal: acusao formal, defesa, provas, sentena, recursos etc.). No se confunde com os instrumentos de controle informal da sociedade (que aplicam seus castigos diretamente, sem o devido processo: igreja, famlia, escola etc.). O Direito penal comum tem como fonte bsica o Cdigo penal comum, dirige-se a todos e aplicado pela Justia comum. J o Direito penal especial assenta-se em leis penais especiais, dirige-se a um grupo de pessoas e aplicado pela Justia especial (exemplos: Direito penal militar e eleitoral). Direito penal objetivo o conjunto de normas que cuidam dos

    15 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 17

    crimes e das penas ( o ius poenal). Direito penal subjetivo consiste no Direito de punir do Estado ( o ius puniendi), que traduz as idias de (a) ameaar com penas, (b) de aplicar penas e (c) execut-las.

    6. Quadro sintico:

    Sentido formalconjunto de normas que cuidam do crime e das sanes respectivasSentido socialinstrumento de controle (formal) da sociedade

    Direito penal objetivoconjunto de normas que cuidam dos crimes e das penas ( o ius poenal)Direito penal subjetivoconsiste no Direito de punir do Estado ( o ius puniendi)

    Fontes bsicas Direito penal comumCdigo penal comum (dirige-se a todos e aplicado pela Justia comum) Direito penal especialassenta-se em leis penais especiais (dirige-se a um grupo de pessoas e aplicado pela Justia especial). Ex.: Direito penal militar e eleitoral.

    7. Testes de compreenso do texto:

    1. Assinale a alternativa correta:

  • a) Segundo a doutrina nacional, o Direito penal, considerado sob um enfoque dinmico e social (conceito social de Direito penal), um dos instrumentos do controle social no formal do Estado de Direito.

    b) Entre o controle social informal e formal pode-se destacar a seguinte diferena: enquanto o segundo (formal) no segue o devido processo legal, o primeiro tem forma e sanes previamente descritas em lei, permite-se ampla defesa e recursos (controle penal, v.g.).

    c) Sob o enfoque esttico e formal, pode-se afirmar que o Direito penal um conjunto de normas jurdico-pblicas que definem certas condutas eomo infrao, associando-lhes penas ou medida de seguran, assim como outras conseqncias jurdicas.

    d) Segundo a jurisprudncia nacional dominante, o nico critrio que caracteriza o Direito penal comum o fato de este ser apreciado pela Justia Comum, em vez de ser analisado por Justias Especiais (Justia Militar e Justia Eleitoral).

    2. O Direito penal subjetivo:

    a) tem o mesmo significado do Direito penal objetivo;

    b) o Direito penal enfocado da perspectiva de quem edita e faz cumprir as normas penais;

    c) o conjunto de nonnas penais do pas;

    d) no se identifica com o ius puniendi.

    3. Direito penal especial:

    a) aplicado pela Justia comum;

    I g MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Vome 1

  • b) tem como eixo o Direito penal comum;

    c) tem como base as leis penais especiais;

    d) aplicado pela Justia especializada e tem como base um conjunto normativo especial.

    8. Leitura complementar:

    1. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 3. ed.So Paulo: RT, 2002.

    2. ALVES, Roque de Brito. Criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1986.

    3. BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal-PG.6. ed. So Paulo: Saraiva, 2000. vol. 1.

    4. CERNICCHIARO, Luiz Vicente e COSTA JR,, Paulo Jos da.Direito penal na Constituio. 3. ed. So Paulo: RT, 1995.

    Para aprofundar:GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho penal-

    PG, Madrid: UCM, 2000, p. 1 e ss.

    DlRE1TO PENAL - Parte Geral j 9

  • Captulo II

    FINALIDADES OU MISSES DO DIREITO PENAL

    1. Misses e funes do Direito penal: as misses do Direito penal so distintas das suas funes (misses e funes so conceitos diferentes).

    As misses do Direito penal, isto , suas finalidades, suas metas, so as conseqncias queridas ou procuradas oficialmente pelo sistema (proteo de bens jurdicos, diminuio da violncia estatal, diminuio da violncia individual etc.). Funes so as conseqncias (efetivas) no desejadas (oficialmente, ostensivamente), mas reais do sistema. Como veremos logo abaixo, ao lado da funo primordial e natural do Direito penal (funo instrumental de tutela de bens jurdicos), o Direito penal desempenha outras tarefas (funo institucional, promocional, simblica etc.).

    2. Finalidades do Direito penal: o Direito penal existe para:

    (a) a proteo de bens jurdicos (os mais relevantes, por isso se diz que a proteo penal fragmentria e subsidiria; o Direito penal tem por finalidade primeira proteger os bens mais relevantes como a vida, integridade fsica, liberdade individual, sexual etc.; com isso se conclui, desde logo, que o

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 21

    Direito penal no existe para proteger uma determinada ideologia, um determinado grupo poltico ou uma religio etc.);

    (b) a conteno ou reduo da violncia estatal (o Estado quando intervm para impor o castigo tambm pratica violncia; o Direito penal existe para disciplinar essa violncia, para mant-la dentro de certos limites; por isso que se diz que o Direito penal objetivo constitui uma barreira para o ius punien- di, isto , o Estado tem o direito de punir o infrator da norma penal, porm, deve faz-lo dentro dos limites estabelecidos pela Constituio e pelo Direito penal objetivo - ou seja, pelo conjunto de regras objetivas que disciplinam esse poder de punir);

    (c) a preveno da vingana privada (na medida em que o Direito penal tenha incidncia, evita-se que a vtima assuma por si s a tarefa de castigar o infrator, de fazer justia com as prprias mos; a vingana privada, que constituiu a primeira fase de reao ao delito em toda histria, uma etapa vencida; desde o momento em que o Estado assumiu o monoplio da Justia, cabe a ele definir crimes e impor e executar as penas; mas sempre relevante que o Estado cumpra essa sua funo, sob pena de retrocessos caracterizados pelo uso arbitrrio das prprias razes); e

    (d) servir como conjunto de garantias para todos os envolvidos no conflito (e no processo) penal (essas garantias comeam evidentemente pela mais elementar delas, que consiste no princpio da legalidade: ningum pode ser punido seno em virtude de lei; mas no s a legalidade que assegura o exerccio proporcional e equilibrado do Direito de punir do Estado. Como veremos, outros princpios cumprem esse papel: da interveno mnima, da ofensividade, da culpabilidade etc.).

  • 3. Funes (reais) do Direito penal: quando se indaga sobre as funes do Direito penal o que se pretende saber qual o seu papel efetivo, real, na sociedade. O mais legtimo que o Direito penal desempenha (ou deveria desempenhar) o instrumental, leia-se, o de servir de instrumento para a tutela (fragmentria e subsidiria) dos bens jurdicos mais relevantes (vida, integridade fsica etc.) e mesmo assim contra os ataques mais intolerveis (contra as ofensas que efetivamente perturbam a convivncia social).

    Paralelamente a essa funo legtima (a instrumental) cumpre, entretanto, o Direito penal outras funes que s vezes podem assumir um perfil ilegtimo. Dentre elas podemos destacar:

    (a) a funo promocional: por meio do Direito penal com certa freqncia o Poder Poltico tenta promover na sociedade o convencimento de sua relevncia para a tutela de determinados bens jurdicos; isso se deu no nosso pas, por exemplo, com a lei ambiental, que prev mais de sessenta tipos penais (a mdia mundial de seis tipos penais).

    Quando o legislador inclina-se para essa rea promocional, acaba confundindo o Direito penal com o Direito administrativo. Da surge o fenmeno da administrativizao do Direito penal, isto , infraes administrativas passam a ocupar o centro do Direito penal (cf. GOMES, L. F. e BIAN- CHINI, A., O direito penal na era da globalizao, RT, 2002).

    (b) a funo simblica: que consiste no uso do Direito penal para acalmar a ira da populao em momentos de alta demanda por mais penas, mais cadeias etc. A Lei dos Crimes Hediondos, no Brasil, o maior exemplo disso. Sabe-se que o aumento nominal de penas, o agravamento da execuo etc.

    2 2 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 23

    no resolvem o problema da criminalidade constante. Apesar disso, lana-se mo do Direito penal para cumprir esse papel.

    Num primeiro momento ele aplaca a ira popular, porm, depois de certo perodo, v-se que o remdio no serviu para curar a doena. E assim o Direito penal simblico se retroalimenta: como o remdio anterior no foi dado na dose suficiente, necessita-se de mais remdio. Ocorre que o remdio (mais penas, mais cadeias etc.) est errado. Logo, no adianta intensificar suas doses.

    Toda norma penal, ou melhor, o Direito penal como um todo sempre cumpre funes promocionais e simblicas. Isso inerente fora coercitiva da norma penal. O problema, no entanto, no est no fato de que a norma penal tenha funo promocional ou simblica, o mau est em o Poder Poltico valer-se do Direito penal para cumprir s ou prioritariamente essas funes, iludindo todos os seus destinatrios com promessas irrealizveis.

    4. Sintetizando e recapitulando: as misses do Direito penal (conseqncias desejadas oficialmente pelo sistema: de proteo de bens jurdicos, conteno da violncia etc.) no se confundem com suas funes (conseqncias reais do sistema penal). As principais misses do Direito penal so: (a) proteo de bens jurdicos; (b) conteno da violncia do Estado;(c) preveno da vingana privada; e (d) conjunto de garantias para todos (delinqentes e no delinqentes). A funo legtima do Direito penal a instrumental (ele serve de instrumento para a proteo de bens jurdicos). Mas na atualidade vem o Direito penal cumprindo pelo menos duas funes ilegtimas: (a) promocional (uso exagerado do Direito penal para promover certos bens jurdicos - exemplo: Direito penal ambiental); (b) simblica (utilizao do Direito penal para acalmar a ira da populao, transmitindo a sensao de que

  • 24 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    com ele todos os problemas sociais so resolvidos - exemplo: alguns aspectos nefastos da lei dos crimes hediondos).

    5. Quadro sintico:

    ^Misses* Conseqncias desejadas oficialmente pelo

    sistema Principais misses do Direito penal:

    . proteo de bens jurdicos

    . conteno da violncia do Estado

    . preveno da vingana privada e conjunto de garantias para todos (delin

    qentes e no delinqentes).Funes* Conseqncias reais do sistema penal

    Direito Penal < Funo legtima do Direito penal: a instrumental (ele serve de instrumento para a proteo de bens jurdicos).

    Funes ilegtimas que, verdadeiramente, o Direito penal vem cumprindo:. promocional (uso exagerado do Direito

    penal para promover certos bens jurdicos. Ex.: Direito penal ambiental)

    simblica (utilizao do Direito penal para acalmar a ira da populao, transmitindo a sensao de que com ele todos os problemas sociais so resolvidos. Ex.: alguns as- pectos da Lei dos Crimes Hediondos).

    6. Testes de compreenso do texto:

    1. Assinale a alternativa correta:

    a) O Direito penal especial deve ser assim classificado quando conta com princpios especficos (alm dos gerais),

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 25

    tem como fonte normativa um Cdigo ou um conjunto normativo prprio, aplicado por uma Justia especializada, tem como objeto um determinado tipo de delito e dirige-se a um grupo particular de pessoas.

    b) Segundo a totalidade da doutrina, no h falar-se em distino entre as misses e funes do Direito penal, consti- tuindo-se, a rigor, em expresses sinnimas.

    c) As misses do Direito penal so as conseqncias (acessrias) no desejadas, mas reais do sistema.

    d) As funes do Direito penal so suas finalidades, suas metas, ou seja, so as conseqncias queridas ou procuradas oficialmente pelo sistema.

    2. Assinale a alternativa correta:

    a) O Direito penal existe (finalidades do Direito penal), exclusivamente, para (a) a proteo de bens jurdicos (os mais relevantes, por isso se diz que a proteo penal fragmentria e subsidiria) e (b) a conteno ou reduo da violncia estatal (o Estado quando intervm para impor o castigo tambm pratica violncia).

    b) A preveno da vingana privada (na medida em que o Direito penal tenha incidncia, evita que a vtima assuma por si s a tarefa de castigar o infrator) e o fato de servir como conjunto de garantias para todos os envolvidos no conflito (e no processo) penal so algumas das finalidades do Direito penal.

    c) O Direito penal cumpre apenas uma funo ilegtima, segundo a doutrina nacional, qual seja a funo simblica.

  • d) O fenmeno da administrativizao do Direito penal uma decorrncia da funo simblica que este possui.

    3. So funes ilegtimas do Direito penal, quando passam a ter proeminncia na poltica estatal:

    a) a tica e promocional;

    b) a repressiva e simblica;

    c) a preventiva e repressiva;

    d) a promocional e simblica.

    7. Leitura complementar:

    1. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 3. ed.So Paulo: RT, 2002.

    2. QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introduo crtica.So Paulo: Saraiva, 2001.

    3. BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal no Brasil.Rio de Janeiro: Revan, 1990.

    Para aprofundar:GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho penal-

    PG. Madrid: UCM, 2000. p. 85 e ss; FERRAJOLI, Luigi. Direito e razo. Trad. Ana Paula Zomer et alii, So Paulo: RT, 2002.

    2 6 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • Captulo III

    DIREITO PENAL E CONSTITUIO

    1. Poltica criminal e Direito penal constitucionais:sendo o Direito penal o instrumento de controle (social) mais drstico com que conta o Estado, precisamente porque dispe dos meios coativos mais gravosos (penas e medidas de segurana), mais ameaadores aos direitos fundamentais da pessoa, desde o Iluminismo (veja em seguida as bases desse movimento filosfico) a preocupao do penalista crtico sempre foi a de construir limites ao exerccio desse poder.

    O Iluminismo (doutrina que surgiu na segunda metade do sculo XVIII) foi o coroamento (no mbito penal) do movimento de humanizao da pessoa humana (da civilizao) e teve incio com o Renascimento e a Reforma (sculo XVII). Nomes que mais se destacaram nessa poca, alm de Beccaria: Montesquieu, Rous- seau, Voltaire, Locke, Feuerbach, Bentham, Filangieri, Romagno- si, Lardizbal etc.

    O Iluminismo apareceu como reao contra o Direito e a jurisprudncia do Ancien Rgime vigentes at finais do sculo XVIII, bem como contra um sistema cujas leis correspondiam nica idia da preveno geral ou intimidao e tinha o delinqente (o escolhido) como exemplo para os demais. Leis vagas e atrozes, que eram aplicadas sob a gide de um processo penal arbitrrio, secreto, inquisitorial, baseado na confisso e no tormento (cf. GOMES, L. F. e YACOBUCCI, G. J., As grandes

  • transformaes do direito penal tradicional, So Paulo, RT, 2003, no prelo).

    Esse aberrante Direito penal exteriorizou-se no Brasil por meio das Ordenaes Afonsinas, Manuelinas e, particularmente, pelo Cdigo Filipino - Livro V das Ordenaes do Reino (1603 a 1830). Todas possuam, dentre outras, as seguintes caractersticas:(a) desumanidade; (b) crueldade; (c) desigualdade; e (d) arbitrariedade. Embora nossa independncia tenha ocorrido em 1822, as Ordenaes Filipinas vigoraram entre ns at 1830, que a data do primeiro Cdigo Penal brasileiro (Cdigo Penal do Imprio).

    O Direito penal do antigo regime, tambm em nosso pas, ca- racterizou-se por ser intensamente repressivo e intimidativo. No existiam regras penais ou processuais claras e seguras (no se falava em garantias). No se respeitava a legalidade estrita. A lei penal, alis, foi barbaramente instrumentalizada pelos detentores do poder. Lei, em ltima anlise, era o que o governante queria que fosse. No se concebia limites ao poder legiferante. Cuidava- se, como se v, de um Direito penal do terror.

    Predominava, quanto pena, a preveno geral negativa (leia-se: intimidao, que encontrou apoio depois na teoria da coao psicolgica de Feuerbach: o desprazer da pena tem que ser maior que o prazer do crime), a execuo exemplar das penas corporais (E um fenmeno inexplicvel a extenso da imaginao dos homens para a barbrie e a crueldade - Foucault) e sobretudo da pena de morte. As penas eram cruis e pblicas (cf. Vigiar e punir, de Foucault). No se observava, de outro lado, o princpio da personalidade da pena (o julgamento de Tiradentes no Brasil um exemplo marcante disso: no s ele foi condenado, tambm suas geraes futuras o foram).

    Particularmente significativa nesse perodo foi a obra de um precursor, Cesare Bonesana, conhecido como Marqus de Bec- caria, Dos delitos e das penas, de 1764; obra de grande difuso na poca, que representa o manifesto crtico (o ponto de partida) da orientao liberal no Direito penal, foi seu grito de guerra, assim como seu programa ttic. Beccaria criticou a irracionalidade, a

    MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 29

    arbitrariedade e a crueldade das leis penais e processuais do sculoXVIII.

    Partindo da idia de contrato social (Rousseau), Beccaria propugnou pelo princpio da legalidade dos delitos (legalidade criminal) e das penas (legalidade penal), pela convenincia de uma poltica de preveno do crime, assim como pela teoria utiili- tarista do castigo estatal (que deveria visar a evitar futuros crimes). Clamou pela proporcionalidade da reprimenda e dizia que a pena certa, rpida e proporcional ao delito mais eficaz que a pena severa, cruel (mais vale a certeza da punio que a comina- o de penas exageradas, mas que nunca ou quase nunca so cumpridas).

    Para combater tanta e inimaginvel tirania, o iderio filosfi- co-poltico do Iluminismo assentou-se:

    (a) na prioridade do indivduo perante o Estado;

    (b) na proclamao dos Direitos naturais que o Estado deve reconhecer e proteger;

    (c) na consagrao da razo humana. Desse modo levantou- se uma forte oposio ao Direito anterior, isto , arbitrariedade da justia criminal, instrumentalizao do Direito penal, ausncia de garantias, ao casusmo, crueldade das penas etc.

    O Direito penal nascido desse iderio libertador caracteriza-se:

    (a) pelo contratualismo de Rousseau: o contrato social funda-se na premissa de que os cidados cedem parcela de sua liberdade ao Estado, que representa a vontade geral e que se encarrega de proteg-los (para que todos tenham liberdade, cada um deve ceder uma parcela da liberdade individual ao Estado, que passa a ser o guardio das liberdades coletivas);

    (b) pelo utilitarismo: a pena tem finalidade preventiva geral negativa, isto , tem por objetivo a defesa da sociedade; antes do

  • M ANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    Iluminismo era acentuada a finalidade puramente retributiva da pena (castigo exemplar e pblico);

    (c) pelo legalismo: no h crime nem pena sem previso legal prvia. Feuerbach, que considerado o pai da cincia penal moderna, exprimiu de forma clara o princpio da legalidade. Recorde-se, entretanto, que o princpio da legalidade tem origem na teoria da separao dos poderes (Montesquieu) e foi defendido ardorosamente por Beccaria - o juiz est estritamente vinculado lei; -lhe defeso interpret-la;

    (d) pela secularizao: que significa a separao inequvoca entre o crime e o pecado: nem tudo que pecado crime; e

    (e) pela prisionizcio: nessa poca comea a difuso da pena de priso como sano penal: isso, alis, foi reivindicado - ironia do destino - como uma humanizao (diante da crueldade e brutalidade das penas ento vigentes). Mal sabiam os iluministas que essa pena humanista viria a se transformar, na atualidade, na maior crueldade do Estado. Alis, a priso, tal como cumprida, constitui uma das maiores vergonhas da civilizao nos sculosXIX, XX e XXL No se trata de afirmar que a pena de priso seja absolutamente abominvel. Sua forma de execuo, entretanto, o , indiscutivelmente.

    Os princpios limitadores do ius puniendi, no tempo do Iluminismo e da Escola clssica (veja em seguida as bases dessa Escola), eram extrados do Direito natural, leia-se, de ordens externas ao Direito penal (muitas vezes externas em relao ao prprio Direito), da sua relevncia (e vinculao) mais poltica que jurdica.

    A concretizao do ideal iluminista no mbito do Direito penal aconteceu ao longo do sculo XIX, com a Escola clssica, poca em que surgiram os primeiros Cdigos penais (Baviera 1813, Espanha 1848 etc.), com sentido claramente liberal. Foi a Escola clssica (Feuerbach, Carrara etc.) que concretizou, na esfera penal positiva (nos Cdigos), os ideais iluministas.

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 31

    O termo clssico foi criado pelo movimento positivista (Ferri, precisamente) com sentido depreciativo para designar uma srie (pouco homognea) de autores que no compartilhavam os posicionamentos positivistas (leia-se: pensamento voltado para a realidade, para o homem concreto etc.). , pois, um conceito referencial negativo.

    O que existe de comum entre os clssicos o mtodo lgico- abstrato (racionalista e dedutivo), assim como alguns dogmas (dos quais partiam). Em termos prticos, recorde-se que os clssicos foram os concretizadores dos ideais iluministas (leia-se: transformaram em leis e dogmas penais o que havia sido postulado pelo Iluminismo).

    Os clssicos edificaram suas majestosas concepes sobre o racionalismo e como para eles po havia mais cincia penal que o Direito punitivo (entendido idealisticamente, abstratamente), estu- davam-no com o mtodo lgico-abstrato. Enfocavam o Direito penal no com base no homem criminoso ou com base na realidade, seno a partir de certos princpios apriorsticos (concebidos a priori), de certos dogmas (a pena tem eficcia intimidativa) dos quais extraem as restantes proposies.

    Os postulados apriorsticos dos quais a Escola clssica extrai todo o sistema so, fundamentalmente, dois:

    (a) a concepo transcendental do Direito, cujo mdulo imutvel (cujo fundamento) a lei natural, sendo o delito um conceito meramente jurdico - no se estuda o delito segundo o direito positivo, sim, de acordo com o Direito ideal; e

    (b) o princpio do livre arbtrio do homem, com a conseguinte concepo da pena como retribuio ao ato culpvel e moralmente reprovvel (at hoje, diga-se de passagem, essa a concepo dominante).

    A principal tese da Escola clssica, em suma, seu principal dogma foi a afirmao do livre arbtrio, que consiste em sustentar que o ser humano capaz de se autodeterminar, de optar e decidir, no sendo assim mero brinquedo de foras divinas ou demonacas.

  • Ainda hoje essa a base da culpabilidade, que tem como eixo a exigibilidade de conduta diversa (o homem livre e nas condies em que agiu era dele exigvel comportamento distinto, conforme o Direito).

    A Escola clssica simboliza, de qualquer maneira, o trnsito (a passagem) do pensamento mgico, sobrenatural, divino (que marcou o Direito penal da Idade Mdia ou mesmo da poca das Monarquias), ao abstrato; da mesma forma que o positivismo implica a passagem ulterior do abstrato ao mundo naturalstico e concreto. Pensamentos mgico (divino), abstrato e concreto correspondem, portanto, ao Direito penal da Idade Mdia, da Escola clssica e da Escola positivista.

    De qualquer modo, certo que o mtodo abstrato, formal e dedutivo acabou afastando a Escola clssica do fenmeno criminal (concreto), e isso em um delicado momento histrico no qual a difcil adaptao de amplas camadas da sociedade da poca s duras exigncias do maquinismo e da industrializao reclamavam um controle eficaz do delito (os ndices de criminalidade aumentavam assustadoramente em razo do princpio da industrializao, e os penalistas continuavam estudando o Direito penal no mundo das idias, dos dogmas naturalistas. Esse descompasso entre o Direito penal (abstrato) e a dura realidade (concreta) fez com que uma nova Escola surgisse: o positivismo, que vamos ver logo abaixo).

    Alm de Feuerbach (que foi o autor do primeiro Cdigo Penal, em 1813 - Cdigo Penal da Baviera), Carrara citado como o autor paradigmtico do pensamento clssico (sua obra Programa de direito penal a expresso maior dessa Escola). Os seus postulados (concepo transcendental do Direito e princpio do livre arbtrio) so por ele mantidos expressamente. O Direito funda-se na lei natural, no na obra do legislador.

    O delito para Carrara (e toda Escola clssica) um ente jurdico, no natural. O delito no mais que a contradio norma (consoante Carrara: infrao da lei do Estado, promulgada para proteger a segurana dos cidados, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmente imputvel e politicamente danoso). No se considerava o delito como fenmeno

    MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 33

    humano, natural. O delinqente to-somente o sujeito ativo do delito. A contradio norma o fundamento da antijuridicidade.

    A Escola clssica contribuiu sobremaneira para a Cincia penal. A ela deve-se, alis, o prprio aparecimento da Cincia penal (como tal). A defesa das garantias individuais e sua reao contra a arbitrariedade e os abusos de poder seriam uma preocupao contnua, coerente com suas origens iluministas e com o liberalismo poltico pelo qual propugnava. Legalidade e humanidade so, ademais, outras bases do movimento clssico.

    As crticas dirigidas contra a Escola clssica so, na verdade, crticas (endereadas) ao seu mtodo racionalista e abstrato. Ela foi criticada e abandonada em razo de no cuidar do homem concreto, do delinqente real, da sociedade onde vive esse delinqente, da origem do delito etc. Mas no se pode negar que a origem do Direito penal moderno reside em suas razes.

    Na atualidade os limites do ius puniendi derivam da prpria Constituio. Se o poder de castigar emana da Carta Magna e se realiza mediante normas e decises judiciais, infere-se que tanto o legislador como o juiz (bem como o intrprete) acham-se vinculados aos princpios, regras e valores constitucionais (liberdade, igualdade, pluralismo, justia, dignidade da pessoa, racionalidade, proporcionalidade etc.), que j no se apresentam como limites externos, seno como princpios reitores internos da Poltica criminal e do Direito penal.

    Em outras palavras, o que se impe hoje conceber a Poltica criminal como Poltica criminal constitucional e o Direito penal como Direito penal constitucional. Por qu? Porque a Constituio traa (explcita ou implicitamente) os limites do poder punitivo, sobretudo por meio dos princpios informadores da poltica e do Direito criminal.

    2. Princpios constitucionais reitores do Direito penal e da Poltica criminal: considerando-se que a Constituio

  • contm inmeros preceitos que direta ou indiretamente conformam ou modulam o sistema punitivo, dela parece lcito inferir (desde logo) um conjunto de postulados poltico- criminais genricos que devem demarcar o mbito da atuao concreta (primeiro) do legislador e (depois) do juiz. As leis penais devem, assim, ser elaboradas, interpretadas e aplicadas de acordo com a Constituio.

    Alguns desses princpios poltico-criminais acham-se contemplados expressamente (princpio da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade etc.), outros implicitamente.

    Os que merecem especial destaque so: 1) princpio da exclusiva proteo de bens jurdicos; 2) da interveno mnima; 3) da materializao do fato; 4) da ofensividade; 5) da responsabilidade pessoal; 6) da responsabilidade subjetiva; 7) da culpabilidade; 8) da proporcionalidade; 9) da humanidade; 10) da dignidade; 11) da igualdade; e 12) da legalidade. Veremos cada um deles detalhadamente mais abaixo.

    3. Sistema penal legalista (formalista) versus sistema penal constitucionalista: a Justia penal legalista tem sua origem no Estado de Direito liberal (nascido no final do sculo XVIII e princpio do sculo XIX). Ganhou fora com a concepo positivista do Direito (Direito o que est escrito na lei). No mbito penal, como veremos em seguida, dois autores destacam-se nessa linha positivista legalista: Binding e Rocco (Escola Tcnico-Jurdica). De qualquer modo, jamais podemos confundir o positivismo criminolgico (Lombroso, Ferri e Garofalo, que orientaram a cincia penal para o homem concreto, para as estatsticas, para a realidade) com o positivismo jurdico (que direcionou o Direito penal para o mundo das normas e regras jurdicas vigentes).

    a) Do positivismo criminolgico

    3 4 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 35

    O positivismo criminolgico ou Escola positiva (final do sculo XIX) retratou (consoante Comte) o momento cientfico da cincia penal e superou, assim, as etapas mgica ou teolgica (pensamento antigo) e abstrata ou metafsica (racionalismo iluminista, da Escola clssica).

    Lombroso (1835-1909), Ferri (1856-1929) e Garofalo (1851- 1934) foram os trs representantes mais ilustres da Scuola positivista (italiana). O seu veculo de divulgao foi a revista Archivi di psichiatria, scienze penali e antropologia criminale.

    Lombroso representa a linha antropobiolgica. Sua teoria da criminalidade acentua a relevncia dos fatores biolgicos individuais, assim como o carter atvico-regressivo do delinqente.

    Ferri simboliza, no positivismo criminolgico, a diretriz sociolgica. Mas leva em conta, tambm, os fatores antropolgicos e os fsicos ao fundamentar a gnese da criminalidade. Sua contribuio primordial acontece mais no mbito poltico-criminal que no criminolgico ( dele a teoria dos substitutivos penais: melhores que a penal so outras polticas: econmica, social, educacional etc.).

    Garofalo sistematizou e divulgou o pensamento positivista, suavizando extremismos doutrinrios. Jurista conservador, dedicou todo seu esforo a transformar os postulados tericos do positivismo em mdulos normativos que inspirassem as leis e transformassem a realidade por meio da prtica diria dos juizes.

    A Escola positivista veio como reao Escola clssica e deu origem denominada Criminologia cientfica (como j salientado, os ndices de criminalidade, no final do sculo XIX, aumentavam vertiginosamente; por isso, no podia o Direito penal afastar-se da realidade).

    No mbito criminal releva sublinhar que o positivismo criminolgico significou, por conseguinte, uma mudana radical no enfoque do delito: os clssicos lutaram contra o castigo, contra a irracionalidade do sistema penal do antigo regime; j a misso histrica do positivismo seria lutar contra o delito, por meio de um

  • conhecimento cientfico de suas causas, com a finalidade de proteger a ordem social, alis, mais precisamente, a nova ordem social da nascente sociedade burguesa industrial.

    A passagem do classicismo (estudo abstrato do crime) para o positivismo (estudo concreto do crime e do delinqente) foi influenciada pela obra de Darwin (1809-1882). Trs dos seus postulados seriam assumidos pela Escola positiva:

    (a) a concepo do delinqente como espcie atvica, leia-se, no evoluda;

    (b) a mxima significao concedida carga ou ao legado que o indivduo recebe por meio da herana; e

    (c) uma nova imagem do ser humano, privado do senhorio (da capacidade de autodeterminao, da racionalidade) e do prota- gonismo que lhe conferiu o mundo clssico.

    A caracterstica diferencial do positivismo criminolgico reside primordialmente no mtodo. o mtodo positivo, emprico, experimental, que trata de submeter constantemente a imaginao observao, bem como os fenmenos sociais s leis frreas da natureza.

    O objeto de estudo do penalista, segundo a Escola positiva, o homem concreto, o delito e suas causas etc. Nisso distingue-se o positivismo criminolgico (ou cientfico: de Lombroso, Ferri e Garofalo) do positivismo jurdico (que tem como objeto o direito vigente - Binding e Rocco).

    Do ponto de vista histrico-poltico, o positivismo contribuiu para a consolidao e defesa da nova ordem social que se transformou, assim, em um ponto absoluto inquestionvel. Era necessrio, na poca, fortalecer a nascente ordem social (burguesa), legitim-la, proteg-la, e esse foi o projeto poltico do positivismo, que tratou de proteger a nova ordem burguesa.

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  • DIREITO PENAL - Parte Geral 37

    A pena tem funo de proteo da ordem social estabelecida, as sanes devem ser exemplares (pena de morte, inclusive) e o delinqente um anormal, um selvagem.

    O crime um fato real, no um ente jurdico (como dizia Carrara). O fundamental o conceito natural de delito, no o jurdico; primordial o delinqente, no o delito; o delinqente um ser diverso, subumano, anormal, castiga-se o autor no o fato, as medidas devem tomar o lugar da pena, determinismo (o homem condicionado, determinado, pela sua herana gentica) no lugar do livre arbtrio (o homem livre, por natureza), princpio da responsabilidade social em substituio individual.

    As formulaes mais extremadas do positivismo renunciam, inclusive, ao nullum crimen nula poena sine lege e sugerem uma radical desjudicializao da funo penal, que passaria das mos do juiz s dos mdicos, antroplogos, socilogos, psiclogos etc., isto , do mundo das togas pretas para o dos aventais brancos.

    Mais importante que a pena so os substitutivos penais, isto , um conjunto de medidas de ordem econmica, social, poltica, educativa, cultural, religiosa, familiar etc., que incidam na realidade social de maneira preventiva contramotivando as influncias crimingenas da mais diversa ndole.

    O final do sculo XIX representou um momento de progresso inusitado no mbito das cincias naturais. a idade da cincia (do cientificismo). A conduta humana (o fenmeno humano) reduzido, assim, a um puro fenmeno natural.

    uma poca, portanto, marcada pelo nihilismo axiolgico (leia-se: no h nenhuma preocupao com os valores - isso s viria a se modificar com o neokantismo, que vamos definir melhor mais abaixo). Tudo funciona como as regras da natureza. O darwi- nismo natural toma conta inclusive da cincia penal. O delito tambm enfocado naturalisticamente. A conduta s um movimento corpreo (de fazer ou no fazer). O Direito penal estudado tal como a botnica.

  • O mtodo do positivismo o da investigao experimental. O crime, portanto, no deve ser enfocado do ponto de vista ideal, racional, seno como fenmeno natural (Ferri). O que importa a observao da realidade emprica. O mtodo, em suma, o material, concreto e indutivo (do particular para o geral). Objeto de estudo: a realidade emprica, o homem concreto, o homem delinqente (no o Direito natural, o homem ideal).

    Assim construiu Lombroso sua teoria do criminoso nato, depois de examinar mais de vinte e cinco mil detentos. Pelas suas expresses faciais, pelo tamanho da calvcie, da orelha, do queixo, da testa etc. chegou a um prottipo de criminoso (tipo de criminoso). Em sua fase mais radical chegou a dizer que haveria um criminoso nato (o sujeito, pelas suas caractersticas, j nasce criminoso).

    A pena, para os positivistas, no pode ter fundamento tico ou racional (no pode estar fundamentada na liberdade do homem). Seu fundamento social. A ao humana, de outro lado, no advm de nenhum livre arbtrio, causalmente determinada. A natureza determina o que ser o comportamento do indivduo. Vale, portanto, o determinismo, no o livre-arbtrio. que o crime se deve a umas determinadas causas. Por isso que ele explicvel biopsicologicamente ou antropologicamente (Lombroso) ou ainda sociologicamente (Ferri).

    O que justifica a interveno penal, em conseqncia, no a culpabilidade (ou a necessidade de reprovao pelo dano causado e na medida desse dano). Ela resulta fundada na periculosidade ou temibilidade do infrator, que um animal, um anormal, um selvagem. A sociedade tem que se defender desses anormais, aplican- do-lhes medidas de segurana, ancoradas na periculosidade. Na Escola clssica a culpabilidade fundamentava a pena; no positivismo a periculosidade passa a ser a base das reaes do Estado (leia-se: das medidas que o Estado deve adotar perante o criminoso).

    E a partir do positivismo lombrosiano, por conseguinte, que surgem as medidas de segurana. Os positivistas mais radicais queriam que elas fossem a nica sano no Direito penal. Em fase

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  • DIREITO PENAL - Parte Geral 39

    posterior, como veremos, elas passaram a conviver com as penas. Aparece, ento, em muitos pases, o chamado sistema do duplo binrio, que significa aplicar pena mais medida de segurana para o mesmo ru. Isso vigorou no Brasil at 1984. Nosso sistema atual diferente. E o que alguns autores chamam de vicariante correto seria dizer alternativo - (pena ou medida de segurana). Nunca se impe (hoje no Brasil) a um mesmo ru (pelo mesmo crime) pena mais medida de segurana. No caso do semi-imputvel tampouco se observa o duplo binrio, porque, na verdade, em regra o juiz lhe aplica a pena (diminuda) e quando necessita de especial tratamento curativo o juiz substitui a pena por medida de segurana. Como se v, no aplica conjuntamente pena mais medida de segurana.

    Da trilogia garantista liberdade-culpabilidade-pena passa-se ao trilogismo antigarantista, preconceituoso e irracional do deter- minismo-periculosidade-medida de segurana (por tempo indeterminado, evidentemente). Segundo nossa perspectiva, a medida de segurana por tempo indeterminado fere a Constituio Federal (que probe a privao perptua da liberdade). A jurisprudncia, entretanto, em geral, admite o texto legal (CP, art. 97) sem restries. Essa posio legalista conflita com a viso constitucionalista sobre o tema.

    Para o positivismo a finalidade da reao estatal ao delito, como se v, a preveno especial (no seu sentido negativo): ino- cuizao (separao, segregao) do animal delinqente, que deve se submeter a uma medida de segurana, at curar-se (portanto, sem prazo limitado).

    Os principais aspectos negativos da Escola positivista foram: exacerbao da defesa social, despersonalizao do delinqente, instrumentalizao da pessoa humana pelo poder punitivo estatal, desprezo pelas garantias legais e jurisdicionais.

    O maior erro histrico (e preconceituoso) dessa Escola foi supor (e esse erro deve ser atribudo principalmente a Lombroso) que criminosos somente eram os que estavam recolhidos nos crceres. A partir do exame deles que se construiu o prottipo do

  • MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    criminoso: cor tal, expresso facial x, orelha y, maxilar alongado, testa grande etc. Segundo a verso positivista, criminoso , consoante feliz sntese de Zaffaroni, o que tem cara de pronturio.

    Essa viso preconceituosa do criminoso sempre foi (e ) muito favorvel aos que detm ou controlam o exerccio do poder, porque se livram da ateno e da reprovao pblica mesmo quando cometem os mais brbaros crimes econmicos, financeiros, previdencirios, tributrios, bancrios etc. Somente agora tudo isso est mudando, embora lentamente.

    A imagem racista e preconceituosa do criminoso uma das (mais) pesadas heranas do segundo milnio, que no se coaduna com a Criminologia do princpio do terceiro milnio, para quem o criminoso um ser normal, isto , todas as classes delinqem (cf. Antonio Garca-Pablos de Molina e Luiz Flvio Gomes, Criminologia, 4. ed., RT, 2002).

    Que todas as classes sociais delinqem j no h nenhuma dvida. O que o Direito penal precisa no novo milnio descobrir como se faz a distribuio dos castigos com igualdade, mesmo porque a essncia da justia, como se sabe desde Aristteles, reside na igualdade entre os homens.

    b) Do Positivismo jurdico normativista e Escola tcnico- jurclica

    O positivismo criminolgico (Lombroso, Ferri, Garofalo) nasceu como reao aos excessos formalistas dos clssicos, que deduziram seu sistema racional de certos princpios apriorsticos naturais, ideais, afastados do mundo emprico e real. Mas esse positivismo incorreu, tambm, em outros excessos, sobretudo quando tentou reduzir o Direito (penal) a um captulo da Sociologia criminal explicando o delito (como fato real) com o mtodo experimental prprio das cincias naturais. Como se v, ambos no tinham como objeto o Direito positivo (o Direito vigente, isto , o Direito imposto e contemplado nas leis).

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 41

    No primeiro caso (no tempo dos clssicos), o objeto da cincia do Direito se trasladava ao mundo ideal, ao Direito natural (aos princpios naturais). No segundo, ao mundo emprico, realidade no jurdica, e sim metajurdica (o Direito deve cuidar do crime e do criminoso concreto, real). A conseqncia, em ambos enfoques, seria muito semelhante: o abandono absoluto do Direito positivo, que o objeto do Direito penal, segundo a Escola tcnico- jurdica.

    Fazia falta uma metodologia apropriada s caractersticas singulares das cincias jurdicas.

    O classicismo, em sntese, construa seus brilhantes sistemas com o mtodo prprio da Filosofia enquanto o positivismo criminolgico equiparava o Direito s cincias da natureza e adotava o mtodo experimental, o positivo (emprico).

    A tentativa mais evidente de fixar um novo objeto e mtodo para a Cincia do Direito perante os excessos citados deu-se, na Itlia, com o tecnicismo jurdico e, na Alemanha, com a direo dogmtica. Fazem parte ambos do denominado formalismo normativista (que consiste em uma viso do Direito penal como uma cincia formalista, legalista, atrelada s normas que emanam dos textos legais).

    Na realidade estamos diante de mais uma manifestao do esprito positivista, que opera uma sutil metamorfose quanto ao objeto da atividade jurdica. Dito de outra maneira: o positivismo cientfico (de Lombroso, Ferri e Garofalo) transformou-se em positivismo jurdico (antes o objeto do Direito penal era o homem delinqente, o delito, depois o objeto passou a ser o direito positivo, o direito posto, o Direito vigente).

    A passagem do positivismo cientfico (anlise do delito e do delinqente segundo as regras das cincias naturais) ao positivismo jurdico (o Direito tem como objeto o estudo daquilo que est positivado, isto , escrito nas leis) teve como fatores decisivos o impacto da Escola histrica assim como o movimento codificador.

  • Paradoxalmente, a Escola histrica, que nasceu como reao ao jusnaturalismo, colaborou, com eficcia, para a consolidao de um mtodo jurdico preocupado com o rigor lgico e com as construes sistemticas abstratas: parecia inclinada a um socio- logismo jurdico e, no entanto, engendraria um normativismo e um dogmatismo sem precedentes.

    O movimento codificador, por outro lado, forneceu a necessria matria-prima para a transformao do positivismo criminolgico (cientfico) em positivismo jurdico, com a particularidade de que, ao se superar a pluralidade legislativa, o Direito positivo - que correspondia s premissas liberais - cobrava ainda maior interesse como objeto de investigao.

    A transformao do positivismo cientfico em positivismo jurdico, de qualquer modo, apresenta diferenas marcantes quando comparamos a Itlia com a Alemanha. Na Itlia, a primeira manifestao do positivismo cientfico foi o avassalador positivismo naturalista (Escola positiva italiana: Lombroso, Ferri e Garofalo).

    O positivismo naturalista reclamava como objeto da atividade jurdica a realidade emprica - o delito entendido como fenmeno real. Isso explica o abandono da elaborao do Direito positivo na cincia penal italiana, em comparao com sua prpria doutrina jusprivatista, que j tinha todas as caractersticas do positivismo jurdico desde a segunda metade do sculo XIX.

    Na Cincia penal alem no houve um positivismo natura- lstico, paralelo Escola positiva italiana, que concebesse o delito exclusivamente como fato real, pertencente ao mundo emprico, nem que reclamasse para seu estudo o mesmo mtodo das cincias naturais. Na Alemanha o positivismo sempre foi o jurdico, com a caracterstica de que proibia qualquer referncia realidade emprica ou qualquer juzo metajurdico.

    Os dois autores mais destacados do movimento positivista ju- rdico-penal foram Binding (na Alemanha) e Rocco (na Itlia).

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  • DIREITO PENAL - Parte Geral 43

    Foi da maior importncia para o positivismo normativista a contribuio de Binding, o ltimo representante do liberalismo, cuja obra Die normen und ihre ubertretung (As normas e sua violao) significa na Cincia do Direito o ponto mais elevado do positivismo. Binding, que se orgulhava de estudar exclusivamente o direito positivo, acabou influenciando a Escola italiana tcnico- jurdica e decisivamente o pensamento jurdico-penal de quase todo sculo XX.

    O rompimento desse sistema formalista s viria a acontecer (de modo claro e inequvoco) em 1970, com Roxin. No Brasil, entretanto, a Dogmtica penal, em geral, continua ainda muito atrelada ao positivismo legalista (normativista) fundado por Binding.

    O que mais marcou o pensamento de Binding no foi o fato de se dedicar exclusivamente ao Direito positivo, mas sim a negao de legitimidade a todo juzo valorativo ou referncia realidade metajurdica na tarefa dogmtica. O jurista no tem que se preocupar com o social ou com o valorativo. Deve ser neutro. Fundamental encontrar lgica no seu pensamento, na construo do seu castelo jurdico. Embelezamento e lgica so as palavras de ordem. No a justia do caso isolado. O nihilismo axiolgico (neutralidade valorativa e crtica) do penalista do sculo XX (em geral) gritante.

    Binding prescinde de objetivos secundrios da pena, como, por exemplo, o da preveno especial, porque o Direito positivo - e a teoria das normas - confirma que o objetivo fundamental da pena pblica s pode ser um: a conservao do senhorio do Direito sobre os culpveis, segundo a medida da culpabilidade. A pena tem cunho retributivo e o que vale o Direito penal do fato, no o do autor (fundado na periculosidade). O retribucionismo de Binding, historicamente, acha-se ancorado na doutrina de Kant e Hegel.

    O jurista, dizia Binding, no deve ser escravo da letra da lei. Deve procurar seu esprito, sua razo objetiva. Deve dar o sentido da lei, no o dos legisladores. Apesar dessa preocupao, certo que a dogmtica penal do sculo XX - insista-se, ex abun-

  • 4 4 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    dantici - acabou resumindo-se (em geral) a um formalismo legalista sem precedente. A funo do penalista (comumente) foi a de explicar e justificar a letra da lei. Com isso o Direito penal foi perdendo sua (deficiente) coerncia (contando hoje com penas desproporcionais, ignorncia total do bem jurdico, menosprezo da ofensividade etc.).

    Escola tcnico-jurdica: o positivismo cientfico (na Itlia) efetivamente se transformou em positivismo jurdico com a denominada direo ou Escola tcnico-jurdica, que sofreu influncia do formalismo normativista alemo. No se trata propriamente da dogmtica alem, seno de uma concreta direo da mesma (o formalismo positivista), que refutava qualquer influncia da realidade emprica ou qualquer juzo metajurdico.

    As concepes metodolgicas de Arturo Rocco encontram-se formuladas em seu conhecido discurso de Sassari, pronunciado em 15 de janeiro de 1910 (11 problema e il metodo delia scienza del diritto penal).

    Para Rocco a nica sada vlida a delimitao do genuno objeto da Cincia do Direito assim como a aplicao do mtodo adequado (de acordo com o princpio da intercorrelao entre o mtodo e o objeto).

    O objeto - segundo o autor - o Direito positivo, j que s este pode ser o objeto adequado de uma Cincia jurdica. O mtodo ajustado a este objeto o tcnico-jurdico-

    O cunho positivista que est presente na metodologia de Rocco, que concebe o Direito positivo como factum, muito evidente. E no porque o nico objeto da Cincia jurdica seja o Direito positivo, mas, sobretudo, porque propugna por sua contemplao estritamente jurdica, rejeitando toda valorao metafsica, jusnaturalstica ou emprica que possa macular a natureza jurdica da Cincia do Direito ou o mtodo jurdico que esta reclama.

    Para Rocco, o mtodo tcnico-jurdico composto de trs fases: (a) fase exegtica; (b) fase sistemtica; e (c) fase crtica. As

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    duas primeiras descobrem como o Direito positivo, a ltima, como deveria ser. Como admite um momento crtico, seu positivismo considerado moderado.

    A primeira fase - a exegtica - persegue a obteno de dados empricos, aos quais depois se aplicar o mtodo indutivo- dedutivo, a fim de averiguar o sentido do Direito positivo. Nesta fase interpretativa conta com papel decisivo o bem ou interesse que a norma tutela (interpretao teleolgica), nica forma, segundo Rocco, de evitar os excessos de uma contemplao forma- lista da lei, baseada exclusivamente em sua estrutura externa.

    A segunda fase a dogmtica, ou melhor, sistemtica. Nela, partindo dos dados obtidos na fase anterior, elabora-se o sistema. O procedimento a seguir o da sntese, enquanto na fase anterior era o analtico. Captam-se as distintas partes de uma instituio, que se reestruturam e se coordenam com a ajuda (to-somente) da lgica. Aplicando-se o mtodo indutivo chega- se a alguns dogmas e a um sistema; deles podem ser deduzidas conseqncias relevantes para a aplicao da lei. So, pois, os dois momentos - o indutivo e o dedutivo - que caracterizam o mtodo das cincias naturais.

    A maior crtica Escola tcnico-jurdica resume-se no seu formalismo. Ainda que Rocco tenha procurado evitar isso, certo que a dogmtica que se construiu com base no seu mtodo acabou caindo num formalismo abominvel (positivismo extremo, lega- lismo acrtico, cincia penal reprodutora do pensamento formalis- ta). Os dogmticos penais do sculo XX, em geral, esqueceram-se do momento crtico. No trabalharam em regra com a razoabilida- de de cada ensinamento, tampouco com a justia de cada caso concreto. Confiaram exageradamente no legislador. A preocupao maior sempre foi com a beleza do castelo jurdico, com a lgica do sistema, no com a medida correta de cada caso.

    De qualquer modo, certo que a cincia penal do sculo XX, de um modo geral, especialmente no Brasil, esqueceu quase que por completo esse momento crtico. E s se preocupou com o Direito como ele (em poucos instantes como ele deveria ser). O positivismo mais extremado (o jurista no tem que fazer qual-

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    quer valorao sobre o seu objeto de estudo) o que preponderou na dogmtica penal do sculo passado (especialmente no nosso pas). No havia, portanto, muita preocupao com a justia de cada caso concreto. Importava mais os conceitos e a lgica do sistema que o resultado justo em cada caso. A beleza do palcio do Direito era mais importante que a deciso concreta justa em cada caso.

    Expresso inequvoca dessa viso formalista do Direito o princpio da insignificncia. Os que continuam aferrados ao velho ensino jurdico positivista no admitem a insignificncia como causa de excluso da tipicidade (porque no previsto explicitamente tal princpio no Direito, salvo o militar). Os que no concebem a presena do princpio da insignificncia no Direito penal nunca leram Roxin, no sabem que agora devemos interpretar todas as categorias do delito (tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade) de acordo com os princpios poltico- criminais (interveno mnima, razoabilidade etc.).

    O positivismo jurdico (seja o normativista - Binding e Rocco - , seja o sociolgico - F. von Liszt), apesar dos seus pontos crticos e embora tenha se transformado num puro formalismo normativista (apego exagerado letra da lei), trouxe relevantes contribuies para o Direito penal. Alis, pode-se dizer que ele foi o responsvel pelo surgimento da Dogmtica penal. De outro lado, nessa poca que se descobriu que todo delito possui caractersticas comuns. Nesse tempo o delito comea a ser dividido em requisitos, que so estudados lgica e seqencialmente (tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade). A responsabilidade penal s pode ser afirmada quando presentes esses requisitos comuns. De qualquer modo, na atualidade, devemos refutar o modelo de Justia que ele implantou, porque no tem nenhum (ou tem muito pouco) compromisso com a justia de cada caso concreto.

    O modelo de Estado e de Direito penal do positivismo jurdico foi incapaz de conter a onipotncia do legislador. Uma das mais importantes garantias que procurava oferecer o originrio Estado de Direito era a da legalidade dos delitos e das

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    penas. Mas ela logo se transformou em uma garantia puramente formal, porque por meio da lei tambm podem ser cometidas incontveis arbitrariedades. Os governos autoritrios governam mediante lei e justamente por isso que se pode questionar o positivismo formalista de cunho kelseniano (que afirmava que a justia era inalcanvel; a justia a que vem estampada no texto legal).

    A lei, uma vez aceito o sistema legalista mais radical, no precisaria constituir um paradigma de racionalidade, seno pura expresso da vontade do legislador. O Estado, por sua vez, assume (nesse sistema) a posio de fonte nica do Direito. A supremacia racional dos filsofos iluministas passou a ser concebida (por razes formais) como supremacia da lei.

    Em muitas partes do planeta, at os dias de hoje, predomina esse tipo de legalismo positivista, isto , um tipo de ideologia jurdica que prescinde de qualquer condicionamento constitucional e confia (cegamente) na plena soberania da lei (a lei pode tudo, no depende de nada e um dogma para o jurista assim como para o juiz).

    Nas mos do legislador foi concentrada toda a distribuio do poder punitivo estatal, porm, sem nenhuma trava (material) que lhe impedisse de utiliz-lo indiscriminadamente. No h lei (enquanto norma infraconstitucional) que crie obstculo ao tirano de praticar arbitrariedades. No h gnero algum de violncia ou usurpao que no acabe por ficar justificado por meio de uma lei elaborada para esse fim (lei ad hoc). Com o nazismo foi assim, em todas as ditaduras latino-americanas foi assim e sempre ser assim, enquanto nos perdermos nos labirintos do legalismo positivista.

    Como conseqncia desse positivismo legalista disseminou- se uma progressiva degenerao do princpio da legalidade, particularmente da legalidade criminal (no h crime sem lei anterior que o defina - CP, art. Io), penal (no h pena sem prvia comina- o legal - CP, art. Io), jurisdicionl (no h coao sem lei) e

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    execucional (no h execuo de pena ou medida de segurana sem lei - LEP, art. 2.) (embora representem, naturalmente, marcos insuperveis na Justia penal). O voluntarismo positivista termina (quase sempre) desaguando em um puro irracionalismo (antidemocrtico) de conseqncias incomensurveis.

    As pessoas em geral (e o estudante em particular) j no mostram, na verdade, muito respeito pela lei. Apesar disso, o lamentvel que pouco est sendo feito (de fecundo, de concreto) no sentido de se inverter essa tendncia formalista. A formao acadmica especializada, alis, em geral, procura (unicamente) fazer com que o estudante tenha uma certa habilidade no manejo dos textos legais e (normalmente) no passa disso. Essa tradio merece radical transformao. O estudante e o jurista que no conhecem as duas ordens normativas (a constitucional e a legal) no so um estudante ou jurista do terceiro milnio.

    O moderno constitucionalismo, bem como o fenmeno da internacionalizao do Direito (e dos direitos) foram os responsveis pela nova configurao do velho e formalista Estado de Direito, que se transformou em um Estado Constitucional e Democrtico de Direito , que significa, em ltima instncia, o Estado dos direitos fundamentais.

    As bases dessa evoluo so (segundo Ferrajoli, Direito e razo, So Paulo: RT, 2002): (a) o carter rgido da Constituio; e, (b) sobretudo, a elevao de alguns valores fundamentais categoria de critrios materiais ou substanciais de legitimao de todas as aes, incluindo-se as do prprio poder legislativo.

    Essas duas caractersticas do moderno constitucionalismo vo no sentido de se delimitar a onipotncia do legislador. A garantia do Estado Constitucional e Democrtico de Direito, a propsito, vai muito alm do (puro) formalismo e conta com a pretenso de delimitar o mbito de mobilidade do legislador ordinrio (infraconstitucional), impondo sua vinculao a tais valores mate

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    riais e substanciais contemplados nos textos constitucionais e internacionais.

    Se a preocupao central (de toda a existncia do sistema penal comprometido com as conseqncias de cada deciso) a sua justia concreta, importa sublinhar a falta de atualidade (alis, a disfuncionalidade) de alguns dogmas positivistas, como o que diz que o legislador conta com total liberdade de eleio do contedo das normas jurdicas ou o que afirma que o juiz e o intrprete no podem valer-se de outros critrios de valorao que no sejam os contemplados previamente na lei.

    Na atualidade, resulta como inteiramente refutvel o absoluto dedutivismo silogstico, tpico da jurisprudncia dos conceitos. De qualquer modo, no se pode negar que, na elaborao da teoria (constitucional) do fato punvel (assim como no momento posterior de valorao de um caso concreto), h uma etapa inicial de pura subsuno formal, que deriva dos princpios da materializao (ou exteriorizao) do fato e da legalidade. Mas isso no significa que dessa subsuno formal da conduta lei tenhamos que deduzir automaticamente a existncia do fato punvel.

    Em outras palavras, o fato punvel j no regido pelo mero juzo de subsuno, seno tambm pela ponderao que incumbe ao juiz (todo crime tem seu lado natural e ontolgico assim como o axiolgico). Essa ponderao, como veremos, exigida no momento de se constatar a imputao objetiva da conduta e do resultado jurdico ( preciso verificar se a conduta criou um risco proibido e se desse risco resultou uma leso ao bem jurdico).

    O juiz legalista corre sempre o risco de reproduzir eventuais aberraes do legislador. Por exemplo: friamente analisado, o beijo lascivo constitui no Direito brasileiro atentado violento ao pudor (CP, art. 214). crime hediondo, punido com pena mnima de seis anos (exatamente igual do homicdio - CP, art. 121). O juiz formalista, que no se preocupa com o resultado prtico nem com o senso tico ou eqitativo

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    da sua deciso, aplica a referida pena e ainda se diz de conscincia tranqila (porque tudo est na lei!).

    Se por um lado no h como deixar de reconhecer a virtual dimenso garantista do processo de constitucionalizao do Direito penal (nem sempre, entretanto, desenvolvido sem tropeos e retrocessos), por outro no se pode ignorar que referido processo est estruturado sobre as bases de uma dupla via, isto , tambm h um enorme nmero de clusulas penais contidas nas constituies (a isso se d o nome de penalizao da Constituio).

    No desprezvel, no caso brasileiro, a quantidade de clusulas penais que demarcam a penalizao da Constituio. Merecem enumerao as principais, qe so: art. 5., inc. XLI: a lei punir qualquer discriminao atentatria dos direitos e liberdades fundamentais; art. 5., inc. XLII: a prtica do racismo constitui crime inafianvel e imprescritvel, sujeito pena de recluso, nos termos da lei; art. 5., inc. XLIII: a lei considerar crimes inafianveis e insuscetveis de graa ou anistia a prtica da tortura, o trfico ilcito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evit-los, se omitirem; art. 5., XLIV: constitui crime inafianvel e imprescritvel a ao de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrtico; art. 173, 4.: a lei reprimir o abuso do poder econmico que vise dominao dos mercados, eliminao da concorrncia e ao aumento arbitrrio dos lucros; art. 173, 5.: a lei, sem prejuzo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurdica, estabelecer a responsabilidade desta, sujeitando-a s punies compatveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econmica e financeira e contra a economia popular; art. 225, 3.: as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitaro os infratores, pessoas fsicas ou jurdicas, a sanes penais e administrativas, independentemente da obrigao de reparar os danos causados.

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    As tendncias resultantes de todos os possveis vnculos entre a Constituio, a Poltica criminal e o Direito penal, como se v, so ambivalentes. Se de um lado essas relaes so reconduzveis a um modelo de Direito penal de mnima interveno (porque da constituio que extramos o princpio da interveno mnima, ofensividade, responsabilidade pessoal etc.), de outro, tambm possvel que, na prtica, ocorra exatamente o contrrio (Direito penal de interveno mxima). Nesse sentido tem se comportado (predominantemente) o legislador brasileiro nos ltimos anos, que acabou criando um verdadeiro caos normativo.

    Trs so as possveis vias de correo dessa hiperinflao legislativa:

    (a) reconhecimento (real e efetivo) da eficcia limitadora dos princpios reitores do ius puniendi (interveno mnima, ofensividade etc.);

    (b) a adoo de um amplo processo de redimensionamento (descriminalizao) do Direito penal; e

    (c) um rigoroso controle de constitucionalidade das leis penais. Importa-nos agora dar destaque a essa terceira via, partindo-se da premissa bsica do duplo ordenamento jurdico.

    Impe-se reiterar: no Estado Constitucional e Democrtico de Direito temos duas ordens normativas: uma constitucional e outra ordinria. E normalmente so conflitivas. Como enfatiza Ferrajoli (Direito e razo, So Paulo, RT, 2002), incoerncia e falta de plenitude, antinomias e lacunas so, dentro de certos limites, vcios inevitveis no Estado constitucional de Direito (...); a possibilidade destes vcios representa o trao distintivo e, ainda que paradoxalmente, o maior mrito do Estado Democrtico de Direito.

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    Dentro do velho esquema positivista dogmtico e tradicional a nica providncia que restava ao penalista e ao juiz, ao constatar uma antinomia entre a lei e a constituio, era a de criticar o sistema jurdico desde fora (dogmtica crtica externa), propondo uma reforma legislativa para adequar o texto legal (formal) ao contedo material de um determinado princpio (da ofensividade, da exclusiva proteo de bens jurdicos, da proporcionalidade etc.).

    Segundo o novo paradigma garantista do Estado Constitucional e Democrtico de Direito, em que prospera o conceito de legalidade complexa, porque vem ela definida em dois nveis distintos (legal e constitucional), diante de uma incoerncia, podemos (agora) propor desde dentro as devidas correes ao sistema.

    A diferena mais marcante entre o sistema penal legalista (do sculo XX) e o constitucionalista (do terceiro milnio) que agora o penalista, o intrprete e o juiz criminal j no esto atrelados ao formalismo legal, ao mero juzo de subsuno do fato letra da lei, ao silogismo formal etc. Fundamental, agora, fazer valer a justia em cada caso concreto, integrando-se (conforme Roxin, Derecho penal-PG, trad. Luzn Pena e outros, Madri, Civitas, 1997) os princpios poltico-criminais constitucionais no Direito penal.

    5. Objeto da cincia penal: De tudo quanto foi exposto pensamos que o penalista do sculo XXI, se quer subordinar- se razoabilidade, deve (em toda sua atividade cientfica) preocupar-se no s com a sistematizao do direito vigente (qual o seu contedo atual), seno tambm com qual deveria ser o seu contedo legtimo. E isso se toma possvel quando ele conhece os resultados da investigao criminol- gica. A integrao entre Direito penal, Poltica criminal e

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 53

    Criminologia inevitvel, salvo se o penalista no sculo XXI quer perpetuar (conservadoramente) o modelo do sculo XX.

    No podemos confundir esses trs setores das cincias criminais: a Criminologia uma cincia interdisciplinar e emprica que estuda o delinqente, o delito (como fato da vida social ou fato individual), a vtima e as formas de controle social (cf. Garca-Pablos de Molina e L. F. Gomes, Criminologia, 4. ed., So Paulo, RT, 2002); a Poltica criminal valora a legislao penal vigente e cuida das formas de reao ao delito assim como das medidas possveis para sua preveno e controle (cf. A. Bianchini, Pressupostos mnimos da interveno penal, So Paulo, RT, 2001); o Direito penal (ou cincia do Direito penal), por seu turno, ou, mais precisamente, a Dogmtica penal, preocupa-se com o estudo, conhecimento, interpretao e sistematizao das normas jurdicas no mbito criminal.

    As trs cincias citadas constituem trs momentos do fenmeno criminal: seu estudo emprico, as medidas de combate e o estudo e sistematizao das normas vigentes. Esses trs momentos se completam com dois outros: o processual e o execucional. A cincia penal, quando enfocada de modo totalizador (globalizador), tal como queria F. von Liszt (ge- samte Strafrechstwissenschaft), significa, assim, na atualidade, estudar cinco segmentos, que se complementam: o emprico, o poltico-criminal, o penal, o processual penal (ou jurs- dicional) e o execucional.

    O criminlogo estuda o fenmeno criminoso sem as amarras do Direito penal; fornece dados que a Poltica criminal transforma em reivindicaes de alterao da legislao penal; a cincia do Direito penal normativiza essas reivindicaes que passam a ter valor jurdico coativo; o processua- lista cuida da aplicao do ius puniendi de acordo com o de

  • MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    vido processo legal; na fase executiva toma-se realidade a ameaa penal.

    O penalista, na atualidade, que no coordena esses cinco momentos do fenmeno criminal no um penalista completo (e tende a ser um positivista legalista do segundo milnio).

    6. Atuais tendncias no plano poltico-criminal: Astrs principais tendncias penais na atualidade no plano poltico-criminal so: (a) o neo-retribucionismo; (b) o abolicionismo; e (c) o Direito penal mnimo.

    A corrente neo-retribucionista, que tem inspirado acentua- damente a poltica criminal norte-americana das ltimas dcadas, deposita forte esperana no funcionamento do sistema penal, na eficcia da sua operacionalidade, na aplicao persistente e implacvel do direito (preveno geral positiva, na linha do funcionalismo radical): o mais importante para evitar o crime, dizem, no tanto a severidade (nominal) da pena, seno a sua efetiva e inarredvel aplicao e execuo.

    Advogam, por isso, pelo melhor funcionamento do sistema, pela melhora das suas condies e estrutura. Inspirados na ideologia do movimento da lei e da ordem (law and order), crem que a criminalidade aumenta quando o sistema fracassa, porque isso diminui os riscos (os custos) para o infrator, favorecendo a infrao penal. De outro lado, no confiam em nenhuma utilidade para a pena de priso, pelo contrrio, partindo do trabalho de Martinson (O qu funciona? - What works?), entendem que na priso nenhum tratamento funciona (nothing works). Propugnam, ademais, por uma imagem bastante racional do homem, que decidiria ser criminoso ou no conforme as regras (econmicas) dos custos e benefcios. O delito uma opo racional econmica.

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 55

    A corrente abolicionista radical sustenta que a pena e o prprio Direito penal possuem mais efeitos negativos que positivos; advoga, por isso, pela eliminao total (presente e futura) de qualquer controle formal do delito, que deve dar lugar a outros modelos informais de soluo de conflitos. Dentre outros, so representantes do pensamento abolicista radical: Mathiesen, Christie, Plack, Foucault etc. Seu principal propagador, no entanto, Louk Hulsman (cf. seu Penas perdidas, escrito com Bemat de Celis, traduo de Maria Lcia Karam, Rio de Janeiro, LUAM, 1993).

    O Direito penal mnimo propugna pela mnima interveno do Direito penal, com as mximas garantias (nessa linha Baratta, Hassemer, Ferrajoli, Zaffaroni, Cervini etc.). A doutrina do Direito penal mnimo reconhece certa utilidade social ao sistema (leia-se: reconhece, em princpio, sua legitimao) e parte da considerao de que se o Direito penal desaparecesse no acabaria, mesmo assim, a reao contra o delito (pois nenhuma sociedade pode conviver sem controle) e seu lugar poderia ser ocupado por outras formas de controle social muito mais inseguras e totalitrias que a atual e provavelmente sem as garantias mnimas exigidas pelo atual estgio da nossa civilizao.

    A clara proposta do Direito penal mnimo, como se v, no acabar com o Direito penal, seno minimizar sua utilizao para a resoluo dos conflitos penais, no s reduzindo seu mbito de aplicao, seno tambm a intensidade ou o grau da resposta estatal, especialmente quando se trata da pena de priso. Descriminalizao (retirar o carter criminoso do fato), despenalizao (atenuar a resposta penal, sem retirar o carter ilcito do fato), desjudicializao (afastar o conflito da esfera do juiz) e descarcerizao (evitar o quanto possvel o encarceramento provisrio, antes da sentena final) so suas metas.

  • MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

    Em tomo dessa tendncia poltico-criminal minimalista est se criando um enorme consenso, mesmo porque seus postulados no so fechados ou radicais. o caminho que reputamos mais adequado.

    7. Sintetizando e recapitulando: se o poder de castigar emana da Constituio, no h dvida que dela podemos (e devemos) extrair uma srie de princpios (limites) que norteiam a Poltica criminal e o Direito penal. Dentre outros destacam- se: 1) princpio da exclusiva proteo de bens jurdicos; 2) da interveno mnima; 3) da materializao do fato; 4) da ofen- sividade; 5) da responsabilidade pessoal; 6) da responsabilidade subjetiva; 7) da culpabilidade; 8) da proporcionalidade; 9) da humanidade; 10) da dignidade; 11) da igualdade; e 12) da legalidade. So limites internos do ius puniendi estatal que podem funcionar como superao do positivismo legalista (e formalista).

    O delito j no pode ser entendido formalistamente, seno constitucionalmente (como leso ou perigo concreto de leso ao bem jurdico). J no vale o formalismo legalista do sculo XX, seno a busca da justia de cada caso concreto, consoante os princpios constitucionais enumerados.

    A cincia penal, quando enfocada de modo totalizador (globalizador), tal como queria F. von Liszt (gesamte Stra- frechstwissenschaft), significa, na atualidade, estudar cinco segmentos, que se complementam: o emprico, o poltico- criminal, o penal, o processual penal (ou jurisdicional) e o execucional. As cinco reas principais das cincias criminais (Direito penal, processual penal, execuo penal, Poltica criminal e Criminologia) devem sempre ser estudadas conju- gadamente.

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    As trs tendncias poltico-criminais na atualidade so: (a) neo-retribucionismo; (b) abolicionismo radical; e (c) Direito penal mnimo. Mnima interveno penal com as mximas garantias! Esse o discurso que reputamos mais apropriado.

    8. Quadro sintico:

    CONSTITUIO

    PODER DE CASTIGAR

    PRINCPIOS (LIMITES) QUE NORTEIAM A POLTICA CRIMINAL E O DIREITO PENAL

    1) princpio da exclusiva proteo de bens jurdicos;

    2) da interveno mnima;3) da materializao do fato;4) da ofensividade;5) da responsabilidade pessoal;6) da responsabilidade subjetiva;7) da culpabilidade;8) da proporcionalidade;9) da humanidade;10) da dignidade;11) da igualdade; e12) da legalidade.

    So limites internos do ius puniendi estatal que podem funcionar como superao do positivismo legalista (e formalista). O delito j no pode ser entendido formalistamente, seno constitucionalmente (como leso ou perigo concreto de leso ao bem jurdico). J no vale o formalismo legalista do sculo XX, seno a busca da justia de cada caso concreto, consoante os princpios constitucionais enumerados.

    9. Testes de compreenso do texto:

    1. Assinale a alternativa correta:

  • a) Da Constituio no se pode inferir um conjunto de postulados poltico-criminais genricos que devem demarcar o mbito da atuao concreta (primeiro) do legislador e (depois) do juiz.

    b) Como conseqncia do positivismo legalista dissemi- nou-se uma progressiva valorizao do princpio da legalidade, particularmente da legalidade criminal (no h crime sem lei anterior que o defina), penal (no h pena sem prvia comina- o legal), jurisdicional (no h coao sem lei) e execucional (no h execuo de pena ou medida de segurana sem lei).

    c) As Bases do Estado Constitucional so (segundo Fer- rajoli): (a) o carter rgido da Constituio; e (b) sobretudo, a elevao de alguns valores fundamentais categoria de critrios materiais ou substanciais de legitimao de todas as aes, incluindo-se as do prprio poder legislativo.

    d) Uma das principais e primeiras conseqncias da integrao entre Constituio, Poltica criminal e Direito penal consiste na desnecessidade de reestruturar a prpria teoria do delito.

    2. Dentre os princpios constitucionais que emanam ou que podemos extrair da Constituio Federal, no fazem parte imediatamente deles:

    a) a interveno mnima e a proteo exclusiva de bens jurdicos;

    b) a insignificncia e a culpabilidade;

    c) insignificncia e irrelevncia penal do fato; e

    d) pluralismo poltico e legalidade.

    3. Os princpios constitucionais que podemos extrair da Constituio Federal:

    5 8 MANUAIS PARA CONCURSOS E GRADUAO - Volume 1

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 59

    a) no so limites ao ius puniendi;

    b) so apenas orientaes no vinculantes;

    c) so limites internos do Direito penal; e

    d) so limites externos do Direito penal.

    10. Leitura complementar:

    1. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 3. ed.So Paulo: RT, 2002.

    2. CERNICCHIARO, Luiz Vicente e COSTA JR., Paulo Jos da.Direito penal na Constituio. 3. ed. So Paulo: RT, 1995.

    3. DOTTI, Ren Ariel. Curso de direito penal-PG. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

    4. BRUNO, Anbal. Direito penal-PG. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. t. 1..

    5. ZAPFARONI, Eugnio Ral e PIERANGELI, Jos Henrique.Manual de direito penal brasileiro-PG. 4. ed. So Paulo: RT, 2002.

    Para aprofundar:BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. So Paulo:

    Hemus, 1983; GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Derecho penal-PG. Madri: UCM, 2000. p. 414 e ss; GARCA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, Luiz Flvio. Criminologia. 4. ed. So Paulo: RT, 2002; ANCEL, Marc. A nova defesa social. Rio de Janeiro: Forense, 1979; SODR DE ARAGO, Antonio Moniz. As trs escolas penais. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963; SOUZA, Moa- cyr Benedito. A influncia da escola positiva no direito penal brasileiro. So Paulo: EUD, 1982; PALAZZO, Fran- cesco. Valores constitucionais e direito penal. Trad. Grson P. dos Santos, Porto Alegre: Fabris, 1989; CARVALHO, Mrcia Dometila Lima de. Fundamentao constitucional do direito penal. Porto Alegre: Metrpole: Fabris, 1992.

  • Captulo IV

    TEORIA CONSTITUCIONALISTA DO DELITO (NOTAS INTRODUTRIAS)

    1. Introduo: uma das principais e primeiras conseqncias dessa integrao entre Constituio, Poltica criminal e Direito penal consiste na necessidade de reestruturar a prpria teoria do delito, que j no pode ser compreendida e ensinada desde a perspectiva puramente legalista.

    Veremos em outro volume desta coleo (Manuais para concursos e graduao), com detalhes, a teoria do delito. O leitor, entretanto, j ter (desde logo) uma idia das mudanas que esto ocorrendo nesse mbito.

    No Brasil, at a dcada de 70, predominou a teoria cau- salista do delito (Bento de Faria, Nlson Hungria, Basileu Garcia, Magalhes Noronha, Anbal Bruno etc.). Dessa poca at hoje, passou a preponderar a teoria finalista (Mestieri, Dotti, Toledo, Damsio, Mirabete, Tavares, Cirino dos Santos, Bitencourt, Prado, Capez, Greco, Queiroz, Nucci, Reale Jnior - com peculiaridades - etc.). Neste princpio de novo milnio, chegado o momento do primado da teoria constitu- cionalista do delito (como veremos logo abaixo).

    2. Sntese da evoluo do conceito de delito: durante o sculo XX foram desenvolvidos muitos conceitos de delito.

  • DIREITO PENAL - Parte Geral 61

    Os principais so: (a) o causal-naturalista; (b) o neokantista;(c) o finalista; (d) o teleolgico-racional (Roxin); e (e) o fun- cional-sistmico (Jakobs).

    a) Teoria causalista ou causal-naturalista

    A primeira teoria do delito (causalista ou teoria causal- naturalista, que se deve a Von Liszt e Beling) enfocava a conduta como simples movimento corpreo de fazer ou no fazer. O crime, naquele tempo, era dividido em duas partes: (a) objetiva; e (b) subjetiva.

    Parte objetiva: constituda da tipicidade e da antijuridicidade.

    Parte subjetiva: a culpabilidade, que consiste no vnculo do agente com seu fato que se d pelo dolo ou pela culpa (como se v, nesse perodo, dolo e culpa faziam parte da culpabilidade).

    b) Teoria neokantista

    Dentre as inmeras diretrizes que tentaram superar o formalismo (legalista) do positivismo jurdico deve ser destacado o neokantismo por sua significao metodolgica e particular incidncia na Cincia penal. O fmalismo, em seguida, foi no s reao ao formalismo positivista como ao prprio neokantismo. A Escola de Kiel (que sustentou o nazismo) no quis superar o positivismo, seno o prprio Direito penal, instrumentalizando-o para atingir suas finalidades autoritrias.

    O mtodo teleolgico neokantista (o Direito penal existe para a proteo de alguns valores), o ontologicismo (o Direito penal deve ter como premissas bsicas algumas estruturas lgicas que vinculam o legislador), assim como o mtodo intuitivo (irraciona- lismo) marcaram essas trs correntes penais.

    O formalismo a que se reduziu o positivismo jurdico (de Binding e de Rocco) o seu ponto mais crtico. O positivismo jurdico que considerava a lei como puro factum reafirmou a substantividade jurdica da funo penal, rendendo homenagem

  • segurana jurdica e levando a extremos de preciso a anlise sistemtica do delito. Mas padeceu de um excessivo formalismo, de sutilezas, de abstrao, que separaram o Direito da realidade, talvez pelo evidente mimetismo das tcnicas do Direito privado. A maior preocupao dos positivistas era construir um sistema lgico, um verdadeiro palcio do Direito. No procurava encontrar a justia em cada caso concreto.

    O positivismo jurdico enfocou o delito de forma equivocada e insatisfatria. As trs categorias fundamentais do delito at ento admitidas (ao, antijuridicidade e culpabilidade), com efeito, eram descritas (segundo a perspectiva da teoria causalista da ao) de forma no consistente.

    A ao, no esquema positivista naturalista (ou causalista), era concebida como movimento corporal que produzia uma determinada modificao no mundo exterior. Essa concepo naturalista da ao no podia explicar, por exemplo, a omisso, pois a essncia desta no naturalista, seno normativa: omitir no significa no fazer, seno no fazer o que o orden