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Teoria Democrática Atual: Esboço de Mapeamento Luis Felipe Miguel Há mais de cinqüenta anos, no mundo ocidental, a democracia tornou-se o horizonte normativo da prática e do discurso políticos.1 Tamanho consenso esconde uma profunda divergência quanto ao sentido da democra cia: como é comum em relação a palavras que se tornam objeto de disputa política, os dife rentes grupos empenhados em ostentar o ró tulo promovem sua ressemantização, ade quando seu significado aos interesses que defendem. Isso levou, de um lado, à produção de nítidas contrafações, rejeitadas de forma in tuitiva, como as “democracias populares” do Leste europeu ou a “democracia relativa”, for ma que o general Geisel encontrou para de signar o Brasil sob mando militar. Mas o sen so comum, o discurso da mídia e mesmo as ciências sociais encontram pouca dificulda de para aceitar a denominação de “democra cia” aplicada aos regimes concorrenciais do Ocidente, onde, no entanto, as decisões po líticas são efetivamente tomadas por uma pequena minoria e ao povo resta pouco mais do que se submeter a elas. Em suma, não apenas o significado da democracia é polêmico, como também con vivemos com uma contradição patente entre seu sentido abstrato ou normativo mais cor rente (o “governo do povo”) e as manifesta ções empíricas geralmente aceitas (os regimes eleitorais). David Beetham afirma que o con ceito de democracia é incontestável: é uma forma de tomada de decisões públicas que concede ao povo o controle social. Resta, prossegue ele, a indefinição quanto às teorias da democracia, que discutem “quanto de de mocracia é desejável ou praticável, e como ela pode ser realizada numa forma instituci onal sustentável” (Beetham, 1993, p. 55). No entanto, sem uma teoria que o sustente, um conceito não passa de uma casca vazia. O fato é que toda a idéia de democracia é, hoje, con troversa; e essa situação não deve ser vista como passageira ou contingente. É um efei to de seu valor nas disputas políticas contem porâneas. Apenas como contraponto, não custa lembrar que o berço da palavra “democra cia” e do ideário que a ela associamos, a Gré cia antiga, percebia com muito clareza o que ela significava. Era o “governo do povo”, cla ro - mas esta forma, mais ou menos retórica e nunca realizada de forma plena na prática, revestia um conjunto muito bem definido de instituições. A democracia grega incluía a as sembléia popular, o sorteio para o preenchi mento dos cargos públicos e o pagamento pelo exercício de suas funções, a isonomia, a isegoria, o rodízio nas posições de governo e a crença na igual capacidade de todos os ci dadãos para a gestão da polis. O pensamento político antigo se punha a favor ou (mais fre qüentemente) contra a democracia. Num caso ou no çutro, havia consenso sobre qual era o objeto da discussão. A referência à Grécia não é ociosa. Dela herdamos não apenas a palavra, mas também todo um imaginário ligado à democracia. Se o regime concorrencial contemporâneo, que BIB, São Paulo, n° 59, Io semestre de 2005, pp. 5-42. 5

Luis Felipe Miguel - Teoria Democrática Atual - Esboço de Mapeamento

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Teoria Democrática Atual: Esboço de MapeamentoLuis Felipe Miguel

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  • Teoria Democrtica Atual: Esboo de Mapeamento

    Luis Felipe Miguel

    H mais de cinqenta anos, no mundo ocidental, a democracia tornou-se o horizonte normativo da prtica e do discurso polticos.1 Tam anho consenso esconde uma profunda divergncia quanto ao sentido da democracia: como comum em relao a palavras que se tornam objeto de disputa poltica, os diferentes grupos empenhados em ostentar o rtulo promovem sua ressemantizao, adequando seu significado aos interesses que defendem.

    Isso levou, de um lado, produo de ntidas contrafaes, rejeitadas de forma intuitiva, como as democracias populares do Leste europeu ou a democracia relativa, forma que o general Geisel encontrou para designar o Brasil sob m ando militar. Mas o senso comum, o discurso da mdia e mesmo as cincias sociais encontram pouca dificuldade para aceitar a denominao de democracia aplicada aos regimes concorrenciais do Ocidente, onde, no entanto, as decises polticas so efetivamente tomadas por uma pequena minoria e ao povo resta pouco mais do que se submeter a elas.

    Em suma, no apenas o significado da democracia polmico, como tambm convivemos com uma contradio patente entre seu sentido abstrato ou normativo mais corrente (o governo do povo) e as manifestaes empricas geralmente aceitas (os regimes eleitorais). David Beetham afirma que o conceito de democracia incontestvel: uma forma de tomada de decises pblicas que concede ao povo o controle social. Resta,

    prossegue ele, a indefinio quanto s teorias da democracia, que discutem quanto de democracia desejvel ou praticvel, e como ela pode ser realizada num a forma institucional sustentvel (Beetham, 1993, p. 55). No entanto, sem uma teoria que o sustente, um conceito no passa de uma casca vazia. O fato que toda a idia de democracia , hoje, controversa; e essa situao no deve ser vista como passageira ou contingente. um efeito de seu valor nas disputas polticas contem porneas.

    Apenas como contraponto, no custa lembrar que o bero da palavra democracia e do iderio que a ela associamos, a Grcia antiga, percebia com muito clareza o que ela significava. Era o governo do povo, claro - mas esta forma, mais ou menos retrica e nunca realizada de forma plena na prtica, revestia um conjunto muito bem definido de instituies. A democracia grega inclua a assemblia popular, o sorteio para o preenchimento dos cargos pblicos e o pagamento pelo exerccio de suas funes, a isonomia, a isegoria, o rodzio nas posies de governo e a crena na igual capacidade de todos os cidados para a gesto da polis. O pensamento poltico antigo se punha a favor ou (mais freqentem ente) contra a democracia. N um caso ou no utro, havia consenso sobre qual era o objeto da discusso.

    A referncia Grcia no ociosa. Dela herdamos no apenas a palavra, mas tambm todo um imaginrio ligado democracia. Se o regime concorrencial contemporneo, que

    BIB, So Paulo, n 59, Io semestre de 2005, pp. 5-42. 5

  • um especialista em .h is t ria antiga como Pierre Vidal-N aquet (2002 [2000], p. 14) prefere classificar como oligarquia liberal, se esfora tanto em m anter o rtulo de democrtico, porque deseja se manter simbolicamente prximo daquela experincia. No podemos ter o governo do povo como tal, pois nossas sociedades so muito extensas, m uito populosas e muito complexas e, sob re tu d o (em bora essa com ponen te no aparea com tanta freqncia no discurso estilizado que aqui reproduzo), porque a incorporao de mais e mais grupos cidadania multiplicou o nvel potencial de conflito. Mas gostamos de imaginar que alcanamos uma espcie de adaptao; que a representao poltica permite a realizao, no mundo atual, de algo similar ao que existiu na Atenas do sculo IV antes de nossa era.2

    Entre as muitas tentativas de classificao dos diversos modelos ou teorias, da democracia, a mais corrente na linguagem com um aponta exatamente a diferena que nos separa da Grcia: a diviso entre democracia direta e democracia representativa. Ela tambm encontra espao, ainda que em verses modificadas, em certos exemplares do discurso acadmico, como os escritos do socilogo portugus Boaventura de Sousa Santos.3 Mas a dicotomia pouco frutfera, um vez que a representao poltica inelutvel nas sociedades contemporneas. A idia de democracia direta serve, quando muito, como um contraponto, mas no pode guiar projetos de transformao dos sistemas polticos atuais.

    O utra classificao a apresentada por Giovanni Sartori (1994 [1987]), distinguindo a democracia emprica (descritiva) da democracia racional (prescritiva). Na primeira categoria esto as construes tericas que buscam sistematizar os traos constitutivos dos regimes eleitorais de tipo ocidental. Na segunda, todos os modelos que apontam

    insuficincias das democracias realmente existentes e propem formas de aprofundamento da presena dos cidados com uns na arena poltica. Fortemente ideologizada, a taxonomia proposta pelo cientista poltico italiano relega as teorias crticas condio de devaneios utpicos - ou perfeccionistas, como ele prefere - que seriam, na melhor das hipteses, irrelevantes para a prtica poltica e, na pior, perigosos, levando destruio da democracia que, bem ou mal, podemos ter.

    Isolar uma teoria emprica de outra prescritiva, no entanto, significa ignorar que a palavra democracia ganhou valor nas disputas polticas. Afinal, por que motivo o arranjo institucional em vigor nos pases capitalistas desenvolvidos - e no algum outro - merece ganhar o rtulo de democrtico? Este arranjo realiza, ao menos de forma razovel, as promessas que a democracia historicamente carrega? Em suma, nenhum a teoria possui fundo normativo neutro; os critrios que definem o que uma democracia no so de- dutveis da observao emprica; passam por uma definio (implcita) de como deve ser uma democracia. Ao negar seu com ponente normativo, autores como Sartori contrabandeiam uma perspectiva conservadora, que rei- fica aquilo que e nega validade crtica e s alternativas.

    Mais promissora a proposta de C. B. Macpherson (1977). Seu foco o que chama de democracia liberal, em oposio democracia utpica anterior ao sculo XIX, isto , uma teoria que pressupe a existncia de uma sociedade dividida em classes. Quatro modelos sucessivos so apontados: a dem ocracia protetora, de Bentham e James Mill, centrada na idia de que o direito de voto servia (apenas) de garantia contra a tirania dos governantes; a democracia desenvolvi- mentista, de John Stuart Mill, voltada qualificao dos cidados por sua imerso na esfera pblica; a democracia de equilbrio, de

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  • Schumpeter, que se reduz competio eleitoral; e a democracia participativa, propugnada pelo prprio Macpherson.

    fcil perceber que os quatro modelos de Macpherson oscilam, de fato, entre um plo protetor (o que a democracia de fato pode alcanar a garantia de alguns direitos individuais, contra o risco de despotismo dos governantes) e um plo desenvolvimentis- ta (o acesso esfera pblica amplia os horizontes do cidado, permitindo que suas capacidades se realizem mais e melhor). De alguma maneira, ele repe, em novos termos e com a valorao invertida, a velha observao. de Constant sobre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. David Held (1996) inspira-se em Macpherson e so esses dois plos que balizam sua taxonomia, que contempla nove ou doze, caso as variaes sejam contadas por si mesmas - modelos de democracia, da Antigidade aos nossos dias.

    Outras tentativas de classificao poderiam ser listadas, mas aqui basta citar uma ltim a, a do cientista poltico noruegus Jon Elster (1997).4 So trs modelos: a concepo dom inante de democracia, ligada s teorias da escolha social, e duas diferentes contestaes a ela. No modelo dominante, o processo poltico apenas instrumental; o mtodo democrtico resume-se a uma forma de agregao de preferncias individuais, sempre tidas como prvias e construdas na esfera privada. A metfora do mercado poltico levada ao p da letra: os cidados escolhem entre as ofertas que lhes so apresentadas, buscando a maior satisfao pessoal.

    A primeira vertente de contestao o que Elster chama de democracia participativa, correspondendo deserivolvimentis- ta na terminologia de Macpherson e Held. E uma corrente que rejeita a caracterizao da poltica como possuindo mero valor instrumental, apresentando-a como um bem em si mesmo. A segunda contestao a dem o

    cracia deliberativa, inspirada sobretudo pela teoria de Jrgen Habermas, que nega o carter privado da formao das preferncias, enfatizando a necessidade do debate pblico.5 Instigante como , o esquema de Elster no est isento de problemas. Uma das principais lacunas, reconhecida pelo prprio autor, que a obra de Schumpeter, com nfase na manipulao das preferncias individuais por meio da demagogia poltica, no se classifica em nenhum a das categorias. Com isto, a concepo dom inante da democracia perde seu principal fundador.

    Esta breve listagem de algumas propostas de classificao dos modelos de dem ocracia visa, sobretudo, a indicar a dificuldade de se chegar a um esquema abrangente, isento de ambigidades e coerente. De fato, no h uma taxonomia correta elas so apenas menos ou mais teis, de acordo com a contribuio que podem dar para a com preenso da teoria democrtica. Aqui, vou optar por trabalhar com cinco diferentes correntes, sem a pretenso de haver encontrado um critrio exaustivo ou com valor universal. Ao contrrio, o critrio assumidamente circunstancial: so as correntes que, hoje, encontram maior ressonncia no debate acadmico e poltico.

    Todas elas se encontram no campo da democracia representativa, uma vez que qualquer proposta de democracia direta, para as sociedades contemporneas, quimrica.

    (1) A democracia liberal-pluralista, denominao que amalgama as posies mais descritivas dos sistemas polticos ocidentais, para a qual a realizao do projeto dem ocrtico passa sobretudo pela vigncia de um conjunto de liberdades cidads, competio eleitoral livre e multiplicidade de grupos de presso, que se envolvem m coalizes e barganhas, cada qual tentando promover seus interesses. A idia de governo do povo esvaziada, na medida em que aos cidados

  • comuns cabe, sobretudo, formar o governo, mas no governar.

    As outras correntes pertencem todas ao campo que Sartori denom ina de democracia racional, isto , so correntes crticas em relao ao arranjo institucional estabelecido nos pases capitalistas desenvolvidos.

    (2) A democracia deliberativa, nascida da obra de Habermas e, em m enor medida, de Rawls, aparece hoje como a principal inspirao crtica s democracias realmente existentes. Seu ideal que as decises polticas sejam fruto de uma ampla discusso, na qual todos tenham condies de participar em igualdade, apresentando argumentos racionais, e ao fim da qual haja consenso. Em oposio vertente anterior, liberal, ela considera que os agentes no esto presos a interesses fixos e so capazes de alterar suas preferncias em meio ao debate.

    (3) O republicanismo cvico, que prega a revalorizao da ao na polis e do sentimento de com unidade, parcialmente inspirado pelo pensamento de H annah Arendt. Algumas de suas vertentes desembocam no comu- nitarismo, que polemiza contra o individualismo da tradio liberal. E o pertencimento com unidade que dota de sentido a ao hum ana; e nesse sentido a participao poltica pode ser entendida como provida de valor em si mesmo (ao passo que, para a vertente liberal, a poltica possui apenas valor instrumental, na busca pela realizao de interesses constitudos na esfera privada).

    (4) A democracia participativa, que destaca necessidade de ampliao dos espaos de deciso coletiva na vida cotidiana. O cham amento episdico participao nas questes pblicas, no perodo eleitoral, julgado insuficiente para promover a qualificao das cidads e dos cidados. E necessrio que as pessoas comuns estejam presentes na gesto das empresas, das escolas, enfim, que a participao democrtica faa parte de seu dia-a-

    dia. Como se v, no se trata de uma volta democracia direta, mas da combinao dos mecanismos representativos com a participao popular na base. Influente sobretudo nas dcadas de 1970 e 1980, ela se faz presente hoje, com ambies bem mais modestas, em iniciativas de reforma da poltica local, como, entre outras, o oramento participativo experimentado em vrios municpios brasileiros.

    A corrente (2) contemplada no esquema de Elster, de forma similar que apresento aqui. O que ele chama de democracia participativa engloba, d.e fato, as correntes (3) e (4) indicadas acima. A quinta e ltima vertente corresponde a desenvolvim entos mais recentes da teoria poltica.

    (5) O multiculturalismo ou a poltica da diferena, cujo fundamento a afirmao das caractersticas distintivas dos diversos grupos presentes na sociedade' nacibnal, entendidas como irredutveis a uma identidade nica e fontes legtimas de ao poltica. A ruptura com a perspectiva liberal profunda, na medida em que grupos e no s indivduos so considerados sujeitos de direitos.

    E evidente que as cinco vertentes aqui listadas no esgotam a teoria dem ocrtica contempornea, nem possuem fronteiras bem definidas entre si. Boa parte dos pensadores, mesmo os que so considerados representantes emblemticos de algum dos grupos, lidam com outras correntes. Alm disso, nem todas as correntes apresentam grau similar de elaborao. A preocupao central dos principais tericos do m ulticulturalism o, por exemplo, no tem sido produzir uma teoria da democracia, mas uma teoria da justia. Assim, a concepo de democracia que os anima - e que se tornou relevante para o debate contemporneo ainda possui um carter fragmentrio. Feitas essas ressalvas, no entanto, creio que a diviso proposta serve como guia til para o entendim ento do estado atual da teoria democrtica.

  • A Democracia Liberal-Pluralista

    O ponto de partida para a atual concepo liberal de democracia a doutrina do econom ista austraco Joseph Schumpeter, qufe m udou a histria da reflexo poltica ao lanar seu Capitalismo, socialismo e democracia (1984 [1942]). As poucas pginas que dedica questo da democracia, numa obra voltada sobretudo a uma reviso polmica do pensamento marxista, tiveram enorme repercusso e, de alguma maneira, redefiniram o sentido da palavra.

    O primeiro esforo de Schumpeter a demolio dos mitos que, segundo cr, cercam a poltica democrtica. Os tericos clssicos da democracia previam a presena de cidados interessados e bem -inform ados, conscientes de suas preferncias no mundo da poltica e desejosos de alcanar o bem com um - em suma, pessoas inexistentes no mundo real. No entanto, a doutrina clssica da democracia que Schumpeter pretende refutar uma mistura pouco criteriosa de senso comum e autores clssicos, capaz de jun tar vozes to dissonantes quanto Rousseau e os utilitaristas, para criar um adversrio mais adequado (Pateman, 1992 [1970]).

    Schumpeter, ento, redefine a democracia como sendo simplesmente uma maneira de gerar uma minoria governante legtima. Outras frmulas para alcanar tal legitimidade, em especial as m onarquias hereditrias, estavam em declnio. O governo, assim, devia ser formado mediante a luta com petitiva pelos votos do povo/' Dessa forma, a teoria concorrencial promove uma gigantesca reduo do alcance da democracia, j que, para ela, o resultado do processo eleitoral no indica a formao de nenhum tipo de vontade coletiva. Trata-se da mera agregao de preferncias manipuladas, preconceitos e decises impensadas. E, para que o sistema funcione a contento, os cidados comuns devem

    se contentar o papel que lhes cabido: votar a cada quatro ou cinco anos e, no intervalo, obedecer sem pestanejar s ordens que, eles imaginam, de alguma forma tambm emanaram de sua vontade.

    De fato, Schumpeter promove a acomodao da democracia com uma corrente de pensamento que nasceu para neg-la, a teoria das elites (cf. Miguel, 2002a). Os autores elitistas do comeo do sculo XX, como Mosca, Pareto e Michels, procuraram dem onstrar que o socialismo e a democracia eram fantasias sem possibilidade de efetivao. Tra- ta-se de uma perspectiva essencialista, para a qual h uma invarivel das relaes humanas e do processo histrico: a impossibilidade de uma organizao social em que no haja uma minoria dominante. Todas as mudanas polticas seriam, por trs das aparncias, repeties do mesmo processo, com a substituio de uma elite por outra. A massa apresentada como incapaz de intervir no processo histrico; se parece que o faz, porque est sendo manobrada por outro grupo. A base elitista do pensamento de Schum peter aceita tais afirmaes; ao redefinir a democracia para torn-la compatvel com tais realidades, ele deprecia brutalm ente seus ideais.

    O sucesso da democracia concorrencial foi favorecido pelo surgimento fortuito, na mesma poca da publicao de Capitalismo, socialismo e democracia, de evidncias em pricas que pareciam confirmar elementos cruciais da teoria schumpeteriana. O utro imigrante austraco, Paul Lazarsfeld, liderara um im portante estudo sobre o com portam ento dos eleitores durante a campanha presidencial estadunidense de 1940, que sairia em livro pouco depois (Lazarsfeld, Berelson e Gaudet, 1969 [1944]). Os traos definidores da maior parte dos votantes eram a apatia, a desinformao e o desinteresse em relao poltica, tal como o modelo de Schumpeter indicava. A semelhana, porm, escondia

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  • uma diferena significativa, a respeito do papel das campanhas eleitorais. Schumpeter, talvez por efeito da experincia da ascenso do nazismo, via o eleitorado como voltil e sugestionv.el, sempre sob a influncia dos discursos demaggicos dos candidatos. J os eleitores de Ohio, que foram a matria-prima para os surveys de Lazarsfeld e seus colaboradores, estavam presos a padres tradicionais de voto, que dificilmente eram modificados por efeito da campanha ou de informaes transmitidas pelos meios de comunicao de massa.

    A viso de Schumpeter profundam ente desencantada quanto s possibilidades de que a democracia cumprisse quaisquer de suas promessas fundamentais governo do povo, igualdade poltica, participao dos cidados na tom ada de decises. Vrios dos autores inspirados por ela, no entanto, fizeram esforos para aproximar a teoria dos valores democrticos bsicos. A nthony Downs (1957, p. 29), por exemplo, declarava se basear nos brilhantes insights' de Schumpeter, mas conclua que a combinao entre eleitores pouco interessados e polticos competindo pelo voto representava a mais perfeita forma de governo do povo.

    Para tanto, ele transformava uma das premissas do economista austraco, postulando que os cidados tm interesses identificveis e so capazes de perceber se eles esto sendo bem atendidos ou no. Como o governante precisa do voto de todos para permanecer no poder, o seu interesse objetivo realizar os interesses dos outros (e, assim, manter sua confiana). O modelo possui graves fragilidades, uma vez que se baseia num viso demasiado esquemtica do com portamento tanto dos cidados comuns como dos polticos (Przeworski, 1995 [1990], pp. 37- 39; Pizzorno, 1993; Miguel, 2002b).

    Downs buscou dem onstrar que, dado o ' mecanismo da competio eleitoral, o desin

    teresse dos cidados pela poltica no significa que suas vontades deixaro de ser levadas em conta pelo governantes. J M arcur Olson (1965), outro pioneiro da chamada teoria da escola racional na cincia poltica, invertia a acusao de irracionalidade que Schumpeter dirigia ao eleitor comum. Desinformao e apatia so a respostaracional num contexto em que o peso do eleitor to pequeno j que cada um controla apenas um voto, em meio a milhares ou milhes de outros - que no vale o investimento de tempo e dinheiro necessrio para a qualificao poltica. Seymour Lipset (1963 [I960]) vai alm, vendo na apatia e no abstensesmo um indcio no apenas da racionalidade do eleitor, mas de sua satisfao com o funcionam ento do sistema. Por fim, Giovanni Sar- tori (1994 [1987]), que continua vinculado denncia schumpeteriana da irracionalidade do cidado comum, julga que a baixa participao poltica a chave para a realizao da democracia como meritocracia ou processo seletivo dos mais aptos a governar.

    A demonstrao da impossibilidade de realizao da democracia, num esprito prximo ao de Schumpeter, mas de maneira mais formalizada, est no cerne da influente obra de William Riker (1982). Ele enfatiza, por um lado, a dependncia das decises em relao aos sistemas, eleitorais, isto , que a m anipulao dos mecanismos decisrios afeta os resultados. Por outro,, aponta as patologias da racionalidade coletiva, em especial o chamado paradoxo de C ondorcet, que mostra como um conjunto de indivduos racionais pode chegar a decises coletivas incoerentes. A concluso que a idia de um governo do povo sempre ilusria. Conforme j foi demonstrado, o edifcio terico de Riker susten- ta-se num a premissa duvidosa, a de que a democracia se resume ao ato de votar (Mackie, 1988). Q uando a discusso considerada um ingrediente necessrio do processo democr-

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  • tico, tal como fazem os tericos da democracia deliberativa, os problemas insolveis'' apontados por Riker so, em grande medida, superados.

    A vinculao com o legado schumpete- riano bem mais complexa na teoria polir- quica de Robert A. Dahl, que influenciou de forma determ inante a concepo liberal corrente de democracia. Nela, a presuno do desinteresse do eleitorado relativizada. Os cidados so, sim, apticos quanto maioria das questes da agenda poltica, mas podem se mobilizar no momento em que um de seus interesses especficos posto em questo. Se no podemos contar com o governo do povo ou mesmo com o governo da maioria, podemos ao menos ter um sistema poltico que distribua a capacidade de influncia entre muitas minorias. As eleies ocupam uma posio central num ordenamento polirqui- co no porque introduzam um governo de maiorias em qualquer maneira significativa, mas [porque] aum entam imensamente o tamanho, nmero e variedade das minorias, cujas preferncias tm que ser levadas em conta pelos lderes quando fazem opes de poltica (Dahl, 1989-[1956], p. 131).

    Dahl admite que os regimes vigentes no O cidente no so realmente governos do povo, mas ao mesmo tempo nega que exista uma classe dominante, como querem os marxistas, ou um a elite do poder, como dizia W right Mills (1981 [1956]). Em vez de uma minoria governante, existem muitas m inorias que disputam entre si a respeito de questes especficas e que devem ser levadas em conta pelos governantes. Ao seu modelo, o autor chama poliarquia, a palavra designando a existncia de mltiplos centros de poder, dentro da sociedade - e se distinguindo da verdadeira democracia, entendida como ideal normativo cuja plena realizao utpica.

    Ele comprovou a vigncia da poliarquia num estudo sobre os processos decis

    rios em New Haven, Connecticut, apresentada como cidade tpica da vida urbana estadunidense. A pesquisa mostra que, em bora uma minoria de lderes monopolizasse as iniciativas polticas nas trs questes polmicas analisadas (nomeaes de funcionrios pblicos, reurbanizao e educao), havia conflito dentro dela e a influncia de cada lder era, via de regra, especializada, isto , incidia sobre apenas um dos trs assuntos (Dahl, 1961). O estudo de Dahl est sujeito a uma srie de questionamentos de ordem metodolgica, a comear pela premissa de que o microcosmo um retrato fiel, em escala menor, do macrocosmo quer dizer, de que o estudo dos processos de deciso em nvel local pode servir de evidncia para o nvel nacional. Afinal, tamanho e distncia so fatores essenciais para explicar a apatia poltica popular, que, por sua vez, um dos elementos que favorecem o domnio da elite. Alm disso, difcil crer que uma cidade, na poca com 160 mil habitantes, que sedia a Universidade Yale possa ser considerada tpica, por mais que m uitos de seus indicadores demogrficos sejam medianos. Mas a principal crtica foi formulada por Bachrach e Baratz (1962, 1963), que dem onstraram que o estudo de Dahl ignorava a determinao da agenda, uma faceta crucial do exerccio do poder.

    As poliarquias seriam o resultado dos processos de dem ocratizao, que D ahl (1971) desdobra em duas dimenses, a inclusividade (ampliao do nm ero de pessoas incorporadas formalmente ao processo poltico) e a liberalizao (reconhecimento do direito de contestao). Amplamente utilizado na cincia poltica, o modelo bidim ensional tambm enfrenta crticas recorrentes, a comear pela ausncia de uma dimenso social, que permita que os direitos de participao e oposio sejam usados de maneira efetiva (ver, por exemplo, Weffort, 1992). De

  • fato, como a inclusividade apenas formal, reduzindo-se em ltima anlise ao direito de voto, ela compatvel com a excluso poltica real dos grupos subalternos.

    N um a trajetria intelectual invulgar, Dahl tornou-se cada vez mais crtico em relao ao sistema poltico estadunidense que a teoria pluralista, a princpio, justificava. Ele se tornou sensvel aos problemas que o ordenam ento capitalista apresenta efetivao da democracia, passando a advogar por formas de economia autogestionria (Dahl, 1990 [1985]). Passou a expressar sim patia pela abordagem deliberacionista, embora no a tenha de fato incorporado em seu modelo.' Independentem ente disso, uma verso simplificada do pluralismo liberal, com sua nfase em eleies competitivas e em mltiplos grupos de presso, tornou-se a ideologia oficial dos regimes democrticos ocidentais.

    Dois problemas principais podem ser identificados na corrente. O primeiro, um trao caracterstico do liberalismo desde os seus primrdios, o isolamento da esfera poltica em relao ao restante do m undo social. As desigualdades presentes na sociedade so colocadas entre parnteses (Fraser, 1992), o que sustenta as fices dos cidados iguais perante a lei" e dos contratos entre pessoas livres e iguais. Na verdade, as desigualdades materiais e simblicas transbordam para a arena poltica, contribuindo para impedir que determinados grupos tenham acesso pleno a ela ou nela sejam capazes de promover eficazmente seus interesses. H aqui um ponto central da crtica vertente democrtica liberal, que ser apresentado com mais m incia nas sees seguintes.

    O segundo problema central da percepo pluralista da democracia a reduo da poltica a um processo de escolha, no qual, por uma premissa metodolgica, considera- se que todos os cidados so guiados por um entendim ento esclarecido de seus interesses

    (Dahl, 1989, p. 182).8 A construo dos interesses isto , das vontades e identidades coletivas suprimida da poltica; em seu lugar, resta uma agregao mecnica de preferncias preexistentes. O aspecto com unicativo da atividade poltica esvaziado. So os democratas deliberativos que vo desenvolver esta crtica.

    A Democracia Deliberativa

    A corrente deliberativa tornou-se, nos ltimos vinte anos, a principal alternativa terica democracia liberal-pluralista.9 Sua principal matriz, embora no a nica, a filosofia de Jiirgen Haberm as.10 Os dem ocratas deliberativos incorporam parte significativa do ideal participacionista, mas apresentam um a nova nfase nos mecanismos discursivos da prtica poltica. Segundo a sntese de Joshua Cohen (1998, p. 186), eles julgam que as decises polticas devem ser tomadas por aqueles que estaro subm etidos a elas, por meio do raciocnio pblico iivre entre iguais. Trata-se de um esforo im portante para avanar na compreenso do sentido da democracia, que transcende o pretenso empirismo da vertente hegemnica, schumpeteriana, por levar em conta, como diz o prprio Habermas, o sentido norm ativo genuno da compreenso intuitiva da democracia (1997 [1992], vol. 2, p. 18).

    Em primeiro lugar, a corrente rompe com a percepo da democracia como simples mtodo para a agregao de preferncias individuais j dadas. Longe de constiturem elementos prvios, as preferncias so construdas e reconstrudas por meio das interaes na esfera pblica, em especial do debate entre os envolvidos. Em segundo lugar, h a nfase na igualdade de participao, um aspecto constitutivo do sentido clssico da democracia, mas que foi relegado a plano secun

  • drio pelas vertentes hegemnicas da teoria democrtica contempornea. Por fim, a autonomia, isto , a produo das normas sociais pelos prprios integrantes da sociedade, resgatada como o valor fundamental que guia o projeto democrtico.

    A democracia deliberativa apresenta-se como um modelo normativo que produz a crtica da poltica vigente a partir de um parmetro ideal. Esse ideal, porm, remete a uma matriz histrica (ou pseudo-histrica), a esfera pblica burguesa descrita por Ha- bermas em sua influente tese de 1962. A partir de uma reflexo sobre o surgimento da opinio pblica, na Frana, na Alemanha e, sobretudo, na Inglaterra dos sculos XVIII e XIX, ele apresenta uma viso da boa poltica, caracterizada pela discusso livre das questes de interesse coletivo (Habermas, 1984 [1962]). C ontra o pano de fundo deste ideal normativo, Habermas lamenta a decadncia atual da esfera pblica, manipulada por estratgias pblicitrias.

    Em sua obra posterior, Habermas substituiu o conceito de esfera pblica pela teoria anloga, porm mais abstrata, da ao com unicativa. O ideal normativo que guia sua reflexo a ao voltada para o entendim ento m tuo, por intermdio do dilogo, em oposio ao estratgicaj que busca apenas o sucesso e utiliza caracteristicamente operadores sistmicos como o poder e o dinheiro. Mas, quando elabora sua teoria da ao comunicativa, o filsofo alemo trabalha em tal grau de abstrao que, a rigor, no possvel falar num a teoria da democracia. A preocupao especfica com a poltica - vista de incio sob uma perspectiva integralm ente negativa, como um dos instrum entos de colonizao da vida cotidiana, o m undo-da- vida s vai aparecer na ltima obra im portante de Habermas, o livro Direito e democracia, lanado na Alemanha em 1992, no qual o filsofo tambm recupera o conceito de esfera

    pblica e o integra num modelo normativo de funcionamento da democracia.

    No entanto, nesse m om ento o impulso crtico de sua obra j est esvaziado. H abermas vai abandonar a preocupao com a colonizao do m undo-da-vida pelos operadores sistmicos - dinheiro e poder - que coordenam, de maneira crescente, as relaes interpessoais. A ao comunicativa passa a ser vista como garantidora, em ltima instncia, da integrao da sociedade, num modelo em que as tenses entre os diferentes tipos de racionalidade e entre as esferas sistmica e do mundo-da-vida tornam-se bem mais brandas (ou mesmo desaparecem), dando lugar a uma perspectiva mais harmnica, de mera diversificao funcional (Habermas, 1997 [1992], vol. 1, p. 45; para uma crtica focada neste ponto, ver Cook, 2001).

    Como observou John Dryzek, Habermas inscreve-se no movimento mais geral, dentro da corrente deliberativa, de acomodao com o constitucionalismo liberal. Em Direito e democracia, verifica-se uma reconciliao com fatos [pretensamente] imutveis do m undo moderno, vinculados estrutura poltico-econm ica, e a possibilidade de m udana restrita ao ordenam ento legal (Dryzek, 200, p. 24)." Isso levaria H abermas, por exemplo, a estabelecer um modelo pelo qual a opinio pblica gera influncia, que se transforma em poder comunicativo por meio de eleies; e este, por sua vez, se torna poder administrativo por meio da legislao (Habermas, 1997 [1992], vol. l ,p p . 189-190). Dryzek (2000, pp. 25-26) observa que , no mnimo, duvidoso se uma percepo to estilizada do processo poltico ser capaz de captar pelo menos uma parte de sua dinmica real. O jogo de foras despido de todas as suas condicionantes estruturais e o que sobra uma verso mais sofisticada dos manuais escolares de civismo. Em suma, a aceitao acrtica da fixao de uma esfera

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  • poltica isolada das restantes esferas sociais a prpria capitulao diante do constitucionalismo liberal.

    Ao contrrio do que julga Dryzek, tal movimento no uma virada imprevista no pensamento de Habermas, mas o aprofundam ento de um trao que j est presente em sua obra desde a tese sobre a esfera pblica. A idealizao da esfera pblica burguesa dos sculos XVIII e XIX dem onstra uma notvel insensibilidade ao problema da excluso de grupos sociais. Trabalhadores e mulheres, para citar os exemplos mais evidentes, estavam ausentes da esfera pblica burguesa. claro que Habermas percebe e anota tal ausncia. Mas, em Mudana estrutural, ela aparece como algo contingente e no como estruturado ra de caractersticas centrais da esfera pblica burguesa setecentista e oitocentista.

    Assim, Habermas reproduz, em seu m odelo da esfera pblica, as premissas dos tericos liberais do contrato social. A igualdade substantiva no im portante, na medida em que todos podem discutir como se fossem iguais isto , a produo de direitos formais de cidadania surge como condio suficiente para a efetivao do debate pblico ideal. As condies de acesso esfera pblica no so tematizadas, o que permite deixar de lado, como secundria, a excluso de trabalhadores e mulheres.

    No que Habermas no perceba a excluso poltica vigente nas sociedades contemporneas: ele a percebe, indica e condena de forma explcita, segundo um critrio tico. Mas desenvolve sua teoria sobre o modelo utpico da situao de fala ideal, onde a excluso, por definio, no pode ocorrer. Tal situao caracterizada por trs regras: (1) qualquer contribuio pertinente ao debate pode ser apresentada; (2) apenas a argumentao racional levada em conta; e (3) os participantes buscam atingir o consenso.

    A regra (1) garante a ausncia de represso, j que no possvel censurar a participao no debate, e tambm a ausncia de excluso, j que a discusso est franqueada a todos os que possam contribuir para ele. Dois problemas evidentes emergem desta form ulao. O primeiro e m enor deles refere-se qualificao de pertinente quanto s contribuies aceitveis no debate. Ora, grande parte de qualquer debate gira sempre sobre a pertinncia ou no de determinados fatos ou especulaes. O u h quem determine a priori a pertinncia de cada contribuio, e a temos um critrio de excluso, ou necessrio abandonar a qualificao e reconhecer que toda contribuio vlida at prova em contrrio. O segundo problema, que o decisivo e ser desenvolvido em maior detalhe adiante, diz respeito capacidade subjetiva que grupos e indivduos em diferentes posies na estrutura social tm de produzir contribuies pertinentes a diferentes debates.

    A regra (2) uma regra de igualdade; na medida em que apenas a argumentao racional levada em conta, est neutralizada a diferena de autoridade, de riqueza, de sta- tus ou qualquer outra. E claro que isto nunca ocorre: no mundo real, os debates sempre so desvirtuados por diferenciais de poder, de autoridade e mesmo de acesso fala. E a regra (3) uma condio de efetividade do debate, indicando que os participantes esto dispostos a assimilar o argumento dos outros e no se prendem a posies prvias.

    Habermas est ciente de que seus critrios no so preenchidos na vida real e apresenta a situao de fala ideal como sendo, em primeiro lugar, um ideal normativo (se bem que no arbitrrio). O problema que, na maior parte de sua obra, ele no apresenta nenhum a ponte entre o ideal e a realidade. Sua fala ideal um pouco como a posio original de John Rawls (em que um vu da incerteza afasta todas s desigualdades): um arti-

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  • fcio que gera uma situao em que todos so abstratamente iguais, elidindo o desafio de corno gerar uma sociedade igualitria partindo de uma condio de radical desigualdade.

    A situao de fala ideal no arbitrria - e esta uma diferena importante em relao posio original de Rawls - porque, para Habermas, a ausncia de represso, a igualdade entre os falantes e a busca pelo consenso so inerentes natureza da linguagem. A ao comunicativa, direcionada para o entend im en to m tuo , est presente em potencial em cada ato de fala. E a alternativa linguagem (o uso da fora) que prescinde do entendim ento m tuo. As caractersticas igualitrias e mesmo emancipatrias da linguagem apareceriam sobretudo no m un- do-da-vida\ isto , nas relaes in terpessoais cotidianas que escapam mediao do dinheiro e do poder. O ideal habermasiano, assim, inspira-se na comunicao face a face entre indivduos privados, o que impe uma nova srie de problemas.

    E uma comunicao gerada pelo convvio entre indivduos como tais, isto , que no se apresentam como representantes ou porta-vozes de grupos especficos. De fato, em nossa vida cotidiana, embora tenhamos conscincia de que o indivduo A negro e o indivduo B branco, e mesmo que preconceitos sobre o carter de negros e brancos influenciem nossa atitude, no imaginamos que A e B esto 'representando seus grupos raciais, no sentido poltico do termo, nem esperamos que pautem suas aes pela prom oo dos interesses de grupo.

    O problema que a comunicao face a face um modelo imprprio para o entendim ento da poltica, exatamente por descartar a questo da representao. Nas sociedades contemporneas, com sua complexidade e dimenses, a representao ineludvel - e este o fato que torna complexa a construo de qualquer ordem democrtica que su

    pere a mera transferncia da soberania popular para uma elite, por intermdio da autorizao eleitoral.

    Mesmo independentem ente deste ponto, que a torna um modelo irrelevante para a construo da ordem poltica, a com unicao face a face est marcada por um a srie de desigualdades, que a idealizao haberma- siana ignora. As diferentes posies sociais dos interlocutores contaminam a situao de fala que, portanto, marcada por assimetrias. Status, dinheiro, poder ou o domnio do padro culto condicionam, de formas muito sutis, o aolhimento que ddo interveno de cada um dos falantes e, na aparncia, no agridem as exigncias do livre debate entre iguais.

    Os problemas da comunicao face a face formam apenas um dos muitos flancos do ideal deliberativo. A crtica mais evidente (e, por isso, mais explorada na literatura) diz respeito impossibilidade prtica de efetivao de um debate envolvendo todos os interessados, em sociedades extensas e populosas como as contemporneas. o problema tpico das fantasias de ressurgimento da democracia direta, das quais o deliberacionismo parece, por vezes, s,er uma vertente. Trata-se de um trao marcante na obra.de Habermas. Ele v com suspeita todas as formas de mediao, a includos tanto a representao poltica como os meios de comunicao de massa (Peters, 1993) - e escapa delas mediante dois recursos. Primeiro, a elevada abstrao de sua construo terica, que permite fugir ao enfren- tamento com limitaes (inclusive fsicas) das sociedades reais. Depois, a distino entre a estrutura administrativa (em que so tom adas as decises e operam os mecanismos representativos) e a esfera pblica discursiva, que o plo carregado de positividade e que aparentemente prescindiria da representao, efetivando-se numa multiplicidade de locais e momentos.

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  • As respostas dadas por outros tericos da corrente ao desafio da escala da deliberao tambm so insatisfatrias.12 Cohen (1997, p. 84) diz simplesmente que trabalha num nvel de generalidade tal que objees de carter prtico no se aplicam. Aqueles que buscaram gerar modelos efetivveis de democracia deliberativa postulam, em geral, a reduo drstica da populao a ser abrangida, muitas vezes por meio do uso de sorteios. O ideal seria efetivado apenas no microcosmo, pequeno o suficiente para evitar a contam inao pela representao poltica e pela md ia isto , capaz de se guiar pela comunicao face a face (Dahl, 1990, pp. 122-125, 1989, p. 340; Barber, 1984; Fishkin, 1991; Burnheim, 1996). Mas se trata da simples transferncia da questo, j que o principal problema levantado pela representao (a vin- culao entre representantes e representados) ressurge na relao entre o povo e sua amostra aleatria.

    O mesmo se pode dizer daqueles que restringem o espao da deliberao a fruns j constitudos de representantes. O utras alternativas incluem privilegiar o aspecto deliberativo em detrim ento do democrtico, julgando que o ideal se efetiva na ao de rgos como a Suprema C orte dos Estados Unidos ou de "elites capazes e virtuosas (Bell, 1999); confiar nas novas tecnologias da informao como ferramentas que transcenderiam as limitaes de espao que impedem a democracia direta;13 ou, ainda, enfatizar o aspecto interno do processo deliberativo, pelo qual cada indivduo busca considerar as razes de todos os outros dentro de sua mente (Goodin, 2000). Embora engenhosa, esta ltima soluo compromete o funcionamento do principal benefcio esperado com a deliberao coletiva: o contato com argum entos e perspectivas alheios, o que exige interao real, no apenas imaginria, com os outros.

    O problema da escala uma faceta do irreal is mo que contam ina boa parte da teoria deliberacionista. Ao postular determinadas condies ideais e trabalhar com elas, obstculos do mundo real somem como num passe de mgica. E o caso, notadamente, da desigualdade material e do controle dos meios de comunicao de massa, canais essenciais do processo comunicativo nas sociedades contemporneas (Chambers e Kopstein, 2001, p. 858; Dean, 2001, pp. 624 e 628; Schauer, 1999, p. 23; Miguel, 2000a, pp. 63-64).

    O utro ponto da crtica diz respeito valorizao do consenso. Para os delibera- cionistas, a busca da concordncia tambm uma caracterstica prpria da ao discursiva; conforme diz Carol Gould, o telos do discurso, o que caracteriza seu objetivo e seu mtodo, a concordncia. [...] Diversidade pode ser a condio original de um discurso polivocal, mas a univocidade seu princpio normativo (1996, p. 172). Independentemente da avaliao que se faa desta observao sobre a natureza do discurso, ela representa um ponto de partida pouco confivel para a compreenso dos embates polticos, que possuem um acentuado carter agons- tico, em que o xito vale mais do que a harmonia. Sobretudo, desconsidera o fato de que os interesses, muitas vezes, falam mais alto do que as razes (Schauer, 1999; Shapiro, 1999) - por sinal, um tema recorrente da reflexo sobre a poltica, desde a Antigidade.

    Nem todos os democratas deliberativos partilham dessa valorizao exclusiva do consenso. G utm ann e Thom pson (1996), que pertencem a uma vertente refratria influncia de Habermas, inspirando-se antes em Rawls, julgam que a deliberao reduz a zona de discordncia sobre questes polmicas, mas no a ponto de elimin-la, gerando sobretudo respeito mtuo entre os defensores de posies divergentes. John Dryzek (2000, p. 170) acredita que a meta um consenso

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  • mitigado, em que todos concordam quanto ao curso de ao a ser seguido, mas por diferentes razes.14

    diferente a posio de Bernard M anin, que defende a ampla participao na discusso como um mtodo de legitimao, valioso justam ente por escapar da exigncia (implcita) de unanim idade presente na vontade geral de Rousseau (e mesmo nas decises to madas pela regra da maioria, j que elas perdem legitimidade medida que so menos unnimes): uma deciso legtima no representa a vontade de todos, mas aquela que resulta da deliberao de todos (Manin, 1987, p. 352). Outros enfatizam que, num contexto de deliberao coletiva, a barganha um instrum ento alternativo argumentao, e igualmente aceitvel (Elster, 1998, p. 6; Gambetta, 1998, p. 19). Isto , o compromisso uma opo ao consenso.

    Por fim, em vez de prom otor da emancipao, o ideal deliberativo pode se revestir de um carter profundam ente conservador. A exigncia de consenso, em especial, paralisa a ao poltica, preservando o statu quo. Mas a prpria deliberao tambm pode ser paralisante e protelatria. Por exemplo, convites para que representantes de movimentos sociais participem de fruns deliberativos podem implicar na legitimao de instituies injustas, levar desmobilizao e ao abandono de formas de interveno mais eficazes e ser, muitas vezes, uma via de coopta- o. Na verdade, o ativismo poltico - que foi, historicamente, o principal meio de prom oo dos interesses dos grupos dominados - com freqncia exige a interrupo do processo deliberativo e a adoo de medidas imediatas (Young, 2001).

    Cabe observar, enfim, que os mecanismos de deliberao pblica tambm possuem vieses e favorecem o atendim ento de determinado tipo de interesse. Os grupos dom inantes isto , aqueles que possuem maior

    capital econmico ou cultural - so, uma vez mais, privilegiados. Mais do que postular a superioridade da ao comunicativa e exorcizar a ao estratgica ou, ainda, fantasiar um espao em que a racionalidade pura dos indivduos dialogue consigo mesma at alcanar o consenso, necessrio entender que desigualdades estruturais desequilibram as interaes entre os diferentes agentes sociais.

    possvel identificar trs dimenses nas quais se manifestam os vieses da deliberao pblica, ligados a desigualdades socialmente estruturadas quanto a: (1) capacidade de identificao dos prprios interesses; (2) capacidade de utilizao das ferramentas discursivas; e (3) capacidade de universalizao dos prprios interesses.

    O primeiro ponto est ligado ao prprio conceito de interesse, crucial para o entendim ento das prticas polticas e alvo de tantas polmicas. O conceito no encontra soluo satisfatria em nenhum a das estratgias mais correntes daqueles que tentam defini-lo. No possvel depreender um interesse objetivo, a partir das condies sociais do agente, como quer o marxismo convencional sobretudo nas sociedades contem porneas, onde s cidados desempenham m ltiplos papis, cujos interesses bvios podem ser contraditrios. Tambm no aceitvel afirmar um interesse nico universal a maximizao da prpria satisfao, segundo os utilitaristas - ignorando as condies sociais de gerao das preferncias. Afinal, tais interesses no so dados da natureza. Eles so construdos, num processo que depende tanto dos recursos cognitivos de que dispe o sujeito como de cdigos sociais com partilhados. Por fim, a resposta liberal padro, mais uma vez de raiz utilitarista, segundo a qual cada um o melhor juiz de seus prprios interesses, descarta qualquer possibilidade de crtica dos constrangimentos cognitivos e

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  • da manipulao ideolgica a que esto submetidas as pessoas.

    Tais dificuldades no indicam que o melhor caminho seja descartar a noo de interesse (como Fazem, por outros motivos, algumas concepes deliberativas), mas sim que necessrio entender os interesses como produtos sociais. Grupos subalternos ou dominados tm menor condio de produzir au tonom am ente seus prprios interesses por conta de diversos mecanismos cum ulativos. Eles so mais suscetveis s presses cruzadas, evidenciadas por Offe e Wiesenthal (1984 [1972]) para a classe trabalhadora, mas que esto presentes tambm para outros grupos subalternos, dificultando a determinao de um interesse unvoco (em especial o dilema entre assimilao individual e progresso coletivo).

    Alm disso, os grupos subalternos tm m enor acesso aos espaos de produo social de sentido, em especial (mas no s) o aparelho escolar e a mdia. Isto significa que eles esto constrangidos a pensar o m undo, em grande medida, a partir de cdigos emprestados, alheios, que refletem mal sua experincia e suas necessidades. Estreitamente ligado a isso h o fato de que eles possuem menor disponibilidade de tempo e espaos prprios nos quais poderiam pensar seus prprios interesses e construir projetos polticos coletivos. Por fim, os grupos dominados possuem uma perspectiva limitada do m undo social, prpria de uma vivncia qual negada a possibilidade de participao nas principais tomadas de deciso, tanto polticas como econmicas, enquanto os dominantes ficam a cavaleiro do restante da sociedade (Bourdieu,1979, p. 520).

    A assimetria agravada pela inferioridade dos grupos dom inados no manejo eficaz das ferramentas discursivas exigidas - o que corresponde ao segundo vis do ideal dem ocrtico-deliberativo. Ao contrrio do

    que ele prev, nas situaes concretas de fala- a identidade do emissor no irrelevante para a considerao que dada a seu discurso. As diferentes posies na sociedade conferem diferentes graus de eficcia discursiva a seus ocupantes. Pesam, sobretudo, o reconhecimento social de cada posio e a capacidade de im por sanes negativas ou positivas, fatores que esto estreitam ente associados ao exerccio do poder poltico e econmico.

    Ainda quando a identidade do falante ignorada, a fala carrega marcas que a valorizam ou desvalorizam: prosdia, sintaxe, sotaque; e o mesmo pode ser dito, a fortiori, da linguagem escrita (Bickford, 1996, pp. 97- 98). Trata-se de problema que no recebe resposta adequada dos tericos deliberativos; afinal, preconceito e privilgio no surgem nos cenrios deliberativos como razes ms e no so revidados por bons argumentos. Eles so demasiado furtivos, invisveis e perniciosos (Sanders, 1997, p. 353). A viso racio- nalista do processo poltico leva a ignorar ou minimizar o cartr de impermeabilidade discusso racional de boa parte dos obstculos que impedem a efetivao do seu prprio idel. E infundada a crena de John Dryzek (2000, pp. 169-172) de que mecanismos endgenos deliberao racional exorcizam seus inimigos (o discurso intolerante, a averso diferena, o auto-interesse mesquinho). Ela pressupe que intolerantes, xenfobos, racistas e egostas estariam abertos discusso. E pressupe, tambm, que tais com portamentos nocivos se manifestam sempre em suas formas extremas, abertas, ostensivas - e, portanto, sujeitas interpelao alheia.

    O terceiro vis do ideal da democracia deliberativa corresponde a um aspecto especfico do problema da eficcia discursiva: a capacidade diferenciada de universalizao dos prprios interesses. Uma das vantagens alegadas do procedimento deliberativo que

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  • obriga ao uso do vocabulrio do bem comum. No razovel entrar num a discusso dizendo quero porque melhor para mim , argumento com pouca possibilidade de gerar a simpatia ou a adeso dos interlocutores. necessrio apelar a normas universais de justia ou a benefcios coletivos.

    No entanto, isto no significa, como por vezes os tericos deliberativos parecem pensar, que o interesse egosta est banido. O fato de que uma preferncia vinculada a benefcios particulares se traduz num discurso uni- versalista, sem que deixe de ser auto-interes- sada, banal e constatvel nos embates polticos cotidianos. A defesa do capitalismo pelos capitalistas, por exemplo, raras vezes feita em nome dos privilgios de que usufruem. Em geral, apela-se prosperidade geral, inovao tecnolgica, criao da abundncia e de novas oportunidades, enfim, a subprodutos da busca do lucro que terminariam por beneficiar a todos.

    Mas os grupos dominados tm menor capacidade de traduzir seus interesses numa retrica universalista. Isto se deve, em primeiro lugar, premncia de suas demandas especficas, que os faz exigir mudanas imediatas, com beneficirios e prejudicados muito evidentes, como o caso das polticas re- distributivas ou de ao afirmativa. Deve-se, tambm, ao fato de que os interesses de tais grupos se posicionam contra as vises de m undo hegemnicas, e precisam realizar o esforo extra de desnaturalizar categorias sociais e propor modelos de sociedade alternativos. O resultado que a retrica universal tende a ser monopolizada por alguns grupos, enquanto outros tm suas preocupaes estigmatizadas como particulares, parciais ou egostas (Bickford, 1996, p. 16).

    Fica claro que o modelo deliberativo postula uma forma legtima de produo de decises coletivas legtima por preencher seus prprios critrios, de incluso de todos os

    envolvidos e de ausncia de desigualdade formal e de coao - , mas ignora vieses que viciam seus resultados. Da mesma maneira que a igualdade formal nas eleies, proclamada pela mxima liberal um homem (ou uma mulher), um voto, no garante paridade de influncia poltica, o mero acesso de. todos discusso insuficiente para neutralizar a maior capacidade que os poderosos tm de promoverem seus prprios interesses.

    O Republicanismo Cvico f

    Embora de forma mais sutil do que na vertente liberal-pluralista, tambm para os democratas deliberativos a poltica aparece como uma atividade instrum ental.1'5 Ela um meio para se alcanar o consenso, talvez seja indispensvel para o cum prim ento de certas funes, mas no um bem em si mesmo.

    O carter secundrio da poltica negado por uma longa tradio, que vai exaltar a cidade grega e romana como ideal a ser imitado - um local em que a participao nos negcios pblicos era tida como o pice da realizao humana. Como sintetizou Hannah Arendt (1987 [1957], p. 40), a polis era a esfera da liberdade, enquanto a necessidade imperava na esfera familiar-econmica, onde transitavam mulheres e escravos, responsveis pelas tarefas de produo (e reproduo) do m undo material.

    O republicanismo traz, assim, a marca da revalorizao de um elemento presente no pensamento poltico clssico e moderno, mas que o individualismo liberal descartou. Parte significativa do seu impulso, deriva da obra de historiadores das idias, como Q uentin Skinner (1996 [-1978], 1998) e J. G. A. Pocock (1975). Eies foram importantes sobretudo por recolocarem o pensamento de Maquiavel em- relao sua poca (ao lado de Guicciardini e outros), em relao aos seus

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  • antecessores, os filsofos morais romanos, como Ccero, Lvio e Salstio, e em relao queles que seriam influenciados por ele nos sculos XVII e XVIII, sobretudo nos pases de lngua inglesa, dos dois lados do A tlntico, isto , radicais ingleses como Harrington e M ilton e os prom otores da Revoluo Americana.

    O M aqu iave l dos Discorsi (1979 [1513]),16 assim, ocupa uma posio central no republicanismo, ao lado de Jean-Jacques Rousseau, que no sculo XVIII apresentou a mais im portante alternativa teoria dem ocrtica liberal. Tanto um como o outro se encontram no plo oposto da concepo individualista e liberal, que localiza o exerccio da liberdade na esfera privada, que deve ficar imune, tanto quanto possvel, da interferncia repressiva do Estado. Eles entendem a liberdade como ausncia de dominao; portanto, ela exige a participao ativa na vida pblica. Com o diz Skinner, ao defender a atualidade de tais pensadores, o risco de tirania sempre estar presente se no formos capazes de dar prioridade aos nossos deveres cvicos sobre os nossos direitos individuais (1992, p. 223).

    Ao mesmo tempo, ambos consideram que tal participao deve ser marcada pelo compromisso com interesses gerais da comunidade, que esto acima dos interesses privados de cada um de seus integrantes. M aquiavel, seguindo os autores clssicos, usa o vocabulrio da virtude cvica. Rousseau est mais prximo da expresso contempornea, o bem com um . N um caso como no outro, o substrato o mesmo, com claro' contedo normativo. A ao poltica no pode se resumir barganha ou ao compromisso entre preferncias individuais; ela deve pensar no benefcio da coletividade.

    A expresso mais elaborada desta posio est na obra madura de Rousseau, em sua crtica aos autores contratualistas liberais,

    que percebem a sociedade como mera agregao, ou seja, um estabelecimento instrumental para a realizao de interesses privados. Em seu lugar, ele apresenta o projeto de uma associao, onde se cria uma verdadeira identidade coletiva (Rousseau, 1964 [1762], p. 359). Essa associao no guiada pela busca do bem individual ou pela expresso de um interesse majoritrio, mas pela vontade geral, a categoria mais complexa do pensamento de Rousseau. No a vontade manifesta pela maioria, nem mesmo a vontade de todos, que o autor desdenha como no sendo mais do que uma soma de vontades particulares (Idem , p. 371). a vontade do tpdo social, do eu-comum que nasce com a associao.

    A vontade geral no , para o filsofo genebrino, a resultante do debate pblico de todos, como acreditam alguns intrpretes que tentam ver nele um dem ocrata deliberativo (Wokler, 1995, p. 117). A vontade geral possui um carter metafsico. Gerada no momento do estabelecimento da associao, ela permanece sempre pura e certa, ainda quando a coletividade toma decises erradas. que Rousseau a diferencia da deliberao poltica, que tem por objetivo identificar (e no produzir) a vontade geral, podendo ser menos ou mais feliz no cum prim ento da tarefa. A discusso pblica til como processo educativo dos cidados, mas nada cria; a vontade geral lhe precede e superior a ela.

    Alm disso, a abordagem que Rousseau faz da comunicao peculiar. Em seus numerosos textos autobiogrficos e sobretudo no mais im portante deles, as Confisses, fica patente que uma das experincias decisivas em sua formao foi o sentimento^da opacidade de cada indivduo em relao ao outro, que a linguagem era incapaz de superar (Rousseau, 1959 [1770]). J foi dem onstrada a im portncia deste dado para a com preenso de sua teoria poltica (Starobinski,

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  • 1991 [1971]; Baczko, 1974 [1970]). possvel dizer que at mesmo o isolamento quase perfeito dos indivduos no estado de natureza, tal como descrito no Segundo discurso (Rousseau, 1964 [1755]), a externalizao desta realidade ntima. Diante de tal desconfiana em relao s possibilidades da com unicao, fica claro que Rousseau no seria capaz de produzir uma teoria deliberativa da democracia.

    Por outro lado, no difcil traar uma genealogia ligando o autor do Contrato tanto aos republicanistas como aos participa- cionistas, o que ser discutido na prxima seo. Dentro do republicanismo cvico, especialmente marcante sua vinculao com uma subcorrente especfica, o chamado co- m unitarism o, que valoriza a com unidade como fonte de identidade, de valores e do bem comum.

    A fuso que fao aqui, entre republicanistas e comunitaristas, no est isenta de arestas. Michael Walzer (1992), por exemplo, divide diferentes correntes do pensamento poltico de acordo com o local que indicam para a realizao da boa vida: o mercado, espao da escolha e da liberdade, para o liberalismo; o trabalho criativo, em que se objetiva a essncia humana, para o marxismo; a ptria, onde esto presentes os laos reais, de sangue, para o nacionalismo. E distingue o republicanismo, que localiza a boa vida na polis, onde os cidados afirmam sua liberdade pelo ato de debater e decidir, do co- munitarismo, para quem ela est na sociedade civil, espao da solidariedade. Mas creio que existem boas razes para fundir as duas perspectivas, conforme pretendo demonstrar adiante.

    A idia subjacente valorizao da experincia comunitria que, sem o sentimento de pertencim ento a uma coletividade, nenhum a sociedade pode subsistir - o que combina discusses sobre a organizao de

    mocrtica, sobre a fundamentao da moral e sobre a constituio do eu. C ontra o utilitarismo e o individualismo liberal, a corrente afirma o encaixe (embeddedness) do ser humano no meio social (Maclntyre, 1981; Walzer, 1983;Taylor, 1997 [1989]). A identidade pessoal e a concepo do bem dos indivduos so geradas na sociedade e s so inteligveis dentro desta moldura.

    O alvo Rawls (1997 [1971]) e, de fato, muito da corrente nasce como uma resposta a Uma teoria da justia. Para apresentar sua concepo de.um a sociedade bem ordenada como sendo aquela a que chegariam indivduos racionais desprovidos de preconceitos, Rawls cria o artifcio da posio original. Nela, todos debateriam cobertos pelo vu da incerteza, isto , desconhecendo suas caractersticas particulares - o que inclui desde sexo, orientao sexual e raa at a gerao ou a prpria concepo do bem. Assim, como meras encarnaes de uma mesma Razo universal kantiana, as pessoas deveriam chegar aos dois princpios da justia que o pensador estadunidense enuncia em seu tratado.

    No vocabulrio dos comunitaristas, acusa-se Rawls (e o liberalismo como um todo) de trabalhar com um concepo do indivduo como separado de suas caractersticas. Q uer dizer, no leva em conta que eu s sou eu porque tenho certas caractersticas, inclusive certa concepo de bem, que ancoram m inha personalidade. Se as caractersticas fossem outras, eu simplesmente no seria eu: seria uma outra pessoa. Isto no quer dizer que o indivduo no possa se transformar, s vezes de forma radical, mas sempre mediante um processo especfico, de uma trajetria de vida determ inada. Com o diz M aclntyre (1984, pp. 140-141), preciso ver o ^^constitu do como parte de uma histria de vida, situado num a trajetria, em relao aos outros, com suas outras trajetrias. E Rawls, em suma, levaria s ltimas conse

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  • qncias um a caracterstica de todcro liberalismo, que considera o indivduo uma abstrao.

    A vertente comunitarista parece flertar, muitas vezes, com o discurso da direita mais tradicional, que enfatiza a necessidade de proteger determinados valores (em geral familiares e religiosos) contra os riscos do individualismo. A obra.de Christopher Lasch, em particular, exemplifica tal posio num autor que se considerava- esquerda no espectro poltico estadunidense. Ao lado da defesa de um a concepo tradicional de famlia (Lasch, 1991 [1978]), aparecem os viles que destroem as comunidades, uma lista que inclui em primeiro lugar o mercado, mas tam bm o feminismo, o declnio da autoridade na escola e at a dessegregao racial nos bairros. Com isso, estariam sendo destrudas a famlia, a vizinhana, a igreja e a escola, isto , as instituies que fornecem a disciplina formadora de carter e tambm o sentimento de com unidade (Lasch, 1995, p. 117).1

    Mas os autores mais interessantes da corrente se preocupam em assegurar que no negam os direitos individuais, nem julgam que as minorias devem se curvar aos valores da maioria. Michael Sandel (1998, pp. ix- xvi), em especial, explica que o que ele combate a viso liberal de que os indivduos possuem direitos apriori, independentemente de sua concepo de bem. Para ele, trata- se do inverso: um direito reconhecido como tal quando serve a algum fim moralmente importante. Essa regra ajuda a resolver alguns casos espinhosos para a concepo liberal de justia; permite, por exemplo, que se conceda liberdade de manifestao para ativistas pelos direitos civis dos negros, mas no para neonazistas. Um liberal diria que todos precisariam ter direitos iguais, independentemente de seus objetivos. Um comunitarista estrito observaria que somente teriam direitos os que comungam nos ideais da maioria

    da coletividade. Sandel afirma que os ativistas dos direitos civis tm direitos porque promovem uma sociedade melhor, ao contrrio dos neonazistas.

    Em ltima anlise, porm, os direitos concedidos aos indivduos seriam aqueles vinculados aos valores compartilhados pela comunidade, que delimitaria os parmetros da diferena legtima j que no h outro juiz para determinar quais fins so moralmente bons e quais so nefastos. Nas sociedades contemporneas, marcadas pela pluralidade de estilos de vida, de valores, de culturas, difcil imaginar que um tal consenso ou quase- consenso seja possvel (ou mesmo desejvel). D iante do desafio 'do m ulticulturalism o, Sandel (1994, p. 7) sustenta que a intolerncia nasce do abandono das tradies e da perda de razes. O u seja, a com unidade seria a soluo, no o problema. Mas isso mais wishful thinking do que uma concluso sustentada em evidncias.

    Por outro lado, como ainda observa Sandel (1994, 1998), a soluo de Rawls (e dos liberais em geral) buscar a neutralidade quanto a valores e concepes do bem. Mas tolerncia, liberdade e equanimidade so valores tambm, e no podem ser defendidos com a pretenso liberal de iseno de valores. A questo do aborto o melhor exemplo de uma discusso tica em que fica claro que direito e valores no podem ser considerados separadamente.

    Mais do que apresentar uma construo terica que supere o liberalismo e, assim, ajude a construir uma teoria aprimorada da democracia, o comunitarismo til para assinalar as aporias do pensamento liberal. O tom retrgrado que tinge suas abordagens tam bm reduz sua utilidade para o enfrentamen- to dos desafios da ordem poltica contem pornea. Segundo Gorz, um crtico desta corrente, h a nostalgia de um m undo simples, transparente, pr-moderno, no qual a socie

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  • dade funcionaria maneira de uma com unidade originria' (1997, pp. 190-191; ver tambm Mouffe, 1992). A aproximao com Rousseau, desta vez com o romantismo do filsofo genebrino, mais uma vez possvel.

    Um dos alvos da vertente comunitarista o Estado de bem-estar social; de fato, a comunidade, entendida como o terreno da solidariedade concreta, ope-se tanto ao neo- liberalismo como interveno estatal. O mercado promove o egosmo e rompe a s o l i dariedade social, mas o Estado de bem-estar promove a passividade, rompe com o sentido de responsabilidade social, substitui a solidariedade horizontal pela assistncia vertical e burocratizada.

    Lasch (1995) extrai um exemplo elucidativo do livro clssico de Jane Jacobs (1993 [1961], p. 108) contra o planejamento urbano modernista - livro que, alis, se tornou uma das grandes fontes de inspirao dessa corrente. Uma criana atravessa a rua sem olhar para os lados e leva uma bronca do pi- poqueiro da esquina. M uito mais im portante do que a regra de segurana no trnsito, o pipoqueiro est ensinando criana uma lio subjacente, pelo simples fato de ralhar com ela: as pessoas so responsveis umas pelas outras, sem que.sejam formalmente encarregadas disso. Tal lio impossvel de ser dada pelo Estado de bem-estar. Uma bab ou assistente social que ficasse plantada na rua cuidando dos moleques no poderia transmiti-la, j que a fora reside na gratuidade do gesto.

    Portanto, o sentimento de comunidade promoveria a cooperao entre seus integrantes por meio de interaes quentes e no- burocratizadas. E algo muitssimo complicado, pois insinua que os servios pblicos podem ser dissolvidos nestas formas de cooperao e, de fato, uma tintura comunitarista costuma aparecer em certos discursos de desm onte do Estado, sobretudo na exaltao do mtico terceiro setor. Mas, na ausncia de in

    terveno corretiva do Estado, a comunidade pode ser um viveiro da desigualdade e da precariedade das condies materiais. O resultado , muitas vezes, a tutela da comunidade por um poderoso, omo revelam os esquemas polticos clientelistas e neoclientelistas.

    Para quem est na periferia do capitalismo, fica claro que a crtica do Estado de bem- estar social exige antes a existncia de um. No h dvida de que a interveno estatal permanente desorganiza redes comunitrias, induz passividade, faz com que o sentimento de responsabilidade mtua, que existe entre pessoas que vivem-em comum, seja substitudo pela dependncia em relao instituio protetora. Alis, tudo isso j est em Tocqueville. Mas ser que a com unidade a soluo?.A interao quente entre m ulheres das favelas brasileiras, que cuidam dos filhos umas das outras devido ausncia de atendim ento pr-escolar, pode ser vista sim paticamente como uma demonstrao de solidariedade comunitria. Mas no seria melhor garantir a todas o atendim ento frio proporcionado por um a creche sustentada pelo Estado e operada por seus funcionrios? Alis, o exemplo mostra tambm que a crtica ao Estado de bem-estar, que no exclusividade dos comunitaristas, possui um vis de gnero: ela costuma ignorar o fato de que o peso da solidariedade com unitria recai quase todo sobre as mulheres (Fraser, 1989).

    Em suma, a crtica com unitria oscila entre dois plos: ou condena o liberalismo pela atom izao do indivduo, com o faz Lasch, ou aponta como incorreta a viso liberal de uma sociedade de indivduos atomi- zados, mostrando a permanncia e a im portncia dos laos comunitrios, como fazem os crticos de Rawls. H, claro, uma impossibilidade lgica de que ambas as crticas sejam consideradas integralmente corretas.

    Tanto quanto a teoria deliberacionista, a democracia republicana se situa, em pri

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  • meiro lugar, no plano normativo. A poltica deve perseguir o bem comum, o que ecoa o Maquiavel dos Discorsi, sem dvida o heri desta corrente. Em O prncipe, por sua vez, somos constantemente lembrados daquilo que a poltica . Mesmo sob risco de simplificao excessiva, possvel dizer que a ponte que uniria os dois extremos da realidade ao dever ser seria o reavivamento do sentido de comunidade, com a reafirmao dos laos de solidariedade e identidade que ligam o indivduo a seu grupo.

    Com a valorizao da esfera pblica, a concepo democrtica republicana apresenta um campo mais frtil para o reconhecimento da importncia da comunicao no processo poltico. No entanto, tambm os autores desta corrente tendem a ignor-los. Em primeiro lugar, h a idia de que a vontade geral (ou o bem comum) preexistente, algo que Rousseau afirma de forma explcita e que est presente tambm entre os comuni- taristas. Ao exaltarem o consenso social e os valores compartilhados na comunidade, eles ignoram o fato de que no se trata de construes neutras, mas construes vinculadas a interesses de determinadas camadas; a proteo e o desafio a tal consenso fazem parte da luta pela hegemonia na sociedade.

    Com isso, ocorre uma reduo da esfera da comunicao que semelhante promovida pelos tericos da democracia liberal. Tanto num caso como no outro, no h espao para a construo coletiva das preferncias. A comunicao , antes de tudo, informao - embora, para a vertente republicana, ela tam bm possa desempenhar um papel significativo como parte de um processo educativo.

    Cumpre assinalar, por fim, que nem toda a concepo republicana adota necessariamente uma posio comunitarista. Pelo contrrio, alguns autores preferem demarcar sua diferena. Pettit (1997, p. 8), por exemplo, afirma que seu ideal de liberdade republica

    na comunitrio, mas compatvel com formas pluralistas modernas de sociedade, e valoriza a participao, no como bem em si mesma, mas por ser necessria para o gozo da liberdade como no-dominao. No entanto, muitas dessas distines parecem ser oobretudo retricas. O apelo participao cvica e busca do bem com um tem pouca substncia se no se explica em que se emba- saria tal civismo, ou seja, em que se fundaria o comum do bem. A resposta estaria, pois, na histria, na cultura e nas tradies compartilhadas, na sensao de pertencimento em comum, na identidade construda; num a palavra, na comunidade.

    A Democracia Participativa

    Um dos problemas mais evidentes dos regimes eleitorais, para quem busca resgatar o sentido ideal da democracia, a baixa participao da maior parte dos cidados e das cidads na conduo dos negcios polticos. Embora a influncia difusa da opinio pblica possa se fazer sentir nas decises governamentais, apenas esporadicamente, no momento das eleies, que o povo comum dispe de poder efetivo. Os democratas participativos focam essa questo e propem alternativas, que incrementem a presena popular na poltica.

    Mais do que qualquer outra das correntes crticas aqui estudadas, a teoria da dem ocracia participativa que floresceu sobretudo nas dcadas de 1960 e 1970 - se aproxima de um modelo institucional a ser implementado. Deliberacionistas e republicanistas, como visto, apresentam sobretudo normas gerais e critrios de apreciao dos sistemas polticos existentes, mas pouco avanam no desenho de instituies que pudessem efetivar seus ideais. Em menor medida, esse tambm o caso dos multiculturalistas. J os que defen

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  • dem a concepo de democracia participativa indicam, com razovel nitidez, que tipo de ordenam ento poltico deveria ser adotado para se alcanar uma democracia digna de seu nome.

    Em primeiro lugar, necessrio assinalar que - ao contrrio do que afirmam alguns de seus crticos, como Sartori (1994 [1987]) - os participacionistas no vislumbram o retorno da democracia direta. O arranjo institucional que propem, bem mais complexo, aponta para a possibilidade de aprim oramento da representao por meio da qualificao poltica dos cidados e das cidads comuns.

    Ao contrrio dos comunitaristas, eles no vem uma com unidade j formada, mas tampouco recaem na atomiza.o social tpica da perspectiva liberal. A democracia vai ser percebida e valorizada como um processo educativo; por isso, mais ainda do que qualquer outra, a corrente participacionista reivindica Rousseau e John Stuart Mill como seus precursores intelectuais.

    Na obra de Rousseau, central a viso de que a participao poltica possui um carter em inentemente educativo. Participando da busca pela vontade geral, cada cidado se aprimora na arte de identific-la; h a uma aproximao com a defesa da democracia na Grcia antiga, quando se argumentava que a virtude cvica era fruto de um aprendizado prtico (ver W ood, 1995, pp. 193-194). A glorificao da ampla participao poltica, com destaque para seu carter educativo, ganhou nova verso na obra de Stuart Mill (1995

    . [1861]). No se trata mais de descobrir uma vontade geral, mas de ampliar os horizontes dos cidados comuns, de outra forma limitados por seu ambiente imediato. Da participao poltica nasceriam indivduos mais capazes e competentes.

    Stuart Mill julgava que o grande mecanismo da participao poltica era o sufrgio

    universal. Chamado a tom ar parte no processo decisrio, graas a seu direito de voto, o cidado ou a cidad comuns teriam incentivos para ampliar seu conhecimento do m undo social, escapando dos estreitos limites de sua vida pessoal e de seu trabalho especfico. O resultado se faria sentir no apenas na poltica, mas em todas as esferas da sociedade: pessoas com horizontes mais amplos seriam melhores profissionais. A introduo do sufrgio universal, no entanto, logo destruiu as iluses alimentadas peio filsofo ingls. O direito de voto mostrou-se um incentivo demasiado frgil para a qualificao cidad, dado o intervalo entre as eleies e, em especial, o peso nfimo de cada deciso individual para o resultado geral.

    Os participacionistas entendem, assim, que, para se alcanar a cidadania com petente almejada por Stuart Mill, necessrio am pliar os incentivos isto , as possibilidades de participao. Como o problema de escala se revelou crucial (quanto mais pessoas includas, menor o peso da presena de cada uma), um passo decisivo seria reduzir o m bito das decises polticas, de forma a perm itir a participao direta de todos os envolvidos. Rousseau pode ser includo, mais uma vez, entre os inspiradores dessa corrente. Seguindo o pensamento poltico antigo e, em especial, Montesquieu (1951 [1748], p. 362), ele considerava que a democracia s seria possvel em pequenas cidades-Estado.

    J os participacionistas contemporneos, que no advogam a reduo do tam anho dos Estados nacionais, se insurgem contra a rgida separao entre Estado e sociedade civil e advogam a im plantao de mecanismos democrticos nos espaos da vida cotidiana, notadam ente bairros, escolas, locais de trabalho e famlias. Como afirmou Bobbio (1987 [1984]), j foi resolvido o problema de quem vota, com o sufrgio universal; falta enfrentar o problema de onde st vota.18 Mais

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  • prximos dos cidados, esteS novos espaos de deciso democrtica promoveriam a participao poltica.

    Mas difcil imaginar um mundo em que todas as decises mais im portantes seriam tomadas em fruns pequenos e prximos dos cidados. Mesmo se regredirmos para pequenas economias autrquicas, o que est longe de ser desejvel, a gama de questes que no podem ser resolvidas em plano local imensa:19 trocas entre as comunidades, com unicaes, transportes, epidemias, poluio etc. Assim, a participao na base precisar, necessariamente, ser combinada com uma estrutura representativa piramidal; um dos efeitos benficos esperados do incremento partici- patrio , alis, a ampliao da capacidade de controle sobre os representantes.

    H um ponto adicional, em que a influncia de Rousseau tambm detectvel: a sensibilidade para as desigualdades concretas que existem na sociedade e o reconhecimento de que elas interferem na esfera poltica. Com os participacionistas, o mundo material faz-se presente na teoria poltica. Por isso, o problema da relao entre democracia e capitalismo central aqui, ao passo que negado no pluralismo liberal (o mercado com petitivo visto como fragmentador do poder, portanto benfico para a democracia), abstrado no deliberacionismo e, no republicanismo, sublimado na questo dos efeitos nocivos, do com portam ento egosta que a economia capitalista exige. A democracia participativa, pelo contrrio, traz tona a constatao que j fazia Rousseau (1964 [1762]): impossvel m anter a igualdade poltica em condies de extrema desigualdade material, quando uns so to pobres que precisam se vender, outros so to ricos que podem compr-los.

    Os dois pontos a necessidade da prtica cotidiana da democracia e a busca da igualdade material convergem na discusso sobre a propriedade privada. Por um lado, ela

    a raiz da desigualdade de riqueza; por outro, a propriedade implica necessariamente o controle sobre o processo produtivo, bloqueando a efetividade da participao dos trabalhadores. Se as decises cruciais sobre investimento, lucro e salrio permanecem nas mos dos capitalistas, qualquer introduo de mecanismos democrticos-na empresa ser limitada e, em ltima anlise, contribuir mais para legitimar a explorao do trabalho. Assim, os tericos participacionistas so levados a afirmar, ainda que de forma im plcita, a incompatibilidade do aprofundamento da democracia com a manuteno do capitalismo.

    O modelo de planejamento centralizado, tpico dos pases do socialismo real', tambm contra-indicado, pois se am plia a igualdade material, oferece, em contrapartida, pouco espao para a participao efetiva dos trabalhadores na tom ada de decises cotidianas. Mesmo que o plano econmico fosse a resultante de gestes democrticas, uma vez adotado apareceria como uma imposio exterior (Gorz, 1988, pp. 56-61). A lgica da participao ampliada exige descentralizao do poder. Assim, em geral os participacionistas inclinam-se para propostas de economia autogestionria, que no excluem o mercado, mas do aos trabalhadores a adm inistrao de cada empresa.

    Uma defesa abrangente das vantagens polticas da autogesto apresentada por Robert Dahl (1990 [1985]), no livro em que alcana a distncia mxima em relao a seu liberalismo anterior. C ontudo, os autores mais representativos da corrente participa- cionista foram a inglesa Carole Pateman.e o canadense C. B. M acpherson o verbo est no passado porque M acpherson faleceu e Pateman h m uito anos se dedica exclusivamente teoria feminista. O ponto de partida da discusso, para ambos, pensar se a democracia precisa ficar lim itada a uma com-

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  • petio entre elites. Uma vez dada a resposta negativa, cumpre analisar por que, historicamente, isto aconteceu. A resposta, tambm para os dois, que isto ocorreu devido ao casamento instvel entre mercado capitalista e democracia

    O modelo esboado por Pateman (1992[1970]) enfatiza a introduo de instrum entos de gesto democrticos na esfera da vida cotidiana, sobretudo nos locais de trabalho (a chamada democracia industrial, que exige formas de autogesto). Com isso, haveria tanto uma ampliao significativa do controle da prpria vida, como do entendim ento sobre o funcionamento da poltica e da sociedade, o que permitiria maior capacidade de interlocuo com seus representantes e maior fiscalizao destes. Em outras palavras, a accountability (responsividade do representante perante os representados), que na democracia eleitoral tende a funcionar precariamente, seria aprimorada com o treinamento oferecido pela participao na base. A compreenso deste vnculo entre os nveis micro e macro, que recupera o carter educativo da atividade poltica apontado por Rousseau e Stuart Mill, entre outros, essencial para que o modelo participativo ganhe sentido.

    Fica claro que a participao na base tem, ertre suas funes, a de ser um meio para o aprim oram ento das instituies representativas. O modelo sugerido por Macpherson (1978 [1977]) tambm julga que a ampliao das oportunidades de participao geraria um salto na qualidade da representao. Ele d nfase menos democracia industrial do que a instituies de tipo sovitico, isto , comits a um s tempo deliberativos e executivos, Com a participao de todos, para gerir o cotidiano no bairro, no trabalho, na escola etc. Alm disso, adm inistrando as estruturas maiores da sociedade, permaneceriam os' mecanismos da democracia liberal, s que providos de mais contedo, graas

    qualificao da cidadania. Uma proposta sim ilar indicada pelo ltim o Poulantzas (1985 [1978]).

    Macpherson aponta que, para vigorar, o modelo participativo exige no apenas uma mudana de mentalidade, eliminando a analogia da poltica com o mercado e a autovi- so do eleitor como consumidor, mas tam bm a reduo das desigualdades econmicas, que levam disparidade de influncia poltica. Com o se pode observar, h um crculo vicioso entre as. duas premissas, qual seja, as desigualdades promovem a apatia do eleitorado, de um lado, a apatia impede uma participao no sentido de dim inuir as desigualdades, de outro. Escrevendo em meados da dcada de 1970, Macpherson julgava que esse crculo tinha pontos fracos, o que lhe dava esperana quanto possibilidade de haver uma ruptura; hoje, talvez, no fssemos to otimistas.

    A corrente participacionista no contesta o fato de que a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, aptica, desinfor- mada e desinteressada, mas ressalta que, em potencial, todos temos condies para entender e ter um papel ativo na discusso e na gesto dos negcios pblicos. Rompe-se com a idia, presente de forma aberta ou oculta na teoria democrtica liberal, de que agir politicamente um dom da elite. Ainda assim, ao julgar que a apatia seja somente um efeito da ausncia de oportunidades e do de- sestmulo estrutural, a aposta na disposio das pessoas para o envolvimento poltico talvez excessiva.

    Estudos sobre processos de tom ada de deciso em nvel local revelaram certas des- funcionalidades, bem como a permanncia de desigualdades, que a teoria em geral ignorava. Em especial, as relaes interpessoais no ambiente de participao democrtica inibem a expresso de discordncias; por outro lado, o poder de quem faz a agenda de deliberao

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  • permanece inconteste (Mansbridge, 1983). Ademais, o entusiasmo com experincias de autogesto, sobretudo as da antiga Iugoslvia, recuou medida que se obtiveram dados mais acurados sobre seu real funcionamento (Pateman, 1989).

    A partir do comeo dos anos 1980, a teoria participativa da democracia perde flego no debate acadmico. No Brasil, no entanto, vai ganhar fora, associada sobretudo s experincias de oramento participativo m unicipal, consideradas as mais exitosas inovaes na gesto do poder local. Tal associao reside, a meu ver, num equvoco de interpretao. No se trata de negar a importncia de vrias iniciativas de oramento participativo na renovao de prticas polticas locais, na ruptura com esquemas clientelistas cristalizados e na abertura das instncias decisrias aos movimentos populares urbanos. Mas necessrio perceber que o oramento participativo no um instrumento de deynocracia participativa. Vale analisar, ainda que brevemente, o sentido da participao poltica. Por um lado, qualquer forma de engajamento na esfera poltica pode ser considerada uma participao; a percepo que orienta a construo dos ndices de participao, que passam pelo voto, da presena em comcios, pela contribuio financeira a partidos e candidatos, pela discusso de temas polticos etc. No seu modelo de dem ocratizao, Dahl(1971) apresenta a participao como uma das dimenses relevantes a ser considerada, mas, como j visto, o termo, para ele, indica apenas a expanso do direito de voto. Por outro lado, a participao pregada pelos tericos da democracia participativa est vinculada a um sentido mais forte da palavra significa o acesso a locais de tomada final de deciso, isto , implica a transferncia de alguma capacidade decisria efetiva do topo para a base. Parte im portante das decises ainda seria tomada por delegados eleitos,

    claro, mas a teoria pressupe que a experincia na gesto direta de poder na base amplia a capacidade de compreenso acerca da poltica em geral e de escolha dos representantes.

    Fica claro que a participao do oramento participativo est muito mais ligada ao sentido fraco do que ao sentido forte da palavra. Embora ocorram variaes de local para local e ao longo do tempo, trata-se tip icamente de uma estrutura delegativa piram idal. A princpio, todos os moradores tm a possibilidade de participar das discusses em assembleias de base (embora apenas uma minoria o faa), que culminam com a eleio de uma lista de prioridades e de um nmero de delegados. Esses delegados, por sua vez, escolhem outros, num processo que termina por produzir um conselho com poderes para negociar, amalgamar e substituir as prioridades votadas. o conselho que, no final das contas, elabora a proposta oramentria - na verdade, um adendo proposta oramentria, j que o grosso dos recursos pblicos pertence a rubricas fixas e no passa pelo conselho de representantes da base. Em todo o processo, a participao popular consiste sobretudo na escolha de delegados; nesse sentido, no qualitativamente diferente da participao eleitoral. As experincias de oramento participativo promovem, assim, uma duplicao de instncias representativas, sem a transferncia de poder decisrio real para os cidados comuns. E trata-se de uma representao complexa, em vrios nveis, no s por causa da estrutura piramidal de escolha de delegados, mas tambm porque necessrio entender os participantes das assemblias de base como representantes da populao mais ampla, que na sua maioria no comparece.;ii

    A definio do oramento participativo como forma de poltica representativa recoloca a democracia participativa em seus devidos termos. Na medida em que engloba

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  • necessariamente a transferncia de capacidade decisria para os cidados comuns dentro de espaos da vida cotidiana, ela no tem como se esquivar do problema da reorganizao das relaes de produo. Isto , um ordenamento democrtico participativo permanece incompatvel com a manuteno do capitalismo.

    O Multiculturalismo

    O ponto de partida do multiculturalismo corrente de pensamento crtico que floresceu nas ltimas dcadas, sobretudo no am biente acadmico estadunidense a constatao de que as sociedades contem porneas so e sero, cada vez mais, marcadas pela convivncia entre grupos de pessoas com estilos de vida e valores diferentes, por vezes conflitantes: A rigor, vivemos o prolongamento de uma situao que se constituiu no princpio da era moderna, quando os desdobramentos da. Reforma protestante sepultaram a possibilidade de efetivao da velha divisa: une foi, une loi, un roi (uma f, uma lei, um rei).

    O problema que se apresenta a manuteno de uma mesma lei e de um mesmo rei para sditos' que professam diferentes fs; dito de uma forma atualizada, como garantir a unidade poltica e a igualdade de direitos para cidados cujas origens, crenas e valores fundam entais so to diversos. De acordo com o diagnstico dos autores multicultura- listas, existem muitos vieses nas sociedades contemporneas, que fazem com que idias e valores de determinados grupos sejam desqualificados de forma sistemtica. A preocupao voltou-se, em grande medida, para a denncia dos preconceitos ocultos na linguagem, na mdia e no sistema educacional. Os exageros dessa denncia foram folclori- zados na frmula do politicamente correto,

    um rtulo que evita a discusso de fundo sobre racismo, sexismo, hom ofobia e outras formas de discriminao negativa por vezes invisveis no m undo social.

    Na arena especificam ente poltica, o multiculturalismo assume a forma da poltica da diferena, para usar parte do ttulo de um importante livro de ris M arion Young (1990). O deslocamento essencial que a poltica da diferena faz, em relao ao liberalismo dom inante, a incluso dos grupos sociais numa reflexo poltica que, marcada pelo individualismo, tende a exil-los. Um grupo social no simplesmente uma coleo de indivduos, determinada de forma arbitrria; ele se define por um sentido de identidade compartilhada. Em suma, as pessoas podem formar associaes, mas os grupos, por outro lado, constituem os indivduos (.Idem, p. 45).

    Embora a filosofia liberal clssica no negue, em abstrato, a possibilidade de um interesse de grupo (que sempre ser redutvel aos interesses de seus integrantes),, ela nega que os grupos possam ter direitos - o nico sujeito de direito o indivduo. Tal individualismo um trao constittivo do liberalismo desde seus primrdios. Q uando Hobbes (19801(1651)) e Locke (1998 [1690]), por exemplo, formulam suas teorias do contrato social, no sculo XVII, tambm delineiam uma imagem atomstica da sociedade. Seu fundam ento o bem individual, sem considerao pela com unidade (termo, alis, desprovido de sentido para os dois autores). O nico mvel para a constituio da sociedade poltica a vantagem pessoal - a preservao da vida, no caso de Hobbes, ou da propriedade, no caso de Locke, ambas ameaadas pela ausncia de poder coercitivo imperante no estado de natureza.

    Com Hobbes, h um desvio na direo do absolutismo. Em Locke, porm, a doutrina liberal ganha uma expresso inicial bastante satisfatria, isto , o filsofo ingls de-

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  • lineou com preciso as linhas mestras que guiaram o liberalismo poltico pelos sculos seguintes. O pressuposto indispensvel a existncia de direitos individuais, em geral considerados naturais (jusnaturalismo), que restringem o m bito do poder estatal (Bob- bio, 1988 [1986], p. 17). A idia de direito individual passa a ser a marca do Estado liberal. Nesse sistema de pensamento, difcil abrir espao para a idia de direitos coletivos (salvo quando so ent