livro _A NOVA VIDA.... (1)

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a nova vida

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  • Organizao:Jos Alberto V. Rio Fernandes eMaria Encarnao Beltro Sposito

    capa FINAL.pdf 1 13/01/11 14:07

  • 5A nova vida do velho centro nas cidades portuguesas e brasileirasOrganizao: Jos Alberto Rio Fernandes e Maria Encarnao Beltro Sposito

    Introduo Jos A. Rio Fernandes e M.a Encarnao B. Sposito .......................................................................... 7

    I Centros e Centralidades

    Do centro s centralidades mltiplas Teresa Barata-Salgueiro..................................................................... 13

    Muitas vidas tem o centro e vrios centros tem a vida de uma cidade Jos A. Rio Fernandes .................. 31

    Centros e centralidades no Brasil M.a Encarnao B. Sposito ...................................................................... 45

    II Metrpoles e grandes cidades

    Os tempos novos do centro histrico de Lisboa Joo Seixas, Andreia Magalhes e Pedro Costa .............. 63

    Dinmicas recentes e urbanismo na rea central do Porto. Morte, resistncia, resilincia e elitizao no centro histrico e na Baixa Jos Alberto Rio Fernandes e Pedro Chamusca ............................................... 83

    Panem et circenses versus o direito ao Centro da cidade no Rio de Janeiro Marcelo Lopes de Sousa ...... 97

    Problemas e desafios do velho centro de Salvador Pedro Vasconcelos ................................................... 109

    Metamorfoses do centro da metrpole de So Paulo Ana Fani Alessandri Carlos ..................................... 119

    III Cidades mdias e de intermediao

    Que centro para Aveiro? O papel da Avenida Loureno Peixinho Jos Carlos Mota, Lus Soares e Frede-rico Moura e S .................................................................................................................................................. 135

    Braga, a centralidade de um mercado bimilenar Miguel Bandeira e Abilio Vilaa .................................... 151

    De centro tradicional a centro modernizado: permanncias e transformaes Doralice Satyro Maia (Campina Grande) .............................................................................................................................................. 171

    Coimbra: a organizao da cidade e o centro histrico urbano Norberto Santos ...................................... 189

    A cidade de vora e a relevncia do centro histrico Domingas Simplcio ................................................. 211

    O centro da cidade de Leiria: da glria do passado s incertezas do futuro Herculano Cachinho ............ 227

    O centro de Londrina. Nova vida e novos conflitos William Ribeiro da Silva .............................................. 243

    Velha Marab: mudanas e permanncias no centro histrico de uma cidade mdia da amaznia brasi-leira Saint Clair Trindade Junior, Michel de Melo Lima e Dbora Aquino Nunes ....................................... 255

    Passo Fundo: a monocentralidade numa cidade mdia do sul do Brasil Oscar Sobarzo ............................ 271

    Centro da cidade e novas reas centrais. Uma discusso a partir de So Jos do Rio Preto, Brasil. Arthur Magon Whitaker ................................................................................................................................................ 283

  • 7Introduo

    De duas maneiras se chega a Despina: de navio ou de camelo. A cidade apresenta-se diferente a quem vem por terra e a quem vem por mar.O condutor de camelos que v aparecer no horizonte do planalto os pinculos dos arranha-cus, as antenas de radar, esvoaar nos aeroportos as mangas de vento brancas e vermelhas, deitar fumo as chamins; pensa num navio, sabe que uma cidade mas pensa-a como uma nau que a leva para fora do deserto ()Por entre o nevoeiro da costa o marinheiro distingue a forma da bossa de um camelo, de uma sela bordada de franjas cintilantes entre duas bossas sarapintadas que avanam a balouar, sabe que uma cidade mas pensa-a como um camelo de cuja albarda pendem odres e alforges cheios de frutas cristalizadas, vinho de palmeira, folhas de tabaco e j se v cabea de uma longa caravana que o leva para fora do deserto do mar ()

    Italo Calvino, 1990, p. 21

    H sempre pelo menos duas formas de se poder ver a cidade, porventura opostas ou complementa-res. Os locais, as culturas e os anseios por detrs de quem v a cidade, promovem modos diversos de as considerar que enriquecem a sua compreenso.

    Por isso, aqui se renem vrios olhares. Olhares que juntam os dois lados do Atlntico, num falar portugus, mas onde se cruzam vrias culturas e se distinguem significativas diferenas, no apenas por uma leitura portuguesa e europeia, ou brasileira e latino-americana, mas por desiguais percursos de cada autor, diversas inseres tericas e formas vrias de abordagem dinmica recente do centro de uma dada cidade.

    Naturalmente que, alm do olhar ser diferente, diferente tambm o objeto que se olha. Neste livro, so tratadas cidades de dimenso desigual, situadas em contextos regionais diferentes, as quais podendo refletir aproximaes marcadas pelo processo de internacionalizao (da economia, da arqui-tetura e at do urbanismo) que tendero homogeneizao, todavia refletem de forma absolutamente singular a articulao que estabelecem com outras cidades e entre a sua regio e o mundo, o modo como expressam a mais ou menos longa histria de uma sociedade urbana, feita de dinmicas diversas, associadas no apenas a diferentes ritmos de transformao, mas tambm desigual forma como se revestiu a ao dos agentes de transformao e o modo como se articularam na promoo dos seus in-teresses.

    Os olhares incidem sobre um lugar particular da cidade, o qual refletir de uma forma muito espe-cial suas tenses: o seu centro.

    H uma literatura considervel, especialmente dos anos de 1980 e 1990, sobre a perda da importn-cia dos centros nicos ou principais das cidades, face s dinmicas de reestruturao espacial. Temos uma reflexo acumulada de qualidade, que versa sobre o aparecimento de novos centros comerciais e de servios, a constituio de novas centralidades ou mesmo sua diluio, a perda de prestgio social e poltico dos centros agora apelidados de tradicionais, a alterao das condies de acessibilidade e de mobilidade, a variabilidade dos comportamentos de compra e a segmentao dos consumidores segun-do condies socioecon/micas.

  • 8Lugar de convergncia de pessoas, ideias, bens e servios, o centro , com maior ou menor expresso (que isso varia no tempo e de caso para caso) lugar de encontro, de referncia, de concentrao de ele-mentos diversos que melhor caraterizam o urbano. Em muitas situaes, este centro, sobretudo quando visto como o centro, est em crise. Noutras, por razes diversas, associadas por exemplo dimenso da cidade ou ao urbanstica, foi capaz de demonstrar notvel resilincia e nunca deixou de ser centro principal; noutros ainda transfigurou-se, envelhecendo e especializando-se na oferta para uma popula-o sobretudo rural e/ou de menor poder de compra, por vezes alindado para passeio de turistas.

    A proposta deste livro a de voltarmos nossa perspectiva analtica para o velho centro, na com-preenso de percursos recentes, desiguais, mas quase sempre marcados por alteraes significativas, no que se pode configurar como (mais) uma nova vida de uma rea essencial cidade. Desejamos, portanto, oferecer aos leitores com este livro, uma leitura das dinmicas recentes que se reconfiguram em mltiplas formas, recompondo os centros, redefinindo seus contedos e alterando o seu papel nas estruturas urbanas agora muito mais complexas.

    Tratamos de realidades urbanas muito ligadas pela histria, a portuguesa e a brasileira, mas, tam-bm, muito diversas entre si, por mltiplas razes, que esto analisadas em algumas passagens deste livro. Escolher as cidades a serem abordadas nos dois pases foi, ento, um desafio que ns enfrentamos considerando com nfase dois pontos: reunir artigos sobre vrias cidades que ocupassem posies di-ferentes em seus respectivos sistemas urbanos, de modo a oferecer uma amostra que fosse, de algum modo, significativa do conjunto, sem jamais poder represent-lo completamente, e garantir algum grau de comparabilidade entre as duas formaes sociais, razo pela qual se buscou, em ambos os casos, tra-tar de suas grandes metrpoles, mas tambm enfocar cidades que desempenham papeis importantes de articulao em suas redes urbanas e de comando regional.

    O livro est organizado em trs captulos. O primeiro conta apenas com trs textos e mais geral, pois trata de descrever processos, analisar dinmicas e levantar tendncias, tomando-se como referncia o quadro terico e o conjunto do pas, de modo a contextualizar a leitura dos outros textos. O segundo contm 5 textos, os quais tm como objeto reas urbanas de grande importncia, pelas suas histrias, mas tambm por suas participaes atuais na diviso interurbana do trabalho, as quais se inserem em (e comandam) regies metropolitanas. Sendo certo que, tal como nas demais cidades, a dimenso entre as duas grandes metrpoles portuguesas (Lisboa e Porto) seja muito diferente das brasileiras (So Paulo, Rio de Janeiro e Salvador), sobretudo se avaliadas em nmero de residentes (o que no significar tanto quanto alguns pensam), a verdade que desempenham papis no muito diferentes, pelo menos a nvel nacional, pelo que se optou por reun-las e orden-las por ordem alfabtica. O terceiro captulo e o mais volumoso aborda cidades mdias de ambos os pases em textos que procuram tratar, de forma diversa, as dimenses essenciais que entendem os autores marcar a diversidade das dinmicas do velho centro, quando tratamos dos espaos urbanos menos complexas e com menor nmero de papis, ainda que no sejam pequenos: Aveiro, Braga, Campina Grande, vora, Leiria, Londrina, Marab, Passo Fundo e So Jos do Rio Preto.

    Como se v, um livro, como tantas outras coisas, resultado de um conjunto de escolhas. Entre as que fizemos, uma das mais importantes, foi a relativa aos autores. Convidamos pesquisadores que vm se debruando sobre a anlise do urbano, vm oferecendo contribuies de qualidade sobre os proces-sos espaciais que tocam nossas cidades, com especial destaque para seus centros, razo pela qual, como organizadores dessa obra, s temos agradecimentos pelas contribuies que oferecem. Sem eles, o livro permaneceria um projeto. Com eles, temos base para um debate, para um dilogo com outras leituras disponveis ou que vierem a pblico nos prximos anos.

    Por fim, registamos o que em grande parte explica a origem desta coletnea a relao construda entre ns, seus organizadores. Conhecemo-nos no comeo dos anos 2000, no Simpsio Internacional sobre o Comrcio e o Consumo na Cidade, realizado em So Paulo; mantivemos dilogo profissional, nos

  • 9anos que se seguiram, com a realizao de atividades acadmicas na Universidade do Porto, em Portugal, e na Universidade Estadual Paulista, no Brasil; trocamos ideias sobre textos publicados; fomos apresenta-dos um aos parceiros de pesquisa do outro; fizemos trabalhos de campo em ambos os pases; almoamos, jantamos, batemos papo sobre a vida e, de certo modo, tudo isso parte do caminho percorrido para que essa publicao fosse feita. De algum modo, mesmo que como pequena contribuio, ela represen-ta uma aproximao entre a Geografia Portuguesa e a Geografia Brasileira, tanto quanto oferecem ao leitor um material, que convidamos leitura e crtica.

    Porto e Presidente Prudente,Outono Portugus e Primavera Brasileira de 2012

    Jos Alberto Rio FernandesMaria Encarnao Beltro Sposito

  • I Centros e Centralidades

  • 13

    Do centro s centralidades mltiplas1

    Teresa Barata-Salgueiro Universidade de Lisboa

    Zukin (1998) sugere que as cidades ps-industriais se organizam em torno do consumo em vez da produo, e Lipovetsky (2006) teoriza sobre a sociedade do hiperconsumo que corresponde a uma nova fase do capitalismo de consumo em que o consumidor desempenha um papel central na economia de mercado. Isto implica novas lgicas de produo do espao urbano destinado a seduzir e atrair con-sumidores, novos produtos e novos espaos onde se desenrola o processo de consumo, desde cafs e esplanadas a centros comerciais e complexos de cinemas, de casinos e parques de diverses a museus, mas os bairros de escritrios, ruas comerciais e praas so igualmente apropriados pelo consumo. A l-gica do consumo converteu a cidade em mercadoria, fomenta a sua promoo e marketing suportados por iniciativas de alterao de imagem e intervenes na morfologia e funcionalidades dos vrios stios. A cidade palco e objeto de consumo no se pode reduzir a um nico espao exclusivo, a um centro, mas organiza-se em mltiplas centralidades, embora se tenha assistido nos ltimos anos a uma importante reapropriao das reas centrais.

    A atual cidade expandida e descontnua possibilita aos consumidores fazer uma espcie de zapping que permite a compra, em lugares e momentos diferentes, refeies de todos os tipos a todas as horas (Fernandes, 2007). Enquanto a cidade pr-industrial e a industrial tinham um centro, a cidade fragmen-tada da modernidade tardia ser melhor caracterizada pela existncia de uma rede de centralidades ou, para outros, como Michael Dear, pela justaposio de fragmentos distintos como as peas de um puzzle, a copresena de grupos variados e da diversidade de temporalidades, espacialidades e modos de vida.

    As profundas e rpidas mudanas que caracterizam a nossa poca so responsveis por alteraes nas cidades, a nvel de organizao e das suas funes centrais. Neste texto prope-se uma reflexo sobre a complexidade urbana que a metfora das centralidades mltiplas procura dar conta. Pretende-se explorar a ideia que a transio da organizao urbana de uma estrutura monocntrica para o po-licentrismo acompanha a consolidao da sociedade de consumo, no quadro da crescente produo e apropriao simblica da cidade.

    Comeo por discutir o conceito de centro e centralidade na geografia urbana, depois, na segunda parte, apresento a evoluo da rea central ao longo do tempo, tendo por referncia as cidades portu-guesas, para de seguida elencar alguns elementos do que se poder chamar a nova vida para o centro, no final do sculo 20. O texto termina com os fatores que contribuem para a interpretao das mudan-as, valorizando os que mais diretamente se relacionam com as questes do consumo, e pelo enunciado de alguns desafios que as transformaes identificadas comportam.

    1 Este texto beneficiou da pesquisa desenvolvida nos projetos A criatividade Urbana da Regio de Lisboa (CCDR-LVT), coorde-nado por Isabel Andr e Mrio Vale, Replacis e Chronotope (FCT-Urban-NET) de que coordenei a equipa portuguesa e no primeiro tambm a internacional. Agradeo a todos os colegas a oportunidade de aprendizagem conjunta.

  • 14

    1. Centro e centralidade na geografia urbana

    O centro ou rea central individualiza-se na organizao do espao pelos grupos humanos. Num

    aglomerado, o centro a parte mais protegida e mais controlada, talvez por isso tambm a mais pres-

    tigiada e desejada, aquela onde esto os chefes e as pessoas mais importantes, as quais a comunidade

    tem interesse em defender ou as que tm o poder para impor essa localizao. No modelo de organi-

    zao do espao da cidade pr-industrial de Sjoberg (1960) a elite ocupa o centro. Desde a Antiguidade

    tambm a se encontram a administrao pblica e os templos mais importantes.

    A presena dos poderosos, o prestgio, a segurana, a comodidade da localizao fazem do centro

    a zona mais disputada do povoamento. Com o crescimento do aglomerado e diversificao das funes

    nota-se uma tendncia para o aumento da densidade de ocupao (da o perfil alto dos centros das

    cidades), para a subida dos preos dos terrenos e dos imveis, para o incremento da variedade das activi-

    dades presentes, embora num quadro de concorrncia que leva seleo de umas e marginalizao de

    outras, contribuindo para uma organizao de usos do solo que os modelos da renda econmica, como

    o de Alonso (1960), procuram explicar.

    O conceito de centro, a sua funo, e a relao com outros centros e as reas envolventes pode ser

    analisada a duas escalas interligadas, uma, mais geral, a que se pode chamar do sistema urbano, em que

    a cidade um ponto, e outra, dada pela ampliao da maior escala, em que a cidade uma rea com

    extenso.

    A nvel dos sistemas urbanos as cidades so centrais em termos de emprego, porque concentram

    grande diversidade de atividades e por isso atraem populao rural dispersa em busca de trabalho. So

    tambm centrais pelos servios que prestam e que obrigam a deslocaes de pessoas ou distribuio

    de bens pelos territrios circundantes. A este nvel a discusso tem focado a crescente integrao dos

    vrios sistemas urbanos, por fora do estabelecimento da economia mundo globalizada, e a emergncia

    de cidades globais, destacando-se os contributos de Hall (1966), Friedmann (1986), Castells (1989 e 1996),

    Sassen (1989), Taylor (2004), entre outros, em paralelo com o reforo das configuraes em rede (Camag-

    ni,1993, Veltz,1994, Viard,1994).

    O novo quadro interpretativo do desempenho e dos diferentes caminhos de sucesso das cidades

    tende a valorizar o papel exercido pelas redes em que os lugares participam, em detrimento das funes

    que cumprem para os territrios envolventes e outros lugares do seu sistema urbano. Deste modo, as

    redes tm ganho grande protagonismo na literatura cientfica das ltimas dcadas. A minha preocupa-

    o nos estudos urbanos tem sido principalmente a da cidade como rea, por isso essa que se privilegia

    neste texto. Podemos ento analisar o centro em funo de trs dimenses analticas, a geomtrica, a

    funcional e a simblica, separadas por convenincia de anlise mas inter-relacionadas e presentes em

    todos os centros urbanos. Pode, tambm, considerar-se que a palavra centro se refere a uma entidade,

    a uma localizao com forte poder de atrao de pessoas2 e com determinadas propriedades geom-

    tricas, enquanto centralidade remete para outro tipo de propriedades apostas a essa geometria e que

    reforam a sua atrao. A evoluo do conceito foi no sentido da valorizao destas ltimas a ponto de

    suplantar as da geometria. De facto, a evoluo semntica que se registou na literatura de carter geo-

    grfico de centro ou lugar central para centralidade parece corresponder vontade ou necessidade

    em sublinhar outras dimenses que no apenas a da geometria das distncias ou das acessibilidades,

    mesmo estando presentes na ideia de centro urbano desde h muito, como o caso de caractersticas

    do foro social como o prestgio.

    2 H centros especializados em que a atrao tangvel se exerce sobre mercadorias (como um mercado abastecedor ou um centro de triagem de mercadorias) mas a atrao tangvel do centro da cidade exerce-se fundamentalmente sobre pessoas.

  • 15

    A dimenso geomtrica

    O centro o lugar geomtrico das menores distncias periferia. O efeito da distncia teve grande importncia na explicao da organizao do espao em coroas concntricas em torno do ponto central, desde Von Tnen. A capacidade explicativa da distncia foi reiteradamente afirmada pelas correntes neopositivistas da Geografia locativa dos anos de 1960. Na elaborao da explicao, fizeram apelo aos modelos gravticos e teoria de lugares centrais, talvez o principal corpo terico de referncia para estas correntes que discutem, verificam e reelaboram essa teoria. De notar que tanto nos modelos gravticos como na teoria dos lugares centrais, cumulativamente com a distncia, encontram-se atributos fun-cionais responsveis pela dimenso e posio hierrquica dos vrios centros, tanto escala do sistema urbano como intraurbana.

    A explorao do efeito da distncia permitiu diversificar as escalas de medida e o foco na acessibili-dade levou a uma desvalorizao da geometria strictu sensu. De facto, numa sociedade de mobilidades crescentes e cada vez mais tecnicizada, a acessibilidade mais significativa do que a pura distncia a um ponto. A centralidade torna-se cada vez mais dependente da conectividade, da existncia de ligaes, do tempo de deslocao, do seu custo relativo. Assim, Beaujeu-Garnier e Delobez (1977), numa obra clssica sobre as transformaes do comrcio urbano, salientam que, na expanso das grandes superf-cies comerciais perifricas, mais importante do que a distncia a rapidez da deslocao e a facilidade de estacionamento.

    A dimenso funcional

    Do ponto de vista funcional, os centros so uma concentrao de funes diversificadas que atraem muita gente e, portanto, suportam importantes trocas de informao. As suas propriedades funcionais derivam das atividades que acolhem que os distinguem e lhes do contedo.

    Na Geografia Urbana o centro rapidamente deixou de ser visto apenas como uma rea central pela localizao e acessibilidade para passar a s-lo devido aglomerao de atividades tercirias, principal-mente as que exigem deslocao de pessoas e propiciam o contacto pessoal.

    A centralidade funcional est associada com a organizao e o controle da produo, portanto com a produo do espao para a realizao do capital, mas tambm com a apropriao e o uso para a repro-duo da vida. As necessidades da organizao da produo e da acumulao do capital explicam que os centros acolham os nveis altos da administrao pblica e empresarial, os bancos e outras empresas da rea financeira, as sedes das grandes empresas, o comrcio responsvel pela circulao das mercadorias e no apenas pelo abastecimento das famlias e empresas, diversos servios. As funes necessrias reproduo da vida quotidiana, para alm do alojamento, requerem abastecimento, troca de ideias, con-vvio propiciado pela reunio de gente relativamente diversificada. Talvez seja mesmo isto que justifique a existncia de um centro em todos os lugares. Como exigem deslocaes so muito sensveis acessibili-dade, apesar de alguma perda relativa deste fator em face da valorizao de outras caractersticas, com a consolidao da sociedade de consumo.

    As funes que fazem centralidade no so necessariamente as mesmas nos stios em que o espao transformado para servir a produo e a circulao do capital (centros de negcios) ou para atrair vi-sitantes para o consumo (centro de comrcio, servios, cultura e lazer). Tradicionalmente coexistem no mesmo espao mas, nos grandes centros, nota-se uma tendncia para a separao interna das funes, como o estudo pioneiro de Murphy,Vance e Epstein (1955) mostrou. Hoje em dia o exerccio das funes que fazem as diversas centralidades funcionais transformou-se, bem como os padres de localizao e frequentao, e o consumidor pode escolher entre ir ao cinema no centro tradicional de diverses, num dos centros comerciais perifricos ou num complexo de cinemas de uma das novas reas de lazer e con-sumo.

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    A dimenso simblica

    A Geografia Humanista e a Geografia Cultural contempornea, bem como os estudos sobre o con-sumo e a cultura inspirados em perspetivas fenomenolgicas, vieram lanar luz sobre os laos afetivos que as pessoas desenvolvem com os lugares, mostrando que os stios (tal como os objetos) so imbudos de sentidos.

    As cidades so objetos materiais com uma determinada estrutura fsica habitada que provoca re-presentaes abstratas as quais, por sua vez, afetam as decises e a vida das pessoas. Por isso, Pacione (2001, 22) diz que as cidades tm uma estrutura fsica objetiva e uma estrutura subjetiva ou cognitiva. De facto, os territrios apresentam-se simultaneamente no domnio factual e sensvel, fsico e fenomenal, ecolgico e simblico (Berque,1987). Com Relph (1987) podemos interpretar as paisagens urbanas como expresso de ideias e valores da poca em que foram produzidas.

    O sentido de lugar resulta da ocupao continuada de um territrio e de eventos reais ou imagi-nrios que nele tiveram lugar, que so recordados atravs da construo de monumentos ou da preser-vao de testemunhos, como lembra Cosgrove (2000). portanto expresso da cultura e faz parte da identidade de um grupo. Mas se o carter simblico dos lugares um produto cultural que resulta da apropriao do espao, a imagem que apresentam e as representaes que suportam so construdas pela experincia direta ou indireta dos lugares e contribuem para atribuir o carter distintivo aos diver-sos stios. Isto permite o uso das imagens no marketing dos lugares, como adiante se ver.

    A centralidade simblica est essencialmente ligada s ideias de prestgio e de poder que explica a marcao fsica desse espao pelo poder, ao longo dos tempos, e a atrao que transforma os centros em lugares de reunio de pessoas.

    Cedo na histria urbana encontramos o uso simblico do espao pelo poder politico e religioso que marcam o espao central, desde logo pela sua localizao nele, depois pela construo de monumentos que os simbolizam e exprimem. A arquitetura e o desenho urbano se encarregaram de valorizar estes stios de os tornar, pela via artstica, imponentes e impressivos.

    Os templos principais, o palcio, a sede da administrao esto quase sempre na praa central, des-de o agora e o frum da Antiguidade. Esta praa pode ter no centro um monumento evocativo de um acontecimento ou personagem, desde o obelisco que evoca a ocupao do Egipto (na Sultanahmet de Istambul e na Concorde de Paris) s figuras equestres das praas reais europeias dos sculos 17 e 18.

    No caso portugus, a praa do palcio real, o Terreiro do Pao, depois do terramoto de 1755 reno-meada de Praa do Comrcio, continuou a ser designada pelo velho nome e, mais do que isso, a significar a centralizao do poder poltico de Lisboa, o seu domnio sobre o resto do pais, independentemente de ter perdido o palcio real h muito e hoje quase nem alojar ministrios. Porm, a persiste o ministrio das finanas o que, portanto, a nvel simblico, ainda permite que a expresso no tenha perdido com-pletamente todo o suporte em termos materiais de contedo.

    O prestgio dos stios vem do capital simblico que o poder e as famlias com elevado estatuto social emprestam ao espao que ocupam. Esse capital passa das pessoas para os imveis e stios podendo, em certos momentos, ser trocado por dinheiro, como sucede aquando da aquisio das residncias burgue-sas para instalao de empresas, processo que Pinon e Pinon-Charlot (1992) descrevem na migrao do centro de Paris para oeste, semelhante ao da migrao do tercirio de empresas pela avenida da Liberdade e bairros anexos, em Lisboa. As empresas valorizam-se ao instalar-se num imvel e bairro de prestgio que resulta da posio social do anterior ocupante. A arquitetura sendo tambm um ele-mento distintivo pode ajudar a conferir uma imagem de modernidade ou, pelo contrrio, de respeito pela tradio, importantes para o prestgio das empresas que ocupam esses edifcios. Posteriormente, o estabelecimento de empresas de qualidade refora o prestgio e as caractersticas atrativas do stio. Por isso, num estudo sobre a formao de novas centralidades de escritrios em Lisboa, valorizaram-se

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    os aspetos simblicos do prestgio dado pela qualidade das empresas, articulada com a modernidade da forma arquitetnica, e considerou-se que centralidade significava boa acessibilidade a transporte automvel combinada com a qualidade do espao e das atividades que o ocupam (Barata-Salgueiro, 1994,88).

    ainda o prestgio do lugar, resultante da sua apropriao por grupos de elevado estatuto social, que o pe na moda e explica que as elites burguesas o usem para o passeio de ver montras, para ver e ser visto, tal como o flaneur com o qual a intelectualidade parte para o mercado, num processo to bem descrito por Baudelaire e analisado por Benjamin (1982 e 1974 em Kothe, 1991,39).

    Grupos de elevado capital cultural, muitas vezes desprovidos de capital econmico emprestam tam-bm prestgio e valor aos stios que frequentam concorrendo igualmente para a seleo e produo de novas centralidades.

    A valorizao crescente dos sentidos dos lugares na sociedade de consumo contribui assim para a proliferao de novas centralidades definidas por grupos e formas de capital diferentes.

    2. Caminhos do centro

    O modelo das zonas concntricas de Burgess tem funcionado como cnone ilustrativo da evoluo da organizao urbana. Segundo este modelo, cada coroa, a comear no ncleo central, cresce ganhan-do espao custa da invaso da coroa envolvente, sem negar o crescimento vertical no prprio stio, a verticalizao dos centros das metrpoles (Souza, 1994), responsvel pela sua densificao.

    A observao da realidade emprica, a rea ocupada pelo centro das cidades europeias ao longo do tempo, revela, no entanto, que, independentemente de haver crescimento na sua periferia imediata, a maior parte dos centros caminha, pois a invaso no se d uniformemente em coroas mas progride numa direo privilegiada, traduzindo-se numa deslocao do centro ao longo do tempo. Encontramos referncias a este tipo de movimento em cidades muito grandes como Paris, em que a direco dada pela localizao das residncias de classes altas (Pinon,Pinon-Charlot,1992) e pequenas como Leiria (Cachinho 2006a) estudada neste volume.

    Em cidades de stios alcandorados, como sucede em muitas cidades portuguesas, no stio alto encon-trava-se o castelo, o corao defensivo, e a sede da administrao pblica. sua porta se fazia a feira, ainda hoje evocada na toponmia (largo, hoje rua do Cho da Feira em Lisboa). Com o desenvolvimento da vida de relao, na parte baixa, junto das vias de trnsito (sejam elas o porto, como em Lisboa, no Porto ou em Coimbra, ou a estrada, como em Montemor o Novo) aglomeram-se as actividades econmi-cas ligadas troca, com os armazns, as lojas, os mercadores, a produo artesanal e depois fabril. Este ncleo de actividades rapidamente se converte tambm em centro (de actividades e das trocas).

    Mesmo que o centro alto e o centro comercial estivessem ligados por uma via central movimenta-da, situao no muito frequente, o crescimento acaba por conduzir a uma duplicao do centro com especializao entre o castelo, sede da administrao poltico-militar, e a ribeira, locus do comrcio e da vida de relao, e depois ao declnio do primeiro a favor do reforo do segundo. Em Lisboa este processo, pelo menos a nvel simblico, acontece quando D.Manuel transfere o palcio real para a beira-Tejo.

    Na segunda metade do sculo 20, a grande expanso e transformao das actividades do sector tercirio com a terciarizao das economias urbanas, pelo menos nos pases mais desenvolvidos, vai ter grande impacto na rea central das cidades que aumenta consideravelmente, seja pela verticalizao, seja pela horizontalidade do alargamento em extenso. Neste contexto, encontramos de novo um pro-cesso de crescimento com duplicao e especializao, entre a Baixa e a Boavista no Porto, a Baixa e as Avenidas Novas, em Lisboa.

    Nesta fase as cidades apresentam um novo centro de actividades tercirias, muito dinmico, an-corado nos modernos edifcios de escritrios pontilhados com algum comrcio, no geral por via de

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    galerias e pequenos centros comerciais, e uma Baixa em processo de declnio, com actividades roti-neiras, imveis degradados e progressivamente esvaziados. Isto levou-me (Barata-Salgueiro, 2001) a distinguir o centro histrico do centro tradicional (a Baixa) e do novo centro (Marqus-Avenidas), no caso de Lisboa.

    Condicionada pelo cnone da cidade norte-americana explicava a extenso do centro de Lisboa em direco s Avenidas Novas pelos constrangimentos topogrficos e urbansticos que dificultavam o seu alargamento in situ e nas imediaes. O estatuto urbanstico da Baixa pombalina impede a substituio dos imveis, portanto a verticalizao, enquanto os declives acentuados e as ruas estreitas que serpen-teiam nos tecidos antigos e consolidados das colinas que a marginam constrangem o crescimento lateral. No restava outra soluo do que seguir os vales para Norte, principalmente o mais nobre ocupado pela Avenida da Liberdade e, chegando rotunda, dispersar-se no territrio homogneo das avenidas pla-neadas com malha ortogonal relativamente desafogada. A quase inexistncia de constrangimentos per-mitiu que a proliferassem os negcios imobilirios tendo-se dado assim a redefinio das centralidades pelo capital imobilirio. Os palacetes burgueses do ltimo quartel do sculo 19 e primeiras dcadas de novecentos deram origem a edifcios de escritrios onde se instalaram bancos e outras empresas, hotis, pequenas galerias comerciais e, a partir de certa altura, tambm condomnios residenciais de standing.

    A arquitetura de empresas inundou progressivamente o territrio das avenidas com edifcios de autor, por vezes arrojados, quase provocatrios, de qualidade muito variada que semeiam alguma per-turbao visual ao romper com a unidade estilstica reveladora dos diversos perodos de ocupao. Sur-gem os primeiros projetos de uso misto, associando habitao servios comrcio lazer, e nota-se a mudana de escala na produo urbana (Barata-Salgueiro, 1994). A rea ocupada e/ou a arquitectura adquirem forte valor simblico e tanto representam o poder financeiro da instituio como transmitem o respeito pelo patrimnio e pela histria do stio, seja pela integrao de testemunhos conservados de antigos edifcios fabris ou jogando com eles, ou, ainda, apresentando-se simplesmente como modernos (ou ps-modernos) e divertidos.

    Este caminhar do centro a partir de uma localizao inicial tem sido documentado em muitas cida-des, designadamente pelo estudo do comportamento locativo do comrcio de nvel mais alto.

    Penso hoje que a duplicao do centro a que se assiste entre o final dos anos 50 e os anos 80 corres-ponde a uma fase de transio para a situao de centralidades mltiplas trazida pelo policentrismo. De facto, sensivelmente ao mesmo tempo que os servios se dispersavam nas avenidas novas, produzindo a uma nova centralidade, surgem em Lisboa outras centralidades, por vezes especializadas, fora desta rea, como so os parques de escritrios ou de empresas, as grandes superfcies comerciais e os parques de diverses e outros espaos de lazer. Bairros antigos foram apropriados pela economia cultural ou cria-tiva, que muitas vezes se interliga com a economia da noite, outros especializaram-se na oferta turstica explorando o patrimnio construdo e a nostalgia da autenticidade.

    Tornou-se difcil, seno impossvel, identificar o centro nas metrpoles contemporneas que ocupam vastos territrios e apresentam estruturas muito complexas de centralidades mltiplas que polarizam grande volume de deslocaes.

    A organizao urbana passou, portanto, de uma situao dominada por um centro para uma outra de policentrismo em que existem vrias reas de centralidade, sendo que umas so especializadas, por exemplo nos servios de cio e lazer, e outras diversificadas porque combinam comrcio e escritrios, ou habitao-comrcio e escritrios, embora as tendncias atuais do planeamento sejam crticas da separa-o funcional do Modernismo e favorveis a alguma diversidade, suporte da variedade de usos.

    Os diversos centros constituem ento uma rede de centralidades ligadas por fluxos de vria ordem. No caso dos centros de comrcio, os que mais tenho estudado e melhor conheo, eles oferecem um leque variado de escolhas aos consumidores que frequentam os vrios centros em diferentes ocasies e por

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    motivos diversos, tendo-se perdido a caracterstica de fidelizao e de exclusividade de reas de mercado marcadas pela distncia e acessibilidade.

    3. Nova vida para o centro

    O avano do centro para novas reas tem acarretado o declnio das que so libertadas e abandona-das. Muitos bairros encerrados pelas muralhas dos castelos desapareceram ou esto em vias de abando-no total. O comrcio e outras atividades de lazer que fizeram o sucesso dos centros tercirios que eram objeto do passeio para ver montras e dos encontros nos cafs e pastelarias, entre o final do sculo 19 e durante a primeira metade do 20, entraram em estagnao e declnio nos anos 60.

    Depois de um perodo de decadncia os centros ganham nova vida, em articulao com o desenvol-vimento de novas procuras (Barata-Salgueiro,2006) e novas estratgias de produo do espao, e a sua funo predominante desloca-se para a esfera do consumo e para a produo simblica que lhe est associada.

    reas centrais das metrpoles, correspondentes ao centro histrico ou tradicional, frentes aquticas e outros brownfields da cidade centro foram tomadas pelo conjunto de atividades do sector da cultura-lazer-turismo, fruto de intervenes de reabilitao ou regenerao em que o sector pblico frequente-mente se alia ao capital imobilirio.

    A bibliografia sobre esta evoluo muito vasta, uma vez que se encontram textos a dar conta da transformao dos tecidos urbanos no mesmo sentido, um pouco por todo mundo3, pelo que me limito a enunciar brevemente as formas mais comuns, para seguidamente me deter sobre o contexto em que elas decorrem.

    Do ponto de vista comercial a transformao das reas centrais, mostra naturalmente diferenas se-gundo ramos e reas do centro. As novas ofertas podem substituir os antigos comrcios de rua ou surgir em centros ou galerias comerciais que se multiplicam nas reas centrais de muitas cidades. Em termos de grandes tendncias pode dizer-se que se nota um aumento da diferenciao por via de processos de dualizao, etnicizao e criatividade que vo ao encontro da maior segmentao dos consumidores por estilos de vida e padres de consumo. A separao geogrfica do comrcio de luxo em relao s ruas comerciais no um fenmeno novo, mas foi ampliado pelo desenvolvimento de uma elite global de super-ricos e pela atrao das marcas. J a vitalidade das ruas comerciais do centro decorre mais de fenmenos geracionais e culturais do que propriamente econmicos.

    Nas avenidas de comrcio de luxo (Carreras e Pacheco,2009; Rosa,2010) onde se encontram as ca-sas das grandes marcas da moda internacional (avenida da Liberdade em Lisboa, Paseo de Gracia em Barcelona, rua Ortega y Gasset, em Madrid, rua scar Freire em So Paulo) os clientes so muitas vezes estrangeiros, principalmente angolanos e da Europa de Leste, no caso de Lisboa.

    As ruas comerciais so dominadas por lojas de franquia e cadeias nacionais e estrangeiras. Grandes Armazns podem coexistir com pequenos e mdios centros comerciais e surgem ncoras fortes que tan-to podem ser uma livraria, como a FNAC, uma gelataria ou uma loja da Nespresso, todas com presena no Chiado de Lisboa. Esta rea que foi o centro social e da moda nos anos de 1950 e 1960s para depois desaparecer dos roteiros, voltou a adquirir uma grande vitalidade nos ltimos anos, designadamente para gente jovem.

    Para alm dos processos em curso a nvel de convenincia, assistiu-se tambm a uma etnicizao do comrcio do tipo bazar, eventualmente com artigos pseudo artesanais para turistas, no centro. Estes estabelecimentos no apresentam um padro locativo claro, porque aparecem nas ruas comerciais, nas reas de restaurantes, ou em antigos mercados transformados.

    3 Para exemplos do Brasil veja-se Vargas e Castilho 2009, e para a Europa Mediterrnea, Martnez, 2010.

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    As reas de lazer desdobram-se entre novos equipamentos de cultura (museus, aqurios, salas de concertos) com forte contedo simblico, zonas variadas de diverses, bares e restaurantes, pr-existen-tes mas renovados ou criadas de novo. Caso particular, onde produo e consumo se combinam, dado pelos bairros culturais e criativos com diferentes configuraes e localizaes, mas sempre definidos pela concentrao de atividades ligadas s artes, ao design, moda, msica, ao vdeo e comunicao, que atraem tambm restaurantes bares, discotecas com ambientes mais ou menos alternativos.

    Na Geografia provavelmente Scott (1997) quem primeiro estuda bairros emergentes com ativi-dades culturais e criativas. Hall (2000) foi tambm sensvel cedo importncia que a cultura comeava a assumir na economia urbana de cidades convencidas que ela podia resolver todos os problemas de armazns e fbricas encerradas. Noutra perspetiva, Lipovetsky e Serroy (2008,21) ajudam a compreender a ligao entre cultura e consumo ao teorizarem sobre a cultura-mundo marcada pela grande diversi-dade das experincias consumistas e, ao mesmo tempo, um quotidiano marcado por consumos cada vez mais cosmopolitas.

    H tambm exemplos de revitalizao de certos bairros at ento marginalizados do ponto de vis-ta socioeconmico, por vezes ocupados por minorias tnicas, por intermdio de atividades de turismo, cultura e lazer em torno da msica e da restaurao, j sem considerar o turismo de risco que vende excurses com estadia nas favelas do Rio de Janeiro.

    Do ponto de vista do alojamento assiste-se a uma grande diversidade de situaes. A mais antiga liga-se a processos de gentrification desenvolvida por artistas e intelectuais com elevado capital cultural mas pouco capital econmico que procuram velhos edifcios em reas centrais, por serem muito acess-veis do ponto de vista da mobilidade e do preo. Esto muitas vezes na origem da definio de novas reas culturais e criativas na cidade interior.

    Cresce tambm a oferta de habitao de luxo e de hotis, ao mesmo tempo que processos mais fracos lanam no mercado alojamentos para grupos de menor poder econmico. Os estratos mais altos so o alvo dos processos imobilirios dominantes que permitem o avano da gentrification (Smith,1979 e 1996, Lees,2000 e 2008, Mendes,2010), enquanto os apartamentos grandes da cidade burguesa do final de oitocentos e da coroa decadente do centro so disputados por estudantes, nacionais ou estrangeiros, deslocados das suas terras de origem e por imigrantes. No caso de Lisboa, existe ainda alguma oferta de habitao de iniciativa pblica para jovens, no quadro de polticas de rejuvenescimento das reas interiores.

    O turismo urbano nas suas diversas modalidades tem conhecido grande expanso no incio do scu-lo 21. Paralelamente aos hotis de luxo, tem aumentado a oferta de alojamentos para turistas jovens e pouco endinheirados atravs de hostals, alguns instalados em imveis reabilitados dos centros histri-cos de Lisboa e do Porto. No mesmo sentido tem crescido a oferta de alojamentos tursticos em prdios de habitao, de forma pontual e dispersa na cidade antiga.

    4. Fatores e Desafios

    Estas transformaes expressam alteraes na procura e nos estilos de vida e resultam de interven-es no territrio, diferentes pela dimenso da rea intervencionada, alcance e tipo da operao. Os fatores que explicam as alteraes assinaladas referem-se a mudanas contextuais, dos consumidores e da produo do ambiente construdo. Nas primeiras limitamo-nos a fazer uma breve referncia s preocupaes ambientais e transformao das mobilidades, porque o propsito principal deste texto sublinhar a importncia que o consumo tem na transformao da estrutura de centralidades. No po-demos, porm, ignorar, mesmo que dedicando-lhe pouco espao, a produo do ambiente construdo articulada com as polticas pblicas.

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    Fatores de contexto

    Tem-se assistido ao crescimento da sensibilidade ambiental e dos valores sobre a ecologia e susten-tabilidade que levam as pessoas a procurar estilos de vida mais saudveis, como andar mais a p ou de bicicleta, consumir produtos bio e frequentar ginsios, com menos impactos negativos no ambiente, e a mudanas de atitude no sentido de aumentar a reutilizao e reciclagem.

    Os estudos sobre as alteraes climticas, o equilbrio hdrico, o estado de muitas reservas, designa-damente de petrleo, a reduo da biodiversidade apontam para a necessidade de alterar o paradigma do crescimento econmico e tm servido de suporte a recomendaes de poltica no sentido da limitao da disperso perifrica e favorveis urbanizao compacta.

    No que respeita s mobilidades, importa sublinhar que, perto do final do sculo 20, cresceram mui-tssimo todos os tipos de movimentos. Os mais expressivos envolvendo pessoas dizem respeito s migra-es internacionais de trabalhadores e s do turismo. O aumento do nmero de residncias familiares conduziu tambm ao alargamento do tipo de lugares em que se localizam tendo crescido as residncias secundrias em cidades de vrias dimenses, por vezes num pas diferente do da residncia principal.

    escala urbana aumenta o nmero de deslocaes e o seu alcance, bem como os motivos que as determinam. s migraes pendulares vm juntar-se as motivadas pelas compras e pelo lazer.

    Neste contexto, a procura para o comrcio e os servios urbanos muito superior estimada com base na populao habitualmente residente, e inclui visitantes e turistas, residentes a tempo no inteiro na cidade, caso de estudantes e residentes em segunda habitao (Barata-Salgueiro, 2006). Martinoti (1993) foi sensvel a esta questo ao identificar uma srie de populaes flutuantes cuja presena lhe permite diferenciar geraes de metrpoles. Nas de 2 gerao dominam os migrantes pendulares mas aparecem j os visitantes, consumidores e usurios da cidade que no residem nem trabalham nela. A transio para a metrpole de 3 gerao marcada pela presena de grupos que praticam um uso intensivo e contnuo de reas muito especficas da cidade, como o caso das pessoas que viajam em negcios ou dos turistas.

    A transformao nas mobilidades de tal ordem que permite falar num tempo de hipermobilidade em que todos os fluxos aumentam e, ao mesmo tempo, aceleram e dispersam-se no territrio numa teia cada vez mais densa (Adams 1999). Ao mesmo tempo, desenvolve-se um novo tipo de comportamento no contexto da cultura urbana em que a mobilidade, a cultura da deslocao entre lugares, o principal definidor das formas de habitar o territrio e significa novos tipos de consumo e hbitos culturais (Mu-noz, 2008, 82).

    Alterao nos estilos de vida. A cultura do consumo

    As transformaes nas paisagens s tm sucesso se as pessoas e empresas se apropriarem dos novos espaos produzidos. Tal como na evoluo das espcies, haver inovaes que no resultam e das quais o territrio no guarda memria.

    Neste ponto procuramos alinhar alguns aspetos da sociedade de consumo contempornea que aju-dam a perceber a transformao das reas centrais das cidades, a contaminao do espao pelo consu-mo. Destacamos basicamente o processos de identificao e diferenciao associado ao papel da esteti-zao da vida quotidiana.

    Veblen (1899) com o conceito de consumo conspcuo percebeu a importncia deste como sinal de status, de uma identidade que no provinha apenas da classe social. Continuando a atribuir ao con-sumo propriedades de identificao e sinais de distino, num processo de comunicao, Baudrillard (1975) destaca a crescente importncia do consumo de sentidos em vez do dos bens e servios que os suportam.

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    Depois de uma poca de generalizao do acesso a bens de consumo de massa relativamente igua-litrios, assiste-se a um aumento da complexidade social com maior diferenciao de pessoas e grupos. Surgiram novas profisses que no possuam estatuto social o qual foi construdo por meio de processos de consumo (Hall, 1998, 90). Formaram-se novas elites, novos grupos sociais ricos em outras formas de capital que no necessariamente o econmico, que recorrem ao consumo cultural como forma de reco-nhecimento e de identificao individual e do grupo. Tal como a alta cultura era apangio das classes altas, o consumo cultural contribui para um processo de identificao de grupos entre jovens profissio-nais, sendo incorporado nas aspiraes que integram os processos de mobilidade ascendente (Miles e Miles, 2004, 51).

    A nova Geografia Cultural tem sublinhado a estetizao da vida quotidiana e do espao de vida pelo cultivo do gosto e pelo desenvolvimento da predisposio esttica dos indivduos que ganha maior possibilidade de concretizao e, portanto, maior visibilidade em sociedades de relativa abundncia (Ley,2003).

    Warhol elevou as latas de sopa mais popular nos EUA a objeto digno de ser representado pela pin-tura. Na sequncia de Bourdieu, Ley (2003, 2530), evocando a disposio que transforma os materiais ordinrios em objetos com valor, sublinha que nada mais distinto do que a capacidade para conferir estatuto esttico a objetos comuns. No entanto, a capacidade para apreciar e reconhecer esse valor requer conhecimento e cultura pelo que a apropriao do objeto serve de sinal de distino no espao social da cultura urbana.

    O processo de consumo transformou-se num ato social, uma atividade de produo e reproduo de sentidos e cdigos, numa transao simblica (Baudrillard,1975; Featherstone, 1991), em que intervm estratos das novas classes mdias burguesas e indivduos com elevado capital cultural.

    No quadro da sociedade do hiperconsumo h consumidores que j no esto pressionados pela necessidade de mostrar sinais de estatuto mas buscam no consumo experincias emocionais, bem-estar, qualidade de vida, sade, autenticidade (Lipovetsky,2006).

    Os padres de consumo fragmentam-se pois em nichos de mercado definidos pelos estilos de vida e preferncias culturais. O aumento da variedade dos consumidores traduz-se numa procura diversificada que busca alternativas oferta igual e massificada oferecida no centro urbano e nos centros comerciais (Crewe e Beaverstock,1998).

    A produo contempornea permite lanar no mercado artigos diferenciados para nichos de consu-midores. Ao mesmo tempo, os princpios de consumo vo estender-se dos objetos aos stios integrando tudo na lgica da mercadoria, num processo de mercadorizao indireta (Crawford 1992,14), processo segundo o qual objetos, atividades e imagens no vendveis so colocados no mundo da mercadoria [visto como o dos centros comerciais]. Miles e Miles (2004) notam que o estuto social requer desempenho o que, por sua vez, pede territrios adequados representao. Deste modo, a cidade envolvida na economia simblica do consumo e da cultura.

    Estas tendncias sociais de diferenciao e alteraes no consumo, a associao entre comrcio e lazer, comrcio e cultura contribuem para explicar, primeiro, a transformao dos espaos de comrcio em lugares de consumo, depois, que a tendncia para criar ambientes que proporcionem experincias de consumo se estenda das lojas aos stios em que elas esto implantadas e prpria cidade, e, finalmente, o sucesso na apropriao pelo consumo de espaos novos na rea da cultura. Ajudam tambm a perceber a multiplicidade de lugares (centralidades) que podem proporcionar experincias de consumo, no mais restritos ao comrcio de um centro urbano ou centro comercial.

    O nfase na experincia obrigou os comerciantes a criar ambientes que proporcionem experincias de consumo completas (Warnaby, 2009). Nos anos 90 os espaos de comrcio evoluem para lugares de consumo estimulados pelo valor-signo e simbolismo dos ambientes e dos artigos (Cachinho,2002) num processo em que as lojas se convertem de pontos de venda em ambientes que proporcionem experin-

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    cias de consumo e em bens para serem consumidos (Barata-Salgueiro, Cachinho,2009). Mais do que bens

    e servios as lojas fazem apelo a experincias e fornecem os elementos necessrios construo de proje-

    tos de vida na hiper-realidade do consumo, se adotarmos a perspetiva da teoria da cultura do consumo,

    tal como explicado por Cachinho (2012).

    A perceo esttica pode criar ou potenciar o carcter distintivo e a experincia dos lugares, e pode

    ser estimulada pela arte pblica, pelos edifcios e seus ocupantes, como o caso das lojas. No simbolismo

    da sua arquitetura e design e no valor-signo das mercadorias, os novos espaos comerciais transformam a

    cidade num espetculo em que os consumidores so simultaneamente espectadores e atores (Cachinho,

    2006 e 2012).A valorizao esttica dos imveis tanto passa pela conservao que valoriza o passado

    visto como autntico, em paisagens ditas de nostalgia e memria, como pela introduo do desenho

    contemporneo. Por isso, nos centros renovados combinam-se testemunhos do passado com cones da

    nova arquitetura de autor e multiplicam-se os exemplares da arte pblica.

    A propsito do comrcio, Warnaby (2009) sugere mesmo que, numa poca de grande competio

    e valorizao da experincia, a explorao da paisagem urbana e das suas propriedades arquitetnicas

    pode contribuir para a vantagem competitiva de determinado lugar sobre outros destinos de compras.

    O peso do consumo explica que o acervo dos novos cones culturais museolgicos, do MACB de Bar-

    celona Tate Modern, no seja muito importante, porque vivem de exposies temporrias e sobretudo

    da sua arquitetura, localizao e do movimento que enche o trio, a loja, a livraria e o caf. A propsito

    destes objetos icnicos, Miles e Miles (2004, 57-58) notam que o consumo de objetos culturais se trans-

    muta no do ambiente cultural oferecido pelas novas paisagens urbanas estetizadas dando espacialida-

    de economia simblica que noutras situaes se processa atravs da simulao, como na Praa Sony,

    em Manhattan, que pretende reconstruir as arcadas envidraadas de Paris oitocentista (Zukin,1995). Em

    todos os casos se nota a centralidade da imagem. Para alm da importncia da imagem, importa ter

    presente que a transformao cultural das cidades de centros de produo para territrios espetacula-

    res de e para o consumo, povoadas por uma cidadania cosmopolita, tem sido avanada como elemento

    dinamizador das formas empresariais das polticas a nvel local (Hall e Hubbard,1996).

    As polticas pblicas

    Face ao declnio e despovoamento das reas centrais, por um lado, e ao aumento da concorrncia

    entre lugares, as cidades empenharam-se desde os anos 80 em polticas destinadas a rejuvenescer as

    reas interiores, ganhando residentes; atrair investimentos, atividades e visitantes; garantir a viabilidade

    e vitalidade aos centros.

    Para atingir estes fins promoveram-se importantes trabalhos a nvel da infraestrutura e dos tecidos

    edificados bem como a aes de marketing e promoo, com a organizao de eventos, e de mudana

    da imagem do stio ou cidade num triplo processo de re-imagination (Bianchini e Schwengal,1991 em

    Hall,1998,91) que contribui simultaneamente para pr a cidade no mapa, atrair gente e investimentos.

    Na atual fase de recomposio urbana, as operaes que tm sido dirigidas rea central das cidades,

    as nicas que importa considerar neste texto, combinam, no geral, medidas de caracter organizacional e

    de promoo com intervenes no ambiente construdo. As ltimas envolvem reabilitao ou renovao

    de imveis e fachadas, intervenes nas infraestruturas e na circulao, qualificao do espao publico,

    segurana e modernizao do comrcio, tendo-se verificado uma importante evoluo destas operaes

    no sentido de uma maior integrao a nvel local, coordenao multinvel e em termos de organizao e

    participao dos atores. A integrao a nvel local visvel atravs da convergncia entre programas que

    visavam apoiar a modernizao do comrcio com os de reabilitao urbana.

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    A coordenao multinvel respeita colaborao entre o nvel nacional e regional no processo de licenciamento, poltica de incentivos, delimitao de zonas especiais e mesmo parcerias entre o estado central e o estado local.

    No domnio da organizao deve referir-se que muitas intervenes se realizaram no quadro de novas formas de governana, impuseram ou foram pressionadas por entidades que exercem uma ges-to centralizada da rea de comrcio e servios. Esta gesto integrada comeou por imitar a gesto dos centros comerciais, considerada uma das suas chaves de sucesso, pela realizao de promoes e outras iniciativas conjuntas, chegando por vezes tambm a intervir em termos de mix comercial (Barreta 2009). Em Portugal formaram-se tcnicos com o perfil de gestor de centro urbano mas, infelizmente, a iniciativa no teve grande desenvolvimento.

    Estas intervenes tm efeitos sobre a imagem do espao em que incidem mas frequentemente so mesmo norteadas pela vontade de a alterar a fim de tornar a cidade mais competitiva e atrativa para outros pblicos. Desenrolam-se no quadro de campanhas de promoo e marketing do territrio que jogam basicamente com imagens, que essas campanhas ajudam a construir, e com iniciativas que facili-tam a promoo do lugar, como exposies mundiais, jogos olmpicos e outras competies desportivas, espetculos e eventos de menor alcance como feiras medievais, festivais gastronmicos ou de produtos da terra que se tm multiplicado nas pequenas e mdias cidades portuguesas.

    Se aceitarmos que a deciso funo no da realidade mas da ideia que se faz dela (Brunet,1974 em Barata-Salgueiro,2001,46), isto , das representaes e imagens, percebe-se melhor que, numa poca de concorrncia acrescida, os poderes pblicos ou as coalies locais de interesses invistam na imagem da cidade e dos seus centros. Tem-se dito que estas polticas promovem o renascimento urbano na medida em que re-introduzem no mercado reas em declnio. Para alm dos objetivos mencionados, elas servem tambm para reforar a autoestima e a resilincia de comunidades afetadas por crises, propiciando o desenvolvimento de sentimentos de orgulho local.

    Muitas das intervenes mencionadas, embora dinamizadas pelo sector pblico, e por vezes fruto de parcerias entre o sector pblico e investidores privados foram, no essencial, realizadas pelo sector imobili-rio especulativo, num processo a que os autores de lngua inglesa chamam property-led regeneration (Tu-rok, 1992), a qual assumiu um papel central na poltica urbana da dcada de 80 (Pacione 2001). De facto, as polticas neoliberais aplicadas desde essa dcada atribuem ao sector pblico basicamente uma funo de atrao de investimento privado e de facilitador desse investimento, com prejuzo do planeamento.

    A mudana na interveno pblica levou alterao do papel dos governos locais e dos seus lde-res naquilo a que Harvey (1989) chama a transio de uma gesto gestionria (management) para uma gesto de tipo empresarial. Nesta ltima os governos locais preocupam-se prioritariamente em tornar a cidade competitiva, em distribuir subsdios e incentivos para atrair investimentos.

    Esta transio acompanha e facilita um ciclo de forte expanso imobilirio que mobiliza capitais excedentrios que no encontram aplicao na esfera produtiva, o circuito primrio de acumulao, que so transferidos para o circuito secundrio do ambiente construdo e para a especulao financeira, e para o circuito tercirio (servios destinados a manter a eficincia da mo de obra atravs da investi-mentos na sade, educao, formao), como Harvey (1978) explicou. Crescem ento por todo o lado modernos edifcios de escritrios, centros comerciais, espaos de lazer, condomnios residenciais para as novas elites, os quais enformam as novas centralidades. O papel central da iniciativa privada e o recuo da viso de conjunto do plano, em articulao com a valorizao da diferenciao do produto em que a prpria arquitetura ajuda os negcios, explicam uma produo urbana feita por fragmentos artsticos, povoada de enclaves espetaculares e cenogrficos (Harvey,1990, Knox,1993).

    A sua produo exigiu uma profunda reestruturao do sector imobilirio como anteriormente es-tudmos (Barata-Salgueiro,1994) e a sua maior articulao com o sistema financeiro. Deve tambm re-cordar-se que estes novos produtos imobilirios so causa da obsolescncia das estruturas pr-existentes

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    sem ter ocorrido o seu envelhecimento, porque os novos edifcios e localizaes surgem como os stios mais adequados para os negcios, os que oferecem maior qualidade de vida s famlias, os que propi-ciam maiores ganhos (M.Santos,1996 e Barata-Salgueiro,2002).

    Gerou-se pois um contexto favorvel ao re-investimento em reas interiores das cidades cujas especi-ficidades so determinadas apenas em parte pelas caractersticas das vrias zonas, as quais tanto podem levar salvaguarda de imveis e valorizao/explorao do seu valor patrimonial, como renovao total para novos destinos. A seleo dos stios onde ocorrem os investimentos parece quase aleatria. Como o valor de troca se produz custa do valor de uso da apropriao para a vida quotidiana e o capital est interessado em realizar as mais-valias atravs dessa converso, os projetos surgem em qual-quer ponto, suportando as operaes que fazem as novas centralidades. Nalguns casos beneficiam da construo de algum equipamento ou infraestrutura (de transporte ou servios), mas, na maior parte, a principal razo parece ser a oportunidade de encontrar lotes de dimenso adequada para as novas construes ou onde seja fcil fazer o emparcelamento, pois tudo o mais, principalmente a imagem, ser construdo e manipulado.

    Estudos sobre diversas cidades sugerem que os projetos de regenerao urbana com o objetivo de posicionar os espaos urbanos no mercado de troca da economia global sacrificam o valor de uso para a vida quotidiana local (He e Wu,2007,206) devido alterao de usos de solo e expulso de residentes que no geral implicam. Mesmo os moradores que permanecem adquirem uma sensao de estranha-mento no lugar porque no encontram mais os pontos de apoio que davam as referncias ao seu quoti-diano, como Carlos (2001) to bem observa no caso da operao Faria Lima em So Paulo.

    Para promover o crescimento econmico e o embelezamento, os governos locais legitimam a de-molio de velhos bairros e a construo de propriedades de grande valor, sem considerar os interesses dos residentes locais pobres que ficam assim marginalizados do processo de transformao urbana. De facto, as polticas empresariais marginalizam e excluem pessoas, atividades e empresas porque tendem a subordinar os interesses gerais da comunidade aos interesses da acumulao do capital, como os vrios estudos sobre gentrification tm mostrado.

    Neste quadro o grande desafio que hoje se coloca consiste em reposicionar o planeamento e a inter-veno pblica de modo a que intervenes integradas permitam a incluso e tenham em considerao as necessidades dos residentes, os valores de uso e no exclusivamente os valores de troca. Urge impor uma nova cultura de planeamento e uma nova poltica urbana, neomoderna (Ferro,2011), mais inclu-siva (Moulaert et al., 2004).

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    Referncias bibliogrficas

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    Muitas vidas tem o centro e vrios centros tem a vida de uma cidade.

    Jos A. Rio FernandesFLUP/CEGOT

    1. Centros

    1.1. Centros de uma rede

    de centros de cidade, de reas que se identificam com relativa clareza no interior da cidade que este artigo trata. Todavia, considera-se que a compreenso das cidades e dos seus centros se far melhor se considerarmos a dimenso e o papel de cada cidade num sistema. Por isso, este primeiro subcaptulo tratar os centros urbanos, no Portugal de h muito organizado por uma rede urbana que a Romaniza-o construiu e que no sculo XVI estava muito marcada pela importncia de Lisboa (afirmada com a ex-panso colonial) e das cidades da corte e nobreza e/ou economia com comando regional, com destaque para Porto, Guimares, Coimbra, Santarm, Elvas, vora, Lagos e Tavira (numa sequncia de Norte para Sul). Este sistema foi transformado pela industrializao dos sculos XIX e XX e por importantes movi-mentos migratrios, com o reforo da concentrao no litoral de Viana do Castelo a Setbal, no quadro de um pas muito desigual no povoamento, entre a forte densidade e disperso do Minho (Noroeste de Portugal) e a rarefao e concentrao de grande parte do interior, em especial no Alentejo (Sul de Portugal). O pas que temos hoje fortemente urbanizado, com uma mancha urbana que se expandiu intensamente nos anos 1980 e 1990, de forma descontinuada e com sinais de rurbanizao e metapoli-zao ainda pouco estudados.

    Segue-se a abordagem dos centros antigos de cidades de longa histria (nalguns casos de fixao humana pr-romana, mas em geral com maior significado apenas a partir da Baixa Idade Mdia). Por fim, tratam-se os centros tal como mais frequentemente so entendidos, seja pela literatura cientfica, seja pelo senso comum, como lugares simblicos de identidade e coeso de uma territrio alargado e internacionalizado, como espaos de concentrao de estabelecimentos de atividades de maior espe-cializao e rea de influncia e como pontos essenciais de concentrao e divergncia nas redes de circulao urbana.

    As cidades escolhidas para serem tratadas no grupo dos espaos metropolitanos e das cidades m-dias, sero ao longo deste texto chamadas a ttulo ilustrativo, mas Lisboa e Porto, no primeiro caso, e Braga, Aveiro, Coimbra e Leiria, no segundo, estaro sempre presentes como pano de fundo ao longo do texto, que na sua segunda parte prope uma tipologia orientadora da reflexo a propsito de nova vida nos velhos centros.

    Voltando ao sistema urbano portugus, considerando o Programa Nacional de Poltica de Ordena-mento do Territrio (PNPOT) como referncia e deixando de parte o caso dos arquiplagos de Madeira e Aores pode tomar-se o sistema como assente em quatro espaos chave: o Arco Metropolitano do Porto, o Sistema Metropolitano do Centro Litoral, o Arco Metropolitano de Lisboa e o Arco Metropoli-tano do Algarve.

    O Arco Metropolitano do Porto engloba toda a conurbao urbana do Norte Litoral, estruturando-se a partir de uma metrpole multipolar que se estende pelos municpios de Porto, Matosinhos, Maia,

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    Gondomar, Valongo e Vila Nova de Gaia, para Braga (a Norte), Amarante (a Este) e Aveiro (a Sul), con-centrando cerca de 3,4 milhes de habitantes, ou seja, um pouco mais de 1/3 dos residentes do pas. O Sistema Metropolitano do Centro Litoral estrutura-se numa matriz territorial policntrica em que os ns mais importantes so as cidades de Aveiro, Coimbra, Viseu e Leiria, as quais entre si no estabelecem relaes de especial intensidade, nem to elevada a densidade demogrfica, muito menos comparvel com o Porto a capacidade de Coimbra se afirmar como principal polo. O Arco Metropolitano de Lisboa estrutura-se em torno da capital do pas, apresentando um contexto territorial policntrico associado expanso e consolidao de quatro sistemas sub-regionais: Oeste, Mdio Tejo, Lezria e Alentejo Ociden-tal, reunindo um total de cerca de 3,3 milhes de habitantes, tendo Lisboa como grande organizador (547.631 habitantes em 2011). Por fim, o Arco Metropolitano do Algarve constitui uma estrutura poli-nucleada e linear que se desenvolve ao longo da costa algarvia e tem em Faro e Portimo os ncleos com maior expresso de um territrio fortemente associado vocao turstica e habitado no total por 451.005 habitantes.

    Figura 1. Sistema urbano nacional de acordo com Programa Nacional da Poltica de Ordenamento do TerritrioFonte: Ministrio do Ambiente, do Ordenamento do Territrio e do Desenvolvimento Regional, 2007, p. 148 (com identificao das cidades abordadas no presente livro)

  • 33

    Esta organizao do territrio portugus resulta de um conjunto de fatores de natureza econmica, social e demogrfica, onde se destacam os movimentos migratrios internos (de xodo rural em direo a Lisboa e Porto ao longo de finais do sculo XIX e todo o sculo XX) e para a Europa (sobretudo dos anos 1950 at meados da dcada de 1970), o retorno de um nmero significativo de pessoas das ex-colnias (no ps 25 de Abril de 1974) e uma forte vaga imigratria recente, o que ajudou a reforar a concentrao nas cidades, assim como os processos de suburbanizao e metropolizao, a par de uma dita litoralizao, em contrates com o despovoamento, envelhecimento e desvitalizao do interior, seja no eixo montanhoso Peneda-Gers-Alvo-Aboboreira-Montemuro e nos espaos mais prximos da fronteira Norte e Centro, seja praticamente em todo o Sul afastados da costa algarvia, onde as cidades, com destaque para vora, parecem ter esgotado a sua capacidade de suco da envolvente regional.

    No contexto dos quatro grandes subsistemas apresentados, o sistema urbano portugus caracteriza-se pela predominncia de duas reas metropolitanas (Lisboa e Porto) com grande dimenso, concentra-o de populao (com estabilizao a partir da dcada de 1990), centralizao econmica e capacidade de projeo internacional, mas com dinmicas e processos internos de suburbanizao e emergncia de novas centralidades muito diferenciados que podem ser vitos como resultado de processos de metropo-lizao de carcter concentrado em Lisboa e de carter difuso no caso do Porto (Marques, 2004, p. 164), ressaltando em Lisboa a concentrao da administrao pblica e de grandes empresas de servios pbli-cos diversos (ligados energia, telecomunicaes e transportes, por exemplo), servios financeiros (com destaque para a banca), de comunicao (televiso, jornais e rdio) e outros de vrio tipo (como grandes escritrios de advocacia e empresas de publicidade), em contraponto ao Porto e envolvente, onde mais clara a vocao industrial e exportadora (designadamente de calado, produtos txteis, vesturio, mquinas e ferramentas e vinho).

    O sistema urbano portugus tambm muito marcado pela dimenso relativamente modesta das cidades mdias, muitas das quais, no cumprindo os critrios europeus de classificao, desempenham contudo um papel essencial de intermediao entre os pequenos lugares (mais ou menos rurais), as gran-des cidades e de uma forma geral com o pas e o mundo. Estas cidades, muito embora com percursos muito diversos em boa parte como resultado de estratgias diferenciadas e diferenciadas capacidades das lideranas polticas tm adquirido grande notoriedade, designadamente por serem associadas oferta de grande qualidade de vida. No quadro regional, o seu papel varia consideravelmente, seja pela expresso de forte contraste com o campo em situaes de povoamento rarefeito e baixa densidade Trs-os-Montes, Beira Interior, e Alentejo (onde se destacam Vila Real, Bragana, Guarda, Castelo Bran-co, vora e Beja) seja pela impossibilidade de traar o limite quando ajudam a estruturar uma extensa mancha litoral de urbanizao difusa, marcada por vrios subsistemas urbanos polinucleados e regies metropolitanas multicntricas.

    1.2. Centros numa cidade

    Ao longo das ltimas dcadas centro (lugar) e centralidade (condio) conheceram importantes transformaes, designadamente evidentes na transio de um discurso funcionalista do urbano e do urbanismo (ancorado nas lgicas de construo/consolidao de cidade monocntrica) para um enten-dimento do contexto urbano que valoriza o seu entendimento como sistema dinmico e realidade com-plexa e multicntrica, numa cidade dita ps-industrial e numa sociedade dita de consumo.

    Esta alterao pode ser considerada de mltiplas formas, todavia essencialmente em duas, se consi-deramos uma perspetiva centrada na dimenso espacial e apenas preocupada com a cidade herdada, j consolidada e de maior espessura histrica. Por um lado, numa abordagem preocupada com os antece-dentes da cidade e o significado dito patrimonial do tecido antigo, com grande carga simblica, importa considerar um centro a que chamamos histrico; por outro lado, uma outra leitura, mais preocupada

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    com dimenses socioeconmicas que apenas culturais, formais ou histricas, referimo-nos simplesmente ao centro da cidade, ou nalguns casos a baixa (que corresponder ao downtown ingls ou centre-ville francs), pretendendo com esta designao abarcar um territrio restrito dotado de elevada acessi-bilidade geral que apresenta uma forte concentrao de estabelecimentos de elevado standing, associa-dos a atividades econmicas especializadas.

    Na dimenso temporal, ambos podem ser visto como produtos da Revoluo Industrial, seja como um dos efeitos de uma expanso da malha urbana que deixou chegar at aos nossos dias uma rea relativamente pouco transformada a que chamamos centro histrico, seja porque a separao de fa-brico e venda e a crescente insero da cidade na regio e em sistemas urbanos complexos, fez emergir e consolidar um centro onde coexistem pelo menos duas das dimenses administrativa, financeira e comercial, o qual muitas vezes contguo ao histrico e est entrelaado com este, outras vezes coin-cidente, noutros casos ainda, centro nico em cidades com menos histria ou onde o tecido antigo foi seriamente remodelado.

    Se, espacialmente, pode falar-se, para muitas cidades, na existncia de vrios centros desde h d-cadas, o que sobretudo evidente no caso das maiores cidades (Lisboa e Porto, designadamente) sejam este de diverso tipo ou de caractersticas semelhantes, tambm verdade que as suas condies de cen-tralidade variam no tempo, no apenas o tempo longo que se conta em anos ou mesmo sculos, mas en-tre Vero e Inverno, fim-de-semana e outros dias da semana, assim como nas vrias horas do dia, sendo vistos e usados como mais centrais para uns que para outros, com diferenas claras entre os mais jovens e os menos jovens, os visitantes e os residentes, os mais ricos e os mais pobres, os mais cultos e menos cul-tos, entre tantas outras dualidades que simplificam as leituras da complexidade e variabilidade de cada pessoa, numa centralidade fragmentada e difusa que pode ser vista em vrias escalas (Fernandes, 2004, Sposito, 2011). Muitos centros tem a vida de uma cidade!

    Pode pois falar-se em vrios centros, no tempo e no espao, e identificar um sistema de polaridades urbanas em praticamente todas as cidades de mdia ou grande dimenso, onde as condies de centrali-dade se combinam, em tempos diferentes, para pessoas diferentes, afirmando lugares especiais que estru-turam os movimentos urbanos e marcam o ritmo de vida das cidades. Mas tambm verdade que se pode, ainda, falar da evoluo do centro, se considerarmos a perspetiva temporal e apreciarmos a forma como as condies de centralidade se vo reunindo mais neste do que naquele lugar ao longo da histria, de acordo com alteraes no sistema social e econmico e em especial nas condies de acessibilidade, fazen-do variar o modo e o lugar como se faz a fixao de elementos fortes de estruturao urbana (paos do concelho, comrcio, finana, ) e se alteram ns e linhas de acessibilidade, assim como a sua importncia relativa (estao de comboio, aeroporto, pontes, estradas, linhas de eltrico, autocarro e metro, )

    Em suma, pode considerar-se que as cidades conhecem vrios centros, seja ao longo da histria, seja em simultneo, na atualidade ou num dado momento. Por outro lado, cada lugar onde se renem condies de centralidade, cada centro, tem uma dinmica que, podendo ser marcada pelo aumento ou diminuio da sua importncia relativa, muito marcada tambm pela continuidade daquela parcela de cidade ao longo dos muitos anos que viveu, inserida na histria da cidade (e refletindo a histria / participando na histria da sociedade), umas vezes mais central, outras vezes mais perifrica.

    Muitas vidas tem o centro de uma cidade!

    2. A poltica do centro e o centro na poltica urbana

    2.1. O centro histrico

    Muita da dinmica da cidade, designadamente da alterao das condies de centralidade esto di-retamente associadas poltica urbana. Pode considerar-se to ou mais importante a soma das atitudes

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    de cada um de ns, como empresrio, trabalhador, consumidor, estudante, turista, membro de famlia, de associao cvica, de empresa ou instituio pblica, ou outro de muitos ou somatrio algum dos de-sempenhos que faz parte do nosso estar e ser cidade e sociedade. Pode ainda entender-se que o essencial na evoluo dos territrios resulta desta ao no concertada previamente, em que atuamos como parte nfima de um sistema complexo e catico. Mas no ser menos verdade que a cultura e o ambiente de cada cidade, a poltica e o pensamento dos lderes da administrao pblica e o planeamento, com desejos, em forma de mapa e regulamento, assim como o projeto e a interveno pblica tm um papel muito relevante. De tal forma que se pode dizer o inverso do que antes se mencionou: de que a cidade evolui essencialmente como resposta a um pensamento e uma ao urbanstica. esta a dimenso que aqui exploramos, no entendimento do que de essencial ter ocorrido nas cidades portuguesas, ainda que com algumas referncias ao comportamento das pessoas, na resposta a estmulos, ou na antecipao de alteraes urbanas.

    Relativamente ao centro histrico, o pensamento urbanstico e a poltica urbana do sculo caracteri-za-se, sensivelmente at dcada de 1970, por uma corrente que privilegiava a proteo de alguns im-veis (em regra por via da sua monumentalidade) e que promovia a demolio de muitos outros, para facilitar a renovao da cidade, porventura para melhor impor a notoriedade de elementos singulares (o castelo, a catedral, as ruinas romanas,). Esta linha de interveno procura, seja atravs de aes indivi-duais (fomentadas ou pelo menos permitidas) ou de intervenes pblicas integradas, adaptar a cidade a novas formas de residncia e vivncia urbana, em que sobressai o uso do automvel, as necessidades da salubridade e a melhoria do conforto das edificaes.

    Nos anos 70 e 80, com a migrao para Portugal do modelo de Bolonha (mais consentneo com os ideais da revoluo de Abril de 1974), verifica-se uma viragem nas lgicas dominantes de poltica urbana para a cidade herdada, com significativo aumento do apreo das polticas pblicas pela morfologia anti-ga e os espaos considerados histricos (com maior expresso de elementos antigos). Neste contexto, o que antes era visto como velho e inadequado passa a ser considerado antigo e simblico, do que resulta o aumento da preocupao com as construes e representaes que se associam agora identidade dos espaos urbanos e que, mesmo quando desconsideradas pelos moradores (ou por estes consideradas como inadequadas, com falta de elevador, proteo da humidade, ventilao, ), so todavia agora muito valorizadas, tanto mais que aumenta o turismo urbano (mais significativamente nos anos 80) e se verifica que estes se dirigem predominantemente para os espaos mais antigos, reforando na maioria das cidades identificao de um centro histrico ou de bairros histricos na cidade consolidada.

    Esta valorizao da histria da cidade e da identidade de cada uma leva a uma maior considerao no apenas pelo antigo, mas tambm pelo relativamente novo, mas ainda assim visto como essencial na memria da cidade; como essencial passam a ser as construes annimas nas reas consolidadas e no apenas a arquitetura mais vetusta e deslumbrante (em especial do romnico e gtico), ou os locais mais precocemente urbanizados (justa ou injustamente associados aos tempos medievais).

    Na perspetiva poltica sobre o histrico, alm de uma proteo que se alarga de monumentos a espaos vastos, a cuja recuperao total o Estado no consegue acudir, desenvolve-se a partir dos anos 1980 uma atitude dominantemente liberal, no quadro de um processo de acelerada integrao social e econmica de Portugal na Europa e no Mundo, aps largas dcadas de relativo isolamento. tambm nesta altura que se consolida a perceo dos centros histricos como um problema de base territorial, face ao estado deficiente