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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO MESTRADO EM LETRAS ESTUDOS LITERÁRIOS JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTESDO CONTO: ORALIDADE E AMOR EM GUIMARÃES ROSA BELÉM 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

MESTRADO EM LETRAS — ESTUDOS LITERÁRIOS

JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA

“LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTES” DO CONTO:

ORALIDADE E AMOR EM GUIMARÃES ROSA

BELÉM

2013

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II

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

MESTRADO EM LETRAS — ESTUDOS LITERÁRIOS

JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA

“LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTES” DO CONTO:

ORALIDADE E AMOR EM GUIMARÃES ROSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso

de Pós-Graduação em Letras do Instituto de

Letras e Comunicação da Universidade Federal

do Pará, como parte dos requisitos para

obtenção do grau de Mestre em Letras.

Orientador:

Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

BELÉM

2013

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III

FOLHA DE APROVAÇÃO

JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA

―LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTES‖ DO CONTO: ORALIDADE E AMOR EM

GUIMARÃES ROSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso

de Pós-Graduação em Letras do Instituto de

Letras e Comunicação da Universidade Federal

do Pará, como parte dos requisitos para

obtenção do grau de Mestre em Letras.

Orientador:

Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

Aprovado em: 28/ 02/ 2013

Conceito: Excelente

Menção:

Banca Examinadora

Professor (a): Prof. Dr. André Teixeira Cordeiro

Instituição: Universidade Federal do Tocantins (UFT)

Professor (a): Prof. Dra. Socorro Simões (Examinadora interna)

Instituição: Universidade Federal do Pará (UFPA)

Professor: Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda (Orientador)

Instituição: Universidade Federal do Pará (UFPA)

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IV

Abrirei em parábolas a minha boca; falarei

cousas escondidas desde o princípio. (O livro

dos salmos, cap. 77, v. 2)

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V

AGRADECIMENTOS

A Deus, por me nutrir de perseverança e paciência para vencer mais essa batalha em

minha vida;

Ao meu orientador Prof. Sílvio Holanda, amigo e sábio conselheiro;

Ao meu pai, Raimundo Nonato, por me apoiar desde o início, irrestritamente;

A minha tia, mãe e amiga, Ilza Dias, pela disponibilidade, pela amizade e pelo

grande apoio durante minhas aulas no Rio de Janeiro; sem esse anjo, metade deste sonho

seria irrealizável;

A minha amada mãe, Maria Nilma, um porto seguro repleta de calma e

compreensão;

A minha esposa, Milene Pantoja, uma prova viva da perfeição do ato criador de

Deus: a mulher. Obrigado por me entender, mesmo quando a razão estivesse ausente de

minhas atitudes;

A minha linda filha, Ana Beatriz Pantoja; gotinha de mel, de doçura inesgotável;

razão maior de minha existência atual e, por isso, alavanca capaz de empreender em mim

a vontade de me mover.

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VI

RESUMO

O estudo da novela ―Uma estória de amor‖, de Guimarães Rosa (1908-1967), que

pretendemos desenvolver na realização desta Dissertação de Mestrado, traz como principal

mote a recepção crítica e a interpretação das cantigas, narrativas e estórias cantadas e contadas

durante a ―Festa de Manuelzão‖ (espécie de subtítulo de ―Uma estória de amor‖). Desse

modo, nosso trabalho terá sua metodologia desenvolvida com fundamento na Estética da

Recepção, formulada por Hans Robert Jauss (1921-1997), porém, não se trata de amparar a

feitura dessa Dissertação, única e exclusivamente, nos métodos estético-recepcionais, mas, de

amparados pelos estudos hermenêuticos, sobretudo os formulados por Jauss, constituir um

cenário possível para a obra de Guimarães Rosa, considerando suas várias interpretações e sua

importância para a afirmação do caráter vanguardista atribuído ao seu legado, em especial à

―Uma estória de amor‖. Durante a realização da festa que marcará a inauguração da fazenda,

os muito contadores e cantadores chegam à Samarra (propriedade de Federico Freire, patrão

de Manuelzão) com a missão de contar narrativas e cantigas que conduzirão o velho vaqueiro

a um raro momento de parada dos seus afazeres na fazenda, levando-o a fazer parte da

celebração de sua festa. Com vista a realizar o objetivo proposto nesta Dissertação, sua

divisão estrutura-se na construção de três capítulos, sendo cada um, subdividido em duas

partes. Tal divisão há de servir ao alcance das questões, conclusões e possibilidades

interpretativas sobre ―Uma estória de amor‖. Assim é que, já no primeiro capítulo do texto,

explorar-se-á a recepção crítica de ―Uma estória de amor‖, bem como seu caráter

vanguardista, tomando como exemplo a Literatura oral, que torna a novela de Guimarães

Rosa objeto mais do que suficiente aos estudos propostos por Jauss. No segundo capítulo,

dissertar-se-á sobre o amor, segundo a discussão empreendida por Derrida acerca do

phármakon, teorizado em A farmácia de Platão (1991), como recorrência, ao mesmo tempo,

desencadeadora de um veneno e de um poder curativo, que atribuem, ao protagonista da

novela em questão, o papel do ouvinte ainda capaz de se emocionar e surpreender-se com a

simples audição de relatos, aparentemente tão ingênuos sobre estórias adquiridas e

perpassadas ao longo dos anos pela oralidade. No capítulo final, intenta-se realizar uma

análise de alguns cantos, e, especificamente, de três narrativas condicionadas em ―Uma

estória de amor‖, dialogando com leituras mais recentes da obra (Sandra Vasconcelos, em

Puras Misturas [1997], por exemplo), para demonstrar a importância do relato transmitido

pelas várias gerações que procedem à narrativa original, as quais, indiferente às mudanças de

rumo constantes nesses possíveis textos, muitas vezes, parecem discordar do original.

PALAVRAS-CHAVE: Estética da Recepção. Guimarães Rosa. ―Uma estória de amor‖.

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VII

RESUMÉ

L'étude du roman ‟Uma estória de amor‖, Guimarães Rosa (1908-1967), nous avons

l'intention de développer dans la réalisation de cette thèse, a comme thème principal la

réception critique et l'interprétation des chansons, des récits et des histoires racontées et

chantées au cours de ‟Festa de Manuelzão‖ (sorte de sous-titré ‟Uma estória de amor‖).

Ainsi, notre travail aura sa méthodologie sur la base de l'esthétique de la réception, formulées

par Hans Robert Jauss (1921-1997), cependant, il n'est pas soutenir la prise de cette thèse,

uniquement et exclusivement, les méthodes recepcionais esthétique, mais , soutenue par les

études herméneutiques, en particulier celles formulées par Jauss, constituent un scénario

possible pour le travail de Guimarães Rosa, compte tenu de ses diverses interprétations et leur

importance pour la déclaration attribuée à la nature avant-garde de son héritage, en particulier

la ‟Uma estória de amor‖. Au cours de la réalisation du festival qui marque l'ouverture de la

ferme, les comptables mêmes et chanteurs viennent à Samarra (détenue par Federico Freire,

patron Manuelzão) dont la mission est de raconter des histoires et des chansons qui mènent le

vieux cow-boy à un rare moment de son arrestation leurs travaux de la ferme, l'obligeant à

faire partie de la célébration de sa fête. Afin d'atteindre l'objectif proposé dans cette thèse, la

structure de division dans la construction de trois chapitres, chacun divisé en deux parties.

Une telle division est de servir l'ensemble des questions, des conclusions et des interprétations

possibles sur le thème ‟Uma estória de amor‖. Alors que, dans le premier chapitre du texte, il

étudiera la réception critique de ‟Uma estória de amor‖, ainsi que son caractère d'avant-garde,

en prenant comme exemple la littérature orale, ce qui rend le roman plus Guimarães Rosa

objet assez que les études proposées par Jauss. Dans le deuxième chapitre, conférence sera

l'amour, selon la discussion menée par Derrida à propos de pharmakon, théorisé dans la

pharmacie de Platon (1991), la réapparition, tout en déclenchant un poison et un pouvoir de

guérison, cet attribut, le protagoniste du roman en question, le rôle de l'auditeur encore

capable de captiver et surprendre vous-même simplement en entendant des rapports, des

histoires de apparemment naïve et pénétré acquise au fil des ans par l'oralité. Dans le dernier

chapitre, a l'intention de procéder à quelques virages, et spécifiquement conditionnée par trois

récits ‟Uma estória de amor‖, en dialoguant avec les dernières lectures de l'œuvre (Sandra

Vasconcelos dans Pure Blends [1997], par exemple ), afin de démontrer l'importance du

rapport transmis par les différentes générations qui portent récit original, qui, indifférent à ces

changements constants de direction textes possibles semblent souvent être en désaccord avec

l'original.

MOTS-CLES: esthétique de la réception. Guimarães Rosa. ‟Uma estória de amor‖.

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VIII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 09

1. ANÁLISE TEÓRICA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE “UMA ESTÓRIA DE

AMOR”..........................................................................................................................

15

1.1. O post festum à luz da Hermenêutica....................................................................... 16

1.2. Leitor e personagem no ―torto encanto‖ do conto.............................................. 28

2. “UMA ESTÓRIA DE AMOR” COMO PHÁRMAKON: A PROSA ROSIANA À

LUZ DA FILOSOFIA PLATÔNICA...........................................................................

40

2.1. Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno................................ 41

2.2. Phármakon: a cura e o veneno em ―Uma estória de amor‖..................................... 53

3. “TORTO ENCANTO”: ANÁLISE CRÍTICA DAS NARRATIVAS ORAIS EM

“UMA ESTÓRIA DE AMOR”...................................................................................

66

3.1. Estórias de amor na Samarra: interpretação dos contos e dos cantos em ―Uma

estória de amor‖...............................................................................................................

67

3.2. ―Lérias, letras‖ antes e depois da festa................................................................... 83

CONCLUSÃO................................................................................................................. 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 105

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INTRODUÇÃO

Joana Xaviel demonstrava uma dureza por dentro,

uma inclinação brava. Quando garrava a falar as

estórias, desde o alumeio da lamparina, a gente

recebia um desavisado de ilusão, ela se remoçando

beleza, aos repentes, um endemônio de jeito por

formosura. Aquela mulher, mulher, morando de

ninguém não querer, por essas chapadas, por aí,

sem dono, em cafuas. Pegava a contar estórias —

gerava torto encanto.1

Não há maior comprovação sobre a existência do homem do que os relatos de sua

própria história. O que se conta sobre uma cena ou um acontecimento, seguindo a linha da

realidade quase pura ou alicerçada pelos tantos ―pontos‖ que seguem aumentando os

―contos‖, inflam as narrativas com tantas e tão variadas possibilidades, que o acontecimento

em si já não é o mais relevante, mas, em detrimento deste, os detalhes adicionados à história

original; minudências que têm, na capacidade envolvente do contador, o grande fascínio que o

fato narrado exerce para o ouvinte ou para o leitor.

Ao transportar para as páginas de seus livros o típico trato do homem com o ato de

perpassar experiências muitas vezes não vividas por esse fictício ser humano, Guimarães Rosa

nos apresenta outra visão sobre o saber literário. O autor, nascido em Cordisburgo no ano de

1908, ganhou notoriedade durante o desenvolvimento do Modernismo brasileiro,

acontecimento artístico que, desde o início, impôs perspectivas controversas às bases

românticas europeias. Era preciso mudar, e isso já havia começado com Monteiro Lobato

(Urupês, 1918), Mário de Andrade (Macunaíma, 1928) e Graciliano Ramos (Vidas secas,

1938), mas faltava quem passasse, literalmente, a palavra ao homem simples e o alçasse à

categoria de narrador de sua própria história.

Os narradores, em Guimarães Rosa, mais do que meros instrumentos alegóricos a

serviço da obra — esse ―estranho pião‖2, que segue traçando interpretações não produzidas

pelo autor, — emprestam novas concepções ao leitor, que compreenderá em suas mais

variadas percepções os microuniversos criados a partir da realização artística do escritor e de

suas variadas possibilidades interpretativas. Dessa realização, pode-se compreender, por

exemplo, Riobaldo (Grande sertão: veredas, 1956), Lina (―A estória de Lélio e Lina‖, 1956)

e Manuelzão (―Uma estória de amor‖, 1956), como semelhantes em um ponto, além de

1 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 173. Grafia do autor. 2 SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993, p. 35.

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pertencerem ao universo criado por Guimarães Rosa: eles representam, ainda que

ficcionalmente, a aquisição de experiências diversas, pois os atos de narrar (Riobaldo),

perceber (Lina) ou, simplesmente, ouvir (Manuelzão) aproximarão cada uma dessas

personagens do leitor.

Vistos de uma certa [sic] distância, os traços grandes e simples que

caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem,

como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para

um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo

favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa

distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de

narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que

sabem narrar devidamente.3

Esse ―narrador em vias de extinção‖, de que nos fala Walter Benjamin (1842-1940), em

Magia e técnica, arte e poética, na realidade reside sobre a própria experiência de narrar; a

motivação desencadeada nos vários públicos, com o valor atribuído à narrativa graças ao

narrador, faz-se presente em Guimarães Rosa, especialmente em ―Uma estória de amor‖. O

desenho no rochedo, que nos remete ao corpo de um animal ou ao rosto de um homem,

desempenha o mesmo papel na percepção que ocorrerá com o leitor em relação à obra escrita

ou contada. Na narrativa, o narrador perpassa o fato, a experiência apreendida em uma

determinada época às comunidades de leitores e ouvintes em qualquer tempo.

Assim, considerando tal importância, por que se fala em um narrador em vias de

extinção? O que, afinal, explica um possível desinteresse pelas narrativas, por parte do leitor e

mesmo do ouvinte, que possa ter diminuído a importância outrora atribuída ao ato de ler um

livro, uma pintura ou mesmo os pontos aumentados nos tantos contos narrados por anônimos

ao redor do mundo? A essas questões, responder-se-á, inicialmente, com excertos de Roger

Chartier em A aventura do livro: do leitor ao navegador (1998), onde se observa a perda,

cada vez mais acentuada, da importância do livro na vida do leitor e, exatamente por isso, a

mudança de postura desse leitor, que, imbuído de outros conhecimentos e formas de

apreender o mundo ao seu redor, parece abandonar, gradativamente, o ato primaz da

percepção de conhecimento.

Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico,

várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas

colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro [por exemplo], os

possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua

3 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197. Grafia do autor.

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compreensão.4

Roger Chartier, em A aventura do livro: do leitor ao navegador, faz-se necessário nesse

momento, pois sua obra trata diretamente do uso do livro, esclarecendo que, assim como a

forma a que nos habituamos lidar com as tantas histórias contadas ou cantadas ao longo da

existência humana, se tornou necessária a renovação da leitura, para utilizar métodos que

trouxessem ou criassem um público que andava (e anda) cada vez mais distante daquilo que

proporciona o simples ato de ler um livro ou ouvir uma história: provocar sensações em

possíveis leitores ou ouvintes.

Desde os antigos rolos até o advento da informática, testemunhou-se a necessidade de se

reconfigurar a narrativa, pois já não há como manter ou cativar um público leitor, ouvinte,

espectador, etc., englobando os mesmo métodos aplicados antes das tantas inovações

contemporâneas (a informática, principalmente, mas, além disso, o cinema, a televisão, o

rádio, etc.). Em parte, a explicação para uma possível extinção da narrativa e do narrador pode

residir no fato de que outras tecnologias, como as citadas anteriormente, desviaram, de uma

forma cada vez mais veloz, o interesse dos tantos públicos que se sucederam ao longo da

existência da escrita, que, como bem diz Chartier, se colocou em jogo o trato do leitor com o

livro, ou, em consonância com as palavras do autor de A aventura do livro: do ouvinte com o

narrador. Assim, cabe recorrer, neste momento, a uma afirmação de Walter Benjamin em

Magia e técnica, arte e poética, que apresenta essa perda de valor da experiência vivida pelo

leitor com o livro, como um dos principais fatores para o interesse cada vez menor do leitor

pelo livro.

As ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão

caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para

percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o

dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético

sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis.5

E não se trata de exaltar o combalido discurso dos saudosistas, que parecem buscar, na

sociedade atual, os resquícios de uma pretensa ―era de ouro‖ que jamais voltará. A queda na

qualidade da experiência que o leitor tem com os textos impressos nos livros, nas revistas ou

nos jornais, como lembra Benjamin, é evidente e, mais do que isso, expõe-nos a fragilidade a

que estão submetidas as gerações sob o jugo dessa pobreza da experiência, cada vez mais

4 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes.

São Paulo: UNESP, 1998, p. 77. 5 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198.

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acentuada entre os públicos das mais variadas expressões artísticas possíveis, pois o

computador, a televisão, o cinema e mesmo o rádio jamais poderão substituir a força e a

renovação, isenta de intromissões naquilo que se possa perceber, a que representa um livro ou,

como no exemplo da ficção em ―Uma estória de amor‖: um simples relato oral.

Em um mundo regido pela frenética velocidade da informação online, a experiência, o

―experienciar‖, parece ter-se tornado obsoleto à sociedade. Há ainda a mesma ânsia por

informação que já se presenciou nas sucessões das fases que envolvem a escrita, desde os

escritos rupestres nas paredes dos vários parques arqueológicos, passando pelos escritos de

Pompeia até a invenção de Johannes Gutenberg, o que parece haver de novo, que deprecie de

forma bastante peculiar o momento em que se deveria valorizar ainda mais a escrita graças ao

acesso fácil à informação oferecido pelo computador, é que a experiência deu lugar a um

imediatismo quase tão tacanho quanto o saudosismo de um tempo que já não é mais como

antes, pois a mudança se demonstrou necessária e inevitável.

Mas, feitas as adequações de praxe, mesmo a mudança, ao longo de sua aceitabilidade,

acaba tornando-se oportuna, e aí reside a diferença em relação à maneira de lidar atualmente

com os livros ou com os relatos orais. Não há assimilação da representatividade do livro, nem

da importância do relato oral pelas gerações que ―navegam‖ no ciberespaço, ao contrário

disso, há, sim, uma crescente aversão ao livro impresso. A situação cômoda de possuir em um

aparelho (computador, notebook, tablet, etc.) uma quantidade de arquivos em forma de texto,

que nada mais são do que os livros outrora impressos, parece cooperar para a ―aposentadoria‖

imediata do livro não apenas em sua conhecida estrutura (capa, páginas, índice, etc.), mas a

própria experiência do leitor com a obra e a capacidade de despertar os mais variados tipos de

leitores a curiosidade pelo desfecho da narrativa ou o porquê de seus elementos dispostos ao

longo da obra.

O mesmo, certamente, acontece em relação ao relato oral, e nesse caso, o que torna

agravante a situação é que boa parte da população mundial parece convencida de que não há

mais a necessidade do aprendizado pela experiência daquele que relata a história; assim como

se perde a importância dos fatos adicionados ao texto original, os quais apresentam para o

ouvinte, detalhes muitas vezes próximos de sua realidade que o ajudarão a compreender a

razão daquele relato; em detrimento disso, os vários resumos sobre determinada obra, ou

ainda, a própria impressão do autor, via um depoimento escrito ou gravado em um breve

vídeo, de forma oral, sobre, por exemplo, o que ele estava pensando quando escreveu

determinada obra, ganha a notoriedade que passa a representar a melhor maneira de se falar a

respeito de determinado texto. Acerca de algumas dúvidas que permeiam esse assunto,

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Benedito Nunes (1929-2011) nos questiona:

Se as obras não são mais o que foram, como nos alcançam? [...] se

depararmos com as obras nas exposições, não encontramos mais o mundo a

que a obra pertencia. As obras vêm ao nosso encontro no tempo, enquanto

temporalidade ek-stática, na continuidade entre passado e presente.6

Por isso se pode dizer que os meios mudam, mas, como bem nos esclarece Benedito

Nunes em Hermenêutica e poesia (1999), a obra continua alcançando parcelas consideráveis

de um público cativo, que não se demonstra muito disposto a fazer cessar a leitura. A obra

enquanto temporalidade ek-stática no presente alicerça as vigas que servirão ao futuro, o que

tornará possíveis as tantas interpretações, para além daquela concebida pelo escritor no

passado.

Interpretação ou, como diz Guimarães Rosa na realização da fictícia personagem

Manuelzão, ―estória!‖7 É com o que lida a Estética da Recepção: a interpretação de

determinada ―estória‖, obra, etc., no tempo em que é concebida e de que forma os possíveis

cenários que servem a estas tantas vertentes da experiência humana, seja em seu lançamento,

ou em sua consagração, se constituirão como o alicerce para a confirmação ou não de sua

importância para a Literatura.

Uma renovação da história da literatura demanda que se ponham abaixo os

preconceitos do objetivismo histórico e que se fundamentem as estéticas

tradicionais da produção e da representação numa estética da recepção e do

efeito.8

Como diz Hans Robert Jauss, em A História da Literatura como provocação à teoria

literária (1994), não se trata de considerar apenas a interpretação de determinada obra ou o

valor artístico atribuído por causa da importância de seu autor; importância maior há no

reconhecimento de livros como Grande sertão: veredas e Manuelzão e Miguilim como obras

que sempre estiveram na vanguarda de seu tempo por serem conferidas da capacidade de

provocar efeito à percepção do leitor.

Desse modo, já no primeiro capítulo, intitulado ―Análise teórica e experiência estética

de ‗Uma estória de amor‘‖, os conceitos proposto por Hans Robert Jauss são trazidos como

parte relevante da análise que cerceia a interpretação da novela ―Uma estória de amor‖. Nesse

capítulo, além das considerações de Hans Robert Jauss sobre Estética da Recepção, também

6 NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 112.

7 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956, v. 1, p 160. 8 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 24.

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há as de Wolfgang Iser, em O ato da leitura: uma teoria do efeito estético (1996-1999), de

Jean-Paul Sartre, em Que é Literatura? (1993), e de Sandra Vasconcelos, em Puras Misturas

(1997), entre outros. Esse primeiro momento se divide em outros dois subcapítulos, a saber:

―O post festum à luz da Hermenêutica‖ e ―O leitor e a personagem no ‗torto encanto‘ do

conto‖, nestes subcapítulos as narrativas aparecem apenas como exemplos à teoria proposta: o

estudo do valor da literatura oral.

No segundo momento, intitulado ―‗Uma estória de amor‘ como phármakon: a prosa

rosiana à luz da filosofia platônica‖, para além de uma simples interpretação sobre a novela

―Uma estória de amor‖, propor-se-á uma análise do amor desperto com o auxílio das

narrativas, como uma espécie de cura e veneno, de acordo com os estudos de Derrida em A

farmácia Platão. Desse modo, esse segundo capítulo dividir-se-á em outros dois subcapítulos:

―Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno‖ e ―Phármakon: a cura e o

veneno em ‗Uma estória de amor‘‖.

O terceiro e último momento, ―‗Torto encanto‘: análise crítica de três narrativas orais

em ‗Uma estória de amor‘‖ nos permitirá antepor, comparar e analisar as modificações

aplicadas, por exemplo, pelas fictícias personagens Joana Xaviel e velho Camilo às principais

histórias contadas durante a festa, as quais, na realidade, são representações literárias das

diferenças textuais existentes em um relato, oral quando relacionado com um texto escrito em

outro momento histórico. Esse capítulo está dicidido em outros dois subcapítulos: ―Estórias

de amor na Samarra: interpretação de contos e cantos em ‗Uma estória de amor‘‖ e ―‗Lérias,

letras‘ antes e depois da festa‖.

Com a disposição dos capítulos expostos nesta breve introdução, intentar-se-á abordar,

da maneira mais abrangente possível, o caráter oral atribuído à novela ―Uma estória de amor‖,

de Guimarães Rosa, teorizando, propondo uma visão que considere o caráter venenoso e

curativo das narrativas orais, bem como demonstrando, com três narrativas em especial, o

poder de renovar as possíveis discussões contidas em A Destemida, em O Romanço do Boi

Bonito e em A Donzela Guerreira. As teorias da recepção e as discussões sobre a

hermenêutica literária nos permitem analisar a dinâmica de uma narrativa oral, bem como o

poder que determinado conto pode exercer sobre um público ouvinte com base na maneira

como ocorreu e como ocorre o relato, e isso, Joana Xaviel e o velho Camilo, por exemplo,

ilustram com excelência. A forma como Guimarães Rosa remonta o relato oral em ―Uma

estória de amor‖ desperta o leitor, crítico ou não, para a relevância dessa vertente artística,

alçando-a à condição tão considerável quanto aquela atribuida à Literatura escrita.

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15

1. ANÁLISE TEÓRICA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

DE “UMA ESTÓRIA DE AMOR”

A literatura como acontecimento cumpre-se

primordialmente no horizonte de expectativa dos

leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e

pósteros, ao experienciar a obra.9

O valor estético de uma obra não pode estar vinculado apenas à consagração de

determinado escritor no presente ou em um futuro reconhecimento por parte dos críticos de

seus livros. Como bem esclarece Hans Robert Jauss na citação acima, retirada de A História

da Literatura como provocação à teoria literária, acima de qualquer outra condição, deve-se

primeiramente considerar a interpretação, ou seja, a experiência com o objeto artístico, e o

efeito produzido por esse objeto no leitor.

O leitor pode reconhecer as ―lacunas‖ colocadas pelo autor em determinado texto; o

leitor pode criá-las ou ignorá-las, essas ―lacunas‖ são os silêncios mais significativos,

presentes em ―Uma estória de amor‖, de Guimarães Rosa. Aliás, a insistência em vincular a

obra ao seu autor não ocorre à toa, como se sabe, há no mundo da Literatura, do Cinema e da

teledramaturgia de uma forma geral, inúmeras ―histórias de amor‖, porém, quando se fala em

Guimarães Rosa, pode-se afirmar, principalmente em relação à ―Festa de Manuelzão‖, que

não há uma história de amor convencional e específica; aquele que poderíamos ver como a

personagem título, Manuelzão, inicia a narrativa e a termina na mais absoluta solidão. Joana

Xaviel e velho Camilo, apontados por alguns críticos como os responsáveis pelo ―amor‖ que

intitula a novela, não chegam a demonstrar isso, o leitor o sabe por intermédio de um

narrador, e aqui reside o ponto nevrálgico desta narrativa.

Ao confluirmos para essa espécie de espectador, o narrador, que costura a história de

Manuelzão, de Joana Xaviel, do velho Camilo, etc., — como a própria Šahrāzād o faz no

clássico das narrativas As Mil e Uma Noites, — percebemos o verdadeiro amor da estória;

exatamente assim, sem o ―h‖ etimológico, da maneira precisa como Guimarães Rosa

estabeleceu a realização do signo que remeta o seu público leitor às narrativas inventadas, sem

compromisso com uma verdade pré-estabelecida, mas, ainda assim, capazes de despertar no

leitor sentimentos diversos.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos

os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos

se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores

9 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 26.

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16

anônimos.10

Anônimos como Joana Xaviel e velho Camilo e os tantos cantadores e contadores de

histórias que chegam à Samarra por ocasião da festa organizada por Manuelzão. Essa

experiência, de que nos fala Walter Benjamin em Magia e técnica, arte e poética, nada mais é

do que a experiência do leitor com o livro, por exemplo — uma relação necessária;

insubstituível como o contador de histórias para as narrativas orais, — Joana Xaviel, o velho

Camilo e todos os outros narradores que desfilam pela festa de Manuelzão, contribuem para

as fictícias demonstrações de percepção, em especial as de Manuelzão.

1.1.O post festum à luz da hermenêutica

O papel da obra de arte no atual panorama da Literatura parece cada vez mais

conflituoso. O artista contemporâneo, engajado na produção de um trabalho que não esteja

submetido ao capital apenas, busca um caminho que proporcione ao leitor mais do que o mero

prazer, porém, nem tanto que não a torne (a obra de arte) perceptível ou imperceptível a sua

compreensão (do leitor).

A obra de arte pode também transmitir um conhecimento que não se encaixa

no esquema platônico; ela o faz quando antecipa caminhos da experiência

futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não

experimentados ou contém uma resposta a novas perguntas.11

A citação, retirada de A História da Literatura como provocação à Teoria Literária, de

Hans Robert Jauss (1921-1997), apresenta-nos um pouco da inquietação ―orquestrada‖ em

torno da obra de arte; inquietação que pretendemos discutir em diálogo com a recepção crítica

da novela ―Uma estória de amor‖, de João Guimarães Rosa e que, como o Batuque das

Gerais‖ ao abrir o texto de ―Uma estória de amor‖, logo faz pensar acerca da função e da

importância do contador de histórias para as relações humanas.

―O tear

o tear

o tear

o tear

quando pega a tecer

10

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198. 11

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 39.

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vai até ao amanhecer

quando pega

a tecer,vai até ao

amanhecer...‖12

O ―Batuque das Gerais‖ principia a novela ―Uma estória de amor‖ desde sua primeira

edição, ainda no volume Corpo de baile, e tal qual uma cantiga que propõe e remete ao ato de

narrar, que se alinhava de homens e mulheres para descendentes e desconhecidos, as

―estórias‖ são contadas e ganham versões diferentes a cada novo intérprete, reelaborando a

percepção que se faça de uma simples cantiga como o ―Batuque das Gerais‖, até as histórias

exibidas nas sessões de cinemas ou na programação da televisão; ou seja, mudam-se os meios,

mas os fins continuam os mesmos: contar; contar ―estórias‖ e histórias; entreter, ensinar,

transformar sentidos, percepções, ideias consideradas imutáveis. Ao espectador; ao leitor; ao

ouvinte; permite-se estar à mercê da representação; do livro; do narrador; e se deixar conduzir

pelo universo de uma simples narrativa. O contador ―[...] quando pega a tecer, vai até ao

amanhecer...‖13

, isso desde muito tempo, seja ao redor da fogueira, quando o Xamã, nos

primórdios das civilizações humanas, transmitia o conhecimento às tribos pela arte de narrar,

seja na lúdica narrativa das narrativas: O livro das mil e uma noites14

, no qual Šahrāzād tece,

literalmente, infinitos novelos de histórias a fim de se manter a salvo da vingança do rei

Šāhriyār contra a traição da primeira esposa.

O poder das narrativas e da oratória perpassa os séculos, mantendo-se como opção para

os atos mais primitivos de apreensão do conhecimento: ver, ouvir, enfim, perceber. Tal

aspecto cultural da novela rosiana é ressaltado por Doralice Alcoforado, que contrapõe os

textos popular e erudito:

Embora não explicitado esse posicionamento, [a novela ―Uma estória de

amor‖] ao enfatizar o sistema significante, favorece a produção de novos

sentidos que orientam o leitor, possibilitando-lhe avaliar o texto primeiro, o

popular, através do texto erudito, devolvendo à circulação um texto mais

―oxigenado‖ (BERND, 1995).15

Uma das questões que mais causou inquietação à realização deste subcapítulo e que

permeia o valor das narrativas orais trazidas à baila por Doralice Alcoforado na citação

anterior, reside justamente na discussão inicial contida no parágrafo anterior acerca das

12

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 137. Aspas do original. 13

Idem, ibdem, p. 137. Aspas do original. 14

Vide edição de 2005, traduzida por Mamede Mustafa Jarouche, pela Editora Globo. 15

ALCOFORADO, Doralice Fernandes Xavier. ―‗Uma estória de amor‘: um diálogo intercultural‖. In: Boitatá –

Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, número especial, 2008, p. 164.

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perguntas em torno do papel da obra de arte, pois, como uma novela escrita por Guimarães

Rosa, que traz entre seus principais sustentáculos, cantigas e estórias oriundas de um acervo

desvinculado dos meios acadêmicos, pode causar algum efeito ao leitor, provocando-lhe a

reflexão acerca de vários pontos de vista (o ato de narrar e o poder da oratória, por exemplo)?

A historicidade da literatura não repousa numa conexão de ‗fatos literários‘

estabelecida post festum [depois do dia de festa], mas no experienciar

dinâmico da obra literária por parte de seus leitores.16

A Estética da Recepção objetiva, dentre outras linhas, o estudo da maneira como

determinado texto é recebido em seu momento de publicação, pelo leitor que o recebe no post

festum, de que nos fala Jauss. Na realidade, mesmo as críticas negativas à obra de Guimarães

Rosa, de certa forma, contribuíram para a constituição do horizonte de expectativas sobre

―Uma estória de amor‖, ainda que desse horizonte não haja uma definição sobre a

longevidade do trabalho de Guimarães Rosa. O que pode ser ressaltado, de fato, atualmente,

acerca da obra do autor mineiro é que, seja a escolha tão vasta de lexemas sertanejos, em

consonância até mesmo com termos em latim, seja a inovadora escolha da pessoa a ser

utilizada a narrativa (algo bastante arriscado do ponto de vista da compreensão do leitor para

os dias de hoje e demasiado novo para 1956), ou mesmo a construção de parágrafos que

chegam a exigir páginas inteiras, como ocorre, por exemplo, em Grande sertão: veredas

(1956), todos esses podem ser vistos como pontos que bastariam para concluirmos que o

acervo literário composto pelo autor de Cordisburgo jamais será esquecido e ainda renderá

muitos estudos sobre os seus tantos significados.

Guimarães Rosa, quando de sua estreia no conturbado cenário literário modernista,

lançou sua obra-prima Grande sertão: veredas e foi classificado por Wilson Martins (1921-

2010) como portador de um ―estilo retórico‖17

pouco inovador; seu livro, para o crítico, não

fazia jus a tantos julgamentos positivos. Pouco mais de cinquenta anos depois, com um

público leitor ainda em formação, Grande sertão: veredas continua rendendo muitas questões

e renovando-se enquanto obra de arte. Hoje é possível dizer que a história de Riobaldo

registra um dos maiores feitos de todos os tempos da Literatura de Língua Portuguesa: é

objeto de estudos filosóficos, psicológicos, linguísticos, históricos, dentre tantos outros, que a

realizam continuamente, pois está inserida num ―esquema platônico‖ que perpassa um

conhecimento repleto de ―modelos de pensamento e comportamento‖ ainda não

16

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 24. 17

MARTINS, Wilson. Guimarães Rosa na sala de aula. In: DANIEL, Mary Lou. João Guimarães Rosa:

travessia literária. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1968, p. 22.

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experienciados, os quais, certamente, responderão questões que residem no eco do futuro.

Assim também o são as narrativas do originalmente intitulado Corpo de baile, que se

espraia em sete novelas independentes à percepção do público leitor, mas também

dependentes, ao se complementarem como pares de vários elementos do sertão. Em ―Uma

estória de amor‖, especificamente, os pares ao ―baile‖ são escolhidos como em uma grande

festa, uma celebração à narrativa: Joana Xaviel está para Camilo, como Adelço está para

Leonísia e Manuelzão para a solidão. Mas a ―contação‖ das histórias embaralha tudo: Joana

Xaviel e Camilo passam a estar para os ouvintes, assim como as cantigas dos vaqueiros

andantes; Leonísia é vida, Adelço é ―[...] criatura de guardadas palavras e olhares baixos. Mas

não enganava a Manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para

ser ruim.‖18

, logo, desde o início, já não são como pares um do outro, porém, ainda que assim

não se realizem, Leonísia jamais estará para o sogro. Convenções, pudores e recatos talvez

sejam motivos que não permitam a Leonísia sequer pensar no sogro de outra forma que não

como o pai de seu marido, homem idoso e ao qual deve respeito.

Manuelzão, dessa maneira, ―dança‖ sozinho, e é em companhia da solidão, que ele ouve

as histórias, as cantigas e os seus pensamentos; sua disposição se assemelha ao ouvinte de

uma música; o apreciador de um quadro, de uma peça teatral ou um filme; e também o leitor

de um livro.

Na ideia da festa êle não estava navegado, a tudo? Quieto, devia de

aproveitar para repensar mais os arranjos, excogitando meios. Verdade, que

bem não carecia [...] o vago de palavras, o sabido de não existido, invenções.

Tomar a ocasião para presumir os benefícios do serviço do campo, o negócio

de sempre. A boiada que ia sair. À Santa-Lua. Não, não carecia. A gente não

estava em folga de festa? [...] Desmerecia, até estragava o avejo da festança,

se êle pegasse a refletir na viagem da boiada [...] Aborrecia. Deixava para

depois, quando a festa estiasse. Aí, resolvia [...] Agora mesmo, não era por

querido querer que estava ali escutando as estórias. Mais essas vinham, por

si, feito no avanço do chapadão o menor vento briseia.19

As histórias tocam Manuelzão como uma brisa, envolvendo-o, cercando-o, atribuindo-

lhe percepções até então confinadas, quietas em si. A história contada ou a que se conta se

torna real no momento em que entra em contato com o ouvinte, com o espectador ou com o

leitor, que nada mais é do que o mesmo sujeito, por ser atribuído do mesmo papel: percepção.

Pode-se dizer que o mesmo ocorre, ficcionalmente, em ―Uma estória de amor‖, pois as

histórias de Joana Xaviel, do velho Camilo, as cantigas entoadas pelos vaqueiros que chegam

18

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 147. 19

Idem, ibdem, p.170.

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à festa de Manuelzão, estariam fadadas à mesma incompletude existencial da obra literária

enquanto mero artefato; a obra não lida; o livro em si como apenas um suporte: carente de

quem o realize como obra de arte; a compreensão dos ouvintes pelo narrador, assim como a

percepção do texto pelo leitor, de acordo com Wolfgang Iser em O ato da leitura (1996-

1999), realizar-se-á no contato direto desse leitor (ou do ouvinte, no caso de ―Uma estória de

amor‖) com a obra de arte:

A relação entre o texto e o leitor se caracteriza pelo fato de estarmos

diretamente envolvidos e, ao mesmo tempo, de sermos transcendidos por

aquilo em que nos envolvemos. O leitor se move constantemente no texto,

presenciando-o somente em fases [...]20

Para o texto: o leitor; para a narrativa: o ouvinte. Em O ato da leitura, Wolfgang Iser

fala sobre a importância primordial do leitor para a realização da obra literária. A percepção

do texto e, por que não dizer, da narrativa, ocorre em fases, que acontecem como a ―brisa no

chapadão‖, da citação de Guimarães Rosa: envolvendo; tomando conta, aos poucos, dos

espaços vazios — a compreensão do leitor sobre determinado evento descrito na obra, até que

tal compreensão se realize de fato, é apenas um desses espaços vazios, além das conclusões de

Manuelzão sobre as histórias auditas ao longo da festa —. Histórias que atribuem à obra o

contínuo movimento, apenas cessando com o estanque da leitura ou da audição. O livro se

torna obra de arte a partir do primeiro momento em que é, literalmente, recebido pelo leitor.

De acordo com Iser, essa realização se encadeia em fases, que, aos poucos, revelarão

para o leitor a obra, a qual está incompleta até a leitura, a percepção, a audição daquele que

lhe atribuirá o verdadeiro significado, tornando-a mais do que um mero artefato. Em ―Uma

estória de amor‖, ao escolher por condicionar a ―estória‖, dentro da história — espécie de

intratextualidade — para falar sobre as narrativas, Guimarães Rosa brinca com o leitor de

todas as suas obras; pois Manuelzão, Leonísia, dona Quilina e tantas outras personagens, que

ouviram e ouvirão os contadores em ―Uma estória de amor‖, personificam os leitores em seu

momento mais sublime no contato com a arte: torná-la arte.

Segundo Jean-Paul Sartre ―[...] o objeto literário é um estranho pião, que só existe em

movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura [...]‖21

Isso

certamente ocorre com as narrativas orais, e no caso de ―Uma estória de amor‖, temos a

ocorrência de múltiplas percepções, pois, ao tornar real o entendimento de Manuelzão acerca

das histórias, durante a ―descoberta‖, signo a signo, da novela, o leitor é aquele que

20

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed.

34, 1996-1999, p.12-13. 21

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. 2.ed. São Paulo: Ática, 1993, p. 35.

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21

compreende e que torna possível a realização do objeto artístico também de modo ficcional,

para a personagem título de ―Uma estória de amor‖. O desvelar desse ―mundo interior‖ da

personagem Manuelzão é, tal qual explica Ubirajara Carvalho em O amor e a nossa condição,

desencadeado pelo contato entre o vaqueiro e todos os elementos que compõem a festa, onde:

Fundem-se, por assim dizer, dois fios na composição dessa narrativa: de um

lado, temos a festa propriamente dita, com as músicas, a dança, as narrativas

dos contadores e seu movimento; de outro, vemos deslindar-se o mundo

interior de Manuelzão que, na festa que antecede a retomada de sua vida de

vaqueiro, isto é, a saída com a boiada, passará em revista sua vida, trazendo

à tona suas questões vitais.22

Manuelzão, ao fruir as estórias narradas por Joana Xaviel, pelo velho Camilo e pelos

tantos cantadores de passagem pela Samarra, torna-se uma espécie de representação ficcional

do leitor, que movimenta o ―estranho pião‖, de que nos fala Jean-Paul Sartre em Que é a

Literatura? Mas aqui cabe o retorno a uma questão inicial desse trabalho: as narrativas

populares podem ser consideradas obras? Se não podem, por que uma novela, que trata sobre

as narrativas populares, sobre o poder de reinvenção e renovação dos contos e cantigas

populares é considerada obra?

Na realidade, o que é possível ser dito sobre essas questões é que o acervo popular a que

nos referimos como contos, cantigas e narrativas, estes são ―arte pura‖, que, quando não estão

no suporte da obra, como lá estão em ―Uma estória de amor‖, residem no imaginário popular,

na sabedoria de homens e mulheres que resistem a todo tipo de tecnologia, renovando-se e

ganhando nuances que apenas a capacidade criativa do ser humano permite realizar, ―Um dos

principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais

em relação ao mundo.‖23

Esse sentimento de que nos fala Sartre, é perceptível na ―Festa de Manuelzão‖; o post

festum do solitário vaqueiro da Samarra seria igual ao dia após dia de sempre, não fosse o

despertar do velho capataz à narrativa de sua própria vida. Manuelzão ―revive‖, com os

relatos e cantigas dos forasteiros, o instante após toda a comemoração, muito bem acentuado

na conclusão de ―Uma estória de amor‖, o que serve para confirmar que a ―festa da

existência‖ não perde seu canto tampouco seu conto, muito pelo contrário, a reinvenção da

história por via das estórias permite às várias camadas de leitores, ouvintes e espectadores a

percepção de uma continuidade que jamais será interrompida, mas rearranjada pelos

22

CARVALHO, Ubirajara Santiago de. O amor e a nossa condição: itinerários da festa em ―Uma estória de

amor‖ de Guimarães Rosa. Belo Horizonte, 2006. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira), Universidade

Federal de Minas Gerais, p. 9. 23

SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? Trad. Carlos Felipe Moisés. 2.ed. São Paulo: Ática, 1993, p.34.

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diferentes motivos que se apresentam.

A festa, ato coletivo por excelência, é não só o elemento que enfeixa e

organiza todos os acontecimentos do conto, mas também o espaço

privilegiado que arranca da destruição e da morte o tempo da experiência.

Longe de comemorar uma memória imediata, a festa assinala um momento

acima do tempo e da crise, possibilitando o resgate do irredimido e

irrealizado.24

A festa de Manuelzão, além de estanque à rotina da fazenda, serve também para

oxigenar as lembranças de Manuelzão; a solidão, a insegurança financeira e a saúde, mesmo

que permaneçam latejando, como o ferimento no pé, são por vezes suplantadas em benefício

da convivência. Desse modo, a festa acaba por se realizar como esse momento de euforia e

melancolia, por permitir deixar de pensar, mas não esquecer a vida diária na fazenda. O leitor

vive um pouco disso ao lidar com a leitura de um livro, pois a obra exigirá de seu apreciador

um momento de parada às reminiscências de sua vida, onde, mesmo durante a leitura, como

ocorre com Manuelzão durante a festa, serão inevitáveis as ligações que este leitor fará com

sua própria vida. Melancolia e euforia oscilarão nas lembranças do leitor como parte

indissociável da percepção da obra que se frui.

Desse modo, quando cessa o ato da leitura, seja pelo ponto final que se coloque em

―Uma estória de amor‖, seja por um eventual motivo, que separe, momentaneamente, o leitor

da leitura, o ―experienciar dinâmico‖, de que nos fala Jauss, permanece nos pensamentos, nas

lembranças, nas memórias do leitor, como o ferro que marca o gado na ficção de Guimarães

Rosa: conferindo, impiedosamente, percepções alheias ao ―esquema platônico‖ do leitor;

resgatando valores, atribuindo novos significados, possibilitando, enfim, a compreensão sobre

a obra que se escolhera fruir.

A obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada

observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um

monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes,

como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura,

libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual:

‗parole qui doit, en même temps qu‘elle lui parle, créer un interlocuteur

capable de l‘entendre‘ [palavra que deve, ao mesmo tempo que ela lhe fala,

criar um interlocutor capaz de o escutar].25

Em ―Uma estória de amor‖, esse ―ressoar‖, de que nos fala Jauss possibilita nessa obra

24

CARVALHO, Ubirajara Santiago de. O amor e a nossa condição: itinerários da festa em ―Uma estória de

amor‖ de Guimarães Rosa. Belo Horizonte, 2006. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira), Universidade

Federal de Minas Gerais, p. 42-43. 25

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p.25.

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23

de Guimarães Rosa mais do que a dualidade leitor/livro, mas, por via das histórias que

edificam a ―estória‖, as ―partituras‖ que se compõem na ―Festa de Manuelzão‖ independem

mesmo do crítico, pois o esquema da oralidade confere-lhes a ―existência atual‖; faz delas

fonte de recorrência a interlocutores que manterão o ―pião girando‖ à revelia de qualquer

metodologia que pretenda esquematizar a recepção do leitor. Desse modo, as histórias

contadas em ―Uma estória de amor‖ funcionam como o motor, que mantém o giro do pião do

―interlocutor capaz de o escutar‖, realizado, ficcionalmente, em Manuelzão:

Pois, minhamente: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior

quando a gente ouvia contada, a narração dos outros, de volta de viagens.

Muito maior do que quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-

acima, quando a maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos,

tudo trabalho empatoso, a gente era sofrendo e tendo de aturar, que nem um

boi, daqueles tangidos no acerto escravo de todos, sem soberania de sossêgo.

A vida não larga, mas a vida não farta.26

As histórias de ―Uma estória de amor‖ reafirmam, mesmo em se tratando de ficção, o

poder da oratória. Especialmente nessa novela, Guimarães Rosa parece haver conseguido

atribuir às narrativas populares a importância merecida, haja visto que a inserção de cantigas,

―causos‖ e histórias não ocorre aleatoriamente, como partes estanques do texto literário, mas

compõe o ponto culminante dessa novela e atribuem à história de Manuelzão os elementos

capazes de cativar o leitor.

O exemplo da citação anterior pode dar uma ideia desse fascínio com que Manuelzão

descreve a percepção dos contos, e como esses contos são cruzados com todos os

acontecimentos da festa — mesmo antes de se pensar em qualquer comemoração para

inaugurar a fazenda — a narração dos contos e as histórias ―musicadas‖ são constituídos com

tamanha riqueza de detalhes, ao ponto de se tornar coerente a entrega de Manuelzão a esse

raro momento de ócio. Como bem explicita Ubirajara Carvalho em sua Dissertação de

Mestrado, esse mundo de histórias, criado não só para entreter, mas também para apresentar

ao vaqueiro uma perspectiva impar do conhecimento de tudo ao seu redor (trabalho, ócio,

amor, ódio, vida, morte, etc.), reordena a concepção sobre a própria existência que Manuelzão

tinha antes dos relatos de Joana Xaviel e do velho Camilo,

Originada da mesma tradição de narrativas cuja figura central é o boi, a

Décima do Boi e do Cavalo, contada pelo poeta velho Camilo desempenha,

entretanto, um papel diverso na narrativa. À diferença da narrativa de Joana

Xaviel que, por assim dizer, conduz o vaqueiro Manuelzão a rever seu

26

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p.160.

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24

passado e a perceber as contradições da ordem a que está submetido, a

narrativa do velho Camilo fecha o conto ―Uma estória de amor‖,

possibilitando, de certo modo, a reordenação do universo e a reconciliação

do personagem com o fluxo da vida.27

A recepção do público leitor à história de Manuelzão talvez ainda não possa ser

completamente elaborada, por se tratar de uma obra muito recente, com poucos trabalhos

críticos organizados a seu respeito e com um público leitor em formação, por descobri-la; mas

o fato de a ―Festa de Manuelzão‖ suscitar tantas questões permite dizer que esse não é apenas

um livro que se deva classificar ingenuamente como a história de algum amor, drama ou

mesmo uma comédia, o qual nos apresentará o combalido esquema ―início, meio e fim‖.

Muito pelo contrário, o que fica evidente é o fato de que nessa novela não há um fim; não o

fim típico, de uma leitura fácil, que pouco ou nada acrescente à Literatura.

Em A História da Literatura como provocação à teoria literária, Hans Robert Jauss diz

que o estudo crítico sobre a longevidade de uma obra, seja esta de natureza literária,

contemplativa, etc., somente será válido, anos após o lançamento dessa obra. Assim, há de se

considerar pelo menos um tempo o suficiente para que se forme um público leitor isento de

paixões criadas pelo ―calor‖ do instante em que determinada obra é apresentada; mas a

possibilidade de ser lido em diferentes momentos históricos, permite dizer que um livro

também pode contribuir para o seu reconhecimento como objeto imbuído de valor estético o

suficiente para que o consideremos especial em relação a obras classificadas ―menores‖. Para

Regina Zilberman, tal qual ocorrera num passado remoto com a obra-prima de Guimarães

Rosa, Grande sertão: veredas, as teses formuladas por Jauss sobre a Estética da recepção não

foram compreendidas por seus críticos.

Ao procurar reabilitar a importância e validade da experiência estética, Jauss

não se preocupa em criar novas acepções para os conceitos, nem quer

contrariar as conclusões da teoria da literatura relativamente ao

experimentalismo da vanguarda. Com efeito, seu intento é antes usar os

mesmos argumentos dos adversários do prazer estético para provar a força e

significação desse.28

É desse modo, que o post festum, de que nos fala Jauss em História da Literatura como

provocação à teoria literária, é o que há de mais revelador e instigante em ―Uma estória de

amor‖, é dele que poderá se vislumbrar a percepção do público leitor, esse post festum

27

CARVALHO, Ubirajara Santiago de. O amor e a nossa condição: itinerários da festa em ―Uma estória de

amor‖ de Guimarães Rosa. Belo Horizonte, 2006. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira), Universidade

Federal de Minas Gerais, p. 127. 28

ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da literatura. São Paulo: Ática, 1989, p. 56.

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dependerá do ocorrido durante a festa; as experiências, os contados estabelecidos durante a

leitura, a audição ou o vislumbre de uma obra de arte serão determinantes para a ―festa‖ que

se inicia com o fim, por exemplo, da leitura.

Quando cessa a leitura das páginas que compõem as fictícias percepções de Manuelzão,

inicia-se a ―festa‖ particular do leitor, do crítico ou do leitor crítico, simplesmente; pois das

compreensões tecidas é que poderá se formular alguma ideia a respeito de ―Uma estória de

amor‖. Ao final, a festa de Manuelzão continua no ato perceptivo do leitor, ou, como nos

expõe Doralice Alcoforado, na apreensão da história criada por Guimarães Rosa, onde se

estabelecerá a articulação que posiciona criticamente o leitor de ―Uma estória de amor‖:

No processo de apropriação da matéria popular, a literatura erudita não

apenas dinamiza o seu sistema, criando novas possibilidades de articulações

do seu texto, que remetem a um sentido mais amplo, como também assume

um posicionamento crítico.29

O leitor constrói suas percepções com base na apropriação do texto — enquanto este se

realizar — tal qual ―matéria-prima‖ para o aprimoramento de seu senso crítico, ou seja, não

há, da parte do perceptor, principalmente daqueles que não estejam imbuídos de motivações

técnicas para a análise de determinado trabalho (o leitor comum não busca o conteúdo

analítico, por exemplo, antes do prazer que a Literatura possa lhe proporcionar, ao contrário

do crítico), e isso não quer dizer que, diferente do crítico, o leitor comum não saberá

selecionar, de maneira categórica, o que será lido por ele, mas, antes disso, suas percepções

críticas ocorrem de forma tão natural a ponto de detalhes só serem percebidos por uma crítica

especializada, depois de muitos estudos.

Nesse diálogo intertextual e intercultural, a mistura de dois modos

discursivos diferentes vai gerar mais fecundidade ao texto erudito e

dinamizar o seu sistema significante, enquanto o popular afirma-se como

uma forma de comunicação que não pode romper com a cultura tradicional.30

A referência à obra de Guimarães Rosa direciona o exame deste subcapítulo à Estética

da Recepção, pois, em toda a saga literária do autor mineiro, é evidente o trabalho que ele

desenvolveu em prol da busca de uma linguagem dialógica que marca as páginas de seus

livros, dotando-o de um estilo pautado de maneira inconteste pela tríade hermenêutica

proposta por Jauss (compreender, interpretar, aplicar), presente em A História da Literatura

como provocação à teoria literária. A pequena quantidade de trabalhos críticos de que se tem

29

ALCOFORADO, Doralice Fernandes Xavier. ―‗Uma estória de amor‘: um diálogo intercultural‖. In: Boitatá

— Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, número especial, 2008, p. 164. 30

Idem, ibidem, p. 164.

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26

conhecimento sobre a novela ―Uma estória de amor‖ possibilita afirmar esta parte

fundamental do acervo literário de Guimarães Rosa como uma obra de arte com todos os

méritos de um trabalho completo, talvez com um público leitor ainda por se formar, mas com

um estilo inconfundível, que coloca Guimarães Rosa à vanguarda de muitos autores.

O ―ponto final‖, que poderia marcar a conclusão da história de Manuelzão, realizar-se-á

como o ―ponto em seguida‖ para o leitor. A partir das compreensões do enredo, das

―estórias‖, das cantigas e, enfim, das impressões de Manuelzão sobre os acontecimentos que

ocorrem na Samarra durante a festa, o leitor comporá suas conclusões, e, destas, constituirá

alguma ideia de caráter moral ou que meramente o satisfaça como ledor da novela.

Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se

grava nele o que é ouvido [...] ele escuta as histórias de tal maneira que

adquire espontaneamente o dom de narrá-las.31

Em acordo com o que diz Walter Benjamin, pode-se dizer que da mesma maneira

ocorrerá com o leitor; pois quanto mais ele se esquece de si mesmo e do mundo ao seu redor,

mais consistente se torna sua leitura e de forma mais legítima se constituirá o efeito da obra

nesse leitor. Assim, retornam-se às questões iniciais propostas nesta Dissertação, onde se

constata que o ato de ler, como o de ouvir sofrerá mudanças como todos os segmentos do

conhecimento humano sofrem, porém, o poder genuíno de despertar o leitor às questões

ligadas aos campos mais antigos da história da humanidade (amor, solidão, sexualidade, etc.),

ainda encontrarão, se não respostas completas, ecos de conclusões possíveis sobre todo e

qualquer assunto.

O "torto encanto‖, gerado a partir da fruição da novela ―Uma estória de amor‖ pelo

leitor comum ou o crítico, está presente exatamente na interpretação que se fará das fictícias

histórias contadas no decorrer da festa. O mesmo encanto torto ocorrerá no post festum, na

realização da obra, com a aparente conclusão, que não se concretiza com o fim, mas se

desvincula disso para continuar sendo fruído no imaginário do público leitor. O horizonte de

expectativas presente na história de Manuelzão espraia-se de tal forma, que o impossível, de

fato, é não encontrar olhares alheios aquilo que a própria crítica literária, de alguma maneira,

tenta nos apresentar como verdade absoluta e inconteste; acreditamos que este seja o

momento em que a percepção se torna ato do leitor e não mais do autor ou mesmo de um

estudioso de determinada obra,

31

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 205.

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27

[A] obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço

vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços

familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de

uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja

logo de início expectativas quanto a ‗meio e fim‘, conduz o leitor a

determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte

geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então — e não antes disso

—, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos

diversos leitores ou camadas de leitores.32

Deste ―horizonte geral da compreensão‖, do qual nos fala Jauss, dependerá inclusive a

continuidade da obra como objeto de estudo (para a crítica especializada) e deleite (para o

leitor de maneira geral), pois, a cada ―contato‖ com seu público, um novo olhar pode surgir

como uma possível vertente interpretativa de um trabalho aparentemente esgotado de

atributos significativos. ―A capacidade de tornar manifestas potencialidades ainda não

realizadas; de agenciar novas redes de sentido; de conciliar experiência e discurso [...]‖33

garante a continuidade histórica da obra diante de seu público, seja este dotado de algum

conhecimento crítico ou não.

A Recepção Crítica de ―Uma estória de amor‖ consta como podemos observar na

citação anterior de Jauss, na lembrança do já lido que ensaiara no início de uma determinada

obra, o meio e o fim, cabendo ao leitor [o descobridor genuíno destas lembranças] transpor a

verdade da personagem, dando-lhe nivelamento para a sua própria verdade; reconhecendo-se,

assim, o vinculo de que nos fala Jauss, que nada mais é do que o reconhecimento da solidão

de Manuelzão na solidão do leitor em sua própria festa.

Ao final da narrativa o vaqueiro diz: ―A boiada vai sair. Somos que vamos.‖34

; a vida

continua, assim como deve continuar o trabalho; Manuelzão percebe, de maneira mais

cuidadosa, suas escolhas, mas o curso normal da vida, como o crescimento e amadurecimento

de Miguilim em ―Campo Geral‖, — novela que faz par com ―Uma estória de amor‖ em

Manuelzão e Miguilim — deve seguir, pois o tempo seguirá sua progressão normal, e se um

dia tiver de se averiguar que o destino poderia ter sido mais do que foi, certamente, isto

ocorrerá como a repentina seca do riozinho, que passava rente à casa na fazenda Samarra, e

que a todos pegou de surpresa, ficando encravado nas lembranças de Manuelzão como algo

32

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994,

p. 28. 33

FANTINI, Marli. ―Rosa, rosae, rosarum‖. In: Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo:

SENAC; Cotia: Ateliê, 2003, p. 37. 34

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 263. Grafia do autor.

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28

dentro da Samarra que lhe fugiu ao controle, ―‗Ele perdeu o chio...‘‖35

, de maneira

surpreendente. Mas a sua vida não poderia perder o ―chio‖, esta é a sua festa, este é o

momento que ele deixa de ser o velho capataz da fazenda, para se tornar um trabalhador, entre

tantos outros, ignorando a idade e a solidão.

1.2. O leitor e a personagem no “torto encanto” do conto

A forma escolhida por Guimarães Rosa para dispor as personagens, assim como a

arrumação dessas personagens para o leitor, fazem de ―Uma estória de amor‖ uma obra na

vanguarda do que só ganhou ―corpo‖ pelo menos vinte anos depois. Não é errado afirmar que

Guimarães Rosa é um precursor de seu tempo, e quando isto é dito não se está fazendo

referência apenas a sua obra-prima Grande sertão: veredas, mas a todo esse legado contido

no originalmente intitulado Corpo de baile, com suas sete novelas, além dos inúmeros contos

publicados pelo autor mineiro ao longo de sua carreira.

Há obras que, no momento de sua publicação, não podem ser relacionadas a

nenhum público específico, mas rompem tão completamente o horizonte

conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a

formar-se aos poucos.36

Essa assertiva proferida por Jauss durante a aula inaugural na Universidade de

Constança, que originou um dos principais trabalhos sobre a Estética da Recepção, A História

da Literatura como provocação à teoria literária, se aplica de maneira excelente à narrativa

sobre a festa de Manuelzão. Na novela ―Uma estória de amor‖, antes de qualquer outra

questão, vê-se descrita, primeiramente, a pretensa consagração de Manuelzão como capataz

da Samarra. A fazenda é aberta à visitação de vizinhos, de forasteiros estranhos e até mesmo

do dono, Federico Freire, — que não se faz presente fisicamente, mas, como uma espécie de

analogia à realidade da distância entre o patrão e o empregado para a sociedade capitalista,

Federico parece observar seu imediato em um plano superior —, para o povo que adentra

aquele espaço tão sagrado para o velho vaqueiro, o que parece valer mesmo é realização da

festa.

As histórias de Joana são o grande elemento de desmancho não só no nível

do tempo e do espaço, na medida em que instauram o tempo e o espaço do

imaginário, como no nível do personagem que, pelo caminho da fantasia, vai

35

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 163. 36

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 32-33.

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29

abrir as comportas da sua subjetividade.37

O trabalho de Sandra Vasconcelos em Puras Misturas traz as histórias, as impressões de

Manuelzão e os comportamentos das tantas personagens que desfilam pela Samarra, para

apresentar as facetas evidentes e ocultas em ―Uma estória de amor‖. A ―capioa

barranqueira‖38

, como é chamada Joana pelo narrador da novela, em suas histórias parece

desacelerar o tempo e ditar, com o seu domínio de fala, os humores do povo da Samarra,

desde um simples agregado até o velho capataz, que é a representação de Federico Freire, o

verdadeiro dono da fazenda e patrão de Manuelzão. É por concessão do velho vaqueiro, que

Joana Xaviel permanece no arraial, suas histórias, na memória de Manuelzão, se confundem

com a vida do vaqueiro, na medida em que Joana revela o desfile dos mais variados tipos, que

ganham vida em suas narrativas fantásticas,

Nesse estado de vigília, embalado pela voz da barranqueira, que se

transfigura e remoça no relato de suas histórias, o velho vaqueiro forja

fantasias — cenas e episódios que conta a si mesmo num momento de ócio e

relaxamento.39

Manuelzão dita o que se faz dentro da Samarra, mas durante o momento em que o povo

senta para escutar Joana Xaviel, o vaqueiro é apenas mais um de seus ouvintes e, assim como

estes, sua postura, diante da contadora, é de absoluta e surpreendente subserviência (se

levarmos em consideração que é Joana quem conduz a história). Ele sequer a questiona, por

discordar de um relato, para Manuelzão restava apenas discordar consigo sem jamais se

intrometer ou mesmo opinar sobre o destino das personagens.

A história contada conflui o que na escrita parece ganhar ordem; apresenta desfechos

singulares às histórias consagradas, desvela o recatado e lança véu sobre o explícito, enfim, se

constitui ao gosto do contador. No rol dos tantos contadores da Literatura, uma, em especial,

nos apresenta se não a mais completa, pelo menos a mais emocionante coletânea de histórias

fantásticas, de amor e de ódio, de alegria e de tristeza, de fidelidade e de traição: O livro das

mil e uma noites.

As sensações que as histórias de Joana Xaviel despertam em Manuelzão, encantam-no,

como o faz Šahrāzād com o rei Šāhriyār em As Mil e Uma Noites, mas, diferente daquela, que

é tida por Manuelzão como um elemento de desmantelo da ordem estabelecida por ele dentro

da Samarra, Šahrāzād, no início, é vista pelo rei como mais uma peça em seu jogo de

37

VASCONCELOS, Sandra Guardini T.. Puras Misturas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 33. 38

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 183. Grafia do autor. 39

VASCONCELOS. Op. cit., p. 78.

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30

vingança e morte. É o rei Šāhriyār quem dita a ordem do que acontecerá, porém, tal qual

Joana Xaviel, é Šahrāzād quem estabelece as regras do jogo, ao instituir um movimento de

―fluxo e refluxo‖40

nos pensamentos de seu esposo, incitando-o a mantê-la viva e não ser mais

o único a dominar as regras nesta batalha particular entre a vida e a morte. Este jogo, que

iniciará com a possibilidade da filha de um vizir41

, Šahrāzād, vir a tornar-se a esposa do rei,

será o mote que movimentará as mil e uma noites seguintes a ordem estabelecida por ela. Por

consequência de suas narrativas, a jovem esposa do rei esperava interromper uma série de

assassinatos cometidos a mando dele, por causa de uma história de amor mal resolvida.

Com Manuelzão tudo ocorre de forma inversa. Ao contrário do que se possa supor, não

é Joana Xaviel quem provoca o velho vaqueiro a repensar parte do desfio de sua vida, mas o

impacto que as suas narrativas e seus ensinamentos aliados a sua história de vida exercerão

diretamente sobre uma mudança de visão de tudo o que ele já tivesse como verdade

incontestável,

Podem ser consideradas ‗histórias exemplares‘ [...] baseando-se num sistema

de metáforas e analogias que mantêm uma relação de espelho com seu

contexto de enunciação, têm a função de mover alguém a praticar

determinada ação ou então demovê-lo de praticá-la.42

As histórias de Joana trazem à tona o que é particular de Manuelzão na demonstração

do que foi e do que poderia ter sido sua existência, se ele se houvesse dedicado à vida pessoal

com tanto amor o quanto se dedicou ao trabalho. Tal constatação, a princípio, o fará sentir o

gosto amargo como o fel de não poder refazer seu destino e recomeçar, pois a idade avançada

já não propícia que ele comece a procura por uma nova função, em outro lugar, que possa lhe

proporcionar méritos maiores do que a mera condição de capataz da fazenda de Federico

Freire, mas saber mais a respeito de si mesmo, o fará ganhar novo fôlego e querer demonstrar

tal força para que tudo o que ainda possui no que lhe resta de vida continue sendo seu de

maneira inconteste.

Šahrāzād, ao contrário de Joana, expõe para o rei Šāhriyār o que é alheio ao seu mundo

particular e, certamente, não poderia ser diferente, pois, para fazê-lo esquecer a traição da

esposa e absorver algo positivo que o demova de sua promessa de matar as mulheres na

manhã seguinte à noite de núpcias, contar histórias moralizantes seria menos eficaz do que

40 VASCONCELOS, Sandra Guardini T.. Puras Misturas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 76. 41

O termo ―vizir‖ traduz wazir, palavra árabe que nomeia uma espécie de adminstrador-geral, que na linha

hierárquica do poder vem logo abaixo do rei. Em árabe moderno significa ―ministro‖ (Livro das mil e uma

noites, p. 40) 42

JAROUCHE, Mamede Mustafa [introdução, notas, apêndice e tradução]. O livro das mil e uma noites. São

Paulo: Globo. 2005, p. 22.

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31

narrar àquelas que o fizessem apenas querer desprender-se de uma realidade tão aviltante

quanto a traição a que fora submetido no passado; ―Por Deus que eu não a matarei até escutar

o restante da história [...]‖43

, disse o rei, ao fim da primeira noite, demonstrando uma

reavaliação ante a sua promessa anterior, ―[...] não se manter casado senão uma única noite:

ao amanhecer, mataria a mulher a fim de manter-se a salvo de sua perversidade e perfídia‖44

.

As narrativas de Šahrāzād convidam o rei a abandonar uma realidade distante daquela

provada por ele com a primeira esposa e, mesmo que o enredo destas histórias pareça não

provocar juízo de valor no rei, visto que a comoção de Šāhriyār pelo desfecho da narrativa

contada pela esposa ocorre movida pela curiosidade, o simples fato dele interromper a série de

assassinatos, atribui outro significado à sua própria existência, curando-o e tornando-o melhor

do que fora a partir do que ele tomou para si como novo ideal de vida: ordenar a morte das

esposas ao fim da primeira noite de casados.

Em ―Uma estória de amor‖, Manuelzão ouve as narrativas de Joana Xaviel como se

fossem reflexos de sua própria vida, porém, muito mais do que apenas a ação moralizante já

citada anteriormente, as fábulas de Joana reinventam a história de Manuelzão, atribuindo a ela

algo de fantástico, que se encontra pouco perceptível no dia a dia; o imaginário do vaqueiro,

aliado à eloquência com a qual a Joana narra a história da Destemida45

, por exemplo, o farão

lembrar-se da relação de confiança existente entre ele e Federico Freire, ainda que o final,

aparentemente, incompleto, distancie a história do vaqueiro da Samarra daquela contada por

Joana, o início da narrativa já serve para Manuelzão de maneira suficiente para fazê-lo

lembrar a importância em se dedicar tanto à propriedade de Federico: a incontestável

relevância de sua competência,

O texto entretece claramente [...] os dois fios que constituem o nervo de sua

estrutura até alcançar seu ponto climático, ao fazer calar a voz de Joana e

deixar murmurar o mundo interior do vaqueiro [...] A voz de Joana, então,

toma conta do texto novamente, para ser interrompida logo mais por uma

nova rede de associações, num processo incessante de puxar para fora o

mundo interior do personagem.46

A voz de Joana é o elo que entretece suas narrativas às histórias de Manuelzão,

apresentando para o vaqueiro um mundo alheio, porém, ao mesmo tempo próximo ao seu.

Este mundo novo apresentado por Joana, com seus elementos moralizantes e de ligação com a

43

JAROUCHE, Mamede Mustafa [introdução, notas, apêndice e tradução]. O livro das mil e uma noites. São

Paulo: Globo. 2005, p. 58. 44

Idem, ibidem, p. 49. 45

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 185. 46

VASCONCELOS, Sandra Guardini T.. Puras Misturas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 34.

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32

história de Manuelzão, o farão compreender a importância de sua permanência no comando

da Samarra, concretizando-o como o real dono da fazenda, tal qual a lição de dinâmica

empreendida por Šahrāzād em As mil e uma noites, que demonstrará a noção de algo que

nunca terá fim, ou que será baseado por uma infindável continuidade. A jovem esposa do rei

―vencerá‖ o marido, sem que seja necessária a utilização de nenhuma arma, ou sem que se

precise arrancar do sultão uma única gota de sangue; suas armas são as palavras que subtraem

do poderoso monarca apenas sorrisos encantados por tamanha demonstração de sabedoria e

capacidade para contar histórias fantásticas.

São fábulas de terror e de piedade, de amor e de ódio, de medo e de paixões

desenfreadas, de atitudes generosas e de comportamentos cruéis, de

delicadeza e de brutalidade. Um repertório fantástico que até hoje nenhuma

outra obra humana igualou, e que, desde o início do século XVIII vem sendo

traduzida para os mais diversos idiomas do mundo, a tal ponto que, para

Jorge Luis Borges, passou a ser ‗parte prévia da nossa memória. ‘47

Šahrāzād eterniza sua noite de núpcias e vida, pois a morte, desde o início era algo dado

como certo; quando a filha do vizir consegue chegar à segunda noite viva com o mero

artifício: ―Isso não é nada perto do que vou contar na próxima noite caso eu viva e caso este

rei me poupe.‖48

, a sua permanência na vida e no reino de Šāhriyār já são resultados certos e

edificados de uma engenhosa maneira que a jovem esposa encontrara para continuar viva e

conquistar o amor de seu marido: contar histórias.

As mil e uma histórias de amor de Manuelzão aproximam-se das de Šāhriyār porque

tanto para o rei quanto para o vaqueiro, honra e glória são duas qualidades que acompanham o

mesmo ritmo e que, sendo assim, são inseparáveis, se for considerado que da honra de um

homem dependerá sua glória. Quando o rei de As mil e uma noites é traído por sua esposa, a

sua reputação é maculada, e a consequência disto é que o seu prestígio como monarca cai por

terra,

[O] rei Šāhriyār continuou a se casar a cada noite com uma jovem filha de

mercadores ou de gente do vulgo — com ela ficando uma só noite e em

seguida mandando matá-la ao amanhecer — até que as jovens escassearam,

as mães choraram, as mulheres se irritaram e os pais e as mães começaram a

rogar pragas contra o rei [...]49

As mães, pais e moças de seu reino passam a não mais respeitá-lo, mas sim temê-lo pela

47

JAROUCHE, Mamede Mustafa [introdução, notas, apêndice e tradução]. O livro das mil e uma noites. São

Paulo: Globo. 2005, p. 09. 48

Idem, ibidem, p. 58. 49

JAROUCHE, Mamede Mustafa [introdução, notas, apêndice e tradução]. O livro das mil e uma noites. São

Paulo: Globo. 2005, p. 49.

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33

possibilidade de tornarem-se as próximas vítimas da vingança desmedida de Šāhriyār contra a

inevitável condição de adultera de todas as mulheres, profetizada por uma ninfa, que traíra um

ifrit50

com noventa e oito homens completando cem ao deitar-se com Šāhriyār e seu irmão,

―Mas ele não sabe que o destino não pode ser evitado nem nada pode impedi-lo, nem que,

quando a mulher deseja alguma coisa, ninguém pode impedi-la.‖51

. Šahrāzād redime seu

esposo desde a primeira noite, devolvendo-lhe o respeito interior perdido por causa das

traições da primeira esposa e premiando-o com um súdito ao fim das mil e uma noites, ―É tal

a personagem que irá se encarregar de devolver o rei à sensatez e boa senda.‖52

Já a honra de Manuelzão reside no cumprimento de suas tarefas diárias que impõe ao

vaqueiro uma dedicação esmerada ao exercício de suas funções. À Joana não cabe a tarefa de

redimir Manuelzão de uma possível descrença em algum valor, como ocorre com Šāhriyār em

As mil e uma noites, mas sim, demovê-lo, sem a devida intenção, da postura sisuda em relação

ao trabalho, postura que não abandonara jamais.

As histórias de Joana, assim como as de Šahrāzād em As mil e uma noites, apresentam e

devolvem a paz nunca provada e perdida de Manuelzão e Šāhriyār, respectivamente, abrindo e

devolvendo amores verdadeiramente humanos, que proporcionarão às duas personagens

características genuínas de homens que sofrem e que procuram as suas maneiras particulares,

condições de escaparem ou de se protegerem contra as ações de outras pessoas (a primeira

esposa de Šāhriyār, por exemplo) ou os meandros do destino (a condição de Manuelzão, um

idoso solteiro), que os tornaram descrentes na possibilidade de uma mudança, o que, aliás,

parece também ser uma ânsia do leitor de Guimarães Rosa: por intermédio da fruição,

provocar em sua vida a mudança que sentira na ficção com o efeito da obra sobre si.

Ao cerrar o livro, outro permanecerá aberto para o leitor. Desse misto de lugar e objeto,

exclusivamente seu, serão concluídas, ressignificadas, reordenadas e revistas, posições,

pontos de vista e postura desse leitor; pode-se dizer que este será o momento em que o leitor

estará para o livro, como Manuelzão está para Joana Xaviel e para o velho Camilo, como

Šāhriyār está para Šahrāzād em As mil e uma noites, e para todos os outros cantadores e

contadores de histórias: um ser prostrado ao conhecimento, à apreensão de experiências que

lhe justifiquem as horas dedicadas à leitura de uma obra. De acordo com Gadamer, a obra de

50

Como as palavras ―demônio‖ ou ―diabo‖ não dão conta do sentido, optou-se por uma transcrição aproximada

do termo árabe ifrit, já verificado no Alcorão, e que indica criatura sobre-humana e maligna. Em outros

manuscritos usa-se jinni (de hábito traduzido como gênio, como se fez no livro) ou marid, que são

semanticamente próximos (Livro das mil e uma noites, p. 46). 51

JAROUCHE, Mamede Mustafa [introdução, notas, apêndice e tradução]. O livro das mil e uma noites. São

Paulo: Globo. 2005, p. 48. 52

Idem, ibidem, p. 25.

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arte somente constituirá a fluência que a justificará, com a apreensão do leitor.

A obra de arte é colocada como objeto para um sujeito. Esta consideração

baseia-se na relação sujeito-objeto, fundamentalmente a relação sensível. A

obra torna-se objeto, sob o aspecto da experiência vivida, da ‗vivência‘ de

quem a contempla.53

Assim o é, que esse objeto — o livro — tornar-se-á experiência para o sujeito — o

leitor — fazendo fluir em si, tal qual ocorre com Manuelzão no episódio do riacho que seca54

,

por exemplo, a percepção dos acontecimentos ao redor de si. Esse rio, que fica às

proximidades da casa e serviu aos animais, à lavoura, ao povo da fazenda, pode representar

para o leitor o fim de um ciclo, mas também o início de outra jornada. Retornando ao leitor,

como uma história que se conta e da qual se espera uma ―moral‖, o riozinho corre, cumpre seu

ciclo e acaba sem deixar de despertar às questões que emergirão desse contato do leitor com a

obra: morte, fim, vida e reinicio.

A correnteza do rio (ou da vida) não para, nem tão pouco se repete; ao contrário, a

atividade impulsiva das águas do riacho e da própria existência humana leva coisas (no caso

do rio) e pessoas (no caso da vida), apresentando outra nuance de forma e quantidade (vazante

e enchente), de realidades e expectativas (casamentos, solidão, infância, velhice, etc.) para

tornar-se, no caso da vida (mas também do rio), única em sua essência, tal qual uma narrativa

consagrada ou apenas o fruto de uma observação mais atenta acerca da história que se cria

sobre si:

Estória, algo ―pronto‖, que alumia e acaba como riachinho, mas

também permanece; que recomeça sempre e é sempre a mesma e

cada vez uma outra; gratuita com o desmanchar e refazer de um

trabalho, sem precisão — molde ideal onde todos se reconhecem,

que a todos transforma por um momento mágico: mito.55

O mito do ―menino sozinho‖56

, comparado por Manuelzão à vazante do rio, é a

criança, que o leitor na maturidade calou ao longo de sua existência, como o

definhar do curso de um riacho, exaurido pela intervenção humana. Cala-se o

menino, mas ficam as histórias com o adolescente que emerge desse silêncio,

tornando-se mais tarde o adulto. As histórias são eternas, enquanto houver quem

53

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 109. 54

Vide: ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J.

Olympio, 1956. v. 1, p. 148-149. 55

ROUX, Pina Maria Arnoldi Coco. ―Uma estória de amor (A festa de Manuelzão)‖. In: Cadernos de Formação

e Cultura, São Paulo, n. 19, 1974, p. 34. 56

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 120.

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as propague às gerações que se sucedem:

Antes, na Idade Média, no auge da leitura ritual e oral, as histórias

contadas oralmente ou lidas tinham uma aura sagrada e a

significação era codificada, sem espaço para a interpretação

individual. A reflexão escrita é individual, acesso ao transcendental

e ao fundão do eu, simultaneamente.57

O velho Camilo, Joana Xaviel e todos os outros anônimos contadores e

cantadores demonstram-se como as representações dos mecanismos que abrirão as

―comportas‖ do rio de subjetividades, ficcionalmente de Manuelzão, mas também

do leitor. As histórias, em especial as contadas por Joana Xaviel, surgem como

rearranjos na vida da personagem Manuelzão, mas, pode-se dizer que os

resultados palpáveis se observam na maneira como o leitor receberá todo o

conhecimento adquirido com a leitura de ―Uma estória de amor‖, para recompor

então, de forma bastante distinta, os vários significados dos acontecimentos, por

exemplo, em sua vida, nos possíveis campos da existência humana.

As histórias, que serão contadas por Joana Xaviel, pelo velho Camilo e cantadas em

forma de repentes pelos boiadeiros que passam e param em circunstância da inauguração da

propriedade, ―chamam‖ para o baile todos os presentes na fazenda. Nada, nem pessoa

nenhuma passará ilesa ao vasto universo que lhes será narrado. Pode-se dizer que essas

pequenas narrativas inseridas na narrativa maior, a novela propriamente dita, envolvem cada

personagem de ―Uma estória de amor‖, mas, tal envolvimento ocorre de forma especial com

Manuelzão.

Manuelzão, até então, parecera viver indiferente à própria natureza, como que evitando

ter consciência de sua existência e do que a vida lhe reservara nos instantes derradeiros, no

qual vemos iniciada sua narrativa. Quando o velho vaqueiro começa a se dar conta de sua

condição, fica mais clara a passagem da esfera da indiferença do mundo ao seu redor para a

ideia dos sentidos, de que falamos no parágrafo anterior sobre a percepção humana.

A provocação suscitada pelas narrativas, que chama a atenção de Manuelzão para o

mundo ao seu redor, não o desloca apenas para outros lugares, nem lhe desperta somente

emoções que, eventualmente, o façam esquecer a desavença com o filho Adelço —

lembremos que Manuelzão nutria por Adelço, seu único filho, uma aversão sem explicação,

ao mesmo tempo em que guardava pela nora uma consideração devotada — ou, que

recompense, de alguma forma, por tantos anos de trabalho, por exemplo; na realidade tais

57

CHIAPPINI, Ligia; VEJMELKA, Marcel (orgs.). Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2009. p. 192.

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histórias tocam sua percepção como o dedo na ferida aberta do ―machucão‖ que o impede de

descer do cavalo58

. Seja o fato dele, Manuelzão, homem idoso, ainda comandar tudo na

propriedade do patrão Federico Freire, seja pelo apreço que nutre pela nora Leonísia, que o

leva a questionamentos acerca da sorte do filho em ter encontrado uma mulher tão perfeita, o

vaqueiro se reconhecerá nas histórias pela simples identificação dos relatos com sua própria

vivência.

O ―machucão‖ no pé pode remeter, como a maioria dos signos presentes na novela

―Uma estória de amor‖, ao receio latente que toma, por vezes, homens e mulheres, que temem

tanto ―descer‖ do cavalo que montaram a vida inteira. Assim, mesmo uma ferida carnal se

realiza como a desculpa apropriada que o manterá longe dos julgamentos e constatações que

tanto temor lhe cause em só pensar no deitar de seus pés ao chão.

Os vários elementos na constituição da narrativa (por exemplo, a fazenda como o lugar

sagrado de seu trabalho e no qual repousam os restos mortais de Dona Quilina, sua mãe) são

apresentados ao leitor de ―Uma estória de amor‖ como as impressões de Manuelzão; o velho

vaqueiro parece tomar para si o relato de sua história sem se prender a qualquer compromisso

com quem a lê; a apreensão que se tenha da história de amor de Manuelzão será realizada

consonante o relato estabelecido para constituir leituras possíveis, sem, no entanto, tornar-se

real o completo distanciamento dos sentidos já descritos por Manuelzão.

Joana Xaviel, velho Camilo e os tantos desconhecidos cantadores e contadores de

histórias que chegam à Samarra relatam, para Manuelzão, a vida em forma de parábolas,

músicas e histórias. O leitor, ao tomar conhecimento da novela ―Uma estória de amor‖ pelo

espontâneo ato de ler, o recebe pela intervenção de um narrador anônimo, que por vezes se

confunde com Manuelzão, mas o próprio vaqueiro, em alguns momentos, é quem narra os

acontecimentos na fazenda, revezando esse ―poder‖ com aquele narrador que de tão misturado

à construção da narrativa, se faz a própria memória do possível leitor, o qual encontrará nos

desencontros, tristezas, felicidades, vitórias e derrotas de Manuelzão ecos de sua vida, a ponto

de as histórias narradas em ―Uma estória de amor‖ tornarem-se as histórias das várias

camadas de leitores das mais diferentes classes, crenças, etnias, etc.

Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o

ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi

narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade

da reprodução. A memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente

uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das

58

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 142.

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coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento

dessas coisas, com o poder da morte.59

Esse fato não ocorrerá no caso da obra de arte, pois a fruição experimentada pelo leitor

no decorrer do tempo que este se dedicará a determinado livro, tornará a obra eterna na

memória daquele. É por meio dessa memória épica, como nos explica Benjamin, que se pode

dizer das histórias contadas por Joana Xaviel, por exemplo, como ressignificações, que podem

ser assimiladas em qualquer tempo.

Assim, o leitor apropria-se da obra, dá-lhe fôlego novo, projetando-a a outros horizontes

independentes daqueles propostos por determinados críticos à época de seu lançamento ou

mesmo as primeiras ideias do escritor sobre a sua criação. ―A obra é historicamente entregue

aos seus destinatários, àqueles que a guardam e que a cada vez a fundam. [...] A essência da

obra não é, pois intemporal, pois que de nós depende nesse sentido.‖60

, depende para realizar-

se além de um artefato apenas, mas um objeto capaz de provocar, de empreender naquele que

a frui a apreciação, independentemente de qual seja: demovê-lo de uma atitude, levá-lo a agir

em acordo ou desacordo com expectativas alheias, ou, simplesmente, fechar o livro e não

querer voltar a lê-lo, imbuído de uma discordância com o que foi lido, tal qual Manuelzão o

sente ao ouvir de Joana a história da Destemida; Manuelzão, não aceita a versão de Joana

Xaviel para a história.

É com base nos relatos ouvidos pelos contadores, que Manuelzão passa a questionar o

mundo, a realização de todas as coisas, desde o natural esvair do riozinho que servira por

tantos anos a fazenda, até sua condição subalterna, já tão próximo do fim. A obra plantará no

inconsciente do leitor — tal qual ocorre com Manuelzão por intermédio dos contadores — os

vários questionamentos que confirmarão o valor estético da novela ―Uma estória de amor‖.

Ao contrário do que se possa imaginar, não há um final surpreendente, um mistério que se

desvele, ou alguma reviravolta completamente imprevista; ―Uma estória de amor‖ se consagra

por provocar o leitor em suas esferas mais latentes (amor, sexo, morte, etc.), e por realizar isso

por uma tênue linha, que por vezes mistura real e imaginário no mesmo território, certificando

ora um, ora outro, desdizendo-os também, para, no final, consagrar os dois em uma das mais

belas demonstrações da capacidade humana de perpassar conhecimento.

O velho vaqueiro faz-se a dúvida sobre a história A Destemida, contada por Joana

Xaviel; a história o perturba a tal ponto, dele querer mandar algum dos seus subalternos ao

59

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 210. 60

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 116.

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mundo, para averiguar a veracidade do que Joana relatara. O leitor, ao entrar em contato com

a novela ―Uma estória de amor‖ ―padecerá‖ do mesmo questionamento que se impusera a

Manuelzão; e o leitor, tal qual Manuelzão — pois é o que Guimarães Rosa consegue

demonstrar com maestria — terá a sua frente o destino por ―ser escrito‖. Com a [in]conclusão

―A boiada vai sair. Somos que vamos.‖61

Guimarães Rosa passa às mãos do leitor não só o

destino de Manuelzão, mas o do próprio leitor, atribuindo-lhe e alçando-o a um lugar somente

seu; intransferível.

A tarefa da história da literatura somente se cumpre quando a produção

literária é não apenas apresentada sincrônica e diacronicamente na sucessão

de seus sistemas, mas vista também como história particular, em sua relação

própria com a história geral. Tal relação não se esgota no fato de podermos

encontrar na literatura de todas as épocas um quadro tipificado, idealizado,

satírico ou utópico da vida social. A função social somente se manifesta na

plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor

adentra o horizonte de expectativa de sua vida prática, pré-formando seu

entendimento do mundo e, assim, retroagindo sobre seu comportamento

social.62

O leitor se faz condutor de sua própria ―boiada‖; em relação ao seu destino pós-contato

com o objeto artístico é ele quem dita à ordem à saída da ―boiada‖. Como bem nos esclarece

Jauss, a obra de arte cumpre seu papel primaz quando alcança o ―eu‖ do leitor, tornando-o

mais do que um mero ledor, que ao terminar a leitura não refletirá sobre nada do que lera, mas

um ser consciente de seus atos, de seus deveres, enfim, capaz de beneficiar o convívio social

com o simples aprendizado, por exemplo, das histórias apreendidas em ―Uma estória de

amor‖. ―A estória é colocada em ata‖, aludindo ao conto ―Desenredo‖ (Tutaméia, 1967), de

Guimarães Rosa.

Discutir a validade de histórias de cunho popular, como aquelas contadas em ―Uma

estória de amor‖, talvez não direcione, nem intente direcionar o leitor de Guimarães Rosa para

uma conclusão definitiva sobre o assunto; na verdade, aquilo que até aqui fora analisado como

o que causa, ou o que ainda é capaz de causar provocação nas várias formas de expressão

artística, levou nossas conclusões para um ponto em comum, no meio de tantos outros

dissonantes: a capacidade humana de receber a arte, nas suas mais diversas esferas é

indiferente aos obstáculos ou de qualquer ideia preconceituosa sobre a origem do objeto

artístico.

61

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 2, p. 248. 62

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 50.

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Os contos, cantigas e relatos, passados de geração para geração, que atravessaram

mesmo o horror dos campos de concentração alemães, na palavra de esperança que alguma

mãe ou pai aflito, deram ao filho durante uma canção para dormir, uma estória infantil ou a

simples capacidade de se manter crente em um dia seguinte que contradissesse tudo o que

estava acontecendo, essas estórias que não estão inseridas na História oficial (a História da

existência humana sobre a Terra), já seriam o bastante para dizer que a arte encontra ou é

encontrada mesmo na capacidade unicamente humana de se mostrar diverso de tudo, até de

suas próprias expectativas, e isso vale mesmo para aqueles momentos sombrios e

vergonhosos da história do homem, histórias que não desejaríamos ver escritas com base

nessa realidade; a História que atenua-se com a pintura, cantigas, estórias, literatura, enfim,

com a arte: encanto torto da realização humana, seja na ficção (a personagem) ou na vida real

(o leitor), direciona-os a provocar mudanças nos vários aspectos da existência.

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2. “„UMA ESTÓRIA DE AMOR‟ COMO PHÁRMAKON:

A PROSA ROSIANA À LUZ DA FILOSOFIA PLATÔNICA

A arte é um deixar acontecer a verdade do ente,

enquanto tal e, por isso, é essencialmente poesia

[Dichtung]. O acontecer da verdade é Poema.

Assim, chegamos à ideia de origem, uma vez que

essa recuperação foi feita a partir da arte grega, do

pensamento emergente dos pré-socráticos que era

poético.63

Ao escrevermos esse trabalho, despertou-se uma questão que não só consagra o legado

de Guimarães Rosa como uma miscelânea de suma importância para se compreender a

Literatura, a sociedade e as relações humanas ao longo da História, mas o coloca como fonte

de inspiração e recorrência a críticos, leitores comuns e pesquisadores do mundo inteiro: a

riqueza de sua prosa, de sua poesia e de suas possíveis fontes; e no caso de Guimarães Rosa,

uma das fontes alimenta o imaginário e a inspiração desde muitos séculos: a poesia de Platão.

O ―amor platônico‖, os pensamentos filosóficos, os estudos pisicoanalíticos que

atravessaram séculos — é certo que alguns são questionáveis, se levados em consideração

com a realidade do dia a dia, um exemplo é o próprio ―mito do andrógino‖ —, mas

permanecem no imaginário da história da humanidade como fonte de profundo caráter

recorrente para explicar as mais diversas dúvidas sobre a convivência humana e seus tantos

desdobramentos.

O poema da epígrafe no início dessa introdução, nada mais é do que a realidade provada

pelo leitor. Segundo Benedito Nunes, não há poesia [Dichtung] que não esteja amparada pela

verdade, e quando se fala em poesia, diz-se do produzir Literatura, portanto, pode-se inferir

que cada história, cada explicação dada por Platão às ações humanas, não passou de um

simulacro da verdade; imitações da vida real, que, no discurso do poeta, ganharam tons

lúdicos com a aproximação, por exemplo, da mitologia grega, algo bem semelhante ao que fez

nossa fictícia contadora de histórias em ―Uma estória de amor‖, Joana Xaviel, e a o que fazem

os milhares de contadores de histórias pelo mundo inteiro: reinventam; recontam —

considerando, de maneira fiel ou não a versão original — reordenam as histórias que

aprendemos a ouvir e acreditar, mesmo julgando-as extraordinárias — quantas crianças, um

dia, não acreditaram na existência do Peter Pan (Peter and Wendy, 1911) de James Matthew

Barrie (1860-1937), ou na boneca Emília (Reinações de Narizinho, 1931) de Monteiro Lobato

(1882-1948)? — e, mesmo sem acreditar, o homem repassa o conto adiante, sem jamais

deixar de aumentar-lhe um ponto, pois uma boa história só é realmente boa, quando, além de

63

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 118.

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bem contada, ou cantada, traz em sua narração uma boa dose de novidade, de algo que

acrescente e faça daqueles tantos minutos gastos ouvindo-a ou lendo-a, um tempo que valerá a

pena compartilhar.

2.1.Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno

1956 marca uma data singular no legado de Guimarães Rosa (1908-1967): a editora

José Olympio lança as obras Grande sertão: veredas e Corpo de baile: esquadrinhamentos do

sertão nordestino e da existência humana em sua realidade mais intrinseca. A proposta

editoral do primeiro volume da obra Corpo de baile consistiu na divisão do ―corpo‖ em sete

novelas (―Campo geral‖, ―Uma estória de amor‖, ―A estória de Lélio e Lina‖, ―O recado do

morro‖, ―Dão-Lalalão‖, ―Cara-de-bronze‖ e ―Buriti‖), que, redefinidas em três volumes no

ano de 1964 (Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão),

dialogaram e dialogam sobre os sentimentos e os desejos de homens, mulheres e crianças:

transeuntes de um ―mundo vasto‖, paráfrase do celebre ―Poema de sete faces‖ (Alguma

poesia, 1930), de Carlos Drummond de Andrade, amigo e admirador de Guimarães Rosa.

O ―sertão‖ de Rosa é redesenhado pela crítica sobre diversos prismas (correntes

filosóficas, erotização, desigualdades sociais, etc.), porém, um merece especial atenção, ―O

tema do amor, ocupa na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa, uma posição

privilegiada.‖64

É com base na citação do recém-falecido estudioso Benedito Nunes (1929-

2011), um dos mais perspicazes pesquisadores da obra de Guimarães Rosa, que trilhamos a

análise do segundo momento desta Dissertação.

Tenteando de vereda em vereda, de serra em serra, eros, em sua perene

atividade, impulsiva e sôfrega, mal se detém numa forma, logo abre as asas e

prepara-se para voar na direção de outra. Não elimina porém os objetos em

que pousa, não suprime as escalas de sua trajetória.65

O amor, esse sentimento que toma de assalto algumas das personagens rosianas vem por

vezes acompanhado de pares inseparáveis (ódio; frustração, inveja, cobiça, etc.), isso é o que

torna o ser fictício produzido por Guimarães Rosa tão complexo. Nas narrativas ―Uma estória

de amor‖ e em ―A estória de Lélio e Lina‖, além da ―estória‖ dos títulos de ambas — algo que

permeia a tessitura desse trabalho do início ao fim — há uma coincidência, que permite a

64

NUNES, Benedito. ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,

1976, p. 143. 65

NUNES, Benedito. ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,

1976, p. 147.

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abordagem do tema debatido por nosso já tão saudoso crítico Benedito Nunes em seu livro O

dorso do tigre (1976): a busca do amor na configuração de uma outra ―metade‖ perfeita, que

não se desiste de continuar procurando enquanto está ausente.

Em ―Uma estória de amor‖ não há a evidência explícita de algum desejo ou paixão entre

Manuelzão e sua nora Leonísia, o que ocorre são conjecturas de Manuelzão a respeito do que

poderia ter sido melhor para Leonísia, que em sua concepção ―[...] era bôa, uma sinhá de

exata, só senhora.‖66

Presume-se, pelo zelo do vaqueiro pela nora, que possa residir na figura

de Leonísia a imagem perfeita de uma esposa, ―[E]la ficara sendo a dona-da-casa‖67

Manuelzão, evidentemente, como o dono instituído da Samarra (a fazenda pela qual zela) era

o senhor da casa. Porém, a cobrança pela realização ordenada de todos os acontecimentos na

fazenda, desde a conduta de um agregado até a sua própria conduta, o impede de perder o

controle sobre suas ações, de se descomprometer com o trabalho.

Hans Georg Gadamer (1900-2002), em A atitude do belo (1985), diz que: ―Trabalhar é

se juntar com as coisas, se separar das pessoas.‖68

Assim, a possibilidade de um envolvimento

com Leonísia, ou mesmo o mero desfrute de um momento marcado pela falta de controle, não

se configura como artifício suficiente para convencê-lo a abrir mão do trabalho por nenhum

instante, tal qual no excerto de Gadamer, Manuelzão opta por se ―separar‖ das relações

humanas para se dedicar quase que exclusivamente ao trabalho.

[...] o trabalho separa-nos e divide-nos. Orientados por e para nossas

atividades, isolamo-nos, apesar de toda a reunião que a caçada em grupo ou

a produção por divisão de trabalho sempre fizeram necessária.69

Em A atitude do belo, Gadamer nos fala, dentre outras questões, sobre a relação entre a

festa e o trabalho, considerando a importância simbológica entre esses dois momentos na vida

de qualquer ser humano, bem como as circunstâncias que levam a atribuir maior valor a um

ou a outro.

A passagem, que narra o ferimento no pé de Manuelzão, parece colocar em maior

evidência esse privilégio para o trabalho em detrimento até mesmo de sua própria saúde: ―Por

tudo, mesmo sem precisão, êle não saía de cima do cavalo — estava com um machucão num

pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vêzes, dez vêzes [...] Não esbarrava. Não sabia de

66

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956, v. 1, p. 148. 67

Idem, ibidem, v. 1, p. 148. 68

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956, v. 1, p. 178. 69

GADAMER, Hans Georg. A atitude do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro. 1985, p. 62.

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43

esforço por metade.‖70

Pode-se dizer que reside no trabalho de Manuelzão uma das maiores

histórias de amor da obra.

Já em ―A estória de Lélio e Lina‖, ao contrário, o que se observa é a euforia de um amor

que não vê obstáculo a sua realização, em que nem se quer a diferença de idade parece ser

considerada um entrave ao cumprimento da história entre Lélio e Lina, pois a admiração entre

o jovem vaqueiro e a idosa se realiza desde o primeiro momento como a avassaladora ação da

descoberta.

E, vai, a sôlto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali

perto, de costas para êle, uma môça se curvava, por pegar alguma coisa no

chão. Uma mocinha. E ela também escutara seus passos, porque se

reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o pano verde na

cabeça.71

Como uma Vênus de Milo: fonte de acordado interesse por ser vista; imagem capaz de

deslocar para si os olhares mais fugidios, Lina desperta Lélio para notá-la; ela o seduz, sem

fazer uso de qualquer artifício, — talvez, sem se quer desejar isso — a ―moça‖ o faz por um

encantamento natural, algo que se pode atribuir aos detalhes ressaltados na descrição de sua

figura feminina, ou mesmo na descrição dos adereços adicionados ao seu vestuário — o lenço

verde sobre a cabeça, o vestido claro, o seu curvar-se para apanhar algo no chão, etc. — Lélio

vê na velhinha o que não não vira em nenhuma outra moça com a qual tivesse tido alguma

relação, Lina transfigura-se quase à imagem de uma deusa da mitologia grega. É tal qual a

descoberta de um amor adolescente, que o narrador opta descrever o primeiro momento entre

Lélio e Lina, isso também está presente na mítica descrição do andrógino, no célebre diálogo

O Banquete, de Platão (427-347 a.C.):

Antigamente, nossa natureza não era como a de agora, mas muito diferente.

Para começar, havia três sexos, e não dois apenas, como hoje: masculino e

feminino. Além desses, havia um terceiro, formado dos outros dois; o nome

ainda subsiste, porém o sexo desapareceu. Em verdade, era o sexo

andrógino, com a forma e o nome dos outros dois sexos, masculino e

feminino.72

Nosso foco não se atém à androginia em seu sentido místico, mas à própria ideia da

busca de uma concepção repleta de signos familiares ou agradáveis, onde se encontra a outra

pretensa parte perfeita, isso está descrito na concepção mitológica do andrógino. O mito do

70

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 142. 71

Idem, ibidem, p. 305. 72

PLATÃO. O Banquete — Apologia de Sócrates. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001, p. 45

(189, d-e).

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andrógino faz pensar na condição a que o homem está submetido: ser incompleto, carente de

uma ―metade‖ que o aperfeiçoe a metade que ele procurou a vida inteira (caso de Manuelzão)

ou a metade que ele ainda procura (caso de Lélio). Assim, a busca por um amor, seja esse de

natureza carnal, puramente fraternal ou que tome um objeto ou um objetivo como ideal de

vida, se configurará como uma travessia73

, aparentemente, infinita, tal qual ocorre,

inicialmente, com Lélio,

Na menina pálida e distante do Paracatu com quem sonhava o vaqueiro Lélio

[...] repete-se o mesmo símbolo do amor que, sem o saber, busca a sua forma

completa, a sua realização integral, através de amores passageiros.74

De acordo com o excerto retirado de ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖, de Benedito

Nunes, Lélio prefere continuar buscando o que lhe complete, para isso, não se atém à amarra

própria de um homem, ainda que (como em seu caso) um homem jovem: o trabalho.

Manuelzão inverte a travessia escolhida por Lélio, fixa-se a um chão, a um emprego, e faz

dessa lógica a sua maneira de se completar. As travessias empreendidas pelo jovem vaqueiro

e pelo velho capataz aqui dizem respeito, especificamente a Eros, mas afinal não é esse

sentimento avassalador que desencadeia, de certa forma, todos os outros sentimentos

humanos, até mesmo o ódio?

A travessia muito bem ilustrada por Guimarães Rosa na personificação de Riobaldo em

Grande sertão: veredas tem, afinal, uma origem, impossível de dissociar de toda a trajetória

empreendida pela personagem título da obra-prima do autor mineiro: o amor. Esse

sentimento, tema de inúmeras prosas e poesias, desencadeia no universo criado por

Guimarães Rosa todos os sentimentos possíveis para um ser humano, a ponto de permitir-se

dizer que as várias histórias escritas por ele têm início em um amor, desenvolve-se pelas mais

variadas formas de amar e são levadas a fazer o leitor compreender um pouco sobre tal

sentimento; o amor, esse modificador de travessias.

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vêzes em minha vida acontece. Eu

atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era

entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a

gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num

ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou.

Viver nem não é muito perigoso?75

Amar é muito perigoso, mas maior perigo parece haver na solidão. Manuelzão e mesmo

73

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956, p. 37. 74

NUNES, Benedito. ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖. In: Revista do Livro. Rio de Janeiro, v. 7, n. 26,

1976, p. 147. 75

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956, p. 37.

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45

Lélio — se for para amar — desejam, para além de uma paixão passageira, uma mulher que

lhes complete de fato; que empreenda em ambos a graça da vida cantada e contada nas tantas

histórias, capaz de atender o homem plenamente. Como bem narra Riobaldo na citação

anterior, não se pode prever o que se espera no outro lado do rio — e, afinal, não há ainda a

possibilidade de se encontrar outro lugar, uma ―terceira margem‖ que sequer se cogitava no

início? — e esse ―rio‖ terá o fundo fora do alcance dos pés ou será mais raso do que se

imagina?

Trata-se da travessia, dessa (mesmo que se opte esperar) condição imprevisível a que se

submete o homem. Prostrar-se em um emprego que o gratifique com o mínimo de segurança,

não garantirá, no final, a satisfação das escolhas feitas no início de uma travessia. Lélio e

Manuelzão são como o início e o fim possíveis; ensinamentos para um leitor atento sobre a

própria existência, assim é que a ficção de Guimarães Rosa poderá funcionar para o leitor

como um ―mapa‖ de como vencer a travessia — ou saber que nem sempre é possível vencer

—, desviando-se o quanto possível for do muito de perigo que existe em simplesmente viver.

Desse modo, tanto o encontro de Lélio e Lina quanto à opção de Manuelzão pelo

trabalho esbarram em uma questão que os provoca a permanecerem ou se desviarem de seus

respectivos lugares-comuns: a velhice. Em ―A estória de Lélio e Lina‖, Lina já não é mais

uma ―mocinha‖, como as tantas com as quais Lélio tivera alguma relação (a Jiní, por

exemplo), porém, a primeira impressão que Lélio tem ao vê-la é de que se trata de uma moça

mais nova, ―[...] Mas: era uma velhinha! Uma velha... Uma senhora.‖76

A constatação traduz-

se quase em uma decepção; quase, pois a forma como ambos, Lélio e Lina, abordam um ao

outro parece anular a diferença da idade que Lina aparenta, transpondo qualquer preconceito

relativo à idade e igualando por um tênue instante, o momento em que ambos estão juntos,

fazendo do jovem e da velhinha o uno, como o mito do andrógino.

Velhinha, os cabelos alvos. Mas, mesmo reparando, era uma velhice

contravinda em gentil e singular — com um calor de dentro, a voz que

pegava, o acêso rideiro dos olhos, o apanho do corpo, a vontade medida de

movimentos — que a gente a queria imaginar quando môça, seu vivido.

Velhinha como-uma-flôr. O rastro de alguma beleza que ainda se podia

vislumbrar. Como de entre as fôlhas de um livro-de-reza um amor-perfeito

cai, e precisa de se pôr outra vez no mesmo lugar, sim sem perfume, sem

veludo, desbotado, uma passa de flôr.77

O ―acêso‖ a que faz renovar uma boa história contada; uma narrativa que ganha

76

ROSA, João Guimarães. ―A estória de Lélio e Lina‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J.

Olympio, 1956. v. 1, p. 306. 77

Idem, ibidem, v. 1, p. 308.

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―fôlego‖ a cada novo contador. O riso descrito nos olhos de Lina, que faz pensar como ela era

quando mais moça é como a capacidade própria de Joana Xaviel, enquanto contadora de

histórias, ao tomar para si a vida daquelas tantas personagens narradas em seus contos. O

leitor de ―Uma estória de amor‖ e de ―A estória de Lélio e Lina‖ é apresentado a essas

histórias que imitam o real, como se de fato um ―amor-perfeito‖ caísse em suas mãos para

fazer uso de acordo com sua sensibilidade.

A história de Lina, como a vida de Manuelzão, é contada da perspectiva da velhice; de

uma visão repleta de experiências que na juventude de Lélio, por exemplo, estão apenas por

se formar. A história de Manuelzão, como boa parte da vida de Lina, ganha outros

―perfumes‖, ―veludos‖, ―cores‖ e ―flores‖ — remetendo à citação retirada de ―A estória de

Lélio e Lina‖ — a partir da audição das histórias e das cantigas; é como se o próprio

Manuelzão se tornasse outro, tal qual o leitor após a experiência da leitura.

O clássico O banquete, mais especificamente o discurso de Aristóteles sobre o ―terceiro

sexo‖, o andrógino, longe de apenas servir a qualquer análise banal sobre a capacidade

criativa dos consagrados pensadores a respeito da natural paridade entre homens e mulheres,

nos permite refletir sobre a incompletude humana; o homem, enquanto ser pensante, que não

está para a natureza como um animal irracional, que apenas se guia por um instinto; o homem

age, escolhe, toma decisões, na maioria das vezes, movido por sentimentos como o ódio, a

inveja, a compaixão ou o amor.

Em ―A estória de Lélio e Lina‖, não fosse à evidência dos sinais impostos pelo avanço

do tempo no corpo humano, Lélio veria em Lina apenas o que o falho sentido da visão, na

pessoa de Lélio, gostaria de poder enxergar. A forma como o autor Guimarães Rosa opta

desenvolver a história do ―vaqueirinho‖ e da ―velhinha‖ e delimitar um traço marcante na

Literatura, e a ideia, que na recepção dos leitores, pode ser comparada ao discurso de

Aristóteles, se renova em sua simples abordagem.

Se Lélio e Lina sabem o que seus olhares iniciais buscaram um no outro, o

desenvolvimento da história não se torna a repetição clichê de mais uma história de amor,

pelo contrário, há em ―A estória de Lélio e Lina‖ uma pausa nas expectativas, pausa que abre

espaço para todo o tipo de reflexão, desde a condição ―errante‖ de Lélio, procurando

paradeiro, de fazenda em fazenda, à solidão de Lina, que se comparada, por exemplo, à

solidão de Manuelzão em ―Uma estória de amor‖ parece pesar com menor intensidade nos

ombros da velha senhora do Pinhém. Essa discussão, lançada nos idos de 1956, mesmo não

compreendida desta forma, nos faz pensar novamente nesse valor atemporal da obra criada

por Guimarães Rosa e sobre o quanto o autor mineiro contribuiu para que a Literatura

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Brasileira se sagrasse, finalmente, como uma literatura moderna, no sentido que Hans Robert

Jauss afirma, em ―Tradição literária e consciência atual da modernidade‖:

O sentido de modernus não se reduz ao significado atemporal do topos

literário, mas se desenvolve através das mudanças históricas da consciência

da modernidade, e reconhecemos a sua potência histórica criativa, quando

surge a oposição determinante — a ―despedida‖ de um passado pela

autoconsciência histórica de um novo presente.

O uso comum da palavra bastaria para demonstrar que a melhor maneira de

se captar o sentido de moderno é a partir de seus contrários.78

A obra de Guimarães Rosa se sagra à frente do seu próprio tempo por possuir o que

Jauss chama na citação anterior de autoconsciência histórica de um novo presente, o que,

aliás, se perpetuará no presente de qualquer tempo, por permitir, aos leitores de qualquer

época, uma identificação com o que se lê em ―Uma estória de amor‖, por exemplo. O mais

interessante, ao se antepor clássico e moderno (O Banquete com ―Uma estória de amor‖ e ―A

estória de Lélio e Lina‖, respectivamente) é que, ao servir de fonte de estudos para a ação que

se desenvolve no sertão criado por Rosa, Platão se reinsere com o destaque merecido, pois sua

obra, para além de ser considerada simplesmente representante dos antiqui, reveste o

modernus com os conceitos adequados ao seu estudo, os quais atribuirão ao contemporâneo o

sentido clássico de obra de arte.

De fato, o que se opõe a um traje no auge da moda não é esse mesmo traje

fora da moda, mas um traje apresentado pelo vendedor como ―atemporal‖ ou

―clássico‖. Do ponto de vista estético, ―moderno‖, para nós, já não se

distancia do velho ou do passado, e sim do clássico, do belo eterno, de um

valor que desafia o tempo.79

O ―moderno‖ em Guimarães Rosa não está distante do clássico de Platão por apresentar

uma ―nova forma de fazer Literatura‖, muito pelo contrário, é esse ―traje atemporal‖,

apresentado ao público leitor pelo escritor, dos mais variados momentos da Literatura, que, de

fato, atribuirá a uma obra os méritos que a consagrarão em um horizonte de expectativas que

supera qualquer tempo, desde o lançamento de determinada obra. Desse modo, pode-se dizer

que o clássico é moderno, e o contrário também é válido, pois ambos redesenham, recriam

momentos passados sobre o próprio cenário literário, mas também respondem, abrem

possíveis leques interpretativos que, no caso do clássico, o recolocam no cenário da

Literatura, e no caso do moderno, podem classificá-lo como vanguardista, seja qual tema

78

JAUSS, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger

(org.). Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 50. 79

Idem, ibidem, p. 50.

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venha à tona pelas mãos do autor, mesmo o assunto mais recorrente desde os primórdios da

Literatura mundial: o amor.

Esse amor, seja à época do discurso de Platão, seja nas veredas criadas por Guimarães

Rosa, para falar sobre o sublime sentimento, ganha nuances tão variadas, que o mais difícil

mesmo é imaginá-lo simples, de fácil resolução. Exatamente por isso, se nos voltarmos para o

―amor‖ de Manuelzão pelo trabalho, considerando a busca pela metade perfeita, empreendida

por Lélio, nos veremos, novamente, diante de uma intersecção: a livre escolha e a ideia de um

destino pré-concebido. Lélio, de fato, busca um amor? É tão pesada a solidão sobre os ombros

de Manuelzão, que não poderia haver em sua longeva ―solteirice‖ o marcante traço de um

homem que soube impor suas vontades, mesmo diante do embate certo com a sociedade por

uma opção tão pouco comum ao seu ambiente?

Se o trabalho, de alguma forma, tirou de Manuelzão o tempo necessário para ir à busca

de uma companheira ideal, o desprendimento de Lélio com os vários empregos pelos quais

passou não o premiaram com a sonhada ―outra metade‖ de que nos fala Aristófanes em O

Banquete. Então, o destino previamente traçado, constante na narrativa de Aristófanes acerca

do andrógino, para explicar a busca do homem por sua metade perfeita é preenchido por outro

significado, pois nem todos chegam ao seu ―par perfeito‖, o qual, por sua vez, se repete no

contrário de seu significado, chegando a aproximar-se mais do avesso de perfeição.

Na realidade, pode-se concluir a princípio que o ―ser‖ em ―Uma estória de amor‖ e em

―A estória de Lélio e Lina‖ parece vincular-se ao tempo de suas personagens principais, que

têm seus destinos marcados pela travessia em diversas veredas, porém, indissociáveis de um

implacável senhor: Chronos80

, o tempo: ―Criador e destruidor, que apazigua conflitos e

desencadeia mudanças‖81

.

O mesmo tempo que determina a solidão de Manuelzão, Chronos também determinará

o desencontro de Lélio e Lina, pois mesmo que os caminhos de ambos tenha se cruzado nesse

presente fictício, na realização da busca do ―vaqueirinho‖, o tempo será tão implacável quanto

fora para o capataz da Samarra: ―‗Você devia de ter me conhecido era há uns quarenta anos,

dansar quadrilha comigo...‘‖82

A sábia velhinha do Pinhém não vê no nascente sentimento por

Lélio a realização do amor, pois seu conhecimento acerca da natureza humana — do homem

— a leva, inevitavelmente, a descartar o encanto inicial pelo jovem vaqueiro.

80

NUNES, Benedito. Grande sertão: veredas: uma abordagem filosófica. Bulletin des études portugaises et

brésiliennes. Paris, ADPF, n. 44-45, p. 390, 1985. 81

Idem, ibidem, p. 390. 82

ROSA, João Guimarães. ―A estória de Lélio e Lina‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J.

Olympio, 1956. v. 1, p. 310.

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Em ―Uma estória de amor‖, a admiração que Manuelzão sente pela nora Leonísia, não

ultrapassará a barreira dos preceitos mais próprios do velho vaqueiro, pois, mesmo com a

hipótese de Leonísia perceber algum interesse do sogro e desse interesse realizar-se de acordo

com a sua vontade, o respeito que Manuelzão ganhara diante de todo o povo presente à festa

na Samarra pesa mais do que quaisquer sensações que possam existir entre um homem e uma

mulher. Do aprendizado de tudo que Manuelzão ouve durante a festa, fica a moral do que ele

acredita ser melhor para si; essa percepção, mesmo que remeta a alguma falta de atitude da

personagem principal de ―Uma estória de amor‖, é na realidade a atitude mais genuína, de

alguém que fora capaz de tomar as decisões de seu próprio comportamento, ponderando todo

o ouvido, todo o sentido, todo o enxergado, para em seguida agir, conforme sua real vontade.

Manuelzão pode ser comparado ao leitor e o contrário também é válido. Pode-se dizer

que, diferentemente do que ocorre em ―A estória de Lélio e Lina‖, em ―Uma estória de amor‖

a metade perfeita do velho capataz pode ser tido como aquele que o lê; este será capaz de

compreendê-lo, mesmo que discorde de sua atitude. Na bem descrita ―ficcional demonstração

do livre-arbítrio‖ [grifos meus] residirá o ponto de concordância entre o leitor e a personagem

ou entre o ouvinte e o contador de histórias. A aproximação que se faz aqui entre ―Uma

estória de amor‖, e O banquete, contrapondo ainda ―A estória de Lélio e Lina‖, se trata de

mais uma história, ou tentativa de história, que visa a ilustrar para o leitor, o ouvinte, etc.,

outra possível estória de amor, pois, mesmo se tratando de um texto crítico, que tem o intuito

primaz de analisar a novela ―Uma estória de amor‖, não há como não causar algum efeito ao

leitor sobre aquilo que se descreve nessa análise.

Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em

si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode

consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num

provérbio ou numa norma de vida — de qualquer maneira o narrador é um

homem que sabe dar conselhos. Mas, se ‗dar conselhos‘ parece hoje algo de

antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis [...]

O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome:

sabedoria.83

Não se trata, de considerar como o motivo principal do livro ―dar conselhos‖ sobre o

que quer que seja, mas o conhecimento que se adiquiri com a leitura de uma obra consagrada

de Platão ou de Guimarães Rosa, ou mesmo as críticas tecidas sobre estes e tantos outros

escritores, esclarecem; atribuem novos pontos de vista; reordenam o horizonte de expectativas

do leitor, tornando-o dotado de outra possível pespectiva após a experiência com a obra de

83

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 200.

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arte, a isto podemos nomear como sendo a ―sabedoria‖ de que fala Walter Benjamin,

sabedoria e experiência que propiciarão ao leitor rever até mesmo um posicionamento

arraigado, para considerar pontos de vista até então fora de cogitação.

A obra de arte, suporte dessa sabedoria latente, como nos descreve Walter Benjamin em

Magia e técnica, arte e poética, realiza-se de maneira ampla a partir desse possível leitor,

fornecendo, assim, o ―material‖ que servirá, por exemplo, aos leitores críticos ―aumentar os

pontos aos tantos contos‖ com as análises que se terão formado dessas tantas leituras tecidas a

partir de determinada obra de arte.

Assim, essa análise da irrealização do amor de Manuelzão pela nora Leonísia,

contraposto com o clássico discurso de Platão em O banquete, permiti-nos, para além da mera

comparação entre as obras, evidenciar o ―poder‖ de intervenção do leitor — no plano da

suposição, é claro — sobre o texto de Guimarães Rosa, isto significa dizer que, literalmente,

há o ―aumento de um ponto ao conto‖ de Rosa pela percepção do leitor, consequentemente,

estatui-se a quebra nas expectativas do leitor com a inserção da novela ―A estória de Lélio e

Lina‖, por esta confirmar aquilo que vai de encontro ao discurso de Aristóteles em O

banquete: não há um par perfeito. A metade perfeita não existirá, pelo menos não como o

idealizado pelo mito do andrógino, a segunda parte exata para cada ser sobre a face do

―Sertão‖.

Manuelzão e Lina desdizem Aristóteles em seu discurso; cabe ao leitor, naquilo que

Hans Robert Jauss em A História da Literatura como provocação à teoria literária chamou

de horizonte de expectativas, formular possíveis desfechos — metades perfeitas ou não —

que preencham a ―lacuna‖ deixada aberta nas respectivas novelas.

A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma

da obra literária no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela

demanda também que se insira a obra isolada em sua ―série literária‖, a fim

de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da

experiência da literatura. No passo que conduz de uma história da recepção

das obras à história da literatura, como acontecimento, esta última revela-se

um processo no qual a recepção passiva de leitor e crítico transforma-se na

recepção ativa e na nova produção do autor — ou, visto de outra perspectiva,

um processo no qual a nova obra pode resolver problemas formais e morais

legados pela anterior, podendo ainda propor novos problemas.84

Da análise do leitor, adicionados os ―pontos‖ a partir da ―recepção ativa‖ de que nos

fala Jauss na citação anterior, formar-se-ão, os possíveis estudos que consagrarão a obra de

Guimarães Rosa como parte de um legado que contribuirá para a ―experiência da literatura‖,

84

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 41.

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dotando-a de tal relevância, a ponto de confirmar o legado de Guimarães Rosa como de cunho

vanguardista, para o que isto bastará a notabilizá-lo como um ícone da Literatura mundial,

clássico como Platão.

O ―mundo vasto‖ composto por Rosa em ―Uma estória de amor‖, em ―A estória de

Lélio e Lina‖ e nas tantas outras novelas criadas pelo autor mineiro ―bebe‖ na fonte clássica

de Platão. Lá, certamente, bebem os maiores escritores da era moderna e, por consequência,

serve de inspiração à produção de suas obras também, pois não há como não retornar aos

estudos desenvolvidos nessas magnificas interpretações acerca do ser humano, empreendidas,

dentre tantos outros filósofos, por Platão, por exemplo, em O banquete, que soube realizar um

pensamento, mesmo que baseado em figuras mitológicas, capaz de transpor barreiras para

constituir-se em coletâneas de textos tão diversos.

Em ―Uma estória de amor‖, assim como em ―A estória de Lélio e Lina‖, a sabedoria

transpõe todas as possíveis barreiras à demonstração de capacidade tanto de Manuelzão

quanto de Lina, em ver esperança mesmo no derradeiro momento do ciclo natural da vida.

Assim, no caso de ―Uma estória de amor‖, a audição das histórias contadas por Joana Xaviel,

pelo velho Camilo e pelos tantos forasteiros que chegam à Samarra, desencadeia em

Manuelzão um sentimento tal de esperança quanto ao futuro, que no fim da novela, podemos

dizer que o velho vaqueiro já não é o mesmo do início da história: pessimista, melancólico e

temeroso, — lembremos que Manuelzão inicia a narrativa, temendo o seu futuro em

consequência da falta de posses que o guarneçam da realidade de terminar seus dias como o

velho Camilo, por exemplo —, mas sim, Manuelzão parece tornar-se um forte, ―renascido‖

dos contos e cantos que ouviu durante a festa.

Esses contos, que desfilam ao longo de toda a novela ―Uma estória de amor‖, premiam

Manuelzão com a satisfação desvinculada de qualquer bem material; as histórias contadas

durante a festa na Samarra fazem de Manuelzão, em seu inconsciente, dono de algum lugar

não necessariamente físico, mas que o torna único. O que é narrado pelos contadores supre o

velho vaqueiro da ausência da metade perfeita descrita no mito do andrógino, e atribui a

Manuelzão a percepção notada desde o início de ―A estória de Lélio e Lina‖ na velhinha do

Paracatú, por exemplo.

Já fui mesmo rosa. Não pude ser mais tempo. Ninguém pode... Estou na

desflor. Mas estas mãos já foram muito beijadas. De seda... Depois, fui

vendo que o tempo mudava, não estive querendo ser como a coruja — de

tardinha, não se vôa...

Não continuou naquele desgabo. Mas segurou a mão de Lélio, e disse,

curtamente, num modo tão verdadeiro, tão sério, que êle precisou de rir

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forte, de propósito: — ―Agora é que você vem vindo, e eu já vou-m‘bora. A

gente contraverte. Direito e avêsso... Ou fui eu que nasci de mais cedo, ou

você nasceu tarde demais. Deus pune só por meio de pesadêlo. Quem sabe

foi mesmo por um castigo?...‖85

Como em um castigo dos deuses, tal qual o imposto ao andrógino em sua origem, a

separação, o desencontro, o ―contravertido‖ se realizam entre Lélio e Lina de maneira

clássica, para Lélio, em uma parte de sua existência que ainda lhe possibilita querer buscar o

melhor para si, no caso de Lina, como a própria descreve, no momento em que ela está indo

―embora‖; então, não vemos aqui apenas a história de um desencontro, mas a própria

imponderabilidade da perfeição. Isso não desdiz o clássico de Platão, pelo contrário, reafirma-

o, pois a tendência para Lélio e Lina é continuarem a se afastar. Conforme o tempo avança,

ambos continuarão em sentidos contrários, ele indo no ―direito‖, ela no ―avêsso‖, pois nada

mudará o fato atestado por Lina: ambos nasceram desacertadamente; suas personalidades se

completam apenas em seus diálogos, mas a realidade continuará impondo-lhes o fato de que

nessa ―festa‖ Lélio apenas está chegando, enquanto Lina já está partindo.

O mesmo não ocorre na ―Festa de Manuelzão‖, pois para o velho vaqueiro não há um

par evidente — mesmo Leonísia, ou Joana Xaviel, que são tidas como as possíveis mulheres

desejadas por Manuelzão, o que ocorre muito mais por causa das inúmeras interpretações

feitas sobre ―Uma estória de amor‖ ao longo dos anos, mesmo estas duas não estão dispostas

a algum cortejo da parte de Manuelzão. — Assim, seja que ―par‖ possa ser atribuído ao idoso

capataz da Samarra, a verdade incontestável sobre a sua história de amor é que ele não

encontra seu par; o velho vaqueiro termina — supostamente — seus dias só.

O que pode ser considerado como um diferencial na maneira como Manuelzão deverá

encarar tal solidão é a audição das histórias narradas durante a festa, estas deverão, de alguma

maneira, confortar a sina reservada ao capataz da Samarra. Isso também será o diferencial de

―Uma estória de amor‖ para o público leitor, acostumado a lidar com ―pares‖ que ainda que

estejam separados a história inteira, no fim unem-se. Em ―Uma estória de amor‖ isso não

ocorre. Lélio, mesmo que tolhido por um conceito preconcebido sobre o relacionamento entre

um homem jovem e uma mulher madura, tem a seu ―favor‖ a juventude, que deixa aberta

margens futuras para um destino bem diferente do de Lina ou mesmo de Manuelzão. Já sobre

este não se pode falar o mesmo com tamanha certeza; Manuelzão, como Lina, está no

―desflor‖,

85

ROSA, João Guimarães. ―A estória de Lélio e Lina‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J.

Olympio, 1956. v. 1, p. 310-311.

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Dera de ser também nessa época que um argueiro, um broto de escrúpulos,

se semeara no juízo de Manuelzão? Quem sabe não fôsse. Se êle mesmo às

vêzes pensava de procurar assim, era mais pela precisão de achar um

comêço, de separar alguma data a montante do tempo. De todo não queria

parar, não quereria suspeitar em sua natureza própria um anúncio de

desando, o desmancho, no ferro do corpo. Resistiu. Temia tudo da morte.

Pensou que estivesse com mau-ôlho. Pensou no riachinho secado:

acontecimento assim tão costumeiro.86

Uma possível busca de Manuelzão por um par se eterniza na memória do leitor. A este,

Guimarães Rosa premia com a responsabilidade de pensar, afinal, o que poderia ter sido do

futuro do velho vaqueiro. No mito do andrógino vê-se um ser perfeito, separado e subjugado à

sina de vagar sobre a face da Terra a procura daquela metade perdida; na descrição de Platão,

esse ser que transita sem direção a procura daquela metade da qual fora separado um dia é o

próprio homem. Como Manuelzão e mesmo Lélio, o andrógino descrito no diálogo de

Aristófanes em O Banquete, é a exposição clássica do homem moderno, o mesmo homem

proposto nas narrativas, cantigas e contos, que se perpetuam no imaginário popular e reforçam

a importância da experiência oral como fonte de conhecimento não resumido a mera

curiosidade, mas imbuído de um incontestável poder de transformação ou formador de

conceitos e opiniões que contribuem para a reafirmação da Literatura como fonte inesgotável

de sabedoria.

2.2. Phármakon: a cura e o veneno em “Uma estória de amor”

Em A farmácia de Platão (1991), Jacques Derrida (1930-2004) aborda o ato de escrever

como se fosse regido por um phármakon, — do grego φάρμακον, tem o significado de veneno

ou remédio, podendo ser associado indistintamente a esses dois signos — o discurso, de

acordo com Derrida, pode exercer esse papel de alavanca das reminiscências, dispensando

dessa forma a antiga necessidade da memorização dos poemas, dos contos e de todo tipo de

arte que implique a formulação de pensamento humano.

Esse phármakon, essa ―medicina‖, esse filtro, ao mesmo tempo remédio e

veneno, já se introduz no corpo do discurso com toda sua ambivalência.

Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa potência de feitiço podem ser

— alternada ou simultaneamente — benéficas e maléficas.87

Trazendo isso para o texto escrito, rememorar pelo simples ato da leitura abre a

possibilidade de não haver a necessidade do monopólio do conhecimento, como ocorria nos

86

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 149. 87

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 14.

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primórdios da civilização, exatamente pela ausência de material que permitisse os registros

das idéias. E no caso do relato oral? Os acréscimos feitos pelos narradores ao longo da

história, algo que não deixou de existir mesmo com o advento de tantas tecnologias,

implicam, enfim, um pequeno retorno à ―capacidade curativa‖ do discurso? Pois, no caso do

texto escrito, este deixa de estar disposto ao leitor como mero artefato para de novo tornar-se

o seu phármakon, com seu caráter dúbio, oscilando entre a cura e o veneno.

As ―estórias‖ contadas durante a ―Festa de Manuelzão‖ exercem essa função de

phármakon às personagens que as ouvem, e como bem se descreve na citação de Jacques

Derrida em A farmácia de Platão (1991), essa ―medicina‖, no caso das ―estórias‖ em ―Uma

estória de amor‖ em formato de oralidade traz em seu conteúdo o remédio e o veneno, agindo

como o ―curare‖88

indígena contido na ponta da lança. A voz de quem conta uma história

funciona como a flecha, que bem utilizada atingirá seu alvo com eficiência: o ouvinte. A

―estória‖ toma conta do inconsciente daquele que a frui, realiza-se dualmente, ora

despertando-o para as benesses, ora para os malefícios da frágil existência humana.

Desse modo, o poder da oralidade realiza-se de forma imensurável, pois a força contida

na capacidade única de desfazer discursos ou edificá-los a partir da aprensão de uma fictícia

história pode desencadear apenas impressões despretenciosas sobre a vida, mas também pode

provocar sentimentos tão complexos como o ódio ou o amor, a ponto de desencadear reações

tão adversas ao ser humano mais bem preparado emocionalmente que ele próprio não se

reconhecerá em suas atitudes, palavras e pensamentos. Em ―Uma estória de amor‖ temos um

homem que é alvo constante do veneno e do antídoto desse efeito das narrativas e das cantigas

a que pode ver referido ao discurso, no phármakon descrito por Platão.

Manuelzão, como poucas personagens criadas na ficção, oscila entre o bem e o mal, o

ódio e o amor, a melancolia e a euforia, como se o ―curare‖, destilado pelos contos narrados

por Joana Xaviel, pelo velho Camilo e pelos cantadores que chegam por ocasião da festa,

dispersasse em seus pensamentos a cura e o fizessem ciente do veneno contido em suas

impressões acerca de tudo o que pensa sobre todos presentes à festa e sobre o ato da

comemoração do evento que marca sua [pseudo] autoridade sobre aquelas terras. O velho

vaqueiro não pode nem deve ser classificado de maneira tão simplória como o herói ou o

vilão clássico dos tantos romances escritos ao longo da história da Literatura, para além disso,

como se um veneno que ora faz bem, ora mal, circulasse em seus pensamentos, Manuelzão

88

―Curare‖ é um nome comum a vários compostos orgânicos venenosos conhecidos como ―venenos de flecha‖,

extraídos de plantas da América do Sul. Possuem intensa e letal ação paralisante, embora sejam utilizados

medicinalmente como relaxante muscular ou anestésico. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Curare.

Acessado em: 22 de dezembro de 2012.

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oscila entre o egoísmo tacanho do mais mesquinho ser humano à nobreza divina de um ser

superior em sua totalidade.

Que povo, o dêsse baixio, dum sertão, das brenhas!

De onde tiravam as estúrdias alfaias, e que juízo formavam da festa que ia

ser, da missa na Samarra, na capelinha feita? Êsse cafarnaum! [...] Talvez

então êles também fossem espertos, ladinos demais, quando compareciam

com aquela trenzada [os ―presentes‖ trazidos à Santa, para reverenciá-la] —

por não ter saída em comércio, nem nenhum outro seguro custo? Manuelzão,

em sutil, desconfiava dêles.89

Ele julga as atitudes alheias; tece impressões preconceituosas sem se ater a qualquer

norma que desdiga sua opinião. Manuelzão, quando está exercendo o papel de dono da

Samarra, — papel do qual tem consciência estar apenas preenchendo temporariamente — não

se atém a princípios, faz-se verdadeiro a ponto de passar para o leitor a amargura de toda a

idade alcançada sem as conquistas esperadas para um homem na sua situação (perto dos

sessenta anos de idade, assalariado e empregado fixo de Federico Freire a tanto tempo;

trabalhador ainda sem uma propriedade de fato sua). A contradição de ele dar a ideia da festa

e abrir de forma tão espontânea — aparentemente — a porteira da fazenda, com o que, em

seus pensamentos mais íntimos, demonstra considerar aquela aglomeração desmedida tal um

―cafarnaum‖; um ajuntamento de pessoas que sequer tinha o cuidado de oferendar algo com

algum valor visível à Santa, essas duas cenas ilustram muito bem a contradição de um

―veneno‖ que circula nos pensamentos de Manuelzão, como se alastrasse fatalmente sua

bondade, abafando, a princípio, o lado benigno do velho vaqueiro, para transparecê-lo

pequeno e maldoso.

―Uma estória de amor‖ poderia ser apenas a história do velho derrotado e frustrado, que

dissimulou um status quo alheio a sua realidade, autoproclamando-se proprietário do local em

que trabalha; — o desempenho à frente da fundação da fazenda demonstra o compromisso

irrestrito com o patrão —, mas longe de o realizar como dono de fato, fá-lo apenas à imagem

de um empregado disposto servilmente aos mandos de Federico Freire; tanto que Manuelzão

abre mão de uma família própria, do que pudera ter feito de seu destino diferente. Na verdade,

Manuelzão, desde o início na lida daquelas terras, que tanto prezava, não passara do moço,

mais tarde homem, e agora velho que abriu o primeiro clarão no matagal daquele lugar que

antes ocupava o espaço agora ocupado pela Samarra; isso está bem descrito desde o início,

desde a narração minuciosa do local no qual se escolhera fundar a fazenda,

89

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 141-142. Grafia do autor.

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Nem fazenda, só reposto, um currais-de-gado, pobre e novo ali entre o Rio e

a Serra-dos-Gerais, onde o cheiro dos bois apenas começava a corrigir o ar

áspero das ervas e árvores do campo-cerrado, e, nos matos, manhã e noite, os

grandes macacos roncavam como engenho-de-pau moendo.90

Depois de preparar e ver a fazenda pronta, bem constituída, dotada, inclusive, de uma

capelinha, ter de aceitar que aquilo tudo erigido com tanto esforço não lhe pertence, poderia

frustrá-lo de uma maneira tal, que o mais comum seria ele se constituir um velho amargo e

rancoroso, como, por exemplo, a clássica Juliana de O primo Basílio (1878). Longe disso,

Manuelzão prefere oscilar entre as várias questões que fulminam seus pensamentos,

―medicando-se‖ com as histórias e cantigas que ouve durante a festa e fazendo desse remédio

a sua arma, o seu ―curare‖ contra os medos, os receios e as raivas acumuladas ao longo de

toda a vida.

Nessa leitura de seu presente, tomando como base o passado e já antevendo o futuro,

Manuelzão se permite — inicialmente — dominar mais pelo malefício do ―veneno‖ apurado

pelo tempo. O avanço dos dias, dos anos e de todas as décadas vividas, sem aquela

recompensa que lhe parece cada vez mais evidente ser merecedor, despejam sobre as

impressões do velho vaqueiro toda a cólera acumulada pelo não realizado, traduzindo-se em

vários monólogos, nos quais seus sentimentos em relação ao todo da festa estão tomados por

uma visão pessimista sobre a vida que o leva a conjecturar possibilidades de um fim miserável

para seus dias. ―Um desânimo? Sério não sendo: mais só estados passageiros, dúvida de

saúde. Pôr freio em si mesmo. [...] Desconfiava da morte. Mas ia sair com a boiada. A festa ia

se acabar, êle ia ir com a boiada — sentia que para morrer, no caminho, no meio.

Desmaginava.‖91

Melhor será ouvir as estórias; deixar-se envolver pelo encanto torto dos contos; se

possível, imaginá-lo a seu bel-prazer para, enfim, reconhecer-se ―curado‖ dos seus maiores

medos. As histórias contadas por Joana Xaviel e pelo velho Camilo parecem devolver a

vontade de [con]viver que os anos de solidão ceifaram de Manuelzão. Devolvem? Os

sentimentos despertos dessas audições redimensionam sim a perspectiva de Manuelzão,

fortalecem a sua história e encontram naquele plano imaginário o phármakon que se

apresentará como um antídoto para o seu mal. Porém, não se pode afirmar que há cura

alguma; há, sim, a euforia própria, causada pela sensibilidade alcançada — o que nem sempre

ocorre —, mas que no caso de Manuelzão, o faz querer tomar novamente os ―arreios‖ de seu

90

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 139. 91

Idem, ibidem, v. 1, p. 187.

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destino e fazer-se novo, assinalando também a mudança do horizonte que se delimita com

suas impressões iniciais, antes mesmo da audição das histórias.

A experiência da leitura [ou da oralidade] logra libertá-lo [no caso de ‗Uma

estória de amor‘, o leitor e o ouvinte] das opressões e dos dilemas de sua

práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das coisas.

O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da práxis

histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas

também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço

limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e

objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.92

A experiência vivenciada por Manuelzão o premia com a vontade em mudar a sua

história, levando-o a querer atribuir outras sensações ao seu futuro, tal como o descrito na

citação retirada de A História da Literatura como provocação à teoria literária, de Hans

Robert Jauss. O leitor pode ter sua perspectiva redimensionada e até mesmo ser libertado de

uma condição, apenas com a apreensão da menção ao ponto de vista que lhe ofereça um olhar

diferenciado e que talvez o leve a uma história não apreendida até então. Eis a história de

amor vivenciada por Manuelzão: a redescoberta; o reviver quando tudo parece se apresentar

como se estivesse rumando para o fim. A partir da audição das histórias contadas

principalmente por Joana e Camilo, Manuelzão é iniciado em um processo de ―cura‖ sem fim,

exatamente por seu ―remédio‖ habitar um plano inalcançável pelo que quer que possa tornar a

vida desprovida de emoções que contribuam de, alguma forma, para a renovação da crença na

crença de algo melhor reservado para o futuro.

Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro,

a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás,

sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um

segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se

possa nomear rigorosamente uma percepção.93

Manuelzão percebe as histórias que ouve, mas não será jamais capaz de compreender o

todo daqueles contos. Tal qual ocorre com o leitor, o efeito de uma história narrada não se

realiza sobre o ouvinte de maneira completa, pois sempre haverá em suas entrelinhas lacunas

inacessíveis ao mesmo ouvinte. Um texto literário jamais se apresentará de forma completa

para um leitor; como diz Derrida, a totalidade de um verdadeiro texto está além do alcance do

leitor, isso é o que faz dele, de fato, um texto literário, isso é parte da regra do seu jogo, daí

vermos, por exemplo, aquilo que poderia ser considerado um momento dispare do enredo

92

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 52. 93

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 7.

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proposto em ―Uma estória de amor‖ — a saber: falar sobre morte e solidão em um cenário de

festa —, além, é claro, de o autor exigir, mesmo ao leitor mais atento, pelo menos uma

segunda leitura, para compreender, afinal, qual a estória de amor do título.

Mas, não à toa, ―Uma estória de amor‖ se desenvolve em uma festa. Esse ambiente de

descontração, que, sem a necessidade de nenhum esforço, parece conduzir a ideia de

companhias, felicidade, falta de compromisso, na realidade nos é apresentado como uma das

mais solitárias descrições da convivência humana já realizadas na Literatura; e nada mais

natural que Manuelzão crie um mundo particular, para tornar essa solidão menos perceptível.

Locus perfeito, para que se entenda quem é, o que sente e o que quer essa intrigante

personagem, a fazenda Samarra lança as amarras (observe-se o anagrama Samarra/amarras)

nos sonhos de Manuelzão, tornando-os se não verdadeiros, pelo menos possíveis.

A Samarra, por vezes, parece remeter Manuelzão ao ventre materno; a um lugar de

proteção. Mas esse mesmo local o sufoca, serve para lembrar-lhe de tudo o que ele mais possa

desejar esquecer (o fato de ele ser empregado e não patrão, a falta de uma companheira, etc.)

e contribui de alguma maneira para tornar uma possível recuperação algo ainda mais difícil e

distante. Deixa assim, a Samarra, de ser o lugar mais certo para qualquer reabilitação,

tornando-se mais semelhante a uma prisão, com suas amarras que contribuem para a pouca

confiança nas as expectativas tecidas sobre o seu futuro. Porém, mesmo que a fazenda se

constitua como essa prisão, que, de alguma maneira, faz Manuelzão tolher os seus sonhos

mais buscados, o que perdura no desfecho de ―Uma estória de amor‖ como o maior

empreendimento do vaqueiro é a vontade de um dia possuir a sua Samarra,

Tudo se passava desgovernado, ficar rico era o que era seguro. Rico, para

não precisar de se ter medo de que todo o pouco que fosse da gente não

estivesse sempre salteado — a casa, a mulher, a vaquinha de leite, as

galinhas, a espingarda, o cavalo, o cachorro. Cada vez a gente tem mais

medo. A coragem era só para avançar mais longe, ir fundar lugar noutra

parte. Só isso, ah, sempre. Tivesse de tornar a fazer a Samarra, não, ali o

caminho se estreitava para ele. Mas em outro lugar, desdemente. Soendo

que, chegava uma hora, tudo se queria, mas quase tudo, por metades, da

gente se afastava.94

O pressentimento da morte e o esvair-se das forças o afligem tanto quanto as impressões

a respeito do seu futuro financeiro, mas nada disso foi suficiente para Manuelzão sequer

cogitar desistir de enriquecer e ser um dia dono de si na lida diária da fazenda. Por isso, a

esperança dada pelas narrativas de Joana Xaviel e do Velho Camilo contribui para a

persistência do vaqueiro, no sentido de cooperar para uma expectativa contraria a realidade,

94

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 152.

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contudo, determinante para fazer do ―sonho consentido‖95

de Manuelzão um pharmákon

dotado apenas do que lhe sirva como bálsamo e que o tornará avesso às atitudes humanas que

possam torná-lo um idoso ressentido por ocasião do que poderia ter sido de sua vida, caso

houvesse escolhido, por exemplo, casar-se e constituir uma família de fato sua.

O phármakon seria uma substância, com tudo o que esta palavra possa

conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de

profundidade cripta, recusando sua ambivalência a análise [...] o phármakon

faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou habituais [...] As folhas da

escritura agem como um phármakon que expulsa ou atrai para fora da cidade

aquele que nunca quis sair, mesmo no último momento [...]96

.

Manuelzão começa a fazer uso dessa ―substância‖; deseja, enfim, sair desse ―lugar

comum‖, desse reposto que lhe transmite tanta segurança, e tudo isso se dá a partir da audição

das narrativas. Essas histórias, pequenas doses da cura, que se misturarão a história maior — a

história de Manuelzão, dose da realidade venenosa — reordenam as leis gerais, naturais ou

habituais de Manuelzão; despertam o velho vaqueiro a querer mudar o seu destino e a querer

atribuir a esta história o amor que esteve ausente durante toda a sua existência, a qual fora

preterida em razão da condição sacerdotal a que Manuelzão voltara-se para o trabalho. Assim,

quando as histórias começam a agir no inconsciente de Manuelzão a perspectiva da própria

novela muda; pode-se dizer que, até então, ainda que ele tenha vivido tudo o que, geralmente,

um homem da sua idade pudera viver — ter tido relações sociais, prover um filho, trabalhar,

etc. — sua vida não estava completa exatamente por ele não se haver permitido provar o

pequeno alívio de um breve conhecimento sobre o mundo, sobre os sentimentos humanos e as

fragilidades típicas que determinam escolhas muitas vezes não eleitas como as preferidas para

ilustrarem uma vida inteira, mas que compõem parte de um legado fora do controle das ações

particulares, pois são desencadeadas por uma série de eventos impossíveis de serem previstos.

As cantigas dão o tom à festa, e as histórias ilustram, enchem o lugar com personagens

repletas de características e atitudes até então ausentes, mas, cantadas ou descritas, se

materializam na figura real de cada pessoa presente à festa; tomam para si às reminiscências

de Manuelzão; cada canto da Samarra; realizando o plano imaginário do velho vaqueiro,

abstraindo a realidade, que se desfaz, momentaneamente. Esses personagens são capazes de

provocar a percepção de Manuelzão, deslocando-o de seu conforto, tornando possível a cura,

a mudança da postura adotada pelo velho vaqueiro até então. O fato de essas personagens

95

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Manuelzão e Miguilim. 3. ed. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1964, p. 144. 96

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 14-15.

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descritas e cantadas provirem de um acervo fora do cânone literário apenas enfatiza a

importância da Literatura popular.

Em ―Uma estória de Amor‖ há, certamente, um veio popular muito forte que

se dissemina através da inclusão de histórias, quadras, danças, e provérbios

em sua trama. Sua presença é inegável. Menos evidente é o porquê da

permanência deste imaginário das histórias no conto. Histórias da tradição

que por via oral se propagam pelo interior do país, se enraízam na memória,

se contam e se recontam.97

Poderia ser dito que curam, agindo no plano imaginário do velho vaqueiro como

alavancas capazes de demovê-lo da postura resignada de esperar a morte. Como bem diz

Sandra Vasconcelos em Puras Misturas, a novela tem uma forte natureza popular, que se

espraia, ganhando terreno. ―Uma estória de amor‖ ultrapassa o plano imaginário, ao premiar

com doses homeopáticas de um remédio sem contraindicação não só Manuelzão, que o recebe

e, com ele, cura parte de seus males, mas o próprio leitor, que certamente verá no simulacro

de narrativa, de contos consagrados, a cura para alguns de seus questionamentos, isso já desde

as escrituras sagradas, passando por todo tipo de narrativas disseminadas pelos cantos mais

longínquos de onde o homem já possa ter ido ou sonha um dia chegar; o contador de histórias

faz, literalmente, sair de sua boca parábolas, e o faz com ímpeto, revelando, ao ser humano

menos curioso, ―coisas escondidas desde a criação do mundo‖, descobertas boas e más,

phármakon, que lhes fornecerão a visão mais clara sobre o mundo ao seu redor. Mas como

são capazes de realizá-lo, se, como diz Sandra Vasconcelos na citação anterior, essas mesmas

histórias que já foram contadas dezenas de vezes, sendo-lhes adicionados apenas os ―pontos‖

que lhe atribuirão a atualidade necessária?

Nesse momento, um contador de histórias, com a eloquência necessária a essa função,

será determinante para definir a ―dose‖ certa do que possa aliviar ou provocar percepções

diversas. Esse misto de conselheiro, sábio, orador, etc., é parte fundamental, elemento

preponderante para a perpetuação do conto enquanto fonte de recorrência dos possíveis

públicos (leitor e ouvinte). Por intermédio dele, do contador da história, o conto será

assimilado pelo ouvinte, ou pelo leitor, desencadeando o conjunto de emoções buscadas no

momento em que se decidiu abrir o livro ou escutar aquela história de que tanto se ouviu falar.

É exatamente o que ocorre a Manuelzão em ―Uma estória de amor‖; as histórias, as cantigas

provocam o velho vaqueiro a pensar em si — momento raro, se considerarmos que ele vive

para pensar no trabalho — os relatos, os cantos impulsionam Manuelzão a despertar dessa

condição letárgica que o fez escolher determinados caminhos para o seu destino, fazendo com

97

VASCONCELOS, Sandra Guardini T.. Puras Misturas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 17-18.

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que ele faça das narrativas

Instrumento para uma espécie de tomada de consciência de Manuelzão das

condições concretas de sua existência e de sua real situação de homem pobre

e só. No processo de revisão de sua vida, o vaqueiro capta o sinal de que este

mundo desconjuntado de que trata a história não é muito diferente de seu

próprio mundo que, construído a duras penas e à custa de muito trabalho,

está permanentemente ameaçado de ruir.98

Mas também, tal qual o mundo pertencente ao imaginário, às histórias contadas e

cantadas podem ter um final que lhe agrade ou que, pelo menos, permita-lhe almejar alguma

esperança para o futuro, ―Manuelzão se acontecia, repondo o posto, andava no meio, saudava,

salvava, respondia, abraçava, dando muita conta de sua cortesia. A festa ia começar.‖99

E com

a festa também começavam as histórias, e essas ele não nutria dúvida: no final tudo acabava

bem; o bem vence, o mal é punido e a consciência renova-se com a certeza de que o homem

pode ser justo... Nem sempre.

Joana Xaviel representa a contradição, o avesso de tudo o que Manuelzão mais preza

como conduta e é exatamente ela quem apresenta para o vaqueiro uma história — A

Destemida — que vai demonstrar que o mal nem sempre sai vencido; que a justiça, às vezes,

não prevalece e que, portanto, a condição do vaqueiro talvez padeça sob uma moléstia

irremediável, para a qual a única cura eficaz será o próprio mal. A concepção que Manuelzão

faz do mundo com base em toda a experiência vivida contém a reminiscência de que, se a

vida nem sempre é e será boa, também não deverá ser pautada somente pelo veneno, ou seja,

Não há remédio inofensivo. O phármakon não pode jamais ser simplesmente

benéfico. [...] A essência ou a virtude benéfica de um phármakon não o

impede de ser doloroso. [...] Esta dolorosa fruição, ligada tanto à doença

quanto ao apaziguamento, é um phármakon em si. Ela participa ao mesmo

tempo do bem e do mal, do agradável e do desagradável. Ou, antes, é no seu

elemento que se desenham essas oposições.100

O phármakon provado por Manuelzão na audição da narrativa A Destemida se

dissemina pelos seus pensamentos como um veneno mortal: provocando reações, mexendo

com a sua resistência, afastando-o da realidade, como se levado estivesse sendo por um

delírio alucinante. Mas do mesmo veneno, extrai-se a cura. Se o leitor avança sua leitura sobre

os primeiros impactos das narrativas em “Uma estória de amor”, Manuelzão também

98

VASCONCELOS, Sandra Guardini T.. Puras Misturas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 123. 99

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 190. 100

DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 56-57.

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conseguirá realizá-lo, revertendo o mal em bem, para demonstrar que a sua postura pode

sofrer modificação a partir da leitura dos contos e de sua vida. As narrativas contadas por

Joana servem para contradizer, questionar, fazer emergir de dentro daquele velho Manuelzão,

cansado, fatigado, melancólico, um Manuelzão renovado, que tem a capacidade de renascer

de tudo que lhe faça mais mal, para reverter isso em um bem que o ajudará a superar suas

fraquezas.

De onde vem o mal, entendido aqui como ação objetiva que viola a liberdade

do outro e causa sofrimento e desespero; como explicar que, tanto a beleza,

quanto a dor venham das mãos do mesmo homem humano; como entender

que bem e mal se alternem qual duas faces de uma mesma moeda em um jogo

perverso do qual participamos? Ou, em outros termos [...], por que, mesmo

querendo o bem [...] o homem realiza o mal?101

Da mesma maneira que mesmo querendo o mal, o homem pode sim realizar o bem,

dependendo do ponto de vista, dos alvos de suas intenções. Cleide de Oliveira em ―Fora do

Éden, viver é muito perigoso‖, como já sugere o título, não trata expecificamente sobre a

novela ―Uma estória de amor‖, mas sobre a obra prima de Guimarães Rosa, Grande sertão:

veredas, porém, a citação que nos remete à dualidade bem/mal nos parece perfeita para

analisar com precisão a dualidade existente na relação de cura/doença existente em A

farmácia de Platão, de Jacques Derrida, consonante com ―Uma estória de amor‖, de

Guimarães Rosa.

A miscelânea de histórias, contos e cantigas presentes em ―Uma estória de amor‖, de

certa forma, retoma muito do que já possa ter sido escrito na Literatura, porém, se fosse

apenas isso, da ideia de phármakon exposta por Platão, as narrativas carregariam o que cada

uma trouxesse naturalmente de acordo com a moral — se é que há alguma — a que se propõe,

ou seja, seriam apenas cura ou veneno, mas o fato de serem passadas oralmente, de

despertarem sensações a ponto que ―[...] competia se mandar enviados com paga, por aí

fundo, todo longe, pelos ôcos e veredas do mundo Gerais [...]‖102

para saber o desfecho de

determinado conto — isso ocorre em A Destemida103

, relatada por Joana Xaviel — a

descrição das sensações despertas, mediante a audição das histórias, funcionam como a adição

dos ingredientes ausentes no momento anterior ao relato.

101

OLIVEIRA, Cleide Maria de. ―Fora do Éden, viver é perigoso‖. In: YUNES, Eliana et al (org.). Bem e mal

em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Uapê, 2008, p. 31. 102

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 173. 103

Idem, ibidem, p. 169-173.

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Ler um conto também quer dizer ser tomado por uma tensão, por um

espasmo. Descobrir no final se o fuzil disparou ou não, não assume o

simples valor de uma notícia. É a descoberta de que as coisas aconteceram, e

para sempre, de uma certa maneira [sic], além dos desejos do leitor. O leitor

tem que aceitar esta frustração, e através dela experimentar o calafrio do

destino.104

Pode haver veneno e cura no ato isolado de ler, para isso implicará a leitura atenta, a

capacidade de se entregar ao livro, desprendendo-se da realidade a sua volta, pois, diante do

livro, o leitor é o orador que vemos, por exemplo, na narração das histórias durante a ―Festa

de Manuelzão‖. O leitor, com sua percepção, formulará o mundo que está diante de seus olhos

e o constituirá com os elementos necessários as suas ânsias. Manuelzão recria o mundo

contado por Joana Xaviel em A Destemida; ele sonha ver aquela mulher descrita, ser punida

devidamente, confirmando em seus mais íntimos pensamentos a certeza de que ele escolheu o

caminho certo em sua vida, se acaso escolhesse outro, onde precisasse utilizar de má conduta

para alcançar algum objeto, seria punido; mas eis que a surpresa acontece; o mal não é

punido, ou seja, de nada valera Manuelzão ter sido sempre tão cordato em seus atos.

Por conseguinte, ―Joana Xaviel demonstrava uma dureza por dentro, uma inclinação

brava. Quando garrava a falar as estórias, desde o alumeio da lamparina, a gente recebia um

desavisado de ilusão‖105

, ou seja, a capacidade envolvente da contadora supria todas as

possíveis lacunas de uma história aparentemente mal formulada e até fazia algum sentido,

mesmo que houvesse da parte de Manuelzão discordâncias sobre como tudo se procedera.

A gente chega se arreitava, concebia calor de se ir com ela, de se abraçar. As

coisas que um figura, por fastio, quando se está deitado em catre, e que,

senão, no meio dos outros, em pé, sobejavam até vergonha! De dia, com sol,

sem ela contando estória nenhuma, quem vê que alguém possuía

perseveranças de olhar para a Joana Xaviel como mulher assaz? Todo o

mundo dizendo: que Joana Xaviel causava ruindades. Se não produzia crime

nenhum, era porque não tinha estado, nem macha força, e era pobre

demais.106

Mesmo tecendo impressões sobre o caráter de Joana Xaviel — a citação anterior

demonstra o olhar do narrador de ―Uma estória de amor‖, mas note-se que o narrador e

Manuelzão parecem tender a se fundir em determinados momentos, como é o caso da citação

em questão, — Manuelzão admite o poder da oratória de Joana Xaviel, a ponto de

compreender que de dia, quando não se dava espaço para ouvir histórias, Joana perdia a

104 ECO, Umberto. Sobre a literatura. Trad. de Eliana Aguiar. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 20. 105

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 173. 106

Idem, ibidem, p. 173-174.

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notabilidade que só o ato de narrar lhe concedia. Assim, A Destemida age como o veneno, o

―curare‖, que poderá provocar Manuelzão para uma verdade pouco aceita e jamais admitida

de que a concepção de bem, justiça, de verdade, enfim, pode ser burlada, sem que seus atores

sofram algum revés; o pharmákon em A Destemida apresenta ao leitor apenas um lado da

moeda e isso não necessariamente significará pessimismo.

Percorrendo as trilhas desse sertão tentamos pensar o problema do bem e do

mal a partir de uma perspectiva ética, ou nas palavras de Paul Ricouer,

buscando a convergência entre pensamento, ação (moral e política) e

transformação emocional dos sentimentos. Entenda-se aqui ética com ao

construção do ethos: identidades, culturas e ações pragmáticas que abrangem

os diversos âmbitos da vida humana em sociedade.107

O ―final‖ de A Destemida não quererá dizer uma mudança de postura de Manuelzão, ou

de qualquer outro ouvinte da história, muito pelo contrário, esse ―veneno‖ introjetado em

Manuelzão ao ouvir Joana, talvez reforce ainda mais seus princípios e apenas o faça

compreender que nem sempre haverá a supremacia do bem. O desprezo pelo filho Adelço; a

dor no pé, provocada por um machucão; uma ideia inicial de que a morte se aproxima, são

concepções que poderiam levá-lo a adotar ou querer adotar a postura daquela contraditória

personagem descrita por Joana Xaviel em A Destemida, mas não é o que ocorre. Quando o

velho camilo começa a contar a narrativa O Romanço do Boi bonito (―Décima do boi e do

cavalo‖), tudo se refaz, a ponto do encanto lançado pela descrição do velho Camilo causar

uma comoção unânime aos presentes à Samarra.

A ―Décima do boi e do cavalo‖, diferente das estórias contadas por Joana, tem um

sentido para o capataz: ela trata a ―ferida aberta‖ no inconsciente de Manuelzão de tal forma,

que mesmo um possível sentimento pela nora Leonísia que não fosse o de um sogro, parece

converter-se no final, na benquerência de um pai, o que ocorre também pela figura

controversa de Adelço: ―Manuelzão estendeu a mão. Para ninguém êle apontava. A boiada

fôsse sair — êle abraçava o Adelço e Leonísia [...]‖108

, tal é o efeito da estória contada pelo

velho Camilo. Essa mudança de percepção ocorre não apenas com Manuelzão, mas com todos

os que ouvem Camilo. Sobre estes, o efeito é tal qual as águas de um rio, que ganha vida

novamente e enche seu leito vazio de ânimo para o recomeço de uma nova jornada:

Velho Camilo cantava o recitado do Vaqueiro Menino com o Boi Bonito. O

vaqueiro, voz de ferro, pêso de responsabilidade. [...] Até as mulheres

107

OLIVEIRA, Cleide Maria de. ―Fora do Éden, viver é perigoso‖. In:YUNES, Eliana et al (org.). Bem e mal em

Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Uapê, 2008, p. 32. 108

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 200.

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choravam. Leonísia suavemente, Joana Xaviel suave. Joana Xaviel de certo

chorava. Essa estória ela não sabia, e nunca tinha escutado. Essa estória ela

não contava. O velho Camilo que amava. Estória!

Seo Vevelho foi por si mesmo buscar cachaça-queimada, pra trazer para

Camilo. O senhor do Vilamão, tão branco, idosamente, batia palmas avivas,

parecia debaixo de um luarado.109

Toda a atmosfera da fazenda ganha um outro tom após a narrativa do velho Camilo, o

efeito da história contada por Joana Xaviel, de veneno, do ―curare‖ que atingira antes os

presentes a festa, parecia invertido em anestésico — como a variação do ―curare‖ indígena —

um atenuante da dor, que prepara o enfermo para a recuperação. Há, no final de ―Uma estória

de amor‖ a recuperação pelo pharmákon; a ressignificação do discurso no mundo, da vida,

desde o instante em que se ouve o que um idoso como Camilo se prontifica a contar inunda de

esperanças os sentimentos de todos presentes à Samarra, principalmente Manuelzão.

O desfecho da festa de Manuelzão nos apresenta um homem recuperado; não há mais

dor no pé — pelo menos isso deixa de ser citado na parte final da história, como se realmente

Manuelzão houvesse conseguido se curar de seu mal, — não há mais medo da solidão, nem

mesmo algum temor da morte, além disso a cisma com o caráter do filho parece haver se

dissipado; ao final, Manuelzão consegue inclusive cogitar Adelço para asumir as funções de

sua responssibilidade, apagando as comparações feitas entre o seu pai e Adelço, como se

buscasse motivos que o fizessem crer em algo que já não lhe demonstrava não ter tanto

fundamento.

O texto literário não tem como função primordial curar — nem os livros de autoajuda o

realizam de fato —, mas ele pode sim provocar o leitor a desejar modificar um

comportamento, adotar uma postura diferente daquela que vinha sendo praticada até então;

esse efeito desencadeado no leitor mais atento, como está bem descrito na citação anterior,

tem validade também para o ouvinte que, como bem transparecem as histórias descritas por

Joana Xaviel e pelo velho Camilo são capazes de mexer com os sentidos de homems e

mulheres e é exatamente o que ocorre aos convidados da ―Festa de Manuelzão‖: a

compreensão daquilo que se concebe como bem e mal, não como uma escolha entre um e

outro, mas como partes fundamentais à compreensão e melhor realização do quer que se

deseje.

109

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 200.

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3. “TORTO ENCANTO”:

ANÁLISE CRÍTICA DE TRÊS NARRATIVAS ORAIS EM

“UMA ESTÓRIA DE AMOR”

Toda a obra de João Guimarães Rosa traz forte

contingente de cultura popular [...] Quando

escreveu Corpo de baile já Guimarães Rosa se

achava fascinado pelo tema [...] da mulher vestida

de homem que vai à guerra. Na novela que integra

aquele primeiro livro, na estória sob o título de

―Uma estória de amor‖ [...], o autor coloca uma

personagem profundamente interessada em velhos

romances da literatura popular.110

Feita uma análise inicial, que serve à compreensão da importância desse riquíssimo

acervo disponibilizado por Guimarães Rosa em ―Uma estória de amor‖, cabe, agora, adentrar,

de fato, esse mundo do imaginário para demonstrar o seu valor e a peculiaridade que cerca

uma narrativa, desde a versão mais próxima da original, até aquela que já tenha ―sofrido‖

tantas intervenções, que em poucos sinais lembrará a primeiríssima versão. Em ―Uma estória

de amor‖, Guimarães Rosa se utiliza de vários personagens, dentre alguns que ele escolhe

nomear e outros que são apenas conhecidos pela ideia de que alguém chega à Samarra para

cantar uma cantiga, e a partir dessas personagens, — ficcionalização dos vários cantadores e

contadores de histórias, — o autor mineiro nos apresenta um universo, ao mesmo tempo,

paralelo e consonante ao mundo conhecido como real.

Velho Camilo e Joana Xaviel ganham destaque no que tange à ideia do contador, o

narrador de histórias. Joana Xaviel narra duas em especial, a saber: A Destemida e A Donzela

Guerreira; velho Camilo conta apenas uma história, mas é essa a narrativa que toca todos de

tal maneira, que remodela sensações, sentimentos e faz jus ao amor da história de Manuelzão.

O Romanço do Boi Bonito, mais do que emcionar, reordena a disposição de todos os

elementos dispostos na fazenda, desde os agregados, passando pelos objetos, pelas estruturas

construídas, como a casa, a igrejinha, até chegar às pessoas, ao ser humano, que transita por

essa fazenda.

Aqui há Manuelzão: idoso, vivido, conhecedor de muitas histórias e de muitas pessoas,

mas, como o melhor exemplo que Guimarães Rosa poderia dar para ilustrar o leitor, o ouvinte

comum, Manuelzão compõe parte preponderante da representação que o autor mineiro intenta

realizar sobre o envolvente poder das narrativas, como bem diz Paulo Rónai em Rondando os

segredos de Guimarães Rosa: ―[...] num teatro em que não há separação entre palco e plateia,

110

ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984, p. 30-

31.

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o autor e as personagens nunca são completamente distintos.‖111

Isso nos permite afirmar que,

antes mesmo de considerar a maneira como Guimarães Rosa coletou essas cantigas, essas

―estórias‖, dentre tantas outras possibilidades, nas suas viagens em conjunto com as comitivas

de boiadeiros pelos rincões do sertão, essas narrativas inseridas na novela ―Uma estória de

amor‖ são como partes do acervo recorrente de Guimarães Rosa, o qual, ele como bom

ouvinte e leitor teria adquirido durante a audição e a leitura de vários tipos de textos, cantigas

e histórias, para então pensar em alocá-las em suas tantas novelas, contos e romances.

Cabe a este terceiro e último capítulo abordar não apenas as narrativas citadas

anteriormente, mas também algumas das várias cantigas dispostas ao longo da novela ―Uma

estória de amor‖, cantadas por anônimos — talvez assim o sejam justamente para dar as

honras devidas às cantigas —, bem como abordar em um plano mais analítico, a importância

das narrativas orais para a literatura; por exemplo, analisar quais elementos podem ser

considerados nos estudos acerca do valor estético de uma história pertencente à literatura oral,

afinal o relato oral sofre modificações interpretativas, tanto quanto um texto escrito, mas

diferente deste, seu reconhecimento é discreto e quando não é reconhecido nacionalmente,

também é pouco respeitado — como um bom exemplo de uma literatura próxima da oral,

veja-se o caso da Literatura de cordel, no celébre exemplo de Patativa do Assaré (1909-2002),

cantador e compositor de histórias passadas no sertão nordestino.

3.1. Estórias de amor na Samarra: interpretação de contos e cantos em “Uma

estória de amor”

As ―estórias‖ não possuem fronteiras e, por isso, lhes é ―permitida‖ a reinvenção pela

oralidade. A partir dessa lógica é que se conjectura a renovação de seus conteúdos, os quais

chegam até mesmo a ganhar versões diferentes da original. Essas ―novas interpretações‖

funcionam como um rio repressado, porém, um rio robusto, que pressiona e supera quaisquer

barreiras, expandindo-se, servindo ao deleite de quem o deseje, reordenando seu fluxo,

atribuindo nova vida àquilo que já parecia morto, abrindo, enfim, possibilidades para outros

veios ou para novas interpretações. No livro de Leonardo Arroyo, A cultura popular em

Grande sertão: veredas, não se fala diretamente sobre a novela ―Uma estória de amor‖, mas a

mesma é citada em consideráveis trechos que nos servem à análise precisa, principalmente, do

conto A Donzela guerreira.

111

RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 18.

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O romance noticioso se baseia, como facilmente se depreende, de fato real e

histórico que o povo, através de algumas sensibilidades típicas, transforma

em vinculação com determinantes individuais e sócio-culturais. Estas

―canciones de historia‖ vingaram do mesmo modo em outras regiões da

Europa, que não apenas Espanha ou Portugal [...]112

Uma das questões que mais nos chamou a atenção, na composição deste trabalho, diz

respeito exatamente à essa citação, onde Leonardo Arroyo em A cultura popular em Grande

sertão: veredas nos fala sobre histórias consagradas em suas versões originais, que

transpusseram épocas, até chegarem aos dias atuais. Muitas das histórias que se ouvem desde

a infância, passando pela adolescência e que ainda nos são reapresentadas na idade adulta, —

muitas vezes causando surpresa, por despertar cenas, cheiros, sensações já esquecidas, — têm

suas origens em outros continentes (Europa, África e Ásia, por exemplo), ou seja, essas

histórias superam a distância entre os vários pontos do planeta, disseminando saberes,

sentidos de moral ou, simplesmente, fruição, e nada disso deve ser visto como uma

consequência normal da atual era em que vivemos, com o ciberespaço servindo à velocidade

da informação e da comunicação, basta que se recorde das mais antigas narrativas, aquelas

que embalaram os sonhos de muitas crianças ou serviram como um fogo a mais, nas reuniões

entre homens e mulheres que se deixavam levar pela voz do contador de estórias, à luz de

uma fogueira.

Um bom exemplo dessas histórias, que aprendemos a ver como parte do aprendizado,

compõem o Livro das mil e uma noites, já citado no primeiro capítulo desta Dissertação; mas

no caso específico da novela ―Uma estória de amor‖, o conto da donzela guerreira exemplifica

o poder de alcance das narrativas orais entre os vários continentes do mundo.

A referência de Guimarães Rosa em Corpo de baile ao velho romance

popular foi notada primeiramente por Guilherme Santos Neves e depois por

M. Cavalcanti Proença. Ambos, porém, não notaram traço importantíssimo

nessa breve descrição de Joana Xaviel, traço que reforça nosso ponto de

vista segundo o qual o tema da mulher que vai à guerra disfarçada de homem

já vinha dominando inteiramente a imaginação do autor. O traço importante

é a quadra [...] que foi composta, sem dúvida alguma, pelo próprio

Guimarães Rosa.113

De acordo com Leonardo Arroyo, a versão descrita por Guimarães Rosa sobre o conto

da donzela guerreira parece ganhar ares tipicamente regionais, fugindo do padrão europeu,

mesmo se comparada com a versão portuguesa. Veja-se, por exemplo, a versão contida no

livro Cantos populares do Archipelago Açoriano (1869), de Teófilo Braga, a qual, comparada

112

ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984, p. 53. 113

Idem, ibidem, p. 32.

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com a versão presente em ―Uma estória de amor‖, distancia-se da descrição mais contida,

presente na versão de Teófilo Braga. Isso quer dizer, exatamente, que a variante ―criada‖ por

Guimarães Rosa, literalmente, realiza-se como uma ―estória‖ de amor, no sentido lato da

palavra. Na visão de Rosa não há apenas a descrição arraigada de uma filha que deseja honrar

o nome de sua família ou o povo de seu reino, mas há sim uma mulher e um homem que

despertam paixões mútuas, perdendo inclusive a medida desse sentimento em determinado

momento do conto; essa questão certamente é o que mais faz da donzela guerreira de

Guimarães Rosa genuína em comparação à do trabalho coletado por Teófilo Braga.

Ela recontava a estória de um Príncipe que tinha ido guerrear gente ruim,

trêis longes da porta de sua casa, o fora ficando gostando de outro guerreiro,

Dom Varão, que era uma môça vestida disfarçada de homem. Mas Dom

Varão tinha olhos prêtos, com pestanas muito completas, o coração do

Príncipe não se errava, êle nem podia mais prestar atenção em outra

nenhuma coisa. Vai daí, foi perguntar ao Pai e à Mãe dêle, suplicar

conselhos;

―Pai, ô minha Mãe, ô!

estou puxado de amor...

Os olhos de Dom Varão

é de mulher, de homem não!‖

A Rainha ensinava ao filho seguidos três estratagema, astúcia por fazer Dom

Varão esclarecer o sexo pertencido. Quando sucedia êsse final, o Príncipe e a

Môça se casavam, nessas glórias, tudo dava acerto.114

Um fim perfeito para uma história de amor. Joana Xaviel, astutamente reconta,

adicionando os elementos necessários à narrativa, colocando, inclusive o grande mote do

conto, — no caso, o ato do príncipe ir para a guerra e nesse embate perder o foco de suas

prioridades por causa de um sentimento estranho, desperto por outro soldado, — isso fica em

segundo plano em relação à história de amor que nasce em pleno campo de batalha; o

príncipe, bem à moda nordestina, fica ―puxado de amor‖ por Dom Varão, mesmo pensando

que se tratava de um homem. Na verdade, pode-se depreender que Guimarães Rosa

―adicionou‖ a quadra exatamente para demonstrar a capacidade inventiva do contador de

histórias, que é capaz de continuar encantando com suas narrativas, mesmo quando essas não

condizem com a versão original.

Na versão coletada por Teófilo Braga, a guerra parece ter mais espaço, apesar de haver

o amor que vemos contado por Joana Xaviel, mas esse sentimento termina descrito de forma

mais reservada, claro, sem os trejeitos descritos sobre o ato de narrar — ficção, mas bem

próximos do real —, presentes na figura de Joana Xaviel. A versão de Teófilo Braga nos

114

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 167.

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apresenta acima de tudo o ato da guerra, a donzela e o príncipe, antes mesmo do amor, tem

um objetivo bem lúcido na campanha, que como não poderia deixar de ser, começa sendo

narrada pelo pai daquela que se traveste de Dom Varão:

— Ai de mim! Um pobre velho, / Que as guerras me acabarão! / De tres

filhas que eu tenho, / Não ter um filho varão! / Respondera-lhe a mais moça /

Com toda a deliberação: / ―Meu pae, dê-me o seu cavallo, / Que eu serei o

Dom Varão. / — Tendel-o cabello grande, / Filha, conhecer-vos-hão. [...]

Vae Dom Varão para a guerra, / Com toda a deliberação!115

O foco da Donzela Guerreira de Teófilo Braga está bem amarrado a ideia da guerra,

tanto que nesse caso a possível história de amor se torna um detalhe, que certamente será

explorado, mas isso não ocorrerá no caso da versão coletada por Teófilo Braga como ocorre

na descrição contida em ―Uma estória de amor‖ e isso, pode-se afirmar, é uma escolha do

próprio autor; o ―amor‖, que parece inadequado ao título ganha, enfim, um porquê dentro da

história; o amor de Manuelzão por sua vida é a estória de amor que ele escolhera ver por meio

dos relatos dos contadores.

Não se trata de afirmar que o amor entre o príncipe e Dom Varão inexista nos textos

coletados por Teófilo Braga, mas de compreender, afinal, o que é mais valorizado na versão

de 1869; a guerra, certamente, é a força mais explorada na versão coletada por Teófilo Braga,

o amor tão explorado na versão contada por Joana Xaviel é logrado a segundo plano,

imprimindo ao trabalho coletado por Theophilo Nunes um caráter mais objetivo,

distanciando-se mesmo da emoção mais comum a um relato oral.

No caso de Guimarães Rosa, pode-se dizer que essa preferência pela narrativa da

donzela guerreira, de certa forma, transita, via a narração de Joana Xaviel, por todas as

personagens femininas de Guimarães Rosa, mesmo as que não são guerreiras em sua típica

concepção – uma mulher vestida e armada com edumentárias para a guerra –, desde aquelas

descritas nos mais curtos contos do autor, até as que ilustram suas novelas e romances. Por

exemplo: Flausina, do conto ―Esses Lopes‖ (Tutameia, 1967), a Lina da novela ―A estória de

Lélio e Lina‖ (No Urubuquaquá, no Pinhém, 1956) e, claro, Diadorim, de Grande sertão:

veredas (1956). Uma parte de cada uma dessas personagens exemplificadas aqui reside na

donzela guerreira descrita por Guimarães Rosa, enriquecendo-a, aproximando-a de uma

possível aparência real; vê-se isso na força com que Flausina vence lenta e constantemente os

Lopes; na sabedoria com que Lina encara a percepção da diferença de idade entre ela e Lélio

e, principalmente, na perseverança de Diadorim, que mantém seu plano em travestir-se de

115

BRAGA, Teófilo. Cantos populares do Archipelago Açoriano. 5 volumes in-8º. Porto: Livraria Nacional,

1869, p. 215-517. Grafia do autor.

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homem, mesmo se sentido atraída por Riobaldo, até o momento final de sua vida.

O impacto da cultura popular sobre a sensibilidade de João Guimarães Rosa

resulta, como se verá, no revivescimento e atualização do velho problema

das fontes da literatura oral, a sua ‗santa continuidad‘, a reciproca das

influências entre o erudito e o popular, dentro desse fenômeno admirável que

é a sua permanência no espaço e no tempo. ‗Poeta, músico, romancista,

sociólogo, antropólogo, todos plasmam essa matéria viva e milenária,

julgando-a original e nova‘, quando no fundo ela participa de um processo

de herança cultural de fronteiras extremamente móveis [...] o interesse de

João Guimarães Rosa se centralizou particularmente na estória da ‗mulher

vestida de homem‘, romance ou rimance mais definido com o título de A

Donzela que vai à Guerra.116

Pode-se afirmar, assim, que a donzela guerreira descrita por Joana Xaviel, apenas

remete à donzela da versão de 1869 pela própria alcunha que lhe serve de referência pessoal;

a descrição feita por Joana Xaviel, que, hipoteticamente, remete às marcantes personalidades

de Flausina, Lina e Diadorim, apresentam uma mulher mais próxima do imaginário brasileiro,

em especial, do imaginário nordestino; uma mulher capaz de vencer as intempéries, os

obstáculos, sem deixar de ser feminina, porém, sem admitir qualquer subserviência, mesmo

diante dos homens, confirmando, dessa maneira, a eloquência dessa outra grande mulher

composta por Guimarães Rosa: Joana Xaviel, a contadora de estórias.

Joana Xaviel parece-nos a personagem mais propícia a se afirmar como a representação

desse ―impacto da cultura popular sobre a sensibilidade‖, de que nos fala Arroyo em

referência à apreensão dos inúmeros contos coletados por Guimarães Rosa ao longo de seu

trabalho como escritor. A força com que um conto ou mesmo uma cantiga inside sobre um

leitor ou um ouvinte, teria incidido da mesma forma sobre a sensibidade de Guimarães Rosa,

daí essas ―estórias‖ serem projetadas para os seus livros, mesmo que servindo como uma

espécie de alegoria, como acontece em ―Uma estória de amor‖ ou ainda à composição de sua

obra-prima Grande sertão: veredas.

Em ―Uma estória de amor‖, Joana Xaviel, mesmo diante da discreta ojeriza com que é

recebida pelo capataz da Samarra, adentra a fazenda, ganha seu espaço com aparente

mansidão, para, no momento propício demonstrar a sua importância ao todo da festa,

tornando-se, em pouco tempo, indispensável ao evento organizado por Manuelzão. Não se

trata apenas do fato de Joana narrar as histórias, mas de saber contá-las; ser dotada dos

trejeitos e dos artifícios adequados que tornarão a ―sua‖ donzela guerreira, única. Os atributos,

as atitudes, enfim, o comportamento destoante de uma mulher europeia, fazem daquela

116

ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984, p. 30-

31.

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história oralizada por Joana Xaviel, independente e emocionante, como se estivesse sendo

contada pela primera vez, como se o ―ponto‖ aumentado ao conto narrado por Joana Xaviel

reinventasse aquela história, contada e recontada há séculos.

Profundamente marcado pelo universo da experiência coletiva, ‗Uma estória

de amor‘ aponta para uma questão que se configura como central para seu

modo de ser — trata-se basicamente da maneira pela qual esta tradição oral é

incorporada à história da festa na Samarra. Entretecidos na trama narrativa,

encontram-se as quadras, romances e cantigas — completos ou em

fragmentos — que num gesto de bricoleur, Guimarães Rosa resgata de seu

contexto original para reinscrever numa outra ordem, estabelecendo assim

novas possibilidades de significação decorrentes do novo contexto em que

foram colocados — peças de um mosaico que articuladas em novas relações,

adquirem um significado particular, definido a partir de sua reutilização.117

Sandra Vasconcelos, em ―Outras trilhas‖ (O sertão e os Sertões, 1998), apresenta-nos

esse caráter multifacetado próprio da narrativa oral, de onde se observa a imersão de ―peças

de um mosaico‖ dotadas de múltiplas faces, articuladas pelas mais variadas possibilidades de

serem interpretadas. Veja-se isso em outro conto narrado por Joana Xaviel; um conto pouco

comum mesmo para os dias de hoje; uma narrativa que traz em seu conteúdo uma

surpreendente inversão de valores, com ―bem‖ e ―mal‖ colocados sob circunstâncias

diferentes daquilo que é considerado normal. Antes de contar a narrativa da Donzela

Guerreira, Joana Xaviel se apresenta com o quê, acreditamos, de fato marcar a sua oratória: A

Destemida.

Inverteu-se a apresentação das histórias aqui, por se acredita nessa como a história que

provocará em Manuelzão uma série de sensações que o levará a refletir sobre a validade de

tudo o que ele deixara de fazer e tudo o que fez pela construção da Samarra. Saber que nem

sempre a vida reserva o castigo a quem aja com más intenções, perturba Manuelzão a ponto

de este não aceitar o desfecho da narrativa A Destemida como adequado; sua intenção, após

ouvir o possível fim da história narrada por Joana, é fazer alguém, ir buscar a resposta o mais

longe que fosse, mas que trouxesse o fim de fato daquela história.

— ‗O seguinte é êste...‘ Aí, uma vez, era um homem doado de rico, feliz de

rico, mesmo, com extraordinárias fazendas-de-gado. Tinha um amigo, que

era vaqueiro, muito pobre, pobre, pobre; A mulher do vaqueiro se chamava a

Destemida... [...] O homem rico prezava tôda a confiança no vaqueiro, deu a

êle a melhor maior fazenda, pra tomar conta. O vaqueiro podia comportar lá

o que por si entendesse, mas tinha de zelar cuidados com a Cumbuquinha,

uma vaca que o homem rico amava com muita consideração. Foi quanto foi

para a Destemida exigir do marido, a sentido rogo: que queria comer carne

117

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 107.

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da Cumbuquinha, que precisava, porque era um desejo e ela estava grávida

de criança, mesmo precisava. [...] ‗Mas até os meninos, enquanto teve carne,

muitos dias, pediam: — ‗Nha mãe, me dá um taquinho da Cumbuquinha, pra

eu assar?‘ A senhora mãe do homem rico escutou essa conversa dessa, por

uns acasos; o vaqueiro pobre tinha informado falso, o minto de que a

Cumbuquinha rolara num barranco e se morrera, quebrados os quartos.

Então a Destemida, mediante venenos, matou a mãe do homem rico [...] O

Homem Rico chorou um pouco, sem sofismar, daí pois mandou se fazer o

enterro mais bonito que se pudesse [...] a Destemida ainda se encaprichou de

conseguir roubar as tôdas alfaias, e tochou fôgo na casa onde se guardava o

corpo da velha, pra o velório. A estória se acabava aí, de-repentemente, com

o mal não tendo castigo, a Destemida graduada de rica, subida por si, na

vantagem, às triunfâncias.118

Na história do Bumba meu boi, observa-se um enredo muito semelhante ao contado por

Joana Xaviel em A Destemida, porém, diferente dessa, a esposa do vaqueiro em Bumba meu

boi é regenerada do mal que faz o esposo cometer contra o boi; o fim da história reserva

àqueles que, naturalmente, se reconheceriam como os maus em A Destemida, um desfecho no

mínimo de redenção, pois a mulher, que, no Bumba meu boi, deseja comer apenas a língua do

boi, — lembremos que, em A Destemida, a mulher do vaqueiro pobre deseja comer a vaca

Cumbuquinha, não há a preferência por alguma parte do animal, — em Bumba meu boi essa

mulher, de nome Catirina, come a língua do boi e, por isso é perseguida, junto com o marido

que teria matado o boi. Mas por uma intervenção do pajé, o boi, milagrosamente, é

ressuscitado e todos são felizes.

Os enredos de Bumba meu boi e A Destemida são semelhantes até o momento clímax

das duas narrativas: a morte do boi, o que, no caso do relato de Joana Xaviel, se realiza na

morte da vaca Cumbuquinha. Mas é interessante notar que, a partir desse ponto, a história

contada por Joana ganha, tal qual notamos no caso de A Donzela Guerreira, uma versão

própria, criada pela fictícia narradora, ou seja, a história narrada por Joana Xaviel jamais

poderia ser de outra maneira, como desejara Manuelzão, ao ouvir o ―desfecho‖, mesmo que

Manuelzão ordenasse a partida de um de seus subalternos aos confins do mundo, para

descobrir o possível fim de A Destemida, este jamais o encontraria, pois a contadora criara ou

mesmo ouvira de outrem a versão com o desfecho pouco convencional, mas verdadeiro.

Talvez o ―ponto‖ adicionado ao conto, ao longo dos vários anos, tenha atribuído à

―estória‖ relatada por Joana um outro fim, disso dependeu a recepção do ouvinte à época

primeira em que a possível história tenha sido narrada, e o momento em que, passada de

ouvido em ouvido, via relatos pelos tantos grupos de homens e mulheres que se prostraram a

118

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 170-171. Aspas do original.

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ouvir, também esses mesmos homens e mulheres possam ter repetido as histórias com outros

tantos pontos de vista, que já não poderiamos dizer tratar-se, exatamente, da mesma narrativa,

do primeiro instante em que fora contada.

De tudo isso, conclui-se que se deve buscar a contribuição específica da

literatura para a vida social precisamente onde a literatura não se esgota na

função de uma arte da representação. Focalizando-se aqueles momentos de

sua história nos quais obras literárias provocaram a derrocada de tabus da

moral dominante ou ofereceram ao leitor novas soluções para a casuística

moral de sua práxis de vida — soluções estas que, posteriormente, puderam

ser sancionadas pela sociedade graças ao voto da totalidade dos leitores

[...]119

Em A História da Literatura como provocação à teoria literária, Hans Robert Jauss

aborda essa capacidade contida no ato artístico, como o dote de provocar o sujeito que frui o

objeto artístico, a ponto de atribuir-lhe conceitos diversos, tornando-o único já na concepção

desse receptor, possibilitando-lhe, com esta faculdade, pintar, cantar, escrever ou, como o faz

Joana Xaviel em A Destemida, contar a sua versão própria de uma possível ―estória oficial‖.

Assim o é, que a versão de Joana Xaviel, a qual bem poderia ser uma vertente da história

presente em Bumba meu boi, torna-se original e independente, ―derrubando tabus de moral‖

para gratificar possíveis ouvintes, como o próprio Manuelzão, com a desperta vontade de

contar a sua própria versão para a história da Destemida, dar-lhe, enfim, o final que ele,

Manuelzão, desejara ouvir da boca de Joana Xaviel: que a Destemida foi punida por todas as

suas maldades.

Aliás, maldade é o que parece não haver no belíssimo Romanço do Boi bonito, contado

por velho Camilo. ―Em ‗Uma estória de amor‘, intercalam-se duas estórias: a de Manuelzão,

apresentada por um narrador oniciente, e a do ‗Boi Bonito,‘ transmitida pelo Velho Camilo,

que se encaixa à primeira, completando-a.‖120

Ou seja, diferentemente da Donzela Guerreira,

que faz pensar o amor e de A Destemida, que o contraverte, o Romanço do Boi bonito realiza

esse amor pela contação de velho Camilo; um amor fantasioso, muito mais pertencente ao

plano imaginário, mas para Manuelzão dotado de magia única, capaz de demovê-lo de seu

lugar comum, impulsioná-lo a querer viver.

Velho Camilo, o idoso desprezado, descrito de forma tão discreta desde o início da

novela ―Uma estória de amor‖, quando se torna detentor da palavra para contar a sua

―estória‖, o faz com tamanha eloquência, a ponto de tornar-se o centro das atenções,

119

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli.

São Paulo: Ática, 1994, p. 57. 120

ALCOFORADO, Doralice Fernandes Xavier. ―‗Uma estória de amor‘: um diálogo intercultural‖. Boitatá –

Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, 2008, p. 158.

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provocando os sentidos de cada pessoa prostrada ao seu relato. Assim, o Romanço do Boi

bonito fecha a narrativa ―Uma estória de amor‖, mas, diferente dos dois contos apresentados

aqui e narrados por Joana Xaviel, a história contada por velho Camilo mistura-se à conclusão

de ―Uma estória de amor‖, descrevendo para além de um ―romanço‖, o amor que escapa às

mãos de Manuelzão no início da narrativa e lhe é devolvido com a bela estória que Camilo

escolhera contar:

— Seo Camilo, o senhor conte uma estória!

O que era para se dizer e não se crer. Pois, então, era? Assim de só ser, sem

razão. Uma estória. Mas o velho Camilo entendeu, obedeceu. Alguns ainda

riram dêle.

— Caso eu tenho, por contar...

O velho Camilo estava em pé, no meio da roda. Êle tinha uma voz. Singular,

que não se esperava, por isso muitos já acudiam, por ouvir. Contasse, na

mesma da hora. Êle, assaz, se começou:

A estória do Velho Camilo:

— ―Em era um homem fazendeiro, e muito bom vaqueiro. No centro dêste

sertão. Tinha um cavalo — só êle mesmo sabia amontar. O homem morreu.

Seu filho, seu herdeiro primeiro, que ficou sendo de posse-dono da fazenda,

não agüentava tomar conta do cavalo. Só o cavalo era bendito. Só êsse

cavalo do finado homem...‖121

A estória ganha, lenta e ininterruptamente os espaços da Samarra — daquele lugar eleito

como ―palco‖ para os contadores, — e o que Camilo faz com sua bela história é se misturar à

realidade de cada ouvinte, tornando realidade e ilusão uma coisa só, mesclando-se ao mundo

particular de Manuelzão, permitindo-lhe sonhar possibilidades mais aprazíveis, mesmo se

considerados os fatos que o cercam. Como um bom ouvinte, Manuelzão se vê na narrativa de

velho Camilo; os gestos e a eloquência de que Camilo se utiliza para falar sobre o vaqueiro e

o filho que herdara seu cavalo, fatalmente conduzem sua percepção para si, realizando a

revisão da postura adotada em relação ao seu filho Adelço, para reordenar uma parte

importante de sua história e mostra-lhe que, tal qual na narrativa A Destemida, o ―vilão‖ que

poderá realizar-se na figura de Adelço não o será obrigatoriamente verdadeiro, muito pelo

contrário; longe de uma vontade latente de Manuelzão em confirmar o caráter duvidoso do

filho, seja pelo desejo desperto por Leonísia, seja por uma cisma preconceituosa sobre

Adelço, a verdade exposta com o auxílio da fantasia rearranja impressões e percepões

aparentemente solidificadas.

De daí, á gente, agora me venham, para perto, e queiram, todo o mundo a

escutar. Ao velho Camilo de gandavo, mas saído em outro Velho Camilo,

121

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 228-229.

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sobremente, com avoada cabeça, com senso forte. Venham, minha gente, e

os outros, pessôas, meus bons vaqueiros de campo, hóspedes de minha

seriedade.

— ―Diz-que-direi sucedeu... Nas terras do homem real... Os que expe-

rimentavam poder amontar no cavalo, logo frouxavam êle pelos campos.

Êles não güentavam carreira dêle... O cavalo ficou gordo. O cavalo do finado

homem — que era encantado...‖

— É o Romanço do Boi Bonito!

— É a Décima do Boi e do Cavalo!...

No passo em que velho Camilo narra o Romanço do Boi Bonito, Manuelzão demonstra

um crescente entusiasmo que ganha proporções a cada verso dito por Camilo, — note-se, na

citação, a mudança de entonação ao proclamar Camilo; antes um ―velho‖, agora, enquanto

narra a estória, o ―Velho‖ — e como em um redescobrir, sentidos, conclusões, expectativas e

sonhos são realocados, ganhando ou perdendo importância, para, em seguida, explodirem em

uma incomensurável sensação de reviver, algo inversamente proprocional ao que vemos

descrito logo no início da trama, quando Manuelzão se materializou como um avesso sobre o

conhecimento proporcionado pela palavra oralizada.

Velho Camilo, tal qual Joana Xaviel, torna-se indispensável à realização da festa, pois a

capacidade genuína de se realizar como o centro das atenções naquele momento,

contravertendo até mesmo aqueles que riram dele a príncipio; a ―estória de Velho Camilo vem

alçada nesse dom único do ser humano de se reinventar; desfazer e novamente revelar a

história com a palavra, apenas; daí, entende-se que o verbo — a importância dada à parábola

citada na epígrafe contida no início dessa Dissertação de Mestrado, retirada do Livro dos

Salmos, — em que ele faz uso de palavras características que abrem a contação da história e

delimitam o início de fato da narrativa, realiza-se na ―palavra‖ como o ato humano capaz de

desencadear percepções, ―criar mundos‖ e satisfazer sentimentos.

O mundo de Manuelzão é recriado com a palavra de velho Camilo, ―— Quando tudo era

falante... No centro dêste sertão e de todos. Havia o homem [...]‖122

Manuelzão se vê como o

homem, o próprio vaqueiro de O Romanço do Boi Bonito. O desprendimento de sua realidade

para um lugar que lhe permite conjecturar sobre o que se passa na Samarra faz surgir no filho

Adelço o aceno de uma trégua, concomitante à vontade de compartilhar com este tudo o que é

destinado a um pai: compreensão, dedicação e amor.

A ―palavra‖ dita desconstrói e redimensiona verdades aparentemente consolidadas,

fazendo daquilo que se julgava longe de se tornar possível, como os ―finais felizes‖ das

122

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 230.

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estórias ou mesmo o mito do herói, uma concepção plausível, ainda que apenas no plano

imaginário, tornando sonho em realidade:

Havia o homem — a coroa e o rei do reino — sôbre grande e ilustre

fazenda, senhor de cabedal e possanças, barba branca pra coçar. Largos

campos, fim das terras, essas províncias de serra, pastagens de vacaria, o

urro dos marruás. A Fazenda Lei do Mundo, no campo do Seu Pensar...

Velho homem morreu, ficou o herdeiro filho...

... Nos pastos mais de longe da Fazenda, vevia um boi, que era o Boi

Bonito, vaqueiro nenhum não agüentava trazer no curral...

O sinal dêsse boi era: branco leite, côr de flôr. Não tinha marca de ferro.

Chifres de bom parecer. Nos verdes onde pastava, tantos pássaros a

cantar.123

Já no fim da novela, com a narrativa O Romanço do Boi Bonito, pode-se afirmar que a

história de Manuelzão enfim será versada pelo amor. Na contação, de que se faz uso da

palavra para a sua realização, a vida que já dava a impressão de perder o ―viço‖, é redefinida,

transformando a realidade em estória; a amargura em um amor vivo, capaz de impulsionar o

velho vaqueiro a ―montar o cavalo‖, não como o pai, que morre e deixa o cavalo encantado

por ser montado por um vaqueiro habilitado em O Romanço do Boi Bonito, mas por aquele

que, afinal, seria capaz de colocar o laço no Boi. E quem estaria habilitado a montar o cavalo

encantado? Para Manuelzão, assim como para qualquer ouvinte ou leitor que se permite

envolver pela história lida ou narrada, o herói sempre é obtido na imagem daquele que o

imagina, nesse caso, Manuelzão. Ele é o herói de sua própria história, por isso tudo está

indefinido no início, diferentemente do final, onde, se não há certeza, pode-se dizer que pelo

menos reina o amor pela vida.

Não se pode deixar de atribuir à literatura oral o seu devido valor, essa ―vertente‖ da

transmissão de sabedoria, — até mesmo por ter um cunho popular — deve ser devidamente

reconhecida, pois todas as possíveis formas de se instituir a transmissão de determinado

conhecimento, começou de forma oral; pela palavra — parole qui doit, en même temps qu‘elle lui

parle, créer un interlocuteur capable de l‘entendre124, como explana Jauss em A História da

Literatura como provocação à teoria literária — pelo ato simples de se comunicar, faz-se a

história. ―O processo de efetivação dessa herança cultural se deu pela tradição oral

(mecanismo da oralidade) [...]‖125

e, no caso do leitor, pela leitura dos diversos títulos que ele

tenha tido a possibilidade de ler.

123

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 230. 124

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli.

São Paulo: Ática, 1994, p.25. 125

ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984, p. 82.

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―Uma estória de amor‖ é a história contada com palavras escritas, que se realiza como

um simulacro da vida de quem a lê, mas que também pode ser a própria narrativa do leitor;

como uma fotografia, lembre o percurso desse ser que frui a obra e que deverá, dessa maneira,

perceber um pouco de sua realidade no ficcional. A Donzela guerreira, A Destemida e o

Romanço do Boi Bonito podem ser tidos como fases de uma vida inteira, ou como que

dotados de uma ―cor‖ diferente em cada momento que são lidos ou ouvidos, pois seus

conteúdos, como já demonstrado aqui não estão limitados a uma fronteira, eles tornaram-se

universais por algo muito maior: percepção; e isso fica muito claro na obra de Guimarães

Rosa, seja no caso de A Donzela guerreira, que está claramente vinculado à obra-prima

Grande sertão: veredas, — mas com suas minudências particulares — seja em A Destemida,

que desfaz a ideia de moral, reinventa a concepção de desfecho e torna-se genuína, ou ainda o

Romanço do Boi Bonito, com sua beleza peculiar, demonstrando não só o poder, mas a beleza

da palavra.

À literatura popular, à literatura de cordel, aos pliegos sueltos de Espanha, à

littérature du colportage em França, aos chap-books em Inglaterra,

considerava Fernando de Castro Pires de Lima ‗uma arte superior, que tanta

influência exerceu na secura palaciana, dando assunto para muitas obras

celébres de insignes cultores das letras‘. Do mesmo modo Teófilo Braga

[sic] pôs em relevo a importância étnica e histórica dessa literatura especial

de livros populares, profusamente lidos, profusamente conhecidos e

espraiados por vilas e cidades, pelos campos, como mágico instrumento de

diversão do povo e cujas ressonâncias, não obstante toda evolução cultural e

técnica do homem, ainda hoje podem ser constatadas através de pesquisas de

campo. A literatura de cordel cobria vasta área de fatos, casos acontecidos,

touradas, amores contrariados, festas de casamento, crimes, autos de

escritores quinhentistas ‗ou das novelas de cavalaria, no que uns e outros

podiam satisfazer o gosto popular‘.126

A literatura oral, seja no exemplo do cordel, das novelas de cavalaria, nos repentes, etc.,

precede o registro literário posto em lauda, isso está bem claro na trajetória de Guimarães

Rosa ao longo de sua carreira literária. Desde o momento em que o escritor mineiro deixa seu

posto no Ministério das Relações Exteriores para tanger boi pelos rincões do sertão de Minas

Gerais, fica perceptível que tal qual Teófilo Braga, Guimarães Rosa se empenhará nessa

aventura — inédita para a época — de registrar os relatos orais dos vaqueiros, ou seja, a

contação de estórias, registradas nas suas cadernetas; a diferença em relação a Teófilo Braga

reside no fato de Guimarães Rosa ―pôr em ata‖ a versão do povo, com a forma de falar do

povo, o ponto de vista do homem rústico, simples; ao invés de buscar, apenas, a versão

considerada oficial — isso quando havia uma, é claro — . Rosa se ocupou de desvelar toda a

126

ARROYO, Leonardo. A cultura popular em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1984, p. 85.

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oficialidade das histórias, para torná-las ―estórias‖, como parece claro em suas obras.

Acompanhando a boiada de Manuel Nardy [o vaqueiro que teria inspirado

Guimarães Rosa a compor a personagem Manuelzão] pelo interior de Minas

Gerais em 1952, Guimarães Rosa mergulhou no universo das histórias que

ouvia desde menino. Dez dias montado em lombo de cavalo, caderneta presa

ao pescoço, Rosa foi anotando com sua letra miúda observações sobre a

fauna, flora, costumes e falas, assim como as histórias, cantos e danças

daqueles homens do sertão.127

Dessa miscelânea de impressões, olhares e sentimentos nasceram as novelas, contos e

romances que, passados mais de cinquenta anos, instigam desde o mais jovem até o leitor

dotado de toda a experiência que o ato da leitura possa proporcionar ao mais experiente crítico

literário. A escolha das narrativas que ilustram ―Uma estória de amor‖, se não proposital,

pode-se dizer que se aproximaram consideravelmente da perfeição. Cada uma das três estórias

que intentamos analisar aqui realiza um função específica para o todo da obra, e o que ainda

fica envolto por algum questionamente é devidamente esclarecido com o ―arremate‖ — com a

licença do termo — adequada à compreensão do texto: as cantigas. Estas pequenas estórias,

partes menores do universo ficcional contido em ―Uma estória de amor‖, servem à

compreensão não apenas do texto literário, mas ao complemento da própria narrativa, que é

devidamente alicerçada com a adição dessas canções.

Não dava para o amor. Por certo ainda podia se casar, tinha forças e parecer

para isso? Soubesse de achar uma môça da igualha de formosura, da

simpatia de Leonísia, sim, casava. Mas — doideiras! — idades passadas,

emperro, falta de costume — já estava desconsentido para casamento. E...

era uma vez uma vaca Vitória: caiu no buraco — e começa outra estória... e

era uma vez urna vaca Tereza: saíu do buraco — e a estória era a mesma...

Um amor está no descampadal do ar, noite das frutas, no duro do chão onde

minha boiada pasta. O de-vir, que não se sabe. Queria saber de mim? Errou a

vida? Ia seguir trabalho de ser, adiante viver para os netinhos, êsses cresciam

tendo mais, conhecendo. O meu, em meus melhores!128

As cantigas têm um valor tão considerável quanto as histórias, apesar de seus autores

não serem nomeados. São como os ―pontos‖ ausentes, continuações de pensamentos, que

ficam por concluir; os principais questionamentos contidos em ―Uma estória de amor‖ — a

velhice e a solidão, por exemplo — não são concluídos, mesmo com as cantigas, mas são,

pelo menos, direcionados para uma possível moral. Observe-se a citação anterior, onde consta

uma cantiga, possivelmente, entoado durante as ponderações de Manuelzão sobre a sua

127

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 105. 128

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 186.

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condição social de continuar solteiro às proximidades da morte.

Pode-se dizer que a canção colocada no exato momento em que Manuelzão pondera

sobre as irrealizações do amor em sua vida, onde ele deixa muito clara a preferência por uma

mulher, se ainda houvesse de contrair matrimônio ou mesmo simplesmente se amasiar, a

escolhida teria de ter o perfil de Leonísia, se não, melhor seria continuar só — no sentido de

encontrar um par feminino —, pois como o próprio parece conformar-se após a cantiga, o

amor para ele, Manuelzão, está no pasto, no trato da fazenda, nos animais, etc., se o mesmo

não se realiza, então tudo estaria remediado de qualquer forma, ao passo que, da cantiga pode-

se dizer que se a vaca — uma escolha — cai em um buraco, que se comece outra história, pois

quando ela cair novamente a história será a mesma.

Guimarães Rosa coleciona citações, fotos, desenhos, listas de palavras,

recortes de jornal — registros de um trabalho artesanal acumulado em

cadernos e pastas, fragmentos do real prontos a se articularem em novas

constelações de significados. É desse grande baú que saem as histórias,

quadras e danças que entram na composição do tecido narrativo de ‗Uma

estória de amor‘. Rosa traduz esse mundo da oralidade, recuperando a fala

arcaizante na construção de sua narrativa escrita, e reirtera um procedimento

que é característico de sua obra — a intervenção de narrativas no corpo de

seu texto que, reatualizadas, têm a função de abrir as portas para a revelação

do significado daquilo que se narra.129

Guimarães Rosa soube, como nenhum outro autor de Língua Portuguesa, estabelecer

um diálogo entre a literatura consagrada e o recente legado modernista ou pós-modernista,

como muitos o consideram; o passeio traçado pelo autor, costurando de forma tão precisa as

cantigas e estórias com a história de Manuelzão ganha linearidade mesmo nos momentos em

que a novela descreve a contradição do discurso ou não demonstra, com clareza, a ligação

entre os versos de uma breve cantiga e o enredo da história de Manuelzão; mesmo nesse

momento, as cantigas podem funcionar como artifícios que emprestam ao texto o ―oxigênio‖

que vez ou outra parece rarear, para, desse modo, trazer-lá outra vez à discussão, despertar,

mesmo que sutilmente o mote de todos as questões estabelecidas na obra. Assim, mesmo a

mais simples cantiga, a menor de todas as canções contidas no texto, não fora adicionada à

novela aleatoriamente, muito pelo contrário, a função de cada uma dessas canções está

diretamente ligado ao todo da narrativa e significara, a seu tempo, alguma reflexão, um

pensamento, ou a reminiscência de algum ensaio que levará aos questionamentos de

Manuelzão, o vaqueiro eleito dentro todas as personagens contidas em ―Uma estória de

amor‖, como o foco da narrativa em questão.

129

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 107-108.

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Mas se sabe que cada pássaro fala, diz uma coisa, no canto que é seu, e

ninguém não entende. Um passarinho, que há, de vereda, aquêle que é pardo

pedresado, e com umas pintas, e é do tamanho de uma juriti, mesmo um

pouco menor, mas de bico comprido — por exemplo; fica em beira de pôço,

beira de vereda, não canta de dia, nem de dia é ninguém não vê êle canta de

bôca-da-noite até à meia-noite, os veredeiros gostam dêle lá, porque canta

esprivitado: — ―Água só!... Água só!...‖ Bonito êle não é. Mas, nas águas,

quando está vesprando chuva, êle canta muito, e viaja pra fora, vem até no

duro dos Gerais, nas chapadas. E os geralistas não gostam, porque dizem que

êle canta é: — ―Reza, povo! Reza povo!...‖ E então, também tem vez, mas

muito em raro, que êsse pássaro dá de aparecer mesmo até cá no Baixio, e a

gente ouve que êle não fala nada, de juízo, ou então perdeu o significado, o

que êle diz é assim: — ―E tiriririri-chó-chó-chó, cháo-chó, cháo-chóo!...‖ A

ver: ô mundo, esta vida, quando descansa de ser ruim, é até engraçada. A

festa? Sua era, dêle, Manuelzão.130

De ―água só‖, para ―reza povo‖ até chegar em ―tiriririri-chó [...]‖, o passarinho descrito

pelo narrador repete a ação do cantador, que da primeira versão audita de uma canção até a

última, acaba por compor outra música, uma melodia nova, modelada ao gosto do que a

atualidade lhe exige; dando assim o devido ―descanso‖ aos ouvidos, isso pode ser fruído,

mesmo em uma época que já padeça de um aprendizado que leva muitos a se acostumarem

com a mais vil ruindade humana, para se tornar, então, engraçada ao gosto do dono da festa,

porém, o engraçado aqui não diz respeito, por exemplo, ao riso dos que não tendo o que fazer

apelam desesperadamente, como se quisessem ver uma anedota em cada momento da vida,

mas o riso de fruição, satisfação por compreender, por exemplo, que determinadas situações

criadas pelo homem acabam tornando-se ridículas por suas finalidades, realizando-se cômicas

pelo tempo e discussão empreendidos em um projeto fadado à condição obsoleta de se tornar

ultrapassado.

E a quem mais se pode considerar como sendo o dono da Samarra em ―Uma estória de

amor‖ — lembrado e citado pelo próprio narrador, em detrimento até mesmo do verdadeiro

dono, Federico Freire — que não o próprio Manuelzão? Sim, afinal ele é o dono instituído da

Samarra, a ele são reverenciadas todas às honras da construção da capelinha de Nossa

Senhora do Perpétuo Socorro; é ao gosto de Manuelzão que a música tocará, pois ele está no

início de toda a permissão dada para a realização do evento; Federico Freire existe como um

nome no papel, pois dono eleito pelos vaqueiros, pelos visitantes, pelos contadores e pelos

cantadores é Manuelzão. Mesmo o passarinho canta à realização do vaqueiro; seu brevíssimo

―concerto‖ age de forma tão significativa à percepção do capataz quanto qualquer estória ou

130

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 188.

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cantiga, despertando-o a um de seus maiores entraves ao longo de toda a narrativa: aceitar o

que há de mal na natureza humana como algo tão presente e verdadeiro quanto à capacidade

do mesmo homem em se tornar bom.

O universo da oralidade intervém de diversas formas no espaço dos três dias

de festa na Samarra. Ele está presente nos cantos e quadras — uma espécie

de crônica da vida do povo que chega à fazenda; na sabedoria cristalizada

dos aforismos, frases rimadas e provérbios que, repositórios que são do

senso comum, comentam aspectos e práticas da vida dessas pessoas; ele está

presente, sobretudo, na fina rede de histórias que forma o substrato de ‗Uma

estória de amor‘.131

Substrato do qual emerge toda a natureza de reminicências, pensamentos e atos; os

cantos, tal qual os contos puxam para fora o que pode haver de mais contido em cada uma das

personagens que ouvem as cantigas e a contação de estórias. Para Manuelzão, a ação dessas

―crônicas da vida do povo‖ são como sinos — talvez os sinos que faltem a capelinha, carente

de um apenas — sons, ruídos, que traduzidos em vozes redirecionam uma gama de

convicções, tornando-as não mais certezas, mas no máximo possibilidades do que poderia ter

sido a vida de Manuelzão. O ecoar dessas cantigas pelas mais íntimas lembranças do capataz

o conduzirão por caminhos que talvez ele já não pensara transitar novamente, trazendo à

memória o pai e seu comportamento ensimesmado, o filho e tudo o que envolvera o seu

nascimento até ele se tornar um adulto, a própria saída do Mim, como se dessa ―fuga‖

nascesse um outro Manuelzão; todos esses elementos não vêm à tona sem algo que os

desencadeie; as cantigas, tal qual as estórias, remexem num passado que se julgava superado;

revolvem histórias, atualizando-as em contextos completamente diferentes daquele no qual

foram vividas no passado:

Êle, Manuel J. Roíz, vivera lidando com a continuação, desde o simples de

menino. Varara nas águas. Boiadeiro em cima da sela, dando altas

despedidas, sabendo saudade em beira de fôgo, frias noites, nos ranchos. Até

para sofrer, a gente carece de quietação. Para sofrer com capricho,

acondicionado, no campo de se rever. Viageiro vai adiando. Só o mêdo da

miséria do uso — um mêdo constante, acordado e dormindo, anoitecendo,

amanhecendo. Já o pai de Manuelzão tinha sido roceiro, pobrezinho, no

Mim, na Mata. Tôdas terras tão diferentes, tão longe daqui, tão diferente

tudo, muita qualidade dos bichos, os paus, os pássaros. Mas o pai de

Manuelzão concordava de ser pobre, instruído nas resignações; êle

trabalhava e se divertia olhando só para o chão, em noitinha sentava para

fumar um cigarro, na porta da choupana, e cuspia muito. Tinha mêdo até do

Céu. Morreu.

De desde menino, no buraco da miséria. Divisou a lida com gado, transitar

131

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 116-117.

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as boiadas. Mas, agora, viera bem chegado, àquele aberto sertão, onde havia

de se acrescentar, onde esquecia os passados.132

Diferentemente do que se possa julgar, o que Manuelzão não deseja jamais, mesmo se

dando conta da proximidade do fim, é morrer, não como o pai. Ele, Manuelzão, afinal, havia

aprendido o que era estar no ―buraco da miséria‖, não tinha porquê desejar voltar aos tempos

do Mim; lembrar tudo aquilo não funcionava como um lampejo de saudade daquele tempo,

mas como a certeza de que, se ele não conseguiu tudo o que poderia e deveria conseguir com

tanto trabalho durante a vida toda, pelo menos ele conseguira sair de uma condição;

Manuelzão alcançara, enfim, um estado de consciência que lhe permite adicionar um ponto ao

seu próprio conto, possibilitando à própria vida, se não o conto de fadas, ou mesmo algo

parecido com a bela estória contada por Camilo, O Romanço do Boi Bonito, imprimir a sua

versão dos ―sons‖, uma variante bem diferente de tudo o que qualquer percalço do destino

tentara impor-lhe.

As cantigas e os contos não servem como mecanismos para anular as más lembranças

de um tempo de miséria ou a atual condição solitária e de saúde debilitada, na verdade essas

intervenções das mais variadas personagens, sejam às nomeadas, como Joana Xaviel e velho

Camilo, sejam os anônimos cantadores, essas pequenas estórias somam-se à história presente

e demonstram o quão Manuelzão ainda pode fazer por si, dando os seus próprios ―acordes‖ à

música da sua vida, ou adicionando os elementos que mais lhe satisfaçam, para realizar o seu

percurso, seja na fazenda de Federico freire ou em sua pretensa futura fazenda, com o amor

que ele acredite merecer, escrevendo a história com todos os elementos que nesse presente só

podem ser alcançados pela audição dos cantos e dos contos.

3.2. “Lérias, letras” antes e depois da festa

Várias questões acerca do porquê de Manuelzão despertar para os acontecimentos que

determinam a história da sua vida, justamente durante a festa de inauguração da Samarra,

podem ser levantadas a partir da função dos contadores de histórias dentro da novela ―Uma

estória de amor‖ — já dissertamos sobre a importância do contador de histórias para a

ressignificação dos fatos que precederam e que sucedem o momento em que Manuelzão se vê

diante das questões que surgirão durante a festa —, porém, notam-se aqui dois períodos que

talvez determinem e desencadeiem no velho vaqueiro a perplexidade e a fragilidade descritas

132

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 160-161.

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na epígrafe; ocasiões que mesmo imbuídas, em parte, de uma aura ora turva ora dotada de um

exagero extremado, fazem-se reais para Manuelzão quase simultaneamente, falamos dos

vários sentimentos — amor, ódio, inveja, piedade, etc. — que imprimem tons ora

melancólicos ora eufóricos nos instantes que precedem e sucedem a festa.

Dessa convivênvia com os vaqueiros, com seu mundo, seus costumes e

imaginário, Rosa criou ‗Uma estória de amor‘ — a narrativa da festa da

fundação da fazenda Samarra, organizada por seu capataz Manuel Jesus

Rodrigues, o Manuelzão. Povoado por velhos contadores de histórias,

romeiros, dançarinos e tocadores de sanfona, o conto entrelaça no seu tecido

narrativo toda uma tradição oral oriunda da memória e do saber coletivos,

incorporando fragmentos de Donzela guerreira e romances de boi, quadras e

cantigas de viola, e os faz conviver, no espaço da festa, com a perplexidade e

fragilidade de um personagem central que, já velho, busca um sentido e uma

explicação para sua vida.133

Como está colocado na citação anterior, Sandra Vasconcelos se refere ao sertão descrito

por Guimarães Rosa como o lugar onde se estabelece uma tradição oral que provém da

memória e da aquisição de um conhecimento coletivo, e que recria um espaço propício ao

imaginário, o qual se faz ―palco‖ para os mais variados sentimentos, personalidades,

discussões e pensamentos. Tais ―atores‖ desse palco tão rico propiciam aos personagens em

―Uma estória de amor‖, principalmente a Manuelzão, um embate quase ininterrupto com o

que é mais essencial ao ser humano: os sentimentos. ―As narrativas dentro da narrativa

exercem sempre um papel iluminador, pois se constituem em portadoras de um segredo ou de

um enigma que, ao se contar, oferece a possibilidade de decifração do sentido de uma vida‖

[...]134

.

Decifração que se dá em alguns instantes particulares — ao visionar o trabalho das

mulheres na capelinha, por exemplo, o que o faz pensar que sua presença física não é tão

imprescindível quanto imaginara — e que ocorre de uma forma tão singular, retornando com

os contos e as cantigas para fazer lembrar, para desencadear tristezas e despertar exagerados

momentos de felicidade contidos nas reminiscências de Manuelzão, aparecendo na história

continente às ―estórias‖ como aspectos necessários para a compreensão de pelo menos parte,

mesmo ínfima, do todo. Ao buscar um sentido para sua vida, o velho vaqueiro encontra,

inevitavelmente, secretos ―fantasmas‖ habitando o físico e o imaginário na Samarra, pois as

lembranças da infância, a consciência do presente e a percepção do futuro conduzem-no a um

encontro consigo; reavivam memórias que se não o modificam, mobilizam-no a seguir em

133

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 106. 134

Idem, ibidem, p. 108.

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frente, agora, mais do que antes, tendo vivo na memória o passado; isso se dá, em grande

parte, pela intervenção das ―estórias‖ cantadas e contadas, que parecem encontrar na fazenda

o lugar perfeito para desencadear tais lembranças.

A audição dos contos e das cantigas, as ―narrativas dentro da narrativa‖, adentram os

pensamentos de Manuelzão, e arrancam de si a reflexão sobre tudo o que lhe acontecera até

aquele evento — a festa —, levando-o a rememorar a convivência com o pai, a possível

infelicidade de sua mãe e os motivos que conduziram o próprio Manuelzão ao estado de

coisas em que se demonstra a certa altura da narrativa. ―A pré-orientação de nossa experiência

por intermédio do poder criativo da literatura repousa não apenas em seu caráter artístico, que,

através de uma forma nova, auxilia-nos a romper o automatismo da percepção cotidiana

[...]‖135

mas, de acordo com Jauss, na capacidade interpretativa do próprio leitor. Nesse

caráter dialógico existente entre livro e leitor, que em ―Uma estória de amor‖ se observa com

a personagem Manuelzão e os contadores e cantadores de histórias, na descrição das

reminiscências que o farão melancólico ou as emoções que despertarão em si alguma euforia,

reside o veio condutor das lembranças de Manuelzão, pois é desse instante dual entre o

perceber e o interpretar que se realizará o aplicar suscitado por Jauss em A História da

Literatura como provocação à teoria literária.

É esse caráter dialógico da obra literária que explica por que razão o saber

filológico pode apenas consistir na continuada confrontação com o texto, não

devendo congelar-se num saber acerca de fatos. O saber filológico permane-

ce sempre vinculado à interpretação, e esta precisa ter por meta,

paralelamente ao conhecimento de seu objeto, refletir e descrever a

consumação desse conhecimento como momento de uma nova

compreensão.136

Esse momento é percebido em ―Uma estória de amor‖, em quase todos os instante, por

intervenção das palavras dos contadores de histórias, especialmente de velho Camilo, com

quem melancolia e euforia ocorrem de forma simultânea, e de quem vemos emoções serem

desencadeadas apenas por suas lembranças, o que termina por despertar Manuelzão para a sua

própria realidade. Eis que velho Camilo parece refletir uma imagem para Manuelzão que

confronta boa parte do que ele gostaria de ser — livre das más coisas do mundo, em honra a

memória de Dona Quilina, sua mãe, por exemplo —, com o que mais repugna tornar-se — um

idoso qualquer, solitário, sem ter quem lhe queira bem em especial —, assim, ao contemplar

velho Camilo na contação de suas histórias, Manuelzão percebe um raro instante em que o

135

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli.

São Paulo: Ática, 1994, p. 52. 136

Idem, ibidem, p. 25.

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idoso pode abrigar em si pureza e alguma notoriedade, levando-o, mesmo diante do

pessimismo em relação às atitudes humanas, a prestigiar e reconher o que é narrado por

Camilo durante a festa, como se Manuelzão fizesse parte daquele breve reconhecimento

legado ao velho contador de histórias.

Manuelzão não o procurara ver: mas, à luz, redondã, de uma daquelas velas,

a cara do velho Camilo se descobria, dobrada sua palidez, diferido. Sem ser

forte, mas com voz conhecível, êle também cantava.

Nem era de não se saber que êle podia cantar e competia, por si, os assuntos

— que era só alguém pedir, e êle desplantava de recitar, em qualquer dia de

serviço, ali no eirado, à beira de um cocho: — ‗O bicho que tem no campo, o

melhor é sariema: que parece com as meninas, roxeando as côr morena...‘

Sempre não sorria, nunca, e mesmo rir não ria; teria constantemente receio

de que o tomassem por menos. [...] ‗Suspiro rompe parede, rompe peito

acautelado; também rompe coração, trancado e acadeado...‘ Um que

ouvindo, glosava: — ‗Isso êle decifra de ideia...‘ Mas não tirava de ideia,

não, não desinventava. Aprendera, em qualquer parte. Aqui e ali, pegara

essas lérias, letras, alegres ou tristes, pelas voltas do mundo, essas guardara

[...] Por umas e outras, em nenhuma não se sentia que elas assoprassem da

lembrança cenas passadas, que fossem só dêle, velho Camilo — que já tinha

sido môço, em outras terras, no meio de tantas pessoas. [...] O velho Camilo

instruía as letras, mas que não comportava por dentro, não construía a cara

dos outros no espelho. Só se a gente guardasse de retentiva cada pé-de-verso,

então mais tarde era que se achava o querer solerte das palavras, vindo de

longe, de dentro da gente mesmo. — ‗O bicho que tem no mato, o melhor é

pass‘o-prêto: todo vestido de luto, assim mesmo sastifeito...‘ As quadras

viviam em redor da gente, suas pessôas, sem se poder pegar, mas que nunca

morriam, como as das estórias. Cada cantiga era uma estória.137

Cada ―estória‖ remete à história, fazendo de Manuelzão uma espécie de leitor de sua

própria narrativa. Ao rememorar o passado, visionando o presente, Manuelzão suspende os

planos para o futuro, momentaneamente, e desprende-se da constante arquitetação de seu

cotidiano. Dessa apreensão caótica sobre sua existência, algumas lembranças confirmarão

impressões — a subserviência de seu pai, que pouco fizera em benefício próprio, por exemplo

—, e algumas impressões colocarão resquícios de harmonia na condição fatídica de

Manuelzão não poder modificar seu destino de maneira que assegure uma velhice mais

tranquila. Os imediatos acontecimentos ao longo da festa — o transitar dos forasteiros pela

Samarra, muitas vezes, sem tomarem conhecimento sobre a importância de Manuelzão, por

exemplo — o fará compreender o fato de que o controle que ele pensara ter sobre a fazenda,

na realidade de nada servirá para modificar de alguma maneira a sua vida.

Velho Camilo lança à percepção de Manuelzão, apenas pela sua presença, as impressões

iniciais que o capataz compreenderá com mais exatidão ao ouvir as cantigas e as histórias. Ao

137

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 165-166. Aspas do original.

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notar que a experiência de Camilo, o seu conhecimento, aparentemente, tão pouco erúdito,

fora sendo adquirido ao longo de toda a sua vida, e que lérias, e letras foram contadas para o

velho contador em algum momento de seu passado, muito além da visão sobre a vida contada

por velho Camilo, a partir da apreensão dessas histórias, às vezes presuposta no rosto sofrido

do solitário idoso, essas mensagens ao serem percebidas por Manuelzão edificarão em si essa

espécie de ―conhecimento de mundo‖, a que se atribuem àqueles que demonstram sabedoria,

mesmo sem uma base inquestionável — a passagem por uma faculdade ou a leitura de muitos

livros, por exemplo; observe-se a aparência descrita tão serenamente do velho contador de

histórias, mesmo com todas as adversidades que possa ter vivido —, Camilo, que já tinha sido

moço, como Manuelzão também fora um dia, e que agora, tal qual Manuelzão, caminhava

para um momento crucial; velho Camilo ainda se permitia, como naquele momento da

contação de histórias, sonhar.

No caso do leitor, a leitura de ―Uma estória de amor‖ possivelmente o despertará para

cenas de sua vida. Como ocorre com vários leitores, aquele que se dispõe a ler a obra de

Guimarães Rosa não deixará de perceber durante a narrativa que o que recai sobre o destino

de Manuelzão — a constatação da proximidade da morte, principalmente — o fará pensar

sobre os possíveis acontecimentos que o conduziram a um estado de coisas só notadas nos

momentos em que são evidenciadas. O livro, a obra literária tem também essa função: fazer

despertar, provocar para fazer sair de um possível ―estado de acomodação‖, levando o leitor a

querer modificar algo que não lhe pareça mais apropriado.

As histórias e as cantigas contadas e cantadas ao longo da novela ―Uma estória de

amor‖, recriam uma visão de mundo e reordenam certezas passadas e perspectivas futuras,

para oferecerem ao leitor a nuance de um possível reinício, a tomada de um novo caminho, o

redirecionamento do destino. Velho Camilo e Joana Xaviel contam a Manuelzão e todos os

que lhes ouvem, versões de mundos e de vidas que levados para a realidade de quem os

ouvem, clareará aspectos de que o ininterrupto trabalho na fazenda pode ser suspenso por um

instante, para abrir espaço ao aprendizado que a simples predisposição de ouvir premia, isso

sem perder a noção da importância do trabalho também. As histórias contadas pelo velho

casal de narradores aparecem aqui como espelhos, que ficcionalmente refletirão o passado, o

presente e o futuro de Manuelzão; mas para o leitor, mais do que isso, realizar-se-á, depois da

leitura de ―Uma estória de amor‖, o que fica em suspenso no caso das personagens: a

possibilidade de aplicar o que se aprendera, reordenando escolhas, atos, para enfim, tornar-se

novo em suas concepções.

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A tradição e a arte de contar histórias se mantêm vivas em ‗Uma estória de

amor‘, principalmente por meio da presença marcante de dois velhos mestres

da narração. Reatualizando o arcaico no ambiente da festa, enlaçando a

matéria oral no tecido narrativo — espaço da escrita —, ou mostrando que o

ritmo do trabalho no campo ainda permite que se narrem histórias, ‗Uma

estória de amor‘ coloca em pauta a questão essencial da permanência das

velhas narrativas orais no imaginário individual e coletivo. [...] Assim, trata

do mundo das imagens que circulam no espaço do campo e falam de perto a

seus habitantes, criando um jogo de espelhos em que se refletem a

experiência do mundo sensível, a memória e o desejo.138

Jogo de espelhos que não refletirá a imagem perfeita, mas realidades passadas e futuras

que confluem em um turbilhão de emoções, ora desencadeando nostalgia ora euforia, para

provocar os sentidos de Manuelzão e tirá-lo de uma impassibilidade travestida de rotina, que o

conduzira à solidão temida desde o início da narrativa. Desse modo, se não é o principal

motivo, a audição das narrativas e das cantigas faz Manuelzão pensar em sua própria condição

a ponto de não parecer absurdo encontrar semelhanças entre o seu destino e o do pai, que ao

longo da vida, de acordo com a perspectiva de Manuelzão, não fizera nada pela melhoria de

sua existência. Manuelzão se questiona sobre o desfecho do destino de seu pai, mas,

certamente, muito mais pode ser lido nas entrelinhas dessa indagação, por exemplo: por que

ele, Manuelzão, nesse ―vira-mundo‖, pareceu girar e girar, para terminar quase do mesmo

jeito que o pai, como se nada o pudesse impedir de confirmar a infabilidade de uma sentença:

‗Eh, mundão! Quem me mata é Deus, quem me come é o chão!...‘ — como no

truque. Arre, o ruim, o duro da vida, é da gente. Não se destroca. Tudo tinha

de ir junto. Como no canto do vaqueiro:

‗— Eu mais o meu companheiro

vamos bem emparelhado:

eu me chamo Vira-Mundo,

e êle é Mundo-Virado...‘139

Velho Camilo, Manuelzão e seu pai — ressalte-se, que o pai de Manuelzão é citado,

mas não tem o nome revelado no decorrer de toda a narrativa — parecem ―emparelhar-se‖

naquele instante de seus destinos que definirá a condição social que os três estarão submetidos

até o fim de suas vidas. Para Manuelzão esse ―fim‖ poderia ser diferente, e não é difícil

concluir que ao ouvir as histórias, as cantigas, como a citada acima, essas indagações

ressurjam em sua memória, mesmo que ele as tenha evitado o quanto pode. O fato de ter

trabalhado ininterruptamente, de ter feito, de alguma forma, as coisas diferentes de seu pai, e

de ter se empregado como capataz, diferente de Camilo, nenhum desses artifícios contribuíra

138

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 109. 139

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 162. Aspas do original.

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para ser exaltado por Manuelzão como o grande motivo ou a justificativa para as suas

escolhas. Os cursos pelos quais seu destino seguira, determinaram o sentido de cada escolha

ao longo de sua existência até aquele momento, a realização da festa.

Desse modo, memória e desejo, muitas vezes se confluem, desaguando nos mais

variados sentimentos. Se, de um lado, observamos um Manuelzão que se tole, por não

conseguir se desprender de comparações com os fracassos do pai, por outro lado há ―‗Manuel

Jesus Rodrigues‘ — Manuelzão J. Roíz‖140

, homem cheio de desejos, sonhos e pretensões. —

essas características que desenham Manuelzão de uma forma ativa já foram levantadas nos

capítulos anteriores e fazem referência, principalmente, a um desejo não evidenciado de

Manuelzão pela nora, Leonísia; ao sonho de possuir sua propriedade e a vontade de se tornar

seu próprio patrão — da irrealização desses desejos almejados por Manuelzão, a possibilidade

de que o velho vaqueiro não consegue se desprender daquele passado no lugar onde

provavelmente nascera, o Mim, torna-se aceita até pela forma como flui o desenrolar de sua

vida. O jovem Manuelzão, que, provavelmente, cedo saíra pelo sertão a procura de um

emprego, que ele julgava provir, futuramente, o alcance de todos os sonhos de uma infância

que talvez ele nem mais lembrasse em detalhes, voltava com as ―estórias‖, com as cantigas,

com as letras e com as lérias, mas jazia ao menor instante em que cada léria, letra, cantiga e

―estória‖ se realizava em um confronto com a verdade.

Um dia, em hora de não imaginar, [Manuelzão] falara à mãe: — ‗Aqui junto

falta é uma igreja... Ao menos um cruzeiro alteado...‘ Dissera isso, mas tão

sem rompante, tão de graça, que a mãe mais tarde nem recordou aquelas

palavras, quando ela criou a ideia da capelinha na chã. Dêsse jeito, as coisas

se emendavam. Depois, Manuelzão, quando era de estar esmorecido,

planejava a capela, a missa; quando em outros melhores ânimos, projetava a

festa. Muitos assuntos êle mesmo não sabia que nêles não queria pensar.

Mas aquela manância da grota, de ladeira abaixo suas águas, se acabara.141

Do planejamento de construção da capelinha em memória de Dona Quilina à execução

da obra, Manuelzão passará por um breve intervalo em que alguns prováveis acontecimentos

do cotidiano — o trabalho com os bois, a construção da fazenda e a própria manutenção da

ordem — o distanciaram de realizar aquela promessa feita para sua mãe, mas que também,

com o passar dos dias, foram cultivados por outros instantes — a morte de Dona Quilina e a

lembrança de promessas não cumpridas, que o remeteram a figura do pai, sempre recordado

como inexpressivo por não almejar mais do que lhe ofereciam os tantos patrões que tivera —,

140

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 140. Aspas do original. 141

Idem, ibidem, p. 149-150. Aspas do original.

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detalhes que o fizeram querer realizar aquele compromisso.

Assim a construção da igrejinha, consolida-se como a construção de uma promessa de

Manuelzão para a própria mãe; cada parede levantada termina soando como o sino que

inexistiu à frente da capela, — ―Uma ermida, com paredes de tapa-de-sebe, mas caiada e en-

telhada, barrada de vivo azul e tendo à testa a cruz. Nem um sino.‖142

— e cada ―soar‖ desse

sino sito na memória de Manuelzão, remete, de alguma forma, ao passado no Mim, para

conflitar felicidade e tristeza em um embate ininterrupto. ―Até para sofrer, a gente carece de

quietação. Para sofrer com capricho, acondicionado, no campo de se rever. Viageiro vai

adiando. Só o mêdo da miséria do uso — um mêdo constante, acordado e dormindo, anoi-

tecendo, amanhecendo. Já o pai de Manuelzão tinha sido roceiro, pobrezinho, no Mim, na

Mata.‖143

Mesmo nesses momentos, em que Manuelzão esteve envolvido por uma sensação

de melancolia quase tão grande quanto as ressignificações presentes nas histórias e cantigas

que ilustram e tematizam a festa, parece brotar dos pensamentos de Manuelzão a vontade de

promover a festa de inauguração da fazenda, como se isso se demonstrasse com a qualidade

de uma resposta contrária a toda má experiência vivida naquele passado.

Ao mesmo tempo em que um rio de lembranças ora tristes ora alegres parece secar, logo

Manuelzão procura motivos para encher outro, com boas, mas também com lembranças que

não o agradam tanto, para assim proseguir em suas funções na Samarra, pois mesmo aquela

rememoração sobre o pai que o tornava infeliz, de alguma forma o impulsina a querer

modificar esse destino, imprimindo, com atos aparentemente pequenos demais para as

questões que surgiam, a possibilidade de uma reação a sua apatia. Desses pensamentos com

os quais se vê envolto, a ideia de construção da capela ganha força, assim como a

aparentemente insólita ideia da festa.

A festa surgi como um grande divisor de momentos: havia o antes da festa de

inauguração da Samarra, com o ―por construir‖ do sonho de um mundo para Manuelzão, e

num momento posterior à construção da fazenda, há a impressão, com a realização da festa,

de que a inauguração da Samarra encerra, enfim, qualquer possível lembrança do passado no

Mim, mas não é exatamente isso que ocorre. Manuelzão dá permissão, apronta a capela,

ordena a seus subalternos que ajudem com os preparativos, argimenta a festa e o local de

acordo com suas conveniências, permitindo até mesmo a presença de estranhos, apenas para

abastecer de ―vida‖ a Samarra, mas nem com isso se pode assegurar que o Mim deixa de

142

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p 139. Grafia do autor. 143

Idem, ibidem, p 160. Grafia do autor.

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existir em suas lembranças.

A realidade que se demonstra com o decorrer da festa é que aquele passado no qual

habita seu pai jamais o abandonará. O Mim ressurge nas cantigas e nas ―estórias‖, e com

estas, nas lembranças de tudo o que lhe acontecera na Samarra. O episódio do riachinho que

seca, o filho Adelço, muito parecido com o pai de Manuelzão naquele jeito ―ensimesmado‖ e

as amarras da Samarra que envolvem o ser de Manuelzão como o anagrama do ―MIM‖ —

com os dois ―M‖ amarrando e encerrando o ―I‖ em um cerco, aparentemente, intransponível

—, apresentam-se no tempo atual como alavancas que o levam ao lugar de origem,

despertando-o para lembranças já consideradas superadas.

Ao se fixar num lugar — a Samarra — e constituir família, Manuelzão

reproduz a experiência paterna, mas num nível superior ao vivenciado por

seu pai. Dialeticamente, Manuelzão nega, conserva e supera o pai: nega, ao

sair de casa e tornar-se vaqueiro; conserva, ao fixar-se na Samarra e

constituir família; supera, ao tornar-se o ‗único dono visível‘ da Samarra.

Dono. Seu nome passa a ser largamente conhecido e respeitado, ao contrário

do pai, que nada tivera na vida, a não ser a sua força de trabalho, e que

morrera no mais obscuro anonimato.144

A festa de inauguração da Samarra enche de vida um leito que já aparenta exaustão. Se

Manuelzão não é capaz de vencer a sua natureza e transpor os inevitáveis sinais do fim, como

a concepção do riacho outrara tão robusto e findo ―lacrimal‖, a ideia da festa é lançada como

a pagação de uma promessa por antecipação: com um pouco mais de tempo, Manuelzão

demonstrará para todos que duvidaram de seu trabalho, a competência de seus atos. Por isso,

o fim da festa com o início da comitiva tende a se realizar como o desejo de um futuro

diferente; Manuelzão não repassa o toque da boiada para o filho Adelço como cogitara ao

longo da narrativa, pois ele mesmo comanda os vaqueiros e se põem a ―fluir‖ aquele rio como

se intentasse responder a si mesmo por aquele ato.

Por outro lado, Adelço, visto ao longo de toda a narrativa como uma figura comparável

ao pai de Manuelzão, termina eleito como um possível sucessor de suas funções na Samarra.

Todos esses aspectos, que volta e meia, no decorrer da narrativa são revistos e reavaliados por

Manuelzão, terminam, em determinado momento da novela, ligados de alguma forma aquele

célebre episódio do riacho que seca, com se tal cena, que nunca saíra da memória de

Manuelzão assumisse a função de recorrência a maneira como o ―rio‖ da vida de Manuelzão

seguira, de acordo com o curso que o vaqueiro escolhera dar para seu destino.

O conto, portanto, tem sua origem nesse episódio do riacho seco que pode,

144

RAMOS JR., José de Paula. Ira e amor de Manuelzão. Revista USP, São Paulo, n. 66, ago., p. 156-162, 2005.

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nesse sentido, ser descrito como arché, ou princípio de todas as coisas.

colocando-se sob o signo da falta, a narrativa nasce de um mistério e propõe

a imagem do riacho seco como enigma, cuja elucidação só terá lugar ao final

da festa. Manuelzão suspeita que, na verdade, a cessação do fluxo do riacho

é um sinal que a natureza lhe envia de que algo vai mal; sente que as forças

da natureza, incompreensíveis e estranhas, se contrapõem e se sobrepõem a

ele. De seu ponto de vista, trata-se de um acontecimento que introduz um

fermento de perturbação e uma ideia de dano à ordem do mundo. Nesse

momento de contato consigo mesmo, quando percebe sua profunda

fragilidade, Manuelzão forma a ideia da festa, móvel da própria narrativa.

Sem que o vaqueiro se dê conta, a festa é a resposta que consegue dar à

estranha linguagem da natureza, o que a reveste, portanto, do sentido ritual

de restaurar as fontes da vida que secaram.145

Assim, na parte final da narrativa, pode-se deduzir que Manuelzão intenta reordenar o

curso de seu destino, transpondo repressas, rearranjando ―personagens‖ de sua convivência

para tornar o seu estar na Samarra algo minimamente confortável. Mas a sensação de ausência

das forças que um dia lhe impuseram as matas que o cerceavam no Mim, parece insuperável

quando recuperadas de alguma maneira na concepção da Samarra. A chegada aqueles

campos, a derrubada da mata e toda a montagem da fazenda até o dia em que ele, Manuelzão,

escolhera para inaugurá-la, cada ato seu na construção da Samarra fora uma forma de

demonstrar algum domínio sobre aquela propriedade e dar um novo príncipio, um arché146

, à

disposição das coisas em sua vida. Tais tentativas de dominação, no final, surgiram como

amarras tão eficazes quanto a mata do Mim, e mantiveram Manuelzão sob um signo muito

próximo ao do pai, mesmo que ele tenha se esforçado para distanciar-se de um desfecho

considerado tão pequeno para as suas pretensões.

Adelço, no fim visto de uma forma até aceitável por Manuelzão, pode, já naquele

momento em que o velho vaqueiro aparenta não se importar mais, ser reconhecido não só

como a imagem do pai de Manuelzão, mas como o próprio, com o desfecho que parece haver

se tornado uma constante em sua família e que lhe mantem preso com amarras similares às do

145

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 113-114. 146

Para os filósofos pré-socráticos, a arché (ἀρχή; origem), seria um princípio que deveria estar presente em

todos os momentos da existência de todas as coisas; no início, no desenvolvimento e no fim de tudo. Princípio

pelo qual tudo vem a ser. Um dos pré-socráticos, Diógenes de Apolônia, explicou o raciocínio que levou os

filósofos desse período à ideia de arché: ―[...] Todas as coisas são diferenciações de uma mesma coisa e são a

mesma coisa. E isto é evidente. Porque se as coisas que são agora neste mundo — terra, água, ar e fogo e as

outras coisas que se manifestam neste mundo —, se alguma destas coisas fosse diferente de qualquer outra,

diferente em sua natureza própria e se não permanecesse a mesma coisa em suas muitas mudanças e

diferenciações, então não poderiam as coisas, de nenhuma maneira, misturar-se umas as outras, nem fazer bem

ou mal umas as outras, nem a planta poderia brotar da terra, nem um animal ou qualquer outra coisa vir a

existência, se todas as coisas não fossem compostas de modo a serem as mesmas. Todas as coisas nascem,

através de diferenciações, de uma mesma coisa, ora em uma forma, ora em outra, retomando sempre a mesma

coisa.‖ Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Arch%C3%A9>. Acesso em: 20 de dez. 2012.

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pai, Manuelzão, a um ―mim‖ do qual nem o pai, o filho e o avô foram capazes de se

desvencilhar. Esse ―eu‖ oblíquo, que tange os destinos dos dois homens que referenciam

Manuelzão, o apagado ―mim‖ se projeta como a possível concepção mais verdadeira do que

se reserva para o velho vaqueiro.

Essa imagem de vida sitiada é sugerida pela configuração geográfica de onde

nasceu Manuelzão, um lugar de gente muito pobre, que vivia numa planície

rodeada de montanhas. A própria forma gráfica do nome desse lugar —

MIM — funciona como um ícone, que representa o indivíduo, ‗I‘,

emparedado pelos montanhosos ‗MM‘. Note-se que o topônimo em questão

é um palíndromo, o que reforça a sugestão de confinamento sem saída.

Também não se pode esquecer que, gramaticalmente, ‗mim‘ é um pronome

pessoal, forma oblíqua de ‗eu‘. Tudo isso sugere, obliquamente, que o ‗eu‘

(Manuelzão), nascido em Mim, estaria fadado a repetir a mesma sina de seu

pai se não ultrapassasse os limites de sua condição original.147

Assim, a capelinha e a festa terminam por se demonstrar como ações presentes, feitas

com o intuito de esquecer a opacidade do passado para galgar outros estágios. O Mim é

rememorado por Manuelzão para encerrar este passado num momento já distante do presente;

lembranças anteriores à Samarra, que agora parecem vistas por Manuelzão até com certa

satisfação, por ele haver conseguido pelo menos se deslocar daquele espaço, e que passam a

fluir em sua memória apenas como partes de experiências essenciais para o seu crescimento

pessoal. Tais lembranças são reavivadas agora não como uma rememoração completamente

desprezível, mas também como a confirmação de que há algum sucesso em suas atitudes, e

que isso pode ser considerado para diferenciar Manuelzão do pai.

Ao ouvir as cantigas, que são entoadas quase a todo instante, esses traços de um ―mim‖

até então interior em Manuelzão, saem ao menor verso, a mais simples melodia, como partes

do mecanismo de um autômato, no qual só lhe faltasse uma peça para fazer iniciar o seu

movimento. Surge, desse modo o ―eu‖ de Manuelzão, a reafirmação de sua importância, o que

confirma-o como o único homem da família, desde o pai até o filho Adelço, que fora capaz de

romper os cercos concretos — os morros, as matas, as intempéries da natureza, etc. — e

abstratos — a miséria financeira, o medo de não possuir uma propriedade sua, a culpa de não

assistir Dona Quilina como gostaria, etc. — do Mim, para demonstrar sua capacidade de fazer

um fututo diferente, mesmo àquela altura dos acontecimentos; ainda que Manuelzão já não

goze da euforia típica de um homem mais jovem.

De desde menino, no buraco da miséria. Divisou a lida com gado, transitar

as boiadas. Mas, agora, viera bem chegado, àquele aberto sertão, onde havia

147

RAMOS JR., José de Paula. Ira e amor de Manuelzão. Revista USP, São Paulo, n. 66, ago., p. 156-162, 2005.

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de se acrescentar, onde esquecia os passados. — ‗Lá é Cristo, e cá é isto...‘

Tinha a confiança de Federico Freyre, era expedito no leal. Tinha vindo em

ôco: — ‗E desci cá p‘ra baixo, como se diz, como diz o negócio: pedindo e

roubando...‘ Mas ali trabalhava, lei de seu bom sentir. E prosperava. — ‗Nós

já espichemos por aí uns duzentos, trezentos rolos de arame...‘ Mais havia de

redondear aquilo, fazenda grande confirmada. Cêrca de arame de três fios; e

levavam gado. Com a banda bôa da sorte. Sorte: a Capelinha e esta Festa

davam a melhor prova!148

Manuelzão prefere confirmar algum sucesso com atos concretos, mesmo que para

confirmar suas ações ele acabe recorrendo à religião — o ―lá‖, da citação anterior, seria o

Mim, um lugar onde poderia não haver outra alternativa a não ser se apegar a uma divindade:

Cristo — ―cá‖, na Samarra, o que vale são as ações concretas: aquilo que se vê, que se pode

pegar, o ―isto‖. As cantigas, neste momento, até mais do que as histórias, desmontam esse

rigor de que na Samarra ―é isto‖; as pequenas narrativas, versadas melodiosamente fazem

suplantar a aversão de Manuelzão com o seu passado, bem como a realidade do presente,

envolvendo os forasteiros, os contadores de histórias, os agregados, Adelço, Leonísia e os

filhos e Manuelzão para que se ofereça, no final, ao leitor, a constituição de uma cantiga

capaz de demovê-lo de seu lugar comum e levá-lo a supor a continuação da música, mesmo

diante das diversidades do dia a dia.

A música repartia as tristezas por todos, cada um seu quinhão. Descan-

sadamente, de um certo modo, a festa era coisa que molestava. Também, não

se arma festa todo dia. Acabasse, a gente repousava, em dormir um dia

cumprido. Daí, três, para se ajuntar e apartar o gado bravo. A duro, a boiada

ia sair bem, subir a serra com gente de ajuda. Federico Freyre ficava

correspondido. Ao menos, se servia; o que um faz, se faz.149

A leveza que se observa nas cantigas, mesmo quando há alguma crítica social ou a

respeito do comportamento humano, serve para tonalizar a carga das lembranças passadas de

Manuelzão. O festejar, de certo modo, mais do que apenas descontrair, destitui autoridades —

Manuelzão, durante a inauguração da fazenda é apenas mais um, dentre tantos outros homens

presentes à festa —, insere quem, por força da condição social, apagara-se — velho Camilo

ganha destaque com o Romanço do Boi Bonito —, e se conclui com a comemoração da lida

na fazenda, que continua apesar de todas as percepções de Manuelzão sobre sua vida.

As cantigas entoadas, que a princípio podem ser auditas como uma mistura de

melancolia e euforia, posteriormente, assumem a aura de contribuições necessárias para o

148

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p 161. Grafia do autor. 149

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 221-222. Grafia do autor.

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crescimento de Manuelzão. Mesmo considerando que o mais razoável a se pensar sobre um

homem com pouco mais de sessenta anos é que ele já não se disponha a apreender tantas

outras coisas o quanto já tenha conseguido acumular ao longo da vida, não é isto que será

visto no caso de Manuelzão, haja vista que um desses episódios, que dividem a vida em antes

e depois, está, justamente, naquele instante em que Manuelzão se dispõe a ouvir as cantigas e

as histórias.

Dessa maneira, as lembranças sobre o Mim, sobre o pai e sobre a condição miserável

vivida no Mim não deixam de ser recordadas como cenas de um passado que aos olhos de

Manuelzão devem ficar silenciosas em sua memória, mesmo que tais cenas despertem o velho

vaqueiro a valorizar as conquistas de um presente, e os resultados de tais conquistas sirvam

para o futuro. Esse momento ainda por vir; por se construir, que termina se realizando ao

longo de uma série de ações, tais quais o simples levantar-se da cama ou o reconhecimento de

pequenas atitudes como atos grandiosos também, o futuro é tudo o que parece estar disposto

para Manuelzão, tão logo se encerre a narrativa. Pouco antes, o Romanço do Boi Bonito ainda

reserve à percepção de Manuelzão os últimos versos capazes de provocar reações e modificar

a disposições das ―peças‖ na Samarra.

— ‗Levanta-te, Boi Bonito,

ô meu mano,

com os chifres que Deus te deu!

Algum dia você já viu,

ô meu mano,

um vaqueiro como eu?‘[...]

— ‗Te esperei um tempo inteiro,

ô meu mão,

por guardado e destinado.

Os chifres que são os meus,

ô meu mão,

nunca foram batizados...

Digo adeus aos belos campos,

ô meu mão,

onde criei o meu passado?

Riachim, Buriti do Mel,

ô meu mão,

amor do pasto secado?...‘150

Velho Camilo conta e canta o Romanço do Boi Bonito, concluindo a narrativa e

propondo para o futuro o que ainda está por ser vivido. Os versos ―onde criei o meu

passado?‖ e ―amor do pasto secado?‖, propõem a recundução de Manuelzão ao seu destino,

permitem-no rever escolhas. Tais versos terminam por lançar possíveis questões sobre o velho

150

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p 242. Grafia do autor.

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vaqueiro, por exemplo: a validade de suas ações, a saída do Mim, a dedicação ao trabalho, e

abrir mão de uma companheira foram passos mal dados? O fim da cantiga e o fim da história

parecem propor que toda mudança, discreta ou explicitamente, provoca alguma reação que

leva a uma mudança de trajetória. No caso de Manuelzão, pode-se dizer que as cantigas e as

histórias encaixam-se a sua vida como partes da alteração de rumo notada na parte final da

narrativa e demonstradas mais visivelmente no encerramento da novela com a disposição de

Manuelzão proseguir com a boiada.

— Tenção de caluda, companheiros, deixa a estória terminar.

— ‗... O Boi estava amarrado, chifres altos e orvalhados. Nos campos o sol

brilhava. Nos brancos que o Boi vestia, linda mais luz se fazia. Boi Bonito

dêsse um berro, não aguentavam a maravilha. E êsses pássaros cantavam.

[...] Violeiros... Fim final. Cantem êste Boi e o Vaqueiro, com belo

palavreado...‘

— Espera aí, seo Camilo...

— Manuelzão, que é que há?

— Está clareando agora, está resumindo...

Uai, é dúvida?

Nem não. Cantar e brincar, hoje é festa — dansação. Chega o dia declarar!151

É com o nascer do dia, tal qual ocorre nas mil e uma noites de Šahrāzād e do rei

Šāhriyār, já citados aqui no subcapítulo 1.2 — ―O leitor e a personagem no ‗torto encanto‘ do

conto‖ —, que poderá ser observada, com maior clareza, a percepção de Manuelzão para a

disposição e os acontecimentos de todos os eventos que o levaram à Samarra. A história de

Camilo propõe para Manuelzão, diferente de quase todas as mil e uma histórias de Šahrāzād,

um final com o triunfo do merecedor de todas as vitórias: o vaqueiro, que, para Manuelzão é

ele mesmo. Para o leitor fica parte desse instante ―depois‖ da festa de Manuelzão, um

momento além da fictícia festa que ocorre na Samarra; um ―lugar‖ externo à novela, em que

se pode analisar com maior exatidão a parte atribuida à interpretação da narrativa pelo

perceptor da obra. Essa ―continuidade‖, atribuida ao leitor, deverá realizar-se na interpretação

da obra, na percepção das pequenas mesagens contidas no todo texto, que premiarão o leitor

de ―Uma estória de amor‖ com a perspectiva de contos e cantos só passíveis de serem tecidos

na memória desse que se prosta à obra,

A fim de determinar esta última — isto é, a fim de conhecer o problema

legado para o qual a obra nova na série literária constitui uma resposta —, o

intérprete tem de lançar mão de sua própria experiência, pois o horizonte

passado da forma nova e da forma velha, do problema e da solução, somente

se faz reconhecível na continuidade de sua mediação, no horizonte presente

151

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 244-245. Grafia do autor.

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da obra recebida.152

O leitor, ao encerrar ―Uma estória de amor‖, seja em que época for, terá no convite de

Manuelzão à saída da boida, um horizonte criado com as tantas questões e respostas lançadas

pela recepção desse leitor, realizada, tal qual ocorre ficcionalmente com Manuelzão, com os

contos e cantos ao longo da novela, a ponto de uma nova história de amor, a história do leitor,

tornar-se real em suas mais variadas e possíveis significações. Manuelzão e esse interprete da

obra de Guimarães Rosa terminam por se realizarem como atores capazes de empreender ao

presente da leitura de ―Uma estória de amor‖ os vestígios e as lembranças que atribuirão,

agora apenas àquele que se propõe compreender a novela, a percepção do já vivido e daquilo

que ainda está por se perceber.

A percepção final da ―Festa de Manuelzão‖ concretiza-se para o leitor como parte das

expectativas que só poderão ser completamente entendidas num determinado espaço de

tempo, com espectativas sejam melancólicas, sejam eufóricas de um instante ainda por se

realizar. Desse modo, com o horizonte de expectativas do leitor afirmam-se as lérias, as letras,

os contos e os cantos que modificam, reordenam e conduzem as impressões do público leitor

para os mais diversos interesses, seja para o aprendizado de um evento passado, seja para a

cogitação de algo que só se concretizará num futuro; afinal desse ensino também é movida a

arte e para tal também ela serve; melancolia ou euforia terminam por dividir os traços

verdadeiros ou falsos no antes e no depois da leitura.

152

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli.

São Paulo: Ática, 1994, p. 44.

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98

CONCLUSÃO

A rôla fôgo-apagou cantava continuado o dia, mes-

mo na calada do calor, quando dormiam os outros

pássaros. Seu canto sabe sempre se fingir de longe,

e ela está perto. Só a ser que deseje domesticar-se,

mas lhe faltando um pouquinho mais de valentia

necessária, ou conhecendo que não a irão aceitar

assim. A mãe de Manuelzão gostava delas, das

fôgo-apagou.153

A escolha da emblemática figura da rola fogo-apagou, para ilustrar a epígrafe da

conclusão dessa Dissertação de Mestrado não poderia ser mais propícia, não só por toda a

aura que, eventualmente, possa pairar sobre o sugestivo nome da ave em questão, mas pelo

aparente ―fingimento‖ percebido em seu canto, uma falsa impressão se forma pelo gorjeio da

fogo-apagou, como as lérias e as letras dos contadores e cantadores da festa de Manuelzão.

Mas desses contos e cantos não surgem mentiras, pelo menos não aquelas criadas para tirar

vantagens alheias, mas imagens lúdicas de realidades, por vezes, duras de mais para serem

encaradas como opções únicas.

O canto ―fingido‖ da fogo-apagou faz o homem crer que ela se encontra perto, quando

na realidade está longe; o conto lúdico do narrador desperta no ouvinte uma torrente de

sensações e o faz acreditar no lúdico como real, realizando o sonho, mesmo que por algumas

horas, para fazer daqueles instantes de audição momentos nos quais se permita acreditar no

aspecto bom da vida, seja lá o que imagine ser esse ―aspecto bom‖: a moral bem entendida

por um ouvinte sobre o conto narrado pelo contador; as nuances presentes nas letras de uma

música, que despertam o ouvinte para pontos de vista ignorados mesmo por ocasião do

cotidiano, ou, simplesmente, a fruição do resultado da narração, musicada ou não, que elevam

homem e ―alma‖ a patamares além da visão mediana da realidade.

Tanto para o progresso da ciência quanto para o avanço da experiência de

vida, o momento mais importante é o da ‗frustração de expectativas‘: ‗Elas

se assemelham à experiência de um cego que se choca com um obstáculo,

descobrindo assim a sua existência. Graças ao defraudamento de nossas

suposições, nós tomamos contato efetivo com a realidade. A refutação de

nossos equívocos constitui a experiência positiva que extraímos da

realidade‘.154

Cabe aqui retornar aos postulados de Jauss sobre a Estética da recepção, por nos parecer

153

ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p 150. Grafia do autor. 154

JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli.

São Paulo: Ática, 1994, p. 52.

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muito adequado ligar essa disfarçada maneira de contar e cantar a realidade descrita pelos

contadores e cantores que se fazem presente à festa de Manuelzão, considerando a perspectiva

do leitor sobre o texto e os subtextos presentes em ―Uma estória de amor‖. O efeito exercido

por esses universos dispostos dentro do mundo de Manuelzão funcionam como momentos de

experiências que só poderão ser plenamente compreendidos pelo leitor em seu momento de

leitura. Assim, mesmo a ―frustração de expectativas‖ de que nos fala Guimarães Rosa em

―Uma estória de amor‖, como as reais frustrações do leitor, são parte fundamental desse efeito

necessário com o qual se chocará o leitor.

―Defraudar‖ para mostrar a realidade, mesmo que isso ocorra com o auxílio do lúdico,

como vemos em ―Uma estória de amor‖, essa realidade não é só exposta, mas é apresentada

com possíveis soluções que encontram nessas ―possibilidades‖ ainda mais elementos para

contribuir ao efeito livre da arte. Mesmo com a suposta apreensão de algum valor moral, o

que fica de fato é a demonstração do valor estético do texto de Guimarães Rosa e do quanto à

novela ―Uma estória de amor‖ ainda pode reservar aos estudos de literatura.

Quando Manuelzão refuta o final — em sua concepção — sem moral, dado por Joana

Xaviel à narrativa A Destemida, há naquele instante a apreensão da realidade; de uma verdade

dura, mas tão possível, que haveria de acontecer ali mesmo, na Samarra — o lugar santificado

por Manuelzão —, e ele, Manuelzão, realizar-se-ia como o protagonista dessa versão de A

Destemida, daí o temor, o aborrecimento com aquele final tão inusitado, pois admitir que a

história de sua vida poderia ser também como a estória de Joana Xaviel desloca o velho

capataz àquele passado de miséria vivido no Mim com o pai, quando ele desejou sair dali para

jamais ser, se quer, a lembrança do pai; A Destemida o faz pensar em sua condição financeira

pouco segura as proximidades do fim e, principalmente, na solidão.

Solidão que vira festa, que se faz dentro da festa e gera a festa do leitor; essa condição a

que percebemos Manuelzão submetido é reflexo de um momento particular do leitor; a

solidão da leitura, a percepção da obra de arte na literatura, na música ou na pintura, realiza o

―canto fingido‖ e faz da verdade um ―capítulo‖ mais apreciável, do qual, seja em que vertente

se concretize, desperta emoções que dão ao leitor o papel de condutor da sua narrativa.

Tantos contos e tantos cantos; cada história, narrada, versada ou musicada faz refletir,

ensina, reinventa o que já parecia definido em signos, imagens, cores e sons. ―Uma estória de

amor‖ é mais do que uma novela de Guimarães Rosa, a ―festa de Manuelzão‖ é a

apresentação do contador de histórias pelo próprio contador, como se, pela vez primeira, fosse

dada a esses anônimos narradores a possibilidade de contar o contado e de estar presente na

narrativa como parte dessa ficção.

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Ao fazer da oralidade um fato de ficção, Guimarães Rosa incorpora essas

velhas narrativas no universo de seu conto e dá voz aos velhos mestres da

arte da narração. Tendo como horizonte o universo da experiência

individual, as histórias de Joana Xaviel e de Camilo se configuram como

momentos-chave da narrativa, uma vez que lançam luz sobre seus aspectos

essenciais, metaforizando a situação e o destino de seu personagem

principal.155

Esse talvez se configure como um dos mais marcantes traços da obra de Guimarães

Rosa: dar à personagem o domínio de sua história, criando esse elo de identidade, poucas

vezes demonstrado com tanta veracidade, capaz de fazer de Manuelzão, de Lélio, de Lina, de

Miguilim e de Riobaldo, dentre tantas outras personagens, realidades tão dotadas de efeito

para o leitor que os recebe na fruição da obra, quanto o próprio conjunto da obra, pois essas

personagens — nuances de realidades possíveis — são como a ficção tornada verdade, que

faz de ―Uma estória de amor‖ exemplo raro de vanguarda por excelência.

Essa Dissertação de Mestrado, inicialmente teria em seu título o termo ―torto encanto‖,

por pensarmos na disposição, na concepção e na realização das narrativas dentro de ―Uma

estória de amor‖ e da própria narrativa de Manuelzão, como partes invertidas, ―tortas‖, que

despertam o leitor à concepção de seu papel, bem como do efeito desperto a partir da leitura

de ―Uma estória de amor‖. Por já haver um trabalho de Sandra Vasconcelos exatamente com

o mesmo nome, optou-se modificar o termo utilizado, mesmo sendo esse termo originário da

novela ―Uma estória de amor‖.

Exatamente em respeito à imensa contribuição de Sandra Vasconcelos para o olhar

crítico do legado de Guimarães Rosa, e para demonstrar até mesmo a diversa quantidade de

percepções que se pode extrair acerca de ―Uma estória de amor‖, passamos a fazer uso de

―lérias, letras, alegres ou tristes‖, por encontrar nos sentidos de cada palavra desse outro termo

presente também no texto de ―Uma estória de amor‖, as possíveis ligações com essa

Dissertação de Mestrado, que a apresentassem desde o título como a realização de um estudo

sobre esse mundo explorado tão magnificamente por Rosa em todos os seus livros: a ―léria‖

capacidade de tornar palavras em letras e vise-versa, ora realizando-as alegres, ora tristes;

brincando e se propondo jogar com a percepção do leitor de Guimarães Rosa.

Assim, desde o primeiro capítulo dessa Dissertação de Mestrado, buscamos manter o

foco de nossos olhares sobre o receptor, tentando ao máximo não distingui-lo apenas como o

leitor, o ouvinte ou o admirador de determinada obra de arte, para, então, analisar cada

155

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 118.

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possível ponto de vista, desde aqueles já vistos em outros tantos trabalhos realizados sobre

―Uma estória de amor‖, até as ―novidades‖, que contribuíssem para o enriquecimento da

crítica rosiana.

Em ―Experiência estética e interpretação de ‗Uma estória de amor‘‖, optamos por

dividir a concepção do horizonte de expectativas do leitor e a Recepção crítica no mesmo

capítulo; assim, ―O post festum à luz da Hermenêutica‖ e ―O leitor e a personagem no ‗torto

encanto‘ do conto‖, foram realizados com o intuito de analisar a obra, a leitura e o leitor da

novela. A crítica realizada sobre ―Uma estória de amor‖ ainda se faz muito rara,

principalmente se considerarmos os tantos trabalhos críticos já realizados sobre Grande

sertão: veredas, por exemplo, que superam em número e qualidade qualquer outra obra de

Guimarães Rosa, mesmo que sejam tecidas por críticos comprometidos com o legado do autor

mineiro, como Sandra Vasconcelos, os trabalhos voltados para o volume Manuelzão e

Miguilim, e mais especificamente, voltados para novela ―Uma estória de amor‖ são textos que

somados, ainda não abrangem tudo o que pode ser escrito sobre ―A Festa de Manuelzão‖,

considerando-se que esta novela possui, como vimos ao longo dessa Dissertação de Mestrado,

um considerável arcabouço de percepções e nuances por se descobrirem.

Uma dessas opções diz respeito exatamente à percepção do leitor que, considerando as

palavras de Hans Robert Jauss, se realizam num post festum à leitura. Ao cerrar o livro, o

leitor não é mais o mesmo. Esta concepção, consta no subcapítulo ―O post festum à luz da

Hermenêutica‖, e foi dissecada minuciosamente, para demonstrar o poder da leitura e a

capacidade do leitor de reinventar a interpretação já consagrada. A leitura, esta força única,

capaz de refazer verdades, atribuindo outras possíveis visões sobre sentimentos, condições e

vontades, não está necessariamente nas conclusões leitor, mas pode surgir da recepção que

este se disponha a realizar sobre a obra.

Ressignificação muito própria ao conto narrado; as histórias narradas pelos vários

cantadores e pelos contadores em ―Uma estória de amor‖ são pequenas histórias que

sustentam a narrativa em sua totalidade, enfeixam os possíveis horizontes de expectativa e

diminuem o vácuo tantas vezes observado entre determinadas obras e leitores, para, no caso

específico de ―Uma estória de amor‖, aproximá-los, dotando as pequenas histórias da ―Festa

de Manuelzão‖ com um ―brilho‖ único.

Cristalinas na sua exemplaridade, as velhas narrativas orais que se

conservam e se propagam ao se contarem e recontarem, exigem uma

proximidade entre narradores e ouvintes, que se rompeu. O ato de tecer

histórias, e desencadear outras, requer um tempo de distensão que as novas

formas de organização capitalista do trabalho já não permitem. Dessa

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maneira, na paisagem do conto moderno, ocupado pelo universo da escrita,

essas narrativas — ou formas simples [...] só podem ser recuperadas

fragmentariamente, como irrupção de um tempo arcaico e sagrado no tempo

presente, moderno e profano.156

Esta é a discussão que buscamos empreender em ―O leitor e a personagem no ‗torto

encanto‘ do conto‖, segundo subcapítulo do primeiro momento. Aqui, alguns dos vários

contos e cantos disposto no decorrer da novela ―Uma estória de amor‖ foram citados como

possibilidades de suma importância à percepção dos leitores de Guimarães Rosa. Esse público

que se forma desde a metade do século XX e consagra a obra de Rosa, certamente já pôde ter

contado com estruturas textuais semelhantes à que vemos descrita em ―Uma estória de amor‖.

Não se trata de exaltar Guimarães Rosa por alguma inovação, mas as tantas fontes que

contribuem para fazer do legado de Guimarães Rosa reconhecido mesmo fora do Brasil. Uma

dessas fontes, que foi retratada no referido subcapítulo é O livro das mil e uma noites,

traduzido por Mamede Mustafa Jarouche.

Mesmo escrevendo em um momento pautado por preceitos que primavam pela

―reavaliação estética‖ da produção literária, da pintura, da música e de todas as possíveis

vertentes artísticas existentes até a metade do século XX, Guimarães Rosa não ignora o

passado. Reavaliar esse cânone, atribuindo aos devidos posicionamentos positivos a exata

menção, surge aos poucos como uma alternativa àquilo que se intentava desde a Semana da

Arte Moderna, em 1922. Portanto não houve apenas uma comparação, ao se optar por citar O

livro das mil e uma noites nesse subcapítulo, mas também apresentar para o público leitor de

Guimarães Rosa, a ideia de que as personagens criadas pelo autor mineiro, também povoam,

com outros nomes, outros cenários, outras histórias e com suas várias característas, o

imaginário de autores considerados universais, os quais jamais poderão ser simplesmente

esquecidos ou ter o seu legado ignorado, pois tais autores e suas obras são ―capítulos‖

fundamentais à formação, dos tantos leitores de todo bom autor, como Guimarães Rosa, por

exemplo.

Esse torto discernimento sobre a obra de Guimarães Rosa ganha corpo com a adição da

vertente filosofica no segundo capítulo: ―Estímulo emocional: a prosa rosiana à luz da

filosofiia platônica‖, que, tal qual o primeiro capítulo, subdividiu-se em dois subcapítulos:

―Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno‖ e ―Phármakon: a cura e o

veneno em ‗Uma estória de amor‘‖. Dessas duas leituras empreendidas sobre ―Uma estória de

156

VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira. ―Outras trilhas‖. In: FARIA, João Roberto, [et al.]; BRAIT,

Beth (org.). O sertão e os Sertões. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, p. 118.

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amor‖, considerando-se O Banquete, de Platão, e A farmácia de Platão, de Jacques Derrida,

foi possível demonstrar o quanto de clássico há nas histórias e personagens criadas por

Guimarães Rosa, além de tornar visível a recorrência ao campo da filosofia, para analisar

pontos de vistas aparentemente tão atuais, como a possível predileção de Manuelzão ao

trabalho em detrimento do casamento em ―Uma estória de amor‖ e a busca, desprovida de

dogmas religiosos ou regras impostas pela sociedade, características presentes na figura de

Lélio, em ―A estória de Lélio e Lina‖, para comparar com o mito do andrógino em O

Banquete, de Platão; descrição tão simples, mas, em nossa análise, que se faz plenamente

recorrente para os nossos estudos.

Dessa forma, os estudos de Jacques Derrida em A farmácia de Platão complementaram

a análise feita no primeiro dos dois subcapítulos dessa segunda parte, avançando para uma

nova perspectiva: o ―poder‖ venenoso e curativo da palavra, que realizada, versada ou

utilizada a serviço de um bom conto, pode reconfigurar opiniões, remanejar disposições e

atribuir sentidos a uma série de fatores que até então poderiam estar envoltos em uma situação

obscura. Em A famácia de Platão, Derrida para além de nos apresentar os pensamentos de

Platão acerca da força disposta na palavra, para o mal ou para o bem, nos fez atentar para as

―lacunas‖ dispostas pelo autor ao longo do texto, que, de certa maneira, terminam preenchidas

pelo seu possível leitor.

Desse ―preenchimento‖ de percepção atribuido ao leitor, compôs-se o terceiro e último

capítulo: ―‗Torto encanto‘: análise crítica das narrativas orais em ‗Uma estória de amor‘‖, que

dividido em dois subcapítulos: ―Estórias de amor na Samarra: interpretação dos contos e dos

cantos em ‗Uma estória de amor‘‖ e ―‗Lérias, letras‘ antes e depois da festa‖, foram realizados

com o intuito de apresentar algumas possíveis interpretações dos mais célebres contos e de

alguns cantos presentes em ―Uma estória de amor‖, além de analisar dois momentos distintos

à festa realizada na Samarra, o antes e o depois, e o desencadamento de sentimentos a partir

da euforia e da melancolia provados pelas várias personagens ao longo de ―Uma estória de

amor‖.

As várias versões das histórias contadas por Joana Xaviel e pelo velho Camilo, nos

fizeram acreditar ainda mais no poder da oralidade para a apreensão de conhecimentos

diversos. Confrontar as versões constantes em ―Uma estória de amor‖, sobre o conto A

donzela guerreira, com a versão de Teófilo Braga em Cantos populares do Archipelago

Açoriano, nos possibilitou compreender a força da narrativa e a sua capacidade de se renovar

a cada período de tempo. É interessante notar também que a comparação empreendida nessa

Dissertação, entre a versão de Teófilo Braga e os estudos desenvolvidos principalmente por

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Sandra Vasconcelos nos possibilitaram expor uma discussão até então não explorada: as

semelhanças e as diferenças que fazem da Donzela guerreira de ―Uma estória de amor‖ única,

mesmo se comparada aquela da versão que teria servido ao relato de Joana Xaviel – a

Donzela descrita em Cantos populares do Archipelago Açoriano –, esse dado se acrescenta

aos estudos em torno da novela ―Uma estória de amor‖.

A narrativa pela voz de Joana Xaviel, mesmo que ficcionalmente, confirma a

originalidade inata das histórias orais e só contribui para concluir-se que, dificilmente, os

contadores deixarão de existir, mesmo que se resumam às regiões mais remotas do planeta,

onde, porventura, não haja energia elétrica, pois mesmo que a base da história contada seja

idêntica àquela contada há centenas de anos, o contador tem a capacidade de reinventar a

narrativa, atribuindo-lhe o que a contemporaneidade exige que seja lembrado, sem se desfazer

do que um dia foi colocado como foco à compreensão do leitor.

As estórias e cantigas que tornam o ambiente da festa ora melancólico ora eufórico,

serviram para o desenvolvimento da última parte do terceiro capítulo: ―‗Lérias, letras‘ antes e

depois da festa‖. Com este subcapítulo, intentamos não só concluir uma linha de pensamento,

mas propor o aprofundamento da pesquisa em torno das cantigas e dos contos — suas origens,

importância e poder ao longo dos anos —, para um empreendimento futuro, que demonstre o

quão importante pode se tornar um estudo mais aprofundado, que considere, por exemplo, as

várias interpretações sobre uma cantiga ao longo dos anos, servindo, inclusive à reatualização

de uma obra já em vias de cair no esquecimento.

O trabalho desenvolvido nessa Dissertação de Mestrado sobre a novela ―Uma estória de

amor‖, acima de todas as possíveis expectativas, nos fez entender que, principalmente, do

ponto de vista da Estética da Recepção, não há obra que não possa ser revisitada, reavaliada e

até mesmo, reinterpretada, pois o público leitor que ontem leu um conto de Guimarães Rosa e

que, por ventura, não o compreendeu, hoje pode lê-lo novamente e, de acordo com sua

percepção, adicionar ao conto o ponto que inexistiu naquele primeiro contato.

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