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À guisa de INTRODUÇÃO
De que cor é a amizade?
De que cor um sorriso, uma lágrima, um gesto de simpatia?
No fundo, no fundo: de que cor são as histórias? Por que as contamos? Parece
tão vulgar, quanto vulgar guardarmos um livro numa prateleira sem nunca o
termos lido. Até que um dia o livro faz ouvir a sua voz…
Kahleb e o Pintor
Era uma vez um pintor que, durante a sua juventude, não conseguia alcançar o
reconhecimento da sua arte.
Decidiu um dia retirar-se do mundo e reflectir sobre o que verdadeiramente queria
representar. E esta reflexão passou por pintar, pintar e pintar… E fê-lo durante anos a
fio.
E à medida que ia pintando, era invadido pelos mesmos e insistentes pensamentos:
De que me serve pintar tudo isto?
Este dom com que nasci, que destino terá?
A quem poderá a minha arte interessar?
E estes quadros, quererei mesmo pintá-los?
Mas logo dissipava as suas angústias para se focar nas motivações que havia sentido,
em tempos, quando começou a dedicar-se à pintura.
Desejou continuar a sonhar. E pintou e pintou e pintou… até que certa vez, passando
perto de um rio, sentiu uma inexplicável alegria enquanto admirava as águas límpidas
e transparentes que corriam em direcção ao mar: sentiu uma profunda relação entre o
rio e si próprio, entre o céu e a terra.
Subitamente, regressou à infância. Procurou nos registos da sua memória a sensação
de entusiasmo que, outrora, lhe haviam transmitido Kahleb, o menino de oiro, e um
leopardo, seu animal de estimação.
E fez-se luz! Tal como na criação do mundo, do caos nasceram os seres, as formas, os
céus e a terra… nasceram, enfim, as cores. Deixou-se inundar por aquela felicidade
inebriante e viajou pelas histórias que havia gravado na sua lembrança. A sua história!
O menino de oiro, então criança, era um menino como os demais. A única diferença é
que em vez de um cão, um gato ou um pássaro, tinha um leopardo por animal de
estimação. Chamava-se Feroz.
Kahleb encontrara a cria perdida no meio do mato, com fome e meio ferida,
abandonada à sua sorte, quem sabe se por obra de um qualquer caçador furtivo, ávido
da pele da mãe leopardo. Era comum por aquelas paragens. A partir de então, a cria
acompanhava-o para todo o lado.
Um dia, à saída da escola, lá estava Kahleb à espera do pintor – como de costume. Ruy
– assim se chamava – passou, assim, a ter não um, mas dois amigos para brincar.
Ah! É verdade: convém sublinhar que Kahleb não ia à escola. Os pais não tinham
dinheiro, nem compreendiam a necessidade de coisas tão esquisitas como “aprender”.
Além disso, a escola não era para meninos selvagens, descalços, pintados com cores
tribais e adornados com acessórios inconcebíveis na cabeça e no rosto.
O Pintor e Kahleb mantinham entre si uma espécie de amizade secreta. O primeiro
ensinava-lhe a desenhar as letras para que Kahleb aprendesse a assinar o seu nome, e
os números para que aprendesse a fazer contas embora, para ele, a “matemática” do
mato fosse muito simples: árvore tem fruto, Kahleb colhe; bicho agita ervas por detrás
de um buxo, Kahleb caça; peixe salta no rio, Kahleb pesca.
Já para o Pintor, as palhotas da aldeia de Kahleb eram muito mais do que letras e
números: era um universo outro, muito diferente do seu, onde todos comungavam de
uma mesma fogueira; onde os espíritos dos antepassados mantinham vivas as
tradições; onde homens e mulheres tocavam bongo e dançavam kilombo.
A felicidade da tribo dos Makkahr fundava-se nestes princípios básicos e simples. Era
esse o seu segredo. A sabedoria da sua sobrevivência.
Oh! Pudesse o mundo do Pintor ser assim tão despojado de preocupações!
Kahleb, por sua vez, ensinava-o a fazer lume sem fósforos, a pescar sem cana, a caçar
sem armas de fogo. Bem… e a comer frutos com casca e por lavar.
Mas agora havia Feroz e o mundo destes jovens transformava-se a cada dia.
O tempo foi passando. Os rapazes maravilhavam-se ante o constante desassossego do
jovem leopardo que, certa vez, os obrigou a segui-lo savana adentro.
O Pintor e Kahleb esqueceram-se do tempo brincando naquele imenso e árido espaço.
Até que Kahleb apanhou uns ramitos e começou a entrançá-los. Eram duas pulseiras
magníficas! Kahleb ofereceu uma ao amigo. Num gesto de gratidão, o Pintor pintou a
de Kahleb de cor amarela, “a cor dos reis” – explicou-lhe.
A vaidade de Kahleb perante tal revelação surpreendeu o Pintor. Divertia-o a imagem
do “menino de oiro”, agora adornado como um verdadeiro rei.
De repente, por entre risos e gargalhadas distraídas… o som de uma arma de fogo…
Apercebendo-se do perigo que Feroz corria, Kahleb ergueu a sua lança para evitar o
pior…
Tarde demais!
Pela face do Pintor rolavam duas lágrimas de profunda dor.
- Anda daí, miúdo! Que fazes tu aqui? – perguntou-lhe uma voz impregnada de
pólvora. Atónito, e mal conseguindo balbuciar uma palavra ou manifestar a sua mágoa,
acabou por se deixar arrastar por aquela mão rugosa e grossa. Ainda tentou uma
derradeira argumentação, mas de nada lhe valeu.
- Esquece-o! Não há nada a fazer! Vamos, depressa! As hienas ocupar-se-ão dele mais
tarde!
E o Pintor resignou-se perante aquela autoridade senil.
A luz ia fazendo a sua despedida para dar lugar à noite. Ouviam-se os rugidos de Feroz,
à distância. Olhando para trás, o Pintor ainda pode ver um último raio de sol a iluminar
uma argola brilhante. “Menino de oiro”, soluçou convulsivamente, “vais morar para
sempre no meu coração!
As águas do rio calaram-se inesperadamente. E o Pintor viu, subindo uns degraus
invisíveis, o que lhe parecia ser a imagem cintilante de… Kahleb.
O “menino de oiro” sorria-lhe e acenava-lhe até desaparecer por entre os raios
luminosos de um sol de Verão.
O coração do Pintor encheu-se de alegria. Foi então que decidiu: entregou a chave da
sua casa a um amigo para que mostrasse os seus quadros a outras pessoas e partiu.
Subiu por uma escadaria mágica que o levaria para longe daquela espécie de caverna
onde se deixara prender durante toda uma vida e refugiou-se no campo, onde podia
respirar uma tranquilidade sem igual. Fascinava-o o pastoreio daquela aldeia perdida
do interior do país.
Mais tarde, nessa mesma localidade, tão distante da sua cidade natal, tomou
conhecimento de que o mundo inteiro admirava, afinal, a sua obra. Leu a notícia num
jornal. E o seu nome… impresso em letras gordas!!
Mas isso já não era importante. Ou pelo menos, nada comparável à felicidade
inexplicável que havia sentido, pouco tempo antes, junto às águas do rio.
E como se de um pastor se tratasse, afastou-se da manada…
E voltou a pintar.
fim
Ilustrações: Carlos Santos Marques