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Judiciabilidade Dos Direitos Sociais - Revista AJUFE - Julio Coelho

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JUDICIABILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

JÚLIO RODRIGUES COELHO NETO

MBA em Poder Judiciário pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio

Vargas (FGV). Mestrando em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da

Universidade de Lisboa. Juiz Federal em Fortaleza-CE. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Poder Judiciário na teoria original de “separação de poderes; 2.

Tripartição de funções do estado e atividade judicial; 3. Direitos fundamentais subjetivos; 4.

Direitos fundamentais sociais e dignidade da pessoa humana; 5. Natureza principiológica das

normas de direitos sociais; 6. Direitos fundamentais sociais e proporcionalidade; 7. Efetivação

política dos direitos fundamentais sociais; 8. Judiciabilidade dos direitos sociais; 9. Mínimo

para existência e dignidade da pessoa humana.

RESUMO

O presente trabalho trata da questão da judiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, a

partir da análise do Poder Judiciário e seu papel na teoria da tripartição de funções do Estado.

Discute os direitos fundamentais como direitos subjetivos, bem como sua ligação com o

princípio da dignidade da pessoa humana. Trata então dos direitos fundamentais sociais

mediante o exame da natureza principiológica de suas normas e da necessidade da aplicação

de proporcionalidade na sua efetivação, destacando a prerrogativa dos ramos políticos do

Estado nessa tarefa. Observa ainda os termos em que deve ocorrer a concretização judicial dos

direitos fundamentais sociais, em consideração da importância de tais direitos e da noção de

“mínimo para existência” como parâmetro de atuação.

Palavras-chave: Poder Judiciário; Separação de Poderes; Direitos Fundamentais Sociais;

Direitos subjetivos; Dignidade da Pessoa Humana; Proporcionalidade; Mínimo para

Existência.

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INTRODUÇÃO

No cotidiano dos juízes federais, é freqüente a ocorrência de processos em que se

pleiteiam atividades prestacionais do Estado, o que enseja a discussão acerca dos direitos

fundamentais sociais. Trata-se, sem dúvidas, de questão complexa e abrangente, que

proporciona a diversas possibilidades de abordagem teórica.

Diante da necessidade de delimitar esse extenso campo de investigação para adequá-lo

aos limites deste breve estudo, todavia, mostra-se interessante observar uma temática geral,

referente à judiciabilidade dos direitos sociais. Compreendida a judiciabilidade como a

possibilidade do titular de posição jurídica de vantagem fundada em direito fundamental

reclamar perante o Poder Judiciário o cumprimento da obrigação derivada dessa posição,

cumpre-nos verificar em que hipóteses isso deve ocorrer.

Para esse fim, cumpre lançar algumas considerações sobre o papel do Poder Judiciário

no campo da divisão de funções do Estado, a subjetivação dos direitos fundamentais e sua

ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana. Em seguida, observaremos as

peculiaridades referentes aos direitos fundamentais sociais e as suas implicações no

reconhecimento de direitos subjetivos pelo Poder Judiciário.

Tendo consciência quanto às limitações deste breve ensaio, ousamos esperar que ele

possa ser considerado útil para uma posterior reflexão mais aprofundada, a partir das pistas

ora lançadas sobre tão debatido tema.

1. PODER JUDICIÁRIO NA TEORIA ORIGINAL DE “SEPARAÇÃO DE

PODERES”

Em sua acepção clássica, o princípio da separação de poderes do Estado origina-se com

John Locke1, mas é desenvolvida de forma mais completa por Charles-Louis de Secondat, o

Barão de Montesquieu, em sua obra “Espírito das Leis”.2 Surgida como meio de impedir

concentração de poderes e impedir o despotismo real, sob o argumento de que “trata-se de

uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até

1 Embora na teoria de Locke o Judiciário não seja considerado com um dos “poderes” do Estado. Cf. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2003.2 Cf. SECONDAT, Charles-Louis de, Barão de Montesquieu. Espírito das leis. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1996.

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onde encontra limites”3, a separação de poderes de Montesquieu dava um papel pouco

importante ao Poder Judiciário.

O poder de julgar - “tão terrível entre os homens” - deveria ter a menor relevância

possível e os julgamentos deveriam ser fixos, “a tal ponto que nunca sejam mais do que um

texto preciso da lei”. Para Montesquieu, “os juízes da nação são apenas (...) a boca que

pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua força,

nem seu rigor.”4

Inspirados nessa acepção clássica, muitos rejeitam completamente a idéia de que o

Poder Judiciário pudesse tratar de direitos sociais. De acordo com Timothy Macklem, por

exemplo, isso implicaria decisões acerca da natureza dos serviços sociais (públicos ou

privados), nível de financiamento público e distribuição de recursos, além de “determinar a

direção da economia, estabelecer o currículo das escolas, determinar a política ambiental – em

resumo, governar”.5 Frank Cross, por sua vez, entende que seria “fútil apoiar-se no Judiciário

para prestar direitos sociais básicos para os menos favorecidos, se os ramos políticos não

estão dispostos a isso”, pois são eles que detêm o “invejado ‘poder da bolsa’”, de modo que o

Poder Judiciário não teria como estabelecer o conteúdo de expressões típicas de direitos

sociais como “garantir educação de qualidade” ou “moradia adequada”, dentre outras.6

2. TRIPARTIÇÃO DE FUNÇÕES DO ESTADO E ATIVIDADE JUDICIAL

A visão tradicional da separação de poderes não se adéqua, em sua inteireza, a uma

concepção de Estado de Direito democrático, no qual uma das características essenciais do

poder estatal é justamente sua indivisibilidade.

No Estado de Direito, o poder estatal é uno e emanado do povo, que é seu verdadeiro

titular. O exercício desse poder é que é atribuído aos diversos órgãos estatais a fim de evitar

sua concentração, pois o “Estado de Direito é sempre o Estado onde impera a limitação de

3 Idem, Livro XI, cap. IV.4 Idem, loc. cit.5 Cf. MACKELM, Timothy apud TUSHNET, Mark. Weak courts, strong rights: judicial review and social welfare rights in comparative constitucional law. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 225.6 Além disso, a concretização judicial de direitos sociais traria outros problemas. Observa Frank Cross: “como o Tribunal decidiria se o indivíduo seria carente o suficiente para se qualificar a invocar o direito? Deveria haver um padrão absoluto ou relativo? E qual o nível quantitativo desse padrão? Se o autor da ação qualifica-se abaixo do padrão fixado, deveria o Tribunal determinar simplesmente que a esse indivíduo (e presumivelmente todos os outros em situação similar) deveria ser pago uma certa quantia de dinheiro mensal ou determinar a prestação de serviços (tais como vales de aluguel e alimentação)? A assistência deveria ser uniforme nacionalmente ou geograficamente diferenciada? (...) Poderia o Tribunal considerar a possibilidade do autor ter responsabilidade por seu estado de carência? E se ele tivesse perdido dinheiro no jogo? Ou perdido o emprego por justa causa?” Cf. CROSS, Frank R. The error of positive rights. UCLA law review. Vol. 48, n. 4, 2001, p. 887/ 904.

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poderes”.7 Como bem lembra Paulo Bonavides, há “tão-somente divisão do objeto, das

tarefas, dos trabalhos e assuntos pertinentes à ação do Estado, em suma, na boa linguagem

jurídica, divisão de competência e não do poder do Estado propriamente dito”.8

A divisão das funções estatais é estabelecida dentro de um marco fixado por cada

ordenamento constitucional. Em geral, porém, cabe ao Legislativo a obrigação elaborar leis

que cumpram os princípios e normas constitucionais e ao Executivo o dever de pôr em prática

as leis e a Constituição. O Poder Judiciário, por sua vez, é o um poder último de garantia da

Constituição, a quem cabe dizer de forma independente e imparcial se os demais atores

estatais cumpriram a missão constitucional que lhes competia. Assim, se o Legislativo ou o

Executivo contrariaram a Constituição ou se furtaram ao seu cumprimento, terá o Judiciário o

poder-dever de efetivação constitucional.9

Essa concepção, na verdade, não é nova e se origina na doutrina federalista norte-

americana. Dentro de um modelo formulado por Alexander Hamilton, os limites à atividade

legislativa encontram-se fixados na Constituição, não cabendo ao próprio legislador

estabelecer quais são esses limites. Por isso, e também por se tratar do ramo “menos perigoso”

do Estado (por não dispor da força ou do tesouro), caberia ao Poder Judiciário a função de

interpretar a Constituição e as leis, extraindo delas o seu real sentido.10

Por essas razões, o princípio de “separação de poderes” não deve ser encarado como

tendo natureza estanque, mas sim por meio da perspectiva de controle mútuo entre os

diferentes órgãos estatais, por meio do sistema de freios e contrapesos (checks and balances).

Mais adequado, portanto, falar-se atualmente em “tripartição de funções estatais” do que de

“separação de poderes”.11 Tal percepção, aliás, é incorporada na maioria dos ordenamentos

constitucionais, como se pode extrair, por exemplo, do art. 20, n. 2 da Lei Fundamental

alemã, do art. 2º da Constituição do Brasil e do art. 111 da Constituição de Portugal.12

7 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 511.8 Cf. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.9 No contexto do direito português, observa Carlos Blanco de Morais que “no âmbito do modelo do Estado social de direito, impera o entendimento segundo o qual a ordenação das funções do Estado se afere, não em função de um qualquer arquétipo teorético, mas sim em razão da arquitetura orgânica das atividades e competências estabelecidas por cada Constituição em concreto, o que exclui a idéia de uma separação estrita de funções públicas por órgãos necessariamente distintos.” Cf. MORAIS, Carlos Blanco de. Curso de direito constitucional. Tomo I. Coimbra: Coimbra: Coimbra ed., 2008, p. 40. 10 Sobre o tema, cf. HAMILTON, A.; JAY, J.; MADISON, J. Os artigos federalistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.11 Nesse sentido, cf. BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, p. 511 e ss; LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2ª ed. Barcelona: Ariel, 1986.12 No campo jurisprudencial, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht – BverfG), por exemplo, é expresso ao reconhecer que a tônica não é um rompimento rígido entre os “poderes” do Estado. Ao revés, o que se almeja é uma harmonização e um controle (ou fiscalização) recíproco entre os atores estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário. Cf. BverGE 95, 1 In: SCHWAB, Jürgen (org). Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006.

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3. DIREITOS FUNDAMENTAIS SUBJETIVOS

Não há dúvidas de que, no campo dos direitos fundamentais, a perspectiva

predominante é a subjetiva. Isso se dá até mesmo em razão da própria noção original de

direitos fundamentais ter surgido num contexto histórico de tentativa de controle do poder do

Estado, a partir da subjetivação de posições jurídicas individuais.

Relembrando a teoria do status de Jellinek13, vê-se que, nessa dimensão tradicional de

natureza subjetiva, os direitos fundamentais acabam por fixar o parâmetro de extensão

material e concreta da proteção da esfera de liberdade individual (status negativo).

O direito fundamental subjetivo revela-se estruturalmente na possibilidade de o

particular se autodeterminar numa área juridicamente tutelada, que se traduz na possibilidade

de poder exigir ou pretender comportamentos (positivos ou negativos) ou de produzir

autonomamente efeitos jurídicos. O critério verdadeiramente relevante para averiguar a

existência de direitos fundamentais subjetivos passou a ser o da determinação dos interesses

protegidos pela norma jurídica e sua ligação com a dignidade da pessoa humana.

Adentrando no esforço de conceituação de direitos fundamentais subjetivos, observa-se

que, para Ingo Sarlet, eles fariam referência à “possibilidade que tem o seu titular

(considerado como tal a pessoa individual ou ente coletivo a quem é atribuído) de fazer valer

judicialmente os poderes, as liberdades ou mesmo o direito à ação ou às ações negativas ou

positivas que lhe foram outorgadas pela norma consagradora do direito fundamental em

questão”. 14

Jorge Miranda acaba por conceituar direitos fundamentais sob sua faceta subjetiva,

como sendo “direitos ou as posições jurídicas ativas das pessoas enquanto tais, individual ou

institucionalmente consideradas, assentes na Constituição”. 15 José Carlos Vieira de

13 Cf. JELLINEK, Georg. Sistema dei diritti pubblici subbiettivi. Milão : Societá Editrice Libraria., 1912.. 14 Cf. SARLET, Ingo W. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 179. Tal concepção é interessante, pois tem o cuidado de abranger também a existência de direitos fundamentais subjetivos de pessoas coletivas, com o que concordamos. Em síntese, vemos que, à parte dos direitos de referência nitidamente humana (vida, liberdade física, etc.), os entes coletivos podem gozar de direitos fundamentais, havendo mesmo quem destaque que haveria direitos fundamentais exclusivos dela, como o direito de antena. Nesse sentido, cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 420 e ss. Mesmo quem discorda da atribuição teórica de direitos fundamentais à pessoas coletivas acaba por aceita-la na prática, ao atribuir sua titularidade quando sejam voltados a garantir o livre desenvolvimento do homem e a proteção da dignidade da pessoa humana individual. Nesse sentido, cf.. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2007, p. 124 e ss. 15 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. 3ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000, p. 7.

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Andrade, por sua vez, observa a perspectiva subjetiva dos direitos subjetivos como “posições

jurídicas subjetivas, individuais, universais e fundamentais”. 16

Entretanto, considerando que as características comuns de direito subjetivo se

verificam nas posições subjetivas em matéria de direitos fundamentais e o já aludido conceito

geral de direito subjetivo, podemos então um conceito geral de direito fundamental subjetivo

como sendo “posição de vantagem resultante da afetação constitucional de meios jurídicos ao

fim de preservação e valorização da dignidade da pessoa humana individualmente

considerada.”17

4. DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Os direitos fundamentais subjetivos, para se qualificar como tal, devem-se referir

necessariamente na proteção da dignidade da pessoa humana. A proteção da dignidade da

pessoa humana, além de ser a base da fundamentalidade material de quaisquer direitos, serve

também por servir como preceito fundacional geral sobre o qual se constroem a maioria dos

ordenamentos constitucionais dos Estados de direito democráticos. Nota-se, na verdade, a

existência de uma relação biunívoca entre os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa

humana, pois a dignidade é base dos direitos fundamentais, enquanto os direitos fundamentais

servem como pressupostos elementares da dignidade.

Por isso, pode-se constatar a primazia material da perspectiva subjetiva dos direitos

fundamentais, pois eles servem, em regra, para garantir meios de proteção do particular contra

situações que possam, direta ou indiretamente, vulnerar a dignidade da pessoa humana. É o

direito subjetivo que põe em vigor a dignidade e personalidade da pessoa constitucionalmente

garantida, servindo como “mecanismo de tutela da autonomia da pessoa” e “instrumento

preferido da sua autodeterminação”. 18

O critério verdadeiramente relevante para averiguar a existência de direitos

fundamentais subjetivos passou a ser o da determinação dos interesses protegidos pela norma

jurídica e sua ligação com a dignidade da pessoa humana. Em face de tal afirmação, nota-se 16 ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 120 e ss.. Quanto a esse conceito, é interessante consignar a discussão acerca da titularidade coletiva de direitos fundamentais. Para Vieira de Andrade, embora se tenham direitos que não podem ser exercidos pelo indivíduo isolado (direito de greve, liberdade de reunião, etc.), não se pode falar em exercício coletivo de direitos fundamentais. Haveria apenas um instrumento coletivo de exercício de direitos que seriam de cada um dos indivíduos. Sem maiores considerações, anotamos apenas nossa discordância, pois tal posicionamento ignora a crescente gama de direitos fundamentais de titularidade coletiva ou difusa, no rol dos chamados direitos de terceira geração ou dimensão, que se referem aos valores da solidariedade e da fraternidade. Sobre o tema, Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 523.17 CORREIA, Sérvulo. O direito de manifestação: âmbito de proteção e restrições. Coimbra: Almedina, 2006, p. 49.18 Cf. CARVALHO, Orlando de, apud ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 120

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que todos os direitos fundamentais são vinculados ao princípio da dignidade humana,

independentemente de sua origem ou da “geração” a que pertençam.19

Por isso, cumpre destacar, nesse ponto, a defesa da unidade dos direitos fundamentais

para, com base na dignidade da pessoa humana, destacar que todos dos direitos fundamentais

– sociais ou os chamados “direitos de liberdade” - devem ser interpretados como integrantes

de um único sistema. Isso porque todos os direitos fundamentais “constituem resposta

jurídico-constitucional adequada ao problema da proteção da dignidade da pessoa humana, a

qual vai evoluindo (no tempo e no espaço) em função de novas agressões e desafios colocados

pela vida social.”20

Lembra Paulo Bonavides a íntima ligação dos direitos sociais com a dignidade da

pessoa humana, havendo “uma linha de eticidade vincula os direitos sociais ao princípio

constitucional da dignidade da pessoa humana, o qual lhes serve de regra hermenêutica”,

razão pela qual “a observância, a prática e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolável

contextura formal, premissa indeclinável de uma construção material sólida desses direitos,

formam hoje o pressuposto mais importante com que fazer eficaz a dignidade da pessoa

humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder”.21

Na verdade, como bem observa Isabel Moreira, os direitos sociais são por vezes muito

mais ligados à dignidade da pessoa humana que os próprios direitos de liberdade, no momento

em que eles visam a proteger um mínimo para existência condigna.22

5. NATUREZA PRINCIPIOLÓGICA DAS NORMAS DE DIREITOS SOCIAIS

19 Em crítica à teoria das gerações de direitos fundamentais, dispõe Pérez-Luño que “as gerações de direitos humanos não representam um processo meramente cronológico e linear. (...) As gerações de direitos humanos não implicam na substituição global de um catálogo de direitos por outro, já que, em algumas ocasiões, surgem novos direitos como resposta a novas necessidades históricas; outras vezes, exigem o redimensionamento ou redefinição de direitos anteriores para adaptá-los aos novos contextos em que devem ser aplicados”. Cf. PÉREZ-LUÑO, Antonio-Henrique. Concepto y concepción de los derechos humanos. Revista DOXA: cuadernos de filosofia del Derecho. Madrid: Biblioteca Miguel de Cervantes, n. 4, 1987, p. 56. Norberto Bobbio, por sua vez, lembra que, embora as exigências dos direitos fundamentais “possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre – com relação aos poderes constituídos – apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios”. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 6.20 Cf. SILVA, Vasco P. da. A cultura a que tenho direito: direitos fundamentais e cultura. Coimbra: Almedina, 2007, p. 33.21 Cf. BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, p. 594-595.22 Estas são as palavras da autora: “na verdade, pontapeando a estafada caracterização dos direitos negativos, parece poder afirmar-se sem rodeios que os direitos econômicos, sociais e culturais são muito mais exigidos pela dignidade da pessoa humana que os direitos políticos; ou seja: encontramos direitos sociais mais intimamente ligados à dignidade da pessoa humana que certos direitos de liberdade, o que põe em crise a distinção abstrata entre uns e outros direitos baseada numa mais intensa ligação à dignidade da pessoa humana por parte dos direitos de liberdade”. Cf. MOREIRA, Isabel. A solução dos direitos: liberdade e garantias e dos direitos econômicos, sociais e culturais na Constituição portuguesa. Coimbra: Almedina, 2007, p. 138.

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O reconhecimento da natureza formal e materialmente fundamental dos direitos sociais

implica a aceitação da plena eficácia das normas que os consagram, mas não traduz igual

plenitude de efetividade.23 Isso se dá em virtude do grau “normatividade” desses direitos

fundamentais24, qualidade que pode ser compreendida a partir da distinção entre normas

constitucionais como regras e como princípios.

É conhecida a distinção defendida por Ronald Dworkin entre regras e princípios

principalmente a partir de um critério lógico-argumentativo sob a ótica da solução de colisões

internas25, mas Dworkin admite também que a distinção também ocorre pelo fato de um

princípio “enuncia uma razão que conduz o argumento em certa direção, mas necessita uma

decisão particular”26, do que transparece o outro critério de diferenciação: o grau de

generalidade ou de determinabilidade da norma.

Os princípios apresentam maior grau de abstração que as regras e, por isso, dependem

de uma conformação para sua concretização, ao passo em que as regras seriam passíveis de

aplicação direta.27 Com base nesse critério, podemos constatar que as normas de direito

fundamental que tenham natureza de regra - aquelas em é possível a identificação de um

conteúdo concreto e determinado - não carecem de densificação e têm âmbito de conformação

mínimo ou inexistente.

O problema maior surge em casos em que a norma constitucional de direito

fundamental não apresenta a determinabilidade suficiente para fazer nascer uma concreta

relação jurídica entre indivíduo e Estado, ou seja, quando tem natureza de princípio e há

inegável dependência de uma atividade hermenêutica de densificação, que dê uma

consistência mínima ao comando constitucional.28 Isso se percebe especialmente quando se

23 Cf. SARLET Ingo W.. Direitos fundamentais sociais, “mínimo existencial” e direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 562.24 Cf. SARLET, Ingo W., A eficácia dos direitos fundamentais, p. 179.25 Para Dworkin as regras “são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (...) As regras ditam resultados. Quando se obtém um resultado contrário, a regra é abandonada ou mudada. Os princípios não funcionam dessa maneira; eles inclinam a decisão em uma direção, embora de maneira não conclusiva. E sobrevivem intactos quando não prevalecem.” Cf. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39/57.26 Idem, p. 36.27 Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit, p. 1124-1125; BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, p. 248 e ss.28 Isso, porém, não se restringe às normas de direitos sociais. Nesse sentido, observa Sérvulo Correia: “a aplicação directa de preceitos sobre direitos fundamentais requer sempre, embora em graus diferentes, a execução pelo aplicador de uma tarefa hermenêutica de densificação do âmbito das situações protegidas pela norma e das faculdades que integram o conteúdo da protecção por ela concedida.”. Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Direitos fundamentais: sumários. Lisboa: AAFDL, 2002, p. 79.

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trata de direitos fundamentais sociais, cujas normas geralmente têm um grande “espaço

estrutural”, o que dá ensejo a uma larga margem de ponderação e prognose.

Vimos que, no âmbito dos direitos fundamentais sociais, deve-se cuidar para sua

máxima eficácia, sem desconsiderar, por certo, o que é financeiramente ou juridicamente

possível no caso concreto. Essa idéia, em conjunto com a natureza predominantemente

principiológica das normas constitucionais de direitos sociais, implica a relação entre esses

direitos e o princípio da proporcionalidade, razão pela qual é interessante observar alguns

pontos acerca desse tema, apenas no que é indispensável para o desenvolvimento do tema

aqui exposto.

6. DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E PROPORCIONALIDADE

Em primeiro momento, cumpre destacar que os confrontos envolvendo questões de

direitos fundamentais sociais não partem, a princípio, de uma lógica de “tudo ou nada”. Por se

tratar de ponderação envolvendo direitos fundamentais e outros direitos de relevo

constitucional, deve-se “avaliar todos esses princípios antagônicos que incidem sobre ela e

chegar a um veredicto a partir desses princípios, em vez de identificar um dentre eles como

‘válido’”. 29

Logo, o que deve haver é uma preponderância de determinado princípio ou interesse no

caso concreto, sem, todavia, ter-se como totalmente inválidos os demais, por meio de uma

“concordância prática”.30 Essa concordância prática impõe, especialmente no campo dos

direitos fundamentais, que a eventuais restrições de direitos em conflito sejam limitadas ao

mínimo necessário para promover a compatibilização entre eles, e cada um atinja uma

“eficácia ótima” no caso concreto.31

Essa orientação, por certo, recebe contundentes críticas. Jürgen Habermas, por exemplo,

diz que a abertura à ponderação acabaria por enfraquecer os direitos fundamentais em sua

função de barreira (firewall), pois, em casos de colisão, toda e qualquer razão alegada poderia

29 Cf. DWORKIN, Ronald, op.cit., p. 114. Dworkin desenvolve esse raciocínio por meio da diferenciação entre “regras” e “princípios”. Para ele, as regras “são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. (...) As regras ditam resultados. Quando se obtém um resultado contrário, a regra é abandonada ou mudada. Os princípios não funcionam dessa maneira; eles inclinam a decisão em uma direção, embora de maneira não conclusiva. E sobrevivem intactos quando não prevalecem.” Idem, p. 39/57.30 De acordo com Canotilho, a concordância prática “impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros”. Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes., op. cit., p. 67831 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 66.

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assumir natureza de argumento apto a mitigar a aplicação dos direitos fundamentais. Na

inexistência de medidas racionais, a ponderação “ocorreria ou de forma arbitrária ou

irrefletida, de acordo com padrões e hierarquias usuais”.32

Em expressa resposta a essas críticas, observa Robert Alexy que a ponderação, apesar

de nem sempre conduzir a um único resultado, é método adequado de se atingir racionalmente

uma solução em hipóteses específicas. Isso se dá por meio de argumentação refletida e de

razões compreensíveis que remetem tanto à importância substantiva dos motivos de restrição

dos direitos fundamentais quanto à qualidade epistêmica dessa decisão.33

A ponderação, então, deve ocorrer a partir da verificação do grau de intervenção de

direitos fundamentais (leve, médio ou grave) e da importância dos demais bens jurídicos

envolvidos, a fim de estabelecer qual deles terá precedência condicionada sobre os demais no

caso concreto. Assim, a ponderação deve ser decomposta em três fases: verificação do grau de

não-satisfação, ou detrimento, de determinado direito fundamental; determinação da

importância de satisfazer o princípio ou bem jurídico concorrente; e determinar se essa

importância de satisfação justifica o detrimento do direito fundamental. 34 Destaque-se, que,

num contexto de premissas fáticas seguras, a ponderação nada tem de arbitrariedade e pouco

tem de discricionariedade.

A operacionalização da ponderação é obtida por meio da proporcionalidade

(Verhältnismässigkeit), cuja aplicação é essencial na análise da delimitação e proteção dos

direitos fundamentais. A partir de elaborada construção jurisprudencial do Tribunal

Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht – BverfG)35, o princípio da

proporcionalidade por ser observado sob três acepções.

A proporcionalidade como adequação é a verificação se determinada medida é apta a

atingir os objetivos pretendidos. A proporcionalidade como necessidade é a verificação se a

medida não ultrapassa o limite do mínimo necessário para atingir o fim que se busca e que

não haja outra, igualmente eficaz, que traga menores prejuízos aos direitos fundamentais.

Uma vez aferida a adequação e a necessidade, cumpre verificar se o ônus imposto a direitos

fundamentais justifica-se diante do benefício trazido pelo objetivo almejado no caso concreto,

32 Cf. HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 258-259.33 Cf. ALEXY, Robert, A theory of constitucional rights. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 396.34 Idem, p. 392-393.35 Cf. BVerfGE 7, 198; BVerfGE 16, 194; BVerfGE 30, 292; BVerfGE 41, 378. In: SCHWAB, Jürgen, op. cit.

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numa idéia de proibição de excessos(Übermassverbot) que demonstra o proporcionalidade em

seu sentido estrito.36

7. EFETIVAÇÃO POLÍTICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

O reconhecimento de direitos fundamentais como princípios, sujeitos a juízos de

ponderação por meio dos critérios de proporcionalidade, nos termos aqui expostos, é alvo de

severas críticas de Ernest Bökenförde. Para o autor, essa tese acabaria por empregar aos

direitos fundamentais uma autonomia tal que se poderia inclusive dispensar qualquer

concretização legislativa. Para a concretização dos direitos fundamentais, bastaria o exercício

de ponderação. Com isso, a Constituição encerraria todo o sistema jurídico (Grundordnung),

dedutivamente concretizado a partir dela pelo Poder Judiciário, e o processo democrático

perderia boa parte de sua relevância.37

Considerando a aludida natureza eminentemente principiológica das normas de direitos

sociais, é certo que tais normas têm alto grau de generalidade e dependem, em geral, de

densificação. Exatamente por isso, sempre haverá um “espaço de conformação legislativa,

por não haver uma medida certa nem uma forma única de cumprir o imperativo

constitucional, que não é concreto”.38

De acordo com as lições de Robert Alexy, a Constituição deve ser considerada um

ordenamento de enquadramento (Rahmenordnung), de modo que há sempre uma

discricionariedade estrutural para o legislador, em diferentes níveis.

O reconhecimento constitucional de discricionarieade quanto ao fins permite a limitação

de direitos fundamentais, não sendo especificadas as razões para essa limitação ou apenas

apontando algumas possibilidades de limitação, ficando a critério do legislador a decisão

quanto a realização efetiva dessa limitação.

A discricionariedade quanto aos meios, especialmente relevante no campo prestacional,

diz respeito à escolha de um entre os diversos meios de atuação estatal para a efetivação de

direitos fundamentais. Caso haja variação no alcançe da prestação, deve-se reconhecer ao

legislador a discricionariedade de ponderação – ligada à noção de reserva do possível – pelo

36 Para um estudo mais detalhado do princípio da proporcionalidade, que escapa aos limites deste estudo, cf. BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 392-436.37 Cf. BÖKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang, Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos, 1993, p. 185/197.38 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República portuguesa, Coimbra: Coimbra Ed., 2004, p. 21.

Page 12: Judiciabilidade Dos Direitos Sociais - Revista AJUFE - Julio Coelho

que se extrai que o imperativo de otimização das normas principiológicas não traduz a

exigência de o legislador concretize a norma da forma mais ampla possível.39

Logo, as escolhas que permitirão definir o conteúdo dos direitos dos cidadãos a

prestações positivas do Estado devem espelhar os valores da comunidade, razão pela qual têm

de caber “a um poder constituído, com legitimidade democrática e politicamente responsável

perante a comunidade”.40 Ora, é inegável que a densificação das normas constitucionais é

prerrogativa primeira do legislador, cuja autonomia de conformação legislativa deriva da

própria noção de Estado de Direito democrático.

Como bem pondera Mark Tushnet, em muitas ocasiões o Legislativo e o Judiciário

podem discordar acerca da interpretação de disposições constitucionais, e ambos os

entendimentos serem absolutamente razoáveis.41 Assim, deve-se reconhecer ao legislador a

prioridade de ação na definição dos meios em os direitos sociais devem ser assegurados

concretamente, pois “a escolha dos valores e interesses prevalecentes em cada caso deve, a

princípio, ser da responsabilidade de autoridades cuja legitimidade repouse no voto popular,

devendo o Judiciário, em linha geral, acatar as ponderações feitas pelo legislador.”42

39 Cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 388-425, passim. Relacionado a esse tema é a discussão acerca da “proibição de retrocesso”, que diz respeito à possibilidade do legislador restringir ou extinguir prestações sociais que já haviam sido concretizadas legislativamente. Sobre o tema, que escapa aos limites deste estudo, cf. COURTIS, Christian (org). Ni un paso atrás: la prohibición de regresividad en materia de derechos sociales. Buenos Aires: Del Puerto, 2006; Na jurisprudência, cf. Acórdão n. 39/84 do Tribunal Constitucional português (que acolhe a proibição de retrocesso) e BVerfGE 98, 169, BVerfGE 77, 340; BVerfGE 39, 302, do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, nos quais se afirma que Constituição não garante serviços sociais existentes, e o legislador é geralmente livre para reestruturar, descontinuar ou enfraquecer esses serviços. In SCHWAB, Jürgen, op. cit.40 Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. O “direito ao mínimo de existência condigna” como direito fundamental a prestações estaduais positivas – uma decisão singular do Tribunal Constitucional: anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n. 509/02. Jurisprudência Constitucional, n. 1, jan/mar de 2004. Lisboa, Aatric, 2004, p. 23.41 Cf. TUSHNET, Mark, op. cit., p. 21. No contexto norte-americano, prevalece o entendimento de que opinião das cortes devem prevalecer, sendo sua interpretação final e definitiva (strong-form judicial review). No caso Cooper v. Aaron, a Suprema Corte estabeleceu que o legislador deve seguir as interpretações das cortes federais sobre a Constituição (358, US, 1, 18 (1958)); no caso City of Boerne v. Flores (521 US 507 (1997)), foi afimado que os únicos direitos constitucionais que o Congresso poderiam promover por via legislativa seriam aqueles reconhecidos pela Suprema Corte. Cf. TUSHNET, Mark, op. cit., loc. cit. É interessante observar que a defesa do ativismo judicial no EUA, especialmente no campo social é tido como argumento conservador, voltado para impedir avanços legislativos nessa área - ao contrário do que ocorre em Portugal e no Brasil, em que o ativismo judicial é visto como argumento “de esquerda”, ligado mesmo ao chamado “Direito Alternativo”. Nesse sentido, cf. CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. 6. ed. Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2003.42 Cf. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000, p. 114. No mesmo sentido, diz Andreas Krell que “num sistema pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante às alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado”. Cf. KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2002., p. 29. Para Humberto Ávila, por sua vez, o Legislativo tem “uma espécie de prerrogativa de avaliação (...) escolher as premissas empíricas”. Conseqüentemente, o Legislativo também possui uma margem de prognose, em relação “à previsão dos efeitos futuros da adoção de uma medida que visa a promover efeitos relativos ao interesse público”. Cf. ÁVILA, Humberto. Conteúdo, limites e intensidade dos controles de razoabilidade, de proporcionalidade e de excessividade das leis. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, nº 236, p. 369-384, abr./jun. de 2004, p. 380-381.

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Cumpre destacar que essa margem de atuação não deve ser reconhecida somente ao

Legislativo, mas também ao Executivo, pois a concretização dos direitos fundamentais sociais

não deriva somente da existência de leis ordinárias. Freqüentemente, as normas legais existem

até em profusão, mesmo nos países que não prevêem direitos sociais na ordem constitucional.

Mesmo depois da ação do legislador no sentido de densificar os direitos fundamentais

sociais por meio de normas legais, a efetividade desses direitos depende inteiramente da

Administração43, por meio dos serviços públicos. Cabe a ela, além de regulamentar as leis,

disponibilizar as verbas, infra-estrutura e pessoal sem os quais não há serviço público algum.44

Os problemas de concretização de direitos sociais, por sua vez, surgem justamente quando da

criação e manutenção concreta dos serviços públicos sociais legalmente previstos pela

Administração.45

Considerando não ser da função originária e imediata do Poder Judiciário desempenhar

atribuições centrais para adotar decisões complexas em matéria de políticas públicas46, deve-

se reconhecer aos “poderes políticos do Estado ampla margem de atuação no desenho e

execução dessas políticas”.47

8. JUDICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS

43 “Parece relativamente tranqüila a idéia de que as grandes linhas das políticas públicas, as diretrizes, os objetivos, são opções políticas que cabem aos representantes do povo, e, portanto, ao Poder Legislativo, que as organiza sob forma de leis, para execução pelo Poder Executivo, segundo a clássica tripartição das funções estatais em legislativa, executiva e judiciária. Entretanto, a realização concreta das políticas públicas demonstra que o próprio caráter diretivo do plano ou do programa implica a permanência de uma parcela da atividade “formadora” do direito nas mãos do governo (Poder Executivo), perdendo-se a nitidez da separação entre os dois centros de atribuições.”Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari, Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002 p. 269.44 Cf. OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, p. 30.45 Nesse sentido, cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2000. p. 374; KRELL, Andreas J. Controle judicial dos serviços púbicos básicos na base dos direitos fundamentais sociais. In: SARLET, Ingo W. (org.) A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 25-60.46 Maria Paula Bucci define políticas públicas como “programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.” Cf. BUCCI, Maria Paula Dallari, op. cit. p 241.47 Cf. ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derehos exigibles. Madrid: Trotta, 2004, p. 248-249. Seguindo a doutrina, a Corte Suprema da Argentina (CSA) acompanha esse entendimento, no caso Ramos v. Província de Buenos Aires, no qual a autora formulou um pedido geral, cobrando do Estado prestações sociais que lhe garantisse o acesso à moradia, alimentação, saúde e educação, com base nos princípios enunciados pela Constituição. Em seu pronunciamento, a CSA assinalou que a dramaticidade do quadro social descrito não poderia ser resolvida judicialmente, uma vez que não lhe compete constitucionalmente a designação de recursos orçamentários para satisfação do bem-estar social. Cf. Caso Ramos, Marta R. y otros v. Pcia. de Buenos Aires y otros s/amparo, de 2002. Disponível em: www.csjn.gov.ar. Ainda no contexto latino-americano, o Tribunal Constitucional da Colômbia (TCC) apresenta elaborada construção jurisprudencial sobre os serviços públicos vinculados a direitos sociais. Seguindo no enfoque do direito à saúde, o TCC considera que, por força de determinação constitucional da saúde como serviço público a cargo do Estado (art. 49 da Constituição colombiana), cumpre ao legislador a definição dos critérios de acesso e o alcance das prestações do serviço público de saúde, realizada por meio de considerações políticas, econômicas e técnicas. Cf. Sentença T-978, de 2001. Disponível em: www.ramajudicial.co.

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É exatamente do reconhecimento da prerrogativa da efetivação política dos direitos

fundamentais sociais que surge a importância das considerações acerca do papel do Poder

Judiciário no reconhecimento de tais direitos, ou seja, da judiciabilidade dos direitos sociais.

Para alguns, as normas constitucionais referentes aos direitos sociais - especialmente as

que geram prestações positivas - são destinadas exclusivamente ao legislador como único

competente para fixar o conteúdo dos referidos direitos.48 Os juízes não teriam qualquer

capacidade funcional para tratar de questões dessa natureza, por envolverem temas que fogem

ao âmbito estritamente jurídico.49 No outro extremo, Mauro Cappelletti defende que a

atividade judicial de interpretação e realização das normas sociais na Constituição implica

necessariamente o reconhecimento de alto grau de criatividade do juiz.50 No entanto, também

nessa questão vale o clássico brocado aristotélico in medio stat virtus (a virtude está no meio).

É certo que as posições jurídicas fundadas em direitos fundamentais devem sempre ser

presumidas como direitos subjetivos (direitos subjetivos prima facie), a fim de garantir uma

facilidade maior de sua efetivação concreta.51 Entretanto, tal presunção deve ser

responsavelmente interpretada, sob pena de se incorrer num indevido “decisionismo” judicial,

pelo qual, em detrimento da norma legal, os princípios de direitos fundamentais acabam por

se tornar “verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer

quase tudo o que quiser”.52 Assim, uma presunção absoluta de subjetivação dos direitos

fundamentais acaba por atentar contra o próprio propósito original dessa presunção, que é a de

garantir uma maior efetivação dos direitos fundamentais. A radicalização dessa percepção

acaba por banalizar o recurso direto aos direitos fundamentais53, e, por conseqüência, diminuir

sua importância prática e seu peso argumentativo.

48 Nesse sentido, cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit., p. 186-187.49 Nesse sentido, cf. MÜLLER, J. P. apud SARLET, Ingo W., A eficácia dos direitos fundamentais, p. 28650 Cf. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1993, p. 39.51 Nesse sentido, cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 314 e ss; Luigi Ferrajoli defende que “para que as lesões de direitos fundamentais, tanto liberais como sociais, sejam sancionadas e eliminadas, é necessário que tais direitos sejam todos judiciáveis, isto é, acionáveis em juízo frente aos sujeitos responsáveis por sua violação, seja por comissão seja por omissão”. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Editorial Trotta, 1995, p. 917.cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 314 e ss;.52 Cf. SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200. No mesmo sentido, adeventem Dorf e Tribe que a Constituição não é “um espelho por meio do qual é possível enxergar aquilo que se tem vontade” ou “bola de cristal com a qual podemos ver qualquer coisa que queremos”. Cf. DORF, Michael & TRIBE, Laurence. Hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.3/17.53 Uma presunção absoluta de subjetivação acabaria por trazer uma radicalização dos direitos fundamentais, que traria como conseqüência um “jusfundamentalismo” e uma “emocionalidade jurídica”. Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de, op. cit, p. 145 e ss.

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O Poder Judiciário, pois, não deve, de forma preferencial, assumir postura criadora do

direito com base em decisões de cunho eminentemente valorativo54, num papel de “superego

coletivo de uma sociedade órfã, carente de tutela”.55 Esta solução, segundo Alexy, “não seria

aceitável sob o ponto de vista de uma Constituição que institui um legislador e, ainda mais,

que institui um legislador democraticamente legitimado de maneira direta”, além do que “não

seria compatível com o princípio da separação dos poderes, nem com o princípio

democrático”.56

Observa Zippelius que a preocupação, no caso, não é propriamente com o controle do

poder, mas com a atribuição de funções específicas a órgãos especialmente criados para o seu

desempenho. Os órgãos estatais devem ter sua estrutura e seu procedimento de atuação

conformados de acordo com as tarefas a ser desempenhadas, limitando-se, conseqüentemente,

às funções para as quais foram instituídos.57

Assim, relembrando o que foi dito a respeito da reserva do possível jurídico-política,

vale repetir que se deve reconhecer, em primeiro momento, uma ampla margem de

ponderação ao Legislativo e ao Executivo, baseada na tripartição de poderes e no princípio

democrático.

Entretanto, bem lembra Friedrich Müller que os direitos fundamentais “não são

‘valores’, ‘privilégios’, ‘exceções’ do poder do Estado ou ‘lacunas’ nesse mesmo poder, como

o pensamento que se submete alegremente à autoridade governamental ainda teima em

afirmar. Eles são normas, direitos iguais, habilitação dos homens”.58 Dos direitos

fundamentais também deriva o “dever estatal de tutela” (staatliche Schutzpflichten), pelo qual

o Estado tem o dever de proteger ativamente, inclusive de forma preventiva, os direitos

fundamentais contra ameaças dele próprio e de particulares.59 Sob esse aspecto, tem-se a

chamada eficácia dirigente dos direitos fundamentais, que desempenham função de ordem

dirigida ao Estado no sentido de concretizar sua realização.60

54 Cf. HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 239-240.55 Cf. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade órfã”. Novos estudos CEBRAP, nº 58, nov/2000. São Paulo: Ed. Brasileira de Ciências, p.183-202.56 Cf. ALEXY, Robert, op. cit., loc. Cit.57 Cf. ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1997, p. 411-412. Para Gustavo Amaral, numa realidade de “de meios escasso para atender a necessidades ilimitadas (...) há nela uma constante escolha. (...) Nessa circunstância, (...) deslocar a competência para o Judiciário em hipóteses que envolvam ‘escolhas dramáticas’ é querer alargar para aquele Poder competências que não são suas. (...). Cf. AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e conflito entre poderes. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 110/115.58 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 63.59 Essa noção foi desenvolvida a partir da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, no caso Lüth-Urteil (BVerfGE 7, 198), seguida por outros precedentes, tais como BVerfGE 20, 150 (154 et seq.); 21, 362 (369); 50, 290 (336 s.); 61, 82 (101); 68, 193 (205). Cf. SCHWAB, Jürgen, op. cit., p. 81-83..60 Cf. HESSE, Konrad apud SARLET, Ingo W., A eficácia dos direitos fundamentais., p. 171

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Considerando tais qualidades, é evidente que não se pode deixar que os direitos

fundamentais, fiquem à inteira mercê do administrador ou do legislador, ou mesmo de uma

simples maioria parlamentar ocasional61, sejam eles direitos sociais ou “de liberdade”.62

Ademais, retornando à distinção entre regras e princípios, convém destacar que, para

além da além do maior grau de abstração desses últimos, outra característica marcante dos

princípios é o fato de eles constituírem “exigências de justiça ou equidade ou alguma outra

dimensão da moralidade”, razão pela qual “possuem uma dimensão que as regras não têm – a

dimensão do peso ou importância.”63 Para Robert Alexy, seria esse critério qualitativo o que

verdadeiramente separa os princípios das regras64, o que reforça a relevância dos direitos

fundamentais sociais, cujas normas, conforme aludimos anteriormente, tem natureza

essencialmente principiológica.

Tendo em vista que a tripartição de funções do Estado de Direito democrático opera

necessariamente no campo dos direitos fundamentais65, vale relembrar que o Poder Judiciário

deve ser considerado como garantidor da Constituição, intervindo em caso de ofensas

comissivas ou omissivas do Executivo e do Legislativo.66 Cabe a ação do Poder Judiciário,

portanto, em caso de descumprimento evidente e arbitrário de incumbência constitucional.67

É importante enfatizar que a atividade judicial, realizada nos moldes aqui defendidos,

não vai de encontro à aludida prerrogativa de conformação do legislador ou do princípio da

tripartição de funções ou do Estado de Direito, na medida em que não invade o campo da

conveniência e da oportunidade política e se restringe a garantir direitos fundamentais no caso

61ALEXY, Robert, op. cit., p. 434 e ss.62 Leciona Jorge Reis Novais: “Há, em geral, várias modalidades de realização do mesmo direito social; o legislador é sempre livre de fazer escolhas, de determinar o que é que considera mais adequado para dar cumprimento às obrigações constitucionais. Mais, tal como acontece com os direitos, liberdades e garantias, ele pode também restringi-los, mas só o pode fazer desde que tenha justificação para tal; essa justificação tem que ser, todavia, constitucionalmente legítima, não pode resumir-se à mera vontade política, ao capricho ou ao preconceito ideológico. Essas, razões de mera maioria política conjuntural, são razões que devem ceder perante a força vinculativa dos direitos fundamentais, de todos os direitos fundamentais.”Cf. NOVAIS, Jorge Reis, op. cit., p. 311.63 Cf. DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 42/141. 64 Cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 47 e ss. J.J. Gomes Canotilho, por sua vez, também traz como característica dos princípios um “caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito”, ocupando uma posição de supremacia. Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes, op. cit, p . 1160.65 Cf. BONAVIDES, Paulo, Curso de direito constitucional, p. 587.66 De acordo com Gustavo Amaral, “a própria concepção dos direitos fundamentais deve ocorrer sob a ótica de uma sociedade aberta, democrática e pretensamente justa, o que exclui a visão autoritária de um único intérprete autorizado a fazer opções maniqueístas, nos moldes do 'tudo ou nada' ou do 'certo e errado'. (...) Em tais casos, a opção política é preferencialmente do Legislativo e do Executivo, cabendo ao Judiciário o controle de razoabilidade.” Cf. AMARAL, Gustavo, op. cit., p. 116-11967 Mesmo Bökenförde, para quem os direitos fundamentais sociais “vinculam o Legislador e o Poder Executivo apenas objetivamente, como normas de princípio, mas não podem fundamentar nenhuma pretensão reclamável diretamente aos tribunais”, admite a hipótese de intervenção judicial na “defesa ante uma inatividade extremamente abusiva.” Cf. BÖKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, op. cit., p. 67-68.

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concreto.68 Assim, evita-se um ativismo judicial excessivo, ao mesmo tempo em que se

garante a efetividade das normas de direito fundamental.69

No que diz respeito aos direitos sociais, mesmo à luz das considerações acerca da

reserva do financeiramente possível, não se pode aceitar que limites de ordem financeira

traduzam um “‘grau zero’ de vinculatividade jurídica dos preceitos consagradores de direitos

fundamentais sociais”, criando uma verdadeira “ditadura dos cofres vazios”.70

A atividade judicial, pois, deve resguardar o particular de “situações de necessidade

excepcional ou de injustiça extrema possibilitada pela inação legislativa, condenando as

entidades públicas com atribuições na matéria em prestações de conteúdo mínimo suscetíveis

– à luz das circunstâncias do caso concreto – de reparar ofensas intoleráveis à dignidade da

pessoa humana.” 71 Surge assim a idéia de judiciabilidade dos direitos sociais vinculada à

possibilidade de vulneração de condições mínimas de vida que assegurem a concretização do

princípio da dignidade da pessoa humana: o chamado mínimo para existência, do qual

trataremos a seguir.72

9. MÍNIMO PARA EXISTÊNCIA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

68 A esse respeito, observa Ronald Dworkin: “os juizes não deveriam ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já tomadas por outras pessoas. Este pressuposto não leva em consideração a importância de uma distinção fundamental na teoria política que agora introduzirei de modo sumário. Refiro-me à distinção entre argumentos de princípio, por um lado, e argumentos de política (policy), por outro. Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo político da comunidade como um todo. O argumento em favor de um subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política. Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo.” CF. DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 129.69 No contexto do direito português, observa Blanco de Morais que “a posição subordinada dos tribunais em relação à lei não inibem os mesmos órgãos de proceder, embora sem força obrigatória geral, à sua interpretação e integração autorizada. O disposto no n. 5 do art. 112º da CRP apenas impede, fora do campo de controlo da constitucionalidade, operações jurisdicionais de interpretação (clarificação do sentido das normas) e de integração (preenchimento de lacunas, como vazios de regulação) que sejam dotadas de eficácia externa e força obrigatória para os sujeitos situados fora do processo onde um determinado feito se encontra em julgamento”. Cf. MORAIS, Carlos Blanco de, op. cit., p. 37.70 Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 2004, p. 109-110. No mesmo sentido, observa Alexy que “a força do princípio da competência privativa do legislador não é ilimitada. Não é um princípio absoluto. Direitos individuais podem ter mais pesos que as razões da política financeira”. Cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 495.71 Cf. CORREIA, J. M. Sérvulo. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Lisboa: Coimbra Ed, 2004, p. 970.72 Vale adiantar, contudo, a lição de Ingo W. Sarlet.: “Em todas as situações em que o argumento da reserva de competência do Legislativo (assim como o da separação dos poderes e demais objeções aos direitos sociais na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes (fundamentais, ou não) resultar a prevalência do direito social prestacional (....), poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e Canotilho, que, na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito subjetivo definitivo a prestações; Cf. SARLET, Ingo W, A eficácia dos direitos fundamentais, p. 324.

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Como fundamento dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana também é

dotada da aludida eficácia dirigente e sujeita ao dever estatal de tutela, pela qual o Estado é

obrigado a promover sua proteção e promoção efetiva.73

No campo social, a proteção à dignidade da pessoa humana acaba por implicar a

necessidade de prestações estatais voltadas a evitar que o indivíduo seja submetido

involuntariamente a condições econômicas e sociais tais que ele acabe por se tornar mero

“objeto”, sem autonomia pessoal. Surge daí a defesa de uma proteção de um mínimo para

existência, “que se traduz (...) na exigibilidade, juridicamente reconhecida, de prestações

destinadas a garantir a todos os cidadãos um mínimo de ajuda material que lhes permita levar

uma vida condigna.”74

Vale destacar que a dignidade da pessoa humana, como valor supremo da ordem

constitucional, não é passível de ponderação quanto ao seu conteúdo essencial75, ao qual o

mínimo para existência é estritamente vinculado. Para Ana Paula de Barcellos, o mínimo para

existência seria verdadeiramente “o núcleo material” ou “fração nuclear” da dignidade

humana.76

Embora defendamos que, de forma geral os direitos fundamentais sociais devam ser

sempre ponderados à luz da reserva do possível77, há de se ter em conta a essencialidade da

prestação é diretamente proporcional à sua ligação com o mínimo para existência e é

inversamente proporcional à possibilidade de sua limitação.78 73 No contexto brasileiro, defende José Afonso da Silva que “Importa evidenciar que o Estado não pode desobrigar-se do seu papel de indutor, promotor e garantidor dos direitos fundamentais. Ao contrário, cumpre à organização estatal - mormente por meio de seu aparato administrativo - exercer ações em número, extensão e profundidade suficientes para bem desincumbir-se da obrigação constitucional de realizar um dos valores que fundamentam a República Federativa do Brasil: a dignidade da pessoa humana (inc. III do art. 2° da Constituição Brasileira)”. Cf. SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 212, abr./jun. 1998. p. 94.74 Cf. NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. p. 64. Vale transcrever ainda a lição de Isabel Moreira: “a defesa do mínimo de existência decorre diretamente da dignidade da pessoa humana (...). Pretende-se a criação de condições para e o exercício dos demais direitos fundamentais: daí a configuração o mínimo de existência como decorrência e instrumento daqueles valores fundacionais. Numa palavra, a dignidade da pessoa humana é a causa próxima do mínimo de existência.” Cf. MOREIRA, Isabel, op. cit., p. 135. 75 Cf. BVerfGE, 45, 187, In SCHWAB, Jürgen, op. cit., 182. Para maiores considerações acerca da questão da garantia do núcleo essencial de direitos fundamentais, tema que escapa aos limites deste estudo, cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 192 e ss; NOVAIS, Jorge Reis, As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizados pela Constituição, p. 779-798.76 Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 197.77 A noção de “reserva do possível” pode ser traduzida na possibilidade de limitação das prestações sociais por razões de ordem técnica ou financeira, embora caiba ao Estado demonstrar a razoabilidade dessas limitações, nos termos de sua original concepção pela jurisprudência alemã no caso caso Numerus Clausus (BverfGE 33,303). Cf. SCHWAB, Jürgen, op. cit., p. 656 e ss. Cf. também SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.78 Cf. AMARAL, Gustavo. Direito, escassez & escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 215-216.

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Em razão disso, nas prestações sociais ligadas ao mínimo para existência não há de se

falar em reserva do possível, “que só tem verdadeiramente sentido no que exceda esse

mínimo.” 79 Isso se aplica tanto à reserva do possível jurídico-política, referente à ponderação

quando da formulação de políticas públicas, quanto à reserva do financeiramente possível,

pois, em casos extremos, “direitos individuais podem preponderar sobre razões financeiras”.80

Nesse ponto, cumpre salientar que o mínimo para existência não deve ser compreendido

como sinônimo de “mínimo de subsistência” ou “mínimo vital”, pois a preservação da

dignidade da pessoa humana não se resume a mera garantia de sobrevivência do indivíduo,

mas também a “preservação da autonomia vital e da sua autodeterminação relativamente ao

Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas”.81 Assim, o mínimo para existência

deve abranger também aspectos de uma existência sócio-cultural82, senão sua garantia poderia

ser fundada somente no direito à vida, sem necessidade de se recorrer a direitos fundamentais

sociais.83

Ao mesmo tempo, vale enfatizar que, mesmo não sendo o mínimo para existência

sujeito à reserva do possível, haverá sempre certo espaço de conformação, pois não há

“conteúdo fixo do direito a um mínimo para uma existência condigna”.84 Assim, aspectos de

cunho cultural, social e econômico devem ser considerados na determinação das prestações

sociais essenciais para o mínimo para existência, que certamente não são as mesmas no Rio

Grande do Sul, no Rio de Janeiro, no Ceará ou no Amapá, por exemplo.85

79 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Jurisprudência Constitucional, p. 26. No mesmo sentido, cf. TORRES, Sílvia F. Direitos prestacionais, reserva do possível e ponderação: breves considerações críticas. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 769-792.80 Cf. ALEXY, Robert, op. cit., p. 344.81 Cf. MIRANDA, Jorge, op. cit., p. 184.82 Nesse sentido, cf. BverGE 92, 112 In SCHWAB, Jürgen, op. cit.,83 Sobre o tema, observa Ingo W. Sarlet: “Tem-se como certo que a garantia efetiva de uma existência digna abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física, situando-se, portanto, além do limite da pobreza absoluta. (...)O mínimo existencial (ligado à dignidade da pessoa humana) não pode ser confundido com o que se chama de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência (direito à vida). Não deixar morrer de fome é o primeiro passo para garantir o mínimo existencial, mas não é o suficiente. O Estado, pois, não é limitado, no campo dos direitos subjetivos a prestações - à garantia do mínimo vital”. Cf. SARLET, Ingo W., Direitos fundamentais, p.566-567.84 Cf. NOVAIS, Jorge Reis, op. cit., p. 21.85 Sobre o tema, observa Marcelo Novelino Camargo: “A noção de dignidade se concretiza histórico-culturalmente segundo a consciência jurídica de cada povo, sendo inegável que sociedades com maior desenvolvimento econômico e cultural terão melhores condições para promover os meios necessários a uma vida digna. Em razão deste aspecto, os bens, valores e utilidades nele abrangidos devem ser analisados de acordo com a sociedade, a época e o local. Por isso, sua configuração, apesar de possuir um conteúdo universal mínimo, será variável no tempo e no espaço de acordo com o desenvolvimento social, econômico e cultural de cada sociedade”. Cf. CAMARGO, Marcelo Novelino. O conteúdo jurídico da dignidade da pessoa humana. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (org.). Leituras complementares de constitucional: direitos fundamentais. 2ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2007, p. 124. No mesmo sentido, cf., dentre outros, AMARAL, Gustavo, Direito, escassez & escolha, p. 185; KRELL, Andréas J., op. cit., p. 63.

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Além disso, tal como alertamos ao tratar da presunção de subjetividade dos direitos

fundamentais, a idéia de mínimo para existência também deve ser objeto de interpretação

responsável, pois um alargamento demasiado do seu conteúdo também acaba por ir de

encontro ao seu propósito original de efetivação da dignidade da pessoa humana, ao banalizar

um conceito que deve ser empregado em situações extremas.86 Por isso, o recurso ao mínimo

para existência deve ser reservado a hipóteses de “necessidade e de vulnerabilidade, visando a

assegurar níveis mínimos de humanização apenas a quem não os consegue por si e quanto tal

for indispensável.”87

Como conseqüência, deve-se frisar também que o mínimo para existência deve ser

entendido dentro de um conceito de ajuda para auto-ajuda (Hilfe zur Selbsthilfe), no sentido

que as prestações sociais não devem buscar o estabelecimento da dignidade em si mesma, mas

sim sua proteção e promoção dentro de um contexto de indivíduos autônomos, livres e

responsáveis pelos seus próprios destinos.88 O mínimo para existência, pois, não pode servir

como fundamento para a formulação de políticas de cunho assistencialista, que acabam por

vulnerar a dignidade da pessoa humana ao criar indivíduos dependentes do Estado e, por isso,

manipuláveis por ele.89 Nesse sentido, vale lembrar a valiosa lição da poesia nordestina de

Luiz Gonzaga e Zé Dantas em “Vozes da Seca”: “mas dotô uma esmola a um homem qui é são

ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.”

86 Marcelo Novelino Camargo acompanha esse entendimento, ao dizer que, “apesar de desejável o acesso ao maior número possível de bens e utilidades, a ampliação demasiada do conteúdo deste princípio cria o sério risco de enfraquecimento de sua efetividade, podendo gerar um efeito contrário ao desejado. A delimitação apenas aos bens e utilidades indispensáveis (ou mínimos) é feita exatamente para evitar que isso possa acontecer”. Cf. CAMARGO, Marcelo Novelino, idem, p. 125.87 Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Jurisdição constitucional, p 26.88 Nesse sentido, Cf. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Idem, loc. cit.; SARLET, Ingo W., Direitos fundamentais, p. 566.89 Sobre o tema, defende Menelick de Carvalho Netto que uma tutela paternalista elimina precisamente o que ela afirma preservar, pois subtrai dos cidadãos exatamente a cidadania, o respeito à sua capacidade de autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando eternamente a menoridade de um povo reduzido à condição de massa manipulável. Cf. CARVALHO NETTO, Menelick de, apud ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, prefácio.