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ITAICI - REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA - Nº 24 ITAICI 24 - Junho de 1996 A LIBERDADE PERDIDA E REENCONTRADA ÍNDICE EDITORIAL TEXTOS Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nn. 24-44 Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nn. 45-72 Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nn. 73-90 ARTIGOS Sentimento de culpa e consciência de pecado Pe. José Roque Junges, SJ O pecado nos números 24-44 dos EE: Otimismo e personalismo na tradição cristã Pe. R. Paiva, SJ Exame particular Pe. Hervé Coathalem, SJ Exame geral Pe. Adolfo Mª. Chércoles, SJ e Pe. Hervé Coathalem, SJ Oração preparatória e preâmbulos Pe. Alex Lefrank, SJ Comentário dos Exercícios da Primeira Semana Ir. Mª. Fátima Maldaner, SND e Ir. Mª. Thereza Thiele, FSCJ As quatro primeiras adições sobre a oração Pe. Álvaro Barreiro, SJ A pedagogia dos Exercícios Espirituais nas CVXs Maria Clara Bingemer 1

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ITAICI 24 - Junho de 1996

A LIBERDADE PERDIDA E REENCONTRADA

ÍNDICE

EDITORIAL

TEXTOSExercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nn. 24-44Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nn. 45-72Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, nn. 73-90

ARTIGOSSentimento de culpa e consciência de pecadoPe. José Roque Junges, SJ

O pecado nos números 24-44 dos EE: Otimismo e personalismo na tradição cristãPe. R. Paiva, SJ

Exame particularPe. Hervé Coathalem, SJ

Exame geralPe. Adolfo Mª. Chércoles, SJ e Pe. Hervé Coathalem, SJ

Oração preparatória e preâmbulosPe. Alex Lefrank, SJ

Comentário dos Exercícios da Primeira SemanaIr. Mª. Fátima Maldaner, SND e Ir. Mª. Thereza Thiele, FSCJ

As quatro primeiras adições sobre a oraçãoPe. Álvaro Barreiro, SJ

A pedagogia dos Exercícios Espirituais nas CVXsMaria Clara Bingemer

MISTAGOGIA DOS EXERCÍCIOSA vida espiritual após os Exercícios Espirituais (II)Pe. Ulpiano Vasquez-Moro, SJ

ORAÇÃO INACIANAJesus e o TemploPe. Luis González-Quevedo, SJ

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SUBSÍDIOSEu pecador

A Parábola do Filho Pródigo: Contemplando o quadro de RembrandtHenry NonwenSíntese: Pe. Pedro Américo Maia, SJ

O dia seguinte do Filho PródigoHélcio França Alvim

Um método (caminho) para orar

LIVROSBibliografia da Primeira Semana dos ExercíciosIr. Maria Fátima Maldaner, SND

Barreiro, Álvaro, Povo Santo e Pecador (Ir. Maria Thereza)

EDITORIAL

A LIBERDADE PERDIDA E REENCONTRADA

Os Exercícios Espirituais (EE) de Sto. Inácio são uma sinfonia em quatro tempos ou "Semanas". A "Primeira Semana" inicia com uma grande "abertura": o "Princípio e Fundamento". A afirmação do Absoluto de Deus, como único "fim", relativiza todas as coisas, como "meios" para alcançar o fim. O exercitante se descobre livre para amar ("para louvar, reverenciar e servir"). Livre para alcançar a sua plena realização humana ("e, assim, salvar-se").

Num segundo momento, em contraste com o "sonho de Deus" sobre cada um de nós, a Primeira Semana quer fazer-nos perceber a desordem da nossa vida pessoal e o pecado do mundo em que vivemos. Como nos dias do profeta Oséias, "não há fidelidade (emet) nem amor (hesed), nem conhecimento de Deus sobre a terra. Mas perjúrio e mentira, assassínio e roubo, adultério e violência, e o sangue derramado soma-se ao sangue derramado" (Os 4,1-2). No contexto de uma história marcada pelo mau uso da liberdade, pedimos a Deus a graça de "sentir" e "conhecer internamente" as raízes do mal em nós mesmos, para detestar e corrigir os próprios pecados e desordens.

"Escravos do pecado, que leva a morte" (Rm 6,15-23), somos convidados a reconhecer a nossa verdade. A verdade mais radical de nossa vida é profundamente libertadora: somos filhos e filhas muito amados. Tão amados que, sendo ainda pecadores, Cristo morreu por nós, para que tivéssemos vida nova. Todos nós somos pecadores, sim, mas pecadores perdoados, recebidos com festa pelo Pai, rico em misericórdia.

Para um escritor ateu, o cristianismo teria "inventado o pecado, como um instrumento de dominação". Para Inácio de Loyola, como para todo cristão que fez a experiência do pecado e da misericórdia, a conversão (metánoia) é verdadeiro caminho de libertação, fonte de paz e alegria profundas. Quem alcançar o fim que se pretende na Primeira Semana dos EE, sentir-se-á mais livre, mais aberto, mais integrado consigo mesmo, com os outros, com o mundo e com Deus. O centro desta Semana não é, pois, o pecado, mas o amor gratuito do Pai que nos acolhe, nos perdoa e nos devolve a alegria de sermos salvos.

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Continuando a tarefa iniciada no número anterior, apresentamos, uma nova tradução dos números 24-90 do livro dos Exercícios. Este é considerado por muitos um livro hermético. Mas "o hermetismo depende mais do leitor do que do autor"1. No presente número a nossa revista pretende aproximar o leitor da Primeira Semana dos Exercícios.

Pe. José Roque Junges, professor de Teologia Moral no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, dá uma visão atual do pecado nas suas dimensões teologal e moral. E Pe. Paiva esclarece o mesmo conceito em EE 24-44, a partir da tradição cristã oriental.

Três textos traduzidos comentam o "Exame Particular", o "Exame Geral", a "Oração Preparatória e os Preâmbulos". Pe. Álvaro Barreiro estuda as quatro primeiras "Adições", enquanto as Irmãs Ma Fátima Maldaner e Ma Thereza Thiele dão uma visão de conjunto da Primeira Semana.

Maria Clara Bingemer apresenta "A Pedagogia dos EE nas Comunidades de Vida Cristã (CVXs)". E Pe. Ulpiano termina seu estudo sobre "A Vida espiritual após os Exercícios". As habituais seções "Oração inaciana", "Subsídios" e "Livros" encerram o presente número.

No momento em que a Igreja universal se prepara para celebrar um triênio "Rumo ao Novo Milênio", a equipe do CEI-ITAICI quer contribuir para o jubileu do ano 2000 com o que conhece melhor e aprecia mais: o estudo, a divulgação e a prática dos Exercícios Espirituais de Sto. Inácio.

NOTA:

1 João Cabral de Melo Neto, Cadernos de Literatura Brasileira, nº 1, março 1996, p.21.

ARTIGOS

Pe. José Roque Junges, SJ, professor de Teologia Moral no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, estuda as dimensões teologal e moral do pecado. "O verdadeiro significado do pecado só é inteligível para quem tem fé"

SENTIMENTO DE CULPA E CONSCIÊNCIA DE PECADO

José Roque Junges, SJ

Já se tornou um lugar comum repetir a frase de Pio XII de que o maior pecado da época atual é a perda do sentido de pecado. Não é novidade que o conceito de pecado entrou em crise e que hoje é difícil falar desta realidade. Parece que o pecado não faz mais parte da experiência humana das pessoas. Pecado é a denominação teológica do mal. Será que as pessoas não experimentam mais a presença do mal em si, nos outros e na realidade? Certamente não. Ou a dificuldade está mais no conceito de pecado transmitido pela catequese e a pastoral? O que sofreu um desgaste foi certa visão de pecado ligada a certa visão religiosa e moral sempre mais contestada. A compreensão de pecado que está em crise foi gestada dentro do movimento de culpabilização acontecida nos últimos séculos pós-tridentinos e como fruto de uma pastoral do temor popularizada pelas célebres Missões Populares1.

Assim o pecado foi sendo confundido com a culpa e o processo de culpabilização criou uma visão deturpada e exagerada de pecado. Pensava-se que se criaria uma consciência teológica de pecado culpabilizando psicologicamente pelo temor. A psicologia ajudou as pessoas a se libertarem das culpas neurotizantes. Devido a identificação entre culpa e

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pecado, a libertação do complexo de culpa acarretou igualmente uma perda da percepção do pecado. Este fenômeno pode ser considerado benéfico porque obrigará os cristãos a redescobrirem o verdadeiro sentido de pecado que não se identifica simplesmente com o sentimento de culpa. Antes havia uma consciência inflacionada de pecado fruto da tendência de culpabilizar-se. Ameaças apocalípticas não conseguem mais culpabilizar e o medo do inferno não mais amedronta as pessoas. A culpa não é parâmetro para falar do pecado. Estamos diante da inconsciência do pecado.

Em vez de se lamentar com este fato, é necessário tomá-lo como ponto de partida da reflexão, porque é algo que faz parte da própria dinâmica do pecado. O processo de culpabilização não permitia que aparecesse o que é característico do pecado, sua tendência ao escondimento e à inconsciência. O pecado tende essencialmente a negar-se e a camuflar-se. A resposta a esta tendência não é a culpabilização. É preciso assumir a inconsciência como princípio de compreensão do pecado.

A pedagogia inaciana nos Exercícios Espirituais assume também esta perspectiva. O objetivo da primeira semana não é culpabilizar mas criar uma verdadeira consciência de pecado, entendido como ingratidão e inconsciência diante de tanto benefício recebido. Por isso é indispensável ter chegado aos frutos espirituais do Princípio e Fundamento para vivenciar a experiência de pecado. As meditações da Primeira Semana não pretendem suscitar medo, angustia e remorso mas uma profunda sensação de sentir-se acolhido por Deus apesar da presença do pecado. Se a graça do Princípio e Fundamento é a consciência de sentir-se amado pelo Pai em Cristo, a graça da Primeira Semana é a consciência de ter sido ingrato e, apesar disso, sentir-se perdoado por este mesmo Pai. No fundo, trata-se da mesma graça sentida agora a partir da nossa fragilidade. Portanto, será uma experiência de pecado que provoca consolação e não desolação como acontece com o sentimento de culpa. A confissão do pecado é uma ocasião para experimentar o amor misericordioso de Deus. O mais importante não é a confissão do pecado mas a experiência do perdão.

Portanto, é muito importante não confundir sentimento de culpa, que pode ser fonte de desolação, e consciência teologal de pecado, que acontece num clima de consolação. Por isso, será preciso primeiro distinguir bem os dois elementos e depois entender a experiência teológica de pecado. A partir desta experiência espiritual e no interior dela é possível recuperar o sentido de culpa. A culpa deve ser entendida a partir de uma autêntica compreensão de pecado e não o pecado a partir do sentimento de culpa, como aconteceu tradicionalmente.

1 - A experiência da culpa

O contexto original da experiência da culpa é o conflito entre os desejos e projetos que o homem se coloca e o que acontece concretamente na realidade. É algo patente que a vida humana é povoada de projetos inconscientes e outros mais ou menos conscientes. Mas existe sempre uma distância entre o projeto e a realidade. Sempre se tem a impressão que algo escapa ou foge ao apelo. Nunca se é aquilo que se deveria ser. Esta situação de conflito é a marca radical da existência humana e nela se enraíza a experiência da culpa. Sempre se fica aquém daquilo para o qual se é projetado. A experiência da culpa se manifesta em duas vertentes: experiência das próprias limitações, porque aponta para a impotência em concretizar os projetos; e a experiência da alteridade, porque o outro resiste aos meus desejos. Na sua origem, a culpa é a experiência da não onipotência diante do futuro e do outro que não se deixam apropriar. Esta culpa originária faz parte de uma autêntica experiência humana e é um elemento essencial para uma psicologia sadia. É uma estrutura do ser humano. Neurótico é justamente aquele que não aceita a suas limitações diante do futuro e do outro.

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Esta culpa originária assume formas concretas que dependem da história psicológica de cada um. Assim a culpa recebe um conteúdo concreto a partir da trama existencial de cada um. Ela pode assumir duas formas concretas: sentimento de culpa e a consciência da culpa2.

O sentimento da culpa é inconsciente e está ligado à formação do superego. A identificação fundamental da criança com os pais leva a que ela negue os seus desejos pela interiorização da culpa em troca do afeto e da estima. Assim, a pessoa reage culpavelmente quando se sente inferiorizada e quando está na incerteza diante de algo desconhecido que se apresenta como ameaça porque teme ser indigno ou de perder a estima e o afeto. Por isso, existe um contínuo ajustamento aos desejos do outro e uma negação de si através da culpa. Este é um terreno fértil para o surgimento dos complexos de culpa frutos de uma dinâmica de culpabilização. As expressões do sentimento de culpa podem ser os escrúpulos, o remorso e os comportamentos de auto-justificação.

A consciência da culpa é consciente e pode ter dois pontos de referência: a lei externa e a voz da consciência. Ela tem duas expressões:

- Consciência da infração é percebida em relação a uma indicação puramente externa e material do que se deve ou não fazer. É imposta de fora para dentro e exige submissão. A norma não foi interiorizada. Não se entende e, no fundo, nem se aceita a exigência, mas é necessário obedecer por temor à autoridade que pode tomar alguma medida. Se esta autoridade não está presente infringe-se o interdito. Se ela descobre equivale a dizer que se foi apanhado em falta. A solução é cumprir a pena imposta. A culpa é sentida em relação à infração de uma lei imposta pela autoridade.

- Consciência moral da culpa é um desvio percebido não em relação a uma lei externa mas a uma lei interiorizada do ideal ou projeto de vida. Aqui não se trata de livrar-se da pena mas aceitar as limitações e intensificar o controle da consciência. Só neste nível existe contrição porque se reconhece a culpa e olha-se decisivamente para o futuro.

Nenhuma destas expressões da culpa abarca o verdadeiro senso de pecado. São duas realidades da experiência humana que estão relacionadas, mas se diferenciam claramente em quatro aspectos:

1. O reconhecimento da culpa é sempre diante de si mesmo e tem, pois, como ponto de referência, a consciência do sujeito. Portanto, a abrangência da culpa é dada pela consciência. Se tomarmos em consideração a forma mais evoluída de culpa, a consciência moral da culpa, mesmo ela está referida ao próprio sujeito porque o critério é o projeto pessoal, assumido pelo indivíduo. O outro não entra e mesmo se entra, é enquanto faz parte do meu ideal.

O pecado tem uma dimensão essencialmente objetiva, porque o seu reconhecimento é diante de Deus e do outro. O seu ponto de referência é a alteridade de Deus e da outra pessoa. Portanto, o seu abarcamento vai muito além da consciência porque atinge a Deus e ao outro. Aqui está a diferença mais fundamental entre culpa e pecado: a culpa está referida a si mesmo e é reconhecida diante de si mesmo; o pecado está referido ao outro e é reconhecido diante do outro. Daí surge a segunda diferença.

2. A culpa diz respeito única e exclusivamente ao sujeito e é devida a ele. Ele tem que se haver com a sua culpa, porque esta tem o tamanho que a consciência lhe dá. Ele é responsável diante de si mesmo e tem que ver como superar com suas próprias forças esta culpa. Este processo cria um “beco sem saída” que é justamente a fonte do processo de culpabilização. Não existe um outro que liberta desta culpa. O indivíduo tem que resolvê-la. Este é um caminho sem solução.

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O pecado é algo que já está presente antes da ação. O mal já está lá antes de o sujeito pecar. O pecado já está presente na natureza corrompida do homem e nas estruturas de pecado da sociedade. O pecado atual e pessoal apenas corrobora e dá expressão à tradição do mal. Portanto, o pecado, como uma dimensão do ser humano, é algo anterior à vontade atual da pessoa. A pessoa precisa ser libertada por um Outro, Deus, desta culpa através da graça. Aqui abre-se a terceira diferença.

3. O reconhecimento da culpa é algo essencialmente individual, porque é diante da consciência pessoal. O pecado exige um reconhecimento comunitário porque atinge a personalidade coletiva da humanidade. Reconhecer-se pecador significa reconhecer-se fazendo parte de um coletivo pecador. Os profetas questionavam a infidelidade comunitária do povo e exortavam a uma correspondente conversão. O sujeito do pecado, apontado pelos profetas, é o conjunto do povo. Paulo contrapõe nossa solidariedade hamartiológica (isto é, no pecado) em Adão à nossa solidariedade soteriológica (isto é, na salvação) em Cristo. Somos solidários no pecado e na graça.

4. O arrependimento em relação à culpa procura reparar atos do passado. Olha para trás. Busca apagar a culpa através da purificação. Esta tentativa de querer ritualmente que o mal cometido não tenha existido leva à frustração. A aceitação tranqüila da infidelidade por parte do sujeito e o esquecimento misericordioso por parte de Deus abre um caminho de superação do círculo do mal.

A contrição em relação ao pecado olha para o futuro de onde Deus chama para a reconciliação. O perdão esquece os atos do passado e convida a olhar para frente. O perdão anima e encoraja, porque aponta para a conversão, possibilitada pela graça e a misericórdia de Deus. O pai do filho pródigo não lhe pediu contas do que fez e onde gastou o dinheiro. Simplesmente o abraçou e o beijou, alegrando-se com a sua volta e fazendo festa. O irmão mais velho não podia aceitar este gesto do pai porque não conhecia o coração paterno e exigia um castigo que reparasse o estrago feito pelo irmão.

Esta tentativa metodológica de opor culpa e pecado é para que fique claro o que é específico do pecado. É necessário superar a identificação do pecado com o esquema psicológico da culpa, porque não permite uma compreensão teológica do mesmo. O pecado é uma leitura cristã que revoluciona a concepção da culpa porque a descentra do próprio sujeito e a compreende a partir da alteridade de Deus. Pecado é uma categoria essencialmente teológica, porque o significado da sua realidade foi revelado ao homem por Deus. Neste sentido, somente compreende o pecado quem tem Deus no horizonte da sua vida. O verdadeiro significado do pecado só é inteligível para quem tem fé. Portanto a perda do senso de pecado é, antes de mais nada, uma perda dos referências de alteridade e de fé. Mais adiante iremos recuperar a experiência da culpa, mas dentro do esquema teológico do pecado.

2 - Consciência de pecado

Nesta parte queremos abordar duas dimensões do pecado que é necessário distinguir, mas que estão intimamente interligadas. O pecado é, por um lado, uma categoria essencialmente teologal, porque o seu reconhecimento acontece em relação e diante de Deus. Contudo, por outro lado, é igualmente uma categoria moral, porque a sua experiência verifica-se na e pela consciência do sujeito.

No primeiro caso, o pecado aparece como uma realidade objetiva que supera o sujeito pecador, porque se manifesta como uma potência e uma força de rejeição ao projeto de Deus. É neste sentido que Paulo e João referem-se primordialmente ao pecado no seu sentido singular (Hamartia). O pecado é uma realidade anterior ao agir do sujeito que se experimenta globalmente como pecador. Só a graça salvífica de Deus o pode resgatar desta escravidão.

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No segundo caso, o pecado é uma experiência subjetiva que tem a abrangência da consciência. Manifesta-se como culpa em relação a uma falta moral contra Deus no ser humano. No seu aspecto moral, o pecado adquire conteúdo que permite distinguir entre o que é falta e o que é puro limite ou desvio. Por isso possibilita captar a verdadeira dimensão humana do pecado, porque expressa a intensidade do engajamento pessoal através da culpa.

A dimensão teologal compreende o pecado como estrutura pessoal e social de oposição ao Reino de Deus. É necessário tomar consciência desta estrutura, reconhecer a sua presença em nós e confessar comunitariamente a misericórdia salvífica de Deus que nos regenera e nos liberta desta potência que nos leva a pecar.

A dimensão moral compreende o pecado como culpa fruto de uma falta pessoal. É necessário tomar consciência dela, assumir responsavelmente as conseqüências e sentir-se perdoado.

O acento exclusivo em uma ou outra dimensão levará a exageros e distorções. Lutero acentuava apenas a perspectiva teologal do pecado e Freud unicamente a perspectiva moral presente na culpa. A verdadeira compreensão do pecado deverá saber conjugar estas duas dimensões. A concepção teológica do pecado é uma leitura cristã da culpa.

Esta perspectiva está presente na maneira de S. Inácio apresentar o pecado na Primeira Semana dos Exercícios Espirituais. As meditações não iniciam com o reconhecimento moral dos pecados pessoais, mas com a consideração teologal da realidade do pecado presente nos Anjos, em Adão e Eva e numa pessoa imaginária que por um só pecado mortal foi condenada (EE. 50-52). A ótica inaciana principia com a experiência teologal da realidade objetiva do pecado como força que se opõe a Deus e só depois abre o exercitante para o reconhecimento pessoal, isto é, moral da realidade do pecado.

2.1 - Dimensão teologal do pecado:

O pecado, como realidade objetiva, é uma força que induz para o mal e cuja amplidão ultrapassa a consciência do homem. Existe ignorância sobre a potência do pecado e sobre o modo como o projeto de Deus a respeito do homem é atingido por ele. O pecado tem como ponto de referência a Deus, pois é algo feito contra o seu desígnio sobre a humanidade. Assim, somente Deus pode revelar até que ponto sua obra é atingida pelo pecado, manifestando a força destruidora do mal e a gravidade das suas conseqüências para o homem. Se Deus não tivesse alertado e libertado a humanidade da potência do pecado, ela continuaria cativa nas trevas do mal. Já que o pecado atinge primordialmente a Deus e a sua obra, é uma categoria essencialmente teológica e, por isso, objeto de revelação da parte de Deus.

O pecado é um poder que precisa ser desmascarado e revelado, porque tende sempre ao escondimento para melhor manipular. Ele está presente nas estruturas pessoais e sociais desfigurando a imagem de Deus no homem, destruindo a vida e o convívio humano. A revelação bíblica está repleta de textos que desmascaram a iniqüidade do pecado e denunciam suas conseqüências funestas. Isto aparece, por exemplo, tanto na denuncia profética da opressão dos poderosos e na infidelidade do povo quanto na percepção, apontada por Paulo, da presença do mal no coração do homem.

A Revelação, não apenas desmascara e denuncia a presença do pecado, mas, principalmente abre uma perspectiva esperançosa de regeneração e libertação desta potência. Em Cristo, o pecado e o seu aguilhão a morte não tem mais poder sobre o homem. Através da ressurreição de Cristo, o Pai nos transferiu para o Reino de seu Filho onde o mal já está vencido e temos acesso à vida eterna.

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A revelação do pecado aparece principalmente no relato do pecado original (Gn 3). Sua intenção não é tanto descrever um fato temporal mas universalizar uma experiência humana, a presença do mal na historia da humanidade, e buscar sua origem primordial. Se Deus criou tudo bem feito, como pode existir o mal? Quer mostrar a origem do mal e o aparecimento das disfunções na historia. Afirma a origem absolutamente primária do bem. O mal tem sua origem na livre transgressão de uma ordem de Deus. Assim o mal é historicizado e libertado do seu fatalismo.

A doutrina do pecado original quer afirmar, antes de mais nada, que a natureza humana está corrompida, isto é, o ser humano está moralmente debilitado porque encontra-se em uma situação de vulnerabilidade diante do mal. Confiando em suas forças e sem a graça de Deus não conseguirá amar e fazer o bem. A identidade e a verdade fundamental do homem está na abertura de coração para o próprio Deus, para os outros e para o mundo. O descentramento de si e a abertura a Deus e ao outro é o princípio fundamental da realização humana. O pecado original cria o princípio contrário do autocentramento que corrompe e vicia as tendências da natureza humana colocando-as ao serviço deste egoísmo potenciado e excluidor dos outros.

Este princípio da pecaminosidade afeta, por um lado, os desejos e tendências do homem e está expresso no pecado da carne de Paulo (Rm 7, 13-25). Por outro lado, atinge também as estruturas sócio-culturais e esta dimensão é apontada pelo pecado do mundo de João pois mundo significa o conjunto de forças opostas e hostis ao projeto de Deus, realizado em Cristo (Jo 16, 8.11.20.33).

O pecado estrutural é a expressão histórica do pecado do mundo e o fruto da presença social do pecado original. O homem, ao pecar, cria situações e estruturas sociais de pecado e estas, por sua vez, fazem o homem pecar porque atingem as estruturas pessoais, criando uma certa mentalidade. O pecado estrutural não se opõe ao pecado pessoal, mas ajuda a compreendê-lo porque nos mostra situados por um mundo que consagra em suas estruturas o princípio do autocentramento.

O pecado estrutural tem sempre um sentido tanto ativo como passivo. Os homens, por um lado, configuram a convivência social pelas atitudes e opções tomadas, mas, por outro lado, são condicionados pela maneira como a convivência se estrutura. Assim pode-se falar de pecado estruturante e estruturado3

Se o princípio do autocentramento é freqüente nas relações pessoais, muito mais no contexto social onde se impõe a lei da busca do interesse de cada um. Esta mentalidade impossibilita qualquer interação e colaboração social. Assim se reforça a conduta egoísta que vicia toda relação social. Esta tendência dá origem a uma cultura individualista e egoísta que absolutiza o eu com seus interesses e que, no fundo, pretende igualar o homem a Deus. Por isso, rejeita Deus e o seu projeto sobre o homem. Neste sentido é pecaminosa. Esta cultura é o pecado estruturante que impossibilta a convivência social e a solidariedade. Este pecado estruturante corporifica-se em estruturas sociais que configuram o pecado estruturado. A mentalidade egoísta é sustentada por uma situação pecaminosa correspondente que, por sua vez, leva a pecar, reforçando-se a mentalidade estruturante. Assim o mal não está só na mentalidade das pessoas mas implanta-se em estruturas do seu ambiente social.

O pecado estrutural é uma corporificação do mal que é bem mais ampla que os pecados dos indivíduos e que leva as pessoas a pecar, aumentando a sua força. Não se trata tanto de descobrir e condenar os responsáveis por este pecado, porque sua realidade supera a voluntariedade dos indivíduos, mas de desmascarar a sua iniqüidade. É uma realidade que se impõe ao homem. Só com a graça de Deus é possível contrapor-se a ela. O pecado

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estrutural ou social é a aglutinação de tudo aquilo que se opõe ao Reino de Deus e, por isso, rejeita quem é a sua realização, isto é, Jesus Cristo.

2.2 - Dimensão moral do pecado:

A dimensão moral aponta para a realidade subjetiva do pecado. Trata-se do modo como a consciência experimenta a presença do pecado sob a forma de culpa pessoal. Se antes, na dimensão teologal, era necessário distinguir claramente o pecado da culpa para captar o realismo e a potência do mal, agora é preciso integrar a experiência da culpa na percepção do pecado para compreender como ele é interiorizado na consciência. A concepção teologal do pecado, como uma força potente que leva a pecar, não permite captar o grau de envolvimento pessoal no pecado. A abordagem moral, ao contrário, enseja a graduação na intensidade do pecado e a distinção entre atitude de pecado e atos pecaminosos. A culpa é a apropriação pessoal da realidade do pecado ou a manifestação fenomênica do pecado ao nível da consciência subjetiva.

O ponto de vista teologal descortina a perspectiva da esperança diante da potência e escravidão do pecado porque revela a regeneração e libertação oferecida por Deus em Jesus Cristo. O ponto de vista moral introduz a perspectiva da liberdade-obrigatoriedade com relação ao pecado permitindo detectar o grau de responsabilidade. Aqui o mal não é apenas uma questão teológica (atinge o projeto de Deus) mas torna-se um problema ético. Isto acontece quando o mal é posto em relação com a liberdade e a obrigação4.

Relacionar o pecado ou o mal com a liberdade significa afirmar que a sua origem está no próprio homem. O mal é obra da liberdade humana e não tem uma substancialidade própria comparável às coisas. Significa afirmar que “fui eu quem agiu”. Relacionar o mal com obrigação significa dizer que “eu poderia ter agido de outra maneira”. Essa possibilidade de ter agido diferentemente aponta para o “como se deveria ter atuado”. A verificação do “poderia ter agido de modo diverso” funda-se no reconhecimento do “deveria ter agido desta maneira”. A obrigação funda-se na presunção de que se é capaz de fazer o que se deve.

A liberdade e a obrigação fundam a responsabilidade da consciência sobre o seu agir. Contudo esta liberdade e obrigação não são absolutas, mas contingentes e situadas. Existem muitos fatores que determinam o agir e diminuem a consciência do dever. Assim, existe uma graduação na profundidade da responsabilidade. Esta depende da intensidade do engajamento pessoal da consciência no agir.

O pecado está presente na consciência como culpa. Ela é a manifestação fenomênica do pecado. Como esta expressão acontece na consciência, ela é proporcional ao nível de formação da consciência do sujeito. Por isso, existe uma graduação na manifestação do pecado. Os pecados não são percebidos do mesmo modo. É possível fazer uma distinção entre eles, dependendo principalmente do que se faz, isto é, da matéria ou do conteúdo da ação. Uns são mais graves e provocam mais culpabilidade do que outros que são mais leves. É importante que a percepção da culpa seja proporcional ao peso moral do conteúdo da ação. A tradição sempre fez uma diferença entre os pecados. Não é tudo a mesma coisa.

Na moral tradicional, a diversidade dos pecados era determinada essencialmente pela matéria grave ou leve. Assim falava-se de pecado grave ou leve, referindo-se unicamente à matéria. Outra terminologia era pecado mortal ou venial que reportava-se aos efeitos do pecado, isto é, à perda ou não da graça santificante. Hoje, os teólogos estão em busca de uma terminologia que leve em consideração tanto critérios objetivos (matéria) como subjetivos (engajamento pessoal no ato). Tradicionalmente falava-se de três critérios para que haja pecado no sentido pleno do termo: matéria grave, plena consciência e pleno

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consentimento. Mas o determinante para a moralidade do ato era unicamente a matéria. O acento está no aspecto objetivo, descuidando aspectos subjetivos.

Existem, portanto, dois planos na avaliação do pecado, como culpa pessoal: o plano da gravidade, enquanto compromete o conteúdo de um valor moral (objetivo) e o plano da mortalidade, enquanto compromete a existência cristã (subjetivo)5. Não se pode simplesmente identificar os dois planos, porque se referem a aspectos diferentes. Tendo presente estes dois planos, M. Vidal apresenta uma divisão tripartite do pecado6:

1) Pecado-opção fundamental: A opção fundamental constitui a estrutura e a base da personalidade moral de uma pessoa. Neste sentido, o pecado-opção seria o pecado em sua dimensão mais profunda. Engaja profundamente e, por isso, significa a morte da existência cristã. Pecado mortal é aquele ato em que está presente este pecado-opção. É uma maneira de orientar-se fundamentalmente na vida que compromete o significado da vida cristã. Por exemplo uma vida pautada estruturalmente por atos e atitudes de autocentramento sobre si e exclusão e manipulação dos outros. Esta orientação de vida nega o projeto de Deus sobre a pessoa humana.

2) Pecado-atitude: É uma forma de pecado que se realiza de um modo global em algum setor da existência cristã. É um pecado setorial, um vício, que é contrário a uma determinada virtude. Este autocentramento manifesta-se em atitudes, por exemplo, na maneira do sujeito viver o seu matrimônio, exercer a profissão, levar os negócios etc.

3) Pecado-ato: É o pecado singularizado que não comporta necessariamente todo o compromisso da pessoa mas que expressa a opção e as atitudes na precariedade do aqui e agora da vida. Existem atos que são uma concretização da opção e de uma determinada atitude. Eles são mortais neste sentido, enquanto expressões da pessoa como um todo. Outros não manifestam a opção e uma atitude determinada. Neste sentido, são periféricos no significado para a existência cristã do sujeito.

Esta distinção é importante para entender o que é conversão do coração. Ela não é autêntica se o ponto de referência são apenas os pecados-ato e não existe uma preocupação com a opção fundamental e as atitudes. Conversão significa mudança do coração e, portanto, deve atingir algo fundamental que determina a personalidade moral da pessoa. Esta base fundamental é a opção de fundo e sua expressão em atitudes. Este é sentido do Exame de consciência diário, proposto por S. Inácio. No Exame não se trata primariamente de examinar os atos particulares em vista de uma futura confissão, mas detectar a presença, nos atos, de uma atitude e opção de fundo. O Exame de consciência inaciano deturpa-se quando se reduz a um puro exame dos pecados-ato e não chega à raiz do coração que motiva estes atos, fundamento de qualquer conversão.

Conclusão

A distinção entre dimensão teologal e moral do pecado tem um significado pastoral para a celebração do sacramento da Reconciliação. Pode ser uma resposta para a discussão sobre a oportunidade da sua celebração comunitária ou individual. A questão não é se uma ou outra. Elas não devem excluir-se, mas, ao contrário, necessitam-se mutuamente. A celebração comunitária ajuda a compreender a dimensão teologal do pecado, isto é, a sua potência de oposição ao projeto de Deus. Uma potência presente nas estruturas pessoais e sociais, que nos supera e na qual somos solidários (solidariedade hamartiológica). Agradecer juntos pela graça de Deus que nos liberta desta força e nos regenera em Cristo (solidariedade soteriológica). A celebração individual oportuniza mais a dimensão moral do pecado, enquanto o sujeito reconhece, diante da Igreja, a culpa por atos e atitudes, livres e responsáveis, que o afastam de Deus e do irmão\ã. Experimenta a misericórdia do Pai que o acolhe e o perdoa em Cristo, através da mediação eclesial.

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NOTAS:

J. DELUMEAU, Le Péché et la peur. La culpabilisation en occident (XIII - XVIII) Paris: Fayard, 1983.

2 CENTRE SAINT-DOMINIQUE, Culpa, neurose e pecado, in: Iniciação à Teologia, Segunda Série: vol. 13, S. Paulo: Paulinas, 1982, pp. 26-34.

3 J. I. González Faus. Proyecto de Hermano: Visión creyente del hombre, Santander, Sal Térrea, 1987, p. 257.

4 P. RICOEUR, Culpa, ética e religião, Concilium (1970) n. 56, p. 684.

5 M. VIDAL, Moral de Actitudes, Vol. I: Moral fundamental, Madrid: Editorial PS, 1981, pp. 592-595.

6 IBIDEM, p. 622.

COMUNICAÇÃO

Entre os objetivos do CEI-ITAICI, inclui-se o de “Unir esforços e trabalhos daqueles que se dedicam aos Exercícios Espirituais ou estão no setor da Espiritualidade, possibilitando troca de experiências e formação permanente”. A revista, dentro dos seus limites de espaço e programação, terá prazer em publicar notícias sobre a existência e programação de outros Centros de Espiritualidade Inaciana e/ou Casas de Retiro, dedicadas à Pastoral dos Exercícios Espirituais. Publicamos, hoje, breve nota que nos foi enviada pela Secretaria do CECREI.

CECREICENTRO DE ESPIRITUALIDADE CRISTO REI

São Leopoldo/RS

Distando apenas 28 kms de Porto Alegre, o CECREI está situado numa bela colina de São Leopoldo, RS.

A casa foi, por muitos anos, o maior centro de formação do clero, tanto diocesano como religioso, no sul do país. Ao surgir um outro Seminário Maior diocesano, o centro funcionou como Colégio Máximo Cristo Rei e Faculdade de Filosofia e Teologia da Companhia de Jesus.

Com a transferência da Faculdade para Belo Horizonte, em 1980, nasceu o CECREI - Centro de Espiritualidade Cristo Rei, com o objetivo de promover a espiritualidade, oferecendo retiros, cursos, seminários, encontros, assembléias, dias de oração, atendimento individual e outras atividades afins.

No decorrer desses 16 anos, entre luzes e sombras, por vezes enfrentando desafios, o CECREI construiu sua história de ajuda a muitos religiosos(as), clero e laicato.

Cada ano e cada mês, dependendo dos recursos humanos disponíveis, o CECREI desenvolve uma intensa programação. Só no próximo mês de julho, o Centro programou: 11 Retiros personalizados (orientados pelos PP. Leopoldo Adami, Pius Sidegum (3), Miguel Schroeder (2), Dionísio Korbes; Irmãs Eulália Antoniazzi (2) e Cris; e Jovens da Escola Santo Afonso), 3 Retiros Intercongregacionais (PP. Isidro Sallet (2) e Inácio Spohr), e mais dois Retiros congregacionais (Ir. Mª Luiza Morschel e Pe. Miguel Schroeder), além do habitual “Dia de Oração”.

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TEXTO

No número anterior da revista iniciamos uma nova tradução portuguesa do livro dos Exercícios Espirituais (EE) de Santo Inácio. Publicados EE 1-23 daremos neste número, em três blocos, a tradução do resto da Primeira Semana. A primeira redação, devida ao Pe. Paiva, foi depois discutida e corrigida por outros membros do CEI-ITAICI. A equipe agradecerá toda sugestão que ajude a melhorar a tradução. O Pe. Cláudio é responsável pelas notas, aproveitando as notas, já clássicas, da edição do Pe. Géza.

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA

[24] (1) EXAME PARTICULAR E COTIDIANO:COMPREENDE TRÊS TEMPOS,EXAMINANDO-SE DUAS VEZES1.

(2) Primeiro tempo:

Logo de manhã, ao levantar-se, deve a pessoa propor-se evitar cuidadosamente aquele pecado ou defeito particular do qual quer corrigir-se e emendar-se.

[25] (1) Segundo tempo:

Depois da refeição2, pedir a Deus nosso Senhor, o que quer. Neste caso, a graça de recordar-se quantas vezes caiu naquele pecado ou defeito particular e de emendar-se para o futuro.

(2) Portanto, fazer o primeiro exame:pedir contas a si próprio sobre o ponto particular proposto3, do qual quer corrigir-se e emendar-se;

(3) percorrer o tempo que passou desde o momento em que se levantou até o tempo do presente exame, hora por hora ou período por período;

(4) marcar, na primeira linha4 tantos pontos quantas vezes caiu no tal pecado ou defeito;

(5) Em seguida, proponha novamente emendar-se até o momento do segundo exame.

[26] Terceiro tempo:

(1) Depois da refeição da noite, fazer o segundo exame, hora por hora, desde o momento do primeiro exame até o momento deste. (2) Anotar, então, na segunda linha, tantos pontos quantas vezes incorreu no tal pecado ou defeito particular.

[27] (1) SEGUEM-SE QUATRO ADIÇÕES PARA ELIMINARMAIS RAPIDAMENTEAQUELE PECADO OU DEFEITO PARTICULAR

(2) 1ª adição5:

Cada vez que a pessoa cair em tal pecado ou defeito particular, ponha a mão no peito, arrependendo-se de ter caído. (3) O que se pode fazer, sem chamar atenção, até mesmo diante de muita gente.

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[28] 2ª adição:

A primeira linha significa o primeiro exame; a segunda, o segundo. Por isto, à noite, observar se houve melhora da primeira para a segunda linha, isto é, do primeiro para o segundo exame.

[29] 3ª adição:

Comparar o segundo dia com o primeiro, isto é, os dois exames do dia presente com os do dia anterior. Observar se houve melhora de um dia para o outro.

[30] 4ª adição:

Comparar uma semana com outra. Observar se na semana presente houve melhora em relação à anterior.

[31] (1) Nota:

Deve-se notar que o primeiro "G", maiúsculo, que se segue, significa o domingo; o segundo, minúsculo, a segunda feira; o terceiro, a terça-feira; e assim por diante6:

(2) G ______________________________________

______________________________________

______________________________________g

______________________________________

______________________________________g

______________________________________

____________________________________g

____________________________________

____________________________________g

____________________________________

____________________________________g

____________________________________

____________________________________g

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[32] (1) EXAME GERAL DE CONSCIÊNCIA PARA SE PURIFICAR E MELHOR SE CONFESSAR

(2) Pressuponho que há em mim três pensamentos. A saber:

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(3) o meu próprio, que provém simplesmente de minha liberdade e querer;

(4) e outros dois, que vêm de fora: um proveniente do bom espírito e outro do mau7.

[33] (1) O pensamento8

(2) Há dois modos de merecer por ocasião de mau pensamento que vem de fora:

(3) 1º Por exemplo, vem um pensamento de cometer pecado mortal. Resisto prontamente e ele fica vencido.

[34] (1) 2º O segundo modo de merecer sucede quando me vem aquele mesmo mau pensamento e eu lhe resisto. Ele volta a vir uma e outra vez, e eu sempre lhe resisto, até que ele se retire vencido. (2) Este segundo modo é mais meritório do que o primeiro.

[35] (1) Peca-se venialmente quando vem o mesmo pensamento de cometer um pecado mortal e se lhe dá atenção, demorando-se por um pouco nele; (2) ou dele recebendo alguma satisfação sensual; ou sendo um tanto negligente em repelir este pensamento.

[36] Há dois modos de pecar mortalmente;

1º Quando a pessoa consente no mau pensamento, querendo9 logo agir como consentiu, ou desejando, se possível, pô-lo em prática.

[37] (1) 2º Quando se pratica aquele pecado mortal. Este modo é mais grave por três motivos: (2) primeiro pela maior duração; segundo, pela maior intensidade; terceiro, pelo maior dano para as duas pessoas.

[38] (1) A palavra

(2) Não jurar nem pelo Criador, nem pela criatura. A não ser com verdade, necessidade e reverência10.

(3) "Por necessidade" entendo não quando se afirma por juramento qualquer verdade, mas quando é de alguma importância para o proveito espiritual ou corporal ou dos bens materiais.

(4) Entendo haver reverência quando a pessoa observa a honra e o respeito devidos ao pronunciar o nome do seu Criador e Senhor.

[39] (1) Quando juramos sem necessidade, pecamos mais jurando pelo Criador do que pela criatura. (2) Advirta-se que é mais difícil jurar corretamente com verdade, necessidade e reverência pela criatura do que pelo Criador, pelas seguintes razões:

(3) 1ª: quando juramos por alguma criatura, visto que apenas invocamos uma criatura, não ficamos tão atentos e precavidos para dizer a verdade com necessidade, como quando invocamos o Criador e Senhor de todas as coisas.

(4) 2ª: quando juramos pela criatura, não é tão fácil ter reverência e acatamento para com o Criador, como quando juramos invocando o próprio Criador e Senhor. Pronunciar o nome de Deus nosso Senhor supõe mais acatamento e reverência do que pronunciar o nome da criatura.

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(5) Por isso, é mais admissível que os perfeitos jurem pela criatura do que os imperfeitos. (6) Pois, os perfeitos, graças à assídua contemplação e iluminação do entendimento, consideram, meditam e contemplam mais como Deus nosso Senhor está em cada criatura, segundo sua própria essência, presença e poder. (7) Sendo assim, quando juram pela criatura, estão mais aptos e dispostos a ter acatamento e reverência para com o seu Criador e Senhor do que os imperfeitos.

(8) 3ª: quando juramos freqüentemente pela criatura, há maior risco de idolatria11

para os imperfeitos do que para os perfeitos.

[40] (1) Não dizer palavra ociosa, isto é, palavra que não traz proveito nem para mim, nem para o outro, nem tem esta intenção. (2) Nunca é ocioso falar acerca de tudo o que tem proveito ou intenção de ajudar espiritualmente a si ou a outra pessoa; ou ser útil ao corpo e aos bens materiais. (3) Também não é ocioso conversar sobre assuntos estranhos a seu estado, como no caso de um religioso que trate de guerras ou de comércio.

(4) No entanto, em tudo o que foi dito acima há merecimento quando visa um fim honesto. E há pecado quando tem um fim mau, ou se fala sem necessidade.

[41] (1) Nada dizer que difame ou desacredite. Com efeito, se revelo um pecado mortal que não é público, peco mortalmente. Se revelo um pecado venial, peco venialmente. Se manifesto um defeito, demonstro um defeito próprio. (2) Mas, se a intenção for boa, pode-se falar em pecados ou faltas alheias de dois modos:

(3) 1º quando o pecado for público. Por exemplo: falar de uma prostituta pública, ou de uma sentença dada em juízo, ou de um erro público que contamina as pessoas com quem falamos;

(4) 2º quando se revela a alguém um pecado oculto, para que ajude o pecador a se levantar, se há esperanças ou razões fundadas para tanto.

[42] (1) A obra

(2) Considerando os Dez Mandamentos, os preceitos da Igreja e as determinações dos Superiores, tudo o que se pratica contra uma destas três matérias é pecado, maior ou menor conforme a sua importância.

(3) Entendo por determinações dos superiores, por exemplo, as normas da autoridade da Igreja12 em favor da paz, dando indulgências aos que se confessam e recebem o Santíssimo Sacramento. (4) Pois não pouco se peca agindo ou levando alguém a agir contra tão piedosas exortações e determinações de nossos superiores.

[43] (1) MODO DE FAZER O EXAME GERAL:CONSTA DE CINCO PONTOS

(2) 1º dar graças a Deus, nosso Senhor pelos benefícios recebidos;

(3) 2º pedir graças13 para conhecer os pecados e rejeitá-los;

(4) 3º exigir contas a si mesmo, repassando o período desde o momento de se levantar até o exame presente, hora por hora ou período por período. (5) Primeiro, dos pensamentos. Depois, das palavras. Finalmente, dos atos. Usar a mesma ordem indicada no exame particular;

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(6) 4º pedir perdão a Deus nosso Senhor pelas faltas;

(7) 5º fazer o propósito de se emendar com a sua graça. Rezar o Pai Nosso.

[44] (1) CONFISSÃO GERAL E COMUNHÃO

(2) Para quem quiser voluntariamente fazer a confissão geral, há três vantagens, entre muitas outras:

(3) 1º quem se confessa todos os anos, não está obrigado a fazer confissão geral.

(4) Há, porém, maior aproveitamento e mérito em fazê-la por causa da maior dor que experimenta agora a respeito de todos os pecados e malícia da vida inteira;

(5) 2º nestes exercícios espirituais os pecados e a sua malícia são mais interiormente conhecidos pela pessoa do que quando ela não se dedicava tanto às coisas interiores. (6) Se conseguir agora maior conhecimento e dor dos pecados, terá maior proveito e mérito do que antes;

(7) 3º Em conseqüência, como a pessoa está melhor confessada e disposta, encontra-se mais apta e preparada para receber o Santíssimo Sacramento. (8) A comunhão não somente ajuda para que não se caia em pecado, mas também para que se conserve no aumento da graça. (9) É melhor fazer essa confissão geral imediatamente após os exercícios da primeira semana.

NOTAS:

1 “Não devemos separar a ascética da mística. Inácio tem a preocupação contínua de buscar, encontrar e contemplar a Deus em todas as coisas. Para isso, procura manter a maior fidelidade possível à graça, às moções do Espírito Santo. Sua generosidade sugere-lhe vigilância perpétua, exame permanente da atenção (docilidade e fidelidade) às inspirações de graça, o que ele concretizou na prática de exame particular de consciência.A parte primitiva dos Exercícios consistia no exame de consciência. Aqui, os números EE 24-42 contém esta parte mais antiga dos Exercícios, usada por Inácio desde Alcalá, nas suas atividades apostólicas” (Pe. Géza, p.33)

2 “Nos tempos de Santo Inácio, almoçava-se na Espanha pelas 10 horas da manhã” (Pe. Géza, p.33)

3 O pecado da injustiça social e a opção evangélica preferencial pelos pobres podem constituir um ponto privilegiado para o exame particular de quem viver no contexto latino-americano.

4 No texto autógrafo: na primeira linha do “g”. O “g”, muito provavelmente, é a inicial de “gula”, como supõem os comentaristas. Neste caso Inácio estaria sugerindo que coloquemos diante de cada linha, que equivale a cada exame, a inicial do pecado ou do defeito particular do qual estamos lutando para obter a graça de emenda

5 Entende-se esta adição à luz da máxima inaciana: “Non coerceri maximo contineri tamen a minimo, divinum est”, que exprime a circularidade dos Exercícios (cf. G. Fessard, La Dialectique des Exercices Spirituels, Paris, Aubier, 1956) e que se poderia traduzir assim:- precisamos ter abertura ilimitada, liberdade de espírito, para com o infinito (= “non coerceri maximo”). Ver a “Liberdade Divina” (Transcendência de Deus);- e, ao mesmo tempo, aceitar a nossa limitação, a contingência, as circunstâncias concretas, a nossa natureza concreta (= “contineri tamen a minimo”);ir adiante,

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progressivamente, com “liberdade humana” (imanência do ser humano)” (Pe. Géza, p. 36-37).

6 A “Versio Vulgata” acrescenta que as linhas se abreviam diariamente, supondo que o número das faltas vá diminuindo, dia após dia. No texto Autógrafo, ao contrário, as linhas são iguais (cf. Géza, p. 36).

7 “A visão dos Exercícios é dinâmica. Considera o Eu humano na sua tensão existencial, entre dois mundos: o mundo divino e o antidivino. Em todas estas orientações fundamentais, sentimos a aplicação concreta do discernimento dos espíritos. O importante é a orientação básica da pessoa, a sua decisão radical para Deus; sentimentos vêm em segundo e terceiro lugar” (Géza, p.37). Os pensamentos que “vem de fora”: são de fora do querer humano. Surgem no campo da consciência humana não por escolha da pessoa, mas “espontaneamente”. Tais pensamentos podem ser considerados “nossos”, quando os aceitamos e repelimos, comprometendo então nossa liberdade humana. No contexto latino-americano é importante que o orientador tenha um mínimo de conhecimento dos condicionamentos pessoais e sociais da liberdade do exercitante, para que possa esclarecê-lo na questão da liberdade e responsabilidade diante do mal social.

8 Os “pensamentos” são da mesma ordem que as “moções espirituais”: muito menos que idéias, trazem consigo sugestões que impelem imediatamente a agir.

9 “O pecado mortal supõe decisão livre da vontade, que é a sua função típica” (Pe. Géza, p.8).

10 Estes elementos estão ligados ao “acatamento reverencial” tão caro a Santo Inácio (cf. M.E. Iglesias, A Graça do Acatamento reverencial em Sto. Inácio de Loyola, em Itaici, no 5 (1991) 21-38.

11 “O juramento, como também a conversa (EE 40) são apenas exemplificações. A norma de orientação é sempre a consagração total da criatura a Deus (EE 23), que não permite nenhuma espécie de idolatria” (Pe. Géza, p.38).

12 No texto Autógrafo “bulas de cruzadas” e “outros indultos”. Estes são exemplos que, para nós, requerem outros exemplos a fim de serem entendidos. Portanto, preferimos uma tradução de caráter mais genérico, “normas”, que conserve a intenção de Inácio, que se demonstra no inciso “em favor da paz, confessando e recebendo o Santíssimo Sacramento”. Como indultos e bulas de cruzada, com as condições de confessar e comungar, eram concedidas, habitualmente, pela autoridade papal, escolhemos dizer ”normas da autoridade da Igreja”. Adequadamente anota o Pe. Géza: ”Hoje, a orientação da Igreja Universal encontra-se sobretudo nos decretos conciliares do Vaticano II, nas encíclicas papais, ou nas diretivas dadas pela Santa Sé. Essa orientação da Igreja é, para os cristãos, objeto de exame de consciência” (Pe. Géza, p.41). Acrescentaríamos : documentos sinodais, manifestações dos bispos nas suas respectivas dioceses ou colegialmente, pelas Conferencias Episcopais... Levando em conta o contexto latino-americano, seria oportuno chamar a atenção do exercitante para o magistério o social da Igreja.

13 “Pedir graça, porque só Deus pode revelar ao homem a dimensão sobrenatural do pecado. O pecado, fruto do mau uso da nossa liberdade, faz parte do mistério profundo da nossa relação com Deus e ultrapassa o nosso conhecimento. É preciso ver o pecado à luz da Revelação sobrenatural. O conhecimento da malícia do pecado é graça. Trata-se, pois, aqui, de receber o conhecimento que Deus tem de sua criatura, feita à sua imagem, mas deformada pelo pecado. Na realidade, é Jesus crucificado a verdadeira relação do pecado (EE 53-54). Não há consideração do pecado que não seja, ao mesmo tempo, um encontro com Jesus Cristo” (Pe. Géza, p.41-42)

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ARTIGOS

Pe. Paiva é membro do CEI-ITAICI e Assistente Nacional dos Antigos Alunos da Companhia de Jesus no Brasil. Publicou, recentemente: Da Ceia ao Pai-Nosso. Para orar os passos da Paixão. São Paulo, Loyola, 1996 (Col. “Experiência inaciana”, 22).

O PECADO NOS NÚMEROS 24-44 DOS EXERCÍCIOS ESPIRITUAISOTIMISMO E PERSONALISMO NA TRADIÇÃO CRISTÃ

R. Paiva, SJ

Um santo oriental pode nos ajudar

Às vezes não percebemos os tesouros e bens que estão muito próximos a nós. Precisamos uma longa volta para avaliá-los em sua simples grandeza. São os que moram fora do Brasil que valorizam, inesperadamente, o feijão com arroz, a goiabada com queijo, o bolo de fubá com café acima do caviar com champanhe.

Um jesuíta russo, Ivan Kologrigov, pode nos ajudar, desde sua perspectiva de cristão do Oriente, a revalorizar a visão profundamente personalista e otimista do pecado dos números de 24 a 44 dos "Exercícios Espirituais". Pe. Kologrigov foi um oficial de família nobre que lutou durante a 1ª Grande Guerra nos exércitos do Czar. Teve de se exilar quando, em 1917, os comunistas tomaram o poder. Refugiado na Bélgica, converteu-se ao catolicismo e entrou na Companhia de Jesus, onde chegou a ser professor da Universidade Gregoriana. Devemos a ele uma obra que veio a ser um clássico da literatura espiritual russa: "Santi Russi"1 .

Nele, o Pe. Kologrigov nos oferece um mergulho nas profundas águas da espiritualidade cristã da Rússia, sem mesmo se esquivar das corredeiras dos seus hereges e cismáticos.

A doutrina sobre o pecado de S. Nil de Sora

Tratando de S. Nil de Sora, monge do século XV (portanto, quase contemporâneo de Inácio), assim ele nos apresenta sua doutrina2 sobre a desordem de nossas paixões ("afeições desordenadas", diria Inácio):

"A imitação dos autores bizantinos, Nil indica cinco fases da marcha da paixão".

A primeira é a "sugestão" (prilog), uma impressão, uma primeira moção interior, um pensamento involuntário. São fruto, não de nosso livre arbítrio, mas do nosso ambiente. Não somos responsáveis por essa "sugestão". Mas se nos demoramos nela, então vai apoderando-se de nossa vontade e nos leva à segunda fase, ao:

"Afrontamento" (societanie), isto é: a atenção clara que a pessoa passa a dar ao pensamento, a princípio involuntário e casual. Agora já começa um comprometimento, um primeiro engajamento da vontade e da liberdade.

Neste momento, o dever da pessoa é "mudar em bem" o mau pensamento, o desejo impuro, a insinuação desonesta.

Infelizmente para o ser humano, muitas vezes ele não repele o mau pensamento, mas nele consente. O "consentimento" (slozenie) é a terceira fase. Ele implica em um passo (perdido) adiante. Começa uma adesão mais apaixonada para o mau pensamento ou

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desejo. A pessoa está quase pronta a realizar o pensamento que lhe ocorreu. Mas ainda pode resistir, com maior empenho. Se não resiste, então, desgraçadamente, passa à 4ª fase:

"A captura" (plenenie), que se verifica em dois casos:

a) a pessoa é levada involuntariamente aos maus pensamentos e é seduzida por eles contra o seu próprio desejo. Neste caso, dado que isto lhe acontece "involuntariamente", este tipo de "captura" não implica "quase" em pecado;

b) a pessoa segue os próprios pensamentos e desejos desordenados com plena consciência. Então, este estado de espírito é "especialmente nocivo". A alma se excita, a pessoa perde o controle de si mesma. "É jogada como pelas ondas da tempestade" e "vencida pelos pensamentos dissolutos". É o que ocorre sobretudo com pessoas "dadas a conversas sem utilidade e demasiado freqüentes".

A doutrina de Inácio

Inácio está nos apresentando dois exercícios espirituais que ele julga de extrema necessidade para a pessoa que peregrina em busca da vitória sobre si mesmo e da ordenação de sua vida, "sem determinar-se por afeição alguma desordenada" (21). Do no. 24 ao 31, ele ensina o exercitante a atacar seu vício, defeito ou "pecado particular" mais insistente com a arma do "exame particular". No nº 32, começa a tratar do exercício do exame geral de consciência, não tanto no contexto de um discernimento habitual, como adiante, no clima novo da Quarta Semana e da Contemplação para adquirir Amor", mas "para se purificar e melhor se confessar".

Um tanto inesperadamente, ele como que interrompe seu discurso sobre o exercício do exame geral e se põe a nos falar dos tipos de pensamentos humanos: "Pressuponho que há em mim três pensamentos". Claro: decido-me a estudar e aprender a fazer contas. Ocupo-me com as quatro operações. Estes pensamentos nascem de minha decisão. Do meu livre arbítrio: "o (pensamento) meu próprio, que provém simplesmente da minha vontade e querer".

Em seguida, ele considera os outros dois "que vêm de fora", ou do "mau" ou do "bom espírito". Podemos chamar o que vem do mau espírito de "sugestão" (prilog de S. Nil). Ao pensamento que vem "do bom espírito" podemos denominar "inspiração". Sigamos o ensino de Inácio sobre o rumo do mau pensamento. Notemos que ele "vem de fora", e que equivale perfeitamente à "sugestão" de S. Nil. Logo é involuntário em sua primeira apresentação ao nosso espírito.

O otimismo inaciano

Inácio (33) nos surpreende novamente: a análise de S. Nil se manifesta como presidida por uma ordem lógica. A de Inácio, embora profundamente concorde com a do santo russo, parece mais mística e afetiva, apesar de sua sobriedade habitual. Continua ele: "Há duas maneiras de merecer".

Também S. Nil percebe na sugestão e insinuação de fazer o mal uma ocasião de "mudar o mal em bem". Inácio analisa esta ocasião e nos faz perceber dois níveis de aproveitamento espiritual possíveis:

a) quando repelimos imediatamente a tentação e ela fica vencida. Há um mérito evidente nesta decisão, que recorda o Evangelho: "corta teu pé, tua mão, arranca teu olho, se eles forem causa de escândalo e tropeço para ti" (cf Mc 9,43-47);

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b) quando os maus pensamentos vêm e voltam e nos atormentam como moscas insistentes.

A experiência mostra que muitas boas pessoas pensam que isto é sinal de falta de bondade e de santidade: "Se me vêm tão insistente e inoportunamente estes desejos e pensamentos é que sou pecador mesmo". Daí a ceder ao desânimo interior e cair em tentação o passo é mínimo, embora, neste caso, teríamos uma "captura" contra o querer profundo da pessoa. Ela parece mais vítima de um erro que a prejudicou no seu combate interior e a deixou, aparentemente, derrotada. Aparentemente, pois, de fato, ela não teve o seu querer e liberdade profunda comprometidos. Ela como que foi levada pela onda de seus desejos desordenados mas "involuntariamente", o que diminui sua culpabilidade evidentemente.

Ora, o otimismo cristão de Inácio nos permite melhor vencer esta indesejada "captura" e este "consentimento" obtido dolosamente pelo tentador:

"O segundo modo de merecer sucede quando me vem aquele mau pensamento e eu lhe resisto. Ele volta a vir uma e outra vez, e eu sempre lhe resisto, até que ele se retire vencido. Este segundo modo é mais meritório do que o primeiro".

Portanto, Inácio vê nas insinuações para o pecado que nos ocorrem outras tantas ocasiões de merecimento, e não como um sinal de perdição. Quanto mais obsessivas e insistentes são as tentações, maiores ocasiões de mérito serão pela graça de Deus.

O personalismo da doutrina inaciana

Como S. Nil, a visão de Inácio sobre o pecado é autenticamente personalista. Isto é, para ambos o pecado não é a violação de algo que é declarado exteriormente como tabu ou lei. O pecado também não diz respeito a uma mera má ação à qual se chega sem saber direito como. Ele é um fruto de uma decisão livre diante de uma sugestão que "vem de fora", que ocorre à pessoa, e que a sua mesma consciência diz que é má:

"Peca-se venialmente quando vem o mesmo pensamento de cometer um pecado mortal e se lhe dá atenção, demorando-se por um pouco nele; ou dele recebendo alguma satisfação sensual; ou sendo um tanto negligente em repelir este pensamento" (35).

Trata-se de um ato interior, pessoal, de uma decisão diante daquilo que a mesma pessoa vê como mau: "um pecado mortal" para a sua mesma interioridade e consciência.

Do mesmo modo, quando a pessoa adere conscientemente ao que lhe surge, interiormente, como gravemente malicioso ("pecado mortal"):

"Há dois modos de pecar mortalmente" (36). Sendo um quando a pessoa consente no mau desejo ou pensamento: "Sim, vou me vingar! Quero me vingar, mas agora não posso!" Este é menos grave, porque a pessoa não chega a agir conforme sua decisão interior, que ela mesma vê como má3 .

O outro tem mais gravidade: a pessoa não só quer o que ela mesma vê como malicioso e perverso, mas toma medidas para executá-lo e o executa. Inácio indica as agravantes deste pecado: a maior premeditação ("duração" e "intensidade" da malícia interior) e o "dano" causado ao próximo.

Assim, para os dois mestres da espiritualidade cristã, Inácio, no Ocidente, e Nil, no Oriente, o pecado é o fruto venenoso de uma decisão pessoal diante de algo que, intimamente, interiormente, conscientemente, a mesma pessoa vê como injusto e desonesto. Uma visão autenticamente personalista. Por isso mesmo, autenticamente cristã:

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"Não é o que entra pela boca que torna o homem impuro; pelo contrário, aquilo que sai de sua boca ... o que sai da boca vem do coração, e é isso que torna o homem impuro. Pois do coração é que procedem maus pensamentos, homicídios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e injúrias. Isto, sim, é que torna o homem impuro, mas comer sem ter lavado as mãos não o torna impuro" (Mt 15,10-20)

Pecar por palavra

Nos nºs. 38 a 40, Inácio trata "do que sai da boca" em primeiro lugar, a palavra. Afinal, como diz S. Tiago, quem não peca pela língua é santo (cf. Tg 3,1-2).

Seguindo sua lógica interior, Inácio nos leva, subitamente, para o estranho mundo dos juramentos ("Não jurar ..."). Estranho porque jurar não parece muito costumeiro no Brasil de hoje. É preciso mergulhar, um pouco abaixo das primeiras impressões para surpreender que Inácio permanece atento ao coração humano e à sua vocação mais essencial, a liberdade: "procurando sempre achar o que eu quero" (76). Deve-se reler esses números dos "Exercícios" querendo encontrar, no delicado campo da palavra humana, a fonte da "verdade, necessidade e reverência" (38), exatamente o que nos salva da "idolatria" (39) e da futilidade (a palavra "ociosa" e "sem utilidade", isto é vã, fútil - 40), e, pior ainda, da tremenda capacidade de causar dano ao próximo pela difamação ou por palavras sussurradas aqui e ali, acarretando-lhe descrédito (41).

Pecar por obra

Os Dez Mandamentos são a referência cristã objetiva para o fiel que deseja educar sua consciência como também para Inácio. E não só o Decálogo, mas também o que a Igreja, em sua autoridade legítima, entende preceituar, ou o que os superiores recomendam. Logo o personalismo inaciano não corre o risco em se deteriorar num subjetivismo e individualismo extremados. Para chegar onde quer, Inácio é agradecido aos sinais e indicações autênticas e a seus autores. Contente em poder atinar com o rumo mediante as marcas e balizas do caminho, ele diz com toda a tranqüilidade:

"Tudo o que se pratica contra uma destas três matérias é pecado, maior ou menor, conforme a sua importância" (42,2).

Evidentemente, Inácio não absolutiza sem mais as determinações dos superiores. Ele não esquece o "fim" a que se pretende, para o qual fomos criados (23). Seu contexto supõe normas "em prol da paz", vividas em piedade verdadeira, atestadas e garantidas pelos Sacramentos da confissão e comunhão. Sua visão espiritual e sua fé ensinam que "não pouco se peca agindo ou levando alguém a agir contra tão piedosas exortações dos nossos superiores" (42,3).

O "exame geral"

Só agora Inácio vem a explicar como fazer o exercício do "exame geral de consciência", que "consta de 5 pontos" (43). Apenas a prática e a meditação garantirão ao exercitante que estes cinco passos, tão brevemente expostos, não são um beco opressivo, mas uma passagem para uma familiaridade com Deus e com seu trabalho quotidiano. Na verdade, unicamente o perseverante chegará a descobrir, à luz clara da "Contemplação para alcançar o Amor", o exercício do exame inaciano como uma retomada quotidiana do "fazer memória dos benefícios recebidos da Criação, Redenção e dons particulares", ponderados "com muito afeto", para cair em conta de "quanto o mesmo Senhor quer dar-se a mim" (234).

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Esta é a inspiração otimista e pessoal de Inácio no seu primeiro e decisivo ponto do "exame geral", em que recomenda "dar graças a Deus pelos benefícios" (43,2), a fim de que o exercitante possa avaliar sua caminhada "para que siga adiante na prática do bem" (315), sempre humildemente confiando na graça pedida (43,3).

A confissão geral

No contexto desta etapa dos "Exercícios", isto é, da "Primeira Semana", "o exame geral" prepara o penitente que procura colocar toda a sua malícia diante da misericórdia do seu Criador e Senhor pela "confissão geral e comunhão" (44).

Fiel a si mesmo e à liberdade cristã, Inácio propõe a confissão geral "a quem espontaneamente quiser fazer".

No entanto, o seu "espontaneamente" não exclui uma atitude que busca, convicta, a expor as suas razões para persuadir o exercitante a fazer a confissão geral "imediatamente após os exercícios da primeira semana". Ele argumenta com a maior sensibilidade ("dor") do exercitante em relação às suas passadas malícias, agora ponderadas à luz do "fim" para o qual foi criado e da constante bondade, misericórdia e oferta de salvação do seu Senhor e Criador. Esta sensibilidade e melhor visão do que se passou permitem um maior "aproveitamento e mérito".

Por outro lado, a malícia do pecado é melhor percebida pelo exercitante, que, anteriormente, não tivera como medi-la em clima de graça e oração, isto é, "quando ele não se dedicava tanto às coisas interiores."

Finalmente, "em conseqüência" o exercitante estará "melhor confessado e preparado" para a eucaristia. Ora, "o Santíssimo Sacramento", a comunhão, não só "ajuda para que ele não caia em pecado", mas também para que "se conserve no aumento de graça".

Também nestas simples exortações o observador mais atento logo percebe o personalismo de Inácio: ele quer o exercitante mais consciente e disposto, quanto possível, para a graça incomparável da sagrada comunhão. E o seu otimismo: Inácio não fala de "conservar o estado de graça", mas vai além, com toda a espontaneidade de quem tem essas coisas longamente vividas no próprio coração: trata-se, na sua expressão, de "se conservar no aumento de graça". Trata-se de crescer "em idade, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens" (Lc 2,52), como o próprio Jesus Homem Salvador.

NOTAS:

1 Kologrigov, Ivan: Santi Russi, con una introduzione de T. Spidlik e una nota de E. Vagin; a cura di Xenio Toscani; traduzione de Maria Luisa Giartosio De Courten; Cooperativa editoriale "La Casa di Matriona" - Brescia - Itália - 1977

2 Id., ib., p. 208-209.

3 Notemos, por exemplo, que pode se dar o caso em que alguém veja a vingança como algo natural e até moralmente exigida pelos seus valores.

ARTIGOS

O presente artigo foi traduzido e adaptado do livro Commentaire du livre des Exercices (col. "Christus", 18). Paris, 1965, pp. 107-112.

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EXAME PARTICULAR

Pe. Hervé Coathalem, SJ

1 - Características

1.1 - Objetivo

O exame particular está diretamente ordenado à pureza de coração. O exame geral visa à pureza de consciência, àquilo que é matéria para a confissão. O exame particular visa à purificação das tendências ou afetos desordenados, culpáveis ou não. No campo da consciência clara, o exame geral trata da culpa e do pecado. Dispõe a pessoa para a confissão, visando à purificação da consciência. O exame particular vai além, até os domínios mais obscuros das tendências e das afeições, com vistas a neutralizá-las e retificá-las. O uso conjunto e complementar dos dois exames tem por finalidade uma consciência transparente, num coração puro.

1.2 - Caráter "particular e cotidiano"

É essencial ao exame particular sua aplicação a uma tendência particular, errada ou simplesmente desordenada. Santo Inácio aplica aqui um princípio bem conhecido: enfraquecer e extinguir, progressivamente, os maus costumes pela supressão dos atos em que eles se concretizam. Inácio aplica o exame particular às tendências que atrapalham o serviço de Deus e do próximo. Nós só podemos controlar essas tendências agindo sobre os atos em que elas se apóiam. Os atos alimentam e fortalecem as tendências. Suprimindo os atos, resoluta e perseverantemente, as tendências diminuem e desaparecem. Ao falar da noite ativa dos sentidos, São João da Cruz aplica este princípio para extinguir os "apetites desordenados". Santo Inácio o utiliza, de forma gradual e metódica, no exame particular.

A eficácia deste exame depende, em grande parte, de seu caráter "particular e cotidiano" (EE 24,1). O exame particular supõe a delimitação da tendência que se quer corrigir e dos atos que a alimentam, bem como a exclusão decidida e perseverante dos mesmos, e a realização de atos contrários. Uma das razões pelas quais, muitas vezes, o exame particular não produz os frutos que seriam de se esperar é que, de fato, não foi nem "particular" nem "cotidiano", isto é, o objeto do exame não foi delimitado com a devida precisão, nem o exercício praticado de maneira perseverante.

1.3 - Método

O método do exame particular contém dois elementos essenciais e dois complementares.

a) Em primeiro lugar, uma atitude habitual de atenção vigilante (EE 24,2: "evitar cuidadosamente") a respeito do objeto do exame. Vem espontaneamente à memória a célebre fórmula do Pe. Luis Lallemant, SJ, e sua escola: "a guarda do coração", aspecto importante do itinerário espiritual. "É pela guarda do coração que se começa, por ela se progride e os progressos são proporcionais ao cuidado que se tem dela"1.

b) Em segundo lugar, a revisão, duas vezes por dia, no momento previsto (EE 25-26). A primeira, ao meio-dia. A segunda, no fim do dia. O tempo do exame geral é também o tempo da revisão do exame particular. Não se deveria esquecer que o outro aspecto essencial (a atenção vigilante ou guarda do coração) é permanente. A atenção vigilante sem a revisão seria ineficaz. A revisão sem a atenção permanente, seria mero formalismo. Bem aplicados, esses dois elementos essenciais constituem, juntos, um instrumento singularmente fecundo.

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a') Os elementos complementares são chamados por Santo Inácio de "adições". O primeiro refere-se à atenção vigilante. Santo Inácio recomenda sublinhar a tomada de consciência das faltas, com uma reação sensível e espiritual, por exemplo um gesto que expresse o sentimento de pesar, e renove o firme propósito. Este gesto estimula a atitude de vigilância, evitando habituar-se às faltas.

b') O segundo elemento complementar diz respeito à revisão. Inácio recomenda fazê-la de maneira lúcida, sensível e espiritual, examinando-se com relação ao desejo de crescer: Houve progresso no decorrer desta manhã, deste dia, desta semana? Segundo o testemunho de Laínez, Inácio permaneceu fiel a esse exercício até o fim da vida2. Assim se evita cair no relaxamento ou ficar marcando passo.

Como prova seu objetivo, os dois elementos complementares não devem ser menosprezados. Devem ser mantidos no seu lugar subsidiário. Eles admitem, sobretudo na sua expressão sensível, uma adaptação pessoal.

2 - O Exame Particular nos Exercícios

O exame particular acompanha todo o itinerário dos Exercícios, adaptando-se às diversas Semanas. No início, Santo Inácio o entrega ao exercitante, como instrumento flexível e eficaz, para ajudá-lo a viver, no dia a dia, os Exercícios. Esta ascese consiste nas "adições"3, que constituem, junto com os exercícios cotidianos, o objeto do exame particular durante o tempo dos Exercícios (EE 90). Se a atitude do exercitante se mostrar ambígua, o orientador deverá questionar-se a respeito da colaboração do exercitante, no exame, com a ação de Deus.

Dado que o exame particular acompanha o itinerário dos Exercícios, como salvaguardar seu caráter particular, diante da multiplicidade dos exercícios e adições? A resposta é óbvia: A unidade é obtida pelo fim que se persegue, que não é outro que o objetivo dos Exercícios. Os tempos de oração e as adições ajudam a discernir as ações que se devem praticar e os defeitos que se devem evitar.

A matéria do exame particular é constantemente reajustada durante o tempo dos Exercícios. Sua finalidade permanece inalterada. As condições da caminhada variarão, segundo as Semanas dos Exercícios. Daí a necessidade de um reajuste das adições e da matéria do exame (EE 73-90, 130, 206, 229).

No Evangelho o Senhor nos diz que o homem prudente, avalia com cuidado os gastos, antes de empreender a construção de uma torre (Lc 14,28). À luz do Evangelho e sob a unção interior do Espírito, Inácio calculou, com a mesma prudência, o custo exigido pelo itinerário dos Exercícios, em vista de sua plena fecundidade: o cumprimento dos exercícios previstos e a ascese constantemente reajustada pelas adições. Está persuadido de que, se o exercitante cumpre devidamente a parte que lhe toca, Deus fará o resto (EE 6). O exame particular é o instrumento simples, eficaz e preciso que avalia essa colaboração do exercitante com a ação da graça. Chama a atenção sua importância no decorrer dos Exercícios: ele se insere de maneira orgânica no centro do processo espiritual, com o fim de assegurar sua plena eficácia.

3 - O Exame Particular depois dos Exercícios

Os Exercícios constituem um período de treinamento intensivo, progressivo e metódico no caminho do serviço de Deus e do próximo. Uma vez terminados os Exercícios, a caminhada deve prosseguir, em condições menos privilegiadas e a um ritmo mais distendido, mas sem ruptura. Aquilo que deu segurança e fecundidade durante os Exercícios continuará a manter o ritmo na vida cotidiana. Para isto, bastará fazer as

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adaptações necessárias na oração e na ascese, de acordo com a situação de cada pessoa.

As características do exame particular permanecerão sem mudança: o mesmo método, o mesmo caráter particular e cotidiano. Somente a matéria variará de acordo com as respectivas necessidades e circunstâncias.

Às vezes, o exame se aplicará a uma tendência desordenada com o fim de neutralizá-la ou reorientá-la. Os autores espirituais aconselham começar por um defeito dominante, passando depois aos outros, por ordem de importância. Isto é um tanto teórico. Na prática deve-se ter em conta os condicionamentos e as possibilidades de cada um, bem como as exigências da própria vocação.

Outras vezes, é mais indicado escolher como tema do exame o desenvolvimento progressivo de uma virtude. Pode-se objetar que o exame particular se aplica às tendências desordenadas (EE 24) e não às virtudes. Contudo, no "primeiro modo de orar" (EE 238-243), que é de fato um exame meditado, Inácio propõe como matéria tanto os defeitos como as virtudes (EE 245). Aliás, o exame aplicado a uma virtude consiste, praticamente, em afastar os obstáculos que entravam seu desenvolvimento. É nesta perspectiva que Santo Inácio aplica o exame nos Exercícios, não à obtenção de uma virtude particular, mas para ordenar a própria vida, que é o objetivo dos EE.

Em todo o caso, sempre será preciso determinar o objetivo a alcançar, considerando os condicionamentos individuais: a tendência desordenada a eliminar, a virtude ou atitude a desenvolver, o desejo de crescimento espiritual... É preciso também determinar os atos a realizar ou a evitar para o fim que se pretende. Assim, durante o tempo dos Exercícios, tendo em vista a obtenção do seu objetivo, se marca o ritmo dos tempos de oração e adições.

Sob uma aparência negativa, a orientação do exame particular será sempre decididamente positiva: proteger e ajudar a crescer o mais possível a vida cristã pessoal e apostólica, favorecendo o desabrochar da liberdade espiritual.

Ordinariamente, será bom aplicar o exame particular a um ponto central, em lugar de algum ponto secundário da vida espiritual. Deste modo, evita-se centrar a atenção e o esforço num aspecto periférico, em detrimento do essencial. Evitaremos, também, o perigo de desvalorizar pouco a pouco o exame particular, perdendo o apreço por este exercício e fazendo-o perder aos outros.

NOTAS:

1 L. Lallemant, Doctrine spirituelle. Introd. et notes F.Courel (Col. "Christus", 3). Paris, 1959, 263. Existe uma antiga tradução brasileira (Petrópolis, 1940).

2 "Tinha tal vigilância sobre sua consciência, que comparava semana com semana, mês com mês, dia com dia, e se esforçava por progredir cada dia”, Fontes Narrativi, I, 140.

3 Sobre as "adições", cf. os dois artigos do Pe. Álvaro Barreiro, neste e no número anterior da revista.

ARTIGOS

Publicamos a última parte de um Seminário que o autor teve em Barcelona, em 1994. Um resumo do mesmo foi apresentado, com o título "La afectividad y los deseos", na coleção

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"Ayudar", no 16, da Escola Ignasiana d'Espiritualitat (EIDES), publicada pelos jesuítas catalães. Completamos o texto do Pe. Chércoles com comentários tirados do Pe. Coathalem.

EXAME GERAL

Adolfo Mª Chércoles, SJ e Hervé Coathalem,SJ

Se alguma coisa deve permanecer depois dos Exercícios Espirituais (EE) é a atitude permanente de vigilância, suspeita e discernimento. Tal atitude manter-se-á através do exame.

1 - O exame, ponto chave para Inácio

Inácio dava mais importância ao exame do que à oração. Tinha certo temor desta, por causa dos excessos de alguns. É celebre sua frase, a respeito de alguém do qual diziam era pessoa de muita oração: "quererão dizer de muita mortificação". E não se referia à penitência física. A mortificação é não fugir da realidade. Tentamos fugir dela, mas deveremos enfrentá-la, olhar para ela, não fugir. A matéria do exame é, precisamente, a realidade.

O exame consiste em olhar a realidade a partir de Deus. Aí não há possibilidade de fuga. Para Inácio é o grande método de oração. E nele a grande tarefa é o discernimento entre "minha liberdade e querer", de um lado, e isto que me está acossando por fora, do outro: os "espíritos", as "moções" (movimentos internos), bons e maus. É algo que nunca está resolvido. O discernimento é um repto permanente, não se pode programar, senão aplicar-se quando agem os espíritos. É uma atitude de continuo alerta. Pode-se programar a deliberação sobre um tema, mas não o discernimento. Temos que ser espertos, atentos, para perceber as "moções" que brotam na alma: "as boas para as seguir e as más para as rejeitar" (EE 313).

No nº 43 dos EE explicam-se os 5 pontos do exame geral, para ver minha realidade e os movimentos internos que surgiram ao longo do dia.

Sobre as "moções" não posso ter suspeita, porque as experimento, estão me movendo. Só tenho que discerni-las. Mas do mal que eu faço e das falhas que tenho, aí sim eu devo saber, porque é algo objetivo, que está aí, mesmo que eu não o queira admitir.

2 - O exame, síntese dos Exercícios

O primeiro ponto do exame é "dar graças a Deus Nosso Senhor pelos benefícios recebidos" (EE 43,2). Minha abertura para Deus parte do reconhecimento de que "é próprio de Deus dar consolação à alma" (cf. EE 329). A primeira contagem que devo fazer é para me sentir inundado de benefícios de Deus. Tenho que constatá-los, contabilizá-los. Eu mesmo sou puro dom. A petição da "Contemplação para alcançar amor" expressa preciosamente o que aqui se pretende: "Conhecimento interno de tanto bem recebido para que eu, reconhecendo inteiramente, possa em tudo amar e servir a sua divina Majestade" (EE 233).

Tudo começa com uma surpresa, a de sentir-me inundado de dons. Minha resposta diante desta surpresa é a gratuidade. Quando a gente fica sabendo que alguém se entregou a fundo perdido, desencadeia-se uma dinâmica de sair de si: porque me sinto puro dom, cheio de surpresa e gratidão, posso "em tudo amar e servir".

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Se o primeiro ponto é a surpresa agradecida de um Deus que se doou a mim, o segundo é a suspeita generalizada de mim mesmo: "pedir graça para conhecer meus pecados e rejeitá-los" (EE 43,3). É graça abrir-se-me os olhos para ver que, objetivamente, estou agindo mal. Este é o ponto de arranque da conversão. Quem tentar dissimular e sair bonitinho não tomou conhecimento da parábola do fariseu e do publicano. Todos sonhamos com nos apresentar a Deus como o fariseu: "Dou-te graças, Senhor, porque não sou como os outros". Mas é na fraqueza onde vamos nos encontrar com os outros. O pecado é o grande lugar de encontro comigo mesmo e com Deus. Pedro se encontrou com Jesus no pecado. Antes andava pela vida esnobando. Se tirarmos do Evangelho as negações de Pedro, ficamos sem Pedro.

O modo de entrar no exame é este: pedir que meus olhos se abram, para que eu tenha acesso a minha realidade de pecado, desmontar minhas defesas, minhas autojustificações: "pedir graça para conhecer meus pecados e rejeitá-los", porque é impossível "rejeitá-los" por nós mesmos.

O terceiro ponto é "exigir contas a si mesmo..." (EE 43,4). Na oração preparatória dos EE se diz "para que todas as minhas intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas ao serviço e louvor de sua divina Majestade" (EE 46). A intenção está dentro de mim e tem que expressar-se em ações, concretizar-se. Mas muitas vezes minhas ações não são iguais a minhas intenções: este é o primeiro fiasco. Então, nos defendemos dizendo que nossas intenções eram boas, como se aí terminassem as responsabilidades. Inácio diz: pede a Deus que as três coisas estejam ordenadas a seu serviço e louvor: intenções, ações e operações. Que são as operações? O que deixamos feito, o resultado de nossas ações. Também não coincidem sempre com as intenções. Temos a tendência de recusar a responsabilidade nas ações e no resultado. O exame visa a não nos refugiarmos no mundo das intenções, mas que tenhamos aceso à nossa realidade, que não é só subjetiva, mas também objetiva, a que os outros padecem.

3 - O exame, encontro com a Luz

Para Inácio o pecado é a ignorância radical; por isso pede graça para conhecê-lo. É a ofuscação por excelência da pessoa humana; por isso é graça que eu o descubra.

O exame é duro. É pôr-nos diante de Deus, que nos está inundando de benefícios, desprotegidos de defesas, e pedir-lhe que Ele nos descubra nossa pobre realidade. A grande graça da iluminação é que vejamos, porque estamos cegos. O exame vai ser o lugar do encontro com Jesus. Só Ele converte em Luz nossa treva1.

Pode-se dedicar uma parte considerável do exame a estes três primeiros pontos. O tempo restante ficará reservado à contrição e firme propósito (quarto e quinto pontos), sempre no espírito do colóquio de misericórdia. O pesar pelas infidelidades, assim como o reconhecimento pelos benefícios, pode ser estendido com proveito, ao menos de uma maneira geral, a todos os pecados do passado. Assim se alimentará e aprofundará constantemente o sentimento de compunção humilde e confiante, tão fecundo para a vida espiritual. O firme propósito de emenda e o impulso de reparação brotarão daí como que espontaneamente: "Que devo fazer por Cristo?". Um olhar filial ao Pai ("Rezar o Pai nosso") encerrará o exercício do "exame geral" (EE 43). No contexto deste deverá inserir-se o "exame particular"2, a desenvolver-se na mesma atmosfera.

Como vemos, nada existe do monólogo fastidioso, da introspecção escrupulosa e mórbida, do egocentrismo e do egoísmo larvado que alguns quiseram ver no exame. Trata-se simplesmente da pausa normal do servidor diante do seu senhor, do filho diante do seu pai, para dar conta da tarefa realizada, implorar perdão pelos desvios, irresponsabilidades e faltas cometidas e retomar um novo impulso para futuras tarefas. Nada mais justo e

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tonificante, mais apto para sairmos de nós mesmos e para entregarmo-nos a Deus do que estas breves paradas. Elas injetam saudável ar puro na consciência e no coração.

4 - Questionamentos a respeito do exame

A exposição que acabamos de fazer, em íntimo contato com o texto e o espírito dos Exercícios, basta para dissipar certas objeções. Estas supõem uma visão do exame que não é a de Inácio, ou bem uma concepção equívoca da vida espiritual, quanto a colaboração e prudente controle que normalmente nos corresponde.

a) "Contabilidade e minúcias", dizem às vezes. Há quem diga se trata de um centrar-se egocêntrico e doentio. Mas basta remeter à prática inaciana do exame de consciência para ver que não é nada disso. E a "guarda do coração" não é puro eco do evangélico "Vigiai"?

b) Será que o exame leva a uma concepção puramente negativa da vida espiritual, centrada na correção dos defeitos, na exclusão do pecado? Pelo contrário, trata-se apenas do reverso de uma realidade totalmente positiva: pureza de consciência (exame geral) e pureza de coração (exame particular), justa apreciação da parte de colaboração da pessoa humana na vida espiritual, atitude de seriedade na sua prestação de contas. Uma seriedade bastante humilde, mas que não tolera a negligência nem a preguiça e que conduz à autêntica liberdade, à alegria e à paz.

c) Por fim, critica-se o exagerado esforço humano exigido pelo exame e sua aplicação a pontos aberrantes da vida espiritual. Importa sublinhar que a atmosfera em que deve desenvolver-se o exame não é de modo algum uma atmosfera de introspecção egocêntrica. Para Inácio o exame de consciência é propriamente um colóquio cheio de humilde arrependimento, todo ele impregnado de fé, de confiança amorosa. Nada, pois, de semi-pelagianismo3. Trata-se simplesmente de equilíbrio evangélico entre a parte de Deus, sempre primordial, e a do ser humano, que não deixa de ser considerável na vida cristã e apostólica. Quanto aos erros que pudessem acontecer na aplicação do exame particular, basta consultar um(a) prudente orientador(a) espiritual. Ao longo dos Exercícios, Inácio insere o exame de maneira orgânica, no meio do processo. Será útil levar em conta esta prática inaciana também depois do retiro, na vida ordinária4.

5 - Conclusão

O exame não é uma fórmula sacramental que atua ex opere operato (por si mesma). É um instrumento de prudência espiritual singularmente eficaz, sabendo-o utilizar, pois está em íntima harmonia com a ordem da sabedoria evangélica e também com a natureza humana5. Não foi uma invenção de Santo Inácio. Estava em uso na Igreja e até fora dela, sob variadas formas, bem antes de Inácio. Este o adaptou à vida apostólica, deixando espaço para a flexibilidade e a plasticidade desejáveis, no que diz respeito aos elementos secundários.

NOTAS:

1 Aqui termina o texto de Adolfo Ma Chércoles. A continuação está tirada de H. Coathalem, Commentaire du livre des Exercices. Col. "Christus",18. Paris 1965, pp. 114-116.

2 Cf. Artigo anterior. Coathalem apresenta os dois exames no mesmo capítulo do seu Comentário aos EE.

3 O pelagianismo valorizava mais o esforço humano do que a ação da graça.

4 Dictionnaire de spiritualité. t.4, col. 1828-1829.

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5 O exame é "um instrumento para manter desperta a sensibilidade" espiritual (Chércoles).

TEXTO

Os números 45-72 dos EE propõem cinco exercícios para a Primeira Semana. Algumas expressões, habituais no tempo de Sto. Inácio, causam estranheza ao leitor de hoje: “alma encarcerada neste corpo corruptível”, “desterrado neste vale. A expressão é obsoleta. A realidade, porém, continua sendo atual. Inácio sugere à imaginação orante de quem faz os Exercícios que caia na conta das situações terríveis em que sentimos nosso próprio corpo, não mais como um dom, mas como uma prisão. O horror do cárcere, a solidão do exílio e a dor da doença, neste mundo marcado pelo pecado, são hoje tão reais quanto no século XVI.

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS DE SANTO INÁCIO DE LOYOLA

[45] (1) O PRIMEIRO EXERCÍCIO ÉA MEDITAÇÃO COM AS TRÊS POTÊNCIAS1

SOBRE O PRIMEIRO, O SEGUNDO E O TERCEIRO PECADO.

(2) ABRANGE, DEPOIS DE UMA ORAÇÃO PREPARATÓRIAE DOIS PREÂMBULOS,TRÊS PONTOS PRINCIPAISE UM COLÓQUIO.

[46] A oração preparatória2 consiste em pedir graça a Deus nosso Senhor para que todas as minhas intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas a serviço e louvor de sua divina Majestade.

[47] (1) 1º preâmbulo: a composição vendo o lugar3.

(2) Aqui se deve notar: na contemplação ou meditação de realidades visíveis, como, por exemplo, quando se contempla a Cristo nosso Senhor, que é visível, (3) a composição consistirá em ver, com os olhos da imaginação, o lugar físico onde se encontra o que quero contemplar.

(4) Digo "lugar físico", por exemplo, o templo ou o monte onde se encontra, por exemplo, Jesus Cristo ou nossa Senhora, conforme aquilo que quero contemplar.

(5) Quando se trata de realidades invisíveis, como é aqui o caso dos pecados, a composição consistirá em ver, com o olhar da imaginação, e considerar aprisionado neste corpo corruptível (6) todo o meu ser humano, desterrado neste vale 4 entre animais ferozes. Digo todo o meu ser humano, isto é, corpo e alma5.

[48] (1) 2º preâmbulo: pedir a Deus nosso Senhor o que quero e desejo6.

(2) O pedido deve adaptar-se à matéria proposta. Isto é, se a contemplação for sobre a ressurreição, pedir alegria com Cristo alegre. (3) Se for sobre a paixão, pedir pena, lágrimas e aflição com Cristo atormentado.

(4) Aqui, pedirei sentir vergonha e confusão7 a meu próprio respeito, vendo quanta gente foi condenada por um só pecado mortal (5) e quantas vezes mereci ser condenado para sempre por meus numerosos pecados.

[49] Nota

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Antes de começar cada contemplação ou meditação, deve-se fazer sempre a oração preparatória, sem mudá-la. Também devem ser feitos os dois preâmbulos acima referidos, mudando-os algumas vezes, conforme o assunto tratado.

[50] (1) 1º ponto8

Aplicar a memória ao primeiro pecado, o pecado dos anjos. Depois, a inteligência, raciocinando. (2) Logo, a vontade, querendo recordar e compreender tudo isso, para mais sentir vergonha e confusão, (3) comparando um só pecado dos anjos com tantos pecados meus. Eles, por um só pecado, foram para o inferno 9. Eu mereci o mesmo por tantos pecados.

(4) Explico: trazer à memória o pecado dos anjos, isto é, recordar como foram criados na graça. Não quiseram, no entanto, servir-se de sua liberdade para prestar reverência e obediência a seu Criador e Senhor. (5) Chegando à soberba, foram mudados da graça em malícia e jogados do céu ao inferno. (6) Depois, com a inteligência, examinar o assunto mais em particular e, a seguir, despertar mais os afetos com a vontade.

[51] (1) 2º ponto

Proceder do mesmo modo, isto é, aplicar as três potências ao pecado de Adão e Eva, (2) trazendo à memória como, por esse pecado, fizeram penitência por tanto tempo. E quanta corrupção veio disso ao gênero humano10, indo tantas pessoas para o inferno11.

(3) Explico: trazer à memória o segundo pecado, o pecado dos nossos primeiros pais. Adão foi criado no jardim do Éden12 e colocado no paraíso terrestre. Eva foi criada de sua costela. (4) Foi-lhes proibido comerem da árvore da ciência. Contudo, comeram e, assim, pecaram. (5) Então, vestidos com roupas de peles, foram expulsos do paraíso. Viveram sem a justiça original, que haviam perdido, passando por muitos sofrimentos e penitências ao longo de toda a vida. (6) Depois, refletir, como foi dito, mais pormenorizadamente com a inteligência e exercitando a vontade.

[52] (1) 3º ponto

Fazer a mesma coisa em relação ao terceiro pecado particular, o pecado de cada pessoa que por um único pecado mortal foi para o inferno. E muitas outras incontáveis pessoas que para lá foram por menos pecados dos que cometi.

(2) Explico: fazer a mesma coisa em relação ao terceiro pecado particular, trazendo à memória a gravidade e a malícia do pecado contra o seu Criador e Senhor. (3) Refletir com a inteligência como, ao pecar, agindo contra a bondade infinita, foi, com justiça, condenado para sempre. Terminar aplicando a vontade, conforme se disse.

[53] (1) Colóquio13

Imaginando Cristo, nosso Senhor diante de mim, na cruz, fazer um colóquio: como de Criador, se fez homem e como da vida eterna chegou à morte temporal e assim morreu por meus pecados. (2) Igualmente, olhando para mim mesmo, perguntar o que tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo e o que devo fazer por Cristo.

(3) Enfim, vendo-o nesse estado, assim suspenso na Cruz, ir pensando14 naquilo que me ocorrer.

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[54] (1) O colóquio, propriamente dito, se faz como um amigo fala a seu amigo ou como um servo, a seu senhor, (2) ora implorando um favor, ora acusando-se de uma ação má, ora fazendo confidências e pedindo conselho a este respeito. Rezar um "Pai Nosso".

[55] (1) O SEGUNDO EXERCÍCIO ÉA MEDITAÇÃO DOS PECADOS15

COMPREENDE APÓS A ORAÇÃO PREPARATÓRIAE OS DOIS PREÂMBULOS,CINCO PONTOS E UM COLÓQUIO

(2) A oração preparatória será a mesma.

(3) 1º preâmbulo

A mesma composição de lugar.

(3) 2º preâmbulo

Pedir o que quero. Aqui será pedir profunda e intensa dor e lágrimas por meus pecados16.

[56] (1) 1º pontoO processo dos pecados, isto é, trazer à memória todos os pecados da vida, examinando ano por ano, ou período por período.

Para tanto são úteis três coisas:

(2) 1º olhar o lugar ou a casa onde morei; 2º o relacionamento que tive com outras pessoas; 3º as ocupações que tive.

[57] 2º ponto

Ponderar os pecados, olhando a fealdade17 e a malícia que cada pecado mortal cometido contém em si, mesmo que não fosse proibido.

[58] (1) 3º ponto

Considerar quem sou eu. Diminuir-me por meio de comparações:

1º que sou eu, comparado com todas as pessoas?

(2) 2º que são os seres humanos comparados com todos os anjos e santos do paraíso?

(3) 3º que é a criação inteira diante de Deus? E eu, sozinho, o que posso ser?

(4) 4º olhar toda a minha corrupção e feiúra corporal.

(5) 5º Olhar-me como uma chaga e um tumor, donde saíram tantos pecados e tantas maldades e tão medonho veneno.

[59] (1) 4º ponto

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Considerar quem é Deus contra quem eu pequei, segundo os seus atributos, comparando-os com os seus contrários em mim mesmo: (2) sua sabedoria com a minha ignorância; sua onipotência com a minha fraqueza; sua justiça com a minha iniqüidade; sua bondade com a minha malícia.

[60] (1) 5º ponto

Assombro e admiração com intenso afeto18, repassando todas as criaturas: como me deixaram com vida e nela me conservaram! (2) Os anjos, embora sejam a espada da justiça divina, como me suportaram, protegeram e rogaram por mim. (3) Os santos, como intercederam e pediram por mim. Igualmente os céus, a lua e as estrelas, com os elementos, as frutas, as aves, os peixes e os animais. (4) Também a terra, por que não se abriu para me engolir, criando novos infernos em que eu penasse para sempre.

[61] Colóquio

Terminar com um colóquio de misericórdia19, refletindo e agradecendo a Deus nosso Senhor por me haver dado vida até agora. Fazer o propósito de emendar-me com a sua graça daqui para frente. Rezar o "Pai Nosso".

[62] (1) O TERCEIRO EXERCÍCIO:REPETIÇÃO DO PRIMEIRO E DO SEGUNDO EXERCÍCIO,FAZENDO-SE TRÊS COLÓQUIOS

(2) Depois da oração preparatória e dos dois preâmbulos, repetir o primeiro e o segundo exercícios. Prestar atenção e demorar-me mais nos pontos em que senti maior consolação, desolação ou sentimento espiritual20. (3) Em seguida, fazer três colóquios da seguinte maneira:

[63] (1) 1º colóquio

A Nossa Senhora21, a fim de que me alcance graça de seu Filho e Senhor para três coisas:

(2) 1º para que eu sinta conhecimento interno de meus pecados, detestando-os;

(3) 2º que eu sinta a desordem de minhas ações22, para que, detestando-a, corrija-me e ponha-me em ordem;

(4) 3º pedir conhecimento do mundo, para que, desgostando-me dele, afaste de mim suas vaidades e futilidades. Rezar a "Ave Maria".

(5) 2º colóquio

Do mesmo modo, dirigindo-me ao Filho23 para me alcançar do Pai essa graça. Rezar a "Alma de Cristo"24.

(6) 3º colóquio

Igualmente falar ao Pai25, a fim de que o próprio Senhor eterno me conceda essa graça. Rezar o "Pai Nosso".

[64] (1) QUARTO EXERCÍCIO:RESUMO DO TERCEIRO

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(2) Disse "resumo"26 para que a inteligência, sem divagar, discorra cuidadosamente pelo que recorda das coisas contempladas nos exercícios anteriores, fazendo os mesmos três colóquios.

[65] (1) QUINTO EXERCÍCIO:MEDITAÇÃO DO INFERNO27

ABRANGE, ALÉM DA ORAÇÃO PREPARATÓRIAE DOS DOIS PREÂMBULOS,CINCO PONTOS28 E UM COLÓQUIO

(2) A oração preparatória seja a de costume

(3) 1º preâmbulo: a composição de lugar.

Aqui será ver, com o olhar da imaginação, o comprimento, a largura e a profundidade do inferno.

(4) 2º preâmbulo: pedir o que quero

Aqui será pedir sentimento interior da pena que padecem os condenados, (5) a fim de que, se por minhas faltas, chegar a esquecer o amor do Senhor eterno, pelo menos o temor das penas me ajude a não cair no pecado.

[66] 1º ponto

Ver, com o olhar da imaginação, as grandes chamas e as almas como corpos incandescentes.

[67] 2º ponto

Aplicar o ouvido aos choros, alaridos, gritos, blasfêmias contra Cristo nosso Senhor e contra todos os seus santos.

[68] 3º ponto

Com o olfato, sentir o cheiro da fumaça, do enxofre, das cloacas, da podridão.

[69] 4º ponto

Com o paladar, provar coisas amargas: lágrimas, tristeza e o verme da consciência.

[70] 5º ponto

Tocar com o tato as chamas que atingem e abrasam os condenados.

[71] (1) Num colóquio com Cristo nosso Senhor, trazer à memória as pessoas que estão no inferno. Umas porque não creram na sua vinda. Outras, porque, apesar de acreditarem, não procederam conforme seus mandamentos. (2) Dividi-las em três grupos29:

1º antes de sua vinda2º durante a sua vida3º depois de sua vinda a este mundo.

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(3) E assim, agradecer-lhe porque não me deixou cair em nenhum desses grupos pondo fim à minha vida. Dar-lhe também graças porque e Ele teve sempre tanta misericórdia e piedade para comigo. Terminar com um "Pai Nosso".30

[72] (1) Nota

O primeiro exercício será feito à meia-noite. O segundo pela manhã, ao levantar-se. O terceiro, antes ou depois da Missa, contanto que seja antes de alimentar-se. O quarto, ao tempo das vésperas. O quinto, uma hora antes do jantar.

(2) Esta distribuição de horas é, mais ou menos, a que pretendo para todas as quatro semanas. No entanto, conforme a idade, a disposição e o temperamento do exercitante, ajudará fazer os cinco exercícios ou menos.

NOTAS:

1 Mantivemos o nome tradicional (“três potências”) que já faz parte do uso comum dos que dão e fazem os Exercícios. Contudo, atualmente, falaríamos antes de “capacidades” ou “faculdades”: memória, inteligência e vontade.

2 “A oração preparatória é um resumo do Princípio e Fundamento em forma de oração. Nela se pede a graça básica à qual querem conduzir todos os Exercícios, e que inspira todo o seu roteiro. É o horizonte constante dos Exercícios. Coloca o exercitante nas perspectivas transcendentais e trinitárias do Fundamento. Orienta para uma visão divina das realidades deste mundo.” (Pe. Géza, p.47).

3 “A composição quer colocar o exercitante numa situação “existencial”, penetrando, através das imagens, na realidade divina; introduzindo-o, por meio do experimental visível, ao mundo sobrenatural, invisível. É preciso que o exercitante, durante a oração inteira, se conserve nesta “ambientação” existencial, profunda, e que faça todas as suas reflexões dentro desta vivência global” (Pe. Géza, p.47). Não se trata tanto de fixar a imaginação para não estorvar a oração, quanto de nos servir dela para passar, do visível onde se expressa o mistério, à realidade invisível.

4 De acordo com a expressão da “Salve Rainha”: “neste vale de lágrimas”.

5 Inácio usa aqui expressões habituais no seu tempo, mas que hoje causam estranheza ao leitor comum: “alma encarcerada neste corpo corruptível e “composto humano”. O que ele sugere à imaginação orante de quem faz os exercícios é que caia na conta das situações terríveis em que sentimos nosso próprio corpo como uma prisão, e, portanto, já não mais como uma benção e um dom. Trata-se de situações em que já não nos sentimos solidários e ajudados, mas perseguidos e odiados. O horror destas realidades tão concretas e cotidianas neste mundo marcado pelo pecado e suas malícias ajuda-nos a perceber o horror de suas raízes em nossas decisões mais íntimas.

6 “O que quero e desejo” significa o que a pessoa quer alcançar da graça de Deus. Para que a oração dê o seu fruto, é preciso expressar a Deus o que se deseja, segundo as necessidades que o Espírito faz sentir e segundo a graça própria ligada ao assunto em questão.

7 Esta “confusão” fruto da Primeira Semana designa o sentimento da pessoa que se reconhece pecadora, mas compreende também a confiança no perdão e desabrocha finalmente em humilde oferecimento de si (EE 53) e em ação de graças pela misericórdia de Deus (EE 61).

8 Este primeiro exercício apresenta a gravidade do pecado na sua origem e universalidade:

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a) o pecado dos anjos, começo de todo pecado, fora do tempo; 2Pe 2,4; Jd 6.b) o pecado de Adão e Eva, na origem de nossa história, Gn 3,1-24.c) o pecado de alguém, isto é, de uma pessoa de nosso mundo atual.A consideração história e teológica, examinando o pecado a partir de certa distância, conduz o exercitante a um julgamento mais objetivo e a uma conversão espiritual profunda (cf. Pe. Géza, p.49).

9 Cf. Lc. 10,18; Ap 12,7-9.

10 Cf. Gn 4,10-12 (Caim); Gn 6,5-6 (o dilúvio); Gn 11,5-9 (Babel); Gn 18,20; 19,23-25 (Sodoma e Gomorra)...

11 Cf. Rm 5,12-19; Concílio Vaticano II, AA 7.

12 No texto Autógrafo: “no campo damasceno”. Reflete a opinião da época de Santo Inácio, conforme se encontra na “Vida de Cristo” de Ludolfo de Saxônia. O “jardim do Édem” era situado na região de Damasco, na Síria, donde “jardim damasceno” ou “campo damasceno”, como aparece no texto Autógrafo.

13 O “colóquio” ou diálogo é o ponto alto da oração, pois expressa nossa total presença perante Deus. Pode ser atingido a qualquer momento e não só no fim da oração. E pode mesmo prolongar-se durante toda a oração.

14 No texto Autógrafo: “discutir”. Esta palavra evoca a atividade própria da inteligência, que progride de um ponto a outro, tanto pelo raciocínio como pelas intuições do coração. Na oração, esta atividade se aproxima de um diálogo muito livre com Deus.

15 A finalidade desta meditação é a de alcançar a “dor” (EE 56) e a contrição (EE 61), sem preparar diretamente o exame de consciência que precede a confissão. Esta se realizará pelo fim da Primeira Semana.

16 “A graça que se pede nesta meditação é “profunda e intensa dor e lágrimas”. Trata-se de um dom do Espírito Santo, que não devemos confundir com reações psicológicas (que podem falhar e só acidentalmente acompanhar a graça pedida). É preciso considerar a graça desejada em suas dimensões teológicas” (Pe. Géza, p.53). Há uma dor que deixa a pessoa voltada para si (fica na auto-acusação e no desgosto por não ter sido o que deveria ser). Esta dor não é libertadora e não é a dor a ser buscada. É preciso buscar a dor que supõe a pessoa voltada para fora de si (dor pelo reconhecimento dos danos causados a quem não merecia tal). Neste caso temos uma expressão de amor, pois a pessoa se volta para o bem do outro. Esta dor torna-a solidária e não solitária.

17 A “fealdade” do pecado consiste na ingratidão para com Deus e no não reconhecimento de seu amor. Santo Inácio afirma que a ingratidão é o maior de todos os pecados e a fonte de todos os males (Cf. MHSI, Epistolae Ignatii, I,p.192). O pecado, portanto, manifesta-se também na ausência de ação de graças.

18 No texto Autógrafo: “Exclamação cheia de admiração com intenso afecto.”

19 “O colóquio da misericórdia é um colóquio de agradecimento. O exercício de ação de graças, segundo Santo Inácio, é meio privilegiado para libertar-nos do pecado por excelência, isto é, do pecado de orgulho” (Pe. Géza, p.55). O pecador (EE 56-57) entra e quer entrar no movimento de aniquilação (EE 58-59) e de morte (EE 60) que é a própria lógica do pecado. Experimenta, ao mesmo tempo, que, por graça, Deus o mantém em vida: daí seu grito de ação de graças (EE 60), porque sente, ao mesmo tempo, o peso do pecado que o esmaga e a alegria da salvação (EE 61).

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20 A repetição é um elemento capital da pedagogia dos Exercícios, pois permite, pouco a pouco, discernir os espíritos: com liberdade e desembaraço, voltamos aos momentos em que Deus, pelo gosto espiritual, começou a indicar-nos sua vontade, mas também aos momentos de secura, tentação e repulsa que talvez nos tenham impedido de encontrá-la.

21 “Nossa Senhora aparece, sempre, nos pontos mais críticos, mais difíceis dos Exercícios; aqui, neste exercício, como Medianeira Imaculada” (Pe. Géza, p.56).

22 Reconhecer a desordem e detestá-la supõe, para o exercitante latino-americano, consciência de sua situação pessoal em relação ao sistema injusto e opressor que vigora na América Latina, causa de tantos sofrimentos e mortes. Levando em conta ser este o continente onde é maior o número de batizados, é escandaloso o divórcio entre fé e promoção da justiça.

23 “Cristo aparece como Mediador do universo. O cristocentrismo dos Exercícios só se torna compreensível dentro de sua visão trinitária. Tudo se reencaminha à Santíssima Trindade, e nela ao Pai, que é a Fonte de toda a Divindade; Ele é o princípio originário de toda a paternidade” (Pe. Géza, p.57).

24 O Diretório do Pe. Polanco adverte que não é necessário propor a oração “Alma de Cristo”, se para o exercitante for mais conveniente outra oração (cf. Direct. 294, 3º).

25 “O Pai ocupa um lugar especial na vida de Santo Inácio. O Santo reconhece nele o Princípio absoluto, a fonte e raiz das outras Pessoas divinas. O Pai, no seio da Trindade, é o ponto central de todas as relações; dele procede tudo, e para Ele é tudo orientado (Ver Diário Espiritual, de Santo Inácio, 6 e março, 5ª feira; 7 de março, 6ª feira)” (Pe. Géza, p.57).

26 “O resumo é uma espécie de visão global do que já foi sintetizado anteriormente. O exercitante não se detém nos pormenores, mas deixa-se impregnar pela realidade dos fatos centrais. Considera-se a realidade objetiva, total, da qual não se pode abstrair impunemente, e para a qual deve orientar-se toda a aspiração subjetiva”(Pe. Géza,p.58)

27 Todos os Exercícios da Primeira Semana giram em torno de três realidades indissoluvelmente ligadas: pecado, morte e inferno, meditadas à luz da cruz que nos salva. A consideração do inferno como possibilidade escatológica permite ao exercitante ver até onde pode chegar o poder de destruição do pecado. Para o exercitante latino-americano pode ser útil também ter presente neste momento o “inferno” no qual padecem milhões de seus contemporâneos, condenados pelos mecanismos cruéis de um sistema injusto. O pecado destrói vida em todos os sentidos.

28 Os 5 pontos do exercício supõem o uso dos sentidos internos (“aplicação dos sentidos”). Este uso, porém, é diferente do que vem proposto para a Segunda Semana. Enquanto que na meditação do inferno o ponto de partida são imagens bíblicas de realidades que afetam os sentidos humanos, na Segunda Semana a ”aplicação dos sentidos” vem depois da repetição de contemplações da vida de Cristo. Neste segundo caso, temos um exercício que privilegia a comunhão com o Senhor em seu mistério e missão.

29 Os pecadores não são aqui agrupados segundo a gravidade moral de suas faltas, mas segunda sua relação histórica com o mistério da Redenção. Este colóquio volta nosso olhar para Cristo Rei, colocado no centro da História (cf. Hb 3,12-14).

30 A “Versio Vulgata” acrescenta ao número 71: “Se o orientador julgar útil para o proveito dos exercitantes, ajuntar a estas, outras meditações. Por exemplo, sobre a morte e outras penas do pecado, sobre o juízo, etc. Não pense que isto lhe é proibido, mesmo que aqui não se prescrevam”.

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COMUNICAÇÕES

No dia 12 de maio, João Paulo II proclamou seis novos beatos, entre eles duas religiosas Filhas de Jesus: Madre Cândida Maria de Jesus (1845-1912), fundadora da Congregação, em 8 de dezembro de 1871, e Irmã Maria Antônia Bandrés, falecida em 1919, com apenas 21 anos de idade. Ambas alcançaram a santidade seguindo o itinerário espiritual inaciano. Reproduzimos as palavras do Papa, na cerimônia de beatificação (L´Osservatore Romano ed. port., 18 maio 1996).

DUAS FILHAS DE JESUS BEM-AVENTURADAS

João Paulo II

Guardar os mandamentos de Jesus é a prova suprema do amor a Ele (cf. Jo 14,21). Assim o entendeu a Madre Cândida Maria de Jesus Cipitria y Barriola, que já na sua juventude dizia: “Eu só para Deus”, e no momento da sua morte afirmava: “dos quarenta anos da minha vida religiosa, não recordo um só momento que não tenha sido para Deus”. A sua profunda experiência do amor de Deus a cada uma de suas criaturas, levou-a a corresponder com generosidade e entrega. Plasmou a sua caridade para com o próximo na fundação da Congregação das Filhas de Jesus, com o carisma da educação cristã da infância e juventude. As atenções que prodigalizava às suas religiosas, aos benfeitores das suas obras, aos sacerdotes, às alunas, aos necessitados, até se fazer universal, são uma manifestação visível do seu amor a Deus, do seu seguimento radical de Jesus e da sua consagração total à causa do seu Reino.

A Madre Cândida disse um dia a uma aluna do seu Colégio de Tolosa: “Tu serás Filha de Jesus”. A jovem era Maria Antônia Bandrés Elósegui, que hoje sobe com a Fundadora à glória dos altares. Enamorada de Jesus, procurou que os demais também O amassem. Como catequista, formadora de empregadas, missionária no desejo sendo já religiosa, despendeu a sua breve existência em compartilhar, amar e servir os outros. Na sua enfermidade, unida a Cristo, deixou-nos um exemplo eloqüente de participação na obra salvadora da cruz.

O testemunho das vidas destas duas novas Beatas enche de alegria a Igreja e há de mover a sua Congregação, espalhada por tantos Países da Europa, da América e da Ásia, a seguir os seus ricos ensinamentos, o modelo da sua entrega e a perseverança na fidelidade ao carisma recebido do Espírito.

ARTIGOS

O autor é Assistente das CVXs (Comunidades de Vida Cristã) na Alemanha. Traduzimos parte de uma palestra proferida em curso de formação das CVXs, publicada em “Korrespondenz zür Spiritualität des Exercitien”, a partir do texto espanhol: “Manresa”, 67 (1995) 343-349.

ORAÇÃO PREPARATÓRIA E PREÂMBULOS (EE 46-48)

Alex Lefrank, SJ

I) A ORAÇÃO PREPARATÓRIA: PUREZA DE INTENÇÃO, ESVAZIAR-SE (EE 46).

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A oração preparatória, situada no começo de cada exercício, engloba a totalidade do caminho dos Exercícios. Seu conteúdo não é senão o Princípio e Fundamento (EE 23). Ao longo de todos os exercícios é sempre a mesma:

“A oração preparatória consiste em pedir graça a Deus nosso Senhor, para que todas as minhas intenções, ações e operações sejam puramente ordenadas ao serviço e louvor de sua divina Majestade” (EE 46).

À oração preparatória deve acrescentar-se a indicação com que Inácio ensina a colocar-se na presença de Deus: “

“Levantando ao alto o pensamento, considerar como Deus nosso Senhor me olha, etc., e fazer um ato de reverência ou de humildade” (EE 75).

O ser humano está cheio de múltiplas intenções: terminar o mais cedo possível o trabalho que está realizando, para passar a outra coisa mais gratificante; evitar o fastio de nossos próximos, ao mesmo tempo que nos comportamos com eles de maneira que fiquem contentes; cuidar de nossa saúde, etc. Inumeráveis desejos e angustias nos habitam e se tornam intenções determinantes de nossas ações e nossas omissões. Entre as numerosas orientações de nossa vida, que também podemos chamar de “intenções”, está a de centrar nossa vida em Deus, que no entanto, muitas vezes é uma intenção entre outras tantas. Se ela há de ter mais peso e maior espaço em nossa vida, temos que abrir-lhe esse espaço. Necessitamos libertar-nos de muitos desejos e angústias, para nos concentrar na intenção de servir e louvar a Deus.

Este é o fim e o sentido de nossa vida, como diz o texto do Princípio e Fundamento (EE 23). Todas as outras coisas são meios. As intenções com que buscamos estes meios, por exemplo trabalho profissional, descanso, saúde, boas relações com os outros, etc., devem ordenar-se e subordinar-se ao único grande objetivo de conseguir o fim de nossa vida. Para tanto, é necessária a liberdade interior ou indiferença frente a tais meios. Todas as escolas e tradições espirituais, inclusive de outras religiões, insistem nesta libertação.

A partir da “Contemplação para alcançar amor” (EE 230-237), adquire um sentido ainda mais positivo: Deus é como um amante, que deseja nos presentear com sua infinita riqueza. No entanto, nós, ocupados e cheios de nossos desejos e preocupações, de nossos pequenos prazeres e necessidades, não damos atenção e espaço nem a Ele nem aos seus presentes. Devemos nos libertar de tantas coisas, que são “lixo” em comparação com os seus dons, e tornar-nos receptivos a estes. Por isso, pedir pureza de intenção equivale a pedir receptividade.

Num momento histórico de exaltação da eficácia e capacidade, a consciência de que sempre e em tudo somos “receptores” é mais necessária do que nunca. A criação não gira em torno a nós, mas em torno ao Criador e Senhor. “Os joelhos em terra para adorar e as mão vazias em alto são os gestos primeiros do homem livre” (Alfred Delp, SJ).

Não é por acaso que Inácio inicia cada exercício pela oração preparatória. Dela depende que meu exercício seja oração. Não se trata apenas de um preâmbulo, mas uma oração. Como criatura que sou, eu não posso nada por voluntarismo. Necessito pedir e posso pedir.

A importância que Inácio dá a tal atitude manifesta-se no fato de não esquecer, em nenhum exercício, a advertência sobre a oração preparatória. Até na Contemplação para alcançar amor, figura a “oração de costume” (EE 231).

Penso que é preciso que cada exercitante a formule literalmente, como Inácio a formulou no livro dos Exercícios (EE 46). Deve ser ora[ano do próprio exercitante. Mas deve conter

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seu núcleo essencial, que consiste em orientar-me para Deus na minha atitude interior. Por isso, o termo “intenção” é exato, mas não insubstituível. Assim como, no final do Princípio e Fundamento, na fase de entrada nos Exercícios, pode ser bom que cada exercitante formule para si mesmo seu texto do Princípio e Fundamento, pode ser também bom que ele mesmo se formule a oração preparatória, ou que escolha entre as orações que expressam este sentido.

II) O PRIMEIRO PREÂMBULO: PALAVRA, IMAGEM, TEMA (EE 47)

Os Exercícios inacianos não são puro exercício de esvaziamento; têm seu conteúdo, composto de textos da Sagrada Escritura, meditados por cenas. Quando não existem textos, o conteúdo está entretecido de tradições bíblicas. Inácio conduz o exercitante, nas diversas “semanas” ou etapas do caminho dos Exercícios, através da história da salvação. A eleição, meta desta caminhada, está determinada pelo fim dos Exercícios espirituais: que o exercitante “busque e encontre a vontade divina na disposição de sua vida, para a salvação” (EE 1). Supõe conhecidas muitas coisas e se concentra na história do pecado, na salvação pelo mistério da Páscoa, na vida e obra de Jesus, em sua paixão e no seu retorno aos seus como ressuscitado.

Para além da eleição, os Exercícios são mais do que uma série de meditações edificantes de conteúdo bíblico. Como consegue isto Inácio? Por um lado está a conexão do respectivo conteúdo ou tema da oração com o desejo do exercitante (segundo preâmbulo: desejo-resistência: EE 48; cf. apartado III) Por outro, tenta unir o material bíblico com o mundo interior imaginativo como se encontra nas correspondentes fases do exercitante. Para isso serve, antes de mais nada, a “composição vendo o lugar”(EE 47), o primeiro preâmbulo. (A partir da segunda semana, acrescentar-se-á um outro preâmbulo, que passará a ser o primeiro: “Recordar a história que tenho de contemplar” [EE 102]). Serve também a sugestão das “adições”: “Quando despertar, não dando lugar a quaisquer outros pensamentos, dirigir logo o espírito] para aquilo que vou contemplar no primeiro exercício da meia-noite... propondo-me exemplos” (EE 74).

Deve-se imaginar o que se descreve nas narrações bíblicas. Mas com tal interpretação continuamos no plano de puro conteúdo. Se tomamos a sério os exemplos esboçados em EE 47 e 74, isto não basta. O que Inácio faz é, mais bem, pôr em jogo o estrato imaginativo profundo que existe no ser humano. E avança passo a passo. Conduzido pelo desejo de fazer uma experiência de “vergonha e confusão” (EE 48), deve o exercitante, na sua entrada no primeiro exercício da primeira semana, imaginar-se situações que o envergonhem no seu mundo vital. Para Inácio, que cresceu no mundo feudal da tardia Idade Média, era a imagem de um cavaleiro que “se achasse diante de seu rei... e de toda a sua corte, envergonhado e confundido por tê-lo ofendido muito”(EE 74). Os exemplos a imaginar interiormente nos quatro primeiros exercícios são mais profundos e enigmáticos”: “...a composição de lugar será ver, com a vista imaginativa e considerar que a minha alma está encarcerada neste corpo corruptível e todo o composto neste vale, como que desterrado entre brutos animais. Digo todo o composto de alma e corpo”. (EE 47).

Podemos sentir a tentação de rejeitar este texto como medieval e maniqueu. Mas a moderna psicologia profunda nos ensina a reconhecer nele, ao menos, reminiscências de protótipos antropológicos. Será que nunca temos sonhado com feras selvagens? Não nos temos sentido, alguma vez, como desterrados, entregues a poderes ameaçadores, longe da terra dos nossos desejos? Não está a literatura cheia da metáfora do calabouço, para significar não o cárcere exterior, mas a escravidão interior a mecanismos que nos rodeiam como um corpo, do qual não podemos nos desapegar?

Nesse contexto, podemos valorizar o número 47 dos EE como a tentativa de mobilizar o mundo imaginativo interior do exercitante, no qual, entre outros aspectos, reflete-se quão perdido e ameaçado ele vive. Mais adiante, questionar-mos-emos quando e sob que

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pressupostos isto é assim e está cheio de sentido. Agora devemos sublinhar a pedagogia de Santo Inácio, ao tentar ligar o material bíblico com o mundo interior psíquico do exercitante.

Quando isso se consegue, o material bíblico deixa de ser um material estranho. As narrativas da História da Salvação passam a ser minhas narrativas. O que é anunciado nelas como realidade, como promessa, como cumprimento, desemboca na minha realidade, meu desejo, minha esperança. E não apenas desemboca nelas, como também as mobiliza e as modifica. Assim a história exemplar da salvação, que aconteceu uma vez, torna-se novamente presente na história de minha vida.

Por isso, não é irrelevante quê textos se oferecem. Certamente, algumas lendas, relatos ou mitos, -como algumas histórias bíblicas-, contêm situações humanas primitivas e expressam conflitos e soluções de conflitos, arquetípicos. Neste sentido podem também ajudar algumas vezes. Mas no conjunto a história da salvação revelada é insubstituível por nenhuma outra. Não é certamente mito, isto é, exposição simbólico-imaginativa, surgida da experiência humana profunda do que há no ser humano, com cuja ajuda pode ser melhor entendido. É história autêntica de Yahweh, o Deus de Abraão, Jacó e Isaque com seu povo. Ele lhe fala e trata com ele enquanto toma e move cada homem até o mais profundo.

A Bíblia é um livro testemunhal daquele acontecimento que, iniciado por Deus, é reiniciado também em nós pela palavra testemunhal da Bíblia. Entra em nós, a partir de fora. Ouvindo-o e meditando-o, este livro se une com o que vive em nós e com o que, em nossos estratos profundos, foi expressado em símbolos e imagens. Enquanto nos voltamos, orando, ao iniciador de nossa vida, como iniciador que é da história da salvação da Bíblia, também nossa vida se torna história da salvação.

O comentário ao exemplo do preâmbulo aos exercícios da primeira semana (EE 47), deve estender-se também aos preâmbulos das seguintes semanas, sobretudo das grandes meditações-chave do chamamento de Cristo (EE 91), duas Bandeiras (138) e três classes de pessoas (EE 151). Não podendo entrar aqui em particularidades, baste dizer para a segunda semana o seguinte:

O “locus”existencial do exercitante mudou-se, fundamentalmente por meio do processo da primeira semana. As imagens de estar desorientado e ameaçado não desapareceram totalmente, é verdade, mas pela libertação experimentada, perdeu sua força amedrontadora. A energia espiritual concentra-se na relação de amor a Cristo. O qual dá origem a uma grande disposição para assumir e interiorizar com vital interesse os elementos de reflexão oferecidos pelo texto do Evangelho. É algo semelhante ao que acontece com os enamorados. Vivem completamente na imaginação do ambiente do espaço, do aspecto e dos gestos da pessoa amada. Acolhem avidamente tudo o que, por meio de sinais e comunicação, podem captar dela. Identificam-se com seu mundo e preenchem com sua própria fantasia os vazios produzidos pelas, talvez, escassas declarações que recebem. Entram em jogo, ademais, as próprias lembranças e desejos, que brotam das antigas, inclusive antiqüíssimas, experiências de relação.

Assim podemos entender, por exemplo, a indicação de Inácio na contemplação do nascimento (EE 112). Em apoio desta interpretação está o fato de Inácio, que conheceu como peregrino a Terra Santa, não trazer indicações deste conhecimento no livro dos Exercícios, mas deixar livre desenvolvimento à atividade daquele que contempla.

III) O SEGUNDO PREÂMBULO: DESEJO-RESISTÊNCIA (EE 48)

A pedagogia da oração de Inácio visa a que o ser humano, como pessoa responsável, entre no acontecimento oracional. Por isso volta-se também para o querer e desejar. Nestes movimentos o ser humano é um Eu da maneira mais plena. Desta capacidade de

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ser sujeito tornou-se consciente Inácio no princípio, quando descobriu os Exercícios. Assim formula: “Pedir a Deus nosso Senhor o que quero e desejo” (EE 48).

Na tradição espiritual poderia ser caso único uma petição tão medida e tão diretamente formulada. Mas na vida espiritual, no seu conjunto, trata-se de ajustar a própria vontade à vontade de Deus, o que pode conduzir a não fazer nada que eu queria e deseje.

O preâmbulo acrescenta: “A petição há de ser conforme a matéria proposta”. Isto é, visa -como vimos no primeiro preâmbulo- à apropriação da matéria da meditação. Com isto parece suficientemente esclarecido.

Mas se olharmos as formulações correspondentes, que o mesmo Inácio dá, do que o exercitante deve querer e desejar, sobre tudo em EE 48, descobrimos um significado ainda mais profundo. Para o primeiro exercício da primeira semana propõe o seguinte: “aqui será pedir vergonha e confusão de mim mesmo” (EE 48). No segundo exercício da primeira semana a petição é: “...grande e intensa dor e lágrimas dos meus pecados” (EE 55). Nos exercícios da segunda semana: “conhecimento interno de Cristo nosso Senhor...para que mais o ame e o siga” (EE 104).

As petições assim formuladas penetram profundamente na vida afetiva do exercitante. Se alguém estivesse interessado apenas em apropriar-se a matéria proposta como conteúdo, mal poderia apropriar-se dela. Pedir “vergonha e confusão”, ou “grande e intensa dor e lágrimas”, ou “conhecimento interno” de uma pessoa, “para que mais a ame e a siga”, isto é, para vincular a ela sua existência, etc., quem é que deseja e quer isso? Pelo menos das duas primeiras petições dir-se-á: “Isso pode-se suportar, se não houver outro jeito, mas querê-lo e desejá-lo, não, isso é demais!”

A questão já mencionada sobre as imagens oferecidas em EE 47 se coloca aqui imperiosamente: Quando e sob que pressupostos pode um ser humano ter o desejo que se expressa nestas petições? Vê-se também que, em contraste com a oração preparatória geral, que permanece inalterável durante todo o itinerário dos Exercícios, este segundo preâmbulo está vinculado à fase correspondente do itinerário.

Tentemos descrever, brevemente, o estado anímico interior de uma pessoa que se esforça por fazer sua a petição de EE 48: “vergonha e confusão” ou, mais exatamente, que quer e deseja ser envergonhado e confundido. Deve ter chegado, no seu caminho espiritual até que surja nele o reconhecimento de que algo não encaixa na sua auto-estima. “Certamente eu me sinto seguro e em ordem, mas sei também, contemplando honestamente minha vida, que ando errante e que, na verdade, poderia chegar ao desespero. Naturalmente, conto com a misericórdia de Deus e acredito que só posso agradecer-lhe o fato de estar vivo. Mas isso me deixa bastante frio. Comparo-me com outros e me tenho por melhor, mas sou, pelo menos, tão ruim e estou em tanto perigo quanto eles. Mais ou menos é assim que podemos caracterizar o estado de consciência de um ser humano que pode pedir uma mexida na sua falsa auto-segurança, isto é, “vergonha e confusão”.

Quando Inácio diz “a petição há de ser conforme a matéria proposta”(EE 48), deixa implicitamente claro que a seguinte matéria de meditação do primeiro exercício (meditação sobre os três pecados) somente pode ser proposta se o exercitante está em condições de pedir assim. E aqui é chamado a entrar em ação o acompanhante. Ele deve poder julgar onde se encontra o exercitante no seu caminho interior e quê o move a seguir adiante. Só assim pode eleger a matéria que corresponde a seus pressupostos e ao seu desejo interior. Daí que a indicação “a petição há de ser conforme a matéria proposta” deve ser lida pelo acompanhante: a “matéria proposta” deve corresponder ao desejo surgido agora no exercitante. Assim resulta este segundo preâmbulo decisivo para que o que acontece em Exercícios seja um processo interior do exercitante, pelo que produz uma mudança, obra da graça. Ou, para expressá-lo em referência à história da salvação: para que o que a

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Bíblia testemunha como exemplo aconteça, de maneira semelhante, no aqui e agora da vida desta pessoa.

Expressamos por “desejo” a petição de “o que quero e desejo”. Mas existe também o reverso do desejo: a “resistência”, ou o que não quero nem desejo. Também isto é importante para avançar na realização do processo dos Exercícios. O acompanhante deve prestar atenção a isso também, se quiser permanecer no jogo. Resistência significa a defesa, que surge no ser humano quando se trata de transformações profundas, que fazem vacilar o equilíbrio e a segurança. Então surge a angústia. Quando nos sentimos ameaçados, nós nos defendemos. E se despertam em nós sentimentos de desgosto, desânimo, desconfiança, tédio. Também pode acontecer indiretamente: o que até agora fluía, bloqueia-se. Aborrecimento, vazio e dispersão se alongam e, logo mais, arrastam consigo o desejo de ocupações mais gostosas, sensivelmente gratificantes. Tais experiências fazem suspeitar que o exercitante sente-se desafiado, mas ainda não quer, ou não pode, comprometer-se neste desafio.

No sentido da indicação de Inácio, deve-se aconselhar então pedir “o que não quero nem desejo”. Isto é situar-se honestamente no diálogo com Deus, levar a sério Deus e a gente mesmo.

ARTIGOS

O presente artigo pretende dar uma visão de conjunto da Primeira Semana dos Exercícios Espirituais de Sto. Inácio (EE 23-90). Sua leitura deve ser acompanhada pela consulta ao próprio texto dos Exercícios, publicado neste mesmo número da revista, exceto EE 23, publicado no número anterior (Itaici, no 23, pág. 37). As autoras são membros do CEI-ITAICI. Na versão final, colaborou o redator da revista.

COMENTÁRIO DOS EXERCÍCIOS DA PRIMEIRA SEMANA

Ir. Maria Fátima Maldaner, SND, e Ir. Maria Thereza Thiele, FSCJ

1 - INTRODUÇÃO

Os Exercícios Espirituais (EE) constituem um período de exercitação gradual e metódica no caminho da conversão. Cada "Semana" é uma etapa do itinerário. Este itinerário em etapas, seguindo um roteiro de quatro "Semanas", sugere um caminho progressivo. Inácio o encontrou na tradição ascética da Igreja do seu tempo e adaptou-o à sua maneira.

O Princípio e Fundamento é sua grande introdução, uma visão de conjunto, uma espécie de mapa. Situado nos umbrais da Primeira Semana, estende sua perspectiva sobre todo o percurso. Ele responde às grandes interrogações da pessoa a respeito de si mesma, dos outros seres humanos, do universo e de Deus. Apresenta o plano de Deus sobre a humanidade e o cosmos, e a resposta que o ser humano é chamado a dar. Indica as atitudes fundamentais que identificam a vida segundo a fé cristã.

A realidade mostra que, à infinita gratuidade do amor de Deus, junta-se o mistério da iniqüidade. A humanidade vive numa situação de pecado. A própria história está feita de luz e trevas, graça e pecado entrelaçados. A história do pecado teve sua origem e origina ambientes, estruturas e atitudes contrárias ao plano de Deus. Hoje, dois terços da humanidade constitui o mundo dos "povos crucificados". A cruz tem aqui o significado de "morte" e morte infligida: morte lenta, causada pela pobreza gerada por estruturas injustas, ou morte rápida e violenta, por causa da repressão e guerras ou ainda, morte indireta, quando estes povos são privados de suas culturas, de suas tradições, de sua própria

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identidade. Até o final do século, aproximadamente 170 milhões de latino-americanos viverão em extrema pobreza e outros 170 milhões em pobreza biológica crítica. Daí ser imprescindível o enfoque histórico da salvação e da conversão. O coração humano é sempre vacilante. Nele a encruzilhada do amor e do ódio, da vida e da morte.

O pecado histórico e estrutural antecede e afeta a humanidade para além de sua livre decisão. O ser humano, contudo, é indubitavelmente livre e responsável por esta história e pelas estruturas geradoras do mal, por ele criadas e mantidas.

A Primeira Semana começa situando o exercitante, de maneira lúcida, nesta realidade ambígua. Visa proporcionar-lhe uma experiência profunda e decisiva da gravidade do pecado em si mesmo, na sua origem e nas suas conseqüências, bem como da salvação oferecida gratuitamente por Deus em Jesus Cristo.

No seu âmago, a Primeira Semana inaciana é uma experiência da misericórdia de Deus revelada em Jesus Cristo. Para Jesus, ser humano é reagir com misericórdia. Do contrário, a condição humana fica viciada, na raiz, como acontece com o sacerdote e o levita da parábola do Bom Samaritano. Eles, vendo o ferido, passaram adiante, enquanto o samaritano, "movido por misericórdia" (Lc 10,33) socorreu o ferido1.

2 - VISÃO DE CONJUNTO DA PRIMEIRA SEMANA

O conteúdo próprio da Primeira Semana é o seguinte:

Princípio e Fundamento (EE 23)2.

Exame particular e cotidiano (EE 24-31)3.

Exame geral de consciência (EE 32-43)4.

Confissão geral e comunhão (EE 44).

1º Exercício: Meditação sobre o 1º, 2º e 3º pecado (EE 45-54).

2º Exercício: Meditação dos pecados pessoais (EE 55-61).

3º Exercício: Repetição (EE 62-63).

4º Exercício: Resumo (EE 64).

5º Exercício: Meditação do Inferno (EE 65-71).

Adições (EE 73-90)5.

Podem ser incluídos na Primeira Semana também os seguintes documentos:6

Primeiro Modo de Orar (EE 238-248).

Regras de Discernimento dos espíritos. "São mais próprias para a 1ª Semana" (EE 313-327).

Notas para sentir e entender escrúpulos (EE 345-351).

2.1 - O dia inaciano (EE 72)

1º Exercício: à meia-noite;

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2º Exercício: ao levantar, pela manhã;

3º Exercício: antes ou depois da missa, antes do almoço;

4º Exercício: à hora de vésperas;

5º Exercício: antes do jantar, no fim do dia.

NB. Inácio prevê que se façam os cinco exercícios ou menos, "conforme a idade, disposição e temperamento da pessoa que se exercita" (EE 72).

2.2. Estrutura de cada exercício

Oração preparatória (EE 46).

1º Preâmbulo: composição de lugar (EE 47).

2º Preâmbulo: petição (EE 48)7.

Os "Pontos" em que Inácio divide a matéria da meditação.

O Colóquio ou colóquios (EE 53-54; 61; 63 e 71).

"Notas" ou orientações práticas sobre como realizar os exercícios (EE 49; 72), as adições (87-89) ou o exame particular.(EE 90). As notas são um pequeno Diretório dos EE, distribuído ao longo do texto dos mesmos.

Ao apresentar o Primeiro Exercício, Inácio oferece ao que dá os Exercícios as principais orientações metodológicas, que serão úteis também para as etapas seguintes. Tais orientações tratam de: a) a oração; b) a matéria da oração; c) o modo de proceder no exercício.

Inácio é cuidadoso ao selecionar e ordenar tanto a oração quanto o modo de orar. Tudo é orientado para o fruto a ser alcançado. Introduzido na experiência progressivamente, o exercitante é convidado a percorrer um itinerário, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, em direção ao encontro de seu Criador e Senhor. A petição vai indicando os frutos a serem alcançados em cada etapa do itinerário.

A estrutura da Primeira Semana, com as orientações dadas sobre o modo de proceder, sugere três progressões distintas:

a) na sucessão dos dias, nesta Semana: O "dia" da Primeira Semana será repetido tantas vezes quantas forem necessárias para alcançar os frutos que se buscam.

b) na organização dos tempos de oração (duas meditações, uma repetição, um resumo e uma aplicação de sentidos), distribuídos durante o dia, à luz da grande tradição orante da Igreja (EE 72);

c) na estruturação dos pontos ou matéria própria de cada exercício (EE 50-54).

Inácio vai introduzindo o exercitante num processo educativo, em que as etapas não são delimitadas cronologicamente. O que se busca no tempo ("kairós") dos EE é a transformação profunda do estatuto existencial da pessoa, até transfigurá-la segundo a imagem de Cristo.

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3 - MODO DE ORAR: MEDITAÇÃO COM AS TRÊS POTÊNCIAS

a) Introdução: Os tempos intensivos de oração pessoal, no retiro, são chamados por Santo Inácio de "exercícios". Podem revestir modalidades variadas: consideração orante, meditação, repetição, resumo, contemplação, aplicação de sentidos...

Nos exercícios propostos para a Primeira Semana, a modalidade predominante é a "meditação". Com efeito, o primeiro exercício se intitula: "Meditação com as três potências"; o segundo, "Meditação dos pecados"; o quinto, "Meditação do inferno". b) Meditação: sua natureza.

A "meditação com as três potências" consiste numa maneira de orar discursiva que utiliza a memória, a inteligência e a vontade, para aprofundar e assimilar uma verdade de fé, tendo em vista conformar com ela a própria vida. No uso corrente, o termo meditação acentua o caráter discursivo do exercício, o que não impede pausas mais prolongadas naquele ponto ou aspecto em que a pessoa se sinta mais tocada. Ordinariamente há uma atividade sustentada, séria e agradável, das faculdades a respeito do tema proposto, visando a assimilação do seu conteúdo e sua aplicação à situação pessoal do exercitante. Esta atividade, pouco a pouco, se irá simplificando, unificando e aprofundando conforme o progresso que se fizer na oração.

Sto. Inácio fala das "três potências" ou faculdades da alma, segundo a filosofia do seu tempo: memória, inteligência e vontade. Trata-se de uma divisão didática, não seqüencial, buscando como que "introduzir cada faculdade na presença de Deus".

Na meditação, a memória é o primeiro olhar do espírito sobre o mistério. Ainda não se quer uma reflexão, mas uma simples visão das coisas, a abertura religiosa da pessoa a esta história, a parábola ou passagem evangélica pela qual Deus quer revelar-se à pessoa em oração. A inteligência tenta detalhar o que a memória traz à tona. Ela o faz de forma orante, à medida em que a memória se desincumbe de sua função. Assim, a memória repleta de recordações espirituais, e a inteligência, iluminada pelo mistério, aquecem o coração e a vontade se expande em afetos de amor e de intimidade.

A meditação deve constituir-se num exercício de oração e não simplesmente de reflexão. Por este motivo, não se deve conceber de uma maneira rígida e seqüencial: primeiro, aplicar a memória; segundo, aplicar o a inteligência; e, por último, aplicar a vontade, com o colóquio e resolução prática para a vida. Não é este o exercício inaciano. O que se busca é um exercício espiritual, em que o sujeito da oração seja o próprio Deus, que faz mover as três potências da pessoa. Esta colocará suas faculdades totalmente à disposição da ação da graça.

Um ponto no qual Inácio se mostra firme é que a meditação sobre determinado tema deve estar orientada para o fim que lhe é implícito, isto é para o fruto que se pretende alcançar. Isto suposto, Inácio dá grande liberdade: "no ponto em que achar o que quero, vou deter-me, sem pressa de passar adiante, até que me sinta satisfeito" (EE 76).

Em síntese, compreendido o papel da memória, da inteligência e da vontade, diante do mistério proposto, Sto. Inácio se limita a indicar o ponto de partida e a direção a tomar. A oração vai adquirir uma modalidade variada, conforme a graça e a pessoa que medita. Recomenda, no entanto, ser muito sensível e dócil às moções do alto, ponto este que sempre deve merecer cuidadoso exame, após cada exercício (EE 77).

O papel da memória e da inteligência são importantes, enquanto movem a vontade para os afetos do coração e a conseqüente mudança de vida, como fruto da oração. É a vontade que estabelece o laço orgânico entre oração e vida, orientando a meditação para seu fruto

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específico, indicado no 2º preâmbulo (EE 48: "pedir o que quero e desejo"), como também para seu fruto geral, expresso na "oração preparatória" (EE 46: o louvor e serviço de Deus). É a inteligência, iluminada pela fé, que mostra o caminho para a vontade, sede do amor, da afetividade, tornando a oração, neste momento, interpessoal, dialógica com aquele que faz de nós sua morada, a Trindade que habita em nós.

4 - PRIMEIRO EXERCÍCIO: A DIMENSÃO UNIVERSAL DO PECADO (EE 45-54)

Depois da "Oração preparatória" (EE 46), o "Primeiro preâmbulo" é a composição de lugar (EE 47). Neste primeiro exercício, trata-se de encarar a realidade do mal fora do exercitante, a iniqüidade no mundo. É o pecado social ou estrutural, cujas conseqüências perpassam a nossa história. Inácio propõe duas imagens, para a composição de lugar dessa ruptura do sonho de Deus:

a) a alma encarcerada na prisão do corpo (EE 47,5);

b) o exílio da pessoa "neste vale", sob o domínio da irracionalidade (EE 47,6).

Muitas imagens desse tipo estão gravadas na experiência histórica da imensa maioria do povo latino-americano. Vivemos numa estrutura de pecado, que herdamos do passado e que, hoje, continua gerando injustiça, violência e morte.

O "Segundo preâmbulo" é a petição: neste primeiro exercício o exercitante pede "vergonha e confusão de mim mesmo" (EE 48,4). O fruto que se persegue é sentir horror pelos próprios pecados. Todos vemos, porém, com maior clareza os pecados alheios do que os próprios. Por isso, Sto. Inácio quer que o exercitante entre no reconhecimento do seu próprio pecado a partir da realidade externa: o pecado fora de si mesmo. É a pedagogia que Natã seguiu com Davi, ao lhe contar a história da ovelhinha, para terminar dizendo-lhe: "Esse homem es tu!" (2Sm 12). O fruto poderá ser alcançado, através da meditação com as três potências, do exame de consciência e da oração do coração ("Jesus, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador").

A ação devastadora do mal é apresentada por Inácio em três pontos:

1) O primeiro ponto (EE 50) nos apresenta a dimensão transcendente do pecado; o pecado como negação, esquecimento ou rebeldia contra Deus. Inácio chama a atenção para a essência última do pecado: a recusa do reconhecimento da soberania absoluta de Deus.

O pecado dos anjos, mensageiros de Deus, plenamente lúcidos e livres, coloca o pecado antes da história da humanidade. Os anjos eram livres para reconhecer a absoluta primazia de Deus; livres para recusar o reconhecimento da própria condição de criaturas. "E não quiseram servir-se de sua liberdade para prestar reverência e obediência a seu Criador e Senhor" (50,4). Fecharam-se numa situação de perversão definitiva e completa. Meditar sobre a perfeita liberdade do anjo ajudará o ser humano, liberdade condicionada, a perceber o uso que faz de sua própria liberdade.

2) O segundo ponto (EE 51) nos situa diante da dimensão social do pecado, descrita assim pelo episcopado latino-americano: "no plano das relações interpessoais, a atitude de egoísmo, de orgulho, de ambição e inveja, que geram injustiça, dominação e violência em todos os níveis; luta entre indivíduos, grupos, classes sociais e povos, bem como a corrupção, o hedonismo, a exacerbação do sexo e a superficialidade nas relações mútuas. Conseqüentemente se estabelecem situações de pecado que, em nível mundial, escravizam a tantos seres humanos e condicionam adversamente a liberdade de todos" (Puebla 328).

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O pecado de Adão e Eva situa o pecado no horizonte da vida humana no alvorecer da humanidade. Os seres humanos -mulheres e homens-, criados para participar da vida divina, afastam-se da sua origem e ponto de referência, da sua fonte e oriente. Por não confiar na palavra de Deus, são iludidos pelo "pai da mentira", rompendo sua dependência do Criador. As conseqüências para os nossos primeiros pais e para toda a história humana são conhecidas: o ser humano condenou-se à morte, ao pó, à perda de sua identidade (Gn 3,8-10); andará errante pelos descaminhos do mundo (Gn 4,14), sem direção, desnorteado, des-orientado, de-solado (=sem chão). Com seu "não" ao seu Criador e Senhor, ele arrastou e arrasta consigo toda a criação, que geme e sofre pelo desejo de libertação (Rm 8,19-23).

3) O terceiro ponto (EE 52) representa a dimensão pessoal do pecado. O pecado, em último termo, é uma responsabilidade pessoal. É uma história que tende a repetir-se em cada ser humano; um processo que tem os efeitos devastadores de uma bola de neve que cai, montanha abaixo.

Ao meditar o pecado de uma só pessoa, o exercitante aplica a matéria dos pontos anteriores a um caso particular. A história do pecado se reproduz em cada pessoa que peca. Aceitar o pecado significa atualizar na própria vida a rebeldia dos anjos e a fraqueza dos primeiros pais. Basta um só "pecado mortal" para desencadear no coração humano este processo, cuja dialética pode levar ao limite da própria destruição. O "inferno" vai sendo gestado pela insubordinação da criatura ao Criador, pela submissão a Satanás, pela ingratidão para com Deus. É a história pessoal de rejeição da condição filial e fraternal; é o caminho contrário ao "louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor" (EE 23)

O primeiro exercício termina com um colóquio diante de Cristo, nosso Senhor, na cruz (EE 53). O colóquio propriamente dito se faz como uma amigo fala a seu amigo: "O que tenho feito por Cristo, o que faço por Cristo e o que devo fazer por Cristo?". O olhar para o rosto desfigurado de Cristo, nas feições das camadas mais sofridas do nosso povo, faz brotar no coração do exercitante o sentimento de indignação ética e o desejo de pôr-se ao serviço. " O Cristo desfigurado me configura" (Sto. Agostinho). Ele desinstala, abalando as grandes raízes do mal: o ter, o prazer e o poder, abrindo caminho para uma nova história: o retorno à escuta da Palavra de Deus.

5 - SEGUNDO EXERCÍCIO: MEDITAÇÃO DOS PECADOS PESSOAIS (EE 55-61)

No primeiro exercício, o exercitante partia do universal, do pecado "fora de mim". Agora, neste segundo exercício deve passar ao particular, ao "trazer à memória todos os pecados da (própria) vida". E aí constata o mesmo dinamismo do mal: a insubordinação, a iniqüidade, a desordem e a ingratidão. É a mesma história do pecado que continua na vida pessoal de cada ser humano. O exercitante se vê arrastado, desde sua origem, e configurado intimamente a esta corrente, em que Deus e Satanás se degladiam no coração humano. Ele experimenta em si forças desagregadoras, que o levam a fazer o que não quer (Rm 7,14-25). Neste conflito entre a abertura a Deus e o fechamento sobre si mesmo, à medida que progride na oração, faz a experiência não apenas de "ter pecados", mas sobretudo de "ser pecador".

Além de trazer à memória os pecados pessoais (EE 56), o exercitante é convidado a ponderar "a fealdade e malícia" de cada pecado cometido por ele, mesmo que não fosse proibido (EE 57). Inácio desvincula o pecado da norma. Um fato não é pecado por estar proibido. É pecado porque, objetivamente, “é ruim” (faz dano) e, aos olhos de uma sensibilidade retamente ordenada, "é feio" (dimensão estética relacionada com a sensibilidade)8.

A desordem profunda de minha vida de pecador fica mais patente considerando: a) a natureza do pecado (EE 57); b) quem sou eu (EE 58); c) quem é Deus contra quem

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pequei; d) a dissonância que o pecado introduz no universo. O clímax é uma exclamação de assombro e admiração com intenso afeto (EE 60).

O segundo exercício termina com um colóquio de misericórdia (EE 61). O que se busca é a experiência profunda de sentir-se pecador e, mesmo assim, salvo pela bondade de Deus. A linguagem é de cunho afetivo e se dirige ao todo da pessoa. Experiências místicas deste tipo levaram alguns santos a exclamar: "Tudo-nada!".

Só a partir da experiência de Deus-misericórdia é possível reconhecer-se pecador. Os outros conhecimentos são superficiais: racionalizações, diminuições ou exageros. Não é uma clareza de auto-conhecimento de ordem intelectual ou moral. É uma clareza e firmeza na fé, entendida como confiança amorosa.

O que se pretende com este exercício é que o exercitante se experiencie como pecador imerso numa estrutura de pecado, para a qual ele também contribuiu e continua contribuindo. Esta consciência é graça a ser pedida com humildade; dom a ser acolhido na liberdade. É graça que abre as portas para a comunhão com o Senhor na oração: sou amado/a pelo Senhor, sendo o que sou e como sou, pecador/a continuamente perdoado/a em minha total fragilidade. Trata-se de um processo que dura a vida inteira, até chegar a exclamar com Paulo: "nada poderá separar-nos do amor de Cristo" (Rm 8,39).

6 - TERCEIRO EXERCÍCIO: REPETIÇÃO DO 1º E 2º (EE 62)

A repetição é um exercício fundamental na metodologia inaciana. Trata-se, não de um mero saber ou conhecer, mas de uma experiência interiorizada que leva a "sentir e saborear" (cf. EE 2,4).

Aqui, como nas restantes semanas dos EE, a repetição tem um significado bem preciso. Não consiste em repetir, simplesmente, uma meditação ou contemplação já feita, mas em voltar-se para aqueles pontos ou aspectos da oração, nos quais temos sentido maior consolação ou desolação. O exercitante deve retomar aqueles momentos em que experimentou maiores "moções" internas, seja de iluminação e gozo espiritual, seja de escuridão e repugnância espiritual.

A repetição pode levar, pouco a pouco, a um modo de orar mais simples e agradável, mais substancial e enriquecedor. Possibilita um encontro pessoal com o Senhor, que pelo seu Espírito vai conduzindo a pessoa segundo suas necessidades e características pessoais. Os Três colóquios (EE 63)

Nos grandes momentos dos EE, Inácio propõe três colóquios, em vez de um (EE 63; 147; 156; 168; 199; 225).Os colóquios do terceiro exercício da Primeira Semana ocupam um lugar central, tanto em relação à estrutura do dia, quanto em relação ao conteúdo dessa Semana. Inácio apresenta a metodologia e o conteúdo, deixando liberdade quanto ao modo de realizá-los.

O primeiro colóquio é feito a Maria, a Mãe de Jesus e Senhora nossa, merecedora de uma atenção especial na espiritualidade cristã católica e ortodoxa. O segundo é ao Filho, vencedor do pecado e da morte. É preciso ter sempre os olhos fixos nEle (Hb 12,2). Finalmente, o terceiro se dirige ao Pai, que tanto nos amou. Foi Ele quem enviou seu Filho para salvação da humanidade, perdida nas trevas e no vazio do pecado. Os Três colóquios sugerem, como já apontamos, uma progressão: a) do exercitante a Maria; b) de Maria a Jesus; e c) de Jesus ao Pai pelo Espírito.

O que se pede nos Três colóquios? O primeiro pedido diz respeito aos próprios pecados. É preciso um "conhecimento interno" dos mesmos para poder "detestá-los". O exercitante

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coloca sua vida desorientada, longe de Deus, diante de Maria e por ela diante de Jesus e do Pai, e pede para que seja transformada, reorientada para Deus.

O segundo pedido diz respeito às ações. O exercitante pede a graça de sentir a desordem das mesmas, para "detestá-la" e, assim corrigir e ordenar a sua vida.

O terceiro pedido é conhecer o mundo, para tirar da própria vida tudo que é mundano e vão: futilidades, vaidades, maquinações, injustiças, conivência com o mal...

O grande objetivo deste tríplice colóquio é o de preparar o caminho para a vida verdadeira com Cristo, em Deus. O que se pede é alcançar a graça da conversão profunda, total, duradoura. Para tanto é necessário mudar a orientação espontânea da nossa sensibilidade. Enquanto continuemos gostando daquilo que nos afasta de Deus, a nossa conversão não é total. Por isso pedimos a graça de "detestar" o pecado, a desordem e as coisas mundanas e vãs, porque só detestando o mal estaremos firmes no seguimento daquele que nos trouxe a "vida verdadeira" (cf. EE 139).

7 - QUARTO EXERCÍCIO: RESUMO DO 3º (EE 64)

No quarto exercício, Inácio novamente não propõe matéria nova. A matéria é a mesma da repetição. Muda-se apenas o modo de fazê-lo e aprofunda-se o fruto a ser alcançado. A inteligência, "sem divagar", deverá discorrer cuidadosamente pelo que recorda das coisas contempladas nos exercícios anteriores. Fazem-se os mesmos Três colóquios do terceiro exercício.

Na linha da simplificação da oração, iniciada na repetição, o resumo dá um passo a mais. Cresce-se na interiorização da linguagem que vem de Deus e das motivações mais profundas do próprio viver. As palavras e as imagens, depois de ter cumprido sua missão de suporte, desaparecem devagarinho, para deixar que o Senhor nos leve, silenciosamente, aonde não sabemos nem mesmo queremos ir. A pluralidade dos elementos de um assunto ou texto bíblico desaparece, em benefício de uma moção única (a "moção hegemônica") que é a graça do momento. Fica-se, pois, no substancial.

Na vida são poucas as coisas verdadeiramente fundamentais, que fazem parte das nossas convicções profundas e do próprio eu, Sem elas é impossível viver. É preciso sentir e saborear com o "coração" - o centro da pessoa, na terminologia bíblica -, com o núcleo do eu profundo. A repetição, primeiro, e ainda mais o resumo são exercícios que nos colocam nesta dimensão.

8 - QUINTO EXERCÍCIO: MEDITAÇÃO DO INFERNO (EE 65-72)

A meditação do inferno apresenta a dimensão escatológica do pecado. O exercício faz parte do conjunto dos cinco exercícios da Primeira Semana. Tem sentido quando feito na seqüência dos anteriores. O inferno é a conseqüência última e definitiva do processo de negação do amor de Deus, que constitui a essência do pecado. Neste sentido é sugestivo comparar o primeiro preâmbulo deste exercício (EE 65,3) com Ef 3,18-19. Tendo negado o amor de Deus, referencial absoluto da vida humana, os condenados ficariam incapazes de orientar-se, no vazio sem tamanho. No inferno não haveria norte, nem sul, nem leste, nem oeste.

O objetivo do quinto exercício não é a "primeira conversão" -do pecado à vida de graça-. Inácio supõe que o exercitante seja já um convertido. Sua finalidade é a de suscitar um santo temor de Deus, como salvaguarda do amor restaurado ou purificado (EE 65,5). Neste sentido, o exercício estaria mais na linha da chamada "segunda conversão" -da vida cristã comum à santidade-. De fato, quem têm uma consciência mais aguda da possibilidade de

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condenação eterna, não são os grandes pecadores, mas os santos (Sta. Teresa de Jesus, o próprio Sto. Inácio).

O verdadeiro conhecimento do amor de Deus é a consciência permanente de que é dom de Deus e que está sempre exposto à tentação. A cruz dos crucificados de hoje é recordação constante da fragilidade de nosso amor a Deus.

Historicamente houve grande discordância na interpretação deste exercício. O texto latino dos EE (a chamada "vulgata") o chama de "contemplação". O texto autógrafo, em que nossa tradução se baseia, o chama de "meditação". A corrente francesa o considera uma "aplicação de sentidos", posto que Inácio desenvolve o exercício em cinco pontos, seguindo o esquema dos cinco sentidos corporais (EE 66-70). Autores espanhóis observam, porém, que Inácio pensa mais nos "sentidos internos da imaginação" (cf. EE 66: ver com o olhar da imaginação...).

Para um autor de nossos dias trata-se de uma "sensibilização negativa, enfatizando um dos sentimentos mais eficazes que pode experimentar o ser humano: o temor"9

O quinto exercício termina com um colóquio de ação de graças (EE 71). Há em todo o exercício uma estrutura dialética, entre a experiência sensível de perdição e a ação de graças pela salvação. O objeto da sensibilização negativa não é Deus, mas as penas dos condenados. Para Inácio, Deus não manda ninguém para o inferno. A relação com Deus é sempre salvífica, nunca ameaçadora: Ele nos cria para a salvação, nos chama à vida nova em Cristo, nos dá consolação, "verdadeira alegria e gozo espiritual" (EE 329). A presença de Deus na vida do homem é sempre positiva. O julgamento de Deus é sempre salvação. Se a condenação ocorrer, a culpa não será de Deus, mas do próprio ser humano. Este é livre para aceitar o amor de Deus ou fechar-se a ele.

O eu de cada ser humano encontra sua plena realização no encontro com o Tu divino. Quando essa relação eu tu se rompe, a pessoa faz, de alguma maneira, a experiência sensível do inferno. O transcendente se experimenta no intramundano. A comunhão é o projeto a ser realizado sempre. O egoísmo, a separação, a auto-suficiência é o começo de uma situação que, aos poucos, vai se tornando infernal. Somente o homem pode dar-se a si mesmo a morte eterna. Só Deus, e não o homem, pode dar a este a vida eterna.

9 - CONCLUSÃO: FRUTOS DA PRIMEIRA SEMANA. O exercitante não deverá sair da Primeira Semana, entrando nos exercícios próprios da Segunda Semana, sem ter conseguido o que queria e desejava alcançar nesta primeira etapa.

O objetivo global da Primeira Semana é o de sentir-se, embora pecador, salvo por Deus em Jesus Cristo. As graças tão ardentemente pedidas nesta primeira etapa dos EE, são os frutos que o exercitante deve alcançar:

a) Experimentar que o pecado é uma insensata ingratidão, que conduz à própria destruição e morte eterna. Trata-se de uma experiência sensível e não apenas intelectual. O exercitante deve sentir o desejo intenso de detestar os pecados da vida passada e de emendar-se, doravante, da desordem em que viveu até hoje.

b) Experimentar a salvação gratuita em Cristo. Acolher este mistério revelado no Espírito: Deus, "rico em misericórdia" (Ef 2,4), amou-nos tanto a ponto de nos enviar seu próprio Filho, que "morreu por nós quando ainda éramos pecadores". A morte de Cristo na cruz, preço do nosso pecado, foi a melhor demonstração do amor misericordioso de Deus para conosco (cf. Rm 5,8).

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Ao final da Primeira Semana, a disposição de "indiferença" em relação ao uso das criaturas (EE 23) deve vir revestida de maior humildade e desconfiança de si mesmo, e de maior confiança em nosso Criador e Senhor. Aquela liberdade afetiva, que se pretendia no Princípio e Fundamento, estará agora reforçada pela vontade de lutar contra as afeições desordenadas que o exercitante descobriu, na origem dos seus pecados e fraquezas.

Fruto da Primeira Semana será também a disposição necessária para entrar na Segunda Semana: acolher o apelo do Reino e responder-lhe com prontidão. O exercitante deverá sentir seu coração arder por Cristo Salvador; desejará seguir os seus passos, participar de sua vida e missão. Deverá haver uma mudança de perspectiva. O exercitante dirigirá todos seus sentidos, externos e internos, para a contemplação da vida de Jesus, como norma de sua própria vida.

Esta disposição inicial da Segunda Semana será fruto da Primeira, sobretudo dos colóquios: "Que devo fazer por Cristo?" (EE 53,2).

A meditação da realidade do mal universal e pessoal deverá ter acentuado a consciência da radical pobreza e do fechamento sobre si mesmo. Daí brotará um maior desejo da vida nova em Cristo Jesus. A Cruz revelou-nos, ao mesmo tempo, a máxima maldade do ser humano e a realização vitoriosa da misericórdia de Deus.

NOTAS:

1 Cf. Jon SOBRINO, O Princípio Misericórdia. SP, 1994, 34-35.

2 Cf. L.GONZÁLEZ-QUEVEDO, "Princípio e fundamento (EE 23): Introdução, texto e comentário", Itaici no 23, março 1996, pp. 32-43.

3 Cf. H.COATHALEM, "Exame Particular", neste no da nossa revista.

4 Cf. A.M.CHÉRCOLES e H.COATHALEM, "Exame Geral", neste mesmo no.

5 Cf, neste mesmo número: A.BARREIRO, “As quatro primeiras adições sobre a oração”. A 5ª adição consiste no exame ou "revisão da oração", para discernir o caminho por onde Deus está conduzindo o exercitante (EE 77). As adições 6a a 9a referem-se ao clima próprio da Primeira Semana (EE 78-81). A 10a adição trata da penitência ou mortificação exterior e interior (EE 82-85). No seu conjunto, as adições pretendem ajudar a pessoa a entrar no processo de uma sensibilidade crescente à ação de Deus na própria vida.

6 Tais documentos serão traduzidos e comentados, futuramente, na nossa revista.

7 Para a oração preparatória e os dois preâmbulos, cf. o texto de LEFRANK, neste mesmo nº.

8 Cf. A.M.CHÉRCOLES, SJ, "El pecado, mal objetivo al que estamos cegos", en: - La afectividad y los deseos. EIDES, 16. Barcelona, 1995, 20-25.

9 Cf. A. M. CHÉRCOLES, loc. cit., p. 24.

TEXTO

A Primeira Semana dos Exercícios inclui este texto singular. O título indica a finalidade destas Adições. Trata-se de ajudar a criar um clima favorável ao encontro do que o exercitante busca. Neste número e no anterior, o Pe. Álvaro Barreiro comenta as Adições.

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ADIÇÕES1 PARA MELHOR FAZER OS EXERCÍCIOSE PARA MELHOR ACHAR O QUE SE DESEJA2

[73] (1) 1ª adição

(2) Já deitado, pronto para dormir, pelo tempo de uma "Ave Maria", pensar na hora em que tenho de me levantar, e para que, resumindo o Exercício que devo fazer3.

[74] (1) 2ª adição

Despertando, sem deixar espaço para outros pensamentos, dar logo atenção ao que vou contemplar no primeiro exercício da meia-noite. Procurar envergonhar-me de meus numerosos pecados. Recorrer a exemplos4: (2) como um cavaleiro que se encontrasse perante o seu rei e toda a corte, envergonhado e embaraçado por ter ofendido muito aquele de quem antes recebera tantos dons e favores. (3) Do mesmo modo, no 2º exercício: como um grande pecador que, algemado e acorrentado, vai comparecer perante o sumo e eterno Juiz. (4) À exemplo dos prisioneiros acorrentados, merecedores de morte, que comparecem diante do juiz temporal. (5) Com estes pensamentos, ou outros semelhantes, vestir-me.

[75] (1) 3ª adição

A um ou dois passos do lugar onde farei a contemplação ou meditação, de pé pelo tempo de um "Pai nosso", (2) o pensamento para o alto, considerarei como Deus nosso Senhor me olha, etc. Fazer, a seguir, uma reverência ou gesto de humildade5.

[76] (1) 4ª adição

Entrar em contemplação, ora de joelhos, ora prostrado por terra, ora deitado com o rosto voltado para cima. Também sentado, ou de pé. Procurando sempre achar o que quero6. (2) Ter presente duas coisas:

1a se de joelhos acho o que quero, não mudarei de posição. Se estiver prostrado, do mesmo modo, etc.;

(3) 2a no ponto em que achar o que quero, vou deter-me, sem pressa de passar adiante, até que me sinta satisfeito.

[77] (1) 5ª adição

Terminado o exercício, pelo espaço de um quarto de hora, sentado ou caminhando, examinarei7 como me saí na contemplação ou meditação. (2) Se mal, procurarei a causa, e, quando a descobrir, vou arrepender-me a fim de corrigir-me para o futuro. (3) Se bem, agradecerei a Deus Nosso Senhor. Procederei do mesmo modo na próxima vez.

[78] (1) 6ª adição8

Não querer pensar em coisas agradáveis e alegres, como a glória ou a ressurreição, etc. Qualquer consideração de gozo ou alegria impede de sentir pesar, dor e lágrimas por nossos pecados. (2) Terei, contudo, diante de mim a vontade de sentir dor e mágoa, trazendo mais à memória a morte e o juízo9.

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[79] 7ª adição

Para alcançar este mesmo resultado, privar-me de toda claridade, fechando as janelas e portas pelo tempo em que estiver no quarto, a não ser para rezar, ler ou comer.

[80] 8ª adição

Não rir nem dizer coisa que cause riso.

[81] 9ª adição

Refrear a vista, exceto ao receber ou despedir-me da pessoa com quem falar.

[82] (1) 10ª adição

Fazer penitência10, que pode ser interna ou externa. (2) A penitência interna é doer-se de seus pecados, com o firme propósito de não cometer os mesmos nem quaisquer outros. (3) A penitência externa, fruto da interna, é castigar-se pelos pecados cometidos, o que se faz, sobretudo, de três maneiras:11

[83] (1) Primeira

Quanto à alimentação, deixar o supérfluo não é penitência, mas temperança. (2) Fazemos penitência quando tiramos do conveniente. Quanto mais e mais, maior e melhor. Contanto que não se prejudique a saúde, nem decorra daí enfermidade grave.

[84] (1) Segunda

Quanto ao modo de dormir, também não é fazer penitência deixar o supérfluo de coisas delicadas e macias, (2) mas sim quando se tira alguma coisa conveniente no modo de dormir, e tanto melhor será, quanto mais se tirar. Desde que não se prejudique o organismo, nem decorra daí enfermidade grave. (3) Do mesmo modo não se tire parte do sono conveniente, a menos que se tenha o vício de dormir demais, para chegar ao equilíbrio.

[85] Terceira

Castigar o corpo, isto é, causar-lhe dor sensível, o que se consegue usando cilícios, cordas ou metais sobre ele, flagelando-se, ferindo-se ou usando outras asperezas.

[86] (1) NOTA

O que parece mais prático e seguro nessa maneira de fazer penitência é que a dor seja sentida na carne, mas que não penetre nos ossos, de modo a causar dor, mas não enfermidade. (2) Portanto, parece mais conveniente castigar-se com cordas finas, que causam dor externa, e não de outro modo, que provoque notável enfermidade interna.

[87] (1) 1a nota

As penitências externas são praticadas para alcançar principalmente três resultados:

1º a reparação12 pelos pecados passados;

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(2) 2º vencer si próprio, fazendo com que a sensualidade13 obedeça à razão, e que todas as tendências inferiores sejam mais submissas às superiores;

(3) 3º procurar e alcançar alguma graça ou dom que a pessoa quer e deseja, como ter arrependimento14 interno de seus pecados, (4) ou chorar muito por causa deles, ou por causa dos sofrimentos e dores que o Senhor suportou durante a sua Paixão15, ou para obter a solução de alguma dúvida em que a pessoa se encontre.

[88] (1) 2a nota

Tenha-se presente que a primeira e a segunda adições se devem fazer para os exercícios da meia-noite e do amanhecer, e não para os que se farão nas outras horas. (2) A quarta adição nunca se fará na igreja diante de outros, mas em lugar isolado, como em casa, etc.

[89] (1) 3a nota

Quando o exercitante ainda não alcançou o que deseja, como, por exemplo, lágrimas, consolações etc., é útil, muitas vezes, mudar o regime de comer, dormir e outras maneiras de fazer penitência. (2) Assim, alternar dois ou três dias com penitência, outros dois ou três sem. Pois a alguns convém mais penitência, e a outros, menos. (3) Também porque, muitas vezes, deixamos de fazer penitência por sensualidade16 e por pensar erradamente que as forças humanas não poderão suportá-la sem grave enfermidade. (4) Outras vezes, pelo contrário, fazemos demais, julgando que o corpo possa tolerar. (5) Como Deus Nosso Senhor conhece infinitamente melhor nossa natureza, muitas vezes, em tais mudanças, faz sentir a cada um o que lhe convém17.

[90] 4a nota

O exame particular se faça para tirar defeitos e negligências na prática dos exercícios e adições. Também na segunda, terceira e quarta semanas.

NOTAS:

1 O dinamismo interno dos Exercícios está na graça, na ação criadora do Espírito Santo. A colaboração humana consiste na abertura para Deus, na aceitação livre de seu dom. Tal disposição humana é favorável à atuação da graça. A finalidade das adições é criar uma atmosfera de recolhimento, da vigilância, de oração, que permita ao exercitante dirigir sua atenção só par Deus, para as iluminações e inspirações internas do alto. A “conversão para Deus” é obra exclusiva do Espírito Santo; a colaboração humana é apenas uma condição, um não-opor-obstáculos à ação livre de Deus e da pessoa. (cf. Pe. Géza, p.12).

2 “O que se deseja” é corresponder à graça, ao que Deus quer.

3 “Estas adições revelam um conhecimento extraordinário da psique humana. Preparam o indivíduo, progressivamente, para uma disponibilidade e sensibilidade cada vez maiores no terreno das reações internas. Esse concentrar da alma aumenta incrivelmente a sua receptividade para com as “comunicações internas” de Deus (o que assume especial importância no discernimento dos espíritos)”. (Pe. Géza,p.62-63).

4 Os dois exemplos propostos querem exprimir a situação existencial e real do exercitante. São símbolos da realidade. Hoje tais símbolos não impressionam muito. É necessário recorrer a outros, que possibilitem ao exercitante o sentir-se na situação existencial real,

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angustiante e desesperadora de pecador. Situação da qual, por si mesmo, é absolutamente incapaz de libertar-se (cf. Pe. Géza, p.63).

5 “Os gestos externos querem, simplesmente, exprimir a posição global da pessoa, do Eu humano, que se separa, a fim de entrar na presença do Tu Divino (Ver Moisés perante o arbusto ardente no deserto: Ex 3,1-14)” (Pe. Géza,p.64).

6 A 4ª adição tem importância extraordinária: aponta claramente a atitude que a pessoa deve tomar perante Deus na oração. Deve ser atitude de busca do que Deus quer comunicar. Vale, então, a posição corporal que mais ajuda a isto. E, uma vez encontrado o que se quer, não passar adiante enquanto isto for fonte de satisfação interior.

7 “A revisão de um exercício terminado deve ter caráter de oração contemplativa; é uma reflexão sobre a ação de Deus em nós, sobre os movimentos e agitação dos espíritos, sobre a nossa cooperação com a graça; é um retorno sobre nós mesmos na oração, para seguirmos com maior segurança a inspiração do Espírito Santo” (Pe. Géza, p.65). Na prática, é bom fazer algumas anotações, para que mais adiante possa ser feita uma “leitura” do que Deus foi comunicando (cf. 2Cor. 3,2). Pode-se anotar a frase, palavra ou imagem que “tocou” mais (quanto ao texto); os sentimentos mais significativos (consolação... desolação...); que moções da graça apareceram (apelos... impulsos...graças de iluminação...); e o que atrapalhou o exercício: bloqueios, moções do mau espírito, negligências pessoais (dificuldades). A pessoa que acompanha o exercitante deve exercer o papel de “intérprete” da “teografia” (das marcas deixadas por Deus) no que faz os Exercícios.

8 “As adições seguintes (EE 78-81) têm o objetivo de colocar o exercitante na atmosfera própria da Primeira Semana, assegurando-lhe o maior recolhimento interno possível e a disposição mais apropriada para receber as graças especiais da Semana: sair do próprio egoísmo e entrar nos sentimentos de Jesus Cristo a respeito do pecado” Pe. Géza, p.65)

9 Pode ajudar a “ter diante de si” o que for adequado à Primeira Semana, o uso de cartazes e objetos simbólicos, mas o seu emprego deve ser discreto e apropriado.

10 A “conversão interna para Deus” (metánoia) supõe arrependimento e penitência. É importante levar em conta a distinção de Santo Inácio quanto a penitência (interna e externa). A verdadeira conversão afeta o campo dos sentimentos e produz uma dor interior, a qual precisa de uma expressão exterior, sinal de participação pessoal na Paixão de Cristo Redentor. O Pe. Mirón (célebre comentarista dos Exercícios no século XVI) temia pelos frutos dos Exercícios quando não se dava importância à 10ª adição, pois via-os, desprovidos da penitência, como incompletos em seu processo de envolver a pessoa a nível mais profundo.

11 As três maneiras indicadas de fazer penitência externa (quanto ao alimentar-se, ao modo de dormir e à dor física) supõem discrição e prudência. Não podem ser vistas como “pagamento do pecado”, mas como sinal de participação no Mistério Pascal; desejo de participar da Cruz de Cristo para com ele chegar a Ressurreição.Estas mortificações (renúncias) expressam também a renúncia de si mesmo pedida pelo Evangelho. São o reconhecimento de que só Deus é o único Absoluto e a relativização de tudo o mais.

12 No texto Autógrafo: satisfação. O Catecismo da Igreja Católica, 1459-1560, indica a satisfação como reparação e penitência. É preciso fazer o possível para reparar o mal praticado, quando foi causa de dano a outra pessoa ou pessoas. É necessário remediara as desordens que o pecado causou no próprio pecador.

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13 Sensualidade, na linguagem dos Exercícios, significa “vida sensitiva”, “vida afetiva, emocional”, “vida instintiva” (Pe. Géza, p.68)

14. No texto Autógrafo contrição significa arrependimento e tristeza movidos pela caridade, isto é, pela graça do verdadeiro amor, dom do Espírito Santo.

15 A vida espiritual não é simples “desabrochar” natural, mas é renascimento no Espírito Santo, é ressurreição em Jesus Cristo, é participação pessoal no Mistério Pascal. A “morte” em Jesus Cristo, portanto, é condição básica para a nossa ressurreição nele, para a vida nova em Deus (cf. Pe.Géza, p.68).

16 No texto Autógrafo: amor sensual. Este amor é desordenado quando há uma busca excessiva do que é agradável ou quando sempre se evita o que é desagradável.

17 Como a oração, a penitência está ligada ao discernimento dos espíritos. As mudanças e experiências sucessivas têm como finalidade encontrar o que Deus quer, chegando-se a um equilíbrio afetivo e a uma ordem interna em toda a amplidão pessoal. (cf. Pe. Géza, p.69).

ARTIGOS

Publicamos a segunda e última parte de estudo iniciado no número anterior da revista: “Precisamos de ritos: Reflexões sobre a finalidade, a importância e a atualidade das ‘Adições’ relativas à oração nos Exercícios Espirituais”, Itaici, n. 23, março 1996, pp.47-53. O autor é professor de Teologia e superior da comunidade dos professores do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte.

AS QUATRO PRIMEIRAS ADIÇÕES SOBRE A ORAÇÃO

Pe. Álvaro Barreiro, SJ1 - Os ritos são necessários

Ser essencialmente comunicativo, o homem comunica-se por sinais. O principal é a palavra, mas há inúmeros outros: o olhar, o sorriso, o aperto de mão, o abraço. Normalmente, os ritos são gestos muito simples, mas imprescindíveis para a comunicação. Para expressar a comunhão entre as pessoas, um gesto pode ser mais eloqüente que mil palavras. Em todas as formas de relação entre as pessoas, sejam elas de trabalho, de convivência, de lazer, ou - o que nos interessa aqui - de amizade e de amor, os ritos são continuamente repetidos, inventados e reinventados. Pela simples razão de que eles são necessários para a comunicação e para a comunhão.

Porque os gestos rituais são o desabrochar da plenitude de vida que ferve e canta dentro dos atores, e que precisa vir à luz para não sufocá-los, porque são "o amor em gestos", eles só são significativos para os que os realizam, para os que entram em comunhão através deles. Em certa medida, são também significativos para os que sintonizam com eles; mas para um observador neutro, distante, não comprometido, não significam nada. Os gestos dos namorados - entrelaçar as mãos, olhar-se nos olhos, trocar beijinhos, rir à toa, oferecer uma flor... - analisados racionalisticamente, de fora, são absolutamente ridículos.

Santo Inácio, que não foi um pensador teórico, mas um pedagogo da experiência espiritual, sabia da importância que têm os mais mínimos detalhes para o encontro com Deus, para experimentar Deus na oração. A partir da sua experiência pessoal - a qual, por sua vez, estava enraizada numa longa tradição, que ele recebeu no início de sua conversão

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sobretudo através da leitura da "Vida de Cristo" de Ludolfo de Saxônia e do contato com as correntes da "Devotio moderna" - elaborou uma série de "anotações", "adições", "regras", "notas", "preâmbulos", etc., para ajudar o exercitante a fazer também ele sua experiência de Deus. De novo, olhado de fora, todo esse ritual pode ser visto como vazio ou então como minúcias de um espírito estreito. Na verdade, ele é, não só importante, mas imprescindível para alcançar o fim que se pretende: fazer a experiência pessoal do encontro com Deus.

Podemos dizer que os EE de Santo Inácio são basicamente exercícios de oração. Para cada dia são propostos cinco exercícios de oração, de uma hora de duração cada um, que devem ser cuidadosamente preparados previamente e, no fim, examinados retrospectivamente. Se neste ponto, como em muitos outros, Inácio é minucioso e diretivo, é também, como vimos na Primeira Parte do nosso trabalho, muito flexível. Eis algumas mostras dessa flexibilidade: a experiência completa dos EE deve durar mais ou menos 30 dias; os 30 dias estão divididos em 4 semanas, mas estas podem ser maiores ou menores; dependendo das circunstâncias, o exercitante pode contemplar mais ou menos mistérios, fazer mais ou menos repetições, mais ou menos horas de oração por dia; pode também dormir mais ou menos horas, levantar-se mais ou menos vezes de noite para orar, fazer mais ou menos penitências corporais [cf. 72; 129; 133; 205].

Dos exemplos que acabamos de indicar - e poderiam ser dados muitos outros - vemos que Inácio é concreto e detalhista mesmo quando insiste na necessidade da flexibilidade. Por que? Porque os EE são, no fundo, uma pedagogia espiritual. E na pedagogia espiritual, como em toda pedagogia, os detalhes, mesmo os aparentemente insignificantes, têm uma importância decisiva.

Num artigo publicado no "Jornal do Brasil" pelo Diretor do Colégio São Bento, D. Lourenço de Almeida Prado, com o título "O pintor das almas"1, o autor conta um apólogo que ele aplica à pedagogia escolar. Ele pode servir também para ilustrar a importância dos detalhes na prática da oração. O pintor do apólogo era chamado "O pintor das almas" porque as almas como que saíam vivas da tela. "Acontecia, porém, e não raro, que, quando estava pincelando um quadro, o pintor se detivesse longamente no delineamento de um cílio ou das curvas dos lábios de um sorriso que se entreabria. Nessas ocasiões, os discípulos, afoitos e impacientes, não se continham: 'Pinta logo a alma; para que perder tempo num detalhe que ninguém vai ver?' O velho respondia, sabendo de antemão não ser acreditado: 'É por aqui que chegarei lá; é pelo cílio e pela curva dos lábios que a alma será vista'".

Sabemos que a força de expressão e o valor de uma obra de arte dependem do cuidado e da exatidão com que são executados todos e cada um dos pormenores. O "método", isto é, o caminho seguido pelo "pintor das almas", aplica-se, a fortiori, à pedagogia que deve ser usada na preparação do encontro da "alma", isto é, de nós mesmos, com outras pessoas; e mais ainda à pedagogia - melhor, neste caso, à mistagogia - do nosso encontro pessoal com Deus.

O prazer epidérmico e momentâneo pode ser alcançado rapidamente, e a um preço relativamente baixo. Mas à alegria profunda, à verdadeira alegria, só se chega através de longos e repetidos exercícios de concentração no essencial e de despojamento. Essa é justamente a finalidade das "adições" que Inácio apresenta como meios para a preparação remota e imediata da oração, para a sua estruturação dinâmica e para o seu exame retrospectivo. Quem não der atenção e tempo a esses detalhes, não poderá chegar ao fim que se pretende: o "conhecimento interno" de Jesus Cristo "para mais amá-lo e mais segui-lo".

2 - Preparação remota e próxima da oração [73-74]

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Os exercícios de oração (4 ou 5 por dia, de uma hora de duração cada um) são os mais importantes de todos os Exercícios. Mas as condições necessárias para orar estendem-se para além da hora dada a cada exercício de oração. É necessário, com efeito, que a oração seja preparada, é necessário entrar nela, perseverar nela e refletir sobre ela. Disto tratam as cinco primeiras adições.

Primeira adição. Já deitado, pronto para dormir, pelo tempo de uma Ave-Maria, pensar na hora em que tenho de me levantar, e para que, resumindo o exercício que devo fazer [73].

Segunda adição. Despertando, sem deixar espaço para outros pensamentos, dar logo atenção ao que vou contemplar no primeiro exercício da meia noite (...). Com estes pensamentos ou outros semelhantes, de acordo com o assunto, vestir-me [74].

As duas primeiras revelam uma extraordinária penetração antropológica, particularmente da psicologia das relações e dos encontros inter-pessoais. Sabemos, com efeito, que para poderem ser verdadeiros e profundos, para produzirem frutos de comunhão, os encontros devem ser preparados antes no coração.

Para orar, para encontrar-se com Deus, é necessário preparar-se com tempo, devagar e com carinho. Para que aconteça um verdadeiro encontro é necessário deixar-se invadir e mover pelo desejo do encontro. É necessário, como diz a Raposa ao Pequeno Príncipe, "vestir o coração":

Teria sido melhor voltar à mesma hora, disse a raposa. Se você vem, por exemplo, às quatro horas da tarde, a partir das três eu começarei a estar feliz. Às quatro horas, estarei toda agitada e inquieta: descobrirei o preço da felicidade! Mas se você vem a qualquer hora, nunca poderei saber a que hora tenho de vestir o coração... "Il faut des rites". Os ritos são necessários2.

Não se entra na oração de repente e atropeladamente. Entra-se devagar, passo a passo. A preparação do primeiro exercício da meia noite ou da manhã seguinte é feita na noite da véspera, durante um tempo objetivamente marcado: "Depois de me deitar e estando a ponto de adormecer, pensar, pelo espaço de uma Ave-Maria, na hora em que e para que devo levantar-me, resumindo o exercício que tenho de fazer" [73,2]. Pedro Fabro, um dos primeiros companheiros de Inácio em Paris, comenta esta adição nestes termos: "E com o desejo de fazer bem isso, dormirei"3.

O próprio Inácio explica como deve ser mudada-adaptada esta adição quando os exercícios não são feitos à meia-noite ou de manhã cedo: "Logo que me lembrar que está na hora do exercício que devo de fazer, antes de ir fazê-lo, pondo diante de mim aonde vou e à presença de quem, resumindo um pouco o exercício que tenho de fazer, e depois fazendo a terceira adição, entrarei no exercício" [131,2-3].

A preparação envolve não só a memória que recorda, a inteligência que resume e a vontade que toma decisões práticas sobre a hora e lugar da oração, mas envolve também a imaginação e os sentimentos, que devem concentrar-se sobre a matéria a ser meditada ou contemplada e sobre a graça a ser alcançada: "Ao despertar, não dando lugar a estes nem a aqueles pensamentos, atender logo ao que vou contemplar no primeiro exercício da meia-noite (...). E com estes pensamentos ou com outros, de acordo com o assunto, vestir-me" [74,1.5]. A aplicação da segunda adição às outras semanas dos EE é explicada nos números [130,2], para a segunda semana; [206,2-3], para a terceira; [229,2], para a quarta.

Para que o desejo de conhecer mais profundamente Jesus Cristo para mais amá-lo e para segui-lo mais fielmente [cf. 74; 130] surja espontaneamente ao acordar e possa ser

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explicitado no primeiro minuto do dia, é necessário que habite o pensamento, a imaginação e o coração nos últimos momentos da noite anterior [cf. 73].

Porque Deus pode comunicar-se à sua criatura em qualquer momento, também fora dos tempos marcados para a oração; porque sua graça pode surpreender-nos nos lugares e acontecimentos mais inesperados [cf. 330]; por tudo isso, é tão importante criar durante as 24 horas do dia uma atmosfera de oração, de escuta e de receptividade.

3 - "Entrar" na oração [75]

Terceira adição. A um ou dois passos do lugar onde farei a contemplação ou meditação, de pé, pelo espaço de um Pai-Nosso, com o pensamento dirigido para o alto, considerando como Deus Nosso Senhor me olha etc. Fazer depois uma reverência ou humilhação [75].

A terceira adição propõe um verdadeiro ritual de entrada na oração. Um ritual equivalente é proposto para os três modos de orar: "Antes de entrar na oração, repouse um pouco o espírito, sentando-se ou andando, como lhe parecer melhor, considerando aonde vou e a quê" [239].

Para Santo Inácio há, deve haver, uma "introdução" à oração no sentido etimológico da palavra. Ele fala de um espaço físico com relação ao "lugar onde" o exercitante há de fazer a contemplação ou meditação [75], fala de "entrar em contemplação" [76]. A oração ocupa um tempo, que começa e termina, e um espaço, no qual se entra e do qual se sai: "um passo ou dois... e fazer uma reverência ou humilhação" [75]. A oração é feita dentro de um espaço delimitado, interior, que só Deus pode abrir. Mas para entrar nele é preciso atravessar um limiar. Aparece aqui de novo o que dizíamos no início, que os EE são "corporalmente espirituais" e "espiritualmente corporais".

Situar-se na presença de Deus, conscientizar-se de que Deus olha o exercitante com amor, através do gesto de erguer o olhar para o alto, faz parte do ritual de preparação para a oração ou da introdução à oração. Esse gesto nos prepara para a relação pessoal com Deus, para a receptividade da palavra e dos dons de Deus, para a disponibilidade e a obediência ao que for revelado durante a oração como sendo vontade de Deus. Não só prepara. Quando a conscientização de estar na presença de Deus é feita com profundidade, ela nos introduz na relação pessoal com Deus. É já oração4. O mesmo, analogamente, podemos dizer com relação à oração preparatória, que é sempre a mesma ao longo dos EE, e que resume, em forma de oração, o Princípio e Fundamento.

A verdade-autenticidade da relação interior com Deus é expressada na verdade-autenticidade dos gestos corporais externos: nos passos dados para medir a distância, na posição do corpo, na direção e na profundidade do olhar, que se cruza com o olhar de Deus aqui e agora, neste momento preciso de minha vida, apontando para o seu mistério. O reconhecimento desse olhar amoroso de Deus sobre mim é marcado por um gesto externo de reverência, de humildade, de verdade, que expressa a relação originária da criatura diante do seu Criador e Senhor.

Por este caminho "entra-se" - é necessário entrar - na oração antes dos "preâmbulos". Este espaço e este tempo, que instauram a alteridade da relação com Deus, são a condição para que possa realizar-se a alteridade do diálogo com Deus, com a palavra de Deus; diálogo que se encerrará de maneira mais densa no colóquio final5.

A terceira adição traduz no nível do corpo, das atitudes exteriores e dos gestos corporais, a atitude interior de situar-se na presença de Deus, respondendo à sua iniciativa. Podemos ver no comportamento de Moisés ao se encontrar com Deus (cf. Ex 3,1ss) a fundamentação bíblica da terceira adição dos EE.

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- Moisés repara, vê e observa o que está acontecendo (v. 3).

- Dá voltas para compreendê-lo melhor (v. 3).

- Deus olha Moisés: "Javé percebeu que ele se voltava para ir ver" (v. 4).

- Deus fala: "Então, do meio da sarça, Deus o chamou: 'Moisés'!" (v. 4).

- E Moisés responde: "Aqui estou" (v. 4).

- Moisés deve guardar distância... tirar as sandálias (v. 5).

- "Moisés cobriu o rosto porque tinha medo de olhar para Deus" (v. 6).

4 - Durante a oração [76]

Quarta adição. Entrar em contemplação, ora de joelhos, ora prostrado por terra, ora deitado com o rosto voltado para o céu. Também sentado, ou de pé. Procurando sempre achar o que quero. Ter presente duas coisas: a primeira, se de joelhos acho o que quero, não mudarei de posição; Se estiver prostrado, do mesmo modo etc; a segunda, no ponto em que achar o que quero, vou deter-me, sem pressa de passar adiante, até que me sinta satisfeito [76].

O passo seguinte é "entrar" na oração propriamente dita, no tempo de uma hora de meditação ou contemplação. A mesma antropologia encarnatória, que concebe o homem como "espírito-no-mundo", está subjacente à quarta adição [76] e a todas as outras adições [77-90]. Como vimos na Primeira Parte, Santo Inácio dá uma extraordinária importância ao ritual da memória, dos pensamentos, dos afetos, dos sentidos, da luz, da alimentação, do sono... À medida que o exercitante avança no processo dos EE, que os ritos vão sendo interiorizados, as adições, notas e instruções vão se tornando mais raras. À medida que os hábitos vão sendo adquiridos e interiorizados, que a construção vai avançando, os andaimes vão sendo retirados.

De novo, na primeira parte desta adição, Inácio detém-se na dimensão corporal do encontro com Deus. O texto é de uma liberdade total: "andando sempre à procura do que quero". A posição do corpo, seja ela qual for, deve ajudar a entrar em comunhão profunda com Deus. Uma vez encontrada a posição que mais ajudar para orar melhor, deve-se permanecer nela. Neste caso a estabilidade do corpo é paralela à docilidade ao Espírito.

Em paralelo a este princípio, Inácio expõe a seguir outro que se situa no nível do conteúdo da oração: "no ponto em que encontrar o que quero, deter-me-ei, sem ter ânsia de passar adiante, até que me sinta satisfeito". Esta mesma norma é repetida em [254].Quer no nível do corpo, quer no nível do espírito, o ritmo durante toda a oração deve estar marcado pelo que mais me ajudar a "sentir e saborear as coisas internamente" [2]. A máxima liberdade, tanto exterior quanto interior, está ao serviço do "fim que se pretende"; é meio para alcançar o fim particular do exercício que vai ser feito e o fim geral de todos os EE: buscar, encontrar e praticar a vontade de Deus.

Talvez seja útil, no fim das reflexões que acabamos de fazer sobre a finalidade, a importância e a atualidade das adições, fazer um aceno às semelhanças e diferenças que há entre o Mestre Inácio e os mestres orientais de meditação. Para a meditação Zen, por exemplo, a posição do corpo é também de capital importância. Mas a finalidade é diferente, e mesmo oposta.

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Para Inácio a posição do corpo é importante porque a reverência devida à Divina Majestade deve ser expressada também corporalmente; e deve ser mantida a mesma posição na medida em que ela ajuda a "buscar o que quero". Por isso, quando o exercitante encontra o que busca, deve permanecer naquela posição (e nos pensamentos e afetos!) até ficar satisfeito. A posição do corpo, os pensamentos, os sentimentos e a imaginação estão ao serviço da graça a ser alcançada.

Os métodos orientais não têm essa flexibilidade. Eles buscam, através das técnicas corporais, do controle da respiração e da mente, a concentração e a imobilidade completa. Para chegar à paz, a imaginação, os sentimentos e os desejos devem ser completamente eliminados ou apagados. "Para o Zen, o silêncio e a tranqüilidade são fins em si mesmos, enquanto que para Inácio eles são passos no caminho para o cume de sua oração, que consiste em ser movido por Deus para a ação e o serviço"6.

NOTAS

1 Cf. Jornal do Brasil, 19.05.92.

2 A. de SAINT-EXUPÉRY, Le Petit Prince, New York, 1971, p. 84.

3 "Et in illo desiderio bene hoc implendi dormiam", em P. Fabro, Mon 587.

4 Cf. sobre este aspecto o interessante artigo de J. NIGRO, "Oração, resposta pessoal à presença de Deus", em Convergência 13 (1980) 392-401.

5 Uma norma semelhante é dada em [139].

6 Brian GROGAN, "'To Make the Exercises Better': The Additions", em Ph. SHELDRAKE (ed.), The Way of Ignatius Loyola. Contemporary Approaches to the Spiritual Exercises, SPCK, London 1991, 41-52; aqui, 45.

ARTIGOS

Maria Clara Luccheti Bingemer é doutora em Teologia, coordenadora do Centro Loyola, no Rio de Janeiro, e dirigente das CVX (Comunidades de Vida Cristã). O texto a seguir reproduz palestra realizada no Chile. A tradução é da própria autora.

A PEDAGOGIA DOS EE NA CAMINHADA DAS CVX1

O Criador e suas criaturas

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Se quiséssemos descrever uma CVX, poderíamos encontrar muitas definições, mais ou menos completas e que conseguiriam satisfazer mais ou menos a estas ou àquelas pessoas. Pessoalmente, gosto de dizer que se trata de uma comunidade de cristãos leigos "amigos no Senhor", que encontram como modelo e caminho para configurar sua amizade a vida e experiência de Inácio de Loyola.

Mas então - diremos - terá Inácio uma maneira diferente de outros santos e santas na maneira como vive sua relação com o Senhor e de como extrai as conseqüências desta relação? É evidente que sim. Cada santo ou santa é uma maravilha criadora do Espírito de Deus na história e a cada um e; cada uma Deus marca com um selo especial, usando com ele ou ela uma pedagogia, um método para introduzi-lo em Seus mistérios e fazê-lo dar fruto em favor dos demais que é absolutamente único.

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Assim foi com Inácio de Loyola, que sendo o pedagogo inato que era, estava tão agradecido a Deus por lhe haver ensinado tantas coisas belas e fundamentais que decidiu consignar por escrito todas elas em um livrinho que pudesse servir de orientação a quantos e quantas se dispusessem andar por um caminho semelhante ao seu. Esse livrinho - o dos Exercícios Espirituais - está longe de ser um romance que se lê depressa e prazerosamente. Mas trata-se, ao contrário, de uma pedagogia que pode ajudar as criaturas limitadas que somos a experimentar verdadeiramente ao Criador de nossas vidas e do mundo em que vivemos comunicando-se conosco, fazendo-nos novas criaturas e instaurando no mundo, com nossa colaboração, uma nova criação.

As CVX são, portanto, comunidades de pessoas que passaram ou desejam passar por esta pedagogia que foi a experiência de Inácio , e sentem que sua vida pode mudar radicalmente com isto. Compartilhar este desejo e esta esperança cria entre estas pessoas uma amizade nova e indestrutível, que as faz companheiras de Jesus e companheiras umas das outras e é como o cimento de sua vida comunitária e de sua missão apostólica na sociedade e na Igreja.

No processo dessa experiência comunitária, os EE.EE. - ou seja, a experiência com que Deus mesmo ensinou a Inácio a amá-Lo e a buscar e encontrar Sua vontade - são peça central e indispensável. São eles que fazem de uma comunidade CVX algo único e original, diferente de outros grupos na Igreja, distinto de um grupo de oração, distinto também de uma equipe de trabalho apostólica. É sua pedagogia, o processo com que vão penetrando nas vidas dos membros CVX e, através deles, na vida da comunidade, o que faz com que uma CVX seja o que é e caminhe em direção ao que deve ser. O paradigma que vai nortear todo esse caminho vai ser sempre o processo vivido pelo mesmo Inácio.

Os Exercícios Espirituais: uma pedagogia pessoal e comunitária

Se algo se pode dizer dos Exercícios Espirituais, é que são uma pedagogia pessoal. Assim foi, no princípio, com Inácio de Loyola, que declara em sua Autobiografia, ditada no final da vida ao Pe. Luís Gonçalves da Câmara, que , nos primeiros tempos de sua conversão, Deus mesmo o ensinava "como um mestre-escola a um menino"2. Ou seja, os Exercícios foram para Inácio - e serão para todos aqueles que, depois dele, se disporão a seguir suas pegadas - uma experiência pessoal e intransferível, que cada um e cada uma tem que fazer e que será diferente a cada vez. A única atitude inicial requerida será esta de "deixar-se ensinar", dispor-se a receber um ensinamento que não vem da carne nem do sangue, mas do Criador que amorosamente "ensina" a sua criatura e a inicia nos mistérios mais profundos de sua ação amorosa e de seu ser.

É verdade também que logo percebeu Inácio que esse "ensinamento divino” não devia guardá-lo para si mesmo, senão deveria colocá-lo ao serviço dos demais. "Ajudar as almas" - esta é a palavra de ordem que Inácio experimenta em seu interior ao mesmo tempo em que assimila a pedagogia divina. E a "ajuda” que perceberá como mais urgente para poder prestá-la "às almas" será transmitir-lhes o mesmo ensinamento que tão graciosamente recebeu: iniciá-las na experiência de Deus, ensinar-lhes a fazer "alguns exercícios espirituais” que lhes permitam abrir-se para começar a perceber os desejos de Deus a seu respeito.

Esta função "iniciática", mistagógica dos Exercícios: iniciação à vida espiritual; afinamento da sensibilidade para colocá-la em sintonia com o Espírito Santo; treinamento para o mundo da oração e as moções do Espírito seria, em nosso entender, o coração da etapa da pré-comunidade CVX. Quando um grupo de pessoas se reúne para aprender uma especial pedagogia e um caminho específico, conhecer os códigos e os sinais próprios deste caminho é algo fundamental. Assim é como uma pré-CVX recebe o mapa dos primeiros passos para ingressar na maneira inaciana de rezar, de ser, de agir. Sendo ainda

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"jovem", tem que aprender a deixar-se ensinar por Aquele que é o único que sabe realmente conduzir à união e à missão.

Em toda essa pedagogia na qual são iniciados os membros de uma pré-CVX, há mediações que vão marcando o caminho e que passarão a fazer parte do cotidiano:

a) a oração diária: os membros de uma pré-CVX provavelmente são originários de muitas proveniências, de muitos contextos eclesiais, de muitas histórias pessoais e experiências de oração diversas. É o momento para eles de encontrar o caminho e as condições para realizar em sua vida a oração diária à maneira inaciana. Existe uma maneira própria de rezar que Santo Inácio experimentou e transmitiu em seus Exercícios. E esta maneira tem que ser ensinada a um membro CVX, ao mesmo tempo enriquecida pelos diferentes modos de orar que estão presentes no livro dos Exercícios, além de todos os que compõem a já tão rica tradição cristã. O específico desta maneira de rezar está fundamentalmente; em que:

a oração é uma entrada a nível mais profundo e intenso num diálogo com o Senhor. Para isto há que preparar-se. Não se pode começar de qualquer maneira, sem tomar consciência de que se introduz um corte no ritmo do cotidiano.

a oração não consiste em multiplicar palavras, senão em escutar. Depois de uma preparação cuidadosa e de uma entrada na oração, colocar-se a escutar o que quer dizer o Senhor, seja com a ajuda de um texto bíblico, ou de uma oração tradicional cujas palavras se contemplam, ou de uma pequena oração da qual se repetem as palavras ao ritmo da respiração. Escutar o Senhor que fala e se comunica é algo que parece óbvio, mas é, ao contrário, uma delicada aprendizagem. E o membro CVX deverá colocar-se humildemente nesta escola se deseja prosseguir no caminho que lhe foi mostrado e escolheu para si mesmo

finalmente, a oração deve ser examinada. Durante o tempo de oração, muita coisa aconteceu entre o Criador e sua criatura. Consolações, desolações, desejos, sintonias, rejeições. Tudo isto tem um significado e um sentido e deve ser cuidadosamente examinado. Por que? Que sentido tem cada uma das moções experimentadas? Que quer o Senhor dizer com isto? Por onde menos quer levar?

Tudo isto, repetido diariamente, irá traçando linhas-força na vida de cada um que, compartilhadas com a comunidade, irão dando a mim mesmo e a nós como um corpo, o perfil de uma comunidade que aprende a rezar à maneira de Inácio, deixando-se ensinar como um menino por seu mestre-escola.

b) o exame de consciência é outro elemento importante para aprender esse caminho inaciano durante a etapa da pré-comunidade. Tudo isto que acontece na oração ou em momentos não explicitamente de oração, mas durante os quais sentimos que Deus fala e move o coração deve ser examinado cuidadosamente ao final de cada dia. Não se trata do clássico exame de consciência que alguns de nossa geração encaravam mais como "examinar os pecados” para melhor se confessar. Mas sim se trata de "ver” à luz de Deus como este mesmo Deus vem atuando dentro de mim. Como me solicitou durante este dia? Como lhe respondi? Ou não lhe respondi? Que pontos me parece que devo trabalhar e melhorar para o futuro?

c) a direção espiritual se acrescenta a essa rede pedagógica que começa a formar-se com a oração e o exame de consciência diário. Santo Inácio sabe que somos seres relacionais e que para nós a alteridade antropológica é indispensável para ajudar a ver mais claro sobre os passos necessários a serem dados. A comunidade cumpre a algum nível esse papel de devolver através dos rostos dos companheiros a veracidade do experimentado sem ilusões ou auto-enganos. Mas há coisas que não se tem desejo nem

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ânimo de falar durante as reuniões. Há pontos que necessitam de um "tête-à-tête” com alguém mais experimentado, um irmão mais velho, a fim de que o coração possa derramar-se livremente através dos lábios. Uma orientação espiritual regular vai ser um ponto importante dessa pedagogia que, sendo pessoal, é inegavelmente comunitária mesmo quando é mais estritamente pessoal e íntima.

d) as primeiras experiências de Exercícios encontram numa pré-comunidade assim preparada e formada um campo propício para acontecer. É o momento, depois de um primeiro ano de caminho na oração e no exame, com a ajuda das reuniões comunitárias e de uma direção espiritual freqüente, de planejar uns exercícios curtos, de fim de semana ou de quatro dias, aonde os membros da pré-CVX possam sentir o gosto do silêncio e de tempos mais longos para rezar; experimentar a graça de "estar ali” apenas para o Senhor, escutá-Lo, senti-Lo, receber suas moções, sofrer suas demoras ,louvá-Lo e agradecer-Lhe. Esse tempo, com todo o sabor de "mais” que permanecerá na boca daqueles que realmente o levaram a sério e fizeram uma experiência espiritual inaciana, deverá ser o fundamento sobre o qual a caminhada da comunidade poderá avançar em direção a outras experiências de Exercícios mais profundas e longas.

Os Exercícios Espirituais: pedagogia para os que desejam mais

O processo CVX não é igual para nenhuma comunidade, seja sob o aspecto de tempo, de duração das etapas, de ritmo das pessoas, etc. Isto é uma experiência de todos nós, seja quanto à nossa própria comunidade, seja sobretudo quando, além de nossa própria comunidade, temos a graça e a ocasião de acompanhar outra comunidade. Aí vemos que não há formas nem moldes que sirvam para todos, que há que aprender a flexibilidade, e que toda boa pedagogia sabe esperar pelos outros não colocar o carro adiante dos bois e deixar que o tempo (e o Senhor do tempo) façam seu trabalho num ritmo que muitas vezes não entendemos, com o qual não coincidimos e que nos impacienta.

Tudo isto para dizer que é difícil marcar com precisão quando uma comunidade está madura para passar de pré-CVX a ser CVX. Quando seus membros estão suficientemente preparados para dar o passo de comprometer-se de verdade com uma espiritualidade exigente e um estilo de vida que lhes vai pedir uma série de mudanças em sua vida e um caminhar a contracorrente do mundo e suas propostas.

Arriscar-nos-íamos dizer que o sinal mais fiel para sabê-lo com alguma segurança é o do desejo. Santo Inácio era muito claro em que sua proposta (a dos Exercícios e, mais tarde, a; da Companhia de Jesus) era para pessoas de desejo. Poderiam ser pecadoras, ter seus defeitos, suas infidelidades e dificuldades. Mas se tivessem desejo, se fossem generosas em seu desejar, poderiam dar muito fruto sendo ensinadas por essa pedagogia.

Assim é que uma comunidade estaria pronta para dar um passo a mais no processo pedagógico dos Exercícios quando seu desejo por mais começa a explicitar-se com mais claridade e evidência. Como se dá essa explicitação?

A comunidade já sente desejo de ir mais fundo em suas experiências de oração. Já não bastam à maioria de seus membros os quinze minutos diários que eram tão difíceis de encontrar no princípio. As moções começam a aparecer e a ter necessidade de ser discernidas com mais freqüência e o orientador espiritual é buscado com mais regularidade, havendo mais conteúdo concreto para discernir e trabalhar nas entrevistas. O momento de partilhar nas reuniões comunitárias começa a ser sempre mais um partilhar de moções e cada vez menos um contar de histórias sem muita conexão entre si.

Mais: a relação com Jesus Cristo passa por um processo novo. O enamoramento por sua pessoa, o desejo de segui-Lo se distanciam daquela admiração do primeiro momento e de um conhecimento não tão claro, para ser uma disposição muito concreta de andar pelos

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caminhos aonde Ele andou, seguindo seus passos e traçando um projeto que só tem sentido dentro de seu Projeto maior do Reino de Deus. Sente-se no interior de cada um sentimento novo: a convicção de que o Espírito Santo nos configura a esse Jesus Cristo tão amado e nos dá a força para segui-Lo onde quer que Ele vá, apaixonadamente. As moções começam a ser discernidas a partir desse pano de fundo e o desejo começa a crescer de fazer uma experiência de Exercícios mais longa e profunda, aonde se possa conviver e contemplar esse Jesus nos passos de sua vida, morte e ressurreição.

Estaria aí o momento pedagógico para propor a esta comunidade que deseja dar um passo mais adiante no seguimento de seu Senhor, assumindo todas as conseqüências desta decisão, os Exercícios de oito dias, ou ainda os Exercícios na vida diária. Aqui há várias dificuldades com as quais a comunidade poderá defrontar-se: Como sair oito dias do trabalho? Como deixar as crianças durante tanto tempo? Como encontrar-se regularmente com um orientador para fazer os Exercícios na vida se eu tenho uma vida tão agitada e irregular que não consigo às vezes sequer uma hora por dia para rezar e fazer meus Exercícios?

A experiência vem mostrando que todas estas dificuldades são reais na vida dos leigos e que uma pedagogia realmente impregnada da sabedoria inaciana saberá administrar tudo isto de maneira adequada e paciente. O que não saberá, porque não poderá, é fazer concessões no essencial e não chamar as coisas pelo seu nome.

Que pretendo dizer com isto? Parece-me que o assessor de uma comunidade que está neste estágio deve ser firme e claro, apesar de compreensivo: não é o mesmo fazer várias experiências de Exercícios de fim de semana e fazer uma experiência mais longa, de oito dias. Uma coisa não substitui a outra. Santo Inácio é muito realista quanto ao tempo. Deus, ainda que seja eterno, atua no tempo. E é preciso dar tempo para que as moções façam seu caminho e seu trabalho; é necessário esperar e sofrer, sem escutar nada, para depois experimentar a consolação da claridade que finalmente se faz; é necessário passar por todos estes diferentes momentos. Quem nunca encontra a maneira e o caminho para fazer Exercícios de uma semana ou Exercícios na vida diária levados a sério, por melhores que sejam suas justificativas, permanecerá na fase de iniciação e não terá condições de dar o salto qualitativo que o porá no caminho e no tempo do compromisso, da abertura a uma vida apostólica, ativa, de serviço. Uma comunidade que não consiga dar este passo, que nunca creia haver chegado o momento de dar este passo, corre seriamente o risco de ficar sempre uma pré-comunidade, porque não terá assimilado o que é o coração da espiritualidade CVX, o qual só se assimila através de uma experiência feita com verdade e honestidade.

Os Exercícios Espirituais: uma pedagogia para apóstolos

A maturidade de uma comunidade CVX está em direta relação com a intensidade e a seriedade com que seus membros estejam vivendo a espiritualidade inaciana, que deriva da experiência dos Exercícios. A pedagogia de Inácio não dispensa essa experiência e uma comunidade CVX que caminha em sintonia com o Fundador tampouco a dispensa.

É verdade que a espiritualidade inaciana não é de fácil nem rápida assimilação. Não é automático que uma pessoa ou grupo de pessoas passem pelo retiro de oito dias ou pelos Exercícios na vida diária e já estejam prontos para o compromisso permanente na CVX ou para ser considerados preparados para ser enviados a qualquer apostolado sem ter nada mais que aprender. Toma seu tempo esse processo de decantação, de penetração, e sobretudo toma seu tempo o salto de qualidade que sucede quando a experiência dos Exercícios e da vivência da espiritualidade vai fazendo com que o orante que buscava sintonia com o Senhor desde o início, o batizado que redescobre sua união com Cristo em termos de amor apaixonado, se redescubra como apóstolo, como enviado, sendo esta sua identidade mais profunda, dele e de sua comunidade.

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Isto vai introduzir mudanças profundas num processo que, ainda que já tenha vindo se delineando desde longe, agora encontra sua concreção mais clara. A própria oração sofre transformações. Passa a ser uma oração eminentemente apostólica. Isto não implica negar que sempre o tenha sido. Mas o que antes se explicitava em termos de contemplação da pessoa de Jesus, de saborear com os sentidos sua presença, e aprender seus gestos, tendo a subjetividade configurada pela ação de Seu Espírito Santo, agora vai ter uma dimensão de objetividade inegável, de desejo incontrolável de servir, de ouvir os clamores e urgências de uma realidade e perguntar-se: "Senhor, que devo fazer aí? Que queres que eu faça, que nós façamos? Como podemos responder, dar tua resposta e não a nossa, a estas urgências que nos chegam ao ouvido e ao coração?" A comunidade começa sempre mais a compartilhar as moções apostólicas que sente, seus desejos de servir, e sua oração começa a estar cada vez mais indissoluvelmente ligada com o serviço real dos outros, a transformação da realidade, o crescimento da Igreja, a missão dessa mesma Igreja.

Se a experiência de amor por Jesus Cristo que marca essa etapa da pedagogia CVX é o desejo intenso do seguimento do Cristo pobre e humilde, o Cristo das Duas Bandeiras, dos Três graus de humildade, por outro lado esse amor por Cristo é inseparável de um sentir amoroso e apaixonado na Igreja militante que Ele ama e pela qual deu a vida. Sentir as contradições dessa Igreja, amá-la apesar e ainda por causa disto; tomar sobre si suas opções e suas dificuldades, aprender a maneira de falar e de calar quando o bem da Igreja assim o necessita; compreender sua comunidade CVX como parte de um corpo maior, de uma comunidade mundial que pretende ser um corpo organizado de leigos a serviço da missão da Igreja vão configurar e selar a vida dessa CVX madura que se encaminha para ser, sempre mais, uma comunidade de discernimento apostólico.

Uma comunidade que reza à maneira de Inácio e que vive o mistério do discernimento das moções espirituais na objetividade do mundo, da sociedade e da Igreja; que no compartilhar comunitário e na direção espiritual busca diligentemente não ser surda ao chamado do Senhor que trabalha e se oferece para ir com ele e trabalhar com ele, passando por toda sorte de pobreza e humilhações que foram a marca de Sua vida. Uma comunidade que se compromete cada vez mais definitiva e profundamente, mas que nunca está satisfeita com este compromisso e deseja sempre mais, é uma comunidade cujos membros têm todas as condições para fazer a experiência dos Exercícios de 30 dias, como selo de um processo pedagógico que, apesar de que deva continuar por toda a vida, chega agora a um momento de definitiva importância.

Não tenhamos medo de dizer que deveria chegar para todo membro e comunidade CVX o momento de colocar-se a questão e a possibilidade concreta de fazer a experiência dos Exercícios Espirituais de 30 dias. O que pensa Santo Inácio dessa experiência, é inútil dizê-lo. Bastaria talvez citar a carta que escreve ao Pe. Manuel Miona, aonde diz que os Exercícios Espirituais são "...tudo de melhor que eu nesta vida posso pensar, sentir e entender..."3

As dificuldades reais que há para que os leigos a façam também são evidentes. Mas há muito que deveríamos ter aprendido que quando há desejo, há criatividade, força de vontade e capacidade para arranjar as coisas a fim de que a experiência seja possível. Os muitos leigos e leigas em todo o mundo que já passaram por essa experiência, jovens e adultos, pais de família ou não, confirmam o que se acaba de dizer. Há que perder o medo e superar o preconceito, que toma várias conotações e matizes: que se trata de uma experiência muito forte para um leigo, que um leigo não agüenta passar tanto tempo longe de sua casa e seu trabalho, que um leigo está muito ocupado e portanto isto não é para ele. Para quem será, então? Se Santo Inácio os viveu, ensinado pelo Senhor, sendo leigo? E se os primeiros a quem os deu eram todos leigos? Se os Exercícios não são para os leigos, para quem serão?

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Não pode haver em nossas mentes e corações a barreira das impossibilidades que dizem que as experiências espirituais mas exigentes da Igreja não são para os leigos. É toda uma concepção de Igreja que está por trás disto, e que divide esta mesma Igreja ainda em termos de uma contraposição clero X laicato. Cremos que as experiências bem sucedidas e cheias de frutos de muitos leigos e leigas que pelo mundo afora fizeram os Exercícios de 30 dias nos dizem que há uma outra maneira de encarar a Igreja: considerá-la uma comunidade de batizados, aonde os distintos carismas e ministérios vão sendo suscitados e distribuídos pelo Espírito, que graças a Deus não se rege muito rigorosamente pelo Direito Canônico.

Uma pedagogia para comunidades CVX que se queira sinceramente fiel ao espírito de seu Fundador e adequada para os tempos que correm não pode temer ser audaciosa e ousada no que propõe como passos pedagógicos. E a experiência dos Exercícios de 30 dias seguramente não pode faltar nesse processo pedagógico.

Assim se poderá ir formando uma verdadeira comunidade mundial que seja de acordo ao coração de Inácio e sobretudo, ao de Jesus Cristo. Assim se poderá levar adiante uma pedagogia que forme pedagogos por sua vez: mestres espirituais e formadores de apóstolos dispostos a entregar-se inteiramente a uma missão que não é deles, senão do Senhor e Sua Igreja; dispostos a ser multiplicadores e formar outros e outras que se disponham a andar por este mesmo caminho.

Esta será uma comunidade que não fique na mediocridade de desejos estreitos, mas se arrisque pelo mar profundo da experiência da união com Deus na missão de levar a todos a Boa Nova de Seu Reino.

NOTAS:

1 CVX = comunidade de vida cristã: associação de fiéis leigos que vive a espiritualidade inaciana. Para conhecer melhor o que são as CVX e a que se propõem, cf. Princípios Gerais das Comunidades de Vida Cristã, SP, Loyola, 1991, col. IGNATIANA.

2 Autobiografia nº 27.

3 Cf. (Epp 1, 111-113).

SUBSÍDIO

UM MÉTODO (CAMINHO) PARA ORAR

1 - ENTRO NA ORAÇÃO:

— Pacifico-me, com um momento de silêncio. Respiro, lentamente. Penso no meu encontro com o Senhor.

— Coloco-me na sua presença — Faço o sinal da cruz ou um gesto de profunda reverência: “Tu me vês”.

Faço uma oração preparatória: “Meu Senhor e meu Deus, que todos meus pensamentos, desejos e ações estejam ordenados unicamente ao vosso serviço e louvor”.

2 - RECOLHO MINHA IMAGINAÇÃO:

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— Situo o assunto que vou considerar no lugar em que os fatos aconteceram, ou no contexto imaginativo da minha preferência.

3 - PEÇO AO SENHOR A GRAÇA QUE DESEJO ALCANÇAR NESTA ORAÇÃO

— Esta petição poderá ser repetida, ao longo da oração, sempre que me distrair ou quando quiser retornar ao ponto de partida da oração.

4 - MEDITO OU CONTEMPLO O TEXTO BÍBLICO ESCOLHIDO:

— Leio o texto lentamente, versículo por versículo.

— Lembro que, atrás de cada palavra, está o Senhor, que me fala hoje.

— Uso a memória para recordar, a inteligência para compreender e aplicar à minha vida; a vontade para desejar, pedir, agradecer, amar, adorar.

(NB: Não ter pressa. Sentir e saborear internamente. Onde encontrar gosto, inspiração ou consolação, lá pararei até ficar saciado).

5 - ENCERRO A ORAÇÃO:

— Dialogo com o Senhor, de amigo a Amigo, sobre aquilo que meditei ou contemplei.

— Rezo o Pai Nosso.

— Saio suavemente da oração.

6 - TERMINADA A ORAÇÃO, EXAMINO BREVEMENTE:

— Da minha parte fui fiel?

— Se não me foi bem na oração, busco as causas e peço perdão...

— Resumo o fruto ou as principais moções espirituais que tive na oração.

7 - REGISTRO POR ESCRITO O QUE ME PARECER MAIS IMPORTANTE.

MISTAGOGIA DOS EXERCÍCIOS

Publicamos a segunda e última parte do texto do Pe.Ulpiano, apresentado no CAP-PERMANENTE (Curso de Capacitação para Orientadores de Retiro), Vila Kostka, 1995. A primeira parte foi publicada no número anterior da nossa revista.

A VIDA ESPIRITUAL APÓS OS EXERCÍCIOS (II)

Pe. Ulpiano Vásquez Moro, SJ

“Como me há de aparecer a mim Jesus Cristo?”19

Quando e como acontecerá de fato esse “acesso”? Eis o problema ou a dificuldade maior do após-retiro. O desafio maior do exercitante que, como Buda, depois do retiro voltou para a sua casa cheio de ânimo e fervor, esquecido (mas logo lembraria!) de que, enquanto ele rezava, o mundo e seus habitantes continuavam firmes no desejo de ser mundo e

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mundanos. Sem tomar conhecimento, nem se abalar ao menos um pouco pelo fato de que Buda tinha renunciado ao mundo e aborrecido “as coisas mundanas e vãs” (EE. 63).

Elas não renunciaram a ele; nem por ele sentem aborrecimento, muito pelo contrário, o esperam... É por isso que a tarefa de estar no mundo sem ser do mundo, será tão difícil para Buda. Ele chegará a perguntar-se, passados alguns meses em que a luta irá se tornando cada vez mais acirrada, se é possível vencer essa batalha; se não será necessário fugir do mundo, barrá-lo com um muro bem alto, com uma clausura, uma distância graças à qual tudo aquilo que viu e ouviu nos Exercícios se apresente de novo com força total...

Enquanto isso, “como quando a gota de água cai na pedra”, o mau espírito toca a alma de Buda “agudamente, e com barulho e inquietação” (EE. 335); a gota de água, insistente, está fazendo transbordar a paciência de Buda; a gota de água, persistente, apaga as marcas, faz esquecer “o discurso dos pensamentos bons” que Buda tinha anotado, como se a gota estivesse caindo no próprio caderno onde Buda anotava solícito consolações e propósitos... A teografia, papel molhado?

É assim que o tempo do após-retiro vai, cada vez mais, parecendo com uma guerra de desgaste na qual Buda se sente só, sitiado, obsedado por “um capitão ou caudilho de campo que examinando as forças ou disposições de um castelo, ataca-o pelo lado mais fraco” (EE. 327).

Quando é que Buda cairá na conta de que essa resistência solitária e desgastante, encerrado em seu castelo (encerrado em seus tempos de oração, encerrado na caixa forte onde guarda os seus propósitos, etc), é uma situação insustentável? Insustentável, não porque ele deva se entregar ao inimigo, mas porque o castelo em que ele se defende sozinho não é o lugar onde ele deveria estar.

Como Inácio, talvez Buda está precisando experimentar que “a coisa toda de ter a Deus por refúgio”20 é um sinal que (tão bonito!), carrega ainda a marca de uma dupla e fundamental desconfiança. Desconfiança de Deus que não pode ser possuído como algo que se “tem”. Desconfiança do mundo que, no final das contas, foi feito por Deus e traz a sua marca...

Como Inácio, talvez Buda está precisando agora largar de vez a “Manresa” interior, abrir mão do “refúgio” para pôr-se nas mãos de Deus21. Inácio demorou muito tempo para realizar essa mudança interior, essa passagem do refúgio para a mão de Deus, e da mão de Deus para as mãos dos homens. A trajetória interior não aconteceu sem mudanças exteriores; não aconteceu, sobretudo, sem que tivesse que abrir mão da sua “solidão” diante de um Deus também só: Deus sem mundo e, aparentemente, contra o mundo.

Todas essas mudanças se realizaram em Inácio exatamente no momento em que as circunstâncias exteriores o obrigaram a abandonar o projeto que desde a sua conversão tinha sido o norte de toda a sua peregrinação: Jerusalém.

Vejamos de perto essa mudança, ou essa reviravolta, na esperança de que aquilo que aconteceu com o Autor dos Exercícios, e depois de tê-los feito, continue sendo iluminador para aqueles que, como Buda, depois dos Exercícios enfrentam a dificuldade de vivê-los.

Após ter peregrinado para a terra “histórica” de Jesus, firmemente convencido de que só nela poderia imitá-lo e segui-lo, Inácio (que as “circunstâncias” obrigavam a ter de ir embora) procurava no chão dessa terra a última relíquia teográfica, a última pegada empírica dos mesmíssimos pés de Jesus no lugar da Ascensão. Como se essas marcas fossem a última imagem que ele poderia guardar na memória, ter... Obsessivo e aflito, como se o seu caminho de seguimento se tornasse naquela pedra uma espécie de beco

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sem saída; como se a única saída fosse voltar sempre àquela pedra e, em volta dela, dar voltas...

Foi outro (Outro!) que arrancou Inácio à força para fora daquela fixação que não lhe permitia ver no mundo a presença real de Jesus ressuscitado, que impedia que elevasse o olhar e percebesse que o lugar do seguimento de Jesus era qualquer lugar onde ele, Inácio, andasse.

O fim desse bloqueio e a nova capacidade do ver, aconteceram concretamente quando Inácio “recebeu de nosso senhor Grande consolação: parecia-lhe que via sempre o Cristo sobre ele”22

O horizonte epigenético é isso: a experiência dessa ascensão concreta de Jesus, não mais no Monte Olivete, mas no coração que, consolado, o reconhece sempre sobre si.

Mas, na teografia de Buda, como na teografia do próprio Inácio, esse ponto de fuga decisivo graças ao qual se abre, de fato!, a perspectiva do horizonte, não foi e nem poderia ter sido dado pelos Exercícios. Os Exercícios são para a vida, e não a vida para os Exercícios. Quando isto acontece a espiritualidade se torna um fim em si mesma, cai no espiritualismo, se perverte. É por isso que os Exercícios preparam, exercitam, para aquele “ponto de fuga”, sem poder oferecê-lo, pois eles não podem ocupar o lugar da vida. O espiritualismo mata a vida, também a vida espiritual. Seria espiritualismo (e é a vertigem do espiritualismo que Buda agora enfrenta, como Inácio23, sem percebê-lo claramente) pensar que Inácio poderia ter recebido a consolação decisiva que o fez ver “sempre o Cristo sobre ele”, sem que tivesse acontecido também a presença imprevisível, aborrecida e ameaçadora do homem que o travou pelo braço e o levou de volta para onde ele não queria.

Sem essa intromissão nunca teria havido a missão. Inácio não teria podido acolher aquela consolação que desbloqueou a fixação no passado e abriu os seus olhos para a contemporaneidade do Cristo.

É por isso que a nossa questão, agora, consistirá em compreender de que maneira o horizonte epigenético que o paradigma dos Exercícios desenvolveu ao longo das quatro semanas é também o espaço de uma mistagogia cujos efeitos são retroativos, de uma mistagogia que preparou Buda, sem que então soubesse (cf. Jo 13, 7.8!), para ser capaz de acolher em sua vida esse evento imprevisível, gratuito, graças ao qual, através do outro (outro e outrem), o Cristo continua revelando a sua presença atuante e atual.

Trata-se de ver, com outras palavras, como os Exercícios, educando para o seguimento de Cristo, preparam para a missão na Igreja.

Talvez assim estejamos mais perto da única resposta que pode ser dada à nossa questão inicial(sobre a vida espiritual após os EE)

IV - Uma mistagogia sem “modo e ordem”?

Mas, de que maneira, depois dos Exercícios (isto é, quando já não existe mais “modo e ordem” preestabelecidos por aquele que dá os Exercícios para que quem os recebe medite ou contemple o roteiro da história [Cf. EE 21] será possível que, em qualquer situação da sua vida “normal”, Buda possa atingir o ponto de acesso ao horizonte epigenético de maneira não arbitrária?24

O que pressupõe esta pergunta? Quais são as condições de possibilidade para que Buda, depois dos Exercícios, possa viver à luz deles e, guiado pela experiência adquirida, possa continuar num processo mistagógico?

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Como resposta a essas perguntas, pretendo indicar agora, em paralelo com aquilo que já foi dito sobre a teografia, alguns dos elementos que me parecem constituir o “segredo” do funcionamento ou do movimento que anima todo o processo das diferentes transferências de lugar (ou de “composição de lugar”) ao longo da teografia das quatro Semanas dos Exercícios. Espero que, assim fazendo, seja possível mostrar de que maneira, num lugar real, num lugar que não é mais o resultado de uma “composição” imaginária e, portanto, num lugar que não faz mais parte dos lugares previstos na série dos Exercícios, pode continuar agindo a mistagogia que os animava.

Retenhamos aqueles que me parecem fundamentais.

1 - O Archegós

O primeiro elemento a ser notado, mesmo que seja evidente, é fato de que a mistagogia dos Exercícios se desenvolve, do início ao fim (num movimento em que se caminha do implícito para o explícito, e deste novamente para o implícito25), como uma iniciação que tem por finalidade a contemplação dos Mistérios da Vida de Cristo. O denominado “cristocentrismo” dos Exercícios não significa que Jesus Cristo seja o único assunto meditado ou contemplado. Significa que todos os assuntos, divinos ou humanos e mundanos, se concentram em Jesus porque para ele convergem ou porque dele surgem. É nele que Deus e homem se manifestam na sua verdade; se revelam no seu mistério: a “vida verdadeira” é “mostrada” por Jesus (EE 139).

Jesus Cristo, porém, não é só o conteúdo do Mistério para o qual o exercitante é iniciado. Bem mais do que isso, Ele é o Iniciador, o mistagogo do seu próprio mistério divino e humano. Ele é mistagogo do Pai e, Filho, o mistagogo dos filhos (cf. Mt 11,27). Mistagogia não é outra coisa do que a relação com ele. Ele que, como na carta aos Hebreus, se apresenta como o “Archegós”, aquele que vai na frente, “o iniciador da fé” (Hb 12,2))

Quando Buda, uma e outra vez, pedia “conhecimento interno do Senhor que por mim se fez homem, para que mais o ame e o siga” (EE 104 e par.), implicitamente estava reconhecendo e deixando que no seu “interior” se plasmasse ou se forjasse algo que é bem mais do que uma idéia, bem mais do que um sentimento. Conhecer a encarnação, conhecer os outros mistérios que com ela se iniciam, é receber na própria pessoa de quem isto pede uma capacidade, uma extensão e, às vezes, uma ferida aberta para uma relação de amor que só se realiza no seguimento.

Dada a importância “ontológica” que os “para” tem na linguagem de Inácio, não creio que seja abusivo dizer que para ele o conhecimento só se realiza no seguimento e que ambos só são possíveis pelo amor. A situação do conhecimento de Jesus é, pois, essa situação aparentemente paradoxal em que, para ser “interno”, para ser inteligente, há de ser duplamente fora de si; fora de si pelo amor, e fora de si pelo seguimento que não permite que o amor se sossegue, se transforme numa intimidade aposentada.

É este um ponto sem retorno. Qualquer volta a uma linguagem em que Buda falasse do Mistério sem levar em conta Jesus Cristo e a sua encarnação, sem levar em conta a forma de conhecimento interno forjada pela própria encarnação, poderia significar uma regressão para formas de nomeação de Deus pré-cristãs ou “pós-cristãs”. O esquecimento das palavras próprias, corretas (“ortodoxas”), pode acabar sendo um sintoma de esquecimentos bem mais essenciais.

Como sabê-lo? A única maneira de sabê-lo é lembrar a maneira como a sabedoria é atingida nos Exercícios.

2 - A sabedoria do fruto espiritual

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O que importa saber não são idéias ou conceitos. O que importa saber, nos Exercícios é apresentado, em primeiro lugar, como uma “história” que, antes da contemplação ou meditação, deve ser “fielmente narrada” por aquele que dá os Exercícios e, ao mesmo tempo, contada de uma maneira “sumária”, como apenas pontilhada (EE 2,1-2).

Essa preocupação com a fidelidade à história e, por outro lado, com sua apresentação esquemática, pressupõe, em segundo lugar, que a tradição da história deve acontecer de tal maneira que “a pessoa que contempla, tomando o verdadeiro fundamento da história, discorre e raciocina por si mesma. Encontrando alguma coisa que a esclareça ou faça sentir mais a história”, possa experimentar o “gosto” do “fruto espiritual” (EE 2,2-3) proposto como graça desejada no preâmbulo de cada exercício.

O terceiro pressuposto, e mais importante, consiste, pois, em que (como na parábola da semente) a Palavra semeada, não somente seja acolhida, mas o seja de tal maneira que o seu fruto possa ser colhido e gostado.

Gostar o fruto espiritual! Esta operação, na qual a experiência do saborear internamente vai depositando ou decantando na pessoa a sabedoria espiritual, o saber do sabor, é, evidentemente, o resultado, ou a assimilação, de todo o processo mistagógico dos Exercícios.

Este processo pode e deve ser comparado com a história da redação dos Evangelhos: sobre o fundo de uma trama comum cada evangelista, de acordo com as circunstâncias em que escreve, tecerá um texto próprio26. Assim, sobre a trama inaciana comum dos Exercícios e da leitura evangélica que eles propõem, cada exercitante (Buda, em nosso caso), “quer pelo seu próprio raciocínio, quer porque seu entendimento é iluminado pela virtude divina”(EE 2,3), acabará tecendo o seu texto evangélico pessoal, ou - voltando à comparação do fruto - cultivando a semente da Palavra de tal maneira que poderá colher e saborear o fruto do seu trabalho.

Parece-me que é muito importante insistir sobre o fato de que, nos Exercícios, a apropriação dos conteúdos, ou mais especificamente, a apropriação da história de Jesus na história do exercitante, acontece graças a uma assimilação análoga à assimilação de um alimento27 vital. É assim que tudo converge para o mistério eucarístico onde é patente que assemelhar-se ao Cristo só é possível assimilando-o.

Esse realismo eucarístico se manifesta nos Exercícios, desde o início, na importância que Inácio atribui ao “gosto” (EE 2,4)28 e, de maneira geral, aos cinco sentidos. O “proveito” da reflexão, por exemplo, é sempre precedido pelo “sentir”29. É assim como se cortará na raiz qualquer espécie de racionalização. É por isso, sobretudo, que Inácio, procurando os critérios “para em alguma maneira sentir e conhecer as várias moções que se causam na alma” (EE 313), querendo em definitiva (pois, não é outra a matéria do discernimento de espíritos) “procurar e encontrar a vontade divina na disposição da vida para a salvação da alma” (EE 1,4), colocará o fulcro de toda a dinâmica do discernimento no exame das moções produzidas pela consolação ou pela desolação.

De que maneira se entrelaçam nos Exercícios esses dois fios condutores, o da história de Jesus e o do exame ou discernimento das moções? Tentarei lembrar a forma desse entrelaçamento, pois acredito que é nele que a questão da vida espiritual de Buda depois do retiro se decidirá.

3. Da moção à missão

O uso imoderado da palavra “discernimento” no meio que Buda está freqüentando agora transformou numa espécie de abstração inoperante a experiência de discernimento que ele

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teve durante os Exercícios. Buda está confuso. Será que o discernimento pode ser reconhecido quando ele não é mais do que uma contabilidade racional de perdas e ganhos, ou uma mal disfarçada psicologização de nossos estados de ânimo ou das nossas emoções?

É bom que Buda esteja confuso. O próprio Inácio ficaria confuso e envergonhado se descobrisse que a palavra discernimento, ou os termos com ela fundamentalmente relacionados como “consolação” e “desolação”, está sendo utilizada para indicar uma espécie de mecanismo ou geringonça pseudo-espiritual que, na realidade, funciona movido apenas com a nossa energia mental ou emocional, ou com o puro bom senso.

Nesse discernimento desnaturado faltam, do ponto de vista dos Exercícios, duas dimensões fundamentais, para não falar das operacionais. A primeira diz respeito ao lugar onde o discernimento tem seu meio vital. A segunda à matéria própria do discernimento. A terceira (que nem foi iniciada, pois vive das outras duas) seria a interação entre o lugar onde o discernimento acontece e aquilo que o discernimento examina.

4 - As raízes da planta

O lugar que as regras de discernimento ocupam no fim do livro dos Exercícios não pode fazer esquecer que, em seu próprio título, elas estão referidas à primeira e à segunda semanas. O discernimento não é apresentado como um dos possíveis modos de orar. Ele tem referências distintas e direcionadas. O que significam essas referências? Significam a existência de situações espirituais diversas ou diferenciadas cuja consciência se desenvolve graças aos assuntos ou às “histórias” que, num roteiro que é uma trajetória direcionada e sutil, lhe são propostas àquele que faz os Exercícios por aquele que os dá. Quando esta referência é esquecida acontece como se as raízes do discernimento fossem arrancadas do chão em que ele vive. E morre, mesmo que a sua figura sobreviva numa imitação artificial que só engana àqueles que nunca chegarão perto para conferir, ou àqueles que gostam de ter um enfeite que parece inaciano.

O chão dos discernimentos, pois são plurais, está nos cinco exercícios da Primeira Semana e nos Mistérios da Vida de Cristo da Segunda. É desses exercícios e dos previsíveis efeitos que eles produzem no exercitante que o discernimento se alimenta para crescer e atingir a sua maturidade na Segunda Semana (como piedosamente pode-se acreditar já que Inácio não julgou conveniente escrever regras especiais para a Terceira e Quarta).

É assim que o discernimento, que se supõe provocado, sobretudo na Segunda Semana, pelas moções de consolação e de desolação experimentadas no confronto com os Mistérios da Vida de Cristo, com o apelo do Reino e a sua comprometedora oblação, e finalmente, no “Preâmbulo para considerar Estados” com a explicitação da “intenção” de Cristo em contraste contrariante com a intenção do inimigo da natureza humana (cf 135), acabará explodindo no cenário “político” (as duas cidades) das Duas Bandeiras30, das Classes de Homens e das Três maneiras de Humildade”, para , por sua vez desembocar (como se o anterior tivesse sido uma dose pequena) num outro “Preâmbulo para fazer eleição”, seguido da explicação dos “Três tempos” de eleição e do longo adendo sobre os dois modos de praticar a eleição no terceiro tempo.

Esta complexidade é varrida do mapa em muitas das práticas do, assim, mal chamado discernimento. Ele nunca será mistagógico porque se arrancou da teografia substituindo-a pela obscura mesquinhez de “aquilo que penso, ou aquilo que eu acho” (formas de esconder “aquilo que eu gosto, ou aquilo que me desagrada”).

5 - A seiva do discernimento

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Ao desenraizamento do chão vital do discernimento, que vira assim uma espécie de solilóquio que a alma empequenecida mantém consigo mesma em seu “living”, acrescenta-se um vício cuja análise é mais difícil, pois nele o pensamento inaciano e os nossos hábitos mentais mereceriam entrar numa colisão estrondosa. Escutemos este estrondo, lembrados do prudente “Pressuposto” (EE 22) no qual Inácio, que entendia de colisão em todas as instâncias, nos pede para ser compreensivos e para estar sempre dispostos ao diálogo de tal maneira que a proposição do próximo, bem entendida, se salve!

Vejamos a questão. Logo no início dos Exercícios Inácio escreve:

“Pressuponho ser três pensamentos em mim, asaber, um próprio meu, o qual sai da minhamera liberdade e querer, e outros dois, que

vem de fora: um que vem do bom espírito, e ooutro do mau” (32)

No título deste parágrafo, Inácio está falando do Exame Geral da Consciência. É, pois, dela que aqui se trata, ou mais exatamente, de maneira como Inácio entendia, não tanto uma antropologia metafísica da consciência humana, nem se quer a sua tópica, mas o seu funcionamento tal como ele o tinha observado. Não entrarei aqui no estudo dos três pensamentos a que ele faz referência, nem sequer das três personagens que, com movimentos diversos e estando os três na consciência tem diferentes origens: um que, próprio meu, “sai da minha mera liberdade e querer”, e os outros dois, o bom e o mal espírito, que vêm de fora”, mesmo que estejam em mim31.

Gostaria de chamar à atenção para a representação que o texto inaciano citado permite contemplar:

No espaço da minha consciência, “em mim”, podem existir três pensamentos. Como posso saber que são três se a minha consciência é uma? Como é possível decodificar essa espécie de freqüência modulada? É evidente que a percepção da diferença existente entre cada um dos três pensamentos não pode ser uma percepção imediata, mas que exige um certo tipo de exame da própria consciência.

O exame que Inácio nos propõe (e que será elaborado em seus pormenores nas regras de discernimento) é uma análise “genealógica” que pressupõe que os pensamentos da consciência podem ter duas origens identificáveis pela sua interioridade ou pela sua exterioridade. Pela sua interioridade, Inácio afirma que existe um pensamento que “é próprio meu, o qual sai da minha mera liberdade e querer”. Pela sua exterioridade, Inácio identifica “outros dois [pensamentos] que vêm de fora”. Esse “fora” de mim (da minha “mera liberdade e querer”) é ainda mais precisamente como dois “espíritos”. Dois, porque um é “bom” e o outro é “mau”.

Se prestarmos bem atenção perceberemos que nesta última distinção Inácio está pressupondo uma outra forma de análise que subjaz naquela que antes chamei “genealógica”. Como, senão, chamar bom ou mau ao espírito? Que o espírito que produz seu pensamento em mim possa ser chamado bom ou mau é algo que só posso saber na medida em que for capaz de identificar onde é que o pensamento me leva. Trata-se, pois, aqui de uma análise que poderíamos chamar “teleológica”. A análise é teleológica porque só a partir do fim (a partir do para que ou da finalidade que se manifesta no final é possível conhecer a origem ( uma árvore boa não produz frutos maus).

Mas essa análise teleológica é também uma análise que poderíamos denominar “moral”32. “Moral” porque o que é visado com todos estes superpostos é a bondade ou a maldade do ato humano. Esse elemento “moral” é evidente nos numerosos textos (cf. EE 24 até 44)

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que Inácio coloca na Primeira Semana com a finalidade de realizar os diferentes tipos de exame, o “particular” e os dois “gerais” do pensamento, da palavra e da obra.

Creio que é muito importante notar que para Inácio este exame tem uma objetividade33.

A origem boa ou má dos pensamentos que disputam na minha consciência, só pode ser conhecida pelo fim. O conhecimento desse fim, por sua vez, supõe um “discurso” ou trajetória, um percurso onde o pensamento discursivo se desenvolve de tal maneira que seja possível distinguir ou delimitar nele um princípio, um meio e um fim.

Acontecerá graças ao movimento suscitado pelas moções de consolação ou de desolação que, sentidas e conhecidas, podem ser “lidas” como a indicação da direção ou do sentido onde o seguimento de Jesus é possível em cada situação concreta.

O discernimento espiritual praticado por alguém que já fez os EE apresenta, no entanto, uma diferença fundamental com o mesmo discernimento quando é realizado antes ou durante os Exercícios.

NOTAS:

19 autobiografia 21.

20 Autobiografia 36 e 36. Ver o texto.

21 Cf. Constituições 812-814. Comparar com os textos da nota anterior notando a diferença espiritual.

22 Autobiografia 48.

23 Procurar na AutB. uma situação em que apareça a tentação “espiritualista”...19?

24 Conferir o exemplo de Nadal querendo contemplar o nascimento e, de fato, contemplando a Cruz. Cf. MHSI. T 90a, p 150. Ver: Pierre-Antoine FAVRE, Ignace de Loyola, le lieu de l’image. Vrin/Ehess. Paris 1992

25 Aludo com esses dois implícitos cristológicos ao Princípio e Fundamento e à Contemplação ad Amorem.

26 Ver F. r. de Gasperis, “Bíblia e Exercícios Espirituais”, p, 21, onde fala do “isomorfismo” entre a Escritura e os EE. Em 2 Co 3, 3, texto usado de todas as maneiras por Inácio, encontra-se o fundamento dessa isomorfia.

27 Como, aliás, acontece com o Mistério da Fé na Eucaristia: “a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida” (Jo 6,55).

28 EE 227; 252 e 254: relação direta ou equivalência entre gosto e consolação.

29 No esquema de contemplação prototípica da Encarnação, depois de cada um dos três pontos, Inácio escreve: “e refletir para tirar proveito de tal vista” (106, 4); “ e refletir depois, para tirar proveito das suas palavras” (107, 3); e depois refletir, para tirar algum proveito de cada coisa destas” (108,4).

30 Um exame literário comparativo dos termos utilizados nas Duas Bandeiras com os termos utilizados por Inácio nas Regras de Discernimento da Segunda Semana, manifestaria uma relação infratextual cuja evidência é a prova de que o que Inácio escreve nas Regras com

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um gênero literário próprio, acontece nas Bandeiras. Tentarei mostrar depois as conseqüências espirituais deste fenômeno literário.

31 Notemos que Inácio não enumera aqui (como se tratasse de um quarto pensamento possível) a ação imediata de Deus na alma, como o fez em 15 e o fará em 329, e de uma maneira ainda mais esclarecedora para o propósito que nos ocupa agora, em 336. Para Inácio essa ação imediata que só Deus pode produzir e que se manifesta como “consolação sem causa” (EE 329), em si mesma não tem o que discernir; não é um “ pensamento”, como é o caso dos três pensamentos que são enumerados no texto de EE 32. Somente as “relíquias” da consolação sem causa exigem discernimento, justamente porque sobre essas relíquias a pessoa elabora já o pensamento ou discursos que não são dados imediatamente (cf 336).

32 Mesmo que a nossa reflexão sobre o 32 não seja teológica ou metafísica, parece-me importante notar que os adjetivos “bom” e “mau” são aplicados aos espíritos e não à “mera liberdade e querer” humanos!

33 Ver EE 42: “ Tomando por objeto os dez mandamentos, os preceitos da Igreja e as recomendações dos superiores...”.

ORAÇÃO INACIANA

JESUS E O TEMPLO (EE 288; Lc 19,41-48)

Pe. Luis González-Quevedo, SJ

Senhor Jesus:

Esta noite, quero contemplar a tua "pregação no Templo". Não foi à noite que o Iscariotes te entregou? “Era noite”, diz João. E todos te abandonaram. Eu também te abandonei, te esqueci. Mas, esta noite, quero estar contigo.

Oração preparatória

Senhor, que toda minha vida seja somente para Ti, para o teu Reino; que eu não perca mais um só dia, vivendo longe de Ti!.

Composição de lugar

Jerusalém, "Ierushalaim" ("cidade de paz"), cidade santa, onde Tu vais morrer. A ladeira do Monte das Oliveiras, onde hoje fica a igreja do "Dominus flevit" ("O Senhor chorou").

Petição

Esta noite, mais uma vez, venho pedir-te "conhecimento interno". Conhecer-te com o coração, para amar-te mais e seguir-te melhor.

VEJO AS PESSOAS...

A multidão dispersa, as pessoas cansadas, sofridas. Tu tens compaixão delas, porque são "como ovelhas sem pastor". Vejo também o povo, as pessoas reunidas ou caminhando em direção ao Templo, lugar privilegiado do encontro com Deus. Sem Ti não somos nada,

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gente a toa na vida. Mas Tu nos chamas a sermos membros do teu povo, Tu nos revelas nossa identidade.

Vejo uma caravana de judeus piedosos, caminhando para o Templo. Vão cantando os salmos das "subidas":

Que alegria, quando me disseram:"Vamos para a Casa do Senhor!"

Lembro da minha alegria e devoção, quando, criança, visitava o Santuário de Nossa Senhora de Covadonga ("la Santina"). Ou daquela missa cantada, na Abadia de Montserrat, num dia de sábado. Já no Brasil, vejo-me caminhando a pé, com um grupo de jovens, de Goiânia ao Santuário do Divino Pai Eterno, em Trindade, GO. Ou participando de uma celebração na Basílica de Nossa Senhora Aparecida.

Os judeus piedosos (os hassidim) sentiam a presença divina no Templo e dela se impregnavam. Os romeiros de todos os tempos e lugares confiam na proteção de tua Mãe, invocada em tantos santuários. Maria foi o primeiro Templo em que Tu entraste, nesta vida, pequeno e humilde tabernáculo santificado por tua Presença. Ainda hoje, quando olhamos para ela, te vemos a Ti.

Agora quero ver-te, adulto, entrando "cada dia" no Templo, para ensinar. Ao Templo vinhas com o coração em festa, três vezes por ano, desde a tua adolescência. Nele tinhas deixado admirados os doutores da Lei e desapontados teus pais: "Não sabíeis que devo ocupar-me com as coisas do meu Pai?". Quantas experiências bonitas de encontro com Deus tiveste nesse recinto sagrado!.

Um dia, porém, encontraste uma cena que despertou a tua justa indignação. O Templo feito mercado e casa de câmbio. A nossa Igreja acomodada. A vida consagrada inflacionada de palavras bonitas ("profetismo", "inserção", "inculturação"...). Os leigos com um protagonismo restrito aos documentos oficiais... Mas, não, não me deixes julgar ninguém. Deixa-me olhar-te a Ti, devagar, para que eu vá me impregnando do teu jeito...

ESCUTO AS PALAVRAS...

Lembro dos Salmos que cantávamos no Noviciado:

"Aclamai o Senhor, ó terra inteira,servi ao Senhor com alegria,

ide a ele cantando jubilosos!"."Os que semeiam entre lágrimas,

cantando irão a ceifar".

Sim, as nossas pequenas tristezas serão mudadas em alegria. A nossa vida como a tua será uma Páscoa. Mas até essa Hora...

"Das profundezas eu clamo a Ti, Senhor,Senhor, escuta a minha voz!"

Escuto o murmúrio dos judeus piedosos; e a convocação à oração islâmica, através dos alto-falantes das mesquitas; e os sinos das nossas igrejas; e os cantos afro-brasileiros... Escuta, Senhor, a oração de todos os povos, de todas as raças, de todas as crenças. Escuta também o silêncio, a solidão e o vazio daqueles que não rezam mais, porque não te conhecem.

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Eu quero conhecer-te sempre mais, para amar-te mais e mais, para servir-te melhor. Eu quero escutar-te a Ti, meu Senhor. "Fala, que teu servo escuta...". "Só Tu tens palavras de vida eterna":

"Se compreendesses, hoje, o caminho da paz!Mas teus olhos estão fechados...".

"Minha casa será chamada casa de oração.No entanto, vós fizestes dela uma toca de ladrões".

"Todos os dias eu estava convosco no Templo, e nunca pusestesa mão em mim. Mas esta é a vossa hora, e o poder das trevas".

CONSIDERO O QUE FAZEM...

A multidão, correndo atrás das coisas em que coloca a sua felicidade... Os comerciantes, vendendo e comprando. Os agentes de cambio e bolsa, gritando as cotações do momento...

Aproximando-te de Jerusalém, Tu choras por tantos Lázaro, Marta e Maria..., Pedro e João..., e Judas! Entrando no Templo, derrubas as mesas dos cambistas e as cadeiras dos vendedores.

Os grandes, preocupados contigo, procuram o jeito de matar-te. Mas o povo, ouvindo-te falar, fica fascinado.

De dia, ensinas no Templo. Ao anoitecer, sozinho, dás uma saída até o Monte das Oliveiras, onde costumas rezar. Ao dia seguinte, de novo, todo o povo vai ao Templo, para escutar-te.

"Acabada a pregação", voltaste a Betânia, porque não havia quem te recebesse em Jerusalém. Em Betânia há uma colônia de galileus... Lá, Tu te sentes "em casa", entre amigos e conterrâneos. Longe da minha terra e da minha tribo, que eu saiba sentir-me à vontade, onde quer que estiver! O mundo é minha casa, porque Tu, Rei do universo, estás comigo!

No Templo, ensinavas "todos os dias". No meu ministério de orientar Exercícios, ajuda-me a vencer os "demônios" da canseira, da rotina e da impaciência. Ensina-me a paciência, como ensinaste aos Apóstolos. Que eu persevere, como eles, no serviço do teu Reino. Que eu cumpra com alegria minha missão!

Colóquio final

Obrigado, Senhor, por me teres ajudado a contemplar um tema que não me atraía. Uma dessas contemplações que eu nunca tenho proposto, nem mesmo nos Exercícios de 30 dias. Parece o refugo das "orações inacianas", feito resto de verdura que se dá, quase de graça, no fim da féria. Mas, não foi assim como Tu te sentiste nas vésperas da tua Paixão?

Não tinhas aparência,nem beleza que cativasse nosso olhar.

Obrigado, Senhor, porque nesta noite Tu me fazes sentir em paz, reconciliado com tudo e com todos: contigo, com os meus irmãos, comigo mesmo... Estou de bem com a vida, graças a Ti, meu único bem!

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SUBSÍDIOS

A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO: CONTEMPLANDOO QUADRO DE REMBRANDT1

Henry NonwenSíntese: Pe. Pedro Américo Maia, SJ

1 - Uma rejeição radical

O título completo do quadro de Rembrandt é “A Volta do Filho Pródigo”. Na palavra “regresso está implícito caminhar, retornar é voltar ao lar depois de tê-lo abandonado, voltar depois de ter partido. O Pai que dá boas-vindas ao filho, está feliz, por que “ele estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi encontrado”(Lc 15,32). A imensa alegria na volta do filho perdido esconde a tristeza de sua partida.

Quando Lucas escreve: “partiu para um país longínquo” quer indicar bem mais que o desejo de um jovem para conhecer o mundo. Fala de um corte drástico com a forma de viver, pensar e agir, transmitida de geração em geração como um legado santo.

Deixar o lar é ignorar a verdade de que Deus me moldou em segredo, me formou nas profundezas da terra e me teceu no seio materno (Sl 139, 13-15).

O lar é o centro do meu ser. É onde posso ouvir a voz que diz: “Tu és meu filho amado, em quem me comprazo”, a mesma voz que deu vida ao primeiro Adão e falou a Jesus, o segundo Adão. A mesma voz que fala a todos os filhos de Deus libertando-os de viver num mundo escuro, fazendo-os permanecer na luz.

2 - Buscando-o onde não pode ser achado

Eis a questão: “A quem pertenço? A Deus ou ao mundo? Muitas de minhas preocupações diárias sugerem-me que pertenço mais ao mundo que a Deus. Minha vida é antes de tudo, uma luta para sobreviver: não uma luta sagrada, mas uma luta inquieta que surge da idéia equivocada de que é o mundo que dá sentido à minha vida.

Enquanto fico correndo por tantos lugares perguntando “Tu me queres?”. “Realmente tu me queres?”, dou todo o poder às vozes do mundo, colocando-me na situação de escravo, porque o mundo está cheio de “sins”.

Aqui se descobre o mistério da minha vida. Sou amado de tal maneira que sou livre para deixar o lar. Ali está a bênção desde o princípio. Eu a recusei e continuo recusando-a. Mas o Pai continua esperando-me com os braços abertos, pronto para me receber e murmurar-me ao ouvido: “Tu és meu filho amado em quem me com prazo”.

3 - A volta do filho caçula

O que acontece com o caçula num país distante? Além das conseqüências físicas e psíquicas quais as conseqüências mais internas da saída do filho?

Quanto mais me afasto do lugar onde Deus habita, menos capaz sou de ouvir a voz que me chama “meu filho amado” e quanto menos ouço tal voz, mais me envolvo nas manipulações do mundo.

Não estou seguro de ter um lar e vejo outros que parecem estar melhor que eu.

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Quando ninguém mais lhe dá comida, nem mesmo a lavagem dos porcos, o caçula se deu conta de quem nem ao menos era tido como um ser humano. Somente em parte sou consciente de quanto necessito da aceitação dos outros.

A volta do filho pródigo é cheia de ambigüidades. Viaja pelo caminho correto, mas que confusão!

Ainda que reclamo minha verdadeira identidade como filho de Deus, continuo vivendo como se o Deus para o qual eu volto exigisse alguma explicação. Considero seu amor, um amor condicional e o lar em local em que não estou totalmente seguro. Enquanto tento voltar para casa, conservo dúvidas se serei bem recebido ao chegar.

Há arrependimento, não porém um arrependimento à luz do imenso amor de um Deus que perdoa. É arrependimento interesseiro como garanta para sobreviver. É como se eu dissesse: “Bem, não posso fazer sozinho; tenho de engolir que Deus é único recurso que me resta. Irei a Ele; pedirei perdão, na esperança de receber um castigo mínimo que me permita sobreviver fazendo trabalhos forçados”. Deus continua sendo severo e justiceiro.

Desejo romper com minha rebelião contra Deus e entregar-me ao seu amor que pode fazer que surja uma pessoa nova? Receber perdão implica vontade de deixar a Deus ser Deus fazendo o trabalho de restauração, cura e renovação de minha pessoa.

4 - O filho mais velho

O caçula pecou de forma visível. Esbanjou seu tempo, dinheiro, seus amigos, seu corpo. Rebelou-se contra toda moralidade deixando-se arrastar pela luxúria e cobiça. Depois, percebendo que tudo aquilo somente o levou à miséria e à desgraça, voltou e pediu perdão.

O extravio do filho mais velho é bem mais difícil de ser percebido. Ele nunca deixou o lar. Mas quando viu a alegria de seu pai pela volta de seu irmão menor, transmuda-se numa pessoa ressentida, orgulhosa, severa e egoísta.

5 - Uma conversão possível

O Pai deseja que voltem os dois filhos, o caçula e o mais velho também. Este precisa ser encontrado e conduzido à casa da alegria.

Responderá ao pedido de seu pai ou ficará penalizado na sua amargura?

6 - Deixando a rivalidade de lado

A alegria pelo regresso emotivo do caçula de modo algum pode significa que o filho mais velho é menos querido. O pai não compara seus dois filhos. Ama os dois com amor total e exprime tal amor de acordo com o estilo de cada um deles.

A volta do caçula leva-o a celebrar uma festa. A volta do mais velho faz com que ele estenda seu convite à total participação nesta alegria!

O irmão mais velho compara-se com o caçula e sente ciúmes. Mas o pai ama-os tanto que jamais pensaria adiar a festa para que seu filho mais velho não se sentisse rechazado.

7 - O Pai organiza uma festa

Enquanto o filho está disposto a ser tratado como um criado, o Pai pede que seja vestido com a roupa reservada aos convidados especiais. Ainda que o filho não se sinta com

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direito a que seja chamado filho, o pai entrega-lhe um anel e sandálias para tributar-lhe as honra de filho amado devolvendo-lhe a condição de herdeiro.

8 - Um convite à alegria

Sou consciente de que não estou acostumado imaginar a Deus dando uma grande festa.

Uma criança não permanece criança para sempre. Ela se converte em adulto. Um adulto se converte em pai ou mãe. Quando o filho pródigo volta para casa, volta não para continuar sendo menino, mas para descobrir sua condição de filho e converter-se mesmo no pai. Se refletir bem perceberei que quanto mais volto para casa, mais claramente percebo que estou sendo chamado a converter-me no Pai que dá as boas vindas e organiza uma festa.

9 - Converter-se “em” Pai

Tanto na Igreja como na sociedade a pressão não é para que continuamos a ser filhos independentes? Não procuramos escapar da dura tarefa que a paternidade supõe?

Sem dúvida, a mais radical afirmação feita por Jesus foi esta: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”(Lc 6,36). Jesus descreve a misericórdia de Deus não somente para me mostrar o que Deus sente por mim, ou para perdoar os pecados e oferecer-me vida nova e muita felicidade. Mas para convidar-me a ser como Deus e para que seja tão misericordioso com os outros como Ele é comigo.

São três os aspectos da paternidade misericordiosa: o amor, o perdão e a generosidade.

A dor é forma de compaixão. Não há misericórdia sem lágrimas, se não brotam dos olhos saem do coração.

A dor é oração. Mas, dor é a disciplina do coração que vê o pecado do mundo. E é também o preço doloroso para alcançar a liberdade sem a qual o amor não aparece. A dor é tão profunda não apenas porque o pecado do homem é grande. Mas pessoalmente por que o amor divino não conhece fronteiras.

Para ser igual ao Pai, cuja única autoridade é a compaixão, tenho de derramar muitas lágrimas e preparar meu coração para receber a qualquer pessoa, seja qual for sua trajetória e perdoá-la de todo coração. É só pelo perdão constante que chegaremos a ser igual ao Pai! “Se teu irmão peca contra ti, sete vezes no dia, e outra sete te diz “eu me arrependo”, perdoa-o” (Lc 17,4).

Entretanto, o perdão de Deus é incondicional: parte de um coração que nada reclama para si, coração completamente vazio de egoísmo. É um chamado para que eu passe por cima de todos os argumentos que me dizem que o perdão é pouco prudente, pouco saudável e nada prático!

Tal perdão exige de mim passar por cima desta parte do meu eu que se sente ferida e machucada que deseja manter o controle e impor condições entre quem me pede perdão e eu. Este “passar por cima”, é a autentica disciplina do perdão.

Para exercer a verdadeira paternidade é preciso deixar que o caçula rebelde e o filho mais velho ressentido venham a plataforma para receber o amor incondicional e misericordioso que o Pai me oferece e assim descobrir o chamado a ser acolhida, como meu Pai é “acolhida”, então, estes dois filhos que estão dentro de mim poderão transformar-se pouco a pouco no Pai misericordioso.

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Haverá alegria maior que estender meus braços e deixar que minhas mãos toquem os ombros de meus filhos recém-chegados num gesto de benção?

NOTA:

1 Cf. Henry Nonwen. El Regresso del Hijo Prodigo. Madrid, PPC,1995, 6ª ed., 159 p.

SUBSÍDIOS

A Parábola do Filho Pródigo (Lc 15,11-32) termina com a volta do jovem sem juízo, a calorosa recepção do Pai e a inveja do irmão. Mas...e depois?. “Que aconteceu depois?” “Como foi visto, "depois", o filho pródigo pelo Pai, pelo irmão e pelos empregados? E como se comportou ele com o Pai, com o irmão e com os empregados?”. A tais questões, feitas por um exercitante, quis responder o autor, membro das CVXs do Rio de Janeiro. O texto imagina três possíveis atitudes do filho pródigo no dia seguinte ao seu regresso.

“O DIA SEGUINTE” DO FILHO PRÓDIGO(A partir de uma idéia ouvida no Retiro de Carnaval de 1994)

Hélcio França Alvim

Olá, filho! E aí, dormiu bem?

Puxa, pai! Há muito tempo não dormia assim. Também, depois daquela festa...Rever os amigos, falar de coisas boas, o vinho, o churrasco, foi demais! Eu tinha certeza de que você me perdoaria, mas achava que me deixaria "de castigo", algum tempo, dormindo no celeiro, comendo separado... O que eu nunca podia esperar era a festa, meu quarto prontinho, a roupa nova (está um pouco larga; emagreci, com aquele jejum forçado), até o anel de família, que estava guardado. Juro que foi muito além do que podia sonhar!

Que bom que você gostou. E os planos para o futuro, já pensou?

Sabe, pai, estava agora mesmo refletindo sobre isso. Eu...

A) ...sei que a fazenda está precisando de gente, é época de semear, mas depois de todo esse "sufoco" que passei, acho que preciso de um descanso. Só uns três ou quatro meses, para me recuperar, aí eu pego no "pesado" mesmo, p'ra valer!

B)...vi que as coisas aqui estão meio descontroladas. O mano é trabalhador, mas cá entre nós não é lá muito brilhante. Já você é a melhor pessoa do mundo, mas por isso mesmo, qualquer um lhe faz de bobo. Basta um sorrisinho e você desculpa tudo. Se me der carta branca, eu despeço meia-dúzia de empregados, boto os outros na linha, e em pouco tempo a fazenda vai dar muito mais lucro.

C) ...não sei nem o quê dizer... Depois da sua acolhida, a única coisa que posso fazer é a sua vontade. Diga o que você quer e eu vou em frente!

E agora? Qual será a minha resposta “no dia seguinte”?

SUBSÍDIOS

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"Se dizemos: 'Não temos pecado', enganamos a nós mesmos e a verdade não está em nós. Se confessamos nossos pecados, Deus, que é fiel e justo, perdoará nossos pecados e nos purificará de toda injustiça" (1Jo 1,8-9). Reproduzimos, com pequenas modificações, exercício produzido na Colômbia e inspirado no esquema do cardeal Martini para a confissão sacramental.

EU PECADOR1

1. Imaginando-se diante de Jesus Cristo crucificado, peça ao Senhor:

a) conhecer profundamente a realidade de seus próprios pecados;b) sentir a desordem das suas ações e omissões;c) experimentar a graça do perdão e o desejo sincero de uma vida nova, de acordo com a Sua vontade.

2. Faça uma Confissão de Louvor, reconhecendo os dons que você recebeu de Deus:

a) Pense em todos os dons que você recebeu de Deus ao longo de sua vida.b) Dê graças ao Senhor por estes dons.

3. Faça uma Confissão de Vida, reconhecendo seus próprios pecados. Para tanto, pode fazer o seguinte:

a) Traga à memória o processo de sua vida, vendo quais foram os fatos e as omissões, com os quais você rompeu o projeto de Deus.b) Considere quais foram as conseqüências dos seus pecados.c) Examine as causas ou atitudes profundas, que estão por trás desses fatos ou omissões.d) Compare os dons que Deus lhe deu e as ações, omissões e atitudes que você teve e continua a ter.e) Leia pausadamente o Salmo 51 (50).

4. Faça uma Confissão de Fé, reconhecendo o amor e o perdão de Deus Pai:

a) Leia e medite a parábola do Filho pródigo (Lc 15,11-24).b) Diante de Deus Pai, que sempre perdoa a quem deseja mudar e melhorar sua vida, peça perdão de seus pecados, dê graças por Seu amor, e suplique-lhe a força do Seu Espírito para caminhar segunda a sua vontade.c) Examine em que pontos concretos você deve mudar, para responder melhor ao que Deus quer de você.

5. Faça um diálogo com Jesus crucificado, apresentando-lhe o que você meditou. Peça a intercessão de Maria, a Mãe de Jesus, suplicando-lhe que o(a) ajude a rejeitar o pecado e realizar sempre a vontade de Deus. Junto com Jesus e Maria volte-se para o Pai, e agradeça-lhe tudo o que Ele fez e faz por você.

NOTA:

1 Isidro PEREZ, SJ, Peregrinación interior para un mayor servicio. Ejercicios Espirituales en la vida corriente. Bogotá, CIRE/Indo-American Press Service, s.d. (Col. "Experiencias").

LIVROS

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BIBLIOGRAFIA DA PRIMEIRA SEMANA DOS EXERCÍCIOS

Ir. Maria Fátima Maldaner, SND

Livros

LIBÂNIO, João Batista, Pecado e Opção Fundamental. Petrópolis, Vozes, 1975.

CUSSON, Gilles, Conduzi-me pelo Caminho da Eternidade. Os Exercícios na Vida Cotidiana. São Paulo, Loyola, 1976, pp. 45-64.

FUTRELL, J.C e CORVAN, M., Como dar um Retiro Inaciano. Manual para Diretores. São Paulo, Loyola, 1987, 37-65.

MAGAÑA, José, Jesus Libertador dos Oprimidos. São Paulo, Loyola, 1990, 71-90. Orientações para Realizar os Exercícios Espirituais na América Latina. Um Diretório a partir de e para a América Latina. São Paulo, Loyola, 1991.

PLAZA, M. e BOISVERT, M., O Retiro Inaciano feito no dia-a-dia. São Paulo, Loyola, 1991, 94-101.

PALAORO, Adroaldo, A Experiência Espiritual de Sto. Inácio e a Dinâmica Interna dos Exercícios. São Paulo, Loyola, 1992, 89-92.

Catecismo da Igreja Católica. Petrópolis / São Paulo, 1993, nn. 1846-1876.

SOBRINO, Jon, O Princípio Misericórdia. São Paulo, Loyola, 1994.

CUSTÓDIO FILHO, Spencer, Os Exercícios de Sto. Inácio de Loyola. Um Manual de Estudos. São Paulo, Loyola, 1994, 45-64.

Artigos

VV.AA., "Pecado, nosso Problema", Vida Pastoral nº 84 (jan/fev. 1979), 2-35.

PIRES, Cláudio W., "Oração sobre o Pecado e a Misericórdia de Deus", Itaici, nº 2 (dez. 1889), 21-22.

MALDANER, Maria Fátima, "A Primeira Semana dos Exercícios Espirituais no Contexto da Realidade Latino-Americana", Itaici, nº 1 - Especial (julho, 1990), 16-27.

MATOS, Henrique Cristiano José, "Misericórdia como Espiritualidade: Uma Perspectiva Latino-Americana", Atualização, nº 241 (jan/fev. 1993), 23-68.

VV.AA., "O Pecado e o Mal (I)", Vida Pastoral, nº 188 (maio-junho, 1996), 7-29.

BARREIRO, Álvaro, SJ, Povo Santo e Pecador: A Igreja questionada e acreditada. (Col. "Teologia e Evangelização". 11). São Paulo, Ed. Loyola, 1994.

Ir. Maria Thereza Thiele, FSCJ

O autor é professor de Eclesiologia no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, orientador de Exercícios Espirituais e colaborador do CEI-

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ITAICI. Em outubro próximo, dará um curso na Vila Kostka, sobre “Caminhos para ‘sentir com uma Igreja’ que é POVO SANTO E PECADOR”.

A obra é um ensaio sobre a dimensão eclesial da fé cristã, a crítica e a fidelidade à Igreja. Tem por objetivo mostrar que a fé cristã ou é eclesial-comunitária ou não é cristã.

O conteúdo está desenvolvido em sete capítulos agrupados em três partes: I) A Igreja em questão; II) A Igreja como horizonte e matriz da fé; e III) Crítica, amor e fidelidade à Igreja. Uma Introdução e quatro Anexos completam a obra.

Na primeira parte, o autor concentra sua reflexão nas posições que questionam a própria identidade e razão de ser da Igreja. Na segunda, a partir de uma abordagem bíblica, histórica e teológico-sistemática, tenta uma resposta fundamental às dificuldades encontradas pelos cristãos para aceitar e viver a dimensão eclesial da fé, hoje. Na terceira parte, a mais desenvolvida, são abordadas quatro grandes questões: a graça e o pecado; renovação e reforma; crítica: condições e critérios; e razões teológicas da fidelidade à Igreja.

Esse tema, delicado e complexo, é desenvolvido em linguagem simples e acessível. O autor ilumina, abre espaço para ulteriores aprofundamentos, contribui para uma melhor compreensão da questão, ajuda a encontrar caminhos de abertura para uma relação com a Igreja mais refletida, madura, co-responsável.

O livro é um presente a cada um de nós, cristãos, filhos do nosso tempo, tão avessos a toda e qualquer instituição, sempre tentados na relação de pertença, de amor e de fidelidade à Igreja. Sua leitura atenta poderá ajudar-nos a melhor perceber a Igreja como o lugar da revelação do projeto salvífico de Deus realizado em Jesus Cristo; do acesso ao conhecimento desse mistério; da participação dessa salvação.

O solo onde a semente caiu, aos poucos, durante vinte anos, e germinou em livro, foi a sala de aula dos estudantes de Teologia: terra fértil, às vezes ressequida, real ambiente de confronto entre posições, de busca, de alegria da descoberta.

O livro é um convite para des-cobrir ou re-des-cobrir a riqueza, a profundidade e a beleza do mistério da Igreja, povo santo e pecador.

Os destinatários somos todos nós -você e eu- comprometidos com a ação pastoral que tentamos "chegar à descoberta do sentido e da necessidade da Igreja, e de inserção nela, como o solo nutrício, como o "humus" e o "habitat" imprescindíveis para que possa germinar, crescer e dar frutos a fé pessoal e a vida cristã".

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