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INTRODUÇÃO
O presente trabalho de conclusão de curso é o resultado de um ano de pesquisa como
parte do grupo de pesquisa Expressões religiosas minoritárias do cristianismo da Galiléia e
Egito, realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico - CNPq - Brasil. O objeto da pesquisa foi o Evangelho de Tomé, que faz parte da
recém descoberta biblioteca gnóstica de Nag Hammadi.
Diante da nossa realidade atual na qual vivemos em um mundo marcado por disputas
religiosas, xenofobia e etnocentrismo, onde não há espaço para um diálogo ecumênico, onde
até mesmo dentro do cristianismo vemos disputas entre denominações, e atitudes por parte
de igrejas fundamentalistas que reivindicam para si a detenção da verdade de Deus. O nosso
interesse principal, será a partir da comparação de algumas sentenças de Tomé com o fenô-
meno místico e sua influência na história do cristianismo. Todo o processo a ser relacion a-
do dentro do contexto da comunidade de Tomé e o movimento dos místicos. Até onde essa
influência pode ser percebida?
11
No primeiro capítulo apresentaremos uma explicação da descoberta dos textos gnósti-
cos da biblioteca de Nag Hammadi, e buscaremos saber qual a relação desses textos com os
textos bíblicos e a sua importância para a história do cristianismo. Faremos uma breve des-
crição do Gnosticismo e de seus fundamentos, e do significado da palavra gnóstico. E ta m-
bém buscaremos identificar se o gnosticismo é um movimento que surge no cristianismo ou
se é mais antigo, faremos uma breve apresentação do mito gnóstico e veremos qual a idéia
de salvação que possui o gnosticismo. Analisaremos algumas características históricas no
Evangelho de Tomé e a sua relação com o mundo gnóstico, e identificaremos algumas de
suas diferença em relação aos evangelhos canônicos. Nesta relação do evangelho de Tomé
com os canônicos estudaremos duas hipóteses, se ele é dependente dos canônicos ou se ele
está mais próximo de uma fonte mais antiga. Também veremos o grau de proximidade que o
evangelho de Tomé pode ter do Jesus histórico diante das características do evangelho.
Também faremos uma breve análise da relação de Tomé com o evangelho de João e o con-
flito entre eles.
No segundo capítulo trabalharemos com o conceito de mística e sua deturpação no de-
correr do tempo. Um termo hoje usado de forma muitas vezes pejorativa, mas que traz um
outro conceito, mais sério e importante para vivência religiosa. A possível ligação histórica
entre a mística judaica e a comunidade de Tomé também é levantada por meio das sem e-
lhanças comparadas. O valor do misticismo na experiência religiosa é salientada. O misti-
cismo é a forma da expressão do sagrado mais livre e popular, onde a hierarquia religiosa
não interfere na comunhão entre o ser humano e o Ser Absoluto. Trataremos também de
cinco sentenças do Evangelho de Tomé onde o elemento místico mostra -se presente de ma-
neira clara e o que esses textos têm a nos dizer a respeito do modo de pensar dessa comun i-
dade marginalizada.
12
No terceiro capítulo faremos uma breve reflexão sobre a diversidade que pode ser um
instrumento para a nossa teologia e para o discurso religioso na sociedade atual. Como está
o misticismo no cenário religioso atual? Qual o verdadeiro valor que se dá ao fenômeno
místico dentro das experiências religiosas nos dias de hoje? O misticismo é, ainda, a exper i-
ência maior para manter a proximidade entre o finito e o Infinito, um encontro entre a fin i-
tude e a Infinitude. Um fenômeno que ultrapassa as barreiras religiosas e denominacionais,
onde o que mais importa é manter a fé e não a forma como a mantém. A grande experiência
mística chamada Teologia da Graça é analisada e vista como um desafio pastoral e cri stão.
1. GNOSTICISMO E COMUNIDADE DE TOMÉ1
1 A Relevância de um Evangelho Apócrifo.
Buscar a compreensão dessas palavras e se situar a respeito da história e a influ-
ência que obtiveram dentro da cristandade torna-se extremamente essencial para que
possamos adentrar no assunto proposto. São temas interligados entre si e que cami-
nham em uma relação quase unívoca, pois o movimento gnóstico, a comunidade de
Tomé e Nag Hammadi formam uma cadeia de elementos que contam a mesma histó-
ria.
1 Este trabalho - como informado anteriormente - é parte do grupo de pesquisa Expressões religiosasminoritárias do cristianismo da Galiléia e Egito. O presente capítulo foi elaborado em conjunto com odiscente Carlos Alexandre Carvalho e Silva deste modo ele é comum a esse trabalho e ao trabalho dodiscente Carlos Alexandre Carvalho e Silva.
14
Porém, qualquer tentativa de definição sobre um determinado tema esbarrará
sempre em conceitos pré-concebidos. Acompanhado da forma pejorativa na expressão
“heresia”, o gnosticismo, o Evangelho de Tomé e os documentos de Nag Hammadi
foram vistos como abominação ou apenas curiosidades do mundo cristão antigo, uma
forma de lenda, que nada acrescentaria para a edificação do pensamento cristão e de
sua vivência espiritual.
Hoje são de opiniões quase unânimes a importância outorgada a esses temas pa-
ra o conhecimento das primeiras comunidades cristãs, seus hábitos, costumes e cultura
em que estava inserida. Na revelação de sua história, esse cristianismo preterido abre a
boca e grita alto a sua existência ao mundo e traz luz aos cantos escuros da história
cristã.
2. Nag Hammadi
Primeiro vamos tratar um pouco sobre a cidade de Nag Hammadi. Como nos
mostra Manuel Alcalá a cidade de Nag Hammadi no Egito era um vilarejo insignifi-
cante situado a cerca de 535 Km ao sul da capital, e que a partir dos anos quarenta tem
tido uma importância cultural, pois nela se descobriu uma coleção de papiros que está
revolucionando o estudo sobre a igreja cristã e os movimentos esotéricos do gnosti-
cismo.2 Nesta cidade foi descoberta por acaso uma biblioteca de escritos gnósticos, a
descoberta, como nos conta Alcalá foi ao acaso: três irmãos camponeses Mohamet
Ali, Mohamet Kalifa e Abud el- Majd do Clã Al-Sammaán estavam recolhendo “sa-
bak” para fertilizar os campos, enquanto cavavam encontraram alguns jarros e, pen-
2 In ALCALÄ, Manuel. El Evangelio Copto de Tomas. p 9
15
sando ter achado um tesouro, os abriram e encontraram dentro deles códices de papi-
ro3. Marvim Meyer também nos conta a mesma história sobre a descoberta, mas des-
taca um fato curioso: quando os camponeses descobriram os jarros pensaram que po-
deriam libertar espíritos maus, chamados djins. No entanto lembraram de lendas que
falam de tesouros escondidos naquela região, e acharam que se tratava disso, Meyer
diz que o amor deles pelo ouro foi maior que seu medo dos djins.4
Mapa da Região de Nag Hammadi (Figura 1)
A primeira pergunta que nos vem a mente quando falamos dos textos de Nag
Hammadi é, qual relação que estes textos tem com os textos da Bíblia e qual é a rele-
vância deles para o cristianismo? Pois bem, para entender um pouco do que é esta
descoberta dos textos de Nag Hammadi temos as observações de Raymond Kuntz-
mann e Jean-Daniel Dubois no livro Nag Hammadi. Eles dizem que os textos de Nag
3 Idem p. 10
4 Meyer, Marvin. O Evangelho de Tomé, p. 14
16
Hammadi nos mostram a diversidade e o aumento da reflexão teológica cristã dos qua-
tro primeiros séculos.5 Eles dizem que, mesmo sendo uma coleção de textos de um
período posterior à produção dos textos do novo testamento os textos de Nag Hamma-
di estão situados em uma época em que se viveu conflitos que vinham desde as pri-
meiras gerações do Cristianismo e se deu a formulação do cânon do Novo Testamen-
to, e que por isso os textos descobertos em Nag Hammadi são importantes para escla-
recer alguns pontos dos primeiros séculos da Igreja6.
Caverna de Nag Hammadi (Figura 2)
3. Gnósis, a revelação secreta do conhecimento.
Inicialmente devemos, antes de abordar o texto do evangelho de Tomé, estudar o
que vem a ser o gnosticismo, já que este evangelho foi encontrado na biblioteca gnós-
tica de Nag Hammadi. Para entendermos um pouco sobre o gnosticismo nos baseare-
5 KUNTZMANN, Raymond, DUBOIS, Jean-Daniel. Nag Hammadi – O evangelho de Tomé – Textosgnósticos das origens do cristianismo. p 10
6 Idem
17
mos em Bentley Layton. Ele escreve que a palavra gnóstico tem dois sentidos, um
sentido geral para alguns movimentos religiosos, e outro restrito a uma seita cristã que
se autodenominou “gnostikoi” ou “gnósticos”, a esta ele dá uma importância maior, e
diz que ela influenciou outros movimentos importantes. 7 Esta questão da abrangência
do gnosticismo também é comentada por James.M. Robinson no livro The Nag Ham-
madi Library, ele diz que existe um debate sobre se o gnosticismo é um movimento
estritamente cristão ou se é mais amplo, independente e talvez mais antigo que o gnos-
ticismo cristão, e também que este debate está sendo solucionado pela biblioteca de
Nag Hammadi, que tem dado bases para entender o gnosticismo como um movimento
mais amplo que o gnosticismo cristão.8
Layton destaca que os gnósticos atuaram a partir do segundo século e que este
tinha como língua básica o grego semelhantemente como ao judaísmo e ao cristianis-
mo.Também fala que a referência mais antiga ao gnosticismo é feita por Santo Irineu
que atribui uma influência gnóstica a Valentino.9
Outra discussão levantada por Layton é: quão antiga é a seita gnóstica? Ele diz
que não se pode ter uma exatidão e que somente, talvez, se possa ter uma resposta
indireta. Esta resposta indireta ele busca avaliando o mito gnóstico da criação. No ca-
ráter filosófico do mito gnóstico, Layton diz ter semelhanças com a especulação filo-
sófica já corrente no tempo de Jesus e também leva em consideração que o mito gnós-
tico da criação é uma formulação influenciada por interpretações platônicas do mito
da criação em Timeu de Platão combinado com o livro de Gênesis. Layton diz que
7 LAYTON, Bentley. As Escrituras Gnósticas. Tard. p 58 ROBINSON, James M. The Nag Hammadi Library. p 69 Idem
18
especulações deste tipo eram comuns entre os judeus cultos de Alexandria no tempo
de Filon Judeu e nos círculos pagãos do I e II séculos, e que o mito gnóstico parece ter
esta especulação, porém, não se pode provar se realmente é tão antigo.10 Nesta questão
de quão antigo é o gnosticismo também vemos algumas colocações de James M. Ro-
binson que diz que na biblioteca de Nag Hammadi existem vários escritos que não
refletem uma tradição cristã, mas tem traços da tradição judaica retirados escritos do
antigo testamento11. O que pode nos dar mais um argumento para a hipótese de que o
gnosticismo é um pouco mais antigo do que se conhece, mas não nos dá uma resposta.
Outro ponto que é tratado por Layton é que o nome gnostikos “gnósticos” sendo
assumido por uma seita soava estranho para os de fala grega, pois o termo gnostikos
remontava o tempo de Platão e que era uma palavra técnica que queria dizer “levanta-
do ao conhecimento” ou “capaz de Alcançar conhecimento”, Layton diz que esta pa-
lavra não poderia ser aplicada a seres humanos, pois esta palavra se referia a discipli-
nas de estudo, faculdades humanas, capacidades ou coisas semelhantes, e que um gru-
po se autodenominando gnóstico teria um ar sectário12. Layton também fala que para
os gnósticos a salvação vem pela gnósis e a “autodenominação” gnósticos se refere à
capacidade de atingir a gnósis. Layton diz que o significado da palavra gnósis é co-
nhecimento ou ato de conhecer, e para os gnósticos a salvação vem pela gnósis ou
conhecimento, que tem por objeto último a deus.13 Esta característica do gnosticismo
de entender a salvação através do conhecimento também é destacada por Elaine Pa-
gels no livro Los Evangelios gnósticos, Pagels diz que, diferente da Igreja ortodoxa,
que entendia a condição humana de afastamento de deus devido ao pecado, os gnósti-
10 Op. cit. p. 5-811 Op. cit. p 612 Op. cit. p. 8
19
cos criam que o ser humano esta afastado de deus por causa da ignorância. Também
destaca que a busca do conhecimento dos gnósticos tinha semelhanças com os méto-
dos da psicoterapia contemporânea que valoriza o conhecimento e o auto conhecimen-
to.14
Layton fala também do mito gnóstico, que vem a ser um poema teológico com
características comuns dos mitos filosóficos do II século, e que este mito gnóstico
retoma o interesse pela história da criação mitológica de Timeu de Platão. Este mito
conforme nos mostra Layton é dividido em quatro atos:
1º Ato. A expansão de um solitário primeiro principio (deus) em um universo não-
físico (espiritual) completo
2º Ato. Criação do universo material, incluindo estrelas, planetas, terra e inferno
3º Ato. Criação de Adão e Eva, e seus filhos.
4º Ato. História subseqüente da raça humana.15
Também é destacado por Layton quatro sub enredos no mito gnóstico que são:
1º Ato Expansão do poder divino (“pai da totalidade”) para encher o universo espi-
ritual.
2º Ato. Roubo e perda de algo desse poder nas mãos de um ser não Espiritu-
al(“Ialdabaoth")
3º Ato. Engano do ladrão, levando à transferência do poder para uma parte da hu-
manidade(os gnósticos)
4º Ato. Recuperação gradual, pelo divino, do poder que lhe falta,à medida que as
almas gnósticas são chamadas por um salvador e retornam a deus.16
13 Idem p. 914 PAGELS, Elaine. Los Evangelios Gnósticos, p 175-17615 Op. cit. p 1116 Idem p. 16
20
No primeiro ato do mito gnóstico como vemos na descrição feita por Layton, se
tem um “principio primeiro” que dele se emite uma “hipóstase”, um “segundo ser”, e
uma série estruturada de outros seres chamados de éons (aiones no grego), e o ultimo
destes éons é a sabedoria (Sophia)17; no segundo ato do mito gnóstico o mundo mate-
rial é criado por um “artífice” que tem o nome de Ialdabaoth que cria o universo físico
copiando os moldes do universo espiritual. Esta estrutura é elaborada por éons (reinos)
materiais chamados governantes, autoridades, poderes, demônios, anjos18; o terceiro
ato é a criação de Adão e Eva e seus filhos. Neste ponto Ialdabaoth é induzido a entre-
gar o poder roubado a Adão e a raça humana, e de Set sai uma linhagem de pessoas
nas quais reside o poder disperso; esta linhagem são os gnósticos.19 Por fim no quarto
ato se fala de um salvador que é enviado para despertar o conhecimento, a gnósis, na
humanidade para lhe dar “gnósis” ou o conhecimento de si mesmo e de deus.20
No livro Patrologia de Berthold Altaner e Alfred Stuiber se fala das característi-
cas do gnosticismo ressaltando que ele é fortemente marcado por um dualismo entre
Deus e mundo, Espírito e matéria (corpo), e bem e mal, e que o homem está no meio
destes conflitos e a salvação vem pela descoberta do conhecimento21 (como vimos
neste breve panorama do mito gnóstico que apresentamos). No livro “Documentos da
Igreja Cristã” vemos também uma observação de Irineu refutando os gnósticos do
Egito, dizendo que estes entendem a salvação somente da Alma pois o corpo é corrup-
tível22 .
17 Ibidem p. 14-1518 Op. cit. p. 1619 Idem p. 1720 Ibidem21 In Altaner, Berthold, & Stuiber, Alfred. Patrologia.p.10822 In Bettenson, Henry. Documentos da Igreja Cristã. P78
21
Como citamos anteriormente a referência mais antiga ao gnosticismo é o
que Santo Irineu diz a respeito de Valentino. Portanto, vamos falar um pouco desta
personagem da história. Layton diz que Valentino nasceu no Delta Egípcio em Pher-
bonis e teve educação grega em Alexandria onde teve contato com a filosofia grega e
o platonismo. Ele iniciou sua carreira de mestre também em Alexandria onde lecionou
de 117 à 138 D.C. e por volta de 136 à 140, Valentino foi para Roma23.
Layton também diz que Santo Irineu por volta de 180 falando do mito de Valen-
tino diz que este tinha influência do mito gnóstico, porém, não se tem como saber on-
de ele teve contato com o gnosticismo se em Roma ou em Alexandria. Porém o que é
importante no cristianismo valentiniano como diz layton é o aspecto do misticismo a
idéia da salvação através da gnósis ou conhecimento do salvador, o si mesmo e deus
que está relatado no Evangelho da Verdade, Layton diz que Valentino difere do mito
gnóstico clássico por ser uma revisão de Valentino da tradição gnóstica24.
Diante dos dados levantados sobre o gnosticismo e a gnósis, e a idéia da salva-
ção através do conhecimento de si e de deus, presentes no mito gnóstico, podemos ter
um foco de interpretação do evangelho de Tomé e suas sentenças de sabedoria, já que
este escrito foi preservado por uma comunidade de tradição gnóstica.
4. O Evangelho de Tomé: Ditos de Jesus
Não há dúvidas da estreita ligação do Evangelho de Tomé ao movimento
gnóstico. Uma breve observação no texto do Evangelho, descoberto entre outros de
23 Op. cit. p. 25924 Idem. p. 259-261
22
Nag Hammadi, encontramos elementos do gnosticismo grego e judaico em suas varia-
das vertentes. Para uma melhor compreensão a respeito de como é composto esse
chamado Evangelho dito apócrifo, é preciso, antes de tudo, tomar conhecimento de
sua história e gênero literário.
“Na obra Pistis Sofia é dito que, depois da ressurreição, Jesus encar-regou não só Filipe e Mateus, mas também Tomé de escrever todas assuas palavras (cap. 42 e 43); isso atesta que Tomé era consideradoautor de um evangelho, um dos mais caros aos círculos gnósticos,também porque acessível a uma camada mais larga de cristãos”. 25
O Evangelho de Tomé é o mais conhecido dos textos apócrifos encontra-
dos em Nag Hammadi em dezembro de 1945, documento do II códice. Nas palavras
de Moraldi é atribuída uma certeza a autoria do Evangelho de Tomé, o que não é im-
portante, a realidade é que este evangelho é obra de uma comunidade que reverencia-
va a pessoa de Tomé e outros seguidores ou seguidoras, como Maria Madalena. Mas
as palavras seguintes relacionam o texto aos círculos gnósticos e a uma camada mais
larga de cristãos. Ao que parece, os escritos de Tomé eram bastante populares entre
as comunidades cristãs do III e IV século d.C.
Entre os gnósticos cristãos a leitura do Evangelho de Tomé, certamente,
tornou-se constante devido a seu teor da gnosis e que manteve, em certos aspectos, um
certo ambiente do oculto e da busca de conhecimento. Marvin Meyer relata que Hipó-
lito de Roma, autor cristão do III século, em sua obra Refutação de Todas as Heresias
5.7. 20-2126 cita uma colocação de um Evangelho de Tomé que estava em uso entre os
gnósticos naassenos. A semelhança com a sentença 4 do Evangelho de Tomé, conhe-
25 Moraldi, Luigi. Evangelhos Apócrifos, p.25026 Op. cit. p. 14
23
cido atualmente, é muito grande. Comparemos a sentença 4 do Evangelho de Tomé
com as palavras reproduzidas por Meyer atribuídas a Hipólito de Roma:
“(4) Jesus disse:” A pessoa na velhice não hesitará em perguntar a uma criancinha
de sete dias sobre o lugar da vida, e ele viverá. Pois muitos dos primeiros serão os
últimos e se tornarão um só”. 27
“(E) não somente os mistérios dos assírios e dos frígios (mas tambémos dos egípcios), dizem eles, testemunham sua doutrina sobre a natu-reza abençoada, tanto oculta quanto revelada, do que foi e é e aindaserá, que diz ele, é (o) reino do céu dentro da humanidade que é bus-cada, no tocante ao que explicitamente ensinam no Evangelho intitu-lado Segundo Tomé, dizendo então Aquele que procura encontrar-me-á nas crianças a partir de sete anos, pois aí, oculto na idade dequatorze anos, sou revelado. E isto não provém de Cristo, mas de Hi-pócrates, que diz: Uma criança de sete anos é meio pai. Portanto,tendo colocado a natureza geradora de tudo na semente geradora etendo ouvido a (sentença) hipocrática de que uma criança de sete anosé meio pai, dizem que se é revelado aos quatorze anos segundo Tomé.Esta é doutrina inefável e mística que têm”.28
Apesar das diferenças notadas, a semelhança entre os escritos sobressai
devido a insistência ao número 7 (sete) e a figura da criança como detentora de um
conhecimento oculto. É provável que seja o mesmo Evangelho, ainda que fosse possí-
vel a existência de outros escritos atribuídos a Tomé. Porém, este era um texto que
circulava entre gnósticos e que deveria ser do conhecimento geral, pois mesmo em
Roma, ele foi refutado e combatido como heresia perigosa a fé cristã. O importante é
que já há muito tempo, Tomé era visto como literatura do cristianismo gnóstico.
O Evangelho de Tomé se diferencia dos sinóticos e do Evangelho de João
por apresentar não uma narrativa da vida e dos feitos de Jesus de Nazaré, mas sim, um
complexo de sentenças atribuídas a pessoa de Jesus.
“El Evangelio de Tomás es uma muestra del gênero literário collecci-ón de dichos. Su descubrimiento fue entendido como confirmación in-
27 Op. cit. p.. 3328 Idem, p. 15
24
directa del documento Q, la fuente comúm a Mateo y Lucas, cuandosiguen a Marcos según la hipótases de las dos fuentes , que es en lainvestigación actual la hipótases predominante para explicar las rela-ciones entres los evangelios sinópticos. Aunque sigue teniendo vale-dores la hipótases de la prioridad de Mateo”. 29
A fonte Q, apesar de ser apenas uma hipótese, ganhou mais força com a
descoberta do Evangelho de Tomé, devido ao gênero usado. É um gênero comum da
época, principalmente entre as correntes gnósticas cristãs de revelação. Este tipo de
escrito parece revelar um conhecimento oculto, accessível somente à alguns escolhi-
dos, segredos abertos a iluminados.
“A mais conhecida coletânea cristã de sentenças é a que Burton Mackdenomina evangelho perdido Q (do alemão Quelle, fonte), que foi u-sado, junto com Marcos, por Mateus e Lucas na compilação de seusevangelhos. Tal como foi recuperado a partir de sentenças em Mateuse Lucas, Q era muito provavelmente um evangelho de sabedoria, mui-to parecido com o Evangelho de Tomé quanto ao gênero literário,quanto à orientação para sabedoria e até mesmo de seus conteúdosafetivos”. 30
Se estas palavras levantadas por Meyer procederem da verdade e a Fonte Q
for uma realidade, é provável que as origens dos escritos das palavras e feitos de Jesus
tenham uma influência gnóstica. Meyer, Piñero, Torrents e Bazán, concordam que o
gênero literário de sentenças ou ditos, era freqüente entre correntes gnósticas cristãs e
não cristãs.
Por certo, a comunidade de Tomé sendo de corrente gnóstica, não era bem vista
aos olhos dos cristãos mais “convencionais”. Por este motivo, pode-se dizer que a co-
munidade de Tomé e outras semelhantes eram de um cristianismo dos “guetos”. Escri-
to originalmente no grego e depois traduzido para o copta31, língua o qual foi preser-
29 Piñero, Antonio & Torrents, José M. & Bazán, Francisco G. Textos Gnósticos, Biblioteca de NagHammadi II, p. 58 e 59
30 Op. cit. p. 1731 Última forma da língua egípcia em uso a partir do período romano.
25
vado para época atual, no Evangelho de Tomé não aparece o menor indício de uma
hierarquia eclesiástica nem hegemonia entre os seguidores. Nada consta de uma pri-
mazia de Pedro, pelo contrário, Simão Pedro aparece de forma desfavorável , sobretu-
do na última sentença (114), onde o apóstolo mostra uma postura anti-feminista. Tal-
vez essa neutralidade em relação a autoridade no movimento de Jesus também tenha
sido mais um motivo para a rejeição do Evangelho de Tomé entre os escritos do Novo
Testamento.
A data e local de sua composição são quase uma unanimidade. Segundo
Meyer, “a data atribuída é segundo século ou mesmo no final do primeiro século” e
“podemos supor que o Evangelho de Tomé foi escrito na Síria, possivelmente em E-
dessa (moderna Urfa), onde a memória de Tomé era reverenciada e onde, se diz, até
mesmo seus ossos eram venerados”.32 Piñero concorda com Meyer em relação ao
local onde foi escrito, mas fecha a data no segundo século, mais precisamente entre
140 e 150 d.C.33. Moraldi acompanha a opinião de Meyer e Piñero e localiza a compi-
lação do texto no século II na Síria34 . Na verdade, o interesse maior dos textos se
concentram em seu conteúdo muitas vezes enigmático e misterioso. Uma visão pouco
comum da pessoa de Jesus de Nazaré.
E é exatamente a questão de quem é o Jesus de Tomé que torna este E-
vangelho por demais interessante. Na sentença de número 13, a pergunta feita por Je-
sus aos discípulos deixa uma leve intenção sobre quem é o Jesus apresentado pelo (s)
autor (es) do texto:
32 Op. cit. p. 1833 Op. cit. p. 5634 Op. cit. p. 254
26
“(13) Jesus disse a seus discípulos: "Comparai-me com alguém e dizei-me comquem me assemelho."
Simão Pedro disse-lhe: "Tu és semelhante a um anjo justo."
Mateus lhe disse: "Tu te assemelhas a um filósofo sábio."
Tomé lhe disse: "Mestre, minha boca é inteiramente incapaz de dizer com quem teassemelhas."
Jesus disse: "Não sou teu Mestre. Porque bebeste na fonte borbulhante que fiz bro-tar, tornaste-te ébrio. (128) E, pegando-o, retirou-se e disse-lhe três coisas. QuandoTomé retornou a seus companheiros, eles lhe perguntaram: "O que te disse Jesus?"
Tomé respondeu: "Se eu vos disser uma só das coisas que ele me disse, apanhareispedras e as atirareis em mim, e um fogo brotará das pedras e vos queimará."35
Esta sentença lembra um pouco a passagem no Evangelho Sinótico de
Marcos cap. 27. Usando a explicação do professor Archibald Mulford Wooduff36 so-
bre esta passagem temos uma idéia sobre o Jesus de Tomé:
“Simão Pedro é quem fala primeiro, com palavras que vêm do grego:você é semelhante a um anjo (ou mensageiro) justo (ou – angelos n-dikaios). Já Mateus, mistura as duas línguas, dizendo que Jesus se as-semelha a um filósofo. Mais especificamente, um homem (rome) filo-sófico (philosophos) de grande sabedoria (rmnhet). Observamos queaúnoica palavra grega nisto é philosophos. Jesus rejeita as duas carac-terizações, ambas a partir de vocábulos gregos...Ainda na sentença 13,Tomé toma a palavra e, primeiro, dirige-se a Jesus por Sah , “Mes-tre”...este tratamento, que Jesus não rejeita em princípio, está em cop-ta. Jesus só rejeita este tratamento para dizer que ele não é mais o mes-tre de Tomé, porque Tomé já havia entendido o assunto...Tomé enten-de que a natureza de Jesus é inefável. Por isso, Tomé fica redonda-mente aprovado.”
Archibald ainda diz que, apesar da ausência de títulos típicos da alta cristo-
logia, tais como Filho de Deus, Cristo, Messias, Kírios, Logos, a natureza de Jesus é
algo especial em Tomé. Se Filho de Deus não aparece, Filho daquele que vive (Sen-
tença 37) é bem semelhante.
“Chegamos a uma conclusão modesta. O Evangelho de Tomé temuma cristologia alta, em que a dinâmica de Pai e Filho esta implícita,
35 Op. cit. p. 3936 Doutor em Grego na Universidade Metodista em São Paulo. Trabalho da 5a Semana de Estudos de
Religião UMESP, 03 de Outubro de 2001
27
mas sem a terminologia cristológica dos escritos canônicos do NovoTestamento. Isto se deve, em parte, à visão de que a natureza de Jesusé inefável e objeto de conhecimento místico. Termos cristológicosgregos aparecem, mas só para serem rejeitados. Por outro lado, termosque se referem a Jesus e facilmente poderiam ser emprestados do gre-go, aparecem sempre em copta. Considerando a rica presença de pala-vras gregas em copta, o fato é marcante: o Jesus que esta comunidadeconhecia era, mesmo, o Jesus deles”. 37
Manuel Alcalá destaca que a designação dada a Jesus no evangelho de Tomé é
o “vivente” que seria uma alusão à ressurreição, e que é mais que um redentor é um
revelador de um conhecimento libertador; é um “exegeta” dos “mistérios divinos” 38.
A comunidade de Tomé apresenta a sua verdade do Cristo, ainda que de uma natureza
misteriosa e mística, surge mais como um mestre do que como um Messias. Sim, um
libertador, mas um libertador da consciência divina presa ao estado da natureza huma-
na. Por esta explicação, a ligação com o gnosticismo torna-se mais forte. O Cristo ain-
da permanece implícito no texto de Tomé, mas a salvação através do conhecimento é
o caminho apontado por ele.
5. A relação do Evangelho de Tomé com os sinóticos e
João.
É comum encontrar referências de autores e estudiosos tentando relacionar o
Evangelho de Tomé com os sinóticos e com João, criando uma dependência de Tomé
com os evangelhos canônicos. É impossível ter uma idéia exata do porquê da aceita-
ção de alguns evangelhos no cânon cristão e da rejeição de outros. Pode-se divagar em
hipóteses, é verdade, quase sempre plausíveis, mas o critério absoluto, utilizado pela
37Woodruff, Archibald Mulford. Imagem de Jesus no evangelho de Tomé, Trabalho da 5a Semana deEstudos de Religião UMESP, 03 de Outubro de 2001
38 Op. cit. p. 23
28
igreja primitiva, este ainda não se tem em mãos. É importante ressaltar essa questão
para uma análise da relação Tomé-sinóticos-João. A pergunta a ser feita é: Os evange-
lhos canônicos estão presentes em Tomé ou Tomé está presente nos canônicos? Qual a
diferença? A resposta indica a influência ou fonte prima utilizada.
Se utilizarmos o elemento “ordem” como critério de avaliação, tal como Ste-
phen J. Patterson sugere em seu livro39, o evangelho de Tomé sai em desvantagem em
relação aos canônicos. O Evangelho de Tomé não é um escrito caracterizado por uma
narrativa seqüencial ou que obedeça uma ordem de acontecimentos.Como já foi dito
antes, Tomé é um conjunto de sentenças ou ditos de Jesus. A preocupação maior do
autor(a) ou autores(as) de Tomé é a transmissão do pensamento e da verdade defendi-
da por aquela comunidade. Portanto, é certo que os canônicos ganhem na questão de
“ordem”. Ainda que haja algumas lacunas de fatos temporais nos canônicos, houve a
preocupação de narrar o mais fiel possível a seqüência dos acontecimentos, ou, pelo
menos, a interpretação dos mesmos.
Confessamos que compartilhamos da idéia de Burton L. Mack quando esse diz
que “Mateus e Lucas tinham em mãos a cópia do evangelho de sentenças”40, além do
evangelho de Marcos, que foi o primeiro evangelho narrativo escrito. Partindo desse
pressuposto, entende-se que Marcos, portanto, usou um evangelho de sentenças de
Jesus, mais antigo, para escrever o seu texto. Algumas comparações entre Tomé e,
principalmente os sinóticos, levantam a suspeita de uma relação direta entre esses e
também com a fonte “Q”. Marvin Meyer faz uma observação dentro de uma hipótese
39 PATTERSON, Stephen J. The Gospel of Thomas and Jesus.40 MACK, Burton L. O Evangelho Perdido, O livro de “Q”, p. 11
29
que merece ser levada em consideração quando se trata do assunto da relação-
dependência entre esses evangelhos. Meyer considera a opinião do estudioso do as-
sunto41, Ron Cameron, quando esse diz:
“Um modelo intertextual pode mostrar-se útil, pois permite que ostextos sejam compreendidos como redações autorais altamente cons-cientes, adaptados e adotados a partir de vários encontros com grupose repetidos envolvimentos com textos que constituíam a tapeçaria cul-tural da época”. 42
Meyer traz a luz uma questão ainda mais interessante, a qual consideramos mui-
to importante. O autor salienta que, “às vezes, Tomé preserva sentenças que parecem
ser mais originais que os paralelos do Novo Testamento. Um exemplo é a sentença 9
de Tomé, conhecida nos sinóticos como a “Parábola do Semeador” (Mateus 13,3-9;
Marcos 4,2-9 e Lucas 8, 4-8). Assim ela aparece em Tomé:
(9) Jesus disse: "Eis que o semeador saiu, encheu sua mão e semeou. Algumas se-
mentes caíram na estrada; os pássaros vieram e as recolheram. Algumas caíram so-
bre rochas, não criaram raízes no solo e não produziram espigas. Outras caíram em
meio a um espinheiro, que sufocou as sementes e os vermes as comeram. E outras
caíram em solo fértil e produziram bons frutos; renderam sessenta por uma e cento
e vinte por uma".
A forma rústica e objetiva, sem a necessidade de associar a parábola com a vi-
da da Igreja através de interpretações alegóricas mostra o caráter mais primitivo e ori-
ginal do texto de Tomé. Isto mostra que as interpretações foram acréscimos tardios de
explicações do texto para o entendimento da Igreja primitiva. Em Tomé, o escrito é
exatamente o sentido que transmite: uma narração da agricultura na Palestina rural.
41 Op. cit. p. 2242 Esse comentário de Cameron inserido no livro de Meyer é do livro The Anchor Bible Dctionary, p.537
30
Este modelo segue todo o escrito de Tomé, não há interpretações alegóricas dos textos
de Tomé com respeito às parábolas. Outro ponto a ser destacado é a expressão “en-
cheu a mão (de sementes) e semeou”, presente na sentença de Tomé e ausente nos
textos sinóticos. Segundo Meyer isto pode constituir um detalhe de um antigo conta-
dor de história.43
A presença de sentenças que não aparecem nos evangelhos sinóticos, também
reforça a crença do Evangelho de Tomé como fonte primária. Meyer diz que “algumas
vezes, as sentenças eram totalmente desconhecidas” até a descoberta de Nag Hamma-
di. O exemplo usado por Meyer são as sentenças 97 e 98 :
(97) Jesus disse: "O Reino do Pai é como uma certa mulher que estava carregando
um cântaro cheio de farinha. Enquanto estava caminhando pela estrada, ainda dis-
tante de casa, a alça do cântaro partiu-se e a farinha foi caindo pelo caminho atrás
dela. Ela não se deu conta, pois não tinha percebido o acidente. Quando chegou em
casa, colocou o cântaro no chão e percebeu que ele estava vazio."
(98) Jesus disse: "O Reino do Pai é como um certo homem que queria matar um
homem poderoso. Em sua própria casa ele desembainhou a espada e enfiou-a na
parede para saber se sua mão poderia realizar a tarefa. Então ele matou o homem
poderoso."
São sentenças que fogem do aspecto apocalíptico de Jesus adotado no Novo
Testamento. Segundo Meyer, a análise dessas parábolas “desconhecidas” podem de
alguma forma, trazer muito do Jesus Histórico: “No Evangelho de Tomé e na primeira
versão de ‘Q’, Jesus não emprega imagens apocalípticas para anunciar a vinda do Rei-
no de Deus, mas antes declara que o reino já é uma realidade presente”44 .
43 Op. cit. p. 2344 Idem, p.25
31
Um exemplo da característica desse Jesus em Tomé está na sentença 113:
“Seus seguidores disseram-lhe: Quando virá o reino? Não virá quando se espera
por ele. Não se dirá: Vejam, aqui está ele ou vejam, ali está ele. O reino do Pai
está espalhado pela terra e as pessoas não o vêem”.
Apesar de não acreditarmos na hipótese cínica de Meyer, Crossman ou Mack, é
possível que o Jesus de Tomé esteja mais próximo do Jesus histórico do que o Jesus
dos evangelhos sinóticos. É difícil de provar essa questão, mas o Jesus dos Evange-
lhos canônicos parece dotado de uma mitologia trabalhada e proposital para uma reli-
gião instituída. Não queremos com isso desmantelar a figura oficial de Jesus, Deus
cristão e responsável pela estruturação do cristianismo como a maior força religiosa da
história. Porém, não se pode negar a simplicidade do texto no Evangelho de Tomé e
ausência da narração de paixão e morte e da ressurreição de Jesus, enquanto que, em
Mateus, Marcos e Lucas, ganham centralidade e paralelos com outros mitos similares
do mundo antigo.
Podemos dizer que, inicialmente, como já foi comprovado, essas narrativas so-
bre morte e ressurreição de Jesus não eram centradas como fundamentais para a pro-
clamação da mensagem do nazareno. Tais fundamentos doutrinários ganharam força a
partir das epístolas paulinas e pseudo-paulinas. Dessa forma, como em Tomé não há a
presença ou preocupação em destacar essas passagens, podemos imaginar que o texto
de Tomé é mais antigo ou, ao menos, utilizou uma fonte mais antiga que os evange-
lhos sinóticos.
32
Quando relacionamos com o Evangelho de João, é preciso partir de uma outra
premissa. O primeiro ponto que há de se destacar é a proximidade de João e Tomé
com o mundo gnóstico. No entanto, as semelhanças terminam por aí. Mack45 levanta a
questão da figura apresentada por ambas comunidades. Enquanto Tomé trabalha seu
evangelho por meio de sentenças, reforçando dessa forma, a imagem do “mestre sá-
bio”, personagem muito comum nas seitas gnósticas e no mundo místico, João canali-
za as narrativas de tempo-espaço com a mitologia cristológica já decorrentes do mun-
do cristão ocidental.
Mack destaca essa combinação como um “auspicioso golpe de genialidade ima-
ginativa”. Concordo plenamente. Expressões como “Filhos da Luz e das Trevas”,
“Fonte de Água Viva” ou “Pão Vivo que veio do céu”, tipicamente míticas-gnósticas,
correm paralelamente com textos do Antigo Testamento e com o cenário palestino e
romano. Talvez fosse o grande trunfo do Evangelho de João para ser aceito entre os
canônicos.
Mas a relação entre Tomé e João pode ser mais bem destacada pelo conflito en-
tre os principais nomes usados como autores para os respectivos escritos: o discípulo
Tomé e o dito, discípulo amado, João. No evangelho de João em seu capítulo de nú-
mero 20, no momento em que Jesus aparece aos discípulos, depois de ressurreto, e
concede o Espírito Santo aos seus seguidores mais chegados, o único dos doze, além
de Judas Iscariotes, que não está presente é Tomé. Ora, se não está presente no mo-
mento em que o poder de inspiração e legitimidade para um autor sagrado é derrama-
do sobre aqueles que teriam a missão de espalhar a mensagem de Jesus pelo mundo,
45 Op. cit. p. 214
33
certamente nada do que Tomé escreveria seria inspirado pelo Espírito Santo de Deus,
concedido pelo próprio Jesus, e narrado por aquele que se auto proclamou, “o discípu-
lo amado”.O que está presente na questão é o conflito entre comunidades. Em Tomé
não há qualquer referência a João, mas há a famosa sentença 13, onde Jesus considera
Tomé apto para ouvir três segredos revelados somente para os evoluídos e João sequer
é citado.
Neste capítulo, o que percebemos e concluímos é a forte ligação de Tomé com o
mundo místico-gnóstico e sua independência diante dos Evangelhos do Novo Testa-
mento. Essa independência e singular visão de Jesus trouxe para esse escrito a margi-
nalização e a refutação de um cristianismo já elitizado e institucionalizado em meados
do II século. A sua redescoberta entre os textos de Nag Hammadi trouxeram á tona
uma imagem de Jesus ao mesmo tempo mágico e humano, sem os feitos milagrosos,
mas portador de uma mensagem que vai além da realidade visível.
2 . Misticismo: Conceitos e Verdades
1 Mística e seu Conceito:
O que, precisamente, significa o termo mística? A palavra misticismo evoca em
nossas lembranças algo mais próximo da magia, propriamente dita, ou de aspectos de
uma imaginária feitiçaria medieval “... embora praticamente não existam dúvidas quan-
to ao que constitui o fenômeno que a história e a filosofia denominam misticismo, haja
tantas definições do termo quanto são os escritores que tratam do assunto46”.
Gershom Scholem, autor do livro “As Grandes Correntes da Mística Judai-
ca”, ressalta, na citação acima, as variedades de definições e de autores que, subjeti-
vamente, empregam suas próprias compreensões a respeito do assunto. Isto, com cer-
teza, gerou bem mais confusão do que explicação em relação ao Fenômeno Místico.
46 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 6
35
Scholem relata algumas outras definições sobre “misticismo” 47. Ele destaca a afirma-
ção do Dr. Rufus Jones, autor do livro “Estudos sobre a Religião Mística”, que defi-
ne assim: “Vou usar a palavra para designar o tipo de religião que coloca ênfase na
percepção imediata da relação com Deus, na consciência íntima e direta da presença
Divina. É religião no seu estágio mais vivo, agudo e intenso”. Na definição do Dr.
Rufus Jones misticismo é quase um contato físico entre o adorador e o seu Deus, mas
que acontece na dimensão de uma consciência desenvolvida para tal experiência. Ou-
tra definição destacada por Scholem é a usada pelo Doutor da Igreja, Tomás de Aqui-
no: cognitio dei experimentalis , ou seja, o conhecimento de Deus pela experiência.
Scholem afirma que ao oferecer esta definição, Aquino estaria se apoiando, como ou-
tros místicos antes e depois dele, no salmo 34,8: “Provai e vede que o Senhor é bom”.
O místico genuíno se baseia nesse “provar e ver”, a experiência fundamental do “eu”
íntimo que entra em contato imediato com Deus ou com a Realidade metafísica.
O “misticismo” parece fazer parte da natureza humana, como algo inerente ao
ser humano em sua constituição natural. Essa busca pela relação íntima com as divin-
dades ou com o inefável, o sobrenatural, impulsionou o ser humano a experiências
canalizadas introspectivamente, mas que se relacionam com elementos exteriores para
que haja o processo de experiências pessoais, das quais, Scholem afirma serem um
enigma difícil de descrever.
O padre Henrique C. de Lima Vaz afirma que o termo teve uma infeliz sorte e ga-
nhou sentidos pejorativos tais como: mística política, mística do clube esportivo. No
entanto, Lima Vaz define o termo, segundo ele, em seu sentido original:
47 Idem
36
“Com efeito, o sentido original, e que vigorou por longo tempo, dotermo mística e de seus derivados diz respeito a uma forma superiorde experiência, de natureza religiosa, ou religiosa-filosófica (Ploti-no), que se desenrola normalmente num plano transracional nãoaquém, mas além da razão , mas, por outro lado, mobiliza as maispoderosa energias psíquicas do indivíduo”.48
Lima Vaz é veemente ao afirmar que misticismo não deve ser sinônimo de “fana-
tismo, com forte conteúdo passional e larga dose de irracionalidade”. Da mesma forma,
Scholem chama a atenção para o que ele considera um “erro”:
“Seria um erro pretender que a totalidade do que chamamos misti-cismo seja idêntica àquela experiência pessoal realizada no estado deêxtase ou meditação extática. O misticismo, enquanto fenômeno his-tórico, compreende muito mais do que esta experiência, que está nasua base”. 49
O que os dois autores defendem é o caráter do exercício contemplativo dos
místicos. Essa contemplação não conduz a um estado extático ou alienado, mas ao
alargamento do conhecimento e da prática de sentimentos, como o amor. Assim como
Scholem, Lima Vaz é de acordo que as informações sobre as experiências místicas
somente podem ser descritas pelos próprios místicos. O padre ainda expõe a seguinte
afirmação:
“...podemos dizer que a experiência mística tem lugar no terrenodesse encontro com o Outro absoluto, cujo perfil desenha-se sobre-tudo nas situações-limite da existência, e diante do qual acontece aexperiência do Sagrado. No entanto, a experiência mística apresen-ta-se dentro da esfera do Sagrado caracterizada pela certeza de umaanulação da distância entre o sujeito e o objeto imposta pelo Outroabsoluto...” 50
Ou seja, a busca incessante ao Ser Absoluto é que caracteriza as experiências
místicas, segundo argumentos de Lima Vaz. E essa experiência acontece no momento
em que há a “anulação da distância entre o sujeito (místico) e o objeto (divindade). Po-
48 Vaz, Henrique C. de Lima. Experiência Mística e Filosofia na tradição ocidental, p. 949 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 850 Vaz, Henrique C. de Lima. Experiência Mística e Filosofia na tradição ocidental, p. 16
37
demos chamar esse momento de anulação de “meditação”, “oração” ou “mantra”. É a
ponte de ligação do místico ao mistério.
Mística
Místico Mistério (divindade)
No desenho do triângulo, Lima Vaz demonstra como funciona esta experiên-
cia:
“O místico é sujeito da experiência, o mistério, seu objeto, a místicaa reflexão sobre a relação místico-mistério. A derivação etimológicadesses termos vem de Myein (fechar os lábios ou os olhos), donde,por uma transposição metafórica, “iniciar-se”, do qual deriva o com-plexo vocabular: mýstes, iniciado, mystikós, o que diz respeito à ini-ciação, tà mystiká, os ritos de iniciação, mistikos (advérbio), secre-tamente e, finalmente, mystériom, objeto de iniciação. Essa termino-logia vem do culto grego dos mistérios”. 51
No esquema apresentado por Lima Vaz, a mística é o elo de ligação que con-
duz ao conhecimento do mistério divino. As correntes místicas de várias religiões têm
no processo de “iniciação”, uma característica bastante comum. O “iniciado” recebe o
conhecimento pelo “Mestre”. Isto não é algo recebido imediatamente, mas um proces-
so de aprendizagem e desenvolvimento do “iniciado”. No Evangelho de Tomé, a sen-
tença no 13, é um exemplo da lei mística da iniciação, de mestre para “iniciado”:
(13) “Jesus disse a seus discípulos: ‘Comparai-me com alguém e di-zei-me com quem me assemelho.’
Simão Pedro disse-lhe: ‘Tu és semelhante a um anjo justo.’
51 Vaz, Henrique C. de Lima. Experiência Mística e Filosofia na tradição ocidental, p. 17
38
Mateus lhe disse: ‘Tu te assemelhas a um filósofo sábio.’
Tomé lhe disse: ‘Mestre, minha boca é inteiramente incapaz de dizercom quem te assemelhas.’
Jesus disse: ‘Não sou teu Mestre. Porque bebeste na fonte borbu-lhante que fiz brotar, tornaste-te ébrio’. (128) E, pegando-o, retirou-se e disse-lhe três coisas. Quando Tomé retornou a seus companhei-ros, eles lhe perguntaram: ‘O que te disse Jesus?’
Tomé respondeu: ‘Se eu vos disser uma só das coisas que ele medisse, apanhareis pedras e as atirareis em mim, e um fogo brotará daspedras e vos queimará.’ 52
Tomé, neste texto recebe de Jesus as palavras de sabedoria. Ouve de Jesus que
não é mais seu mestre, pois Tomé já havia chegado a um estágio de desenvolvimento
do conhecimento passado a ele. Ao que parece, a comunidade de Tomé declarava para
si conhecimentos que outros não tinham. Isto era, e ainda é, uma característica muito
comum entre místicos, principalmente aqueles ligados ao gnosticismo.
2 Misticismo e História
Scholem trabalha a questão da inserção do misticismo na história da religião de
forma interessante: para ele o misticismo é “um estágio definido no desenvolvimento
histórico da religião e faz seu aparecimento sob certas condições bem definidas”53.
Estas condições, Scholem apresenta como sendo o sentido da consciência religiosa.
Portanto, num primeiro período da história da humanidade, não havia lugar para o
misticismo, pois não havia a consciência interior do abismo entre o humano e o divi-
no, “neste primeiro estágio, a Natureza é o cenário da relação entre o homem e
52 Moraldi, Luigi. Evangelho Apócrifo, p. 25953 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 9
39
Deus”54. Tudo isto é alheio ao espírito do misticismo. Já no segundo período, é a
época do irromper da religião.
“A suprema função da religião é destruir a harmonia onírica entreHomem, Universo e Deus, isolar o homem dos outros elementos doestágio onírico de sua consciência primitiva é mítica. Pois, em suaforma clássica, a religião significa a criação de um abismo profundo,concebido como absoluto, entre Deus, o Ser Infinito e transcenden-tal, e o Ser humano, a criatura finita”.55
A religião referida aqui por Scholem é a religião institucional . Esta, segundo ele,
é a criadora do abismo que separa Deus da humanidade. Na religião institucional izada,
a figura de Deus é algo inalcançável e, portanto, longe de qualquer relação mais pes-
soal com a criatura. Por mais que digam que a religião é a ligação com o divino, sua
institucional ização é a barreira para relação. Neste sentido, Scholem afirma que este
período é o mais distante do misticismo. Para as grandes religiões monoteístas , o ce-
nário religioso não é mais a Natureza, mas sim, “a ação moral e religiosa do homem e
da comunidade dos homens, cuja interação realiza a história como, de certa forma, o
palco em que é representado o drama da relação entre o homem e Deus”.56
Scholem classifica como período “romântico da religião”, o momento em que o
fenômeno místico se revela na história :
“O misticismo não nega nem desdenha o abismo; pelo contrá-rio, começa por perceber sua existência, mas daí ele parte para umainvestigação do segredo capaz de fechá-lo, do caminho oculto quepermita transpô-lo...recuperar a antiga unidade que a religião destru-iu, mas num novo plano, onde o mundo da mitologia e o da revela-ção se encontram na alma do homem”.57
A partir de então, a alma humana é o cenário da religião e o caminho traçado da
alma em direção ao Divino. Esta é uma nova consciência religiosa. A busca ao Ser
54 Idem55 Idem56 Idem, p.10
40
Infinito, percorrida de forma introspectiva . Scholem, alerta para o fato de que nesse
período, novos impulsos religiosos podem surgir e entrar em conflito com os valores
estabelecidos pela religião institucionalizada, mas não para destruir e sim interpretar a
religião, desta maneira, a Criação, a Revelação e a Redenção, recebem sentidos dife-
rentes, marcados pelos traços do misticismo, que é o contato direto do ser humano
com o Divino. Para o místico, o ato original da Revelação, seu verdadeiro significado,
ainda está para se manifestar. A revelação secreta é o ápice da relação com o Ser Infi-
nito. O místico tenta fazer a ligação do segredo revelado ao texto sagrado, fazendo
dessa forma uma nova interpretação.
Pode-se por assim dizer que a experiência mística é uma experiência que traça
uma linha firme e pessoal com todas os aspectos da realidade humana. É um fenôme-
no totalizante que conduz o sujeito ao conhecimento com o Outro Absoluto.
Scholem faz uma definição que considero apropriada para o fenômeno místico:
“A religião mística procura transformar o Deus com que ela se depa-ra na consciência religiosa peculiar de seu próprio ambiente social,de um objeto de conhecimento dogmático numa intuição e experiên-cia viva e renovada. Além disso, procura também interpretar esta ex-periência de uma forma nova”.58
Não é uma experiência extática e irracional, mas um novo campo de relaciona-
mento com Deus, saindo da visão do Deus legislador e distante, para o Deus de vida e
próximo. Simplesmente, uma nova vida.
57 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p.1058 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 12
41
3 Misticismo Judaico e Cristão
Uma análise do fenômeno místico através da história irremediavelmente nos
conduz a dois tipos específicos de misticismo: o misticismo judaico e o misticismo
cristão. O misticismo judaico se manifesta nas visões dos profetas do Antigo Testa-
mento e nas visões apocalípticas do judaísmo pós-bíblico. A cabala se desenvolveu
numa direção mais próxima do ocultismo. Sua obra maior, o Zohar (Livro do Esplen-
dor), datado no século XIII, descreve a vida íntima de Deus e transmite conhecimen-
tos ocultos que permitem "aderir" a ele. Semelhantemente, a introdução das sentenças
de Tomé: “Estes são os ensinamentos (logia) ocultos expostos por Jesus, o vivo, que
Judas Tomé, o gêmeo, escreveu” .
Porém, antes do movimento cabalístico, o qual voltaremos mais adiante, que se
desenvolveu em meados da idade média, o fenômeno místico já estava presente no juda-
ísmo. Segundo Scholem, os cabalistas medievais “se basearam em uma interpretação da
Lei mais altamente desenvolvida como o talmúdico feito por Filo de Alexandria” 59.
“A primeira fase no desenvolvimento do misticismo judaico, antes desua cristalização na Cabala medieval, é também a mais longa. Seusvestígios literários podem ser determinados ao longo de um períodode quase mil anos, do século I a.C. ao X d.C., e alguns de seus regis-tros importantes se conservaram.”60
Ao que parece, a raiz do fenômeno místico dentro do judaísmo partiu de uma
nova interpretação da Lei, criando um aspecto mais transcendental do sentido relacional
com Deus. O grande problema com essa interpretação é co-relacionar essa nova visão
com a tradição, tão reverenciada pelos judeus. Scholem opina que, a interpretação de
59 SCHOLEM, Gershom, A Cabala: Seu Simbolismo, p. 4360 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 41
42
um místico ao texto sagrado não é isento da leitura conservadora61. Neste ponto discor-
damos da opinião de Scholem. Se partirmos do pressuposto de que um (a) místico (a) é
um (a) visionário (a) de uma nova leitura do contexto sagrado, podemos concluir que,
inevitavelmente, ele ou ela vá oposicionar-se a tradição.
Analisemos a seguinte questão: Scholem destaca a realidade de que quase nada é
conhecido sobre os primórdios dos movimentos místicos judaicos. Autores apócrifos e
pseudepígrafos bíblicos omitiam seus nomes e assim, limitam o esclarecimento a res-
peito de seus nomes e costumes. Ainda assim, Scholem nos revela alguns nomes que
ficaram preservados, dentre estes destacam-se os nomes de Iohanan ben-Zakai, Eliezer
ben-Hircano, Akiva ben-Iossef e Ismael, o “sumo-sacerdote” que por volta de 100-150
d.C., “tentaram efetivar uma síntese de sua nova fé religiosa”. 62 Portanto, observamos
através dessas revelações de Scholem, que o movimento místico judaico é, como em
todo movimento místico, uma tentativa de um novo relacionamento com Deus. Se há
esta busca voraz de encontrar-se com o objeto divino, certamente é pelo fato de que as
tentativas convencionais não estão sendo suficientes para satisfazer a “sede religiosa”
do adorador (a). Para se encontrar com a divindade por novos meios de adoração é
preciso quebrar com a tradicional vivência institucionalizada pela religião e criar no-
vos e ousados caminhos. Foi exatamente o que o movimento da mística judaica reali-
zou e mais tarde, também a mística cristã.
Esses nomes citados beberam em fontes mais antigas, do século I antes e depois
de Cristo. Líderes radicais fizeram de tudo para eliminar referências aos textos de con-
teúdos místicos, tais como angelologia: “boa parte deste material foi preservada numa
61 Idem, p. 4562 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 43
43
segunda coleção mischnaica, a chamada Tossefa, e é desta e de outros fragmentos que
podemos extrair algumas inferências quanto ao caráter das referidas especulações”63 .
Estes grupos de tradição mística judaica eram grupos fechados “e que transmiti-
am seus ensinos secretos com uma escola de místicos que não pretende revelar seu
conhecimento secreto, sua ‘Gnose’, ao público”.64
A partir do ano de 1.200, os cabalistas começaram a surgir como um grupo místi-
co à parte, o qual, embora numericamente ainda inexpressivo, obtivera destaques consi-
deráveis em muitas partes da Espanha e no Sul da França. As principais tendências do
novo movimento são claramente definidas, e o estudioso pode sem dificuldade traçar
seu desenvolvimento, desde os primeiros momentos por volta de 1.200 até a Idade de
Ouro da Cabala na Espanha, ao final do século XIII e inicio do XIV. Uma extensa lite-
ratura preservou o essencial do pensamento e das personalidades que dominavam o no-
vo misticismo, o qual durante cinco ou seis gerações deveria exercer uma influência
cada vez mais ampla sobre a vida judaica.
“Tampouco, deve-se esquecer que cada uma das figuras principais o-ferece uma fisionomia espiritual tão claramente definida, que está ex-cluída a possibilidade de haver uma vaga idéia, capaz de levar à con-fusão de identidades. As mesmas linhas nítidas de demarcação apli-cam-se também às tendências, cada uma das quais pode ser distingui-do tanto pela terminologia quanto, pela nuança própria a seu pensa-mento místico.”65
O mais interessante na literatura cabalística é suas constantes referências a par-
tes do corpo. O que nos faz lembrar das sentenças de Tomé onde Jesus por várias ve-
zes espiritualiza algumas partes do corpo para exemplificar seus ensinamentos. Os
63 Idem, p. 4464 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p.5165 www.tiphereth777.com.br
44
olhos, os ouvidos, as mãos são citações encontradas várias vezes nos escritos de To-
mé. Não podemos, evidentemente, fazer uma ligação direta entre Tomé e a Cabala,
seria algo de um anacronismo exacerbado. Porém, não se pode negar algumas das se-
melhanças quanto ao estilo literário e posicionamento relativo ao mundo espiritual.
Eis um exemplo:
“O corpo requer o médico do corpo, a alma o médico da alma, a sa-ber os estudiosos da Tora, mas o intelecto (o poder mais alto da al-ma) requer um movedor externo que tenha recebido cabala a respeitodos mistérios da Tora, e um movedor interno, meorer pnimi, que lheabra as portas fechadas à sua frente”. 66
Esta citação, dada as devidas diferenças, são as mesmas palavras da sentença de
número 17 do Evangelho de Tomé: “Jesus disse: ‘Eu vos darei o que os olhos não vi-
ram, o que os ouvidos não ouviram, o que as mão não tocaram e o que nunca ocorreu à
mente do homem’”. O que leva a crer é a influência de algum grupo místico judaico
sobre os escritos de Tomé e mais tarde sobre o movimento cabalístico medieval. Até
onde esta influência foi forte não sabemos, mas ela é presente através dos textos e até
mesmo da rejeição sofrida pelas suas respectivas doutrinas institualizadas.
Para que possamos adentrar no campo do conhecimento do misticismo cristão e
no mundo particular dos místicos, faço referências a Johannes Scheffler ou Angelus
Silesius, poeta místico do século XVII. Apesar da distância entre o assunto abordado
(Tomé e Nag Hammadi) e a época de Angelus, creio que nenhum outro tenha conse-
guido expressar, o universo complexo e pessoal dos místicos de uma forma geral, de
forma tão profunda. Por meio de Johannes, podemos caminhar para o entendimento
66 Scholem, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica, p. 156 Palavras do manual Cabalísti-co, Abuláfia, Mestre da Cabala.
45
de que Misticismo e Tradição institucional izada não são compatíveis. Johannes Schef-
fler foi uma figura excêntrica e embaraçante67.
“A essência da mística cristã e da mística em geral parece consistirem última instância na tomada de consciência profunda e na vivênciade que Deus deve nascer em nós, sofrer em nós, para em nós renas-cer, eterno, e nós nele. Angelus Silesius cumpriu este caminho comzelo e entusiasmo, até o excesso”.68
Podemos assim ter uma visão mais profunda do místico, mais ainda do que S-
cholem e Lima Vaz conceituam. O místico, em Silesius, é a canalização da relação ser
humano e divindade, sendo esta uma experiência subjetiva ela vai diferenciar em sua
manifestação de uma pessoa para outra.
Sem dúvida que há muitos outros místicos mais conhecidos do que Angelus Si-
lesius, porém, dentro da perspectiva que estamos abordando, os seus escritos são mais
próximos das sentenças de Tomé e mostra o quanto o modelo literário dos cristãos gnós-
ticos serviram, de alguma forma, de inspiração para místicos posteriores. Façamos a
comparação entre um dístico de Angelus Silesius e uma sentença de Tomé:
“A sua direita, sou também filho de Deus: Carne, espírito, sangue, Ele prova no meu ser”69.
(108) Jesus disse: “Quem beber de minha boca tornar-se-á como eu. Eu mesmo me tornareiele, e as coisas que estão ocultas ser-lhe-ão revelados”.
Observe a semelhança quanto a idéia do humano tornar-se divino. Entre os
místicos de todo mundo há sempre a busca da divinização do ser humano.Nessa jor-
nada espiritual, podemos observar, se dá em duas etapas: o conhecimento através do
Mestre e o conhecimento de si mesmo, encontrando em seu interior o Absoluto. Tanto
Silesius e o/a (s) escritor (es, as) de Tomé demonstram esse mesmo pensamento. Este
é um ponto importante na concepção religiosa dos místicos: o encontro com o divino e
67 Lepargneur, Hubert & Da Silva, Dora Ferreira. Angelus Silesus, p. 168 Idem
46
o lugar sagrado não requer apenas uma busca exterior, mas sim uma introspecção pes-
soal, uma vivência total de si mesmo: “Homem, para onde vais? O céu está em ti.
Quem busca Deus fora não vai encontra-lo.” 70 . Novamente, em Tomé vemos algo
semelhante:
“(3) Jesus disse: ‘Se aqueles que vos guiam disserem, ‘Olhem, o rei-no está no céu,’ então, os pássaros do céu vos precederão, se vos dis-serem que está no mar, então, os peixes vos precederão. Pois bem, oreino está dentro de vós, e também está em vosso exterior. Quandoconseguirdes conhecer a vós mesmos, então, sereis conhecidos ecompreendereis que sois filhos do Pai vivo. Mas, se não vos conhe-cerdes, vivereis na pobreza e sereis essa pobreza’.”
A sentença de número 3 de Tomé revela o local principal de busca ao lugar
sagrado. De forma mais lúdica e poética, Silesius expõe a mesma idéia. Mas a beleza
da relação entre Deus-ser humano apresentada por eles é incomparável.
A intenção de comparar Angelus Silesius e a comunidade de Tomé é justamen-
te o lançamento que ambos tiveram ao limbo da história Cristã pela Igreja institucio-
nalizada. A imagem que ambos passavam de Deus e Jesus é única, assim como em
outros escritos apócrifos. No entanto, não se pode negar que muito do que foi pregado
e dito por esses textos perduram hoje no chamado cristianismo popular, tanto católico
romano, quanto das vertentes protestantes.
4 As Sentenças Místicas no Evangelho de Tomé
Depois de adentrarmos na concepção do que seja gnosticismo e misticismo com
suas correntes judaicas e cristãs, passamos a analisar cinco sentenças do Evangelho de
Tomé que estejam relacionadas ao tema proposto. O cuidado tomado é de analisar sen-
69 Lepargneur, Hubert & Da Silva, Dora Ferreira. Angelus Silesius, p.270 Lepargneur, Hubert & Da Silva, Dora Ferreira. Angelus Silesius, p.48
47
tenças ainda não citadas. Há de se ressaltar, que nem todas as sentenças do Evangelho
de Tomé têm uma alusão clara ao misticismo ou gnosticismo. E vale lembrar também
que é um escrito cristão, de origem de uma comunidade cristã. Através disso, temos
uma visão diferenciada de um cristianismo marginal.
A primeira sentença a ser analisada é a de número 15:
(15) Jesus disse: "Quando virdes aquele que não foi nascido de uma mulher pros-trai-vos com a face no chão e adorai-o: é ele o vosso Pai".
Podemos partir da explicação Huberto Rohden. Ainda que Rohden se baseie
mais em sua própria intuição, suas palavras tendem a analisar as sentenças de um ângu-
lo místico que é de nosso interesse:
“Os evangelistas Mateus e Lucas traçam a genealogia de Jesus atravésdos ascendentes de José e depois negam a paternidade física dele.Mas essas duas genealogias uma desde Abraão, outra desde Adão têm a finalidade de mostrar através de que canais fluiu o elementovital que cooperou para a formação do corpo de Jesus...A doutrina teo-lógica de que Maria tenha sido fecundada pelo Espírito Santo é mito-logia. O pneuma hágion, de Lucas, é o elemento vital de José...71”
Rohden desmistifica a concepção de Maria, mas parte para uma outra vertente
mística ao declarar que através de José um elemento vital foi passado por gerações para
que culminasse no nascimento do Cristo. Rohden adota uma postura que se pode dizer
altamente gnóstica. Lembremos que todo gnóstico é um místico, no entanto, nem todo
místico é um gnóstico. Ele continua dizendo que:
“José, realizou a fecundação, razão porque Jesus se chama ‘Filho doHomem’... O Filho do Homem é a antecipação de uma nova humani-dade; por isso devemos prostar-nos diante dele como diante de umhomem plenamente realizado72”.
71 ROHDEN, Huberto. O Quinto Evangelho: A Mensagem do Cristo segundo Tomé, p. 39-4072 Idem, p. 41
48
Esta é a idéia do místico: um encontro com o seu interior para renascer em nova
humanidade. Rohden parte para uma questão quase sobrenatural, mas que podemos ana-
lisar assim: Jesus não é de origem humana. Novamente podemos através dessa idéia
chegar ao conceito gnóstico sobre Jesus. Mas que ao mesmo tempo, revela a aproxima-
dade entre o humano e o divino. O Jesus de Tomé é antes de tudo um iluminado, um ser
evoluído.
Marvin Meyer73 aconselha fazer a comparação entre esta sentença 15 e a pas-
sagem do Evangelho de João 10.30: “Eu e o Pai somos um”74 .
A sentença 15 é uma declaração de divindade de Jesus, na verdade uma das
poucas onde Evangelho de Tomé apresenta tal afirmação. Assim como o texto de To-
mé oculta a crucificação e dispensa a ressurreição, a questão da divindade de Jesus é
poucas vezes mencionada e ainda assim, é feito de forma alegórica. Pode -se ainda, ir
mais além e afirmar como Jean-Yves Leloup:
“Esta sentença convida-nos a descobrir em nós o ingendrado oque não nasceu de uma mulher, da carne, da razão, da emoção; nosconvida a dirigir nosso olhar interior para nossa verdadeira origem,não-gerada, não criada. Aí está o nosso verdadeiro Pai. Ao descobri -lo, a única atitude possível é prostrar-se e adora-lo, uma vez que seestá diante do abismo do Ser e do Amor incriados” 75.
Leloup faz seu comentário declarando que as palavras da sentença 15 são, nada
menos, que a afirmação da essência divina inserida na natureza humana. Esta é uma
afirmação bastante comum entre místico, como já foi mencionado outras vezes. Portan-
to, esta sentença de divindade de Jesus é um elo para o pensamento místico-gnóstico da
divinização humana.
73 MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: As sentenças ocultas de Jesus, p. 8674 Bíblia de Estudo Almeida.
49
A segunda sentença a ser trabalhada é a de número 29:
(29) Jesus disse: "Seria uma maravilha se a carne tivesse surgido por causa do es-pírito. Mas seria a maior das maravilhas se o espírito tivesse surgido por causa docorpo. Estou realmente surpreso pela forma como essa grande riqueza fez moradanessa pobreza”.
Esta é uma sentença que faz uma divisão entre mundos: o mundo espiritual e o
mundo material. A sentença tem uma forte tendência gnóstica: A supervalorização do
espírito (alma) sobre a carne (corpo). Meyer faz a seguinte colocação:
“Esta sentença expressa surpresa pela estreita relação entre o espírito,a dimensão imortal dos seres humanos e a carne ou corpo. Na medidaem que a sentença diz que o espírito de dentro na verdade existe emfavor e para a salvação do corpo...76”
Ou seja, Jesus se mostra surpreso pelo convívio entre algo tão superior (espíri-
to, alma) com outro inferior (corpo, carne). Mas a explicação para tal contradição é
que o espírito existe para a salvação do corpo. Uma idéia particularmente gnóstica e
podemos dizer também, mística, já que grande parte dos movimentos místicos têm
como objetivo maior a superação do espírito sobre a carne.
Porém, podemos analisar por um outro ângulo de observação desta sentença se
entendermos o espírito como elemento divino e a carne como elemento humano. En-
tra aqui como questão primordial não a origem ou quem é criador de quem, mas sim,
como podem conviver ao mesmo tempo esses dois elementos distintos. Leloup traba-
lha essa questão da seguinte forma:
“Mas a questão permanece. Como unir em nós o humano e odivino? Como, ao mesmo tampo, viver no mundo e viver re-almente uma vida espiritual? Como não opor um ao outro?Como estar na matéria e no espírito? Como ser verdadeira-
75 LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de Tomé, p.7476 MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: As sentenças ocultas de Jesus, p. 93
50
mente homem e verdadeiramente Deus? Como viver esta sín-tese que o próprio Cristo viveu? E isso somente será possívelse O deixarmos viver e agir em nosso inter ior”77.
Segundo Leloup, este é um convite para um viver pacifico entre a vida cotidiana
e a vida mística. Não há separação, mas uma união de mutualidade entre ambos. A ex-
plicação de Leloup oferece um parecer menos conflitante do que Meyer. Este vê clara-
mente um conceito gnóstico de superação do espírito sobre a carne. Já Leloup, parte
para uma visão conciliadora. A interpretação de Leloup é, a bem da verdade, mais agra-
dável, porém, parece, que Meyer chega mais perto da verdade gnóstica. Realmente, há
nas correntes gnósticas um detrimento da carne em favor do espírito, do material em
favor do espiritual. Dado a influência da comunidade de Tomé pelo movimento gnósti-
co, é mais provável que a idéia de Marvin Meyer se sobressaia a de Leloup.
A sentença de número 50 é a próxima a ser analisada:
(50) Jesus disse: "Se vos perguntarem: ‘De onde vindes?’ respondei: ‘Viemos daluz, do lugar onde a luz nasceu dela mesma, estabeleceu-se e tornou-se manifestapor meio de suas imagens’. Se vos perguntarem: ‘Vós sois isto?’ digam: ‘Nós so-mos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivo’. Se vos perguntarem: ‘Qual é o si-nal de vosso Pai em vós?’, digam a eles: ‘É movimento e repouso’."
É uma sentença que trabalha a questão existencialista de forma bastante enfática:
De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? São perguntas que acompanham a
existência humana em toda sua forma. Há aqui uma clara alusão a doutrina gnóstica da
luz como origem e fim de toda vida. Meyer declara que esta sentença “é uma das mais
claramente mitológicas do Evangelho de Tomé”78. São idéias encontradas em outros
escritos de origem gnóstica como o Hino da Pérola nos Atos de Tomé ou o Livro Secre-
to de João, que são citados por Meyer em seu comentário sobre Tomé. Não há como não
77 LELOUP, Jean-Yves. Palavras da Fonte, p.13878 MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: As sentenças ocultas de Jesus, p. 100
51
lembrarmos do início do Evangelho de João em que o Verbo é posto como princípio,
meio e fim das realizações da existência humana e criadora.
Leloup faz a seguinte observação em relação aos questionamentos levantados na
sentença:
“Assim, a tríplice pergunta: ‘Donde vimos, quem somos, para ondevamos?’ Deve-se responder, sem qualquer hesitação: venho da luz,sou da luz, volto para luz. É a própria verdade do Filho Vivo em nós.É a realidade que permanece no meio da roupagem variável das apa-rências79 ”.
A luz é ponto de partida para a doutrina gnóstica. É a fonte de toda criação,
elemento divino e eterno. É interessante observar o agir da luz, que é capaz de alcan-
çar grandes distâncias sem fazer ruído, em total silêncio. Talvez esta potência por
meio do silêncio seja o fascínio dos gnóstico e místico pela simbologia da luz. Além, é
claro, do iluminar em face da escuridão. Deus é luz que ilumina o pecador. Assim, o
ser humano foi criado na luz, pela luz, mas caiu na escuridão e para ser novamente
fonte dessa luz precisa se redescobrir como luz.
A última pergunta da sentença: “Se vos perguntarem: Qual é o sinal de vosso
Pai em vós?, digam a eles: É movimento e repouso”, vai de encontro a essa caracterís-
tica da luz em movimento e silêncio. Para os místicos-gnósticos, Deus está no silên-
cio, seu agir é silencioso. Angelus Silesius80, que estamos usando como parâmetro de
místico cristão, apresenta duas sentenças que reflete o que está sendo dito:
“Quem é claro como a luz, puro como a origem é um escolhido de Deus para ser vir-gem”.
79 LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de Tomé, p.120-30
80 LEPARGNEUR, Hubert & DA SILVA, Dora Ferreira. Angelus Silesius, ps.73/76
52
“Pobre homem, crês que os gritos de tua alma são músicas adequadas à Deidade cal-ma?”.
Percebe-se que a idéia da luz e do silêncio acompanhou os movimentos místi-
cos através dos séculos. A contemplação (repouso) é um exercício diário na vida do
místico. Unir a este exercício os atos (movimento) é alcançar a plenitude da concilia-
ção divina. Esta sentença de número 50 é uma clara comprovação do forte misticismo
inserido no Evangelho de Tomé.
A quarta sentença que analisaremos é a sentença de número 61:
(61) Jesus disse: "Dois repousarão sobre um leito: um morrerá, o outro viverá."
Salomé disse: "Quem és tu homem, que ... te acomodaste em meu divã e comesteà minha mesa?"
Jesus disse-lhe: "Eu sou aquele que existe a partir do indivisível. Recebi algumasdas coisas de meu pai." [ ... ] "Eu sou sua discípula."
[ ... ] "Por isso digo que, se for inteiro, ele estará pleno de luz, mas, se ele estiverdividido, estará pleno de trevas."
Nesta sentença um detalhe interessante: a presença de Salomé. A constante
participação de mulheres nos textos de Tomé demonstra que as mesmas certamente
exerciam alguma liderança naquela comunidade. Freqüentemente Jesus é interrogado
ou é levado a alguma discussão por uma mulher. Neste caso surge o nome de Salomé.
Mas quem é esta? Segundo Leloup, esta é a “mesma iniciada referida no Pistis Sofi-
a”81 . “Pistis Sofia” é o texto sagrado gnóstico que relata a criação e a queda da huma-
nidade. Portanto, Salomé é uma das seguidoras de Jesus, reconhecida algumas vezes
como a mãe de Tiago e João.
81 LELOUP, Jean-Yves. O Evangelho de Tomé, p.143
53
Quanto a sentença em si, vale lembrar o seu equivalente em Mateus 24.40-41 e
Lucas 17.34. Em Tomé Jesus faz a afirmação não de “arrebatamento”, como se inter-
preta nos sinóticos, mas de morte e vida de alguém ou algo. Existe aqui um significa-
do simbólico da questão. A pergunta de Salomé é sincera. Meyer82 interpreta assim:
“Quem é você estranho que come e dorme na minha casa, como se fosse alguém espe-
cial?”. Salomé parece perguntar: “Quem é você que diz quem vai viver e quem vai
morrer?”. É um questionamento a respeito da origem de Jesus. Sua resposta é alta-
mente mística: “Sou gerado daquele que não pode ser dividido!” Jesus fala de plenitu-
de. Sua natureza não pode ser separada: o divino está unido a humano. Nasceu de um
ser Supremo que não se divide, sua natureza é única e insolúvel.
A partir da confissão de Salomé de ser sua discípula, Jesus revela a fonte para
alcançar a plenitude: Ser inteiro e novamente a simbologia da luz; ser inteiro é estar
cheio de luz, de elemento divino. Separar-se significa o poder da morte. Podemos en-
tender a partir dessa afirmação, o início do diálogo: “Dois deitarão no leito; um morre-
rá, outro viverá”. Tomé parece levar a questão para o campo espiritual. A morte de
uma das naturezas para que a outra se sobreponha. A interidade depende do equilíbrio
alcançado.
A quinta e última sentença é a de número 114:
(114) Simão Pedro disse-lhes: "Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheresnão são dignas da vida."
Jesus disse: "Eu mesmo vou guiá-la para torná-la macho, para que ela tambémpossa tornar-se um espírito vivo semelhante a vós machos. Porque toda mulherque se tornar macho entrará no Reino do Céu."
82 MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: As sentenças ocultas de Jesus, p. 104
54
Esta é a última sentença do Evangelho de Tomé e uma das mais polêmicas. Ao
que parece diante da pergunta “machista” de Pedro, a resposta de Jesus tem um certo
tom de ironia. Mas Meyer83 nos lembra que “a transformação da mulher em homem é
abordada longamente na antiga literatura”. A pergunta de Pedro, normal para a cultura
do oriente e judaica, é respondida por Jesus de forma aparentemente ríspida para as
mulheres.
Mas Meyer faz a seguinte afirmação que nos auxilia no entendimento da sen-
tença:
“Com freqüência a transformação da mulher em homem envolve atransformação de tudo que é terrestre, perecível, passivo e sensitivono que é celeste, imperecível, ativo e racional. Em suma, o que estáligado com a terra Mãe deve ser transformado no que está ligadocom o céu Pai84”.
A resposta de Jesus pode ser entendida como uma expressão de libertação. Se
assim for preciso, que Maria Madalena se torne homem para alcançar a plenitude da
vida o Reino dos Céus, assim seria feito. A palavra “andrógino” aqui seria melhor
aplicada com uma forma espiritual. No Reino dos céus não há categorias de gênero,
mas sim, seres que alcançam a perfeição da Luz. Temos, então, não uma afirmação de
“machismo”, mas uma declaração mística de igualdade.
Assim se encerra o Evangelho de Tomé. Fica evidente os elementos do misti-
cismo dentro dos textos de Tomé. Um misticismo histórico e até mesmo tradicional
83 MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé: As sentenças ocultas de Jesus, p. 120
84 Idem, p. 121
55
que acompanhou a evolução do cristianismo, mas quase sempre a margem deste. Mís-
ticos e gnósticos permaneceram no clausura e foram muitas vezes perseguidos quando
não estavam dentro das regras de uma teologia e eclesiologia convencional ou domi-
nante. No entanto, com as descobertas de Nag Hammadi, esse cristianismo obscuro
veio a tona e levantou a questão: Como lidar com o diferente? Como dialogar com
pensamentos e costumes diversificados?Qual o papel do misticismo no mundo de ho-
je? Tratemos desse assunto no próximo capítulo.
3 .Misticismo: Uma Experiência Legitima e Possível.
1 Caminhos do Sectarismo e da Intolerância.
A comunidade de Tomé pode ser vista como um exemplo de que dentro do cris-
tianismo as divisões e as exclusões sempre foram uma forma de demonstração de po-
derio de grupos vencedores sobre grupos minoritários . Esta forma de dominação per-
durou pelo tempo e a história. O cristianismo, como religião, tem se omitido em sua
tarefa de libertação. O que precisamos então? De uma nova religião? O escritor Stan-
ley Jones declara em uma de suas obras que: “... o que nós precisamos não é uma nova
religião, mas um novo descobrimento de Cristo...85”.
85 JONES, Stanley. O Cristo de todos os caminhos, p.9
57
Ao que parece, os ensinamentos de Jesus, que foram aplicados a um movimento
não institucional izado, se perderam no caminho de sua institucional ização. O grande
revés de um movimento que passa para a instituição é justamente a perda do que cha-
mo de “liberdade ao sagrado”. Ou seja, a experiência mística, dentro de uma institui-
ção precisa passar pelo aval de uma hierarquia adotada como parâmetro a ser seguido
e obedecido.
No entanto, dentro de uma sociedade em que as diversidades se aglomeram e
crescem cada vez mais, inclusive e principalmente, as diversidades religiosas, a religi-
ão instituída, neste caso, o cristianismo, acaba por conviver com o surgimento de no-
vos movimentos dentro de sua própria organização. A comunidade de Tomé, no Egito,
foi uma diferença ao que se firmava no ocidente como cristianismo. Suas influências e
pensamentos permitiam que usufruíssem uma liberdade maior e independente às tradi-
ções que influenciaram a Igreja de Roma e outras mais a partir do segundo século.
O caráter gnóstico e altamente místico dos escritos da comunidade de Tomé, não
era visto com bons olhos por Roma, que era o centro do cristianismo na época. Isto
parece o comum na história cristã. A cada manifestação diferente do pensamento hie-
rárquico, surge uma reação violenta. Isto aconteceu desde os primórdios da igreja
Cristã. Podemos usar como exemplo nas páginas do Novo Testamento a pessoa de
Paulo, que faz a sua queixa na Primeira Carta aos Coríntios:
“Que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despensei-ros dos mistérios de Deus. Além disso, requer-se dos despenseiros quecada um se ache fiel. Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser jul-gado por vós, ou por algum juízo humano; nem eu tampouco a mimmesmo me julgo. Porque em nada me sinto culpado; mas nem por is-so me considero justificado, pois quem me julga é o Senhor” (I Corin-tios 4.1-4)
58
Ao que tudo indica, o pensamento de Paulo e sua maneira bastante peculi-
ar de enxergar o evangelho, incomodava bastante algumas pessoas dentro da
própria igreja. E ele continua lançando luz ao que estava acontecendo:
“Já estais fartos! Já estais ricos! Sem nós reinais! E quisera reinásseis paraque também nós viéssemos a reinar convosco! Porque tenho para mim, queDeus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; poissomos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos, e aos homens. Nós somos lou-cos por amor de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vósilustres, e nós vis. Até esta presente hora sofremos fome, e sede, e estamosnus, e recebemos bofetadas, e não temos pousada certa, e nos afadigamos,trabalhando com nossas próprias mãos. Somos injuriados, e bendizemos; so-mos perseguidos, e sofremos; Somos blasfemados, e rogamos; até ao presentetemos chegado a ser como o lixo deste mundo, e como a escória de todos” (ICorintios 4. 8-13)
.
A dificuldade de conviver com o que difere ao pensamento em geral é um
obstáculo a ser vencido dentro da Igreja e da religião Cristã. Hoje as variadas corren-
tes que surgem levam a uma tensão dentro da Igreja. Podemos estender essa questão
para o campo das religiões de um modo em geral. A intolerância é uma realidade no
campo religioso mundial. Não se tolera o diferente dentro da comunidade que professa
mesma fé, quanto mais por dizer, com aqueles e aquelas de outra fé.
Mas o cristianismo é marcado por um jugo que carrega que se chama “proseli-
tismo”. Fazer números é o alvo de grande parte das igrejas cristãs. Para isto ser efici-
ente é preciso ter um espírito sectarista e não é difícil alcançar essa dimensão lamen-
tável. Intolerância e sectarismo são características verdadeiramente comuns a serem
encontradas em alguns cenários religiosos, incluindo, o cristianismo. Nas Igrejas cris-
tãs, o termo “seita” é bastante usado para definir qualquer movimento que seja dife-
rente dos moldes do modo de ser igreja tradicional. Olhando para o perfil do protes-
tantismo brasileiro essa definição torna-se por demais complexa. O que é igreja e o
que é seita?
59
“Há também, na sociedade brasileira atual, uma dupla tendência nosmovimentos religiosos dos tipos denominações, seita ou igreja de-correntes da existência de forças que empurram os tipos seita paraum processo de dessectarização, enquanto outras tentam levar os detipo denominação ou igreja para um processo de sectariz ação”86.
Na comunidade de Tomé parece que esta alcunha de “seita” foi adotada para
excluir os textos do cânon sagrado. Ainda que o Evangelho de João tenha semelhanças
e fortes indícios de influência gnóstica e uma linguagem mística explícita, esta comu-
nidade teve, por algum motivo, seus escritos aceitos no meio institucionalizado. Tal-
vez pela passagem, já citada, da exclusão do discípulo Tomé no momento em que Je-
sus “sopra” o Espírito Santo sobre os outros discípulos (João20.22-24). E o Espírito
Santo ainda é usado como parâmetro medidor para legitimar ou não um movimento.
Os critérios usados para avaliar esta questão é que não são muito claros.
As palavras de Gandhi ecoam pelo tempo ao expressar o que exatamente é ne-
cessário para que uma religião seja verdadeiramente legitima. É válido pensar que
toda expressão religiosa é legitima, ainda que discordemos de alguns aspectos, a “li-
berdade ao sagrado” é um direito humano.
“O que Deus dirá e quer que nós digamos é, não o que profes-samos da boca para fora, mas aquilo em que acreditamos, no nossocoração. E não há sombra de dúvida de que há milhares e milharesde homens e mulheres no mundo que não conhecem nem a Bíblianem o nome de Jesus ou o seu surpreendente sacrifício, e que sãomuito mais tementes a Deus do que muitos cristãos que conhecem aBíblia, oram regularmente e sinceramente acreditam que obedecemtodos os mandamentos. A religião é feita de um conteúdo mais seve-ro e é impossível para nós, seres humanos frágeis e fracos, compre-ender o que as pessoas dizem quando falam que seria melhor paraelas se sua fé fosse diferente daquela que professam” 87.
86 CAMPOS, Leonildo Silveira. Sociologia da Religião e Mudança Social, p. 10687 GANDHI, Mohandas Karamchand. Ghandi e o Cristianismo, p.84
60
Grande parte de místicos da história como Francisco de Assis, João da Cruz,
Angelus Silesius, Tereza de Ávila, Willian Eckart, tiveram dificuldades devido ao
posicionamento pouco ortodoxo. A história prova que o cristianismo não sabe lidar
com mudanças e com a diferença. O movimento gnóstico sempre foi avaliado pelos
olhos críticos de uma parte do cristianismo que saiu vencedora, mas escritos legiti-
mamente gnósticos foram destruídos. E atualmente?
2. Os Caminhos Atuais do Misticismo Religioso.
Presenciamos atualmente duas faces com relação ao movimento místico dentro
do cristianismo e do mundo religioso em geral: a ausência e o abuso. Em ambos os
casos a verdade estabelecida é a total ignorância.
“Vivemos em uma era que exalta um modismo intelectualchamado pós-modernismo desconstrutivo, uma filosofia que não sónega a universalidade do misticismo como afirma tratar -se de obraou artefato cultural, concebido a partir de diferentes panos-de-fundohistórico-culturais de um povo ou de uma região e, portanto, embus-te88”.
As chamadas igrejas “tradicionais” em boa parte aboliram de sua vivência o ca-
ráter místico da religião. Mesmo entendendo que misticismo é parte natural da religi-
ão, o esforço para que tal fenômeno não seja caracterizado dentro de seu processional
cultíco é muito grande. O advento da Teologia da Libertação contribuiu para que o
misticismo caísse no ostracismo.
88 TUOTI, Frank X. Por que não ser místico? p.22
61
Uma das grandes perdas da Teologia da Libertação, talvez tenha sido, o distan-
ciamento que fez do misticismo. Ao que parece, o medo baseado em um pré-conceito
em relação ao termo, achando que poderia levar a uma alienação social, provocou uma
certa ojeriza ao fenômeno místico dentro do movimento de Libertação. Mas, o povo
latino americano, é místico por natureza e logo, sente a necessidade do transcendental.
O verdadeiro Misticismo não é alienado do contexto social. Uma prova disso são duas
das sentenças de Tomé que certamente assustaram as comunidades cristãs convencio-
nais da época:
(54) Jesus disse: "Bem-aventurados os pobres, pois vosso é o Reino do céu."
As sentenças de Tomé são cruas em suas palavras. Diferente dos sinóticos e de
João, elas parecem ser de uma pureza primitiva e voltada para uma comunidade que
vivia às voltas com dificuldades financeiras e oprimidas por uma estância superior.
(98) Jesus disse: "O Reino do Pai é como um certo homem que queria matar um homem pode-
roso. Em sua própria casa ele desembainhou a espada e enfiou-a na parede para saber se sua
mão poderia realizar a tarefa. Então ele matou o homem poderoso."
Uma religião cristã precisa ser uma religião messiânica89 e para isso precisa do
misticismo como elemento que a compõe. A América Latina é um continente acostu-
mado (ou domesticado) historicamente e culturalmente a dominações. Uma voz mes-
siânica se faz necessária para se levantar contra uma sociedade burguesa e dominante.
A comunidade de Tomé foi uma voz que “clamou no deserto”. Ainda que haja discor-
dâncias, o seu caráter como Igreja de Cristo é totalmente legal. Foi uma voz calada,
porque era mais fraca e prevaleceu a verdade dos mais fortes.
89 METZ, Johann Baptist. Para Além de uma Religião Burguesa, p. 10
62
“Precisamos transformar essa dimensão da transcendência num esta-do permanente de consciência e num projeto cultural e pessoal. De-vemos cultivar esse espaço e fazer que a sociedade, a cultura e a e-ducação reservem espaço de contemplação, de interiorização e de in-tegração da transcendência que está em nós.90”
Essas palavras de Leonardo Boff expressam muito bem a questão levantada. Se
desejarmos transformar a sociedade, não devemos esquecer que o caráter contemplati-
vo de uma religião pode auxiliar muito nesta tarefa. Precisamos enxergar além da rea-
lidade presente. Olhar a frente do que nossos olhos vêem atualmente. Acreditar que a
mudança que esperamos deve também atingir o ser humano em sua interioridade. Em
favor de ideologias que se institucional izam, acabamos por deixar de lado o movimen-
to de mudança, de paixão. Não damos oportunidades para que as pessoas vivam suas
vidas na beleza que transcende a razão. Se vamos falar de pão, falemos também das
flores, se vamos falar de céu, por favor, falemos também da terra, do mundo...de ser
humano. Sejamos libertadores integrais de uma América cansada de ser escrava.
Diante dessas circunstâncias, vivemos uma realidade bastante presente e difícil.
Uma crise provocada pela religião. Crise em áreas da existência humana, que na verda-
de, a religião deveria ser um meio de consolo e conforto. Talvez, o campo que mais
provoque as crises existenciais ou de esperança seja a religião. A religião é de uma di-
mensão inerente a natureza humana, enraizada em sua vivência interior. A religiosidade
é a porta de entrada para um mundo onde o ser finito pode alçar vôos para o mágico
infinito. Onde há a existência de seres eternos e poderosos. E que o humano entra em
contato direto com o Divino: “A alma deve ansiar por Deus a fim de se inflamar com o
amor dele; mas, se ela ainda não puder sentir esse anseio, então deve ansiar pelo anseio.
90 BOFF, Leonardo. Tempo de Transcendência: O ser humano como um projeto infinito, p.76
63
O anseio pelo anseio também vem de Deus”91. Nas palavras de Willian Eckart encon-
tramos a sede pelo inefável que jorra do interior da alma humana. Mesmo os que decla-
ram o ateísmo, de alguma forma mergulham na experiência religiosa em alguma de suas
vertentes. Sempre com um objetivo (ainda que alguns neguem veementemente): Alcan-
çar o favor de Deus e ser visto como uma boa pessoa.
Neste sentido, o que acontece atualmente é a indiferença e a decepção constante.
Indiferença quando a religião cristã aboliu e isolou a dimensão mística, e decepção
quando o misticismo é usado em sentido pejorativo e como solução “mágica” para pro-
blemas seculares. Ser místico é resgatar a magia da religião e usá-la para canalizar a
sede interior que habita no ser humano. Ou seja, o viver intenso dos sentimentos é no-
vamente posto a luz da vida. Podemos entender que a comunidade de Tomé em sua
simplicidade de texto foi naturalmente pura, primitiva e bruta.
Nunca é fácil lidar com a sentimentalidade humana. O próprio ser humano vive
essa complexidade dentro de si mesmo. Talvez por não saber trabalhar ou entender a
sua interioridade, tenha dado o nome de “pecado”, uma quebra das regras, a tudo que,
introspectivamente, o incomodava. A culpa provocada pelo sentimento do pecado é uma
auto-punição inicial. Uma forma de prestar contas a si mesmo contra sobre fazer ou
pensar “o que não deveria”. Como pastor ou pastora, aconselhar alguém que esteja pas-
sando por uma falta de alegria de viver, buscar a raiz da crise no sentimento de culpa é
um passo a ser dado. A culpa por não alcançar a felicidade, não obter a plenitude de
vida é tão concreta quanto uma parede de tijolos, porém, bem mais difícil de derrubar:
“culpa por não ter ou não ser o que a regra social exige”. São essas pessoas que ten-
tamos descrever como sedentas do transcendente. Aquelas que ainda não sabem lidar
91 Fernando, Edson & Rezende, Jonas. Dores que nos transformam: Quando frágeis, então somos fortes,
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com suas angústias, tristeza e desilusões, pessoas que consciente ou inconscientemente,
ultrapassaram a linha moral imposta pela sociedade e têm que pagar as conseqüências.
Segundo Dante, na porta do Inferno está escrito: “Deixai toda a esperança, vós
que entrais”92. Isto realmente é o inferno: não ter mais esperança é não ter mais vida.
Em nossa época isto é mais latente e constante do que imaginamos: “Toda crise repre-
senta uma ameaça à vida e acarreta um sentimento de perda”.93
Podemos perder até mesmo aquilo que nunca tivemos, quando não há mais a espe-
rança de conquistar. Em certos momentos, e são muitos, somos obrigados a abrirmos
mão dos sonhos, por vários motivos. Qual o sentimento que fica? Perda, saudade, au-
sência. O discurso social é fortemente influenciado pelo pensamento religioso institu-
cionalizado e este sacraliza a moral e profana o desejo. “Há dentro de cada um de nós
um jardim secreto, fechado, que precisa ser aberto”.94 Alguém tem que abri-lo. A vida é
complexa, mas fazemos questão de complicá-la ainda mais.
Talvez as religiões de hoje não saibam muito bem o caminho, ou, melhor dizendo,
se perderam do caminho. Mas ainda assim, podem ser o caminho para necessidades
essenciais do ser humano. A ciência e sua ordem metódica não podem alimentar desejos
mágicos. Se a ciência procura dar respostas para os mais variados questionamentos da
realidade vigente, a religião pode oferecer o caminho para os mistérios indecifráveis que
emergem na vivência humana. Enquanto a ciência diz que uma determinada doença não
tem cura, a religião diz, ainda que o ser humano morra, a morte não é o fim. Portanto, a
religião, por mais que se aproxime de um discurso racional, sempre será o ponto sobre-
p. 5792 Citação de Rubem Alves no livro Sobre o Tempo e a EternaIdade, p, 7893 Scheunemann, Arno V. & Hoch, Lothar Carlos (orgs). Redes de Apoio na Crise, p.3594 Alves, Rubem. Sobre o Tempo e a EternaIdade, p. 80
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natural a contrabalançar a frieza e a objetividade da razão pura. E creio que, a busca ao
inexplicável, sem encontrar explicação, é uma necessidade social para o indivíduo. Nem
tudo a razão explica, porém, a religião e sua mística podem dizer que Deus ou outra
força de esfera sobrenatural é o agente por trás dos mistérios do mundo, sendo ele mes-
mo um grande mistério. Vemos, portanto, que o ser humano precisa da mística, do mis-
tério, da magia em sua originalidade e simplicidade. Por que negar algo que sempre
esteve presente e que sem dúvida alguma é elemento de mudanças quando vivenciado
de forma plena?
3- Misticismo : Experiências Subjetivas:
O misticismo não permite que haja uma verdade absoluta. Ou melhor, a única
verdade ABSOLUTA é o Criador. A expressão de fé torna-se subjetiva dentro de uma
dimensão mística. Como se manifesta essa fé, depende de cada um ou de cada uma. Um
grande mal que a religião institucional provocou e provoca é modelar de forma unívoca
experiências religiosas, como se isso fosse possível. O misticismo não segue um parâ-
metro único, mas, ao contrário, seu grande atrativo é justamente a liberdade de expres-
são. As “anomalia” religiosas ou exageros podem ser chamados de qualquer coisa, exce-
to de fenômeno místico. Mas, por outro lado, não podemos julgar experiências espiritu-
ais de forma leviana, sem ao menos ter o conhecimento mínimo a respeito do evento.
Lembremos, que assim foi julgado o movimento gnóstico nos primórdios do Cristia-
nismo.
Um grande começo para entender a mística religiosa é compreender que é uma
busca de um mundo diferente de viver a fé. Como expressa Leonardo Boff nesta afir-
mação:
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“A religião, a arte, o cinema podem ser drogas. Com elasrompem-se todos os limites, vive-se a onipotência e se voa para alémdos limites da condição humana cotidiana. O problema da droga nãoé a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais ocotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a o-brigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, depagar contas, tudo isso é estafante e enervante”.95
Para algumas pessoas a fuga da crueza da existência diária é uma opção para so-
breviver. Porém, não se pode fugir todo tempo. E a volta, como expressa bem Leonardo
Boff, é que traz a desilusão, e conseqüentemente o desânimo que domina o que um dia
já foi vontade. Neste ponto é que a mística na religião faz o seu papel. Ela traz um re-
novo de esperança e de ânimo que, apesar de algumas vezes ser, usado de forma equí-
voca, como alienação social, na verdade, é essencial dentro de uma dimensão do sagra-
do. O ser humano precisa da religião para responder sua vida.
É importante salientar que, a religião expressa a individualidade de cada um.
As religiões são o retrato da visão que o ser humano tem de Deus. A questão das ca-
racterísticas individuais envolve não apenas o indivíduo, mas também a sociedade
com sua cultura e costumes. Portanto, o indivíduo procura aquela religião que se ade-
quar mais ao seu temperamento e sua ideologia. Assim como a religião é moldada de
acordo com a cultura em que ela é inserida. Um exemplo é o cristianismo que, de um
movimento nascido na Palestina e que por isso composto de elementos culturais do
Oriente, sofreu grandes mudanças quando entrou no mundo greco-romano, foi molda-
do de acordo com o pensamento helênico ocidental. A religião é criada pelo ser social
e para a sociedade. Mas posteriormente, torna-se seu norteador moral e ético, e algu-
mas vezes, um elemento opressor e repressor.
95 Boff, Leonardo. Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, p 55
67
O desconhecimento da expressão de fé, da religião diferente é o que faz com
que a intolerância cresça e provoque a desarmonia social que vemos atualmente.
“...a religião não pode ser definida simplesmente de acordocom um modelo dominante. Ela sempre funciona em relação a de-terminado contexto social ou situação e, freqüentemente, é uma mis-tura de expressões de feitiçaria, sacerdotais e proféticas. Por isso,sempre estão intimamente relacionados à religião as necessidadeshumanas e o contexto histórico. Ela sempre é contextual e históri-ca.96”
Como agir diante das várias faces da religião é um grande desafio a ser enfren-
tado. Dentro de um ministério pastoral, esse desafio é ainda mais difícil. Manter a i-
dentidade e dialogar com o diferente é um exercício, que por vezes, assusta. O que
devemos lembrar sempre é que a religião pode ser um elemento relevante na vida de
um ser humano. Apesar das “aberrações” que vemos algumas vezes, a religião ainda é
um dos caminhos mais procurados para saciar a essencial necessidade humana de afe-
tividade e consolo. Quando há uma busca para responder o porquê de certos aconte-
cimentos, a religião sempre foi o ponto central para se alcançar tais respostas. Uma
pessoa se sente segura, quando se tem conhecimento da existência do sagrado. É a
garantia de que algo maior e poderoso está olhando, vigiando e cuidando. E por quê
acreditam nisso? Porque a religião diz isso! Toda religião, isto desde as mais primiti-
vas, adotam a figura do homem ou uma mulher santo (a), como se fosse uma simbiose
entre o divino e o humano. Essa é a maneira que o ser humano tem de fazer a ponte
entre sua natureza “imoral” e a pureza santa do Ser Superior.
A imagem do sacerdote ou homem e mulher santo (a) são a referência material
de que o Ser Sagrado está presente. Pastor e pastora ganham uma dimensão de rele-
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vância imensurável em meio aos questionamentos existenciais, as dores e as desilu-
sões, pois é por palavras que vai manter acessa ainda alguma chama na vida dessas
pessoas e, importante, é um direito que todos têm de ser ouvidos e ainda terem alguma
esperança:
“E, finalmente, a esperança é a última que morre. E por maisprostrados que estejamos, sempre podemos dar um salto, pelo menosrecorrer ao direito de espernear e de protestar. Este direito, ninguémpode destruí-lo”.97
O que mantém esse apego à religião depois de tantos escândalos surgidos e dos
avanços tecnológicos? Pode-se dizer que a fé é o elemento base para manutenção da
religiosidade humana. Mas explicar a fé é algo impossível. A fé é de uma subjetividade
extrema, pois mesmo dentro de uma mesma religião há variadas formas de expressão de
fé. E a necessidade de acreditar que esta não é uma realidade imutável e única, mas que
a situação pode melhorar ou que exista um lugar melhor do que o mundo material é par-
te da composição de uma raiz religiosa embutida na natureza humana. A fé alcança não
apenas o campo da religiosidade, mas se expande para outras áreas da sociedade. E fé é
a força mística em ação. Entender da vida e das necessidades da vida é que faz um líder
religioso alcançar seu objetivo.
A fé é uma força que se esconde em momentos de crise, mas que não se extingue
totalmente. Pois, a vida pede fé. Trazendo para a dimensão da eclesiologia cristã, o pas-
tor e a pastora não podem se limitar a uma dimensão dogmática ou doutrinária. Viver
necessita mais de poesia do que dogmas. Um (a) pastor ou pastora que enxerga apenas
as necessidades da igreja-instituição, não pode aconselhar quem perdeu a alegria de
viver, pelo fato de não compreender sentimentos. Ele ou ela entende de números e esta-
96 FARRIS, James Reaves. Culturas e Cristanismo, 147
69
tísticas, de regras, regulamentos, mas não entende de Deus e Vida. O (a) Pastor e pasto-
ra devem assumir em primeiro lugar seu estado humano. O próprio Deus deu um exem-
plo de relacionamento sadio na pessoa de Jesus: Divino encarnado no humano para en-
tender o humano. Esta é a religião viva e intensa, a religião que pode ajudar homens e
mulheres a caminharem, a religião da vivência diária, das coisas da vida. Seria muita
ingenuidade de nossa parte reduzir a experiência religiosa e mística apenas ao cristia-
nismo, este está inserido em um mundo altamente povoado pelo pluralismo religioso. Se
não tentamos compreender o mundo em que vivemos, não podemos ter a pretensão de
transformá-lo em um mundo melhor.
4- A Mística da Graça e o Metodismo.
O metodismo dentro de sua história soube alcançar o equilíbrio entre o ser místi-
co e a responsabilidade social. Wesley viveu a mística cristã intensamente, mas usou-a
de forma correta para o beneficio de si mesmo e da comunidade. Wesley soube compre-
ender a ação de Deus em outras expressões religiosas. Esse fato trouxe para o metodis-
mo moderno a herança ecumênica. É muito importante a visão da imagem de Deus em
todo ser humano. Um dos grandes problemas é enxergarmos Deus de acordo com nossa
limitada visão cristã ocidental/ fundamentalista. Para tal evento acontecer é necessário
que a leitura da Bíblia esteja aberta para novas e surpreendentes descobertas. Uma das
mais bela imagem da Bíblia é a da mesa de Jesus, em que, não havia moralismo ou pre-
conceito social ou religioso, mas era, e ainda o é, uma mesa aberta para todas pessoas.
Jesus fez uma clara opção pelos excluídos. Negar a isto é negar o evangelho. Wesley
entendeu essa mensagem e a realizou de forma eficaz e comprometida.
97 Boff, Leonardo. Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito, p.77
70
Nota-se que o próprio Wesley e o movimento metodista, por sua postura pouco
ortodoxa, cheias de manifestações místicas, sofreram com a intolerância por isso foram
perseguidos:
“O próprio Wesley e o povo chamado metodista experimentaram a in-tolerância, a hostilidade e a perseguição legitimadas sob o manto dafidelidade à ortodoxia doutrinária. Nem por isso o fundador do meto-dismo estimulou atitudes sectárias. Ao contrário, repetia com freqüên-cia, para aqueles que estavam em conexão com ele, o conselho do a-póstolo: se possível, quando depender de vós, tende paz com todos oshomens (Rm 12.18)98”.
Uma forte razão levava Wesley a ter um pensamento tolerante em relação a
crenças diferentes: A Graça. A doutrina da Graça em Wesley é uma força mística que
revela a total dependência que Wesley atribuía a Deus em relação ao movimento me-
todista e a humanidade. Wesley, mais do que qualquer outro líder religioso de movi-
mentos modernos declarava a importância da Graça de Deus na vida do ser humano,
independente de sua confissão de fé. Wesley entendia que o cristianismo, necessaria-
mente, inclui em suas doutrinas um termo que por algumas vezes, não é compreendi-
do: Graça. Estudar doutrinas cristãs sem que se fale sobre a teologia da Graça, é ex-
cluir o que o cristianismo tem de melhor e que, certamente, o difere, em alguns aspec-
tos, de outros segmentos religiosos.
Mas o que nos lembra essa palavra Graça? Para aqueles que não são cristãos, é
algo de que se fala no cristianismo. Entre os cristãos e cristãs o termo Graça, também
evoca um certo ar de mistério. Pois, realmente a Graça é um mistério conhecido ape-
nas pela fé, mas que traz resultados bastante concretos para a vida daqueles que a ex-
perimentam e a compreendem. Nada mais místico.
98 Colégio Episcopal. Carta pastoral sobre Ecumenismo, p. 34
71
O nosso vocabulário traz várias palavras derivadas do termo Graça: grato, gra-
tificado, congratulado, gracioso, gratificação ou gratuito. São palavras que evocam
boas sensações, assim como o inverso pode demonstrar uma situação de negativismo e
desarmonia como desgraçado ou ingrato. O autor norte americano Philip Yancey defi-
ne assim a palavra Graça:
“Os muitos usos da palavra me convencem de que a Graça é real-mente surpreendente: é a nossa última palavra perfeita. Ela contémuma essência do evangelho como uma gota de água pode conter aimagem do sol. O mundo tem sede de graça em situações que nemreconhece”.99
Wesley percebeu essa mística e a colocou como ponto de extrema importância
para o movimento metodista. Ao olharmos para as nossas igrejas nos dias de hoje,
sentimos que está faltando algo. O crescimento numérico das Igrejas não traduz uma
realidade espiritual e psíquica na vida de homens e mulheres, jovens e idosos. Vive-
mos uma ansiedade e o desânimo de carregar um peso chamado “falta de esperança”.
Esta situação é resultado do estágio em que se encontra a humanidade em perspectiva
ao seu relacionamento com algo ou alguém que o transcenda. Podemos compreender o
que é Graça através da interpretação e entendimento que alguns dos mais renomados
pensadores cristãos tinham a oferecer sobre o assunto. Paulo, por exemplo, concebia a
Graça como uma realidade espiritual que nos é dada e que age no interior da vida da-
quele/a que a recebe levando a uma transformação. Graça é, portanto, um dom gratui-
to de Deus ao ser humano. Para Agostinho, a Graça é a fonte libertadora do pecado.
Segundo o Bispo de Hipona, a herança pecadora da humanidade impede a escolha dos
caminhos de Deus, exigindo assim, a intervenção do próprio Deus através de sua Gra-
ça para que haja uma liberdade verdadeira.
99 Philip YANCEY. Maravilhosa Graça. p.11
72
O reformador Martim Lutero compartilha das idéias de Agostinho, indo mais
longe, dizendo que a liberdade humana fora totalmente pervertida. A Graça para Lute-
ro está intimamente ligada à justificação pela fé, concluindo assim que, a Graça de
Deus está no fato de que Deus nos torna justos através dos méritos de Cristo. John
Wesley levou a questão numa esfera mais abrangente. Wesley compilou um pouco do
entendimento sobre graça no pensamento Ocidental e outra parte do pensamento Ori-
ental:
“Wesley não hesita em utilizar ambas tradições, porque a graça se-gundo ele, é fundamentalmente o amor de Deus pela humanidademanifestado em Cristo. Quando recebida, ao mesmo tempo comuni-ca o perdão e possibilita a renovação”100.
Percebemos que, em Wesley, a Graça não é um privilégio reduzido, mas atinge
a humanidade como expressão do amor de Deus. O pensamento de Wesley sobre a
Graça é fonte principal em sua doutrina. A Graça é o instrumento de Deus para a sal-
vação do ser humano e sem ela ou seu conhecimento o ser humano não resistiria a
vida cotidiana. Wesley discordava do pensamento de Agostinho quando este dizia ser
a Graça de Deus irresistível . Para Wesley a Graça precisa ser aceita e buscada por
desejo e vontade do ser humano, mas ao mesmo tempo, Wesley refutava que só no
agir de Deus a Graça poderia efetuar a salvação. Esta mística ação do Criador é o mis-
tério a ser descoberto através da experiência de vida.
Portanto, a vivência de uma experiência como a Graça só pode ser compreen-
dida na prática cristã. A Mística da Graça é mais prática do que teoria . É uma força
divina sempre pronta para agir na alma humana, curando feridas abertas pela própria
condição do ser humano e aproximando o ser humano do Absoluto Inefável.
100 RUNYON, Theodore. A Nova Criação: A Teologia de Wesley Hoje, p. 39
73
“Em resumo, a Teologia da Graça assegura que Deus está no empre-endimento de cura humana. Tal Graça está arraigada no caráter deDeus, é radical... Tal Graça é incondicional porque não é algo queDeus meramente faz, mas que Ele é, sendo, portanto um atributo edisposição inerentes e inevitáveis em relação à Deus.” 101
Sendo assim, podemos concluir entendendo que toda experiência mística deve-
ria ser fortalecida com a experiência da compreensão da Graça de Deus. A comunida-
de de Tomé foi excluída pelo cristianismo instituído por este já não se importar ou
compreender os benefícios da Graça. Tal doutrina, merece uma compreensão mais
intensa, onde a visão entre a introspecção e ação prática faz do movimento místico
uma grande ferramenta de mudanças sociais e religiosas. Vale lembrar que, quando
falamos de Graça, estamos falando de Amor divino e incompreensível, pois está des-
pegado de regras impostas, assim como os místicos. Em uma de suas cartas para seu
irmão Charles, John Wesley faz uma confissão surpreendente e corajosa, de alguém
que experimentou a Graça de Deus na prática:
“Não sinto a ira de Deus em mim; nem posso acreditar nisso. Entre-tanto (esse é o mistério), eu não amo a Deus. Eu nunca o amei. Por-tanto, eu nunca acreditei no verdadeiro sentido cristão da palavra.Sou, portanto, um pagão honesto... e ainda assim ser tão usado porDeus!...”102
A sinceridade no relacionamento com Deus é característica de quem vive uma
intimidade só experimentada em comunidades e movimentos onde o misticismo é par-
te integral de sua vivência diária. A mística da Graça é a cura para o mal que assola a
humanidade: um mundo prosaico e sem o encanto e mistério do misticismo.
Toda esta questão da mística encontrada em Tomé desemboca na história e no
panorama diário do cristianismo. Numa comparação com os Evangelhos sinóticos e
com as doutrinas elaboradas no decorrer do tempo, o Evangelho de Tomé coloca a
101 J.HAROLD Ellens. Graça de Deus e Saúde Humana.p.8
74
redenção do ser humano numa esfera mística de consciência da paternidade única de
Deus manifestada na vivência da fraternidade universal da humanidade103. O espírito
de unidade registrado em Tomé pode ser representado pela sentença 25:
(25) Jesus disse: "Ama teu irmão como à tua alma, protege-o como a pupila de teus olhos."
Esta postura singular faz uma ponte entre a essência cristã de Deus na figura
do Pai e a filiação de toda humanidade, desconhecendo diferenças entre crenças e et-
nias, reunidas em torno da Luz Maior; Criadora e Sustentadora da vida.
Concluímos este capítulo com a certeza de que o fenômeno místico é parte es-
sencial da vida religiosa. O que seria da religião sem as cores da mística? Sabendo que
num mundo de vários pluralismos, o misticismo une a humanidade na busca do elemen-
to sagrado, ainda que a distância de uma vivência pacifica entre as várias religiões esteja
longe, de certa forma a natureza mística nos liga em um mesmo objetivo. O misticismo
é necessário à religiosidade dominada e marginalizada das massas pobres, as quais ten-
dem a crescer.
102 HEITZENRATER, Richard P. Wesley e o Povo Chamado Metodista, p.224103 Rhoden, Huberto. O Quinto Evangelho: A Mensagem do Cristo Segundo Tomé, p.12
Conclusão
A conclusão chegada após esses meses de pesquisa é primeiramente, da comple-
xidade do tema e também da extensa possibilidade de continuação. O Evangelho de
Tomé reúne em seus escritos grandes indícios de influência de um misticismo que po-
demos chamar de “oculto”, enraizado no gnosticismo. Por este motivo é tão fascinante.
E que certamente, não foi enterrado ou sepultado em Nag Hammadi, mas antes mesmo
de sua descoberta em 1952, já se fazia presente nas correntes cristãs através dos séculos.
O misticismo, de uma forma geral, é uma ruptura aos padrões convencionais da
religião formal. Não se enquadrando a uma tradição conservadora ou de manutenção.
Há uma busca maior da experiência do que da doutrina. Não classificamos essa expe-
riência como “irracional”, mas sim “passional”. O que vemos em Tomé é a paixão
pelo saber e pela descoberta do mundo sagrado. São razões próprias e não nulas, tal-
vez incompreendida pela lógica adotada por uma religião completamente imergida na
doutrina formalizada.
Encontrar no misticismo judaico e cristão, origem e prosseguimento desse mis-
ticismo tão evidente em Tomé é um desafio encantador. No judaísmo estão os elemen-
tos obscuros de uma relação mais pessoal e independente com Deus, que encontra
abrigo nos textos de Tomé e, no cristianismo, vemos pensamentos, crenças e idéias
76
que, tão claras, se apresentam nas sentenças do Evangelho apócrifo. Lamentavelmen-
te, durante muito tempo essa ligação misticismo-evangelho foi preterida a construção
de dogmas que têm a intenção de uma manutenção de poder.
Mas, ainda assim, hoje o interesse por descobrir em textos antes “malditos”, a
revelação de comunidades cristãs antigas e excluídas, podem nos trazer verdadeiros
tesouros que nos ajudariam ao conhecimento dos porões da história cristã. O caráter
místico do Evangelho de Tomé, no nosso entendimento, foi um dos fatores de sua re-
jeição. A associação da mística com padrões anti-ortodoxo quase sempre vai margina-
lizar um movimento com aspectos místicos e com Tomé, certamente, não foi diferen-
te, pois, seu misticismo, isto é um agravante, tinha ainda, influências gnósticas que o
colocava sob suspeita aos olhos ortodoxos.
Este é o evangelho de Tomé: Místico, gnóstico, inovador, simples e de beleza
rústica e primitiva. Elementos suficientes para desagradar mentes cauterizadas e for-
malizadas, interessadas tão somente no poder exclusivista.