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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE INTERSEÇÕES ENTRE LINGUÍSTICA APLICADA E ANÁLISE DO DISCURSO: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE UMA PROFESSORA EM FORMAÇÃO INICIAL ATRAVÉS DE UMA NARRATIVA Marta Deysiane Alves Faria 1 Fernanda Santana da Silva 2 Seguindo a corrente construtivista nos estudos de Linguística Aplicada (doravante LA) que, entre suas mudanças, propõe a formação de profissionais reflexivos, discussões sobre o papel de nossas experiências como alunos na construção de nossa identidade profissional e prática como professores tem sido expressivas na área (TELLES, 2004; GIL, 2005; FREEMAN, 1998). No que tange a esse aspecto, pode-se fazer uma interseção entre a Teoria do Ethos proveniente da Análise do Discurso (AD) e a LA para analisar a narrativa de uma professora em formação. Por essa razão, este estudo se justifica por fornecer novos subsídios para as discussões sobre a significação discursiva e os efeitos de linguagem na construção do ethos e da identidade de uma professora em formação pré-serviço, além de ratificar o papel da narrativa como instrumento de reflexão na formação docente. Este artigo está estruturado da seguinte forma: num primeiro momento, apresenta-se um breve levantamento da literatura sobre a relação entre a LA e a AD (AD) e definem-se o que esta última assevera sobre o conceito de ethos, desde sua origem na Retórica de Aristóteles até seu desenvolvimento na AD por Maingueneau e outros teóricos da área. Em seguida, apresenta-se uma pequena descrição do que será nosso corpus de análise. Na sequência, desvela-se a análise da narrativa. Por fim, tecem-se as considerações finais. LA e AD: interseções Um dos temas mais recorrentes nas discussões sobre a LA é a sua natureza híbrida, ou seja, seu caráter transdisciplinar, permitindo que ela seja permeada mais flexivelmente por outras ciências e áreas do conhecimento (CORACINI, 2003). A LA é uma área de conhecimento que trata dos problemas reais que envolvem a linguagem. Desta forma, a AD se torna uma importante aliada para suas reflexões do ponto de vista metodológico-discursivo ao propiciar subsídios para estudos acerca das condições em que 1 Mestranda em Lingüística Aplicada - UFV 2 Mestranda em Lingüística Aplicada - UFV

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DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

INTERSEÇÕES ENTRE LINGUÍSTICA APLICADA E ANÁLISE DO

DISCURSO: A CONSTRUÇÃO DO ETHOS DE UMA PROFESSORA EM

FORMAÇÃO INICIAL ATRAVÉS DE UMA NARRATIVA

Marta Deysiane Alves Faria1

Fernanda Santana da Silva2

Seguindo a corrente construtivista nos estudos de Linguística Aplicada (doravante

LA) que, entre suas mudanças, propõe a formação de profissionais reflexivos, discussões

sobre o papel de nossas experiências como alunos na construção de nossa identidade

profissional e prática como professores tem sido expressivas na área (TELLES, 2004;

GIL, 2005; FREEMAN, 1998). No que tange a esse aspecto, pode-se fazer uma interseção

entre a Teoria do Ethos proveniente da Análise do Discurso (AD) e a LA para analisar a

narrativa de uma professora em formação. Por essa razão, este estudo se justifica por

fornecer novos subsídios para as discussões sobre a significação discursiva e os efeitos

de linguagem na construção do ethos e da identidade de uma professora em formação

pré-serviço, além de ratificar o papel da narrativa como instrumento de reflexão na

formação docente.

Este artigo está estruturado da seguinte forma: num primeiro momento,

apresenta-se um breve levantamento da literatura sobre a relação entre a LA e a AD

(AD) e definem-se o que esta última assevera sobre o conceito de ethos, desde sua

origem na Retórica de Aristóteles até seu desenvolvimento na AD por Maingueneau e

outros teóricos da área. Em seguida, apresenta-se uma pequena descrição do que será

nosso corpus de análise. Na sequência, desvela-se a análise da narrativa. Por fim,

tecem-se as considerações finais.

LA e AD: interseções

Um dos temas mais recorrentes nas discussões sobre a LA é a sua natureza

híbrida, ou seja, seu caráter transdisciplinar, permitindo que ela seja permeada mais

flexivelmente por outras ciências e áreas do conhecimento (CORACINI, 2003). A LA é

uma área de conhecimento que trata dos problemas reais que envolvem a linguagem.

Desta forma, a AD se torna uma importante aliada para suas reflexões do ponto de vista

metodológico-discursivo ao propiciar subsídios para estudos acerca das condições em que

1 Mestranda em Lingüística Aplicada - UFV 2 Mestranda em Lingüística Aplicada - UFV

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tais discursos são construídos e seus impactos nos sujeitos envolvidos nas interações

sociais.

Dentre as parcerias entre as duas áreas, destaca-se a questão da construção de

identidade profissional durante a formação inicial dos professores de língua, pertinente

também à análise deste artigo. Ao discutir sobre os conceitos de identidade e identidade

profissional, Telles (2004) ressalta que:

[...] a identidade profissional [...] é múltipla, diferenciada e dinâmica. Ela se produz em

contextos de situação de aprendizagem (dentro ou fora da escola, da sala de aula). [...] Por fim, a questão da identidade se resume em um conjunto de elementos que são referenciais para a prática do professor, sejam eles teóricos, empíricos ou mesmo trazido pela participante, antes mesmo de ela imaginar-se um dia tornar-se professora. (TELLES,

2004, p.59)

Um dos métodos mais utilizados neste tipo de estudo é a narrativa. Beattie (2000)

concebe a narrativa como um meio de entender os processos que cercam o contexto de

formação de professores, ou seja, fatores que estão relacionados com as experiências, os

contextos dos quais esses futuros profissionais vieram, ou seja, uma visão holística do

indivíduo. Pavlenko (2001; 2002), no contexto de ensino de inglês como segunda língua,

também aponta que as narrativas são construções sociais, históricas, culturais e

discursivas, que permitem aos pesquisadores e professores entender o que modela essas

construções, bem como as possíveis razões para explicar como essas estórias estão

sendo contadas, por que elas estão sendo relatadas de uma forma específica, e quais

ainda não foram contadas. Dentro desta perspectiva, a AD contribui ricamente para os

estudos sobre identidade através do conceito de ethos e da análise de como ele é

edificado através da análise dos aspectos linguísticos, tais como marcas que denunciam a

consciência por parte do enunciador da presença de um interpretante, fato que pode

acarretar influência na forma e os argumentos que o sujeito vai construir sua

autoimagem perante o outro, visando causar o efeito desejado.

Sobre o Ethos

De modo geral, na literatura dos estudos linguísticos o ethos é tratado como a

evocação, ou construção, por parte do locutor de uma representação de si mesmo diante

de um auditório sobre o qual ele pretende exercer algum tipo de influência (AMOSSY,

2005; MAINGUENEAU, 2008). A importância de se estudar o processo de composição do

ethos corrobora a afirmação de Maingueneau (1997) de que “o discurso é inseparável

daquilo que poderíamos designar muito grosseiramente de 'voz'” (1997, p. 45), ou seja,

o discurso, através do qual se constrói o ethos, é indissociável daquele que o constrói.

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DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

O conceito norteador deste artigo tem sua origem na Antiguidade Clássica com

Aristóteles e seu estudo sobre a Retórica, perpassa o quadro pragmático de Ducrot até

ser explorado pela AD por Maingueneau e retomado na Nova Retórica de Perelman. Na

visão aristotélica, o ethos não se configurava necessariamente no que os oradores diziam

de si mesmos, mas na imagem que eles desvelavam, sendo que esta poderia ser através

de sua vestimenta, gestos ou tom de voz, por exemplo, a fim de adquirir a credibilidade

de seu auditório.

De acordo com Corrêa-Rosado (2010), a noção de ethos foi introduzida nos

estudos linguísticos por Oswald Ducrot. Em sua Teoria Polifônica do enunciado, Ducrot

ressalta que na enunciação há a presença de um outro eu, que ele chama de “locutor λ”,

que não é o eu que fala, que ele denomina “locutor L”. No que tange esta relação,

Maingueneau (1997) ressalta:

Se retomarmos a noção de ethos, poderemos dizer que os traços atribuídos ao “locutor”

através de sua própria enunciação dependem de L; se, ao contrário, este “locutor” fala dele mesmo enquanto ser do mundo, será λ que estará implicado. Na autocrítica, por exemplo, L afirma se ao valorizar λ. (MAINGUENEAU, 1997, p. 77)

De acordo com Maingueneau (1997), o ethos pode ser considerado bidimensional,

pois é associado a um “caráter” e “corporalidade”. Tais ideias se calcam nos estereótipos

que circulam em dada sociedade e que os leitores-ouvintes associam ao enunciador, tais

como traços psicológicos e físicos. Essas características atribuídas ao enunciador antes da

produção de um discurso em si podem influenciar a forma como ele vai construir seu

ethos. Dentro da discussão sobre o princípio da alteridade na construção de um discurso,

Melo e Ramos (2010) desenvolveram um estudo sobre a construção do ethos discursivo

de alunos de inglês através da autoavaliação. Os autores ressaltam que o estudo sobre

ethos retoma a concepção de que o enunciado não é neutro, pois, sob a perspectiva da

AD, ao proferir um discurso os sujeitos vislumbram exercer algum tipo de influência

sobre seu auditório. Esta colocação corrobora a Teoria da Argumentação, de Chaim

Perelman (1987). De acordo com ela, ao argumentar, um sujeito apresenta razões e

argumentos contra ou a favor de uma tese, visando à adesão do seu auditório. Dessa

forma, “[u]ma teoria da argumentação, na sua concepção moderna, vem assim retomar

e ao mesmo tempo renovar a retórica dos Gregos e dos Romanos, concebida como a arte

de bem falar, ou seja, a arte de falar de modo a persuadir e a convencer.” (PERELMAN,

1987, p. 234).

Resgatando a origem do conceito de ethos na Antiguidade Clássica ao se admitir

que um orador constrói sua imagem sem essencialmente estar falando sobre si mesmo,

Maingueneau ressalta que tal movimento pode ser percebido na enunciação sem estar

necessariamente presente no enunciado, ou seja, “[a] ideia do ethos implica, portanto,

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assumir que não se diz, explicitamente, como ou o que se é, mas mostra-se, por meio de

atitudes (físicas ou discursivas), como e o que se é” (MORAES, 2008, 109).

Maingueneau (2005) subdivide o ethos em duas categorias: o ethos discursivo e o

ethos pré-discursivo. O primeiro diz respeito à imagem que o orador constrói na própria

enunciação, enquanto o segundo é um imagem do mesmo pré-concebida pelo auditório.

Sendo assim, o ethos do orador não é exclusivo a ele, pois pode também perpassar o

olhar presente no imaginário do auditório sobre o locutor, que, por sua vez, vai construir

sua autoimagem a partir daquilo que ele pensa que o outro sabe sobre ele. Sendo assim,

“(...) podemos entender que o locutor constrói seu ethos discursivo em função de seu

ethos pré-construído: ele tenta consolidá-lo, retificá-lo, retrabalhá-lo ou atenuá-lo.”

(CORRÊA-ROSADO, 2010, p. 43)

Na seção seguinte, apresenta-se o corpus a ser analisado neste estudo.

Corpus de análise

O corpus que constitui este estudo é composto por uma narrativa (que se

encontra anexada) escrita por uma aluna em formação inicial do curso de Licenciatura

em Letras-Português-Inglês, de uma universidade federal do interior do estado de Minas

Gerais. Foi pedido a ela que descrevesse o processo de ensino e aprendizagem da língua

inglesa, em seus diversos contextos, bem como a influência desse processo e das

professoras desses contextos na vida profissional da aluna. Além disso, foi pedido que ela

também descrevesse como se deu a escolha por essa licenciatura e os fatores

relacionados a ela.

Por questões relacionadas à ética na pesquisa, o nome verdadeiro da aluna foi

trocado pelo pseudônimo de Marina. Além disso, a transcrição de trechos da narrativa foi

ipisis-litteris, uma vez que não corresponde o objetivo da pesquisa a variedade padrão da

língua portuguesa.

A próxima sessão é dedicada à análise discursiva da narrativa.

Marina: um ethos fragmentado

Esta seção apresenta uma análise da narrativa de Marina, enfocando como a

participante constrói a sua imagem discursivamente. As perguntas de pesquisa que

nortearam este estudo foram as seguintes: a) Como uma professora em formação

constrói seu ethos profissional em uma narrativa? b) E seu ethos como aluna de línguas?

c) como as histórias de vida da aluna influenciaram na construção do ethos?

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O ethos de Marina não é único, mas fragmentado, ela constrói vários ethé na sua

narrativa. A exposição desses ethé será feita nas subseções seguintes.

A imagem de aluna

Durante a leitura da narrativa, observa-se que Marina constrói dois ethé: o de

aluna inteligente, e o de aluna mulher. Verifica-se o ethos de aluna inteligente nas quatro

passagens seguintes:

Consegui entrar no nível TN2, que é um elementary ou pre-intermediate. Fiquei feliz com meu desempenho.

Da Altina, lembro só qual partido político apoiava e que ela tendia a pronunciar because

como /bɪˈkɑːz/, e eu um dia perguntei se não era /bɪˈkəz/, ela disse que sim, e a partir daí

toda vez se corrigia sozinha.

Continuei com esse hábito por muito tempo, gostava de ficar transcrevendo letras bonitas e desenhando durante aulas “inúteis”

Creio que cresci com a esperança de que a cada vez que eu “subisse um nível

educacional”, encontraria colegas mais preparados e “inteligentes” (isso é meio relativo,

né, é tudo dentro da minha definição e perspectiva. E também não querendo ofender ninguém...). Por alguma razão obscura, isso nunca aconteceu, e continua a desacontecer mesmo no nível universitário. Encarando os fatos com o pé no chão, apesar de ter sido CDF a vida toda, eu não estava me dedicando muito aos estudos durante a adolescência. Não que minhas notas tivessem caído, mas eu não estava estudando em casa mesmo.

No primeiro excerto, Marina mostra que foi capaz de entrar em um nível

intermediário de inglês, sem ter feito curso de línguas antes. Sua preocupação com o

estudo é evidente, nessa parte, por ela ter ficado feliz por ter entrado nesse nível. No

segundo, por ela ter um bom conhecimento da língua, ela foi capaz de corrigir uma

professora, corroborando essa imagem de aluna inteligente. Além disso, o ethos que ela

constrói no terceiro e no quarto excertos é de uma pessoa inteligente capaz de julgar a

utilidade ou não de uma aula, assim como a inteligência dos pares na faculdade.

A construção do ethos de mulher surge na narrativa, na medida em que Marina

apresenta uma preocupação constante com a aparência das professoras. Os fragmentos

abaixo descrevem essa posição:

Jane (...) era baixinha, bonitinha, jovem. É meu estereótipo de professora de inglês

(junto com a característica “divertida” também), a maioria que conheci era assim.

As outras professoras dessa época foram Altina (sexta série) e Fátima. Elas fugiam um pouco ao estereótipo de professora de inglês, as duas provavelmente tinham mais de 30 anos.

Thayza era alta, jovem, divertida.

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Angélica (...) era dona de uma loja de roupas e era muito fashion, por assim dizer. Era

nova e bonita, mas creio que as roupas dela, creio que seja a lembrança mais forte que tenho dela, eram meio fashion demais

Nos três primeiros excertos fica latente a visão de que ser jovem e bonita é um

requisito para uma professora ser boa profissional. Esse fato se faz evidente, uma vez

que, ao explicar o argumento de que as professoras do segundo excerto fugiam ao

estereótipo de professora de inglês, ela afirma que elas tinham idade avançada,

enquanto que a do primeiro e a do terceiro são caracterizadas como jovens.

Outro dado que liga o ethos de Marina à feminilidade é o fato de ela observar e

afirmar que o jeito fashion da professora Angélica foi destaque na sua memória de aluna

em relação a essa profissional. Além disso, a participante cita a professora Thaiza como

aquela que mudou um aspecto de sua personalidade justamente por esta professora ter

sido mulher:

Nesse convívio com ela [Thaiza], descobri duas coisas sobre mim na época, e uma sobre

ser professora, mais recentemente:

1– tinha (ainda há resquícios!) uma coisa de “território” na minha personalidade que eu preciso controlar, algo no estilo “sentimento de ameaça causado por pessoa

supostamente mais legal/bonita/inteligente na mesma área”;

2– as pessoas “ameaçadoras” geralmente são mesmo mais legais/bonitas/inteligentes, e isso é mais um motivo para que eu seja amiga delas;

3– professores (mas especialmente professorAs) são pessoas que já chamam atenção no território classe por natureza, e existem outras pessoas como eu em posição de aluna por aí.

Ao falar de Thaiza, a participante enfatiza que pode haver uma competição entre

mulheres na disputa por território, inclusive na sala de aula. Essa disputa fica clara pelo

foco que Marina confere à aparência física ao falar das profissionais que lhe deram aula,

antes da universidade, e também pelo reforço na escrita da palavra “professoras”, em

que ela coloca a partícula indicadora de gênero “A”, em maiúsculo, para realçar o gênero.

Pode-se afirmar, nesse sentido que o ethos construído pelos fragmentos acima é de uma

mulher competitiva.

A imagem de professora

Em relação à imagem de professora que aparece na narrativa de Marina, percebe-

se um tipo de argumento: o fundado sobre a estrutura do real. De acordo com Perelman

(1987) esse tipo de argumento se baseia em relações de causa-efeito, sucessão e

ligações de coexistência. Como Marina leciona para adultos, ela não vê necessidade de

dizê-los o que fazer, por isso, seu ethos em sala de aula é de uma professora não

autoritária:

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Normalmente minhas aulas são relaxadas e divertidas, já que não me sinto na obrigação

(e nem necessidade) de ser severa ou ensinar marmanjos o que eles devem ou não fazer.

Também pelo fato de ela ensinar inglês para alunos universitários, e que em sua

maioria compreendem a importância de se aprender uma língua estrangeira para o

futuro profissional, ela constrói um ethos da profissão como algo que de certa forma é

fácil:

Do jeito que eu faço e nas condições em que estou, é uma profissão relativamente

simples.

Os dois excertos acima são exemplos de argumentos fundados na estrutura do

real, em outras palavras, há a existência de uma relação de causa-efeito que subjaz a

facilidade e a posição não autoritária da profissão de professora, em que as causas são:

não ter que obrigar “marmanjos” a estudar e as condições em que ela está; e os efeitos:

aulas “relaxadas e divertidas” e ter uma profissão “simples”.

Percebe-se nitidamente, em algumas passagens, que não há interesse da aluna

em se tornar professora um dia. Ela faz investimentos na carreira, como persistir em

morar em uma cidade que ela não gosta, com condições de vida diferentes do que ela

queria para sua vida, para, no final do curso, não saber se professora será a sua futura

carreira. Assim, ela fere a regra do argumento do desperdício, visto que ela está

persistindo em fazer um curso em vão:

se eu for mesmo dar aulas de inglês, vai ser em um lugar com boas condições, algo que

não me deixe nervosa, angustiada, enlouquecida... Antes serei caixa de supermercado (não desmerecendo a profissão) que professora frustrada. Antes serei quase qualquer coisa que não professora frustrada.

No fragmento acima, esse mesmo argumento pode ser considerado, na visão de

Perelman (1987), como aquele que funda a estrutura do real, pela generalização sobre

um lugar que não tenha boas condições para dar aula deixaria os professores

enlouquecidos, nervosos. Logo, ela aplica essa generalização a um contexto futuro sobre

se tornar uma profissional do ensino.

Ainda em relação à imagem de professora, a aluna evoca a sua própria

enunciação se caracterizando como profissional. Essa evocação de si mesmo no discurso

é o que Maingueneau (2008) chama de ethos dito. As passagens abaixo ilustram esse

tipo de ethos:

A minha postura é bastante humilde, ofereço ajuda e conselhos se me pedem, mas não sou do tipo “vocês tem que fazer isso para melhorar isso”, ou “vou obrigar vocês a fazerem isso porque ajuda naquilo”, tanto porque eu acho que cada um tem sua maneira

de aprender e pode desenvolvê-la sem que eu me intrometa.

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Fico o tempo todo preocupada se estou sendo justa ao dar uma nota, propor uma atividade, pedir algo... Fico me policiando para não ser mais “legal” com os alunos que mais têm afinidades comigo, etc. Acho que consigo ser justa na maioria das coisas, mas a que mais me dá trabalho é a nota.

Talvez uma outra dificuldade seja o nervosismo. Isso acontece na situação específica da aula mal-preparada, então não acontece muito! Quando há um momento em que tenho

que improvisar ou não sei algo que eu deveria saber, fico nervosa, gaguejo, perco o rumo... Mas não acontece muito justamente porque é algo que eu posso evitar preparando a aula bem.

O ethos dito mostra a preocupação da narradora em apresentar uma profissional

acolhedora, imparcial e responsável. No primeiro excerto, Marina afirma manter uma

posição próxima aos alunos ao ser solícita com eles. Já no segundo ela mostra a

imparcialidade ao tentar ser justa com as notas. Finalmente, no terceiro, ela afirma que

sempre procurar planejar as aulas para que não ocorram dificuldades inesperadas.

Ethos pré-discursivo: a não correspondência de expectativas

Maingueneau (2005) afirma que nem sempre o co-enunciador possui

conhecimento sobre o enunciador. Entretanto, o seu caráter pode ser previsto por meio

de um gênero discursivo ou de um posicionamento ideológico. A partir dessa concepção,

pode-se dizer que o ethos pré-discursivo de Marina corresponde ao de uma aluna de

licenciatura em Letras-Português-Inglês que escolheu este curso e está se preparando

para se tornar uma professora. Entretanto, esse ethos de uma aluna de licenciatura em

letras não é compatível com o ethos que Marina constrói no seu discurso, como pode ser

observado abaixo:

Prestei vestibular para várias coisas que eu gostava e que achava que ia passar, como Matemática (na particular da minha cidade, e, sim, sempre gostei muito de Matemática!),

Sistemas de Informação (tanto na federal de Uberlândia, quanto na particular de Uberaba. Eu pensava na época que esse curso tinha a ver com mexer com computadores - gosto muito; até hoje não tenho certeza...) e Letras (na UFV).

Como já mencionei anteriormente que ainda estou aqui por motivos outros sem ser o curso

Eu não sinto como se eu tivesse escolhido esse curso, então parece muito fácil para mim dizer “Ah, eu não escolhi isso mesmo, se está me contrariando, minimamente que seja, melhor eu escolher alguma outra coisa”.

Nas passagens acima, fica claro a discordância entre a expectativa do ethos pré-

discursivo da participante e o ethos discursivo. Este é o de uma professora em formação

que ainda não se encontrou no curso de letras e enfatiza o fato de que o curso não é o

motivo por ela ter saído de sua cidade e estudar na UFV. Já aquele remete ao de aluna

que entra na licenciatura com a certeza de ser professora no futuro.

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O auditório

A construção de um enunciado não se faz sozinha, ela sempre visa atingir um

interlocutor, de modo que o discurso não é neutro (MELO,RAMOS, 2010). Na retórica

moderna de Perelman (1987), o interlocutor é descrito como um auditor que o orador

visa persuadir. Pelo fato de pesquisadoras e participante serem amigas, ao escrever sua

narrativa, Marina direcionou a sua argumentação não só para o auditório de

pesquisadores, mas também para as amigas. Há momentos no texto em que ela se dirige

ao auditório:

Creio que cresci com a esperança de que a cada vez que eu “subisse um nível educacional”, encontraria colegas mais preparados e “inteligentes” (isso é meio relativo, né, é tudo dentro da minha definição e perspectiva. E também não querendo ofender ninguém..

Outro fato é que tenho o orgulho facilmente ferido, como vocês puderam observar

Nos excertos acima, ela deixa claro a participação do auditório na sua narrativa

pelas palavras “né” e “vocês”, ao tentar fazer com que o interlocutor concorde com sua

opinião. O segundo excerto também confere caráter de desabafo à narrativa, quando

Marina expõe sua opinião sobre si mesma devido à relação de amizade entre as

pesquisadoras e a participante.

Considerações Finais

Neste artigo, foi analisada a narrativa de uma aluna do curso de licenciatura em

Letras de uma universidade pública de Minas Gerais pela procura de índices que evocam

a construção do ethos discursivo. Para tal, utilizamos os pressupostos da AD sobre ethos,

que pode ser definido como a imagem que um sujeito faz de si mesmo. A construção do

ethos profissional na narrativa de Marina foi feita por meio da utilização dos argumentos

que estruturam o real ou fundam sua estrutura e também por meio do ethos dito. O

ethos de aluna é construído pelas descrições que ela faz de suas habilidades e também

pela descrição de suas professoras. Na narrativa de Marina, as suas histórias de vida

permeiam a construção de seu ethos, já que ela recupera eventos do passado para

descrever seus métodos de trabalho, enquanto profissional e também ao descrever os

motivos que a levaram a optar pelo curso, fato que influenciou na não identificação de

seu ethos discursivo com o ethos pré-discursivo.

Este estudo trouxe uma implicação importante para a formação de professores,

uma vez que a construção da identidade é um processo e trabalhar com esse aspecto

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desde os anos iniciais da graduação pode favorecer a identificação dos alunos de

licenciatura ao final do curso. Além disso, é preciso saber qual o perfil do aluno que

ingressa na licenciatura em língua inglesa para verificar se há uma predisposição desse

aluno à identificação com o curso. É preciso verificar também quais medidas podem ser

tomadas para que os ingressantes, com perfil similar ao de Marina, possam refletir sobre

o seu futuro profissional para não terminarem o curso frustrados.

Em relação à AD, este trabalho contribuiu para a verificação de aspectos

linguísticos que permeiam a construção narrativa de uma professora em formação inicial.

Além disso, a construção do ethos não foi vista como neutra, mas direcionada a um

auditório específico, conferindo a ela um caráter também de desabafo, proporcionando a

possibilidade de a aluna na formação inicial refletir sobre sua formação revistando fatos

que a levaram a escolher essa licenciatura.

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)

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Anexo: A narrativa de Marina

A experiência como aluna Aprendi inglês em três locais, de três maneiras diferentes: na escola, no cursinho de inglês

e em casa. Meus primeiros contatos sérios com o estudo da língua foram na escola. Comecei a estudar inglês na quinta série em escola pública, e segui até a sétima. Na oitava séria mudei para uma escola particular e estudei inglês lá também, até o terceiro ano. Menciono o fato de uma das escolas ser pública e a outra particular porque várias pessoas consideram relevante, embora no meu aprendizado não tenha tido muita diferença.

Na escola pública, conheci minha primeira professora de inglês, que se chamava Jane. Ela era baixinha, bonitinha, jovem. É meu estereótipo de professora de inglês (junto com a característica “divertida” também), a maioria que conheci era assim. Lembro que ela disse “I, You, He, She, It, We, You, They” bem rápido quando começou a explicar a matéria, e lembro que eu achei o máximo. Eu sabia falar “Eu, Tu, Ele, Nós, Vós, Eles” rápido, mas eu queria aprender em inglês também. Parecia muito chique. Não aprendi somente o verbo “to be” na escola. Nesses três anos de escola pública,

aprendi bastante coisa, o problema era que não praticávamos muito o speaking, porque não tinha

condição mesmo, era uma sala muito grande e a maioria dos alunos era desinteressada. Líamos e repetíamos alguns diálogos apenas. O forte que a escola me ensinou foi a gramática. Os exercícios para casa eram no estilo mecânico e maçante, do tipo “Passe essas 500 frases pra negativa e pra interrogativa”. Eu sempre gostei muito desses exercícios e aprendi muito com eles. Costumo ser boa em seguir modelos e perceber padrões. As outras professoras dessa época foram Altina (sexta série) e Fátima. Elas fugiam um

pouco ao estereótipo de professora de inglês, as duas provavelmente tinham mais de 30 anos. Da Altina, lembro só qual partido político apoiava e que ela tendia a pronunciar because como

/bɪˈkɑːz/, e eu um dia perguntei se não era /bɪˈkəz/, ela disse que sim, e a partir daí toda vez se

corrigia sozinha. A Fátima tinha mais trabalho que as outras para manter a disciplina da classe. Quando eu estava na sétima série, ainda na escola pública, meu pai resolveu me colocar em um curso particular de inglês (às custas da minha querida aula de dança!). Eu entrei para o CCAA da minha cidade (com 50% de desconto e muito custo para pagar!), que é um lugar

freqüentado pela classe mais alta. Consegui entrar no nível TN2, que é um elementary ou pre-intermediate. Fiquei feliz com meu desempenho. Eu era super animada com essas aulas de inglês no CCAA. As aulas eram todas com DVD, e

eu nem tinha um em casa na época, e eles sempre promoviam eventos, viagens, havia boa comida, bom espaço, uma salinha de estar com canais pagos... Tudo muito empolgante! O método era maçante também, o que é positivo para mim, mas agora focava a habilidade de fala. Repetíamos as frases do DVD diversas vezes, tínhamos que decorar a lição, sabendo dizê-la só com as imagens. Tínhamos que dar sempre respostas completas também. Tinha um exercício chamado drill para fazermos frases seguindo um modelo. E tinha um que eu adorava, que era o de

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achar o erro na questão. Posso dizer com certa segurança que a única coisa que me incomodava

no CCAA era não poder ver as palavras escritas na primeira etapa da lição (não lembro de mais nada que tenha me contrariado). Tínhamos que repetir e tudo mais sem saber como se escrevia a palavra, e isso era extremamente doloroso para mim. Primeiro, porque eu ficava sem saber se a pronúncia era aquela mesmo (por mais estranho que pareça) e porque eu não me sentia segura até ver a palavra escrita. Diversas vezes espiei o livro durante as aulas e diversas vezes chamaram minha atenção por isso. Creio que sou uma aprendiz bastante visual no que tange a palavras desconhecidas.

Conheci professoras maravilhosas no CCAA. A Zazá foi minha primeira professora lá. Ela era mais velha, bem magrinha e bonita. O irmão dela tinha sido um modelo famoso, ido pra França e tal. E minha avó conhecia ela de muito tempo também, elas tinham ido juntas a um show do Roberto Carlos muitos anos atrás. Zazá era muito gentil, paciente, e nós conversávamos um pouco

no fim da aula, geralmente. Ela sempre tinha palavras bondosas para mim. A segunda professora que tive foi a Thayza. Creio que posso citá-la como a professora de inglês mais influente que eu já tive, já que ela mudou um aspecto da minha personalidade. Thayza

era alta, jovem, divertida. Assim que nos conhecemos, rotulei-a como exibida, convencida, etc. Com o tempo, descobri que ela é uma pessoa maravilhosa, nós nos tornamos amigas. Nesse convívio com ela, descobri duas coisas sobre mim na época, e uma sobre ser professora, mais recentemente: 1 – tinha (ainda há resquícios!) uma coisa de “território” na minha personalidade que eu preciso controlar, algo no estilo “sentimento de ameaça causado por pessoa supostamente mais

legal/bonita/inteligente na mesma área”; 2 – as pessoas “ameaçadoras” geralmente são mesmo mais legais/bonitas/inteligentes, e isso é mais um motivo para que eu seja amiga delas; 3 – professores (mas especialmente professorAs) são pessoas que já chamam atenção no território

classe por natureza, e existem outras pessoas como eu em posição de aluna por aí. Também tive as professoras Sílvia e Andréia no CCAA. A Andréia me ensinou durante apenas um semestre, só me lembro que ela dizia muito “Yes” e fazia o estilo muito boazinha

(boazinha demais...). Da Sílvia já, já falo. Mudei para uma escola particular na oitava série. Nessa época, tive uma professora de inglês chamada Renata, que também dava aulas de espanhol. Estou tentando procurar uma expressão menos ofensiva, mas enquanto isso fico com “mosca morta” para descreva-la. Nada contra ela, só as aulas que eram extremamente chatas, entediantes... No primeiro ano tive aulas com a Sílvia, que também me deu aula no CCAA. A Sílvia é uma pessoa muito querida, embora as aulas dela não fossem tão boas assim. A culpa não é

necessariamente das professoras, os alunos da escola particular em que estudei eram terríveis em desinteresse. A aula acabava saindo do rumo e ia para qualquer outro assunto, a Sílvia tinha dificuldade em manter a disciplina. É engraçado observar que o que atrapalhava eram os alunos mesmo, porque as aulas dela no CCAA eram ótimas!

Nos segundo e terceiro anos tive aulas com a Angélica. Ela também era professora no CCAA, mas nunca fui aluna dela lá. Ela era dona de uma loja de roupas e era muito fashion, por

assim dizer. Era nova e bonita, mas creio que as roupas dela, creio que seja a lembrança mais forte que tenho dela, eram meio fashion demais. Lembro de uma blusa dela que parecia uma saca de café. (...) Sobre as aulas, o mesmo problema da Sílvia com a disciplina. Ela tinha mais facilidade em fazer piadas, ela gostava de falar as alternativas com palavras meio aleatórias quando corrigia: “a de avestruz”, “b de boeing”, “c de candelabro”. Em casa, assim que ganhei internet – o que deve ter sido aos 14 ou 15 anos, comecei a desenvolver muito meu gosto musical. Por várias razões, meu relacionamento com minha mãe

sempre foi muito bom, mas com meu pai sempre foi muito tempestuoso, especialmente nessa época de adolescência. Meu pai adora ouvir música, e fui levada e buscada da escola e de todos os lugares durante toda a minha vida escutando coisas de sertanejo raiz até Zé Ramalho, passando por pagode e samba, quase todo tipo de música brasileira (excluindo, talvez, os que nem merecem ser chamados de música, como funk e axé). Já minha mãe, que deixou o coração nos anos 80,

sempre adorou música internacional, como Bee Gees, temas de filmes, e várias outras que foram sucesso na época do auge de juventude dela. Eu acabei me interessando por música internacional.

Posso dizer que gosto de algumas bandas de pop rock brasileiras (aquelas que me pai não escuta). Sempre que me perguntam, digo que não gosto de música brasileira porque acho nossa língua pouco sonora. Acho que pode ser uma parcela disso, mas também acho inegável a participação que tem meus pais nesse meu hobby. Minha preferência por música internacional, especialmente em inglês, está explicada. Com a internet, ficou cada vez mais fácil procurar por mais músicas. Durante minha adolescência (época

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de certa forma sofrida) ouvi muita música internacional. Começou como algo que eu gostava de

fazer para saber cantar em inglês mesmo, achava super cool saber cantar em inglês (sempre gostei de cantar também), então eu copiava à mão as letras dos sites (o que também fazia bem ao meu inglês), olhava a tradução, e depois ficava escutando e cantando. Comecei a observar que quanto mais eu sabia o que significavam as palavras, mais fácil ficava decorar a letra, e fez-se um ciclo vicioso positivo para meu inglês. Continuei com esse hábito por muito tempo, gostava de ficar transcrevendo letras bonitas e desenhando durante aulas “inúteis”, eu tinha cadernos especiais para isso, fiz dois durante o

ensino médio, e ainda os guardo. Nessa época, não tinha mais nada a ver com ser cool saber as letras, mas a música já era uma terapia. Eu ouvia músicas que tinham a ver com o que eu sentia, rolava todo um efeito catártico, eu chorava muito cantando (eu chorava muito em geral, porque eu era meio emo) e até hoje aprecio muito uma música bem escrita e bem interpretada.

Creio que todos os professores que já tive me influenciaram na professora que sou hoje (os de outras disciplinas também), no sentido de me mostrarem “o que fazer” e “o que não fazer”. Se bem que cada turma é uma turma, a situação de aula deles é muito diferente da minha atual. O

que eu de certa forma mantenho, e mantenho por causa das minhas experiências positivas, é: atividades retiradas de gramáticas a cada tópico gramatical (aprendi com os exercícios repetitivos do ensino fundamental), fazer os alunos repetirem frases e exigir respostas completas ou curtas com o auxiliar (aprendi com o CCAA) e trabalhar com músicas (o que aprendi de certa forma sozinha, e sempre gostei muito).