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IMAGENS, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E RELAÇÕES
ETNICORRACIAIS
José Valter Pereira (Valter Filé)
UFRRJ-IM
RESUMO
O texto pretende ser um exercício de reflexão sobre as possíveis potencialidades
pedagógicas da imagem na naturalização de certos ordenamentos sociais. É aquilo que eu
pude fazer com as experiências de anos de trabalho como fotógrafo, das minhas pesquisas
e das minhas práticas pedagógicas com o uso da imagem. Uma tentativa de criar alguns
pontos a partir dos quais possamos pensar a formação dos professores e as relações raciais.
Sem pretender esgotar o assunto, o texto tenta trabalhar: sobre alguns aspectos das origens
e as tensões teórico-epistemológicas produzidas a partir da imagem; com algumas
considerações sobre esta na contemporaneidade, na cultura digital, e o ato fotográfico; e,
finalmente, um pouco de como tenho usado as metáforas do campo da fotografia para
pensar, na formação de professores, a produção de conhecimentos e a nossa relação com o
mundo, com os outros.
PALAVRAS-CHAVE: Imagem, prática pedagógica e relações raciais.
Uma escola pública no Vale do Paraíba.
Uma pessoa que a visitam procura pelo diretor.
Vai à sua sala, ele não está.
A pessoa então é informada de que ele está no pátio.
No pátio, estão apenas dois homens, um negro e outro branco.
A pessoa que busca o diretor encaminha-se diretamente para o homem branco,
pois seguramente já se sabe de antemão que ele é o diretor. Engana-se.
Mas como foi forjada tal certeza? Como fomos educados para tal identificação, pois
que segundo o tal diretor, essa cena se repetia sempre?i
IMAGEM 1
De que imagens quero tratar aqui? A pergunta só faz sentido, ser enfrentada, se
ofereço os desafios que me levaram a elas – as imagens – como oportunidades para
trabalhar na formação de professores e as relações raciais. Aí, na formação de professores,
sugiram as questões “originárias”: como os negros são produzidos hegemônicamente a
partir das imagens, tanto imagens produzidas por palavras, quanto a partir das imagens
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302430
visuais? O que tais imagens visuais tem oferecido como alimento de imaginários? Esta é
como pretendo mover-me entre a produção de imagens, mais especificamente a fotografia
e aquilo que seu entorno pode oferecer como possibilidade de pensarmos a nossa relação
com formação e com a produção de conhecimentos. Uma tentativa!
Assim, esse texto materializa dois movimentos que se encontraram: um, o de
começar a organizar melhor algumas ideias que andam soltas pelas conversas, pelos fazeres
e pelos desejos de estudar um pouco mais a imagem, mais especificamente a fotografia, e
a sua importância na vida das pessoas, nos processos socioeducativos; e, dois, a
necessidade de produzir materiais de apoio para as atividades de ensino. O estudo (e a
prática) da fotografia, principalmente tentando trabalhar algumas das suas metáforas para
lidar com questões epistemológicas importantes para a aprendizagem, e as experiências
com as imagens nas práticas pedagógicas e em pesquisas, então, é o que pretende sustentar
o texto.
Mas, de todas as maneiras, considero que este texto ainda é a articulação de
algumas ideias, de alguns apontamentos que estão agora em busca de leitores, de fazeres,
de interlocução para que continuem seus fluxos. Não está acabado (como, aliás, nada na
vida está). Para usar um conceito da área computacional, este texto é (definitivamente) uma
versão "beta"ii, mas acredito que ele pode servir de aplicativo para muitas situações, para
alguns experimentos, para alguns estudos, ajudando a rodar outras ideias.
Apesar da fotografia ser uma área em que transito com certa facilidade, pois minhas
atividades estão localizadas no entorno da produção de imagensiii, poucas vezes me dei
uma empreitada de pensar a imagem, a fotografia e as suas reverberações na educação. Nos
meus trabalhos, a imagem, a fotografia são tratadas dentro da linguagem audiovisual - o
cinema, o vídeo e a televisão -, levando em consideração, na maioria das vezes, as práticas
culturais influenciadas (e influenciadoras, pois que não é um movimento unilateral) por
tais mídias, por tais linguagens. Assim, neste texto, as escaramuças que faço tentam levar
em consideração algumas dimensões da imagem, prestando atenção (sempre) nas
produções culturais possíveis nos contextos de implicação. Ou seja: sua produção e seu
entorno sociotécnico; a imagem como produção de imaginários, como produção da nossa
subjetividade, como produção dos nossos conceitos e pré-conceitos; usos da fotografia
como reprodução do mesmo, como produção de determinadas maneiras de ver e,
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302431
consequentemente, a produção de invisibilidades. Esta última dimensão pode nos ajudar a
pensar sobre as relações étnicorraciais e o reforço na consolidação de determinadas
"visões" racistas com a repetição e a naturalização de determinadas imagens em
determinados espaços-tempos. Será que é indiferente a cor da pele para imagens produzidas
em diferentes situações na vida cotidiana? A proliferação de imagens de um determinado
padrão de beleza, de um determinado fenotipo não funcionaria como uma "didática" que
nos ajuda a "reconhecer as formas de “ver” que nos fazem rejeitar (ou, no mínimo,
estranhar) outros tipos de imagem?
Não sei se o texto responde a estas e outras questões. Ele pretende, quando muito,
ser um convite para que cada um de nós possamos pensar sobre isso, que cada um de nós
possa pensar sobre as imagens que produzimos e as imagens que consumimos e os nossos
confortos e desconfortos com o que vemos. Para pensarmos na educação, na escolarização
e as imagens que reforçam subalternizações, que forjam naturalizações e dificultam a
abertura para outras possibilidades de nos relacionarmos com o conhecimento e com o
mundo.
A importância da imagem
Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita.
(Genesis, 1)
(E essa, talvez, tenha sido a primeira previdência
para termos acesso à imagem.)
IMAGEM 2
A imagem está na origem da humanidade. Ela tem sido motivo de intensas disputas
e principalmente de interdições. Não por acaso, as religiões do livro - as de origem judaico-
cristã, pelo menos - começam radicalizando: "Não farás para ti imagem esculpida, nem
figura alguma do que em cima no céu, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da
terra. Não te curvarás diante delas, nem as servirás" (do Velho testamento: Êxodo 20, 4-5).
Este é um dos mandatos que está na origem (no ocidente) da nossa relação com a imagem.
E esta relação vai ser conflituosa o tempo todo.
E não é apenas no campo religioso que a imagem provocou intensas demandas. O
mundo acadêmico, até hoje considerado o reino da palavra escrita, abriga vastos territórios
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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de desconfiança das condições de possibilidades da imagem. Muitos dos habitantes destes
territórios encontram na tradição filosófica Grega, e mais especificamente em Platão, as
origem de suas desconfianças, já que o filósofo foi implacável com as imagens. Segundo
Arlindo Machado (2001), para Platão,
o artista plástico é uma espécie de impostor: ele imita a aparência das coisas,
sem conhecer a verdade delas e sem ter a ciência que as explica (...). A
imagem, conclui Platão, pode se parecer com a coisa representada, mas não
tem sua realidade. É uma imitação de superfície, uma mera ilusão de ótica,
que fascina apenas as crianças e os tolos. ( p. 9).
Como parte destas escaramuças, tempos depois, a igreja católica vai empreender
sua grande missão evangelizadora utilizando-se da arte barroca. Arte fundamentalmente
baseada nas imagens, exatamente por compreender que esta era a melhor forma para lidar
com as gentes incultas, iletradas do "novo mundo". Certamente nas mesmas condições de
crianças e tolos, como supunha Platão, a adequação das imagens.
Infelizmente não pretendo, neste texto, continuar percorrendo as diferentes
condições sócio-historicas de usos e interdições da imagem. Interessa-me, desde aqui, lidar
com a imagem tal como ela tem sido assumida hoje como um componente fundamental da
nossa cultura contemporânea.
A fotografia e nossas mobilizações
IMAGEM 3
Poderíamos abordar a fotografia a partir de diferentes possibilidades, mas, opto por
começar recorrendo a Boris Kossoy(2005) e as sugestões que ele nos faz de pensarmos na
ideia de que "fotografia é memória e com ela se confunde" (p.40). Esta ideia,
aparentemente óbvia e simples, nos leva a pensar naquilo que o autor vai trabalhar a partir
daí e que nos ajuda a prescrutar sobre as "realidades das fotografias. Para Kossoy existiriam
duas realidades e estas estariam implicadas. Nas palavras do autor,
A imagem fotográfica tem múltiplas faces e realidades. A primeira é a mais
evidente, visível. É exatamente o que está ali, imóvel à nossa vista, na
aparência do referente, isto é, sua realidade exterior, o testemunho, o
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conteúdo da imagem fotografada (passível de identificação), a segunda
realidade. As demais faces são as que não podemos ver, permanecem
ocultas, invisíveis, não se explicitam, mas que podemos intuir; é o outro
lado do espelho e do documento; não mais a aparência imóvel ou a
existência constatada, mas também, e sobretudo, a vida das situações e dos
homens retratados, desaparecidos, a história do tema e da gênese da imagem
no espaço e no tempo, a realidade interior da imagem: a primeira realidade
(p.9).
Mas quais seriam os movimentos da memória que nos interessam aqui? Vamos
chamar Kossoy mais uma vez:
Quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem
perceber, mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos fatos e
as circunstancias que envolveram o assunto ou a própria representação (o
documento fotográfico) no contexto em que foi produzido: trata-se de um
exercício mental de reconstituição quase que intuitivo. Veremos que a
reconstituição - quer seja ela dirigida à investigação histórica quer à mera
recordação pessoal - sempre implicará um processo de criação de
realidades, posto que elaborada por meio das imagens mentais dos próprios
receptores envolvidos (9).
E essa criação de realidades não se limita ao momento de exame, de fruição da
fotografia. Parece ser que a fotografia é uma das maneiras de reforçar determinadas
“visões” que temos do mundo, de estranharmos determinadas coisas que vemos, de deixar
de enxergar outras.
A fotografia, como qualquer imagem, vale pelo que exibe no seu quadro, como
escolha, e da relação que ela estabelece com os que a veem. A fotografia é a materialização
de uma escolha que elege o que mostrar e o que esconder. Eleição entre tantas outras
possíveis. Escolha por uma determinada forma, não de mostrar o mundo, mas de dizer
como se vê o mundo, que é uma forma de recria-lo.
As imagens disponibilizam possibilidades de pensarmos sobre a percepção que
temos delas e das nossas ações. Nessa direção vai o trabalho de Henri Bergson, sobretudo
em seu livro Matéria e Memória (1990). Bergson defende que o ato de ver é uma solicitação
à ação. Perceber é agir virtualmente sobre algo. O olhar manipula nosso esquema sensório-
motor de ação e reação a partir dos estímulos que recebemos. Opera uma decomposição do
percebido em função da sua utilidade para nós. Numa imagem o que nos assegura nosso
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 302434
deslocamento em seu interior é o deslocamento do nosso próprio campo visual (Bentes,
2006).
Mais uma vez Kossoy nos sugere que o mundo tornou-se de certa forma "familiar"
após o advento da fotografia (Kossoy, 2001:26). Podemos usar a afirmação do autor para
pensarmos o que entendemos por "familiaridade". Seria como um sentimento de
intimidade, de conhecimento, de pertencimento, de costume, de hábito? Alguma coisa que
nos leva a pensar naquilo que sempre vejo porque está sempre perto, mas, justamente por
isso, tenho mais dificuldades de enxergar? Se for assim, o familiar também poderia ser
aquilo que não nos causa mais estranheza, que já naturalizamos? Familaridade seria vermos
o que sempre vimos nos livros didáticos, famílias brancas – papai lendo o jornal, Mamãe
com os dois filhos brincando e uma negra no fogão? Em que medida esse tipo de imagem
ratifica em nós a organização do mundo? Em compensação, vermos um negro ao volante
de um carro importado geralmente nos causa um certo incômodo. Será que está imagem
nos incomoda por aquilo que ela significa de des-organização do mundo?
Talvez devêssemos nos perguntar: O que naturalizamos e quais imagens ajudam
nestas naturalizações? Podemos pensar na propaganda, em muitos livros didáticos, nas
imagens das mídias hegemônicas que nos dão a ver, que cumprem com uma pedagogia da
naturalização de que certos corpos pertencem a certos lugares; Nos ajudam a educar a nossa
visão e a naturalizamos determinadas composições imagéticas apenas com determinados
personagens, de determinada raça, de determinada classe social. E assim vamos nos
familiarizando, naturalizando, eliminando outras possibilidades de ver o mundo. Assim,
também, talvez nos afastamos daquilo que (supostamente) não me diz respeito por ser algo
longínquo, por estar fora do nosso “quadro”.
Talvez fosse importante, então, fazermos um exercício de desnaturalização das
imagens que consumimos. Poderíamos começar fazendo uma espécie de inventário
imagético daquilo que temos visto de forma tranquila, como “natural“ e como estes
modelos ajudam a forjar os elementos simbólicos daquilo que produzimos. Talvez
devêssemos nos perguntar: que tipos de imagens vemos? que tipos de imagens
produzimos? Que tipo de fotos nos detém, nos param (nos param cobrando olharmos com
calma, para pensar sobre elas)? Se é verdade que o nosso olhar e a nossa capacidade de ver
(e a nossa cegueira) é o resultado de construções da/na cultura a partir das imagens que nos
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são "familiares", com que o nosso olhar está familiarizado? Será que esta familiarização
não é o resultado de uma didática de produção de uma determinada maneira de ver? Será
que vemos o que podemos ver ou só vemos o que sabemos ver, o que queremos ver?
Produzir imagens, produzir-se pelas imagens
IMAGEM 4
Infelizmente ainda não vai ser aqui que vou dedicar-me ao aprofundamento de
algumas questões sobre o ato fotográfico, mas, em todo caso, vale levantarmos algumas
questões. Questões do tipo: de que é feito o ato fotográfico? O que se passa na solidão do
fotógrafo, no momento da suspensão da sua respiração, quando este se prepara para flagrar
o instante que poderá perdurar? Como as tecnologias atravessam e alteram esse instante?
O que selecionar, quando o mundo se apresenta tão vasto, mesmo quando nosso objetivo é
perpetuar o olhar perdido e distante de uma criança? O quanto a nossa “familiarização” do
mundo, organizado como está, pode atuar para a desnaturalização dos movimentos das
cidades, para a des-invisibilização de certos personagens e para inserir outras imagens na
equilibrada e bem composta cena burguesa, branca, masculina e cristã?
A fotografia mais do que mobilizar modelos geométricos e óticos, põe em marcha
os meios visuais que passam a vigorar, também, como modelos cognitivos e perceptivos
de uma época. Depende, não apenas de um aparato mecânico e um modelo (referente), mas
daquilo que preexiste ao ato de fotografar, ou seja, aquilo da cultura, da subjetividade do
fotógrafo que vai incidir sobre as suas decisões sobre o que mostrar e o que esconder.
Nenhum ato de fotografar pode ser considerado como um ato banal, sem referentes, isolado
em si mesmo. Este ato revela a reação do fotografo ao que se apresenta a ele: um
tempoespaço a ser traduzido, a ser registrado, a ser narrado. Como reagimos a estes
momentos? De que são feitas as nossas escolhas? Que cenas construímos e a que modelos
de sociedade, de sociabilidade elas se prestam a reforçar? Até que ponto a produção das
nossas imagens não estão reforçando a proliferação de imagens que trabalham pela
reprodução do mesmo?
Muitas são as possibilidades de pensarmos sobre as nossas escolhas - e sobre a
nossa relação com a fotografia -, pois para um profissional, suas escolhas serão mais
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EdUECE - Livro 302436
apuradas pelos ditames de uma técnica, de uma arte, embora ele também não consiga
escapar da atuação da sua subjetividade.
Porém, a despeito das diferentes possibilidades de pensarmos o ato fotográfico,
interessa-me, também, pensar sobre a proliferação da fotografia a partir do aparecimento
das mídias digitais, e o retorno desta profusão de imagens como proliferação, muitas vezes,
como o mesmo. Ou seja, a era digital propiciando uma banalização da fotografia já que
muitos aparatos produzem imagens e tais imagens são oferecidas ao público quase que
instantaneamente nos blogs, flogs, redes sociais, mensagens de celulares, etc. Tal profusão,
velocidade e fluxos estão reconfigurando os modos de ver, de produzir, de produzir-se.
No lugar das imagens que pretendiam fazer um testemunho, dar conta de um
acontecimento que nos atraía pela novidade, as imagens produzidas cotidianamente na
cultura digital, principalmente pelos mais jovens, parece que se contentam em ser imagens-
rastros, imagens-ruídos, ou seja, imagens que parecem duvidar da sua capacidade de
referencialidade, da sua possibilidade de alguma suposta verdade, de relação com um
referente. Imagens em trânsito – imagens processos de múltiplas intervenções. São, muitas
delas, testemunhos de perenidade já que parecem ser feitas como anúncio de sua superação,
já que elas são apenas parte do fluxo continuo de mensagens, na maioria das vezes, de
exacerbação narcísica de ostentação e glamurização do vazio.
Parece ser que esta é uma época em que a fotografia usada nas mídias digitais,
experimenta o elogio do efêmero, da velocidade, da urgência, da superação de uma imagem
por outra ou de um metafórico descolamento de retina. Parece ser que o que está em jogo
não é mais ver uma imagem ou uma coleção delas. O que parece estar em jogo é uma
movimentação constante em que a imagem é apenas um detalhe daquilo que se coloca
como elemento de mediação das relações, das auto produções. O ato fotográfico parece um
ato de consumo da consumição das imagens, mixadas e remixadas incessantemente.
Exercícios do olhar, modos do ver – in-conclusão
IMAGEM 5
Nas minhas práticas pedagógicas a primeira questão que coloco em jogo parte
daquilo que afirma Heins von Foerster em seu artigo Visão e conhecimento: disfunções de
segunda ordem (1996). Segundo o autor não vemos com os olhos, mas através deles.
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Significa dizer que a nossa visão está contaminada pelo que acreditamos. Pelos nossos
valores, pelos nossos preconceitos, enfim, pela nossa subjetividade. Assim, a experiência
da escravidão na sociedade brasileira e as referencias eurocêntricas que nos plasmam e nos
educam nas relações sociais, nas escolas, nos meios de comunicação, nas imagens – visuais
ou não - nos fazem acreditar que vemos o que é o mundo. Um homem parado numa esquina
numa noite escura pode meter medo na maioria das pessoas que pretendem passar pelo
local. Mas se este mesmo homem é negro, na maioria das vezes, o medo aumenta muito.
O que foi definitivo para a nossa visão está antes do que vemos. A visão foi formada antes
do encontro com o visto. Nossa visão foi contaminada com a nossa experiência numa
sociedade em que o negro é sempre identificado como ameaça.
Assim, como trabalhar a partir da fotografia para que elas nos revelem mais do que
elas dão a ver? Como lidar com a visão de modo que as metáforas da fotografia nos ajudem
a pensar sobre a criação dos outros, sobre a nossa relação com o mundo, sobre o que é
nossa criação aquilo que pensamos ser do mundo, dos outros?
Algumas procedimentos da fotografia tem nos ajudado. A composição fotográfica
e aquilo que está fora do quadro. Por exemplo, o ponto de vista – o lugar onde o fotógrafo
se coloca (e coloca a câmera) para dar a ver – nos oferece a possibilidade de pensarmos
como nos acercamos daquilo que queremos conhecer, inclusive nas nossas pesquisas.
Muitas das vezes, nas observações de campo – numa pesquisa – oferecemos o que
anotamos, o que capturamos pelas nossas “lentes sem considerarmos a influencia do lugar
onde nos colocamos no resultado do que conseguimos como a verdade capturada. Será que
se alterarmos o nosso ponto de vista também não ofereceremos outras possibilidades de
dar a ver de outras formas? Será que muitos de nós não temos nos colocado numa mesma
posição, num ponto de vista naturalizado, daquele que vê sempre de um lugar privilegiado,
que não pode se abaixar para mudar de ângulo, que não pode experimentar outras posições
que nos ofereçam outras formas de ver?
O mesmo exercício de ver e criar fotografias num paralelo com a produção de
conhecimentos na pesquisa, na aprendizagem se repete a partir dos seguintes elementos da
linguagem da fotografia: o enquadramento – os recortes, aquilo que estamos sempre
sugerindo aos nossos orientandos quando estes pretendem pesquisar coisas simples como
“o cinema”, as escolas da Baixada Fluminense, etc; Os planos – os closes, os planos gerais
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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– que nos dão informações sobre a nossa relação de proximidade, de distanciamento, ou
ainda, a tensão entre a grandiloquência dos planos mais abertos e as informações
pormenorizadas de um plano próximo. O que deixamos de ver em detalhes quando
queremos colocar mais elementos e o que perdemos com o fechamento do quadro. Enfim,
tenho experimentado trabalhar a fotografia na formação de professores tentado a
desnaturalização da produção de imagens, a desnaturalização do mundo que para muitos
supostamente se apresenta sem mediações aos nossos olhos, como “a realidade”. Tentando
trabalhar as nossas aproximações, as nossas posições diante do mundo. Dos lugares que
escolhemos para dar a ver alguma experiência, a dificuldade de nos movimentarmos em
torno do que nos aproximamos para uma melhor apreensão, como possibilidade de uma
narração mais assumidamente autoral, como criação. Trabalhando sobre a possibilidade de
que cada sujeito da educação passe a “ver” os elementos que governam a sua visão, antes
mesmo que ela atravesse os olhos. Que possam dar a ver – nas imagens produzidas pelas
narrativas verbais e pela fotografia - outras possibilidades desconsideração do mundo como
criação e das relações raciais.
Bibliografia:
BENTES, Ivana. Midia-arte ou as estéticas da comunicação e seus modelos teóricos. IN:
Limiares da imagem - tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2006;
BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990;
FOERSTER, Heinz von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In:
SCHNITMAN, Dora Fried (Org). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1996
KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. IN:
SAMAIN, Etiene. O fotográfico. São Paulo: EditoraHucitec/Editora Senac, 2005;
____Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001;
MACHADO, Arlindo. O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro:
Rios ambiciosos, 2001;
Imagens
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imagem 5
i História contada por Gilberto Augusto da Silva, o mestre Gil. Jongueiro e diretor da escolar em questão, na
cidade de Piquete, SP.
ii A versão beta é a versão de um produto (geralmente software) que ainda se encontra em fase de
desenvolvimento e testes. No entanto, esses produtos muitas vezes são popularizados bem antes de sair a
versão final. Na prática, sempre que um programa é lançado em versão Beta, significa que o próprio
desenvolvedor (quem fez o programa) admite que o programa ainda não está pronto e pode ter problemas,
porém já está em um nível decente para a utilização, mesmo que sem nenhuma garantia. Extraído de
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Vers%C3%A3o_beta> em 16/2/2014.
iii Pois além de professor sou fotógrafo profissional e coordenei (por muitos anos) projetos de uso da
linguagem audiovisual em ações de cidadania (TV Maxambomba, em Nova Iguaçu e TV Pinel, no Instituto
Municipal Philippe Pinel, ambos no Estado do Rio de Janeiro)
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