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Identidade e Modernização como modelos culturais no entre-mundos
Identity and Modernization as cultural models in the in-between worlds
Paulo Marcondes Ferreira SoaresDoutor em Sociologia– UFPE
Professor - Dept. de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia
CFCH – [email protected]
RESUMO: O artigo tem como ponto central problematizar questões relativas à cultura como política na contemporaneidade, tendo como elemento norteador a distinção, apresentada por Alberto Moreiras, a respeito da tendência a dois posicionamentos principais desta (no nosso caso, especificamente o cinema e a literatura), e que diz respeito ao que ele denomina de "Paradigma da Identidade" e o "Paradigma da Modernização". Tais questões se voltam, particularmente, para certos posicionamentos culturais manifestos por artistas e intelectuais brasileiros, relativamente ao diálogo com a produção artístico-cultural de países de língua portuguesa. Os sentidos atribuídos aos posicionamentos da identidade e da modernização relativamente à ação política da arte são, respectivamente, como se seguem: para os que tomam para si o primado da identidade, o conteúdo diz a forma; para os que reivindicam um sentido de atualização/modernização, a forma diz o conteúdo. Reflexões recentes sobre as repercussões subseqüentes dessas idéias, sob o influxo da globalização e do debate do pós-colonial, têm levantado questões a propósito das possibilidades de mobilização de recursos e trajetórias diversas como meio alternativo à persistência de nossa condição de marginalização e submissão ao modelo cultural dos países hegemônicos. Nesse sentido, o cinema produzido nessas regiões periféricas apresenta-se como uma expressão privilegiada para se pensar a tensão atual entre o lugar e o não-lugar global.
PALAVRAS-CHAVES: cultura, cinema, pensamento pós-colonial, paradigma da identidade, paradigma da modernização.
ABSTRACT: The key goal of this article is to problematize questions related to culture in politics in contemporary times, having as guiding element the distinction drawn by Alberto Moreiras regarding the trend on two of its main aspects (in the present case cinema and literature) which he has denominated as “Identity Paradigm” and “Modernization Paradigm”. As stated here, these questions relate, particularly, to certain cultural positions expressed by Brazilian artists and intellectuals on the dialogue they have produced during the process of artistic-cultural production in Portuguese-speaking countries. The meanings given to issues of identity and modernization related to art political action are as follow, respectively: for those who taken the primacy of identity; contents as mean of expressing form; for those who claim a meaning of updating/modernization, and form as mean of expressing content. Recent reflections on the subsequent repercussions of these ideas, under the influx of Globalization and post-colonial debate, have raised questions on the propositions around the possibility of mobilizing resources, and the possible different trajectories to reach this goal, as an alternative mean to the persistence of our
Agenda Social. Revista do PPGPS / UENF. Campos dos Goytacazes, v.2, n.3, out-dez / 2008, p.66-95, ISSN 1981-9862
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condition of marginalization and submission to the models imposed by the hegemonic countries. On this regard, the films produced in peripheral regions would represent a privileged locus for those interested in addressing the present tension between local and the global non-local.
KEYWORDS: culture, cinema, post-colonial thinking, Identity Paradigm, Modernization Paradigm.
Introdução
As idéias aqui postas têm caráter embrionário. São notas coligidas com vistas a uma
reflexão sobre o debate em torno do cinema em contexto global periférico. Assim, se
tivesse que classificar o presente trabalho, poderia situá-lo num contexto mais amplo do
que se pode chamar de estudos de cinema e cultura, no âmbito do que pretendo
classificar de uma política cultural das artes, envolvida no mote geral de arte e política:
não tanto questões ligadas a gestões de governo, mas como os artistas pensam e
elaboram teorias sobre suas atividades artísticas – no caso deste ensaio, particularmente,
a questão da opção ético-estética por uma cinematografia anti-colonialista. Nesse
sentido, o roteiro de estudos a ser desenvolvido no artigo seguirá duas etapas
especificamente.
A primeira, que apenas se inicia, volta-se para a discussão, por críticos e cineastas, em
torno da idéia de um cinema autóctone ou, ao menos, da idéia de um cinema com
características estéticas próprias vis-à-vis o cinema europeu e americano: este seria o
caso das posições estéticas tais como se encontram incutidas em projetos
cinematográficos como, por exemplo, o Terceiro Cinema, a tricontinental glauberiana
ou a discussão atual em torno dos cinemas nacionais periféricos e o processo de co-
produções cinematográficas em contexto global – particularmente, com ênfase direta na
produção de filmes em países de língua portuguesa e da América Latina. A segunda
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etapa, que ficará para um momento subseqüente, será o cotejamento entre o discurso
produzido nesse campo e a análise de filmes (saliento que não há ainda qualquer seleção
previamente definida nesse sentido).
A questão central de que parti para essa discussão encontra-se numa assertiva levantada
por Alberto Moreiras a propósito de duas tendências específicas do pensamento latino-
americano desde o pós-guerra, em particular a partir dos anos 50: o Paradigma da
Identidade vs. o Paradigma da Modernização – que seriam dois grandes eixos
articuladores de ações e produções culturais desde um momento de reflexão sobre os
contextos nacionais de nossa produção cultural (Moreiras, 1995).
Evidentemente, uma tipologia com tal grau de abrangência tem contra si seu alto nível
de generalização, decorrendo daí a tendência a reduzir drasticamente experiências
múltiplas e complexas quanto à criação cultural, sobretudo, no sentido de como foram
vivenciadas e experimentadas pelos agentes em suas circunstâncias históricas
específicas.
Isto posto vê-se que se trata de uma proposta que requer certa cautela, visto que pode
induzir a uma percepção ossificada das coisas, ao aprisionar a dinâmica da vida cultural
numa dicotomia que, no limite, esvaziaria essa própria vida cultural de seus significados
mais profundos.
No limite, as posições em torno da questão da identidade versus modernização diz
respeito ao modo como, predominantemente, debates se polarizaram em torno ora da
afirmação de uma realidade autóctone, capaz de revelar o caráter singular de um povo
ou nação, ora como projeto atualizador que logre integrar realidades periféricas ao
modelo hegemônico ocidental de desenvolvimento, como estratégia para se sair do
atraso crônico em que se encontram, de modo a escapar da condição de
subdesenvolvimento.
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Numa política cultural das artes, tal como se manifestam em concepções estéticas no
próprio mundo da arte, o paralelo àquelas expressões paradigmáticas se faz em termos
de realismo político versus esteticismo. Corresponde isso a dizer que, no primeiro caso,
o conteúdo diz a forma; ao passo que, no segundo, a forma diz o conteúdo. Há, contudo,
uma terceira orientação, em que conteúdo e forma se processam numa dimensão tensa,
em que a dinâmica ético-estética aí configurada torna impossível a separação entre
fatores internalistas e externalistas à arte, mas sem abrir mão do reconhecimento de que
a arte se define como linguagem específica, socialmente legitimada. No Brasil, a
antropofagia cultural oswaldiana e experiências como as de Glauber Rocha (1939-
1981), de Hélio Oiticica (1937-1980) e do tropicalismo na música, referendadas como
uma neoantropofagia, se dão na esfera dessa orientação.
Feita essa ressalva, gostaria de frisar que a referência ao modelo de Moreiras serve mais
para situar possíveis tendências mais expressivas no tocante ao debate em torno da
cultural nacional e, como substrato disso, nos desdobramentos de projetos de
anticolonialismo e de configurações mais atuais em vista do pós-colonial.
E, de novo, ainda que com o risco de cair em generalizações, gostaria de tipificar
algumas características que parecem incidir no perfil de artistas e cineastas em contexto
periférico, e que diz respeito ao fato da arte por eles produzidas ter como fundamento
específico a indissociabilidade entre teoria e prática.
Dentre essas características, pode-se identificar a procura por uma nova estética e um
modelo produtivo alternativo levado a efeito por artistas-teóricos. A criação de novos
circuitos e novos meios de produção leva à criação de novas reflexões críticas fora dos
meios tradicionais. Nesse sentido, criam sua teoria-prática na dialética entre fatores
artísticos, no campo específico da linguagem, e fatores extra-artísticos, no campo mais
amplo da identidade, violência, miséria material e sócio-política (Núñez, 2006: 61).
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Com efeito, pode-se afirmar que a natureza específica e contra-tendente da matéria
teórica e prática da obra artística levada adiante por esses artistas resulta num processo
de desmapeamento ou descentramento do próprio campo artístico, no sentido
bourdieuano. Claro, isso pode ser historicamente localizado nos experimentos das
vanguardas artísticas, como é fácil de perceber, mas, aqui, nos termos que nos interessa
investigar, ele tem suas próprias configurações. Algo em comum, contudo, deve ser
reconhecido: num e noutro, o caráter de novidade e de reescritura, de ruptura com
matizes tradicionais, leva à necessidade de se produzir não só artisticamente, mas,
inclusive, teoricamente.
No que pese o risco das generalizações, como já mencionei, sobretudo com referência a
máxima dos paradigmas já indicados, por apontar tendências polarizadas, cabe
considerar, entretanto, o papel político que tais tendências podem implicar, em
particular, do ponto de vista dos agentes envolvidos nessas supostas bandeiras. Ou seja,
nos discursos teórico-práticos da produção dos artistas em torno de um movimento
específico (por exemplo, o Cinema Novo nos anos 60 ou, atualmente, no que toca à
questão das co-produções cinematográficas nos cinemas periféricos, como nos debates
surgidos em espaços como os do CINEPORT).
Muito dessas manifestações encontra-se na tendência a se discutir as condições de um
cinema pós-colonial, bem como, no debate do passado de um cinema anticolonial. O
desafio está em reconhecer as distinções, sem desconsiderar o caráter político das
tendências: o pós-colonial e o lugar da produção como lugar da fala.
Cabe, pois, elaborar questões que apontem pontos de distinções e de convergência entre
um pensamento anticolonial e o pós-colonial no debate sobre o cinema periférico e
sobre uma agenda capaz de, nele, sinalizar o propósito de matizes configuradores de um
projeto de cinema (teoria e prática) que estabeleça o lugar da fala como expressão da
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ação política de uma unidade de produção e criação de linguagens fílmicas próprias
àquelas regiões periféricas (considerando-se, evidentemente, as especificidades ou
diversidade dessas produções/criações).
Há que se perceber que, nesse debate, sobretudo no que toca aos Estudos Culturais e a
questão do pós-colonial, a referência a intelectuais anticolonialistas e nacionalistas se
configura ainda hoje como implicações do que se encontra caracterizado como
paradigma da identidade, embora essa construção nem sempre se faça pela prefiguração
de um modelo absoluto ou de uma origem imaginariamente singular ou pura. A questão
central aqui gira em torno da idéia da descolonização econômica, política e da mente. A
título de ilustração, cabe a referência à releitura de Fanon (1925-1961) por Bhabha
(1949).
No âmbito do cinema, há um particular interesse neste estudo no sentido de investigar
algumas instâncias e circunstâncias envolvidas no modo como cineastas ou grupos de
cineastas traçam uma dada orientação estética e política para seus filmes. Tem-se, claro,
um quadro bastante amplo de situações, para o qual gostaria de apenas indicar algumas
características mais expressivas. Os modelos apontam ora para uma perspectiva direta,
de um realismo radical, que parece não encontrar problema algum em estabelecer
homologias claras entre a estrutura fílmica e a estrutura social: uma espécie de cinema
sociológico como na experiência de Fernando Solanas. Ora a opção se dá por formas de
mediações alegóricas, transversais e transitórias, que levam a identificar procedimentos
específicos da narração fílmica, suas ambivalências, seus elementos de natureza distinta
do expressivamente político e econômico-social (em que procedimentos homológicos
são reconhecidos como válidos, mas problemáticos). Neste caso, dá-se ênfase aqui à
questão da análise dos procedimentos específicos à fatura fílmica: é o que se pode
extrair da filmografia de Glauber Rocha.
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Com relação ao cinema africano, Bamba (2008) traça um rápido panorama de três
gerações de cineastas desde os anos 60 aos dias atuais. A categoria dos independentes,
entre as décadas de 60 e 80, e que se compõe de cineastas que viveram o processo de
transição do colonialismo para a independência, cuja narrativa fílmica assumia forte
conotação nacionalista. A dos cineastas do desencantamento pós-independência, em
que frustrações com os desdobramentos pós-transição os levaram a abordagens mais
intimistas e autorais. A geração de cineastas da diáspora, que vive “o duplo paradoxo
de residir na Europa e pretender fazer um cinema africano” (idem, p.221-3) e, para ele,
são cineastas que não têm sentimento de culpa quanto a afirmar uma dupla identidade,
além de aspirarem a uma forma de cinema de caráter universal.
Em seu diagnóstico, Bamba indica que algumas das questões centrais ao cinema
africano são a ausência de políticas culturais cinematográficas e da própria crítica. Esses
fatores, por certo, contribuem para a persistência do público como “colonizados e
cativos dos filmes estrangeiros” (idem, p.216). Para ele, a realidade do cinema africano
ainda se deve a individualidades, existentes no plural. Uma pluralidade temática e
estético-estilística, particularmente pela emergência de novas gerações de cineastas.
Assim, a re-escritura histórica do cinema africano exige que se considere duas lógicas
antagônicas do contexto cultural mundial: defesa da soberania cultural e da exceção
cultural pela França e pela União Européia e a liberação do comércio mundial (idem,
ibidem).
Os problemas de estruturas de produção e, em certos casos, de ausência de políticas
culturais levam, entre outros fatores, ao fenômeno das co-produções como necessidade
vital, e um forte desafio, à produção de filmes com um propósito ético-estético novo, a
fim de não resvalar para o mero jogo do mercado. O lado substantivo desse esquema de
produção, oriundo do processo de globalização, traduz-se na possibilidade da ampliar as
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condições efetivas de produção de filmes, sobretudo em se tratando do cinema
periférico. Por outro lado, a ausência de políticas públicas de cultura voltadas para a
produção cinematográfica nessas regiões tem levado ao duro diagnóstico que muitos
cineastas têm feito a propósito da situação vivida em seus países de origem. Num e
noutro caso, das co-produções e do incremento de políticas públicas, há que se
reconhecer que o caráter autônomo dos filmes dependerão da efetiva liberdade,
econômica e política, para que o cineasta possa experimentar. A referência aos novos
modos do dizer o não-dito, de assumir o lugar da fala pós-colonial depende disso.
Vencer o dirigismo econômico empresarial ou político estatal torna-se um grande
desafio para o cinema periférico em contexto global.
Um Cinema à Margem
Num conhecido ensaio sobre as condições de subdesenvolvimento no cinema, Gomes
(1916-1977) atesta que, sob esse aspecto, tal situação não pode ser identificada apenas
como “uma etapa, um estágio, mas um estado” (1980: 85). Essa assertiva,
evidentemente, nos remete de imediato a uma reflexão acerca da própria natureza da
produção cinematográfica. Para o crítico, há uma clara diferença na produção dos
cinemas norte-americano, europeu e japonês vis-à-vis os cinemas hindu, árabe ou
brasileiro, por exemplo.
Em sua argumentação, há um claro paralelo entre o desenvolvimento e o
subdesenvolvimento no cinema e o desenvolvimento e o subdesenvolvimento de seus
países de origem. Veja-se, nesse sentido, a comparação que o autor estabelece entre os
cinemas hindu e japonês. Para ele, no que pese o fato da Índia ter uma das maiores
produções cinematográficas do mundo ou das nações hindus possuírem o que ele
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caracteriza como culturas próprias, ainda assim, sua realidade é a de um estado de
subdesenvolvimento. Mesmo que se considere o fato do cinema estrangeiro ter
apresentado alguma dificuldade na atração do público hindu, o que significou um
importante estímulo à produção local, que “não cessou de aumentar e em função da qual
teceu-se a rede comercial da exibição”. Diz o autor:
Tudo isso ocorria, porém, num país subdesenvolvido, colonizado, e essa atividade cultural aparentemente tão estimulante, na realidade refletia e aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento (idem, ibidem).
No caso do Japão, por não ter vivido “o tipo de relacionamento exterior que define o
subdesenvolvimento”, a produção cinematográfica parece se dar em outras bases.
Apesar de, ao contrário da Índia, o cinema estrangeiro ter conquistado imediatamente
audiência em grandes proporções, ponto fundamental para a formação do mercado
cinematográfico japonês, isso não se deu sem o processo de japonização desses filmes.
Como acentua Gomes:
Essa produção de fora era no entanto, por assim, dizer, japonizada pelo ‘benshis’ – os artistas que comentavam oralmente o desenrolar dos filmes mudos – que logo se transformaram no principal atrativo do espetáculo cinematográfico. Na verdade, o público japonês também nunca aceitou o produto cultural estrangeiro tal qual, isto é, os filmes mudos apenas com os letreiros traduzidos. A produção nacional, ao se desenvolver, não encontrou dificuldades em predominar, principalmente depois da chegada do cinema falado que dispensou a atuação dos ‘benshis’(idem, p. 86).
Ao fim e ao cabo, o elemento diferencial, no modo de ver de Gomes, deve-se ao fato do
cinema japonês ter sua produção vinculada a capitais nacionais, além de ter sua
narrativa inspirada “na tradição, popularizada mas direta, do teatro e da literatura do
país” (idem, ibdem). Pode-se notar que, ao argumentar em favor das tradições teatrais e
literárias, o autor escapa à mera explicação economicista. Tanto que, ao falar da Índia,
ele afirma sua opção por discutir o significado cultural do cinema aí produzido,
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abstraindo-se da análise “do papel do capital metropolitano inglês na florescência do
cinema hindu” (idem, p.85). Aqui, o elemento central de sua argumentação é que
embora o filme hindu se mantenha fiel às suas “tradições artísticas”, seus fundamentos
estão constituídos “por idéias, imagens e estilo já fabricados pelos ocupantes para o
consumo dos ocupados” (idem, p.86).
Gomes nos dá ainda a indicação das condições de subdesenvolvimento vividas pelo
cinema árabe, particularmente no países do norte da África e do Oriente Próximo,
regidas pelo Corão. Para ele, a tradição antiicônica dessas culturas foi o principal
obstáculo à penetração cinematográfica ocidental na região, que só passou a ter a
experiência de cinema a partir do cinema falado – dado que seria o som “o eixo do
espetáculo corânico” (idem, p. 86-7). E nos diz:
O pouco interesse pelo filme ocidental não foi acompanhado no mundo árabe pelo florescimento da produção local. A penetração imperial tendeu naturalmente a fornecer ao habitante dessas regiões uma idéia de si próprio adequada aos interesses do ocupante (...) A indústria cultural do Ocidente encontrou escassa imagem original para servir de matéria-prima na produção de ersats destinados aos próprios árabes. A fabricação de imagem árabe foi intensa, mas destinada ao consumo ocidental: o modelo nunca se reconheceu (...) como suas matrizes não são as oleogravuras exóticas de fabricação européia, mas a técnica fotográfica do Ocidente – através da qual os árabes acabaram por aceitar a imagem como componente de sua autovisão – os filmes egípcios e dos outros países árabes tomaram diretamente como modelo a produção ocidental (idem, p.87).
Comparado ao cinema hindu, o árabe aparentemente seria mais subdesenvolvido,
porém, de economia mais independente. Em todo caso, o autor afirma uma natureza
comum no vínculo desses cinemas com o espectador, que tanto estaria regido por
ambigüidades e impregnação imperial, quanto asseguraria “a fidelidade do público por
refletirem, mesmo palidamente, a sua cultural original” (idem, ibdem).
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Toda essa discussão sobre o subdesenvolvimento no cinema de várias regiões serve para
que Gomes introduza uma reflexão sobre a nossa situação cinematográfica.
Basicamente, seu estudo sobre o cinema brasileiro nesse ensaio tem como alvo principal
a produção do Cinema Novo no Brasil. A rigor, o autor traz à baila uma reflexão sobre
questões de identidade cultural e de condições de produção local dos filmes. Assim,
teríamos uma realidade com pontos em comum e aspectos distintos em relação às
demais referências de subdesenvolvimento por ele estudadas. Se, supostamente
compartilhamos a condição de sub, nos distinguiríamos por não termos um “terreno de
cultural diverso do ocidental”, ao contrário do que ocorre em países árabes e nações
hindus:
Somos um prolongamento do Ocidente, não há entre ele e nós a barreira natural de uma personalidade hindu ou árabe que precise ser constantemente sufocada, contornada e violada. Nunca fomos propriamente ocupados. Quando o ocupante chegou o ocupado existente não lhe pareceu adequado e foi necessário criar outro (...) A peculiaridade do processo, o fato de o ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e semelhança, fez deste último, até certo ponto, o seu semelhante. Psicologicamente, ocupado e ocupante não se sentem como tais: de fato, o segundo também é nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua expulsão como os franceses foram expulsos da Argélia. Nosso acontecimentos históricos (...) são querelas de ocupantes nas quais o ocupado não tem vez. (idem, p. 87-8).
Ponto central nessa discussão, as categorias de ocupado e ocupante tais como
apresentadas por Gomes nos levam a reconhecer uma dada matriz de pensamento a
partir da qual ele reflete. Trata-se, no fundo, do debate nacional-popular sobre a
identidade cultural, provavelmente influenciado pelas idéias anti-colonialistas, travado
desde os anos 50, sobretudo na França, e notadamente a partir das lutas de libertação
nacional na África. O dualismo incutido nessas categorias faz nítido paralelo com as de
colonizador/colonizado, bem como, com o debate sobre a alienação: de inspiração
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hegeliana, baseado na metáfora do senhor e do escravo. No Brasil, esse modelo teve sua
versão mais sistemática no pensamento do ISEB (Ortiz, 1985: 49).
Em seu estudo, Ortiz (1985) traça um paralelo entre o ISEB e Frantz Fanon, embora
deixe claro que não pretende estabelecer uma “filiação direta entre o pensamento de
Fanon e dos intelectuais do ISEB” (idem, p.50). Na verdade, o autor afirma existir uma
independência entre essas duas linhas de orientação. Característica esta que o motiva,
justamente, a discutir o paralelo e, mesmo, percebê-lo como modo influente sobre o
conjunto de intelectuais e artistas da época. Tanto que, para ele, na área do cinema, os
documentos “Uma Situação Colonial”, de Paulo Emílio Salles Gomes, e “Uma Estética
da Fome”, de Glauber Rocha, são ambos exemplares dessa marca isebiana (idem, p.49).
Ortiz aponta a vertente especificamente francesa da leitura hegeliana e marxista sobre as
idéias de Fanon e do ISEB. Para ele,
O que chama a atenção nos escritos de Fanon e do ISEB é que ambos se estruturam a partir dos mesmos conceitos fundamentais: o de alienação e o de situação colonial. As fontes originárias são também, nos dois casos, idênticas: Hegel, o jovem Marx, Sartre e Balandier. A categoria de alienação, de origem hegeliana, se reveste nos textos de uma acentuada interpretação francesa do idealismo alemão (...) A dialética do senhor e do escravro torna-se assim clássica nas discussões sobre a dominação social, econômica e cultural. Paralelamente, é neste período que é traduzido para o francês Manuscritos de 44, onde Marx retorma o pensamento hegeliano sobre a alienação para aplicá-lo à compreensão da luta de classes. Sua análise profundamente humanista irá reforçar a interpretação de Hegel proposta pelos exegetas franceses (idem, p.50).
Por outro lado, esse dualismo de argumentação está longe de se assumir por uma
modalidade puramente mecânica. Ao contrário, o modelo dialético aí incutido, indica
tanto o processo pelo qual o ocupado apreende o mundo pelas lentes do ocupante,
como, também, é capaz de se reinventar, inclusive, pela impossibilidade de assumir a
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natureza própria do ocupante. O ponto alto dessa imagem se encontra na seguinte
passagem:
Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional (idem, p.88).
Após discutir o panorama da formação do cinema no Brasil, o autor foca o debate sobre
ocupado e ocupante no grupo de cineastas em torno do Cinema Novo. Para ele, o caráter
político desse cinema tem sua configuração na posição assumida por esses cineastas: a
de serem ocupantes que tomam a posição do ocupado. Diz ele:
Os quadros de realização e, em boa parte, de absorção do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia chamada. A aspiração dessa juventude foi a de ser ao esmo tempo alavanca de deslocamento e um dos novos eixos em torno do qual passaria a girar a nossa história. Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e encarregada de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu substancialmente ela própria, falando e agindo para si mesma. Essa delimitação ficou bem marcada no fenômeno do Cinema Novo. A homogeneidade social entre os responsáveis pelos filmes e o seu público nunca foi quebrada. O espectador da antiga chanchada ou o do cangaço quase não foram atingidos e nenhum novo público potencial de ocupados chegou a se constituir. Apesar de ter escada tão pouco ao seu círculo, a significação do Cinema Novo foi imensa: refletiu e criou uma imagem visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo brasileiro disseminada nas reservas e quilombos, e por outro lado ignorou a fronteira entre o ocupado dos trinta e dos setenta por cento. Tomado em conjunto o Cinema Novo monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol. Esse universo tendia a se expandir, a se complementar, a se organizar em modelo para a realidade, mas o processo foi interrompido em 1964. O Cinema Novo não morreu logo e em sua última fase – que se prolongou até o golpe de estado que ocorreu no bojo do pronunciamento militar – voltou-se para si próprio, isto é, para seus realizadores e seu público, como que procurando entender a raiz de uma debilidade subitamente revelada,
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reflexão perplexa sobre o malogro acompanhada de fantasias guerrilheiras e anotações sobre o terror da tortura. Nunca alcançou a identificação desejada com o organismo social brasileiro, mas foi até o fim o termômetro fiel da juventude que aspirava ser a intérprete do ocupado (idem, p.95-6).
De fato, muito da discussão em torno cinema periférico aponta para a influência de
questões de identidade nacional-popular, alienação cultural e colonialismo (Galvão e
Bernardet, 1983; Bernardet, 1985; Prysthon, 2002; Núñez, 2006; Shohat e Stam, 2006).
Essa foi uma tendência presente em experiências cinematográficas manifestas em
movimentos independentes ou por cineastas que tomaram a si a missão de produzirem
um modelo alternativo e anti-colonialista de filmes.
Num debate recente, a propósito do cinema terceiro-mundista em contexto global,
Shohat e Stam (op. cit), indicam que sob o influxo do chamado pós-modernismo, se a
Europa esgotou seu “repertório estratégico de histórias”, a população terceiro-mundista
apenas começou a “contá-las e a desconstruí-las”. Dizem os autores:
Para o Terceiro Mundo, esta ‘contranarração’ cinematográfica basicamente começou com o colapso dos impérios europeus no pós-guerra e a emergência dos Estados nacionais independentes do Terceiro Mundo” (idem, p.355).
Para eles, a tessitura desse processo se dá a partir de alguns acontecimentos importantes
no pós-guerra. Os autores dão destaque especificamente à vitória dos vietnamitas sobre
a França, o advento da Revolução Cubana e a independência argelina. Tais
acontecimentos foram fundamentais para “a ideologia do cinema terceiro-mundista”,
manifesta em ensaios militantes escritos por cineastas latino-americanos. Muito dessa
novidade do cinema terceiro-mundista tinha uma influência importante do cinema
vanguardista europeu do início dos anos 60. Em todo caso, como acentuam Shohat e
Stam, os fundamentos da tendência terceiro-mundista assumiam uma conotação muito
mais esquerdista politicamente do que o caso europeu.
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Identidade e Modernização como modelos culturais no entre-mundos 80
A importância desse debate se dá em termos justamente da possibilidade de que esse
cinema terceiro-mundista seja capaz de elaborar verdades e narrativas anticolonialistas
como contraposição ao discurso dominante europeu. Em referência a uma passagem de
Condenados da Terra de Fanon, sobre o colonialismo, os autores afirmam que:
Diante do historicismo eurocêntrico, os diretores do Terceiro Mundo e das minorias reescreveram suas próprias histórias, tomando o controle das próprias imagens e falando com suas próprias vozes. Não que tais filmes substituam as ‘mentiras’ européias com uma verdade pura e inquestionável, mas propões ‘contraverdades’ e ‘contranarrativas’ informadas por uma perspectiva anticolonialista, recuperando e reforçando os eventos do passado em um amplo projeto de remapeamento e renomeação (idem, p.358).
Identidades Dialógicas
Pensar um quadro de teoria cultural, hoje em dia, deverá implicar necessariamente uma
reflexão sobre as condições presentes de construção de identidades culturais. De acordo
com Hall (1997), cabe refletir sobre a existência de uma identidade em crise, seu sentido
e sua atual direção numa era da globalização. Para ele, a idéia de crise deve se encontrar
diretamente voltada para uma investigação dos problemas relacionados à construção de
identidades na modernidade: assim, se existe crise ela é fundamentalmente crise de
identidade do sujeito cultural no mundo moderno (p.7-23).
O autor se apresenta como simpatizante da idéia do descentramento e fragmentação das
identidades modernas. Para ele, as sociedades modernas deste século estão sofrendo um
modo distinto de mudança, capaz de fragmentar “as paisagens culturais de classe,
gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido
sólidas localizações como indivíduos sociais” (p.09). Segundo pensa Hall, tais
mudanças têm tido incidência sobre nossas identidades pessoais: “abalando a idéia que
temos de nós próprios como sujeitos integrados”, ou seja, partidários de um
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centramento sobre si mesmo (idem). A ameaça dessa condição auto-identitária do
sujeito, o autor vai caracterizar como efeito de deslocamento ou descentração. Diz Hall:
“Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo
social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma crise de identidade para o
indivíduo” (idem).
Para Hall, esse quadro de mudança nos impõe uma séria reflexão sobre se não é a
própria modernidade o alvo cultural dessas transformações. E acrescenta que, em
relação ao que hoje se tem caracterizado como cultura pós-moderna, nós próprios
“somos também ‘pós’ relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de
identidade” (p.10); visto que, como deixa claro, a construção de identidades, hoje, tem
se constituído na diversidade de um hibridismo cultural, ou seja, do entrecruzamento,
consensual ou conflitivo, de narrativas descentradas – em oposição a identidades
essencialistas: que tanto se inspira na busca absolutista da pureza e da tradição, quanto
das metanarrativas, tal como se fez na modernidade triunfante, sob a hegemonia do
capitalismo, que serviu de paradigma ao liberalismo, mas, também, ao marxismo. Em
outras palavras, a construção de identidades no mundo contemporâneo tem assumido,
mais e mais, a configuração de um hibridismo cultural, de uma diversidade dialógica e
de uma diferenciação tal, que tende a nos orientar para uma perspectiva mais assentada
numa visão construtivista, que se dá em oposição e tensão com uma outra, ainda
fortemente arraigada, de um tipo culturalmente essencialista ou fundamentalista, e que
se encontra pautada em identificações fixas e em mitos de origem e pureza cultural.
Nesse aspecto, Hall segue os passos do que Bhabha (1998) assinala quando avalia o
nosso fim de século como “momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para
produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e
exterior, inclusão e exclusão” (idem, p. 19). Como diz Bhabha:
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O afastamento das singularidades de ‘classe’ ou ‘ gênero’ como categorias conceituais e organizacionais básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito – de raça, gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno (idem; ibidem).
Assim:
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade (idem, p. 20).
Ainda segundo Bhabha, tais questões se apoiam nas histórias recentes de crises sociais
pautadas pela diferença cultural. E diz, mais uma vez, o autor:
os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, são produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica (idem, p. 20-1).
Nesse sentido, Bhabha está convencido de que o espaço de negociação ocupado pela
periferia em seu modo de expressão e narratividade não é dependente da “persistência
da tradição”, mas “alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das
condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que
estão ‘na minoria’” (idem, p. 21). Como sintetiza o autor:
Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição. Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição ‘recebida’. Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso (idem; ibidem).
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Para Hall, é possível falar de três concepções de identidade componentes da crise do
mundo moderno, a saber: as identidades dos sujeitos do Iluminismo, sociológico e pós-
moderno.
A concepção de sujeito do Iluminismo via o indivíduo como ser autocentrado, em que
razão, consciência e ação compunham a sua própria unidade interior: “O centro
essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (p.11). Tratava-se, pois, de uma
concepção cuja matriz estava particularmente assentada no individualismo moderno
(“do sujeito e de sua identidade”). É o tipo cartesiano de sujeito que emerge no bojo de
importantes mudanças no pensamento e na cultura do ocidente, tais como: Reforma
Protestante, Humanismo Renascentista, revoluções científicas e Iluminismo (Hall, idem,
p. 28). A rigor, uma idéia de sujeito moderno encontra-se configurada nas práticas e
discursos da própria modernidade, como exemplifica Williams: “A emergência de
noções de individualidade, no sentido moderno, pode ser relacionada ao colapso da
ordem social, econômica e religiosa medieval” (Apud Hall, idem, p. 31).
A concepção de sujeito sociológico se firma numa noção de base interacionista sobre a
“complexidade do mundo moderno”, tendente a deslocar a consciência afirmativa de um
caráter autônomo e auto-suficiente do núcleo interior do sujeito para o reconhecimento
do outro e da alteridade das culturas: suas práticas e representações – aqui, “a identidade
é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade” (p.12). Nesta segunda concepção, a
identidade é percebida a partir de uma estreita relação entre campo subjetivo e esfera
pública. Diz Hall a respeito:
O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (...) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (p.12).
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Com isso, a sociologia vai orientar uma nova configuração crítica do sujeito enquanto
contraposição ao tipo cartesiano e seu individualismo exacerbado. Trata-se, pois, do
reconhecimento do indivíduo enquanto participante de um processo de interação social
básica: identificando-se, aí, elementos de escolha e volição, mas, também, de processos
estruturais e normativos centrais à elaboração do discurso sobre o sujeito sociológico –
prisma analítico da idéia relacional de ação e estrutura.
Por fim, a concepção de sujeito pós-moderno vincula-se essencialmente à idéia de
fragmentação da unidade e estabilidade do sentido de identidade do sujeito, que agora é
posta em questão. Aqui, o indivíduo não mais se encontra dotado de uma força
identitária única ou unificada; mas povoado de uma grande variedade de elementos
sinalizadores de identidades: elementos esses de ordem “contraditória”, “não-resolvida”
(p.12-13). Conforme assinala Hall, “mudanças estruturais e institucionais” ocorridas no
mundo moderno, como é o caso mais especificamente do fenômeno de globalização,
não apenas exerceram forte impacto sobre o processo de construção de identidades
culturais, como também, levaram mesmo ao “colapso” aquelas identidades que,
componentes das “paisagens sociais” de fora, “asseguravam nossa conformidade
subjetiva com as “necessidades’ objetivas da cultura” (p.13). Diz o autor: “O próprio
processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades
culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (ibidem).
Assim, a concepção de sujeito pós-moderno pressupõe um campo altamente vulnerável
de construção de identidades que, longe de apresentar qualquer princípio de unidade
mais ou menos fixa e essencialista, mostra-se continuamente mutável “em relação às
formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam”; e conclui o autor:
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O sujeito assume identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’ (p.13-14).
E sentencia:
à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (p.14).
Uma tal fragmentação das identidades e o conseqüente descentramento do sujeito
moderno deveu-se a uma espécie de deslocamento resultante de “rupturas nos discursos
do conhecimento moderno”: o marxismo e o deslocamento da agência individual na
perspectiva estruturalista althusseriana (p. 37-9); deslocamento do “sujeito cognoscente
e racional provido de uma identidade fixa e unificada” na descoberta do inconsciente na
teoria freudiana (p. 39-43); o deslocamento lingüístico em Saussure, que apresenta a
língua como sistema social e não individual, onde: “falar uma língua não significa
apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também
ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em
nossos sistemas culturais” (p. 43-5); o poder disciplinar e suas técnicas de saber/poder
como meio de regulação dos sujeitos através de instituições específicas é um outro
modo de deslocamento identificado por Foucault (p. 45-8); o movimento feminista e
outros movimentos sociais surgidos desde os anos 60 (com sua oposição ao liberalismo
e ao estalinismo; a defesa dos aspectos subjetivos e não só objetivos da política; seu
apelo ao voluntarismo e à espontaneidade, contra o burocratismo; sua recusa da política
tradicional e a procura de construção de identidades políticas e sociais consoantes seus
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campos de referência mais imediatos: mulheres, gays e lésbicas, negros, meio-ambiente)
(p. 48-50).
Com efeito, não se pode falar de identidades culturais, atualmente, sem que haja uma
referência específica a esse sujeito descentrado e fragmentado. Hall ressalta a identidade
nacional como o tipo específico de identidade cultural em que ele está interessado. Sua
opção particular por essa forma de identidade está relacionada ao reconhecimento do
autor de que a identidade nacional, no mundo moderno, talvez seja a principal fonte de
identidade cultural de que dispomos. Entretanto, é bom que se diga, identidades
nacionais são representações formadas e transformadas no âmbito de um sistema de
representação cultural (e de uma esfera política) que nós caracterizamos como nação.
Aliás, o próprio sentido em que a nação deve ser reconhecida é aquele que a caracteriza
como uma comunidade simbólica e como uma comunidade imaginada. Nesse sentido,
pode-se afirmar que o que compõe as culturas nacionais são as instituições culturais, os
símbolos e as representações. Diz Hall:
Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influenciam e organizam tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos (...) As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre ‘a nação’, sentidos com os quais podemos nos identificar, constróem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas (idem, p. 55).
Se, como quer Bhabha, “as nações, tais como as narrativas, perdem suas origens nos
mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente”
(Apud Hall, idem, p. 56), Hall vai identificar cinco elementos principais da narrativa da
cultural nacional. Esses elementos seriam: narrativa da nação (mitos, símbolos, ritos que
representam experiências compartilhadas), narrativa sobre as origens, continuidade,
tradição, intemporalidade (elementos imutáveis, essenciais, contínuos, unificados),
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narrativa da invenção da tradição (práticas rituais ou simbólicas inculcadoras e
reprodutoras de valores e normas comportamentais), narrativa do mito fundacional
(versa sobre as origens remotas da nação, do povo, do caráter nacional), narrativa da
“idéia de um povo ou folk puro, original” (idem, p. 56-60).
Com efeito, o discurso da cultura nacional é ambíguo, num movimento que se desloca
entre o passado e o futuro, entre a busca de um passado glorioso e a marcha para a
modernidade. Entre tendências regressivas e anacrônicas, buscas de uma identidade
pura etc. (idem, p. 60-1). Na verdade, uma cultura nacional não pode ser pensada sem
que se considere a questão da “estrutura de poder cultural”. Em sua maioria, a
homogeneidade da cultura nacional é forjada por tendências hegemônicas de dominação
cultural (idem, p. 65). Como acentua Hall, culturas nacionais são dispositivos
discursivos que representam “a diferença como unidade ou identidade”; sendo sua
unificação resultante de diferentes formas de poder cultural (idem, p. 67). Diz o autor:
as sociedades da periferia têm estado sempre abertas às influências culturais ocidentais e, agora, mais do que nunca (...) A idéia de que esses são lugares ‘fechados’ (...) é uma fantasia ocidental sobre a ‘alteridade’ (...) as evidências sugerem que a globalização está tendo efeitos em toda parte, incluindo o Ocidente, e a ‘periferia’ também está vivendo seu efeito pluralizador, embora num ritmo mais lento e desigual (idem, p. 86).
A globalização, em sua forma recente, vai implicar num processo que se poderia
caracterizar de “compressão espaço-tempo”, que é a aceleração dos processos globais, a
dar a impressão de uma simultaneidade e de um encurtamento das distâncias no mundo
(idem, p. 72-3). Se, como quer Wallerstein, é algo próprio da modernidade as tendências
conflitivas à autonomização e à globalização (Apud Hall, idem, p. 72), é possível
verificar que “o ritmo da integração global” cresce acentuadamente dos anos 70 para cá,
“acelerando os fluxos e os laços entre as nações” e, consequentemente, uma maior
interdependência. Disso resultaria “três possíveis conseqüências”, que Hall apresenta
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como: 1) desintegração das identidades nacionais resultantes da “homogeneização
cultural e do ‘pós-moderno global’”; 2) reforço das “identidades ‘locais’ ou
particularistas”; 3) conseqüente hibridização cultural, em que novas identidades
adquirem a força e o lugar das antigas identidades nacionais (idem, p. 73).
Contrariamente ao que muitas vezes se afirma em relação ao processo de globalização,
como o de um exclusivo processo de homogeneização, “pode-se considerar, no mínimo,
três qualificações ou contratendências principais”: 1) “ao lado da tendência em direção
à homogeneização global, há também uma fascinação com a diferença e com a
mercantilização da etnia e da ‘alteridade’- havendo, pois, um “interesse pelo ‘local’” e
sua diferenciação junto ao “impacto ‘global’”, na “lógica da compressão espaço-
tempo”. O que se dá não é uma substituição do local pelo global, mas um novo tipo de
articulação global-local; 2) há uma desigualdade na distribuição da globalização “entre
regiões e entre diferentes estratos da população dentro das regiões” – há o que pode
chamar de “geometria do poder”; 3) a globalização é predominantemente um
“fenômeno ocidental”, o que pode levar a reconhecer que o seu processo afeta mais a
periferia do que os centros, visto que “a direção do fluxo é desequilibrada, e que
continuam a existir relações desiguais de poder cultural” entre Ocidente e periferia –
“mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto da
compressão espaço-tempo” (idem, p. 83-4).
Há, aqui, um outro aspecto a considerar: o embate entre o que se pode caracterizar por
tradição, de um lado, e tradução, por outro. Com efeito, a tradição vincula-se à
tentativa de recuperação de um passado puro e mitificado, fixo e intemporal; ao passo
que, por tradução, identificam-se processos de hibridização cultural, em que identidades
são concebidas no “plano da história, da política, da representação e da diferença”,
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sendo muito pouco provável o reconhecimento de sua pureza e de sua unidade (idem, p.
94-5).
Em sua análise do capitalismo mundial integrado (CMI), Guattari faz referência à
existência de “um processo geral de desterritorialização”: que existiria por um duplo
movimento – de “extensão geográfica” e de “expansão sobre si próprio” (1981: 211).
Para o autor, o CMI não se caracteriza hoje por uma forma centrada de poder de
decisão, mas, sim, policentrada. Sua tendência, por certo, é a de submeter todo processo
de produção político-econômica, bem como, sócio-cultural, às suas “estruturas de
produção” e “formações de poder”, que o leva a integrar “numerosos sistemas
maquínicos e semióticos ao trabalho humano” (Idem: 212). Procurando estabelecer uma
constante e tensa relação entre o que denomina de molar e molecular (ou seja, entre as
semióticas globais e seus agenciamentos maquínicos e a produção da subjetividade e
agenciamentos do desejo), o autor empenha-se em demonstrar que a multicentragem e
as técnicas de integração presentes no processo de desterritorialização da atual
segmentação do socius, não diz respeito exclusivamente aos aspectos econômicos, mas,
inclusive, àqueles de caráter individual e “mais inconscientes da vida social, sem que
seja possível estabelecer uma ordem de causalidade unívoca entre os níveis planetários e
os níveis moleculares” (p.216).
Atualmente, sob o fenômeno da desterritorialização, seria inócuo refletir as questões de
segmentarização sob a ótica exclusiva das dicotomias primeiro mundo vs. terceiro
mundo ou capitalismo vs. socialismo. Para Guattari, a fim de “manter a consistência da
força coletiva de trabalho em escala mundial”, coexistem hoje áreas de primeiro mundo
em regiões de subdesenvolvimento, assim como, áreas de terceiro mundo em lugares
altamente desenvolvidos (idem). E se esse processo de segmentarização deve ser
buscado agora no interior do espaço; é, com efeito, nesse contexto desterritorializado de
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uma cidade com característica mundial (a cidade-mundo a que se refere Guattari), que
vai se dar todo processo de produção da subjetividade. Ainda uma vez, isto não implica
num processo de homogeneização que leve à liquidação do conflito e da diversidade;
releva apenas o fato de que, na cidade-mundo, as peculiaridades e singularidades se
encontram fortemente perpetradas pelas semióticas globais do CMI (1992: 169-78).
Todavia, é bom não esquecer, Guattari não tende a afirmar um sentido necessariamente
emancipador da produção da subjetividade. Para ele, ela pode ser trabalhada tanto na
direção de processos revolucionários, quanto no sentido de uma conservadora
reterritorialização da subjetividade (Idem: 13). E, mesmo no caso de minorias
progressistas, se não houver, em suas lutas, a implicação de uma constante tensão entre
o molar e o molecular, sua tendência é a de se configurar como gueto, dificultando os
processos de uma mudança social emancipadora (1981: 222).
Uma outra consideração que gostaria de fazer, aqui, a propósito de um quadro atual de
teoria cultural, a partir do qual se possa mais adequadamente investigar a crise do
mundo contemporâneo, diz respeito ao que, em Huyssen (1991), se delineia como a
característica essencial de uma teoria crítica nos termos de uma cultura pós-moderna.
Para Huyssen, a teoria crítica do pós-modernismo se apresentaria, particularmente, pela
manifestação de formas radicais de reconhecimento da alteridade: em termos étnicos, de
gênero, ético-estéticos, ecológicos. Nesse sentido, o pós-modernismo seria uma ruptura
com a modernidade por criticar nela a presença do mesmo ideário contido no
pensamento relacionado à noção de modernização social e industrial, ideologicamente
marcante no positivismo, no evolucionismo clássico e em muitas das subsequentes
teorias do desenvolvimento econômico.
Por isso, o abandono do telos, como primado do que Lyotard chamou de grandes
narrativas, não significa, em Huyssen, assumir uma orientação irracional do nosso
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processo histórico, muito menos afirmar a condição de uma atual configuração de
tempo e espaço em termos de uma pós-história. Ao contrário, significa orientar a
história para o tempo e espaço da memória no cotidiano: é aí que vamos encontrar em
aberto um novo leque de possibilidades criativas atuais (idem).
Para o autor, pode-se falar de quatro fenômenos constitutivos da pós-modernidade
crítica: 1) crítica ao viés imperialista da cultura modernista, marcada pelo ideário de
uma modernização desenfreada; 2) existência de mudanças nas atitudes culturais e na
estrutura social a partir do movimento feminista e dos vários movimentos de minorias;
3) surgimento de preocupações com as questões do meio-ambiente, como ampla crítica
à modernidade e à ideologia da modernização, atingindo desde as subculturas político-
regionais às várias formas de arte; 4) o despertar de uma consciência de outras culturas,
não-ocidentais, e conseqüente retorno ao étnico (p.77-78).
Aliás, Huyssen chama atenção para o fato de que, para além do estardalhaço a propósito
de uma possível amnésia social induzida pela mídia, numa época de provável
enfraquecimento da história, tem-se assistido, ao contrário, ao crescimento de inúmeros
debates sobre a questão da memória: em termos “culturais, sociais e naturais”
(1997:15). Para o autor, o crescimento de tal interesse vai “além da esfera oficial da
política e da cultura”. Diz o autor:
As lutas pelos direitos das minorias estão cada vez mais organizadas em torno de questões sobre memória cultural, suas exclusões e zonas-tabu. Outras memórias e outras histórias ocuparam o primeiro plano nos furibundos debates sobre identidade dos anos 80 e início dos 90 a respeito de gênero, sexualidade e raça. Migrações e transformações demográficas estão pressionando amplamente a memória cultural e social de todas as sociedades ocidentais, e este tipo de debate público é intensamente político. Noções monolíticas de identidade, freqüentemente formadas a partir de uma paranóia conservadora ou de uma vitimologia de esquerda, se chocam com a convicção de que as identidades, nacionais ou outras, são sempre heterogêneas e precisam desta heterogeneidade para continuar viáveis (idem: 15-16).
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Ainda para Huyssen, a verdadeira obsessão pela memória nos dias de hoje, ao invés de
visões esperançosas sobre o futuro, se deve em muito ao colapso das ideologias do
progresso e da modernização, bem como de toda uma tradição de filosofias de
pensamento teleológico “sobre a história” (p.16). Para o autor,
o boom da memória (...) é um sinal potencialmente saudável de contestação: uma contestação do hiperespaço informacional e uma expressão da necessidade humana básica de viver em estruturas de temporalidade de maior duração, por mais que elas possam ser organizadas. É também uma formação reativa de corpos mortais que querem manter sua temporalidade contra um mundo de mídia que esparge sementes de uma claustrofobia sem tempo e engendra fantasmas e simulações. Nesta visão distópica de um futuro high-tech, a amnésia não seria mais parte da dialética entre memória e esquecimento. Ela seria seu “outro” radical, decretando o verdadeiro esquecimento da própria memória: nada para lembrar, nada para esquecer (p.20-21).
Com efeito, creio ser tais considerações algo de fundamental importância para se pensar
um quadro de teoria cultural razoavelmente consistente em termos de uma efetiva
orientação de modelos de investigação dos possíveis fatores da chamada crise de
identidade no mundo contemporâneo: isto numa perspectiva teórico-crítica e de síntese,
mas, também, do que veio a ser caracterizado como os estudos culturais.
Muito se tem discutido sobre um possível deslocamento da discussão de valores em
esferas públicas para a perspectiva das práticas culturais que parecem surgir no mercado
e dele se nutrir. Uma resposta possível, talvez, seja a de se considerar, diante do que
ficou exposto aqui, o que Yúdice (1999) caracteriza como a condição de possibilidade
de uma refuncionalização dos processos culturais, pela entabulação do intercâmbio
cultural dialógico num contexto pós-moderno (p. 306). Tal raciocínio segue a orientação
dada por Canclini ao reconhecer o valor como campo de conflito e negociação de
interpretações, sendo a reconversão dos valores a possibilidade de desconstrução das
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instituições que administram e hierarquizam valores (idem, p. 310). Com isso, Canclini
quer acentuar o caráter de descentralização, segmentação e deslocamento de
comunidades e dos seus meios tradicionais de comunicação, para o reconhecimento da
diversidade das culturas populares e de sua relação com os novos meios audiovisuais:
nessa direção, o popular da etapa nacional-popular na América Latina cede lugar à
sociedade civil e aos novos movimentos sociais. Sendo assim, a sociedade civil passa a
ser o paradigma atual da luta ideológica: só que, agora, fundada em causas particulares e
não globais, além de se apresentarem como mobilizações quase autônomas. Suas
características principais seriam: prioridade à diferença e não à identidade nacional
totalizante; relativa perda de significação dos discursos que legitimam identidades
nacionais e busca de legitimação das causas próprias aos grupos sociais. Esse processo
em que coincidem a dissolução de monoidentidades e a emergência de políticas
multisetorias para a cidadania, leva Canclini a fazer a seguinte afirmação:
As políticas culturais mais democráticas e mais populares não são necessariamente as que oferecem espetáculos e mensagens que chegem à maioria, mas as que levam em conta a variedade de necessidades e demandas da população (1995, p.114)
Desse quadro parece resultar um multiculturalismo que se expressa como contravalor do
esteticismo das camadas médias e das elites e a favor dos subalternos (Yúdice, idem, p.
318). Por outro lado, Yúdice critica o forte culturalismo dos estudos culturais e do
multiculturalismo quando estes exigem uma estética que reflita e reproduza
exclusivamente a matriz cultural do grupo de referência – o que nos levaria a cair na
tendência a uma estética de gueto, com a ilusão de que o desempenho da identidade
cultural necessariamente subverte o status quo (idem, ibidem). Contudo, o que fica de
significativo para nossas reflexões do processo vivido do multiculturalismo, é o
reconhecimento de que o que aí se tem processado são lógicas locais de produção de
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conhecimento, em que os estudos culturais se apresentam como áreas contextualizadas
do saber (Hollanda, 1999, p. 347).
O caminho para se pensar o cinema em contexto periférico deve seguir alguma
orientação que remonte a uma reflexão sobre um debate que assuma uma conotação
menos dualista e que seja capaz como um modelo dialógico capaz de perceber os modos
a partir dos quais os discursos configuram práticas fundamentais para se pensar o tipo
de orientação a ser dado em termos de uma identidade de entre-mundos, para usar a
expressão de Bamba (op. cit), em termos da condição global no cenário histórico do
mundo atual.
Bibliografia
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