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I. INTRODUÇÃO 1
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
I. INTRODUÇÃO
I. INTRODUÇÃO 2
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
I. INTRODUÇÃO 3
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Com o desenvolvimento dos modelos sobre a metacognição e auto-regulação, o
estudo das dificuldades de aprendizagem recebeu, nas últimas décadas, contributos
muito significativos, que alteraram radicalmente modelos, taxonomias e métodos de
investigação (Coplin & Morgan, 1988; Dockrell & McShane, 1992; Lyon, 1994a;
Poplin & Cousin, 1996; Reid, 1993; Reid, Hresko & Sawnson, 1996; Wong, 1985). As
perspectivas mais recentes centram-se cada vez mais no estudo de variáveis pessoais,
cognitivas, metacognitivas e motivacionais. A avaliação e o diagnóstico baseiam-se na
análise funcional de um conjunto cada vez mais vasto de variáveis. Os problemas são
analisados no seu contexto. Consideram-se, em cada caso, factores de risco (e de
protecção), aspectos desenvolvimentistas e critérios de adaptação pessoal do aluno face
a cada situação de aprendizagem. Na prevenção e no apoio, as dificuldades de
aprendizagem surgem agora como dificuldades de adaptação pessoal à situação de
aprendizagem. Procura-se a identificação de atitudes, crenças e estruturas cognitivas
responsáveis pela manutenção de padrões de comportamento inadequados, facilita-se o
desenvolvimento de capacidades de auto-regulação e de resolução dos problemas
(Ashman & Conway, 1997; Campione, 1987; Harris, Graham & Deshler, 1998; Kroese,
Dagnan & Loumidis, 1997; Loper & Murphy, 1985; Paris & Ayres, 1994).
Persiste, no entanto, o debate científico em torno de questões de taxonomia e de
diagnóstico diferencial: quais são os alunos que têm (ou não têm) dificuldades de
aprendizagem? De forma mais radical, alguns autores chegam a afirmar que as
dificuldades de aprendizagem não existem efectivamente enquanto categoria autónoma,
por insuficiente operacionalização, fundamentação e estudo (Finlan, 1994). Mesmo as
definições internacionalmente aceites parecem colocar as dificuldades de aprendizagem
específicas numa classe quase residual, definida mais pela exclusão sistemática de
outros tipos de problemas, do que por uma caracterização objectiva e esclarecedora
(Hammill, 1990).
Em Portugal, os estudos realizados sobre esta problemática parecem ainda
insuficientes. Surgiram nos últimos anos contributos significativos para a clarificação
I. INTRODUÇÃO 4
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
de conceitos ao nível da terminologia, da classificação e do diagnóstico (e.g. Rebelo,
1993; Rebelo, Fonseca, Simões & Ferreira, 1995; Rebelo, Simões, Fonseca & Ferreira,
1995; Silva & Gonçalves, 1997; Simões, Rebelo, Ferreira & Fonseca, 1995; Simões,
1996). No entanto, são ainda muito escassos os dados disponíveis sobre a incidência e
evolução dos problemas de aprendizagem na população portuguesa. A maioria dos
trabalhos publicados refere-se a alunos no 1º ou 2º Ciclos, sendo menos frequentes os
estudos sobre as dificuldades sentidas por alunos do ensino secundário ou superior. O
conceito emergente de necessidades educativas especiais, embora já legalmente
consagrado (Decreto-Lei 319/91 de 23 de Agosto, Despacho 173/ME/91 de 23 de
Outubro) tem ainda um reduzido impacto no meio escolar (Alaiz, Gonçalves &
Barbosa, 1997; Boavida & Barreira, 1992; Correia, 1997; Lobo, 1998; Sanches, 1995)
por falta de formação, meios materiais e humanos. A maioria dos técnicos no terreno
recebeu formação e costuma trabalhar apenas com crianças do 1º Ciclo.
Apesar disso, nos media, na escola e na comunidade, surgem com alguma
frequência referências a um generalizado e crescente insucesso escolar. Correspondem
a impressões intuitivas e provavelmente pouco fundamentadas, fruto de experiências e
impressões subjectivas de pais, professores e alunos, reflexo de concepções e crenças
pessoais culturalmente disseminadas pela população em geral. De facto, com o
alargamento da escolaridade obrigatória e o consequente aumento da população escolar
(Raposo, 1998), a incidência das dificuldades de aprendizagem tende a aumentar em
termos absolutos; por outro lado, as sucessivas reformas curriculares e as
correspondentes alterações nos princípios e nos métodos, nem sempre têm sido bem
entendidas, tanto na escola como na comunidade, nem quanto aos seus pressupostos
nem quanto aos seus objectivos. Muitos são os que avaliam como dificuldade ou
insucesso escolar o que apenas decorre de uma evolução saudável de estratégias
pedagógicas e de opções curriculares.
Na realidade, tanto na comunidade científica como na população em geral,
conhece-se muito pouco sobre o que efectivamente se passa no terreno. Qual é a
incidência das chamadas dificuldades de aprendizagem? Que estratégias de apoio e
complemento são efectivamente implementadas? Como evoluem essas dificuldades ao
longo do tempo? Qual é a perspectiva pessoal dos alunos? E dos professores? Qual é a
perspectiva que, em termos de senso comum, existe na escola e na comunidade?
I. INTRODUÇÃO 5
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Neste domínio, muitos dos trabalhos publicados, em Portugal na última década,
são reflexo do interesse e preocupação pelas dificuldades escolares, mas não as
analisam directamente. São estudos que abordam, por exemplo, as percepções de valor
próprio e de competência em crianças de 2º Ciclo com problemas emocionais
(Filgueiras, 1996), a concepção de inteligência nos professores (Mettrau & Almeida,
1996), as atitudes dos alunos face à escola (Candeias, 1996; 1997), a representação da
escola pelos alunos, pais e professores (Santiago, 1996), ideias parentais sobre o
desenvolvimento e a aprendizagem (Castro, 1977), crenças parentais sobre a educação
e dificuldades de aprendizagem (Ventura & Monteiro, 1997). Na generalidade, quase
todos estes estudos, ou se inserem no quadro teórico da psicologia social ou têm por
base modelos sociocognitivos, centrando-se fundamentalmente na análise de formas
pessoais de pensar e conceber ou no estudo de representações sociais.
Todos parecem reflectir, no entanto, algumas das mais recentes orientações dos
estudos em Psicologia Cognitiva1. Reflectem um mesmo princípio construtivista: a
noção básica de que todos os intervenientes no processo de ensino-aprendizagem são
construtores de realidades, de significados (Glasersfeld, 1995). Portadores de conceitos,
preconceitos, expectativas e valores, vão para além de um mero processamento da
informação, em função da sua vivência e da cultura em que se inserem. Os seus
comportamentos e as suas opções podem ser influenciados por concepções e crenças
pessoais sobre o que é aprender, sobre os processos de conhecimento, sobre a
influência e papel das dificuldades de aprendizagem (Bruner, 1996; Schommer, 1994b;
Weinstein & Shell, 1997).
As dificuldades de aprendizagem começam a ser entendidas, não tanto como
problemas individuais e específicos, de classificação e etiologia complicada, antes
como entidades complexas, inseparáveis do contexto (intra-individual e social). Na
investigação e no apoio educacional, torna-se essencial um estudo mais cuidadoso
sobre as perspectivas pessoais dos próprios alunos, dos colegas, dos pais e dos
professores.
1 "uma revolução cognitiva renovada – uma abordagem mais interpretativa da cognição
centrada na “criação de significado” que tem estado a desenvolver-se, estes últimos anos, na
antropologia, na linguística, na filosofia, na teoria literária, na psicologia e, segundo parece, em toda a
parte para onde quer que se olhe" (Bruner, 1997, p.15).
I. INTRODUÇÃO 6
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
De um modo geral, de acordo com uma perspectiva construtivista, a
aprendizagem pode ser definida como uma "construção pessoal resultante de um
processo experiencial, interior à pessoa, e que se traduz por uma modificação de
comportamento relativamente estável" (Tavares & Alarcão, 1989). Nesta perspectiva,
alunos e professores chegam às situações escolares já com conhecimentos prévios,
conhecimentos por vezes pouco precisos, por vezes incorrectos, intuitivos ou
aprendidos no contexto social e cultural. Numa perspectiva de aprendizagem como
construção, esses esquemas e conceitos são o alicerce de novas aprendizagens. Mas o
processo é pessoal, interno ao próprio aluno, mediado por significados, estruturas,
motivos e emoções, orientado por objectivos, estratégias cognitivas e metacognitivas,
na interacção com o grupo, com a situação, num espaço socio-cultural.
Trata-se por isso de um processo complexo, naturalmente sujeito a dificuldades,
que cada aluno pode aprender a gerir e a superar com maior ou menor eficácia, apoiado
em conhecimentos e experiências metacognitivas, em função das suas próprias
capacidades de auto-observação e de auto-regulação (Flavell, 1979, 1981, 1987;
Simons, 1996; Schunk & Zimmerman, 1994; Weinstein & Stone, 1996). No entanto,
muitas dessas dificuldades subsistem e persistem, associadas a um vasto leque de
variáveis, pessoais e situacionais (Winne & Butler, 1996).
Neste sentido, uma perspectiva cognitivo-construtivista sobre a aprendizagem
sugere uma série de questões fundamentais sobre algumas das mais referidas causas de
insucesso escolar. Por exemplo:
• sofrem os alunos de um excessivo número de dificuldades de aprendizagem
que persistem porque são insuficientemente apoiadas?
• ou, pelo contrário, são insuficientes as oportunidades de conflito cognitivo e
de confronto pessoal com as dificuldades inerentes a qualquer percurso de
aprendizagem?
É certamente uma falsa oposição dado que as duas alternativas podem coexistir,
interagir e encontrar fundamento em princípios comuns. Mas se o aluno se vê a si
mesmo como um receptor passivo de informação, espera que o saber lhe seja
transmitido de uma forma que não crie dificuldades. Quando estas surgem, é mais
provável que se sinta impotente, na dependência de um apoio exterior que resolva o
problema. Por outro lado, se o professor conceptualiza o aluno como um receptor
I. INTRODUÇÃO 7
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
passivo, espera que ele receba a informação sem dificuldades nem problemas. Ao
mostrar, dizer ou ensinar alguma coisa a alguém parte-se normalmente do pressuposto
que o outro não sabe ou sabe mal, e que pode aprender se lhe for dito, ensinado. Em
ambos os casos, as dificuldades podem ser percepcionadas como erros, insuficiências
do sistema ou do aluno.
Quando a aprendizagem é concebida como um exercício de absorção e
acumulação de informação dada (ensinada) para uma apreensão passiva e imediata,
quando assim é, muitas práticas ou actividades pedagógicas de inspiração
construtivista, parecem perder todo o seu significado. Quando professores e alunos
pensam deste modo, parece difícil que compreendam a necessidade de correr alguns
riscos (problematizar, questionar, reflectir), ou a necessidade de sentir e resolver as
dificuldades e os problemas inerentes a qualquer processo de aprendizagem. Parece
difícil, por exemplo, que professores e alunos valorizem e se envolvam em actividades
para o desenvolvimento de competências de auto-regulação. E provavelmente não fará
qualquer sentido tentar ensinar (ou aprender) pela descoberta ou com base na resolução
de problemas.
Isto é, tal como a interacção com os outros, também a interacção com as tarefas
de aprendizagem é influenciada por teorias intuitivas sobre si próprio, sobre o
funcionamento mental, sobre o ensino e a sobre a aprendizagem (e.g. Wittrock, 1986).
Na perspectiva do professor "the general point is clear: assumptions about the mind of
the learner underlie attempts at teaching. (...) teacher's conception of a learner shapes
the instruction." (Bruner,1996, p.48).
O conceito de "folk pedagogy", enfatizado por Bruner (ob. citada), estende este
esforço de auto-reflexão e de descentração a novas áreas. Não basta que os professores
saibam o que as crianças fazem (ou devem fazer) para aprender. Precisam também de
reflectir sobre o que os alunos pensam que fazem, situar-se na perspectiva do aluno, e
tentar entender tanto quanto possível a origem, potencialidades e limites das suas
próprias concepções (Gardner, 1991). Os alunos podem assumir maior responsabilidade
pelo seu pensamento, pela sua aprendizagem, se forem ajudados a evoluir de um
realismo ingénuo para uma maior compreensão do papel das suas crenças e concepções
sobre si próprios e sobre o mundo (Bereiter & Scardamalia, 1993, citados por Bruner,
1996).
I. INTRODUÇÃO 8
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Na sequência dos estudos sobre metacognição e auto-regulação, este
aprofundamento sobre a perspectiva intrapessoal dos sujeitos (pensar como se pensa,
como se pode pensar, reflectir sobre conceitos e significados pessoais) tem vindo a
concretizar-se em três grandes vias de investigação, com influência específica no
domínio da Psicologia Educacional: a) o desenvolvimento de teorias da mente na
infância (Astington, Harris & Olson, 1988; Bartsch & Wellman, 1995; Flavell, 1986);
b) o estudo da psicologia do senso comum (Forguson, 1988, 1989), "folk psychology"
(Bruner, 1996, 1997; Clark & Millican, 1996; Haselager, 1997), teorias implícitas
(Sternberg, 1986), "lay beliefs" (Furnham & Henley, 1988); "inert knowledge"
(Bereiter & Scardamalia, 1987); c) os estudos sobre aprendizagem de conceitos
científicos (Glynn, Yeany & Britton, 1991; Mintzes, Vandersee & Novak, 1998;
Vosniadou, 1994, 1996; Welford, Osborne & Scott, 1996).
No âmbito da investigação sobre a aprendizagem de conceitos científicos, têm
surgido nos últimos anos trabalhos sobre conceitos específicos no domínio da Física, da
Biologia, da Geografia e da História (Furnham, 1992; Halldén, 1993; Lichtfeldt, 1996;
Stahly, Krockover & Shepardson, 1999; Wood-Robinson, 1991). Procuram-se e
identificam-se ideias intuitivas ou de senso comum, ideias que os alunos possuem sobre
cada um desses conceitos antes de receberem instrução formal. Definem-se níveis de
desenvolvimento conceptual, estudam-se os processos de modificabilidade cognitiva,
testam-se procedimentos instrucionais mais facilitadores de mudanças estruturais, e de
uma aprendizagem mais profunda e generalizável. Compreender conteúdos científicos
requer a reelaboração do conhecimento anterior num nível conceptual superior (Novak,
1998), uma apreensão da estrutura do conhecimento (Bruner, 1999), a identificação de
conceitos nucleares (Carey, 1986). Compreender a natureza do conhecimento científico
requer também alguma compreensão dos pressupostos epistemológicos do
conhecimento científico, e um conhecimento aprofundado sobre métodos e limitações
da investigação científica (Leach, 1996).
Alguns estudos sugerem que, quando os alunos partem com concepções
erróneas quer sobre a natureza da ciência e do conhecimento científico, quer sobre
estratégias de aprendizagem de conceitos científicos, o que efectivamente acabam por
retirar do curso é muito diferente do esperado (Driver, Leach, Millar & Scott, 1996;
Redish, Steinberg & Saul, 1996). Os dados conhecidos sugerem igualmente que estes
I. INTRODUÇÃO 9
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
pressupostos e conceitos intuitivos são especialmente resistentes à mudança, e podem
persistir mesmo depois de um período de instrução formal.
Na investigação sobre a aprendizagem de conceitos científicos, só alguns
estudos têm incidido sobre a aprendizagem de conceitos nucleares no domínio da
Psicologia Educacional, sobre a aprendizagem de conceitos tais como: aprendizagem,
motivação, cognição ou sucesso. Se em Biologia, Física, Geografia ou História,
importa indagar (e compreender) algumas concepções e ideias prévias dos alunos sobre
os conceitos em estudo, supõe-se que algo de similar pode (deve) ocorrer noutros
domínios curriculares, nomeadamente, no ensino da Psicologia e da Psicologia
Educacional. Quer se trate do ensino (ao nível secundário ou universitário) ou da
formação (inicial ou contínua) de professores, parece fundamental perguntar: que
crenças, concepções e ideias prévias trazem consigo os alunos em formação? Que
pressupostos e que conceitos foram adquirindo intuitiva e culturalmente? Como
pensam sobre o que se pensa em Psicologia? Até que ponto acreditam na veracidade e
na aplicabilidade desses saberes de senso comum?
Neste domínio, alguns estudos têm analisado crenças e concepções de
aprendizagem de estudantes universitários, com amostras retiradas de cursos de
Psicologia, Psicologia Educacional ou Medicina, ou de outros cursos no âmbito da
formação de professores (Biggs & Moore, 1993; Dahlgren, 1997; Duarte, 2000;
Marton, 1988; Lonka, Joram & Brysson, 1996; Lonka & Lindblom-Ylänne, 1996;
Rego, 1999; Saljö, 1979, citado por Stevenson e Palmer, 1994). Noutros casos,
analisam-se as ideias de crianças sobre a aprendizagem e sobre o conhecimento (e.g.
Ayala & Martín, 1997; Pramling, 1988; Zelan, 1991); investigam-se as concepções de
aprendizagem de estudantes adolescentes, no contexto da sala de aula (Berry &
Sahlberg, 1996); descrevem-se ideias pessoais de alunos e professores sobre a
deficiência mental (Kassar, 1995; Lewis, 1995). De modo geral, os resultados destas
investigações sugerem que é possível descrever e discriminar diferentes modos de
conceptualizar a aprendizagem e o conhecimento, de um ponto de vista pessoal e
intuitivo. E, embora as definições pessoais sobre os processos de aprendizagem
pareçam, nalguns casos, desenvolver-se com o tempo e com a instrução, parece
importante repensar os processos pedagógicos de ensino e de formação, facilitando a
auto-reflexão e a modificabilidade conceptual (Lonka & Ahola, 1995). Sem esse
esforço, as concepções informais de leigos ("laypeople"), estudantes e professores,
I. INTRODUÇÃO 10
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
permanecem, por vexes, muito próximas das dos primórdios da psicologia. Por
exemplo, a generalidade das pessoas tem sobre a mente uma concepção de espaço
físico, onde memórias e objectos se arrumam como objectos num armazém (Carey,
1986).
Lonka, Joram & Brysson (1996), sugerem que as dificuldades de reforma de
qualquer sistema escolar podem ser relacionadas com estes dados. Quando se fala de
ensino e de aprendizagem, investigadores, professores, pais, podem estar a referir-se a
ideias muito diferentes, com base em diferentes concepções pessoais, em diferentes
princípios epistemológicos. Uma mesma reforma curricular pode ser entendida e
concretizada de formas muito diferentes. Do mesmo modo que, na sala de aula, alguns
professores esperam que os alunos aprendam tal como lhes é dado ensinar, também o
legislador e a opinião pública acreditam na prescrição e aplicação de reformas
curriculares, tal como lhes é dado reformar.
No contexto da sala de aula ou ao nível mais global do sistema educativo, se
técnicos, professores e alunos não explicitarem, não partilharem pressupostos
epistemológicos e conceitos nucleares, se se mantiverem ocultas diferentes concepções
pessoais sobre o que é aprender, o que é avaliar, o que é um bom aluno, ou sobre o que
significa, por exemplo, sentir dificuldades de aprendizagem, se assim for, como tantas
vezes parece ser, tudo pode mudar sem que nada realmente mude. Há em cada pessoa,
como em todos os sistemas complexos, uma espécie de sistema imunitário, que se
defende, absorve e faz inerte, tudo o que for reconhecido como diferente e exterior ao
sistema.
Por exemplo, Dweck e Leggett (1988) sugerem que, nas situações de
aprendizagem em que surgem dificuldades, os estudantes reagem cognitiva e
atitudinalmente de forma diferente em função de diferentes objectivos e padrões
motivacionais, mas também em função de diferentes teorias implícitas sobre a
inteligência. Muitos outros estudos sugerem que as crenças sobre o conhecimento e
sobre a aprendizagem podem constituir um bom preditor das reacções e do desempenho
dos estudantes em tarefas de compreensão da leitura (Perry, 1970; Ryan, 1984;
Schommer, 1990).
I. INTRODUÇÃO 11
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Em síntese, pode considerar-se que a investigação psicológica sobre o
desenvolvimento epistemológico se desenvolveu desde os anos 50, em torno de três
grandes vias de investigação (Hofer & Pintrich, 1997):
a) estudos sobre o modo como cada pessoa interpreta as suas experiências
educacionais (Belenky, Clinchy, Goldberger & Tarule, 1986; Goldberger, Tarule,
Clinchy & Belenky, 1996; Perry, 1970);
b) estudos centrados no modo como os pressupostos epistemológicos influenciam os
processos de raciocínio (Kitchener, Lynch, Fischer & Wood, 1993);
c) estudos que relacionam as crenças epistemológicas com as tarefas de aprendizagem
no contexto da sala de aula (Ryan, 1984; Schommer, 1990, 1993, 1994a, 1994b;
Schommer, Crouse & Rhodes, 1992; Schommer & Dunnell, 1994; Schommer &
Walker, 1995; Schommer, Calvert, Gariclietti & Bajaj, 1997).
De entre estas, considerou-se especialmente relevante para este trabalho o
conjunto de investigações conduzidas por Schommer, ao longo da década de 90. Esta
autora desenvolveu toda uma sequência de estudos relacionando crenças
epistemológicas e processos de aprendizagem do aluno. Iniciou o seu próprio projecto
de pesquisa tendo como referência os dados e os questionários de Perry (1968, citado
por Schommer, 1990) e alguns resultados de estudos anteriores no domínio da
compreensão da leitura (Schommer & Surber, 1986). Desenvolveu um Questionário
Epistemológico que permite um estudo das crenças epistemológicas mais normativo e
quantitativo do que os anteriores (quase sempre com base em entrevistas para análise
qualitativa). Além disso, sugeriu que as crenças epistemológicas não fossem
concebidas de uma forma unidimensional, nem associadas a uma sequência fixa de
estádios de desenvolvimento. Ao contrário, propôs um sistema de crenças complexo,
constituído por cinco dimensões: estrutura, certeza, origem do conhecimento, controle e
velocidade de aquisição do conhecimento. Algumas destas dimensões podem ser de
grande importância na identificação de crenças epistemológicas com influência no
comportamento de professores e de alunos em situações de dificuldades de
aprendizagem.
I. INTRODUÇÃO 12
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Neste trabalho, pretende-se essencialmente, estudar e descrever, crenças e
concepções pessoais, intuitivas ou de senso comum, sobre Dificuldades de
Aprendizagem. Como pensam alunos e professores sobre os obstáculos, no processo de
aprendizagem? Como os definem, concebem, explicam? Como relacionam dificuldades
e sucesso? Que crenças pessoais foram desenvolvendo sobre a frequência, persistência
e evolução das dificuldades de aprendizagem?
Com este objectivo em mente, parece necessário estudar outras variáveis que se
supõem relacionadas: crenças epistemológicas (Schommer, 1990, 1993, 1994a, 1994b)
e concepções pessoais sobre a aprendizagem e o ensino (Bruner, 1996; Lonka, Joram &
Brysson, 1996). Pressupõe-se que diferentes modos de pensar sobre a natureza e
estrutura do conhecimento, diferentes concepções pessoais sobre o que é aprender e
sobre o que constitui uma dificuldade de aprendizagem, se possam relacionar com
diferentes formas de reacção pessoal perante essas mesmas dificuldades. Algumas
formas de pensar sobre uma dificuldade pessoal ("não vou conseguir fazer isto! vou
falhar outra vez...") podem, por exemplo, inibir a utilização de estratégias de
aprendizagem mais eficazes e adaptadas a cada situação escolar (Meichenbaum, 1977,
citado por Brown, Bransford, Ferrara & Campione, 1983).Neste caso, parece necessário
estudar formas que facilitem a inserção de procedimentos de auto-monitorização, de
disputa e reestruturação cognitiva de auto-verbalizações desadaptativas, em programas
para a prevenção e remediação do insucesso escolar (Reid, 1996b).
Numa perspectiva mais ampla, considera-se fundamental, reflectir e investigar
sobre procedimentos e estratégias de intervenção educacional mais eficazes para o
desenvolvimento e modificação de crenças e concepções pessoais. Tais procedimentos
podem ter aplicação ao nível do ensino das ciências, ao nível da formação de
professores, em psicoterapia e no apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de
aprendizagem. Pretende-se igualmente um estudo transversal do modo como evoluem
as concepções pessoais sobre dificuldades de aprendizagem em diferentes momentos
do percurso escolar. Será estudada a interacção entre esse desenvolvimento e a
instrução formal sobre os conceitos nucleares em estudo (aprendizagem, dificuldades
de aprendizagem), em alunos em dois níveis de escolaridade (secundário e
universitário).
I. INTRODUÇÃO 13
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1. Concepções científicas sobre Dificuldades de
Aprendizagem.
I. INTRODUÇÃO 14
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
I. INTRODUÇÃO 15
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1. Concepções científicas sobre Dificuldades de Aprendizagem.
Este capítulo procura sintetizar alguns dos aspectos fundamentais de uma
perspectiva científica sobre as Dificuldades de Aprendizagem. Sobretudo nas últimas
décadas do Século XX, a Psicologia Educacional, a Psicologia Cognitiva e a
Neuropsicologia registaram inúmeros contributos para a definição de um conceito que
se tem revelado particularmente difícil e pouco consensual.
O capítulo contem três secções distintas, que abordam respectivamente: o
desenvolvimento de diferentes concepções científicas, numa perspectiva longitudinal;
algumas relações com outros conceitos fundamentais, numa perspectiva transversal; e,
por fim, alguns procedimentos para a intervenção.
Numa perspectiva longitudinal, descreve-se o modo como tem vindo a evoluir
ao longo do tempo a perspectiva científica sobre o conceito de Dificuldades de
Aprendizagem, identificam-se pressupostos comuns e lacunas conceptuais. Apontam-se
também, algumas das questões que mais recentemente têm vindo a orientar a
investigação científica neste domínio.
Numa perspectiva transversal, analisam-se algumas relações fundamentais que
podem contribuir para uma melhor delimitação deste conceito, numa perspectiva
cognitivo-construtivista. Mais especificamente, esta secção propõe uma reflexão que
relaciona: metacognição, auto-regulação e sucesso no contexto escolar.
Numa perspectiva interventiva, enumeram-se princípios e pressupostos de
intervenção e alguns programas que podem contribuir para a prevenção e remediação
de Dificuldades de Aprendizagem.
O capítulo tem a seguinte estrutura:
1.1 Evolução do conceito de dificuldade de aprendizagem.
1.2 Metacognição, auto-regulação e sucesso escolar.
1.3 Intervenções psicopedagógicas para o desenvolvimento de competências de
auto-regulação: o papel das concepções e crenças pessoais.
I. INTRODUÇÃO 16
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
I. INTRODUÇÃO 17
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1. 1. Evolução do conceito de dificuldade de aprendizagem.
O estudo científico do conceito de dificuldade de aprendizagem (“learning
disability”2) tem vindo a sofrer profundas mutações, tanto pela evolução dos
pressupostos teóricos subjacentes como por sucessivas alterações na sua definição,
operacionalização e delimitação, bem como pelo desenvolvimento de novos
procedimentos metodológicos. A diversidade de modelos, uma relativa (e
mundialmente reconhecida) imprecisão conceptual, a coexistência de múltiplos
sistemas de classificação, a multiplicação de estudos empíricos e de propostas de
intervenção educacional, tudo isto tem dificultado uma percepção global e unificada
deste domínio. Para o cientista ou para o leigo, tentar aprender no domínio das
dificuldades de aprendizagem é em si mesmo fonte de muitas dificuldades. Por outro
lado, a formação dos técnicos e professores de apoio parece continuar a ser pouco
especializada e específica. A partir de uma formação de base genérica e polivalente,
cada técnico tem, muitas vezes, que prosseguir como autodidacta. Com o aumento do
tempo de escolarização e o alargamento da população escolar, esta é uma tarefa cada
vez mais necessária, um desafio estimulante na vontade de encontrar respostas e de
ultrapassar inúmeros obstáculos.
Os estudos e modelos teóricos inicialmente desenvolvidos segundo uma
orientação essencialmente médica, evoluíram progressivamente para o campo da
psicologia e da educação (Poplin, 1988b). Década após década, pode reconhecer-se a
influência sucessiva de quatro grandes perspectivas sobre as dificuldades de
2 Neste capítulo descreve-se de forma breve a evolução deste conceito e o modo como foi
ganhando diferentes significados ao longo do tempo. Esses significados podem traduzir-se por diferentes
designações em língua portuguesa. A utilização do termo original inglês, sem tradução, pretende apenas
situar o leitor no campo, de forma geral, antes de uma análise mais detalhada de alternativas conceptuais e
de tradução. Posteriormente serão analisados alguns dos problemas na tradução deste conceito para língua
portuguesa.
I. INTRODUÇÃO 18
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
aprendizagem: modelo médico, modelo do processamento psicológico, modelo
comportamental e modelo das estratégias cognitivas.
I. Modelo médico
Nos anos 50 a generalidade dos estudos publicados no domínio das dificuldades
de aprendizagem enfatizava a avaliação e o tratamento de sintomas neurológicos.
Distinguia-se entre lesão (por causas exógenas) e deficiência mental (por causas
endógenas). A avaliação incluía o EEG ou a interpretação neurológica de baterias de
avaliação psicológica (WISC, por exemplo). O tratamento podia incluir a prescrição de
fármacos e a instrução destes alunos decorria em ambientes muito estruturados e
assépticos (quase hospitalares). Alguns destes ambientes eram partilhados com alunos
com deficiência mental ou vítimas de lesões traumáticas3. A instrução incidia no treino
de aptidões motoras básicas, com o objectivo de permitir ao aluno um funcionamento
mais adequado em comunidade, normalmente em instituição ou noutro tipo de
ambiente protegido. Este tipo de treino, de carácter tão básico e específico, não
correspondia às necessidades específicas dos alunos com distúrbios de aprendizagem,
contribuindo muitas vezes para acentuar a sua dependência e insuficiente estimulação.
E, no entanto, ainda hoje este tipo de explicação “médica”, supondo a existência de um
qualquer tipo de patologia (fisiológica, neurológica ou mental), aparece com alguma
frequência, difundido pelos media4, referido ou solicitado por pais e educadores.
3 Em Portugal, é ainda possível encontrar instituições públicas e privadas onde a instrução
especializada ministrada a alunos com distúrbios de aprendizagem parece indistinta da ministrada a outras
crianças com outro tipo de problemas, englobando no chamado “ensino especial” situações muito
diversas: deficiência mental, deficiência sensorial, problemas psicomotores, doenças crónicas que
prejudicam o processo de aprendizagem, etc.. 4 “Um grupo de cientistas de vários países detectou, pela primeira vez, um gene responsável pela
dislexia, uma desordem de aprendizagem relativamente comum. Este não deverá ser o único gene
responsável por esse problema, mas é o primeiro a ser identificado, provando que alguns casos da doença
têm origem genética. (...) A dislexia é uma afecção relativamente vulgar que se manifesta através de
dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita. As pessoas atingidas costumam ter uma inteligência
média ou mesmo acima da média, mas têm dificuldades na manipulação das palavras. (...) A doença
atinge uma em cada 20 crianças, e causa importantes deficiências de aprendizagem em cinco a dez por
cento das crianças em idade escolar.” (In “Público” de 7 de Setembro; Sá, 1999)
I. INTRODUÇÃO 19
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
II. Modelo do processamento psicológico
Nos anos 60, tinha-se já tornado aparente a impossibilidade de utilizar provas e
testes neurológicos para distinguir entre alunos com e sem distúrbios de aprendizagem.
Esta dificuldade sugeriu o aparecimento de uma designação mais subtil, “disfunção
cerebral mínima”, tão mínima e imperceptível que se aceitava quase sempre como
impossível de detectar e diagnosticar de forma concludente. A designação “learning
disabled” surge também por esta altura (Kirk, 1962, citado por Poplin, 1988b). O
diagnóstico dos alunos com deficiências no processo de aprendizagem passava
gradualmente do consultório médico para o gabinete de psicologia. Centrava-se na
avaliação de processos psicológicos e de competências escolares básicas. Nos Estados
Unidos e em alguns países europeus começavam a proliferar os testes e materiais de
apoio, com professores cada vez mais especializados. O treino incidia no
desenvolvimento de competências de pré-requisito, que se supunham condição
necessária para cada aprendizagem escolar. A par de alguma medicação, a instrução
podia incluir métodos de integração sensorial, treinos de competências psicomotoras ou
psicolinguísticas, incluindo exercícios de discriminação visual e auditiva, o
desenvolvimento da lateralidade e da coordenação visuomotora, treinos de memória e
de competências de organização grafoperceptiva.
Nesta perspectiva, o diagnóstico e o treino reflectem exclusivamente as
necessidades dos alunos do 1ºciclo do Ensino Básico, e incidem sobretudo em
dificuldades de leitura, escrita e cálculo. O objectivo já não é o de desenvolver a
adaptação a uma comunidade terapêutica específica mas o de favorecer a integração na
escola, assegurando um nível mínimo de aquisições escolares, saber ler, escrever e
contar. Com materiais e profissionais cada vez mais especializados, procura-se o treino
sistemático de todos os elementos e pré-requisitos necessários às aprendizagens
escolares básicas, em meio escolar (Condemarin & Blomquist, 1989; Fonseca, 1984;
Pereira, 1995).
I. INTRODUÇÃO 20
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
III. Modelo comportamental
Na década de 70, a perspectiva comportamental exerce uma forte influência.
Nesta perspectiva, a avaliação e a instrução de alunos com dificuldades de
aprendizagem deve centrar-se, não em pré-requisitos formulados de uma forma
hipotética, mas sim em aspectos específicos do comportamento do aluno que
influenciem directamente o seu desempenho escolar. Deste modo, as dificuldades e
insuficiências observadas em cada aluno devem ser descritas de forma específica,
objectiva e observável. Os objectivos pedagógicos a alcançar devem ser descritos por
parâmetros de comportamento observáveis, os testes e provas de avaliação devem
respeitar e permitir a comparação com esses critérios. Isto é, quando se verifiquem
insucessos (deficiências no desempenho de um aluno) o seu comportamento pode ser
alvo de uma análise específica, centrada na determinação de comportamentos em
excesso (que pela sua presença prejudicam o desempenho escolar do aluno) e de
comportamentos em défice (que pela sua ausência dificultam ou inviabilizam um
desempenho escolar adequado). A eliminação ou o incentivo, respectivamente, de
qualquer destes comportamentos, depende de uma correcta análise funcional. Designa-
se deste modo o estudo objectivo das relações entre cada comportamento e a situação
envolvente, tanto ao nível dos estímulos que o antecedem como das consequências que
o mantêm. Uma análise funcional do comportamento permite determinar de forma
precisa e objectiva que elementos favorecem e reforçam a manutenção dos
comportamentos inadequados, e que elementos seria necessário introduzir no ambiente
do aluno para facilitar a emergência de outros mais adequados.
Esta análise funcional do comportamento do aluno na situação de aprendizagem
pode ainda ser complementada por uma análise objectiva das tarefas que lhe são
solicitadas (Kaplan, 1991). Esta análise visa em primeiro lugar, a determinação de
objectivos, isto é, uma definição operacional, objectiva do que se espera do
comportamento de cada aluno. A análise prossegue com uma comparação entre estes
comportamentos desejados e os comportamentos actualmente observados no aluno. E
analisando as diferenças, é possível definir um conjunto de condições necessárias à
melhoria do comportamento do aluno (pré-requisitos) que a intervenção deve
incrementar no contexto de uma sala de aula regular.
I. INTRODUÇÃO 21
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
IV. Modelo das estratégias cognitivas (e de aprendizagem).
Na perspectiva do modelo das estratégias cognitivas, a intervenção deve centrar-
-se no ensino e promoção dos processos estratégicos necessários à realização das
diversas tarefas escolares. Ensinaram-se, inicialmente, técnicas de estudo específicas
(“skills mouvement”).
Com o desenvolvimento da Psicologia Cognitiva (processamento da
informação, ciência cognitiva, metacognição), a perspectiva sobre as dificuldades e
distúrbios de aprendizagem foi sendo directamente influenciada pela investigação em
diferentes áreas: estilo de aprendizagem, estilo cognitivo, metamemória, compreensão
do texto, composição escrita, atribuição causal, motivação, etc.. Nesta perspectiva,
sugere-se que os comportamentos do aluno associados às dificuldades não decorrem
simplesmente das suas aptidões ou ambientes de aprendizagem, porque sofrem a
influência de todo um conjunto de mediadores e variáveis cognitivas (Ashman &
Conway, 1993; Almeida, 1998; Reid, Hresko & Swanson, 1996; Sousa, 1998;),
nomeadamente: bases de conhecimento; desenvolvimento e capacidades cognitivas;
motivação, afectos e percepções pessoais; auto-regulação, coordenação e gestão de
planos e métodos de estudo, em função de condições específicas de ensino e de
aprendizagem.
Nesta perspectiva, os insucessos e dificuldades no processo de aprendizagem
são descritos, analisados e explicados com base nos mesmo pressupostos e variáveis
que a própria aprendizagem. Qualquer aprendizagem, bem ou mal sucedida, pode ser
explicada pela conjunção e interacção de um diversificado conjunto de características
pessoais do próprio aluno, do professor, e o modo como abordam e interpretam o
contexto e o currículo (Ashman & Conway, 1997). A presença de algumas dessas
características e condições tendem a favorecer uma aprendizagem bem sucedida (por
ex.: flexibilidade e facilidade de adaptação a novas situações); pelo contrário, a
omissão ou ausência de algumas dessas características (ou a presença de características
antagónicas) tende a prejudicar a aprendizagem e a gerar situações de insucesso.
I. INTRODUÇÃO 22
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Constata-se que os estudos no domínio das dificuldades de aprendizagem foram
evoluindo à medida que foram evoluindo os métodos de avaliação e os pressupostos
teóricos noutras áreas da Psicologia e da Educação. Reflectem ainda desenvolvimentos
noutros domínios da Psicologia, da Psicologia Cognitiva à Psicologia Clínica.
Reflectem também outras evoluções no domínio da educação, da avaliação e do
currículo.
Embora estes quatro modelos sobre o conceito de “learning disability” tenham
surgido em sucessão, década após década, de alguma forma todos continuam a
coexistir, tanto na comunidade científica como no meio escolar e social. No entanto,
alguns autores sugerem que, no essencial, quase nada distingue realmente estas quatro
perspectivas (Kavale & Forness, 1985; Poplin, 1988a). Foi sugerido que todas têm em
comum uma excessiva simplificação dos processos de aprendizagem (Poplin, 1988b) e
que todos estes modelos parecem prejudicados por uma insuficiente fundamentação
paradigmática (Kavale & Forness, 1985).
Pensando desta forma, não devem ser descritos como quatro modelos
diferenciados mas apenas como quatro momentos de um mesmo contínuo, por
influência da evolução observada noutras áreas de investigação. Podem até reflectir
diferentes modos de conceber a aprendizagem, evoluindo de uma perspectiva
psicofisiológica para outras perspectivas de determinismo ambiental ou recíproco. Mas
as semelhanças, por exemplo, quando ao modo de conceber as próprias dificuldades de
aprendizagem, são múltiplas e surgem em aspectos fundamentais. Podem até ser
consideradas como mais significativas do que as diferenças.
Isto é, uma análise mais profunda, sugere que os estudos das diferentes fases ou
modelos, podem distinguir-se entre si mais por diferenças metodológicas do que por
diferenças paradigmáticas. Mais por diferenças formais de designação ou formulação
do que por diferenças conceptuais. Podem ter evoluído os nomes e os processos de
avaliação mas não parece ter mudado de forma significativa o modo de conceber a
natureza, a origem e a persistência dos vários problemas associados à aprendizagem,
quer se trate de distúrbios específicos ou de qualquer outro tipo de dificuldade. As
diferenças são o reflexo de alterações ao nível dos procedimentos e isso não basta para
mudar o essencial nesta área de estudos. Apesar das diferenças metodológicas ou de
foco, todos estes modelos parecem partilham alguns pressupostos fundamentais.
I. INTRODUÇÃO 23
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Indicam-se em seguida alguns dos aspectos que parecem comuns a todos os
modelos:
• o pressuposto básico de que alguns alunos sofrem de dificuldades de aprendizagem,
outros não. E a noção de que isso os caracteriza de forma intrínseca e relativamente
estável, manifestando-se desde muito cedo. Nesta perspectiva, deve proceder-se a
uma detecção precoce de todos os alunos com dificuldades ou distúrbios
específicos. Pretende-se determinar a que alunos é preciso proporcionar uma
instrução específica, especializada, diferenciada, mais adequada às suas
características do que o ensino dito “normal”, que a grande maioria dos alunos
consegue acompanhar sem problemas5.
• o pressuposto de que existe um conjunto de características específicas que permite
diferenciar entre alunos com e sem dificuldades, de forma precisa, válida e
funcional. Embora quase todos os estudos tenham revelado inúmeras dificuldades ao
nível deste diagnóstico diferencial, persistem e multiplicam-se os esforços para a
determinação de um conjunto de critérios diferenciadores, cada vez mais adequado e
preciso. Quase todos os estudos persistem na tentativa de definir tipos, etiologias e
um conjunto de características intrínsecas ao próprio aluno, que permitam distinguir
entre diferentes tipos de dificuldade. Procuram-se meios mais eficazes para
descrever, diagnosticar e classificar cada tipo (e sub-tipo) de dificuldade,
organizando-os em taxonomias exaustivas e hierarquicamente complexas (e.g. Cruz,
1999). E embora seja comum reconhecer que os alunos com dificuldades de
aprendizagem constituem um grupo de difícil definição e classificação, persiste todo
um esforço de classificação sistemática, no pressuposto de que “eles têm algumas
características genéricas que os caracterizam” (ob. cit., p.93). Actualmente esses
critérios continuam a variar de forma muito significativa, até mesmo em função do
país ou da região em que o aluno habita.6
5 Em Portugal, foi introduzido nos últimos anos o conceito de Necessidades Educativas Especiais
(NEE) que alguns alunos têm, devendo por isso ser encaminhados para apoios e complementos
educativos específicos, tal como previsto na legislação (Correia, 1997). 6 Nos Estados Unidos, por exemplo, um mesmo aluno pode, ao mudar de estado, deixar de ser
(ou passar a ser) classsificado como “learning disabled student”. Em Portugal, na ausência de critérios
específicos e explícitos, basta por vezes que o aluno mude de escola, ou mesmo de professor.
I. INTRODUÇÃO 24
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
• todos os modelos descritos sugeriram formas de intervenção pedagógica que de
algum modo falharam na demonstração dos seus resultados práticos, por
insuficiências inerentes a cada método ou limitações ao nível dos estudos
comparativos efectuados (Adelman & Taylor, 1988). De modo geral, fica por
demonstrar a possibilidade de generalização e manutenção dos aspectos específicos
treinados e desenvolvidos por cada tipo de intervenção. Isto é, mesmo nos casos em
que foi possível observar uma evolução positiva em função dos objectivos
específicos do treino, ficou por demonstrar a sua influência mais ampla ao nível dos
resultados escolares, a sua eficácia na prevenção de futuros insucessos ou de outras
dificuldades de aprendizagem.
Muitos autores e muitos estudos têm pesquisado e discutido à exaustão o que
distingue um aluno com e sem "learning disability", mas essa questão tem recebido
múltiplas e inconsistentes respostas e o consenso parece impossível. E mesmo assim,
para a maioria dos investigadores e intervenientes no processo educativo, “ter ou não
ter” dificuldades de aprendizagem, continua a ser ainda hoje, a questão de fundo. Para
muitos educadores (pais e professores) parece fundamental diagnosticar e definir se o
aluno “efectivamente” tem ou não tem dificuldades de aprendizagem. Um esforço de
esclarecimento e classificação dos problemas que, infelizmente, nem sempre encontra
paralelo no esforço de apoio e de intervenção junto dos alunos identificados.
I. INTRODUÇÃO 25
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.1.1. Dificuldades na definição do conceito.
De modo geral e desde a sua origem, o conceito de “learning disability” tem
sido alvo de múltiplas críticas e sugestões de definição e de delimitação. Mesmo as
mais recentes propostas de definição, resultando de múltiplos esforços de convergência,
de debate, de revisão e renovação, continuam a não ser consensuais nem inteiramente
satisfatórias (Kavale & Forness, 2000). Este é um terreno marcado por inúmeras
dificuldades e disputas (Cruz, 1999):
• quanto à definição - desde os anos 60 que se procura uma definição específica,
precisa e validada. Apesar de todos os esforços efectuados, mesmo as mais recentes
formulações correspondem a definições demasiado genéricas, imprecisas e
deficientemente fundamentadas7.
• quanto à etiologia – as questões da descrição e da intervenção têm sido valorizadas
em detrimento da etiologia. Continua a pressupor-se a existência de distúrbios
neurológicos que afectam funções cerebrais específicas, pressuposto que carece de
validação empírica consistente e consensual.
7 "Distúrbios de aprendizagem (Learning disabilities) é uma expressão genérica que se refere a
um grupo heterogéneo de desordens, que se manifestam por dificuldades significativas na aquisição e no
uso de aptidões de escuta, fala, leitura, escrita, raciocínio ou de matemática. Estas desordens são
intrínsecas ao indivíduo, presumindo-se que se devam a uma disfunção do sistema nervoso central, e
podem ocorrer ao longo da vida. Problemas nos comportamentos de auto-regulação, na percepção e na
intersecção social podem coexistir com os distúrbios de aprendizagem, mas não constituem, por si
próprios, um distúrbio de aprendizagem. Mesmo que os distúrbios de aprendizagem possam ocorrer
concomitantemente com outras condições de deficiência (por exemplo: deficiência sensorial, atraso
mental, social e distúrbio emocional grave) ou com influências extrínsecas (tais como diferenças
culturais, instrução insuficiente ou inapropriada) eles não resultam dessas condições ou influências
(definição mais recentemente proposta pela NJCLD, Hammill, 1990, p.77, citado e traduzido por Rebelo,
Fonseca, Simões e Ferreira, 1995).
I. INTRODUÇÃO 26
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
• quanto à possibilidade de diferenciação em relação a outras condições – urge
esclarecer até que ponto os problemas de aprendizagem das crianças com
dificuldades (ou distúrbios) de aprendizagem são realmente diferentes dos que
ocorrem a outros “tipos” de alunos em dificuldade.
• quanto às indicações de tratamento – a generalidade das propostas de apoio e de
intervenção integra (ou corresponde exactamente) a procedimentos instrucionais ou
clínicos que foram sendo desenvolvidos para muitos outros problemas escolares,
cognitivos, comportamentais ou interpessoais. Persiste a dúvida sobre se os alunos
ditos com dificuldade de aprendizagem devem ser ensinados e “tratados” de forma
diferente dos restantes alunos e como proceder.
• quanto ao prognóstico – não existe uma clarificação sobre o modo como evoluem as
situações ditas de dificuldade de aprendizagem. Embora os estudos longitudinais e
desenvolvimentistas sejam insuficientes, existem muitos exemplos de uma adequada
superação e integração social, em percursos de vida bem sucedidos ou mesmo
publicamente reconhecidos,
• quando à classificação de tipos e subtipos de dificuldades – com uma tão grande
indefinição conceptual, a heterogeneidade aumenta e multiplicam-se os sistemas e
as propostas de classificação, com base nos mais diferentes critérios.
Ao longo dos anos, nenhuma destas questões foi realmente respondida. Foram
ensaiadas sucessivas definições, sem que o conceito tenha alcançado consenso ou uma
verdadeira operacionalidade. As definições actuais são ainda demasiado latas,
abrangentes e imprecisas. Mesmo ao nível da DSM-IV (1996) a indefinição é
surpreendente. As perturbações da leitura, do cálculo ou da escrita são definidas em
função de critérios, tais como: “substancialmente abaixo do nível esperado”; “interfere
de maneira significativa no rendimento académico”; “dificuldades excessivas” por
comparação com as que seriam habitualmente esperadas noutras situações, por exemplo
no caso de défices sensoriais.
Em Portugal, este conceito tem sido traduzido e utilizado de diferentes modos e
em diferentes acepções, e tal como no estrangeiro, sem uniformidade nem consenso
(Correia, 1991; Fonseca, 1993, 1996; Rebelo, Simões, Fonseca e Ferreira, 1995;
I. INTRODUÇÃO 27
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Simões, 1996; Simões, Rebelo, Ferreira e Fonseca, 1995). No dia a dia, as expressões
“dificuldade de aprendizagem” e “problema de aprendizagem” surgem de forma quase
indistinta, a par de outros termos mais específicos (por exemplo: dislexia, disortografia)
ou de outras designações muito mais genéricas e abrangentes (necessidades educativas
especiais, deficiência mental, ensino especial, insucesso escolar). O conceito específico
de “learning disability” tem sido traduzido e desdobrado em múltiplas designações,
utilizadas por vezes com um sentido similar ou designando situações muito diferentes.
Desta situação parece resultar uma enorme dispersão e imprecisão de conceitos e uma
relativa indefinição de competências e responsabilidades dos técnicos e instituições
envolvidas. Pode referir-se a título de exemplo, a dificuldade existente na definição de
planos educativos e na coordenação de meios, técnicos e apoios para alunos ditos com
“necessidades educativas especiais” ou ditos de “ensino especial”.
Por todas estas razões, o campo de estudos sobre dificuldade e distúrbios de
aprendizagem tem vindo a ser classificado como conceptualmente redutor, sem
fundamentação paradigmática sólida, em torno de um construto vago, controverso e
impreciso (Adelman & Taylor, 1988; Heshusius, 1996; Kavale e Forness, 2000; Poplin,
1988a; Stanovich, 1989), talvez apenas um mito ou uma doença imaginária sem
fundamentação empírica adequada (Finlan, 1994, Marinoff, 1999). Urge, portanto,
repensar, discutir e refazer alguns dos pressupostos básicos, comuns a todos os modelos
e geradores de tantos impasses. Nos últimos anos, gradualmente, parece emergir uma
nova perspectiva sobre este problema e sobre este campo de estudos.
Em 1994, Finlan publicou um pequeno livro em que afirmava pela primeira vez
algo de absolutamente radical e inovador: “there is no such thing as a learning
disability” (ob. cit., p.1). Não se conhece nenhum estudo que analise o impacto de uma
obra assim, nem sequer se sabe se algum impacto terá. Mas um texto como o de Finlan,
espelha muitas das preocupações sentidas no campo da investigação, da avaliação e da
intervenção. Não se trata, naturalmente, de negar a existência do problema em si
mesmo, nem de negar a experiência pessoal de dificuldades específicas ou abrangentes.
Trata-se sim de recusar a existência de uma patologia, de um síndrome ou de um
distúrbio específico, por falta de evidências empíricas, por imprecisão, instabilidade e
I. INTRODUÇÃO 28
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
menor validade dos critérios de diagnóstico ou mesmo porque ao longo do tempo e
após décadas de investigação contínua a não existir hoje em dia uma definição
consensual, consistente ou esclarecedora.
Sugerem-se, em seguida, alguns contributos possíveis para esta discussão.
1.1.2. A emergência de uma nova perspectiva
“If there is one immutable feature in the landscape of learning disabilities, it is
change.” (Poplin,1988b, p.389)
Poplin descreve e sintetiza desta forma simples, um dos aspectos que melhor
caracteriza o campo de estudo das dificuldades de aprendizagem: a sua mutabilidade, a
instabilidade, a diversidade e multiplicação de propostas que inovam e se renovam.
Refere, tal como tantos outros autores têm feito, a ausência de consenso ou de
uniformidade de critérios, de métodos ou de princípios. E no entanto, associar o
conceito de “Dificuldade de Aprendizagem” à ideia de mudança parece ser muito mais
do que uma boa descrição do estado da investigação científica neste domínio. Sob este
ponto de vista, associar a ideia de mudança a este conceito parece ser uma ideia
essencial, uma associação necessária e, sobretudo, um pressuposto funcional.
Uma ideia essencial, porque a mudança é uma característica intrínseca de toda e
qualquer aprendizagem. Aprender é sempre mudar. Não podemos falar ou descrever
aprendizagens sem referir aquisições e adições, não podemos afirmar que houve
aprendizagem sem observar mudanças, de quantidade ou de qualidade: saber mais,
saber melhor, pensar ou compreender de forma diferente. Toda a aprendizagem se
traduz sempre em mudança. Essa mudança ou mudanças podem ser mais ou menos
superficiais, mais ou menos abrangentes, mais ou menos persistentes. Só a observação
de diferenças atesta que houve aprendizagem.
Uma associação necessária, porque as dificuldades de aprendizagem podem ser
avaliadas e descritas como alterações no decurso desse processo de mudança,
I. INTRODUÇÃO 29
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
alterações de ritmo, fluência ou qualidade. Podem ser avaliadas e descritas em função
do modo como divergem de um padrão de aprendizagem (logo, de mudança) dito
“normal”, esperado ou desejado (Francis, Shaywitz, Stuebing, Shaywitz, & Fletcher,
1994).
Um pressuposto funcional, porque pode contribuir para uma associação do
conceito de dificuldade de aprendizagem a algo de transitório, de mutável ou mesmo de
positivo. Ou ainda, porque pode facilitar o processo de recuperação do aluno, pode
ajudar a superar dificuldades, pode facilitar o próprio processo de aprendizagem.
Associar o conceito de dificuldade de aprendizagem à ideia de mudança, defini-lo
como uma característica mutável, circunstancial ou processual, pode facilitar a
superação dessas dificuldades.
O modo como se descreve, classifica ou rotula um aluno tem repercussões e
consequências mais ou menos persistentes. Por um efeito de reactividade, tende a
influenciar o próprio aluno, o meio circundante, o próprio processo de aprendizagem
(Albinger, 1996; Denti & Katz, 1996; Finlan, 1994; Reid & Button, 1996). Sabe-se
como pode determinar expectativas, objectivos, motivos e incentivos. Como esta
classificação pode perdurar ao longo de muito tempo, contribuindo para prejudicar
mesmo as aprendizagens que pretendia promover. Na medida em que se acredite que
uma dificuldade de aprendizagem é uma situação mutável, mais fácil será mobilizar os
professores, os pais, os próprios alunos, para o esforço e investimento na mudança, para
uma mudança no sentido desejado.
Muda-se para melhor, muda-se para pior e muitos alunos parecem, pura e
simplesmente, temer e evitar mudanças, temer e evitar o risco de mudar (Boimare,
2001; Zelan, 1991). Mas quando um aluno é descrito, designado ou “rotulado” como
tendo dificuldades ou distúrbios de aprendizagem, isso tem implicações na forma como
irá evoluir como aluno e como pessoa ao longo do tempo (Francis et al., ob cit.). Hoje
em dia, a generalidade dos esforços de avaliação e classificação das dificuldades de
aprendizagem, centram-se na descrição de deficiências e lacunas específicas,
observadas e registadas num determinado momento, quase como se o aluno aí
permanecesse (assim permanecesse). São visões e formas de classificação de natureza
estática, obtidas por imobilização do aluno num determinado momento do seu percurso
de aprendizagem, num determinado momento do seu processo de desenvolvimento.
I. INTRODUÇÃO 30
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Tais classificações, se não forem cuidadosamente usadas, podem cristalizar-se no
tempo, perdurar e sobrepor-se ao próprio processo de mudança do aluno. Mas se as
dificuldades de aprendizagem surgirem associadas à noção de mudança, isso pode
colocar-nos nos antípodas de uma noção redutora e limitativa.
Algumas formas e métodos de avaliação visam precisamente uma melhor
percepção de processos, da sua evolução e uma medida da mudança, potencial ou
registada (Keogh, 1994; Meltzer, 1994). Articulam-se e inserem-se no próprio processo
de aprendizagem (avaliação contínua, avaliação formativa), de desenvolvimento
(avaliação operatória) ou em ambos (avaliação dinâmica). Noutros casos, os
procedimentos de avaliação promovem a mudança e ajudam a mantê-la (por ex.: efeito
de reactividade de medidas de auto-registo e de autocontrole). E no entanto, estes
procedimentos parecem estar menos divulgados e ser menos frequentemente usados.
Ter uma dificuldade de aprendizagem pode ser concebido como algo de
transitório, uma etapa num processo de mudança. Abandona-se a noção como um
rótulo que caracteriza de forma estável um aluno para se sugerir a possibilidade de
evolução, de alteração e modificação da situação actual do aluno. Se aprender é mudar,
se as dificuldades de aprendizagem se definem como divergências a um “normal”
processo de mudança, elas próprias mutáveis e em evolução, talvez seja mais fácil
conseguir e produzir essa evolução desejada. Superar dificuldades de aprendizagem
supõe, pressupõe, que se acredite na possibilidade de mudar.
A emergência, nos últimos anos, de novas perspectivas sobre as dificuldades de
aprendizagem, parece inserir-se nesta linha de preocupações e objectivos. São
múltiplos os contributos que têm surgido, provenientes de diferentes perspectivas e de
diferentes autores (Adelman, 1989; Brown, Ash, Rutherford, Nakagawa, Gordon &
Campione, 1993; Hresko, Parmar & Bridges, 1996b; Reid, 1996a).
Referem-se em seguida, numa síntese breve e necessariamente precária, alguns
desses contributos críticos e a forma como, pela sua relevância ou significado, de
algum modo foram influenciando a estrutura deste trabalho.
I. INTRODUÇÃO 31
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Em primeiro lugar, a noção de que as dificuldades de aprendizagem surgem
apenas em alguns alunos, deve ser alvo de uma cuidadosa reflexão crítica. Este
pressuposto básico tem levado a incontáveis esforços de definição e descrição de
critérios objectivos de diferenciação entre diferentes tipos de alunos. Mas todo esse
esforço não só se tem deparado com inúmeros obstáculos, até ao momento
insuperáveis, como, a ser algum dia bem sucedido, representará uma mera tentativa de
simplificar uma realidade bem mais complexa.
Desde o início do século XX que Dewey, Piaget e muitos outros teóricos da
aprendizagem e da instrução têm vindo a descrever o processo de aprendizagem como
intrinsecamente difícil, e tanto mais difícil quanto maior for a qualidade, profundidade
ou impacto futuro dos resultados dessa aprendizagem.
Se a aprendizagem em sentido estrito pode ser simples e facilmente alcançada,
por modelagem e imitação, por reforço ou repetição, mesmo sem esforço nem
consciência de quem aprende, a aprendizagem em sentido lato, a que coincide com o
desenvolvimento cognitivo do aluno, a que produz mudanças qualitativas significativas,
generalizáveis a outros domínios, essa aprendizagem processa-se no confronto com
problemas, conflitos cognitivos, através de dificuldades e, por vezes, com muito
esforço e empenho pessoal (Morgado, 1997). O grito de “Eureka!”, o prazer de
encontrar uma solução, pode surgir com maior ou menor celeridade, com maior ou
menor intuição. Mesmo Bruner falava do conceito de “educated guess”, não tanto
como uma intuição bravia, imediata, antes como fruto de informação e reflexão. É
assim, por exemplo, no processo de investigação científica; será normal que assim seja
sempre que haja um esforço de verdadeira apreensão pessoal dos conhecimentos
científicos que vão sendo adquiridos. Os percursos de investigação são normalmente
descritos como complexos e morosos, atravessados por inúmeras dificuldades que, por
vezes, se traduzem em oportunidades. E, no entanto, a ideia de que aprender deve ser
simples, rápido e bom, agradável e fácil, parece ser uma noção bastante difundida,
ainda hoje em dia, em alguns grupos sociais. Esta ideia de um “fácil acesso” ao
conhecimento e à aprendizagem, surge talvez num tempo e num contexto de
reafirmação dos direitos individuais (Taylor, 2000), do direito ao prazer e à realização
pessoal, do direito à diferença e à liberdade. Mas não corresponde ao que realmente
sabemos sobre o processo de aprendizagem, dentro ou fora do contexto escolar.
I. INTRODUÇÃO 32
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Numa cultura de hedonismo e facilidade, onde se vive sem tempo e demasiado
depressa; onde o esforço e o sacrifício tendem a ser considerados contra-natura8, uma
forma de violência arcaica quase impensável numa sociedade moderna e civilizada, que
significado pessoal e social pode ser atribuído a problemas e dificuldades?
Por exemplo, sempre que nos media se fala de avaliação (testes, exames e afins)
parece estar difundida na comunidade estudantil a noção de que a aprendizagem deve
estar isenta de dificuldades, que os alunos têm que se sentir bem na escola e que isso
não vai acontecer nunca se lhes complicarem desnecessariamente a vida, com
problemas, questões, alternativas múltiplas. Mas, por outro lado, sempre que se fala de
qualidade do ensino, outros clamam por maior exigência e rigor, na convicção de que
se as coisas forem demasiado simples não se aprende mesmo nada. Donde, mesmo que
a maioria não aprecie elevadas taxas de insucesso, podemos inferir que também é voz
comum a noção de que, se houver maior dificuldade (se mais dificuldades forem
colocadas ao nível do produto e do processo de aprendizagem), maior será a qualidade
do ensino.
Mas de que “dificuldades” ou de que “facilidades” se fala afinal, em cada um
destes casos? Ser fácil ou ser difícil, parece ser essa a questão, mas o que significa para
cada um dos intervenientes no processo educativo, cada um destes conceitos? Entre as
dificuldades impostas por um ensino dito tradicional e as aparentes facilidades de
outros modelos pedagógicos mais recentes, que significado tem para o senso comum,
“ter” ou sentir dificuldades na aprendizagem?
Muitas narrativas pessoais sugerem que um dos aspectos mais gratificantes de
um processo de aprendizagem decorre do esforço e da superação de dificuldades.
Aprender sabe tanto melhor quanto mais nos empenhamos e esforçamos no processo.
Neste sentido, a crença de que “aprender è fácil” pode, mais do que facilitar, gerar
algumas dificuldades de aprendizagem. Pode, pelo menos, criar falsas expectativas,
fomentar a noção de que “não pode ser normal” quando aprender parece difícil ou
reforçar a ideia de que as dificuldades só acontecem a alguns, porque menos aptos ou
menos ágeis.
8 Com base no princípio de que “o que é natural e espontâneo, sabe sempre bem!”.
I. INTRODUÇÃO 33
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Em segundo lugar, dicotomizar, dividir os alunos em função de um critério
selectivo (“ter” ou “não ter” dificuldades) não parece coerente com o que sabemos a
partir das teorias psicológicas sobre a aprendizagem; é provavelmente fonte de
profecias auto-realizadas, por um efeito de expectativa social, de Pigmalião ou de
assumpção de um rótulo perene, persistente. Deixam os alunos rotulados de “LD” de o
ser algum dia? Deixam algum dia de se pensar como diferentes? Os meios e
complementos postos ao seu dispor compensam os prejuízos gerados por um sistema de
diferenciação tão precoce como o existente em alguns estabelecimentos de ensino
anglo-saxónicos? Ou, como se ouve tantas vezes em Portugal, evitam os alunos a todo
o custo uma inclusão em salas de apoio ou estudo de que efectivamente necessitavam,
só por não quererem ser vistos como “burros” ou “atrasados”?
Entre perdas e ganhos, parece necessário reflectir sobre a fundamentação
científica, necessidade e funcionalidade de distinguir entre dois (ou mais) grupos de
alunos (Denti & Katz, 1996; Heshusius, 1996).
Ao longo dos anos, as dificuldades de aprendizagem têm sido classificadas de
múltiplas formas e de acordo com múltiplos critérios: em função da operacionalização
do conceito, em função da etiologia a que as dificuldades são atribuídas, em função das
áreas curriculares específicas em que se observa um défice relativo no desempenho do
aluno (Cruz, 1999). Entre estes, pode referir-se, por exemplo, o critério da discrepância
(Berninger & Abbott, 1994). De acordo com este critério, que parece ser até ao
momento o mais frequentemente utilizado, pode dizer-se que existe uma dificuldade de
aprendizagem sempre que se observa um desfasamento considerado significativo entre
o desempenho do aluno numa dada tarefa ou situação e aquilo que seria esperado em
função das suas capacidades intelectuais. Decorre deste critério uma questão que tem
intrigado muitos investigadores, a saber, porque é que alguns alunos de QI médio ou
superior apresentam desempenhos discrepantes em áreas curriculares específicas,
leitura, escrita ou cálculo numérico?
Ora, critérios como este podem até ser usados para a classificação do
desempenho de cada aluno. Convencionado o critério, é possível dizer sobre cada aluno
se o seu desempenho é ou não suficientemente discrepante para se poder considerar a
existência de uma dificuldade de aprendizagem. Mas não só os critérios propostos não
são consensuais dentro da comunidade científica (Stanovich & Stanovich, 1996), como,
I. INTRODUÇÃO 34
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
sobretudo esta classificação não serve nem à compreensão da natureza do problema,
nem ao planeamento de formas de apoio e intervenção mais eficazes.
Adelman & Taylor (citados por Adelman, 1992) sugeriram em 1986 uma
alternativa poderosa: a existência de três tipos principais de problemas de
aprendizagem, situados ao longo de um contínuo entre problemas causados por factores
exteriores ao aluno (Tipo I) e problemas causados por factores pessoais (Tipo III). No
meio termo, situam-se os problemas de Tipo II, determinados por uma interacção
destas duas ordens de factores, pessoais e situacionais. Podem conceber-se dificuldades
ao longo de todos os pontos do contínuo, correspondendo a diferentes proporções
relativas destas duas ordens de factores.
Esta proposta revelou-se ao tempo extremamente inovadora: a) por considerar
as dificuldades como determinadas por uma interacção muito variável de diferentes
ordens de factores, internos e externos ao próprio aluno; b) por ser a primeira que não
se oferecia para “arrumar” todas as dificuldades num conjunto restrito de categorias
estanques; c) por propor uma categorização centrada nos problemas de aprendizagem e
não na pessoa do aluno. Mesmo assim, nos anos seguintes, muitos dos que citaram e
referiram esta proposta, desvalorizaram estes aspectos essenciais e retiveram sobretudo
a tipologia (Rebelo, 1993). Tendem a esquecer a variabilidade proposta para considerar
cada tipo como uma categoria específica e o conjunto como mais um sistema de
discriminação de dificuldades em classes discretas.
Ora, mesmo em situações de dislexia, situações de distúrbio de aprendizagem
específico muito mais raras e severas do que as dificuldades de aprendizagem comuns,
mesmo em tais situações se podem observar histórias pessoais, percursos escolares e
profissionais de sucesso, ou mesmo de reconhecido valor público (Davis, 1994; Ferri,
Keefe & Gregg, 2001; Fink, 1996; Hearne & Stone, 1996; Lauren, 1997; Reis, Neu &
McGuire, 1997; Ryden, 1997; Thomas, 2000; West, 1996). Sendo assim, como e
porquê insistir tanto na divisão de alunos em função de critérios selectivos e quase
definitivos?
Por fim, a generalidade dos modelos partilha a noção de que as dificuldades de
aprendizagem são uma característica pessoal do aluno, que podem ser observadas,
avaliadas e descritas de forma consistente e persistente, independentemente do meio e
I. INTRODUÇÃO 35
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
situação de aprendizagem. Excepção feita a algumas perspectivas mais recentes já
referidas (Adelman, 1989,1992; Poplin & Coussin,1996; Reid, 1996a) ou talvez à
perspectiva da cognição distribuída (Perkins, 1993), a generalidade dos modelos sobre
dificuldades de aprendizagem partilha desta noção de carácter individual, intrapessoal,
não sistémica.
“Ter uma dificuldade de aprendizagem” é, na própria expressão verbal, algo que
indica posse, interiorização, apropriação. Tal como se diz que se “tem uma dor de
cabeça”, uma úlcera ou uma epilepsia. Preso à noção de anormalidade, ao carácter
minoritário do que nunca se espera nem deseja que aconteça, o conceito de dificuldade
de aprendizagem ganha uma dimensão ainda mais fatal e intransponível: uma absurda
familiariedade com o conceito de doença ou patologia, de deficiência ou defeito
pessoal. Esta expressão, se usada para definir e caracterizar um aluno, acaba por
contribuir também para uma definição do que se pode esperar e exigir desse aluno. E
isso mais do que tudo parece ser um efeito pernicioso da rotulagem precoce, algo em
completo desfasamento com o que define um modelo psicológico (por oposição ao
modelo médico).
Numa perspectiva psicológica, a depressão, por exemplo, não deve ser
entendida como uma patologia que distingue e caracteriza algumas pessoas. Qualquer
pessoa pode experimentar estados ou momentos de depressão, mais ou menos intensos,
mais ou menos frequentes e persistentes (variando ao longo de um contínuo), em
função da situação, de crenças ou interpretações pessoais sobre a realidade vivida
(Beck, Rush, Shaw & Emery, 1997; Burns, 1992; Ellis, Moseley & Wolfe, 1968;
McMullin, 2000). Deste modo, a depressão não é uma característica anómala que
permite definir de forma estável um grupo de pessoas; pelo contrário, os estados de
depressão dependem da forma como interagimos com cada situação específica, como a
interpretamos e a ela reagimos. A depressão não caracteriza um indivíduo, mas antes
um momento ou uma fase da sua relação com um contexto e com uma situação pessoal.
Sendo assim, porque não dizemos algo de similar sobre as dificuldades de
aprendizagem?
Quando um aluno não permite que os erros ou insucessos influenciem a forma
como avalia a sua capacidade pessoal noutras situações, quando o aluno acredita que
para ter sucesso por vezes é preciso fazer trabalhos difíceis e aborrecidos, mesmo sem
I. INTRODUÇÃO 36
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
vontade e com esforço, quando sabe gerir o tempo e divide tarefas complexas em
etapas menores, quando tem objectivos e projectos de aprendizagem de longo, médio e
de curto prazo, realistas e mobilizadores, quando o aluno acredita e pensa desta forma,
é mais provável que venha a obter bons resultados (Bernard, 1997). O que distingue os
bons dos maus alunos é, nesta perspectiva, essencialmente a forma como pensam e as
consequências que isso tem ao nível dos seus comportamentos, afectos e atitudes. Por
exemplo, a forma como um aluno conceptualiza e interpreta as situações de
aprendizagem e a forma como tudo isso se traduz num discurso interno auto-regulador,
antecede e determina o seu comportamento.
Algumas dessas atitudes, concepções e interpretações tendem a facilitar o
sucesso. Outras, pelo contrário, tendem a prejudicar o desempenho do aluno. Aprender
a pensar e a conceber de forma mais racional e adaptativa pode ser, nesta perspectiva,
um alvo essencial.
I. INTRODUÇÃO 37
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.2 . Metacognição, auto-regulação e sucesso escolar.
Tal como se descreveu no capítulo anterior, o conceito de dificuldade de
aprendizagem, tem vindo a sofrer nas últimas décadas, uma evolução significativa.
Para este desenvolvimento, tem vindo a contribuir de forma muito significativa, todo o
trabalho desenvolvido no domínio da metacognição e auto-regulação (Bjorklund &
Miller, 1997; Brown, 1987; Campione, 1987; Cullen, 1985; Flavell, 1987; Harris,
Schmidt & Graham, 1988; Kuhl, 1987; Lopes da Silva & Gonçalves, 1996; Patrick,
1997; Schraw & Moshman, 1995). Pela importância e fecundidade de que se revestem,
analisam-se neste capítulo algumas das relações entre metacognição, auto-regulação e
sucesso escolar. O estudo dessas relações permite uma reflexão mais profunda sobre
alguns dos pressupostos deste trabalho:
• uma clara distinção entre dificuldade e inaptidão.
• continuidade entre sucesso e insucesso.
• distinção entre dificuldade e insucesso escolar.
De uma forma ou de outra, uma dificuldade de aprendizagem é normalmente
associada a uma menor aptidão, a um défice que impede ou prejudica aquilo que um
aluno é capaz de fazer ou de aprender. Como vimos anteriormente, as dificuldades são
muitas vezes concebidas como patologias, consequência de lesões ou de disfunções
neurológicas específicas, como insuficiências ou incapacidades. No entanto, não parece
necessário nem útil entender assim.
Vários estudos e vários autores têm tentado distinguir de forma clara entre
dificuldade e inaptidão. Algumas dificuldades de aprendizagem podem ocorrer em
alunos excepcionalmente aptos ou dotados (Reis, Neu & McGuire, 1977; Rodrigues,
1997). São repetidamente referidos alguns nomes célebres em diversos domínios
científicos e artísticos, de Leonardo da Vinci a Einstein, de Walt Disney a Tom Cruise,
I. INTRODUÇÃO 38
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
como exemplos e casos de dificuldade de aprendizagem em pessoas de aptidão
excepcional. São, por vezes, citados como modelos de sucesso para incentivo junto de
alunos com um diagnóstico de distúrbio ou dificuldade específica.
Além disso, neste trabalho pressupõe-se a inexistência de qualquer
descontinuidade específica entre sucesso e insucesso escolar. Isto é, pressupõe-se que o
sucesso ou o insucesso que se obtêm na escola podem ser explicados por factores da
mesma natureza, ou mesmo por factores comuns. Os mesmos contributos que, na área
da metacognição e da auto-regulação permitem determinar condições e factores de
sucesso, podem ser fundamentais para a compreensão de algumas das causas do
insucesso escolar.
Sucesso e insucesso são extremos de um mesmo contínuo. A posição relativa de
cada aluno ao longo desse contínuo, pode variar em função de um juízo de valor sobre
a qualidade do seu desempenho, que depende da conjugação de múltiplos factores, de
natureza pessoal ou situacional. Mas, também pode variar em função de critérios e
convenções, mesmo na ausência de alterações ou diferenças, reais e/ou significativas.
Esta dependência em relação a critérios e convenções permite salientar um outro
pressuposto fundamental neste trabalho: uma distinção muito clara entre a noção de
“insucesso” e o conceito de “dificuldade (ou dificuldades) de aprendizagem”. Esta
distinção parece, simultaneamente, necessária e útil, sempre que se deseje uma correcta
definição de medidas de apoio e tomada de decisão psicopedagógica ou a preparação de
protocolos e projectos de investigação. Talvez seja esta uma das causas da enorme
diversidade de resultados em muitos estudos de incidência sobre dificuldades de
aprendizagem.
A noção de insucesso escolar refere-se ao resultado obtido pelo aluno numa
prova ou situação de avaliação, a meio ou no final de um percurso de aprendizagem. É
um conceito que decorre de uma avaliação, normalmente de carácter sumativo,
ponderados múltiplos factores. Corresponde, em última análise, a uma decisão
pedagógica e administrativa sobre a possibilidade de o aluno transitar ou não ao nível
I. INTRODUÇÃO 39
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
escolar seguinte. Essa decisão pode reflectir ou não a qualidade do trabalho realizado e
o nível de desempenho alcançado.
Um aluno pode ter insucesso escolar sem ter, de facto, dificuldades de
aprendizagem. Qualquer aluno pode assumir, ou até empenhar-se, na obtenção de maus
resultados escolares: os comportamentos de oposição e afirmação pessoal, perante a
sociedade e perante o grupo, as crises de desenvolvimento e os casos de motivação para
o evitamento do sucesso, são apenas alguns exemplos de situações em que pode ocorrer
insucesso sem dificuldade(s) de aprendizagem9.
Por outro lado, uma história de sucesso escolar pode ocultar algumas
dificuldades de aprendizagem, já compensadas ou que nunca chegam sequer a ser
identificadas.
No primeiro caso, dificuldades compensadas que não se traduzem em insucesso,
podem incluir-se todas as situações de dificuldade, ou mesmo de distúrbio de
aprendizagem, devidamente identificadas, apoiadas e acompanhadas. Mesmo em
situações de distúrbios de aprendizagem específicos, como no caso da hiperactividade
ou dislexia, um diagnóstico precoce e uma adequada estimulação, podem (e devem)
permitir uma adequada compensação (e superação) das dificuldades do aluno, antes da
observação de qualquer forma de insucesso. Em Portugal, o aluno com dificuldades
específicas pode ser integrado em percursos escolares ditos normais, mesmo que por
vezes seja necessário recorrer a medidas de excepção, de acordo com a legislação em
vigor (Almeida, 1996; Boavida & Barreira, 1992; Cadima, Gregório, Pires, Ortega &
Horta, 1997; Lobo, 1998; Sanches, 1995). Existem recursos que permitem o apoio e o
acompanhamento ao aluno, que oferecem oportunidade de compensação e superação
das dificuldades identificadas. Também do ponto de vista do legislador, dificuldade não
tem de ser sinónimo de insucesso.
No segundo caso, situam-se todas as situações de dificuldades nunca
reconhecidas ou identificadas, pelo próprio aluno ou por quem quer que seja. Por
9 Nos últimos anos, e por razões que se consideram lamentáveis, a comunidade escolar tem vindo
a assistir a um número crescente de alunos que são punidos pelos seus comportamentos disruptivos com
medidas de retenção, suspensão ou exclusão escolar. Estas medidas extremas podem ser aplicadas mesmo
no caso de alunos com aproveitamento efectivo (e não apenas reconhecida capacidade), tal como nalguns
casos é claramente dito aos pais e ao próprio aluno.
I. INTRODUÇÃO 40
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
exemplo, alguns alunos fazem todo o percurso escolar sem experimentar insucessos ou
resultados negativos, mantendo (e até reforçando) atitudes de um enorme
perfeccionismo e uma impreparação quase absoluta para o confronto com situações de
menor sucesso. Se o aluno está inserido num ambiente pedagógico sem provas de
avaliação sumativa (ou com uma avaliação excessivamente benévola) pode nunca
identificar nem aprender a lidar com as suas respostas de ansiedade perante a avaliação.
Alguns alunos desenvolvem hábitos e estilos de aprendizagem que respondem
bem à pressão (e à precipitação), deixando para o último momento quase todas as
tarefas escolares. Esta forma de trabalhar pode coexistir com situações de
procrastinação que vão sendo compensadas (e recompensadas) até ao dia em que o
aluno seja finalmente confrontado com situações que lhe exijam outra forma de
trabalhar. A realização de um portfolio, por exemplo, requer registos quase diários ou
pelo menos muito regulares. Uma prova de avaliação com utilização de materiais de
consulta requer a preparação de fichas de leitura, resumos, esquemas ou outros
elementos a consultar. Nestas situações concretas, alguns alunos são levados a
reconhecer pela primeira vez até que ponto se habituaram ao adiamento, ao descuido,
até que ponto carecem de estratégias de aprendizagem, métodos de trabalho e auto-
controle. Só então se tornam aparentes, hábitos até aí ocultos, característicos de
situações de procrastinação.
Naturalmente que estes casos ocorrem com maior frequência em situações de
menor rigor e de menor qualidade pedagógica na avaliação, com uma selecção
demasiado restrita de métodos e estratégias. Se existir uma excessiva e repetida
utilização dos mesmos procedimentos, o grau de sucesso (ou de insucesso) tenderá
sempre a ser analisado sob os mesmos critérios, convencionais e restritos (De
Landsheere, 1976). Se assim for, tanto maior será a probabilidade de que sejam sempre
os mesmos alunos a alcançarem o mesmo tipo de resultados (mais ou menos positivos)
em provas que fazem sempre apelo ao mesmo tipo de aptidões e conteúdos.
A existência de muitos casos em que a legislação em vigor é insuficiente ou
deficientemente aplicada (Alaiz, Gonçalves & Barbosa, 1997; Lobo, 1998) e o
reconhecimento público de que na generalidade das situações a avaliação continua a
incidir sobre as mesmas competências básicas de aprendizagem (que no caso do 1ºCiclo
se poderiam traduzir na expressão clássica: “aprender a ler, a escrever e a contar”),
I. INTRODUÇÃO 41
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
também deve reforçar a necessidade de uma clara distinção entre insucesso e
dificuldades de aprendizagem.
Verifica-se, por exemplo, que a escrita, a leitura, o cálculo continuam a dominar
objectivos e critérios de avaliação (Reis, Neu & McGuire, 1997) mesmo nos casos em
que os alunos demonstram maior mestria noutras áreas (desporto, expressão plástica, ou
mesmo uma superioridade relativa da oralidade em relação à escrita e leitura). A
existência de tais indicadores de mestria pode até reforçar a pressão social a que o aluno
está sujeito, porque os insucessos em matérias específicas tendem a ser atribuídos a um
menor empenho. Por outro lado, quase toda a avaliação se centra na análise de produtos
de aprendizagem específicos e circunscritos a uma determinado aspecto curricular. O
processo apenas é considerado de forma indirecta e esporádica. A avaliação sumativa
predomina sobre todas as outras formas de avaliação.
Se, pelo contrário, insucesso e dificuldades surgirem como sinónimos,
potenciam-se situações de desânimo aprendido, de desistência, de abandono, de
exclusão escolar e social. A percentagem de alunos integrados na categoria de
“insucesso” corresponde normalmente, por definição conceptual e estatística, a um
subgrupo de carácter mais ou menos minoritário. Fazer corresponder este grupo ao
grupo de alunos com dificuldades de aprendizagem, tende a restringir excessivamente o
conceito, favorece a discriminação e a rotulação, com custos ao nível da evolução futura
do aluno.
Alguns professores e instituições entendem claramente a necessidade desta
distinção mas fazem-no de forma igualmente negativa e nociva. Reconhecem que nem
todos os alunos com insucesso têm dificuldades de aprendizagem. Mas esta convicção
conduz a uma discriminação ainda maior da minoria restante: aquele número muito
restrito de pobres e lamentáveis alunos que “realmente têm uma dificuldade de
aprendizagem”. No quadro de uma cultura de sucesso, num contexto escolar que tende a
reforçar a competitividade e a excelência relativa, esta forma de conceber as
dificuldades pode transformá-las num estigma, escolar, pessoal e social.
Por outro lado, se as rotinas e práticas de avaliação pedagógica não oferecerem
ao aluno a oportunidade de discriminar entre uma noção global de “sucesso” e a
determinação de algumas das suas dificuldades menos salientes, estas podem
permanecer de forma latente (ou oculta), como factor de risco para o futuro. Se um
I. INTRODUÇÃO 42
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
aluno for repetidamente avaliado em provas escritas de natureza reprodutiva, pode não
estar preparado para o confronto com provas de natureza completamente diferente. Um
desempenho escolar brilhante de um jovem candidato a um curso de Medicina,
Arquitectura ou Psicologia, pode não revelar nada sobre as suas aptidões de resolução
de problemas ou de relação interpessoal, aptidões essenciais talvez, na aprendizagem,
em tarefas de grupo ou na interacção clínica (Lindblom-Ylänne, Lonka & Leskinen,
1999).
Em síntese, todas as situações em que se supõe uma relação de equivalência ou
de implicação lógica entre estes dois conceitos (“se o aluno tem insucesso então é
porque há dificuldades de aprendizagem”) podem pecar por imprecisão ou erro lógico e,
sobretudo, podem dificultar a integração e recuperação do aluno.
Neste contexto, a introdução de actividades de ensino e estimulação das
capacidades metacognitivas e de auto-regulação dos alunos, pode promover:
a) uma maior consciência sobre diferenças individuais.
b) um maior auto-conhecimento, reflexão e avaliação de características pessoais.
c) a identificação de problemas e dificuldades comuns a todos os estudantes.
d) a aprendizagem de estratégias para a prevenção e remediação de problemas e
dificuldades.
1.2.1. Tomada de consciência de diferenças individuais.
A estimulação metacognitiva ao serviço da aprendizagem (por vezes também
designadas por meta-aprendizagem) e o desenvolvimento de competências de auto-
regulação, recorrem muitas vezes a exercícios que promovem uma tomada de
consciência de professores e alunos sobre os seus próprios processos e procedimentos
de estudo e aprendizagem (Gibbs, 1981; Loper & Murphy, 1985; Lopes da Silva & Sá,
1989, 1993). Estes exercícios incentivam alunos e professores ao reconhecimento da
existência de diferenças individuais importantes ao nível cognitivo, metacognitivo e
I. INTRODUÇÃO 43
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
atitudinal. Em muitos casos os participantes são convidados a partilhar experiências
pessoais ou a analisar outros casos, reais ou fictícios. Trata-se de tomar consciência de
que nem todos os alunos aprendem (nem precisam de aprender a aprender) da mesma
forma ou ao mesmo ritmo. Que o resultado final depende não tanto da utilização de
determinados procedimentos (certos e universalmente eficazes) mas antes da forma
como se articulem entre si e se adequem a cada situação concreta e às características
pessoais de cada aluno. Nesta perspectiva, professores e alunos são confrontados com a
inexistência de “boas formas” de fazer ou de estudar, com a ausência de “receitas” ou de
outros procedimentos perfeitos a respeitar de forma impessoal.
Deste modo, produto e processo são analisados em separado, num contexto que
convida à diferença. Cada aluno é incentivado a respeitar as suas próprias características
e a seleccionar as estratégias que lhe pareçam mais convenientes. A norma, a
normalidade, a uniformidade tendem a ser substituídas pela funcionalidade e pela
necessidade de adaptação pessoal. Ultrapassa-se o dualismo do certo e do errado, do
“bom” e do “mau”. Para todos os alunos, com melhores ou piores resultados escolares,
com maior ou menor capacidade, este pode ser um processo de enorme valor formativo.
Aliás, a investigação tem vindo a sugerir que os bons alunos são sobretudo alunos
versáteis e capazes de uma boa adaptação às diferentes situações de aprendizagem
(Entwistle, 1990; Nisbet & Shucksmith, 1986; Reid, 1988). Um (re)conhecimento sobre
a diversidade pode oferecer meios, sugerir ideias, fomentar soluções alternativas. Uma
(re)valorização das diferenças não só respeita os princípios da integração socio-escolar
como está de acordo com os mais elementares princípios éticos de carácter universal. Se
mais nenhuma razão houvesse, estes seriam motivos bastantes para incentivar a inserção
curricular de actividades para a estimulação metacognitiva e para o desenvolvimento de
competências de auto-regulação.
Mas, efectivamente, outras razões podem ainda ser apontadas. Metacognição e
auto-regulação podem relacionar-se com o sucesso ou com o insucesso escolar de outras
formas.
I. INTRODUÇÃO 44
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.2.2. Auto-avaliação e avaliação intra-individual
A identificação de um aluno com dificuldades de aprendizagem decorre muitas
vezes de um processo de avaliação prognóstica, sumativa ou aferida. Em qualquer dos
casos, o desempenho do aluno é comparado com um padrão pré-definido e, de acordo
com um conjunto de critérios de avaliação, considera-se que esse desempenho se situa
aquém do esperado ou do que é exigido em função dos objectivos de um determinado
currículo. Deste modo, a identificação de dificuldades decorre frequentemente da
avaliação de um produto (ou conjunto de produtos) de aprendizagem. Na escola, um
aluno pode ser identificado como um aluno com necessidades educativas especiais não
tanto em função de variáveis processuais intrínsecas mas antes por comparação com um
grupo ou padrão de referência. A observação de discrepâncias ou de desfasamentos
considerados significativos10 pode confundir-se com a observação de outro tipo de
diferenças individuais. Diferenças socioculturais, diferenças ao nível das atitudes, dos
valores, dos interesses, a própria criatividade, originalidade ou rebeldia e nalguns casos
até a sobredotação, podem dar origem a comportamentos diferentes ou a desfasamentos
ao nível do desempenho. De uma forma intuitiva, estas diferenças podem ser
classificadas como distúrbios ou dificuldades de aprendizagem. E por um erro lógico
comum, uma categoria descritiva pode ser facilmente confundida com uma explicação
causal. Por vezes pode passar-se rapidamente de um erro de descrição ou classificação
(por exemplo: “este aluno não tem nada a ver com o resto da turma, é um aluno com
muitas dificuldades”) para um erro de explicação causal (“não aprende porque tem
dificuldades de aprendizagem”). Isto é, uma discrepância ao nível do produto final pode
ser descrita como uma dificuldade de aprendizagem, tal como pode ser explicada por
uma dificuldade de aprendizagem.
10 Em Portugal ainda não existem neste domínio das dificuldades de aprendizagem, normas
específicas que permitam a determinação objectiva de níveis ou critérios de significância. A determinação
da importância ou da gravidade de cada situação decorre essencialmente de critérios subjectivos, em
função de conceitos, atitudes, práticas e experiências pessoais de cada professor ou de normas mais ou
menos implícitas em vigor em cada instituição de ensino.
I. INTRODUÇÃO 45
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Desta forma intuitiva, a noção de dificuldade de aprendizagem pode ser usada de
forma selectiva, para descrever, classificar ou analisar alunos considerados “difíceis” ou
menos aptos. Mas o papel da escola não é (ou não deve ser) seleccionar ou classificar
alunos, antes ajudá-los a atingir o máximo rendimento possível (Bloom, Hastings &
Madaus, 1971, citados por Lobo, 1998). A comparação com um padrão ou com um
grupo de referência permite a identificação de dificuldades e pode conduzir à introdução
de medidas educativas e estratégias pedagógicas mais eficazes e adequadas. Mas não
pode dispensar outras formas de avaliação mais eficazes na promoção da própria
aprendizagem.
Tal como previsto na legislação em vigor, existem outras modalidades de
avaliação, mais centradas no processo de aprendizagem (avaliação formativa) ou nas
necessidades educativas especiais (NEE) reveladas por cada aluno (avaliação
especializada). Estas modalidades podem assistir e facilitar a aprendizagem (Correia,
1997; Lobo, 1998). Acompanham e orientam os processos e os procedimentos de
acordo com o ritmo de desenvolvimento pessoal do aluno, de acordo com critérios intra-
individuais (o desempenho actual do aluno é comparado com o seu próprio
desempenho em momentos anteriores). Nos casos mais difíceis, uma avaliação
especializada permite determinar características e possibilidades individuais, permite a
formulação de uma programação individualizada que promova o sucesso educativo. Em
todos os outros casos, a avaliação formativa constitui um instrumento essencial, num
acompanhamento sistemático, positivo e contínuo do desempenho individual de cada
aluno. Numa concepção de aprendizagem assistida pela avaliação “a avaliação
formativa é a principal modalidade de avaliação” (Lobo, 1998). Baseando-se por vezes
em resultados provenientes de outras modalidades (diagnóstica, aferida ou sumativa),
exerce essencialmente uma função informativa e reguladora do percurso de
aprendizagem de cada aluno, enquanto este ainda está a decorrer. Situa-se por isso, fora
do binómio sucesso-insucesso. Não serve para classificar produtos, antes para descrever
e qualificar etapas. Neste sentido, pode permitir uma identificação precoce de algumas
dificuldades de aprendizagem ou facilitar uma monitorização sistemática e reguladora
dos procedimentos para a recuperação dos alunos em dificuldade.
A estimulação metacognitiva e os programas de treino para o desenvolvimento
de competências de auto-regulação também promovem a auto-avaliação, a avaliação
contínua, e a comparação intra-individual (comparação do desempenho actual do aluno
I. INTRODUÇÃO 46
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
com o seu próprio desempenho anterior). Os alunos são convidados a desenvolverem
desde logo uma concepção funcionalista e adaptativa das estratégias de aprendizagem.
Não havendo “boas” estratégias nem métodos correctos de aplicação universal, o aluno
tem que aprender a monitorizar o seu desempenho para ir seleccionando as estratégias
mais adequadas ao longo de um percurso de aprendizagem.
Esta forma de avaliação já foi designada por “avaliação formadora” (grupo de
professores e de investigadores da Academia d’ Aix-Marsaille citado por Lobo, 1998)
por comparação com a avaliação formativa. Se esta regula a aprendizagem através de
estratégias pedagógicas geridas pelo professor, na anterior a regulação é assegurada pelo
próprio aluno. O aluno pode aprender a utilizar alguns dos procedimentos e
instrumentos de avaliação habitualmente utilizados pelos professores, tais como:
autocorrecção e revisão de trabalhos escritos (Gonçalves, 1992); preenchimento de
listas de verificação e utilização de escalas de valores (Billingsley, 1988; Irwin &
Bushnell, 1980; Itié, 1987; Przesmycki, 1991, 1994); produção de planos de trabalho, de
sumários, diários e registos de aula (Almeida, 1996). A utilização de todos estes
instrumentos requer algum treino, mas requer sobretudo uma mudança de atitudes: (1)
por parte do aluno, que é incentivado a responsabilizar-se pela sua própria
aprendizagem e a assumir um papel mais activo e autónomo; (2) por parte do professor
que se obriga a dosear a sua participação e controle para dar ao aluno oportunidade de
agir e intervir, de identificar e de aprender a lidar com os seus próprios erros e
dificuldades.
Aprender a auto-avaliar, desenvolver hábitos de auto-monitorização, de auto-
correcção e auto-reforço envolve também todo um processo de reconceptualização
cognitiva e atitudinal de professores e alunos. Compreender até que ponto pode ser
necessário e útil saber como identificar os seus próprios erros, conseguir definir
dificuldades, sentir na prática como isso pode contribuir para aprender melhor e para
aprender a aprender, pode constituir um contributo didáctico adicional: pode promover
uma reconceptualização das noções de erro ou de sucesso, e paralelamente, pode
conduzir a uma reflexão e a uma redescoberta da noção de dificuldade de aprendizagem.
I. INTRODUÇÃO 47
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.2.3. Identificação de problemas.
Em linguagem corrente a noção de problema tem geralmente uma conotação
negativa. Em educação, a criação de situações problemáticas pode estimular o
desenvolvimento cognitivo dos alunos, a descoberta de conceitos, a generalização e
aplicação de conhecimentos a novas tarefas, a curiosidade e a vontade de saber. A este
nível a formulação de um problema corresponde a uma primeira etapa num processo de
aprendizagem, condição sine qua non para o prosseguimento com um esforço de auto-
regulação e desenvolvimento pessoal. A introdução de conflitos cognitivos, a
aprendizagem pela descoberta ou baseada na resolução de problemas, decorrem de
alguns dos pressupostos fundamentais numa perspectiva cognitivo-construtivista
(Gredler, 1997). Esta pode ser aplicada na aprendizagem de conceitos científicos, na
convicção de que para aprender ciência, o ensino deve assemelhar-se com os
procedimentos de investigação científica (Abrams, 1998; Bruner, 1998; Canavarro,
1999). Ou, pode ser aplicada a aprendizagens no domínio interpessoal e sociocognitivo
(Ashman & Conway, 1997; Lopes da Silva, 1985), ao desenvolvimento metacognitivo
e em programas de treino de competências de auto-regulação (Loper & Murphy, 1985;
Palincsar & Brown, 1989).
Quando se trata de aprender a aprender, a identificação de problemas é condição
necessária para a descoberta e implementação de estratégias de aprendizagem mais
eficazes. O problema identificado é um estímulo discriminativo. Sinaliza uma situação
que requer uma tomada de consciência e uma análise da natureza das tarefas e das
características do aluno.
No início dos programas de treino de estratégias de aprendizagem, muitos
alunos se interrogam sobre a possibilidade de uma constante auto-regulação, de um
constante esforço de auto-monitorização e autocontrole. De facto, um constante
envolvimento em actividades metacognitivas e auto-regulatórias pode inclusivamente
prejudicar o processo de aprendizagem, na sua fluência e na sua eficácia. Ler um texto,
expor um tema, escrever uma composição, são actividades que podem ser prejudicadas
por um permanente esforço de auto-observação e auto-avaliação. Os treinos permitem
I. INTRODUÇÃO 48
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
desenvolver aptidões, estratégias e atitudes que acompanham e influenciam todos os
processos de aprendizagem de forma intuitiva e espontânea, por hábito e rotina, sem
necessidade de um esforço realmente consciente. Aptidões, estratégias e atitudes a que
é necessário recorrer de forma consciente e auto-regulada em situações de dificuldade,
perante problemas e insucessos.
Nesta perspectiva, professores e alunos precisam de repensar o papel da
identificação de problemas na aprendizagem.
Quando se trata de avaliar, de tentar corrigir erros ou deficiências num
determinado trabalho, a identificação de problemas pode constituir uma oportunidade e
um desafio. Oportunidade, porque só os problemas não identificados nos impedem de
tentar melhorar a situação. Desafio, quando a motivação cresce no esforço de vencer ou
ultrapassar obstáculos. Neste sentido, a identificação de problemas, de dificuldades,
erros e insucessos, pode ser extremamente importante e útil no desenvolvimento de
qualquer percurso de aprendizagem (Antunes, 1998; Edge, 1996; Keefe, 1986;
Morgado, 1997; Swanson, 1990, 1996). É este pressuposto fundamental que orienta a
avaliação formativa e formadora, e que está subjacente à necessidade de estimular
competências metacognitivas e desenvolver a capacidade de auto-regulação. O papel
dos erros e insucessos, dos problemas e das dificuldades pode ser revisto,
reconceptualizado, redescoberto (Goodnow, 1996).
Mais do que um mal a evitar, ocultar e punir, erros e dificuldades podem ser
indicadores preciosos na interacção professor aluno. Tal como no método clínico dos
diálogos conduzidos por Piaget, pensar sobre um problema, analisar respostas e contra-
respostas, permite chegar a um conhecimento mais profundo sobre processos e
estruturas de pensamento. Numa perspectiva construtivista, ajudar um aluno a aprender
é também entender a forma como pensa e concebe, entender que ideias prévias
transporta consigo e o que é necessário para que desenvolva concepções mais
elaboradas e fundamentadas (Morgado, 1997).
Além disso, no pensamento intuitivo ou no método da descoberta, na revisão do
texto escrito ou nos procedimentos de auto-questionação, é preciso estar preparado,
aceitar e estar disponível para a possibilidade de errar. Para alguns alunos (e até para
alguns professores) a vontade de evitar o insucesso, a obrigação de evitar erros, pode
levantar inibições e promover reacções de evitamento. Inibem-se dúvidas porque
I. INTRODUÇÃO 49
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
podem revelar o que ainda não se sabe. Não se fazem perguntas e evita-se até o que se
desejava saber, porque pode ser ridículo e é melhor ficar calado. Inibem-se respostas,
não vá estar errado o que se ia dizer. Inibem-se intuições, porque nunca se tem a
certeza. Inibem-se rasuras, porque vai ficar feio. Inibem-se interesses, vontades,
projectos de fazer e de aprender, porque nunca se sabe, porque pode correr mal.
E no entanto, aprender envolve sempre tantos riscos. Alguns estudantes mais
maduros compreendem a necessidade de pôr em causa ideias prévias e correr o risco de
mudar. É assim mesmo que se referem à aprendizagem quando em estudos
fenomenológicos sobre concepções de aprendizagem dizem que “aprender é ver-se a si
próprio e ao mundo de forma qualitativamente diferente” (Saljö, 1979, citado por
Stevenson e Palmer, 1994). Aprender é mudar, correr o risco de mudar (Zelan, 1991).
Evitar riscos, evitar problemas e dificuldades, é até certo ponto, evitar aprender,
descobrir, inovar.
1.2.4. Aprendizagem de estratégias de resolução de problemas
Talvez uma das razões mais frequentemente apontadas para o evitamento de
problemas seja o receio ou até a certeza de nada poder fazer. Pensa-se muitas vezes que
as coisas são como são e que olhar para os problemas só serve para criar angústias e
desmoralizar. Quando se acredita que não há nada a fazer, quando não se acredita na
possibilidade ou na vantagem de mudar, de fazer ou ser diferente, o problema é um
fardo. Entre tentar mudar as coisas ou aceitá-las tal como são, a passividade convida a
optar pelo mal menor. Porque mal maior seria gastar tempo, energias e esforço a tentar
resolver problemas para que não se conhece remédio nem se vê solução.
Quem assim pensa, participa em actividades de treino metacognitivo de uma
forma muito passiva ou desmotivada. Pensar no que de melhor e de pior caracteriza
uma determinada situação de aprendizagem (Gibbs, 1981), por exemplo, pode parecer
mais um exercício académico do que uma necessidade real.
As intervenções e os programas de treino para o desenvolvimento da capacidade
de revisão do texto escrito, por exemplo, podem ajudar o aluno a descobrir a sua
I. INTRODUÇÃO 50
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
própria capacidade confronto e de resolução de problemas, na escrita como noutras
tarefas de aprendizagem (Gonçalves, 1994).
I. INTRODUÇÃO 51
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.3. Intervenções psicopedagógicas para o desenvolvimento de competências
de auto-regulação: o papel das concepções e crenças pessoais.
Numa perspectiva cognitiva e construtivista, a aprendizagem depende da
construção activa de quem aprende. A aquisição de conhecimentos requer a organização e
a interpretação das experiências de aprendizagem. Os alunos que se sentem mais
responsáveis pela sua própria aprendizagem, e que nela se envolvem mais activamente,
tendem a estar mais motivados e a obter maior sucesso (e.g. Adelman e Taylor, 1990;
Brown, 1988; Paris e Byrnes, 1989). O desenvolvimento de competências de auto-
regulação e controle executivo surge como pré-requisito de uma aprendizagem académica
mais eficaz, autónoma e motivadora (e.g. Swanson, 1990).
Muitos alunos vão desenvolvendo, de forma natural e espontânea, as suas
capacidades de auto-regulação e adquirindo estratégias de aprendizagem que lhes
permitem aprender de uma forma mais produtiva, autónoma e adaptada. Noutros casos,
no entanto, este desenvolvimento parece estar dificultado. Verificam-se défices que
dificultam a aprendizagem ou, pelo menos, não optimizam as possibilidades do aluno nem
facilitam a resolução de problemas específicos. A superação desses défices pode ser
facilitada pela intervenção do professor ou através de intervenções complementares
específicas.
Nesta secção, sintetizam-se alguns princípios orientadores de qualquer intervenção
psicopedagógica para o desenvolvimento de capacidades metacognitivas e de auto-
regulação, integradas ou não no contexto da sala de aula. Referem-se exemplos de
procedimentos instrucionais e alguns programas de treino, nomeadamente para o
desenvolvimento da capacidade de aprendizagem a partir de textos lidos (monitorização e
compreensão da leitura) ou produzidos pelo próprio aluno (composição escrita).
I. INTRODUÇÃO 52
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.3.1. Auto-regulação e aprendizagem em contexto escolar
Ao longo das últimas décadas, vários autores têm contribuído para o
desenvolvimento de modelos de aprendizagem que atribuem a quem aprende um papel
activo (e não meramente reactivo).
Numa perspectiva tradicional, cabe ao professor seleccionar e adaptar as situações
de aprendizagem em função das características de cada aluno. O papel do professor pode
ser concebido como o de alguém que deliberadamente demonstra e modela um conjunto
de habilidades e saberes (Olson & Bruner, 1996). Nesta perspectiva, pressupõe-se que o
professor sabe o que o aluno deve aprender, quando e como, e conhece as melhores
formas de o fazer chegar a essa aprendizagem. O professor conduz de acordo com um
plano pré-estabelecido, o aluno é conduzido. O professor transmite e ensina, demonstra e
expõe. O aluno imita, absorve, apreende, acumula saber e compreensão.
De modo diferente, as teorias de aprendizagem autoregulada consideram que cada
aluno pode aprender a aprender, isto é, pode aprender a seleccionar activamente as
estratégias metacognitivas e motivacionais que mais se adequem a cada tarefa, em função
de características e de objectivos pessoais. Considera-se que cada aluno pode participar
activamente na construção (estruturação) dos seus próprios ambientes de aprendizagem,
apesar (ou em função) das suas limitações cognitivas, socio-culturais, académicas ou
situacionais (Brown, 1988; Bruner, 1999; Meichenbaum, 1990; Whitman, 1990; Wong,
1986; Zimmerman e Shunck, 1989).
De facto, para a maior parte dos autores, os processos de auto-regulação não estão
isentos da influência de factores ambientais e situacionais (Rohrkemper, 1989; Schunk,
1989; Zimmerman, 1989a). Mas, o modo como cada estudante se percepciona a si
mesmo, o modo como concebe o seu papel e os próprios processos de aprendizagem,
aquilo que o motiva, o modo como usa e coordena diferentes estratégias, constituem
determinantes essenciais do seu desempenho académico, em qualquer dos seus domínios:
estudo a partir de textos, escrita ou raciocínio científico (e.g. Brown et al., 1983;
Zimmerman, 1989b).
I. INTRODUÇÃO 53
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Uma aprendizagem bem sucedida evolui em equilíbrio homeostático; supõe uma
constante monitorização dos processos e dos (in)sucessos e a capacidade de lhes
responder de forma adequada (pela selecção e gestão de processos executivos que
permitam resolver os problemas detectados). Os ajustamentos e correcções que vão sendo
efectuados podem ocorrer a diferentes níveis, variando entre mudanças cognitivas (por
exemplo: auto-reforço, alteração de expectativas de auto-eficácia), modificações de
comportamento (substituição da estratégia de aprendizagem em uso, verbalizações,
pausas, etc.) e alterações no ambiente de aprendizagem (mudança de local de trabalho,
busca de materiais, etc.). A utilidade e eficácia destes ajustamentos é, por sua vez,
monitorizada (observada, avaliada...) para determinar se é necessário proceder a novas
alterações. De forma genérica, os procedimentos de automonitorização ajudam a prevenir,
permitem a detecção precoce de problemas de aprendizagem, podem facilitar e motivar
para a mudança (Schunk, 1989; Zimmerman, 1989a); em associação com outros
processos executivos (planeamento, análise e modificação), tornam possível um maior
controle sobre as situações, processos e estratégias necessários à aprendizagem (e.g.
Lawson, 1984).
No entanto, verifica-se que muitos alunos mantêm uma atitude passiva. Mesmo
quando confrontados com dificuldades específicas, parecem não saber como as
ultrapassar. Os alunos menos bem sucedidos revelam um domínio inferior de estratégias e
menor capacidade metacognitiva; apresentam dificuldades de auto-regulação e de controle
executivo (Campione, 1987; Swanson, 1990).
As dificuldades de auto-regulação têm sido associadas a aspectos característicos
do nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos: egocentrismo, dificuldades de
utilização da linguagem na regulação do comportamento (mediação cognitiva) e ausência
metacognitiva (Flavell, 1976; Paris e Byrnes, 1989; Scardamalia e Bereiter, 1985).
Quando os alunos atingem níveis de desenvolvimento que lhes permitem recorrer
a competências de aprendizagem autoregulada, as deficiências de desempenho têm que ser
atribuídas a outro tipo de factores (Zimmerman, 1989b):
• os alunos não consciencializaram a necessidade ou não acreditam na eficácia de
procedimentos de auto-regulação no contexto de aprendizagem em que estão inseridos
("não vale a pena");
I. INTRODUÇÃO 54
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
• os alunos não acreditam na sua própria capacidade de levar a bom termo tais
procedimentos de aprendizagem ("valia a pena mas eu não sou capaz");
• os alunos não estão suficientemente motivados para aprender ou para alcançar um
determinado objectivo ("talvez fosse bom, mas não merece o esforço").
Em resumo, a aquisição de competências de auto-regulação parece estar
dependente de factores de desenvolvimento e de interacção social, podendo ocorrer mais
ou menos espontaneamente, por observação ou descoberta de soluções para problemas
que as situações de aprendizagem vão colocando. Ou pode exigir treino e incentivos
específicos. Além disso, o domínio de competências de auto-regulação parece ser
condição necessária mas não suficiente para um desempenho bem sucedido (Lopes da
Silva & Sá, 1997). Vários factores cognitivos podem interferir ou inviabilizar um
investimento pessoal no exercício de procedimentos de aprendizagem autoregulados
(interesses e valores, crenças, concepções, atribuições, expectativas, objectivos e projectos
pessoais, etc.).
Os programas para o desenvolvimento de capacidades de auto-regulação, deverão
em primeiro lugar, adequar-se ao nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos; em
segundo lugar, desenvolver competências de pré-requisito, nomeadamente, a
descentração, o pensamento alternativo, processos de tomada de decisão e de resolução de
problemas e competências metacognitivas; por último, criar condições que facilitem um
desempenho académico mais adaptativo e eficaz. Neste aspecto, podem referir-se, por
exemplo, a necessidade de promover a mudança de atitudes, crenças e concepções em
relação à aprendizagem (modificação de concepções de aprendizagem (e.g. Gibbs, 1981) e
a introdução de treinos de reatribuição causal (e.g. Groteluschen, Borkowsky e Hale,
1990). Sugere-se, além disso, a importância de proporcionar aos alunos, experiências de
sucesso no controle pessoal da aprendizagem (desenvolvimento da auto-eficácia (e.g.
Graham e Harris, 1989a). Outros programas procuram sobretudo o desenvolvimento de
uma maior auto-estima e auto-aceitação (e.g. Pope, McHale e Craighead, 1988)) sem
esquecer a necessidade de motivar para a aprendizagem, substituindo gradualmente
factores de motivação extrínseca por outros de natureza intrínseca (e.g. Lepper e Hodell,
1989).
I. INTRODUÇÃO 55
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
1.3.2. Procedimentos de intervenção: princípios gerais
A investigação neste domínio tem enfatizado a necessidade de programas de
intervenção psicopedagógica que associem instrução e prática de estratégias de
aprendizagem e que desenvolvam competências de auto-regulação.
Um programa de treino não pode limitar-se ao ensino de estratégias específicas.
Não basta "saber o que fazer" (conhecimento declarativo), é necessário "saber como
fazer" (conhecimento processual), quando e com que objectivos aplicar uma determinada
estratégia (conhecimento condicional), o que também significa compreender o seu valor
funcional (Paris, Cross e Lipson, 1984). Revelaram-se vãs as tentativas iniciais de ensinar
habilidades e métodos de estudo de uma forma prescritiva e descontextualizada ("study
skills mouvement", e.g. Nisbet e Shucksmith, 1986). Mesmo que no final de um treino de
métodos de estudo os alunos demonstrem alguma mestria e um maior domínio sobre os
procedimentos ensinados, tendem a ocorrer dificuldades posteriores de manutenção e
generalização (e.g. Groteluschen et al., 1990). Na prática, em situações de aprendizagem
específicas, os alunos preservam procedimentos anteriores, rotinas a que se habituaram.
Todos os métodos ensinados (mesmo se comprovadamente aprendidos) podem
permanecer como mais um conjunto de saberes, estratégias que se conhecem mas que não
se dominam nem integram na prática diária. Mesmo quando se aprendeu a estudar, mesmo
que o aluno saiba exactamente como deve ou pode fazer, isso não significa que na
realidade algo mude nos seus métodos, hábitos e rotinas.
Além disso, os programas de intervenção não podem pretender uniformizar ou
ritualizar procedimentos. Não existem "receitas de bem aprender". Muito pelo contrário:
as estratégias que parecem mais eficazes numa dada situação, para um determinado aluno,
podem não o ser noutros casos, noutras situações. Uma aplicação adequada e eficaz das
estratégias aprendidas requer a sua constante adaptação em função das características
pessoais do aluno, das tarefas e dos objectivos em cada situação (e.g. Swanson, 1990).
Isto só é possível se for assegurado o domínio de competências de auto-regulação. Mas,
para que essas competências sejam mobilizadas pelo próprio aluno, é necessário todo um
esforço e envolvimento pessoal, que depende de factores motivacionais, atitudes, crenças
e concepções pessoais em relação a si próprio e em relação à própria aprendizagem.
I. INTRODUÇÃO 56
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
De forma genérica, Meichenbaum (1986, citando Borkowski & Cavanaugh, 1979)
sugere que os programas de intervenção para o desenvolvimento de competências de auto-
regulação incluam:
a) a identificação e a prática de várias estratégias aplicáveis a diferentes situações
de aprendizagem (sem esquecer aquelas que os alunos já possuem e utilizam).
b) a descoberta de semelhanças entre as situações de treino e os contextos em que
deverá ocorrer a generalização e manutenção das estratégias aprendidas; os alunos devem
poder reconhecer que as estratégias em treino são aplicáveis a diferentes situações de
aprendizagem, similares àquelas com que se confrontam habitualmente.
c) actividades de pesquisa que incentivem o aluno a gerir a sua própria situação de
aprendizagem. Refere-se, por exemplo, a necessidade de assegurar que o aluno consegue
realmente: analisar cada tarefa de aprendizagem específica; utilizar o seu próprio
repertório de estratégias; seleccionar a estratégia mais adequada de acordo com as
exigências da tarefa, objectivos e características pessoais; elaborar um plano;
experimentar, monitorizar e rever a sua aplicação.
Para uma maior eficácia, é ainda necessário que os programas de treino de
estratégias possam assegurar:
a) que os alunos compreendam o valor funcional das estratégias em treino (e.g.
Graham, Harris, MacArthur & Schwartz, 1991) isto é, que tenham oportunidade de
experimentar e de sentir até que ponto podem ser úteis, até que ponto podem ser a
diferença entre os resultados que habitualmente costuma obter e os que desejam. Muitos
alunos manifestam o seu desagrado quando confrontados com a possibilidade de
experimentarem novas estratégias. Por serem novas, por serem complexas e estruturadas,
porque substituem o que estão habituados a fazer mesmo sem pensar, porque não
acreditam que se possa fazer de modo diferente, porque tudo lhes parece muito
complicado e provavelmente inútil, e por muitas outras razões, os alunos podem
percepcionar as estratégias em treino mais como um fardo do que como uma ajuda.
Muitas vezes os métodos de estudo são entendidos não tanto como instrumentos úteis,
facilitadores das situações em que se quer ou precisa de aprender, antes como “mais uma
coisa” que é preciso aprender, com esforço e sem interesse.
I. INTRODUÇÃO 57
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
b) que os alunos considerem as tarefas seleccionadas para o treino, como
interessantes, similares às situações com que habitualmente se confronta na sua própria
aprendizagem, relevantes e úteis face ao tipo de dificuldades que costuma encontrar. As
situações e exercícios utilizadas durante o treino deverão ser particularmente atraentes e
motivadoras (e.g. Paris, et al., 1984). Aprender a auto-regular a sua aprendizagem
(adquirir estratégias específicas e conseguir um controle executivo) requer grande esforço
e empenho inicial. Na maior parte dos casos, os resultados só começam a tornar-se
visíveis algum tempo depois, à medida que o aluno se vai familiarizando com os
procedimentos de auto-observação e avaliação, com a aplicação de estratégias de
aprendizagem alternativas. De início, tudo pode parecer demasiado novo, intrusivo e
complexo. Torna-se necessário planear formas de apoiar os alunos neste esforço inicial.
As soluções encontradas têm sido múltiplas, incluindo programas de reforço (e auto-
reforço), o recurso a tecnologias de apoio (computador, gravador, máquina de escrever,
etc.), a criação de situações lúdicas (jogo individual ou de equipa) e a preparação de
estímulos discriminativos e auxiliares de memória (cartões, desenhos, esquemas,
metáforas).
c) no caso de utilização de modelos, estes devem ser percebidos pelos alunos
como semelhantes a si mesmos. As estratégias usadas por modelos percebidos como
muito mais (ou muito menos) competentes, tendem a ser consideradas como menos
adequadas ao seu caso pessoal (porque demasiado difíceis ou demasiado fáceis). Os
modelos mais eficazes são "imperfeitos", hesitam, atrapalham-se, precisam de pensar
como vão fazer. Passam por inseguranças e dificuldades e nem sempre obtêm resultados
imediatos. Demonstram o esforço de confronto com novas situações, com a ansiedade,
erros e problemas (e.g. Bandura, 1986). A generalização e a adaptação às características
pessoais pode ser facilitada por modelagem múltipla, quando o modelo não utiliza
consistentemente as mesmas estratégias, as "melhores" estratégias. Pode ser especialmente
interessante ter oportunidade de observar diferentes maneiras de resolver ou de agir numa
determinada situação; ou verificar que situações e problemas diferentes permitem
soluções similares. Os treinos têm usado com frequência o trabalho em grupo de pares,
com e sem a presença de um professor ou monitor (e.g. Paris e Byrnes, 1989; Paris et al.,
1984). A interacção grupal oferece oportunidades de modelagem mútua (e múltipla) entre
sujeitos de características similares, empenhados na realização de tarefas que todos
I. INTRODUÇÃO 58
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
consideram ao seu alcance, com resultados positivos ao nível da auto-eficácia (Schunk,
1989).
d) por modelagem e em interacção grupal, podem aprender-se estratégias mas
também valores, expectativas, crenças (Bandura, 1986; Olson, 1988). Os alunos não
observam apenas as estratégias que os modelos usam, mas também os resultados que
obtêm, as dificuldades que encontram, o esforço dispendido para as ultrapassar. Entre
outros aspectos, podem estar especialmente atentos às verbalizações e atitudes,
procurando extrair informação sobre "perdas e ganhos". Tudo isto deve ser especialmente
considerado na preparação de verbalizações e comportamentos específicos a modelar, por
exemplo pelo professor, durante um programa de treino. Além disso, o grupo pode
partilhar e discutir concepções e crenças de senso comum, sobre os processos de
aprendizagem de modo geral, e sobre os processos e procedimentos em estudo.
1.3.3. Procedimentos de intervenção: exemplos.
Os procedimentos e programas de intervenção para o desenvolvimento de
estratégias de aprendizagem têm sido alvo de diferentes classificações e sínteses (Lopes da
Silva e Sá, 1993; Paris e Byrnes, 1989; Weinstein e Mayer, 1986; Weinstein, 1988).
A aprendizagem de estratégias pode constituir um objectivo curricular e estar
presente de forma implícita nos materiais e tarefas escolares; pode ser alvo de instrução
pontual, em determinadas situações de aprendizagem; ou pode ocorrer em cursos ou
programas de instrução complementar (e.g. Weinstein, 1988). Os métodos utilizados
variam muito, podendo assumir a forma de instrução directa, trabalho com pares
("tutoring"), modelagem, métodos de facilitação da descoberta e outros (e.g. Paris e
Byrnes, 1989). No fundo, o método de ensino de estratégias de aprendizagem pode variar
tanto quanto o ensino de qualquer outro conteúdo. Entre a exposição e a descoberta, em
trabalho individual ou em grupo, por observação, experimentação ou em trabalho de
projecto, pontualmente ou em programas completamente estruturados, o ensino de
I. INTRODUÇÃO 59
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
estratégias depende sobretudo das escolhas, concepções e crenças de quem ensina e de
quem aprende.
O conteúdo ou conteúdos ensinados podem também ser muito variados. Podem
incidir em competências mais gerais de autocontrole e auto-regulação em situações de
aprendizagem (“macro-estratégias”) ou focalizar métodos específicos circunscritos a
determinadas tarefas de aprendizagem (também designadas por "micro-estratégias"). O
desenvolvimento de capacidades de auto-regulação permite ao aluno controlar e gerir a
aplicação das estratégias mais específicas. No entanto, as intervenções com objectivos
mais gerais são relativamente menos frequentes. Talvez por o ensino de macro-estratégias
ser mais complexo, e porque, embora mais generalizável, apresenta resultados menos
imediatos e palpáveis. Por exemplo, se para o desenvolvimento da compreensão do texto,
vários programas têm enfatizado o treino de aptidões de auto-regulação (e.g. Brown e
Campione, 1986), no domínio da composição escrita, os treinos têm enfatizado o ensino
de estratégias específicas (Scardamalia e Bereiter, 1986). São relativamente menos
frequentes os programas de treino para o desenvolvimento de capacidades de gestão do
processo de escrita (e.g. Englert, 1989).
Como se referiu, os métodos utilizados envolvem geralmente situações de
interacção verbal e grupal, para estimular a participação activa de cada aluno, permitir
situações de modelagem (mútua e múltipla) e facilitar a descoberta e construção de
soluções pessoalizadas (Gibbs, 1981; Graves, 1983; Palincsar e Brown, 1989). O trabalho
com o grupo de pares parece ser particularmente útil para o desenvolvimento de
competências de revisão de textos pessoais, porque permite ao aluno consciencializar as
características e reacções da audiência (Daiute, 1986; Graham et al., 1991).
Além disso, o desenvolvimento de capacidades de auto-regulação pode ser
facilitado pelo treino de auto-instrução e pelo ensino de autoverbalizações, sob a forma de
perguntas ou de outras expressões orientadoras da acção, reflexão e para o confronto com
erros e insucessos (Lopes da Silva, 1996). A utilização de um discurso mediador, que
acompanha e orienta o trabalho do aluno, tem sido justificada de diferentes modos e com
diferentes objectivos, tais como: desenvolvimento de competências de mediação
cognitiva; manutenção da atenção e monitorização da tarefa; representação e
I. INTRODUÇÃO 60
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
memorização da informação; maior persistência e sistematização na tarefa (Meichenbaum,
1977; Schunk, 1989).
Por exemplo, tem sido sugerido que os escritores falam consigo mesmos durante
os vários sub-processos da escrita, do planeamento à revisão (Daiute, 1986). Esse
discurso, murmurado ou interior, serve à regulação do processo de escrita. Escritores
experientes interiorizaram essas verbalizações, podendo exteriorizá-lo pontualmente ou
quando solicitado (Flower e Hayes, 1980). Para os principiantes, a aquisição de
determinadas autoverbalizações pode ser um contributo importante para o
desenvolvimento de competências de auto-regulação (Daiute, 1986; Englert, 1989).
No domínio da escrita, a auto-questionação foi utilizada para o ensino de
estratégias de detecção e correcção de error ortográficos (Wong, 1986)
Alguns treinos associam o ensino de autoverbalizações com procedimentos de
modelagem e muitos destes procedimentos parecem directa ou indirectamente
influenciados pelo treino de auto-instrução (Meichenbaum, 1977). Controlando as
autoverbalizações produzidas pelo sujeito enquanto age, o treino visa uma modificação do
diálogo interno (mediação cognitiva) que possibilita a (auto)regulação dos
comportamentos.
Tem sido referida a existência de uma enorme proximidade entre os processos
metacognitivos e os processos envolvidos no treino de auto-instrução (Meichenbaum e
Asarnow, 1979). Inicialmente proposto para intervenções cognitivo-comportamentais em
contexto clínico, este treino foi alvo de adaptações múltiplas, para intervenção junto de
crianças e adultos, na prevenção e remediação de uma grande variedade de problemas,
aprendizagem de tarefas específicas e desenvolvimento de competências (e.g. Lopes da
Silva, 1996): impulsividade, hiperactividade, agressividade, delinquência, isolamento
social, ansiedade e dor; desenvolvimento do autocontrole, de aptidões interpessoais e
estratégias de resolução de problemas. Mas tem sido alvo de muitas outras aplicações,
nomeadamente em contexto educacional: dificuldades de compreensão da leitura,
resolução de problemas na realização de tarefas de aprendizagem e confronto com
situações de fracasso , problemas de memorização (Meichenbaum e Asarnow, 1979).
I. INTRODUÇÃO 61
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
O treino de auto-instrução estimula a capacidade de resolução de problemas e
permite aos alunos a interiorização de determinados indicadores que lhes permitem dar
início a procedimentos de controle executivo, por exemplo, perante uma nova tarefa ou
perante uma situação mais difícil. Permite um domínio de competências de auto-
regulação em áreas e tarefas que anteriormente só poderia realizar sob orientação externa
de outrem, isto é, promove a autonomia do aluno e aumenta a sua capacidade de
adaptação a novas situações. A sua utilização no treino de processos executivos tem-se
mostrado eficaz junto de estudantes com dificuldades de aprendizagem, em diferentes
níveis de escolaridade. Parece ser um método com grandes potencialidades ao nível da
generalização e manutenção dos resultados (Groteluschen et al., 1990).
No domínio da composição escrita, por exemplo, este procedimento foi adaptado e
sucessivamente testado para o treino de estratégias de composição: para o planeamento de
textos narrativos (Harris e Graham, 1985; Graham e Harris, 1989b) e argumentativos
(Graham e Harris, 1989c) e para o desenvolvimento de competências de revisão de textos
pessoais (Gonçalves, 1994; Graham e MacArthur, 1988). Durante o treino os alunos
podem aprender estratégias específicas (de apoio, por exemplo, ao planeamento) e outras
de carácter mais global, para gestão autoregulada de todo o processo de composição
(Graham, MacArthur, Schwartz e Page-Voth, 1992). Os resultados revelam efeitos
positivos não só ao nível dos textos e da utilização das estratégias ensinadas, mas também
ao nível das atitudes em relação à escrita, concepção da tarefa e expectativas de auto-
eficácia.
As dificuldades de aprendizagem no domínio da leitura e da escrita são
insistentemente referidas por professores de todos os níveis e graus de ensino. Talvez por
isso ou talvez porque a escrita e a leitura se constituem como duas tarefas nucleares para a
maioria das situações de aprendizagem, são inúmeros os programas de intervenção que
têm procurado compensar as dificuldades observadas.
De uma forma mais ou menos intuitiva, parece disseminada entre os agentes
educativos a crença numa relação causal entre competências de compreensão e de
produção de textos. É vulgar ouvir-se dizer que os alunos "escrevem mal porque não
lêem", aliciados, como são, por outras formas de expressão (Santos, 1988). Não parece
haver dados de investigação que nos permitam chegar a conclusões seguras sobre este tipo
I. INTRODUÇÃO 62
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
de asserção, que no mínimo parece pecar pelo seu carácter absoluto e linear. Mas podem
ser múltiplas as relações possíveis entre escrita, leitura e dificuldades de aprendizagem.
Por um efeito de exposição a modelagem múltipla, a leitura pode contribuir para a
aquisição de muitos conhecimentos necessários à produção de textos ou planos de escrita,
nomeadamente quanto a regras, critérios e estruturas, que podem ser utilizados como
referência. Mas a escrita encerra algo de paradoxal. Se, por um lado, permite total
liberdade, por outro, impõe constrangimentos, dificuldades e limitações sem fim. Pode
escrever-se sobre qualquer coisa sob as mais variadas formas e, no entanto, cada palavra,
cada linha redigida, coloca restrições às que se lhe seguem. Não se pode escrever sem ter
sobre o quê, mas quando se começa, não se sabe até onde a escrita nos pode levar.
Escrita e leitura podem ser fonte de aprendizagem ou estar na origem de muitas
dificuldades.
O estudo e a intervenção nos processos de revisão pode servir para ilustrar e
sintetizar muitos dos aspectos que actualmente são considerados como essenciais na
prevenção e remediação de dificuldades de aprendizagem (Gonçalves, 1992).
Os processos de revisão envolvem (e permitem observar) o confronto do aluno
com as suas próprias dificuldades, num exercício que, para ser eficaz, envolve
competências de automonitorização, auto-avaliação e controle executivo de micro e
macro-estratégias (e.g. Daiute, 1985). As actividades de revisão requerem ou podem
incentivar uma maior autonomia e envolvimento (activação) pessoal face a tarefas de
aprendizagem. Quem revê precisa de acreditar que o resultado final também pode
depender de si, do seu próprio esforço; quem experimenta rever, aprende a confrontar-se
com erros, insucessos e problemas que é necessário resolver. A revisão pode contribuir
para o desenvolvimento da capacidade de confronto com dificuldades e para a aquisição
de estratégias de resolução de problemas.
Mas o investimento pessoal na revisão de um texto pode também ser uma
experiência de grande frustração e fadiga. Podem reforçar-se facilmente crenças
irracionais de incapacidade, impotência e (im)perfeição, crenças que tendem a criar
dificuldades à aprendizagem (Bard e Fisher, 1983; Kaplan, 1991; Licht, 1983). A
ansiedade que a revisão gera pode ser evitada pelo recurso e dependência em relação a
revisores externos (por exemplo, evitar reler o que se escreveu ou deixar a revisão ao
cuidado de uma outra pessoa). Mesmo quando se tenta uma revisão pessoal, o cansaço e o
I. INTRODUÇÃO 63
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esforço dispendidos, podem nunca chegar a traduzir-se em resultados. Em suma,
dificuldades na revisão podem também contribuir para uma menor motivação em relação
à própria escrita.
Escritores bem conhecidos como Hemingway e Charles Darwin desenvolveram
estratégias de regulação e de autocorrecção das suas tarefas de escrita (Stone, 1978 e
Wallace e Pear, 1977, citados por Graham et al. 1991). No entanto, a revisão parece ser
muito pouco solicitada ou estimulada em contexto escolar: raramente se pede um
rascunho de uma composição ou trabalho e, normalmente, a primeira versão entregue pelo
aluno, é aceite como a versão definitiva (e.g. Applebee, 1982; Bartlett, 1982).
Para quem ainda não domina as tarefas de escrita, os treinos para o
desenvolvimento de competências de monitorização, avaliação e controle da qualidade da
escrita podem ser particularmente úteis.
As intervenções referidas na literatura têm sido categorizadas de diferentes modos
(e.g. Fitzgerald, 1987; Scardamalia e Bereiter, 1986). Podem ser sintéticamente agrupadas
em três grupos: (1) ensino directo e indução de estratégias (e.g. Collins e Gentner, 1980;
Bartlett, 1982); (2) programas de treino complementar com recurso a diferentes
metodologias, tais como, auto-instrução (Graham e MacArthur, 1988), facilitação
processual (e.g. Scardamalia, Bereiter e Steinbach, 1984), auto-observação por auto-
questionação (e.g. Beach e Eaton, 1984), por vezes com recurso a processadores de texto
(e.g. Daiute, 1985; Graham e MacArthur, 1988); (3) e propostas instrucionais para
inserção curricular, como por exemplo, a criação de situações de interacção grupal, numa
adaptação do denominado ensino recíproco (Daiute, 1989; Gibbs, 1981; Palincsar e
Brown, 1989).
Programas de intervenção análogos poderiam ser indicados para outras áreas
nuclerares no processo de ensino aprendizagem. A referência específica aos programas
de treino de estratégias de revisão do texto escrito permite ilustrar a estimulação
metacognitiva e o desenvolvimento de competências de auto-regulação num domínio
em que o próprio aluno se expõe e confronta com erros e dificuldades, problemas e
insucessos. Desde há muito que investigadores e docentes constatam como estes treinos
e programas de intervenção podem ser afectados por concepções e crenças pessoais
sobre a aprendizagem, sobre a escrita, sobre as próprias dificuldades.
I. INTRODUÇÃO 64
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I. INTRODUÇÃO 65
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2. Fundamentos para o estudo das concepções e crenças pessoais
sobre dificuldades de aprendizagem.
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I. INTRODUÇÃO 67
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2. Fundamentos para o estudo de concepções e crenças pessoais sobre
dificuldades de aprendizagem.
Este capítulo pretende sintetizar algumas das razões e pressupostos fundamentais
para o estudo das concepções e crenças pessoais em geral, e mais especificamente, sobre
dificuldades de aprendizagem. Pretende-se justificar deste modo o interesse e algumas
razões fundamentais que conduziram ao presente estudo, descrevem-se estudos
anteriores neste domínio, bem como alguns métodos e perspectivas de investigação mais
recentes.
O capítulo contem três secções distintas, que abordam respectivamente:
• o ressurgimento, numa perspectiva construtivista, do interesse pelo estudo de uma
psicologia do senso comum, também designada por vezes, como Psicologia Cultural
(“Folk Psychology”).
• estudos anteriores que analisaram especificamente a relação entre crenças pessoais
sobre o conhecimento e a aprendizagem em contexto escolar.
• alguns dos principais métodos actualmente utilizados para a investigação e análise de
concepções e crenças pessoais e de outros aspectos da psicologia do senso comum.
O capítulo tem a seguinte estrutura:
2.1. Relação entre concepções, crenças pessoais e sucesso escolar.
2.2. Crenças pessoais sobre o conhecimento e a aprendizagem.
2.3. Métodos de investigação de concepções e crenças pessoais.
I. INTRODUÇÃO 68
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I. INTRODUÇÃO 69
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2.1. Relação entre concepções, crenças pessoais e sucesso escolar.
No início do século passado, Dewey publicou uma série de trabalhos
encorajando professores e outros especialistas na área da educação a perspectivar o
conhecimento e as experiências de aprendizagem do ponto de vista de quem aprende
(Olson & Torrance, 1996). Ao longo do tempo, muitos outros trabalhos no domínio da
Psicologia Educacional têm vindo a reconhecer a necessidade de uma educação que
compreenda e se articule com o desenvolvimento de cada ser humano, no que este
encerra de mais positivo (conceptualização, intuição, mestria, criatividade...) e de mais
constrangedor. A noção de que o desenvolvimento impõe constrangimentos e limites à
aprendizagem, deve ser concebida por um lado, como uma exigência, por outro, como
uma oportunidade11 (Gardner, 1991). Como Bruner referia, numa expressão tantas vezes
mal compreendida, “qualquer disciplina poderá ser honesta e eficazmente ensinada,
numa qualquer forma intelectual, a crianças em qualquer estádio de desenvolvimento”
(Bruner, 1998, p.51). Esta parece ser de facto “uma hipótese audaciosa e essencial”
(Bruner, obra citada).
Essencial porque a cada estádio de desenvolvimento corresponde uma forma
característica de ver o mundo e de o explicar a si próprio. Neste sentido, ensinar exige
a representação da estrutura de cada matéria “nos termos em que a criança vê as coisas”
(Bruner, obra citada).
E pela sua audácia, esta é também uma ideia fascinante. Por um lado, traduz
claramente a noção de que a aprendizagem depende essencialmente de uma correcta e
eficaz adequação a quem aprende (estruturas, esquemas e ideias prévias, concepções e
representações, motivos e valores). Por outro, sugere o carácter universal da
11 “Constraints can assume na even more positive connotation in later life. In my view, it is
constraints that make possible genuine achievements, including human innovation and creativity.”
(Gardner, obra citada, p.262).
I. INTRODUÇÃO 70
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
possibilidade de aprender. Todos podem aprender porque tudo pode ser ensinado. A
responsabilidade e o desafio são enormes, mas a potencialidade existe.
Quando assim se sugere, quando assim se concebe e acredita, torna-se
necessário rever as concepções mais clássicas sobre dificuldades de aprendizagem.
Além disso, esta hipótese adiantada por Bruner nos anos 60, reitera a noção de que a
aprendizagem não é nem um processo quantitativo nem um processo cumulativo. Se o
essencial, se a estrutura de qualquer matéria puder ser traduzida na forma mais simples
possível, talvez isso nos ajude a compreender que saber, não é necessariamente saber
mais, e que talvez exista uma diferença essencial entre complexidade e complicação,
entre criar dificuldades (questionar, problematizar, equacionar, colocar em conflito
ideias ou pressupostos) e dificultar.
2.1.1. Perspectiva construtivista e socio-construtivista: implicações para o
domínio das dificuldades de aprendizagem.
Numa perspectiva construtivista, a interdependência é um conceito fundamental
(Canavarro, 1999). Abandonam-se as noções de causalidade linear e um determinismo
simples e unidirecional, quer de natureza exógena quer de natureza endógena12. Um
mesmo factor pode gerar efeitos muito diversos se mediado (observado, avaliado,
interpretado, valorizado ou integrado) de maneiras diferentes. Uma mesma situação
pode ser vivida de forma diferente por diferentes alunos ou até por um mesmo aluno
em momentos diferentes. As noções de ideossincrasia, de mediação cognitiva, de
motivação e volição, as metáforas e as narrativas pessoais são cada vez mais referidas
para enriquecer a compreensão dos processos de aprendizagem, de metacognição e
auto-regulação (Bandura, 1986; Bruner, 1997; Corno, 1994; Meichenbaum, 1990;
Pintrich & Schunk, 1996; Stevenson & Palmer, 1994; Santos & Gonçalves, 1988;
12 Se numa perspectiva radical, alguns criticam o construtivismo por um excesso de centração na
perspectiva e actividade construtiva do próprio aluno (Gergen, 1995; Shotter, 1995), tal não parece
eliminar, em caso algum, a influência determinante da interacção com o meio, físico, social, socio-
cultural (Bauersfeld, 1995; Confrey, 1995).
I. INTRODUÇÃO 71
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Schunk & Zimmerman, 1994). O determinismo recíproco, a análise de sistemas, a
interacção de factores múltiplos, as perspectivas construtivistas e o pós-modernismo,
que no seu conjunto têm dado origem a tantos contributos para a compreensão da
aprendizagem e do sucesso do aluno, podem também ajudar na compreensão das suas
dificuldades e insucessos (Bruner, 1996; Reid, 1996a).
O trabalho de Piaget e de muitos outros psicólogos do desenvolvimento, de
Vigotsky (1978) a Bruner (1996, 1997, 1998) passando por tantos outros, deveria
encorajar-nos a analisar o conhecimento e as experiências de aprendizagem do ponto de
vista de quem aprende e na descoberta do potencial de aprendizagem de cada um. E no
entanto, os mesmos contributos científicos que poderiam contribuir para a estimulação,
para o desenvolvimento e para a facilitação da aprendizagem, têm sido muitas vezes
usados simplesmente para classificar os alunos em categorias. E, em muitos casos, estas
categorias acabam depois por ser apenas usadas para justificar e legitimar maus
desempenhos, mais do que para os melhorar e compensar (Olson & Torrance, 1996).
Por exemplo, do conjunto dos trabalhos de Piaget no domínio da Epistemologia
Genética, muitos educadores retêm sobretudo a possibilidade de identificar o estádio
de desenvolvimento em que cada aluno se encontra (Bliss, 1995), em detrimento de
muitos outros conceitos que permitiriam uma melhor compreensão e adequação aos
processos de construção de conhecimento e de progressão no desenvolvimento (Piaget,
1973, citado por Gredler, 1997).
Por outro lado, tal como anteriormente afirmámos, décadas de investigação no
domínio das dificuldades de aprendizagem não permitem ainda nem um consenso sobre
tipos e taxonomias nem sobre critérios de avaliação. No entanto, muitos educadores
continuam a desejar sobretudo um diagnóstico diferencial que informe sobre se
efectivamente um determinado aluno “tem ou não tem” uma determinada dificuldade
de aprendizagem.
Ora, como anteriormente se referiu, muito mais do que integrar o aluno numa
categoria específica, importa analisar o seu desempenho no decurso do seu próprio
desenvolvimento; mais do que reiterar o significado normativo de um conjunto de
sintomas, importa determinar o seu potencial de aprendizagem; mais do que precisar o
que o aluno é capaz de fazer hoje, importa identificar o que será capaz de fazer amanhã,
I. INTRODUÇÃO 72
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
se criadas as condições necessárias, nomeadamente na interacção com o grupo de pares
e com o educador (Minick, 1987; Stone & Reid, 1994).
Acredita-se muitas vezes que as dificuldades sociais e interpessoais de um aluno
podem ser explicadas por factores individuais, por características do seu modo de
funcionamento psicológico, que se pressupõe como menos ”saudável” ou adequado.
Para outros, a primazia é dada a factores de ordem cultural e ambiental. Numa
perspectiva de senso comum, acredita-se no mito de um ambiente físico (e social)
objectivo que é dado a cada sujeito para que dele se (in)forme (Stone & Reid, 1994).
No entanto, não parece ser esta a perspectiva estática e pré-determinada que
encontramos descrita em Vigotsky nem no construtivismo social.
Indivíduo e meio, físico ou social, interagem desenvolvendo códigos
linguísticos comuns e interiorizando conhecimento a partir de experiências de carácter
social. O funcionamento intrapsicológico deriva de aspectos interpsicológicos. Por isso
será sempre demasiado reducionista entender estes dois planos, o individual e o social,
como antagónicos ou diferenciados, separados por uma fronteira bem determinada e
estática (Wertsch & Penuel, 1996).
O pressuposto de um certo determinismo social assume a existência de uma
moldagem passiva do comportamento individual. O meio determina o indivíduo. Ora,
pelo contrário, toda a interacção com os objectos é socialmente mediada, passa pela
relação (actual ou evocada a partir de experiências anteriores) com o outro (ou outros
significativos). Desenvolve-se no seio de um complexo sistema de inferências e
comunicações, no qual o aluno tem necessariamente um papel activo. O trabalho em
grupo, a relação professor-aluno, o ambiente social da escola são determinantes
poderosos de todas as aprendizagens, mas é o aluno que constrói um sentido a partir de
toda a “estimulação sensível” que o envolve.
Os alunos com dificuldades de aprendizagem, podem sentir de modo particular,
insuficiências e necessidades de apoio e orientação adicional a este nível. Alguns dos
seus comportamentos menos adequados ou eficientes podem decorrer de crenças ou
concepções desadaptadas (ou geradoras de desadaptação). Estes pressupostos pessoais
podem estar associados a deficiências na interpretação de determinadas situações ou a
dificuldades de integração e apreensão do significado de determinadas tarefas ou
I. INTRODUÇÃO 73
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
interacções. Tais dificuldades não decorrem do contexto em si mesmo nem de
características ou défices individuais estáticos. Antes surgem de forma dinâmica e
interdependente, num jogo muito complexo de interacções, suposições, inferências,
interpretações e atitudes, com base em crenças e concepções, pessoais e de senso
comum.
As concepções e crenças individuais são frequentemente partilhadas,
organizam-se em verdadeiras teorias de senso comum mais ou menos difundidas na
comunidade. Facilitam a adaptação e o funcionamento individual em muitas situações
interpessoais. Na escola também assim é. Existe um corpo de conhecimento implícito,
partilhado no seio do grupo. Mas, por uma razão ou por outra, alguns alunos parecem
não partilhar de aspectos essenciais desse conhecimento tácito, não interpretam ou não
agem em consonância nem de acordo com as expectativas.
No seio do grupo, a comunicação humana evolui frequentemente num ciclo de
tensões e resoluções, numa sobreposição de elementos explícitos e de mensagens
implícitas (Cleeremans, 1997; Stone & Reid, 1994). Nesse equilíbrio, por vezes tão
delicado, entre o que se sabe e o que se adivinha, entre o que nos confunde e o que se
descobre, as dificuldades que o aluno vai encontrando podem contribuir para uma
exclusão, do próprio grupo ou do currículo.
O impacto de tudo o que acontece na sala de aula é imenso e não se
circunscreve ao contexto escolar. O grau de sucesso pessoal na escola está associado
ao sucesso ou ao fracasso na vida como na sociedade (Cousin, Diaz, Flores &
Hernandez, 1996; Vigotsky, 1978). E no entanto, são ainda muito reduzidos os estudos
que investigam a perspectiva pessoal dos próprios alunos a quem foi diagnosticado um
distúrbio ou uma dificuldade de aprendizagem específica. Raramente se têm
investigado casos e histórias de vida (Crozier & Tracey, 2000; Reid & Button, 1996;
Ryden, 1997); relatos e perspectivas pessoais sobre o problema em si mesmo, sobre as
consequências que acarreta no dia-a-dia de quem o vive (consequências instrucionais,
emocionais, motivacionais, relacionais e sociais), sobre as suas expectativas ou sobre as
estratégias pedagógicas que mais os ajudam (Cousin et al.,1996). Até que ponto existe
uma identificação ou não, com o papel e com o estatuto de “aluno com dificuldades”?
Até que ponto cada aluno sente que isso influencia as suas relações com os outros, os
seus projectos ou o seu percurso de vida?
I. INTRODUÇÃO 74
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Em síntese, numa perspectiva construtivista e socio-construtivista, mais do que
determinar o nível de desenvolvimento e as aptidões ou deficiências que caracterizam
cada aluno, importa determinar em que condições de interacção (consigo mesmo, com
os outros e com os materiais em estudo) é possível promover mudanças.
2.1.2. Psicologia e Pedagogia do senso comum.
Diferentes modos de abordar a aprendizagem, diferentes modos de proporcionar
instrução, reflectem afinal diferentes modos de conceber e de acreditar sobre quem
aprende e quem ensina, como se aprende e como se ensina (Bruner, 1996; Cousin et
al.,1996; Olson e Bruner, 1996). As práticas pedagógicas estão imbuídas de um
conjunto de crenças sobre a mente de quem aprende, sobre a aprendizagem, sobre como
se aprende. Alguns desses pressupostos podem ser contraproducentes, prejudicar a
própria aprendizagem.
Por isso, um conhecimento mais aprofundado de crenças e de concepções de
senso comum de alunos a professores é muito mais do que estabelecer as bases para
uma adequada articulação entre currículo e alunos. Não se trata apenas de compreender
e de empatizar com o ponto de vista ideossincrático de um determinado aluno, ou de
conhecer as ideias prévias de cada um sobre uma dada matéria ou conteúdo. Numa
perspectiva construtivista, deve existir sempre um esforço de articulação entre o que o
aluno já sabe sobre um determinado conceito e o que se espera que aprenda. Partir do
que o aluno já sabe permite seleccionar os meios mais adequados e facilita a integração,
generalização e manutenção das novas aprendizagens (Poplin, 1988a). Isso pode ser
particularmente importante na mudança conceptual e na aprendizagem de conceitos
científicos (ver capítulo 3.1) mas isso não é suficiente.
Neste momento, considera-se o papel das ideias prévias num âmbito mais vasto
e de influência mais difusa. Não se trata apenas de indagar o que se pensa,
intuitivamente ou porque assim se aprendeu a pensar, sobre um determinado conceito.
Trata-se antes de analisar todo um corpo de saber tácito (concepções, crenças e
I. INTRODUÇÃO 75
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pressupostos de senso comum), partilhado no grupo e na comunidade e que influencia
comportamentos e atitudes de alunos e docentes, face à aprendizagem e, paralelamente,
face a insucessos e dificuldades de aprendizagem (Fontaine e Faria, 1989).
No fundo, todos vemos o que estamos preparados ver, em função do que
acreditamos ou concebemos, do que aprendemos a acreditar e a conceber. A
experiência anterior (ou a falta dela) acompanha-nos em cada situação nova e, de forma
mais ou menos explícita, influencia a forma como agimos, interpretamos,
determinamos ou escolhemos.
2.1.3. Concepções e crenças associadas ao erro.
O papel do erro na aprendizagem é, provavelmente, um dos aspectos mais
distintivos de uma perspectiva construtivista (Poplin, 1988a).
Como vimos, uma perspectiva de senso comum, os erros são um mal a evitar,
devem ser contrariados e feitos desaparecer. De modo geral, acredita-se que a
aprendizagem perfeita decorre sem erros, que os bons alunos erram muito pouco, que
quanto menos se erra mais e melhor se aprende, que tem maior valor o aluno que
menos erra.
Numa perspectiva de determinismo ambiental, o comportamento operante pode
ser aprendido por tentativa e erro se todas as tentativas forem selectivamente
reforçadas, em função da sua semelhança com um comportamento alvo, com os
objectivos definidos. Isto é, devem ser criadas todas as condições necessárias para uma
diminuição da probabilidade de ocorrência de erros e de insucessos. Quando ocorrem,
os erros devem ser especificamente punidos para reduzir a probabilidade de ocorrência
no futuro. Os comportamentos adequados devem ser reforçados e todos os
comportamentos menos bem sucedidos vão sendo progressivamente eliminados por
aproximações sucessivas, extinção, punição ou reforço de comportamentos
incompatíveis.
Ao contrário, numa perspectiva construtivista, o erro é concebido como um
elemento essencial no processo de aprendizagem. As concepções mudam realmente e a
I. INTRODUÇÃO 76
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aprendizagem adquire maior qualidade quando os alunos se apercebem de que as
experiências actuais não são inteligíveis ou solúveis com base nos conhecimentos
anteriores de que dispõem. Quando as ideias prévias não respondem nem correspondem
ao que se observa ou às necessidades actuais, é necessário construir novo saber.
Quando se tenta resolver um problema, quando se antecipa uma solução e uma resposta
e se erra (e errando se volta a errar) a preplexidade instala-se e entra-se em conflito
(conflito cognitivo, por exemplo, entre o que se observa e o que se esperava observar).
Descobre-se nesse momento que as concepções e formulações anteriores são
insuficientes, imprecisas ou que estão pura e simplesmente erradas. E esse momento
(inquietante, por vezes quase doloroso) é também o momento da oportunidade e do
desafio: na procura de soluções novas, na procura de respostas para incongruências
aparentemente inexplicáveis o aluno pode reencontrar o equilíbrio num nível
qualitativamente superior (Limón, 2001). O confronto com o que se revela
incongruente ou errado, pode ser ocasião de desenvolvimento cognitivo e de
aprendizagem, no seu sentido mais profundo (construção de mudanças conceptuais e
estruturais).
Naturalmente que todo este processo só é possível se o conhecimento anterior
tiver sido adquirido de forma activa, de modo a que o próprio aluno atente, detecte o
problema, analise o erro, aceite a limitação do que até aí suponha estar correcto. Isto é,
o erro só exerce esta função positiva se o aluno naturalmente tiver sido levado a
conceber o conhecimento como um processo integrado e integrador (no binómio
assimilação e acomodação), se tiver desenvolvido uma atitude activa e (re)construtiva.
Além disso, do ponto de vista atitudinal e emocional, o aluno precisa de acreditar (e de
confiar) em si próprio ao ponto de correr o risco de perceber que errou, de enfrentar os
seus próprios erros, de ensaiar novas soluções, mesmo correndo o risco de voltar a errar
(Boimare, 2001; Zelan, 1991). Nesse caso, o aluno pode elaborar e reorganizar o que
julgava saber, e conseguirá provavelmente identificar aspectos essenciais, associar e
relacionar factos e informações. Poderá ir para além da informação dada (Bruner &
Anglin, 1973).
Naturalmente que todo este processo só é possível se o professor em presença
acreditar em tudo e isto e conceber assim. Um professor que conceba de acordo com
uma perspectiva construtivista não procura uma aprendizagem isenta de erros. Pelo
contrário, procura criar ambientes e situações em que os erros possam emergir, possam
I. INTRODUÇÃO 77
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
ser identificados, partilhados e analisados13. Valorizam-se sobretudo aqueles erros que
podem informar sobre o próprio processo de aprendizagem, os que podem ajudar a
clarificar pressupostos conceptuais que impedem a progressão do aluno. Tal como se
observa nos diálogos clínicos conduzidos por Piaget, perguntar de forma que permita
observar erros, detectar incongruências, e depois analisar cuidadosamente os
pressupostos subjacentes, torna-se muito mais informativo sobre o nível conceptual do
aluno, do que aceitar simplesmente uma resposta formalmente certa. Enquanto numa
perspectiva reducionista os alunos são penalizados sobretudo por imprecisões e erros
formais (por exemplo, erros ortográficos, tabuada e erros de cálculo), numa perspectiva
construtivista valorizam-se sobretudo erros conceptuais, reveladores de processos
cognitivos de ordem superior (por exemplo, estrutura e selecção de conteúdos, noção
de número e utilização funcional das operações). Estas opções tornam-se salientes
quando se preparam provas de avaliação, quando se seleccionam questões e critérios.
Concepções e crenças determinam o tipo de erros que mais se valoriza e influenciam a
selecção de estratégias de aprendizagem que os identificam. E, deste modo, podem
influenciar de forma determinante que alunos serão provavelmente identificados como
tendo dificuldades de aprendizagem e o tipo de dificuldades a que cada professor
tenderá a estar atento.
Numa perspectiva construtivista, muitas das coisas que consideramos
vulgarmente como erros, como problemas e dificuldades de aprendizagem, são
efectivamente sinais de evolução processual, sinais de uma efectiva aprendizagem14
(Edge, 1996) e como tal podem e devem ser valorizadas.
13 Ao contrário, numa perspectiva tradicional, os erros são algo a ocultar, a disfarçar, a apagar, a
esquecer. Que ninguém veja nem repare. Quando notados os erros são riscados, salientados a traços
vermelhos, punidos e enfatizados de forma negativa. Por vezes são até motivo de escândalo e exposição
pública, como se fosse inconcebível alguém poder errar assim... 14 Por exemplo, a qualidade de escrita de um aluno pode parecer prejudicada quando este se
decide a mudar as suas estratégias de composição. Enquanto procura novas formas de planear, produzir
ou rever o texto, o produto escrito pode revelar insuficiências e dificuldades que não constituem
realmente uma dificuldade. Trata-se apenas de uma espécie de “efeito secundário” de um esforço de
aprendizagem e devem ser interpretadas como uma etapa característica de todas as situações de aquisição
de novas estratégias.
I. INTRODUÇÃO 78
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
No ensino recíproco, no trabalho de grupo, no trabalho de projecto, no trabalho
em pares e em tantas outras metodologias em que se pretende fomentar a colaboração,
os alunos são encorajados a assumir um papel activo na avaliação do seu próprio
trabalho e do trabalho alheio. Nessas ocasiões, quando se mudam procedimentos mas
as crenças e concepções persistem, assiste-se por vezes a verdadeiros autos de fé em
que o grupo de “crentes” (chamados, por exemplo, a ajuizar sobre pecadilhos e outras
faltas disciplinares) se armam de convicções inabaláveis, enfatizam os erros, nada
perdoam e tudo condenam, sem dó nem piedade.
2.1.3. Hábitos mentais
“achieving children think in ways that are different from children who
underachieve.” (Bernard, 1997, p.xii)
Algumas tendências ou hábitos mentais podem favorecer o sucesso e a
adaptação pessoal a qualquer situações de aprendizagem (Bernard, 1997). Na
sociedade, na escola, em família, cada aluno vai aprendendo, por modelagem e
contingências de reforço, a reagir de determinadas formas. Bernard introduziu a
designação de “hábito mental” (Habit of the Mind, obra citada, p.128) para ajudar pais
e professores na identificação de práticas educacionais menos favoráveis e de maior
risco, sugerindo tendências cognitivas mais adaptativas e facilitadoras do sucesso
escolar.
Um “hábito mental” é uma tendência pessoal para pensar de uma determinada
forma. E pensar assim, dá origem a emoções e reacções comportamentais mais e menos
funcionais, de maior ou menor risco de insucesso. Perante uma tarefa ou perante uma
dificuldade, a forma como o aluno pensa (a forma como o aluno se habituou a pensar)
determinada a forma como se vai sentir e reagir, aumenta ou diminui a probabilidade de
superação e de êxito.
I. INTRODUÇÃO 79
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
São onze os hábitos ou tendências identificados por Bernard (1997), que podem
definir-se de forma bipolar, entre um extremo mais favorável e um oposto de maior
risco:
1. Auto aceitação (versus auto depreciação) refere-se à capacidade de separar
acções e comportamentos de juízos de valor pessoal. Até que ponto o aluno
consegue aceitar-se a si próprio quando tem um mau desempenho, uma má
nota, quando é rejeitado ou criticado por outros.
2. Tomada de risco (versus perfeccionismo) refere-se ao grau em que o aluno
acredita que experimentar tarefas novas e difíceis e, naturalmente, cometer
erros, é necessário, é positivo, faz parte da aprendizagem. Ou, pelo contrário,
até que ponto o aluno sente a necessidade absoluta de ser sempre perfeito,
mesmo em tarefas menos importantes.
3. Independência (versus necessidade de aprovação), relaciona-se com auto
aceitação e refere-se ao grau em que o aluno consegue separar a sua própria
avaliação de valor pessoal de juízos negativos de outras pessoas. Até que
ponto reconhece e aceita que a aprovação dos outros (pais, professores, pares)
pode ser desejável, mas que não precisa de constante aprovação para ter valor,
para sobreviver, para ter sucesso.
4. Optimismo (versus pessimismo) refere-se ao grau em que o aluno tende a
prever sucessos, vê oportunidades, aceita desafios, e evita assumir uma
responsabilidade total pelos seus insucessos. Numa perspectiva pessimista, as
dificuldades actuais conduzem habitualmente a generalizações negativas a
muitas outras áreas da vida do aluno: competências pessoais, valorização
pessoal, perspectiva sobre o mundo.
5. Locus de controle interno (versus externo) refere-se ao grau em que o aluno
acredita que o sucesso se deve ao seu esforço, mais do que a factores externos
como a sorte ou a facilidade da tarefa. Até que ponto acredita que o esforço
conduz a níveis de aptidão e desempenho mais elevados e que o desempenho
não depende de aptidões naturais, fixas e inatas.
I. INTRODUÇÃO 80
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
6. Elevada (versus baixa) resistência à frustração refere-se ao grau em que o
aluno aceita que para alcançar os seus objectivos e ter sucesso, tem por vezes
que fazer coisas difíceis, frustrantes, aborrecidas. Até que ponto consegue
resistir a actividades mais agradáveis (lúdicas, sociais) até acabar o trabalho
que tem que fazer.
7. Estabelecimento de objectivos (versus ausência de objectivos) refere-se ao
grau em que o aluno valoriza a escola como forma de alcançar os seus
objectivos pessoais e se está ou não seriamente empenhado em fazer o que for
necessário para os alcançar. Até que ponto tem grandes objectivos de longo
prazo, objectivos realistas para médio prazo e objectivos específicos para
cada tarefa.
8. Boa (versus má) gestão do tempo refere-se ao grau em que o aluno consegue
gerir as suas tarefas e obrigações escolares, extracurriculares, familiares, de
acordo com prioridades relativas. Até que ponto é capaz de (e costuma)
dividir projectos e tarefas complexas e extensas em partes, em etapas menores
e mais simples.
9. Tolerância social (versus intolerância) refere-se ao grau em que o aluno
reconhece e aceita que toda gente é falível e comete erros. Até que ponto
reconhece e aceita que não é razoável avaliar globalmente o valor de uma
pessoa, com base nos seus erros ou acções específicas.
10. Resolução reflexiva de problemas (versus impulsiva) refere-se ao grau em
que, perante situações de conflito interpessoal, o aluno é capaz de gerar um
conjunto de soluções alternativas. Até que ponto é capaz de avaliar
consequências positivas e negativas de cada solução, de avaliar as
consequências das suas acções ao nível dos sentimentos dos outros.
11. Intolerância (versus tolerância) em relação a regras e limites refere-se ao grau
em que o aluno consegue viver com os limites e regras impostas, como uma
necessidade para conseguir viver em grupo, na escola, na família e sociedade,
mas também como uma forma de atingir os seus objectivos a longo prazo.
I. INTRODUÇÃO 81
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Na perspectiva de Bernard (ob. citada, 1997), pais e professores podem
favorecer o desenvolvimento de tendências mais funcionais de diferentes modos:
• Exemplificar, explicar, demonstrar e ajudar a reconhecer a relação entre a forma
como se pensa e o modo como se reage, isto é, entre auto-verbalizações e
comportamento observável. Por exemplo, associar determinadas cognições
específicas a determinadas consequências: se depois de um erro o aluno pensa que
“não vale a pena”, que “não dá, não vou ser capaz” ou “isto só vem provar que eu
não valho nada”, é natural que, em consequência, experimente sentimentos de perda
de confiança, de depressão e que sinta vontade de desistir; se, pelo contrário, o aluno
pensar que “eu continuo a ser eu”, ou que “isto não dá cabo das minhas qualidades”,
mesmo desapontado e triste, tenderá a manter a confiança e o esforço porque se
“uma andorinha não faz a primavera, um erro não faz um falhado”.
• Disputar pensamentos disfuncionais, por exemplo ajudar a descobrir como é que
algumas das suas avaliações e percepções são prejudiciais e erróneas: “será que faz
sentido pensar assim? será que te ajuda pensar assim? o que faz pensar que vai ser
assim? como sabes que é assim?”
• Estimular o estabelecimento de objectivos pessoais mais razoáveis. Muitos alunos
com mau aproveitamento acham que já dão o máximo, que se esforçam imenso.
Outros estabelecem objectivos demasiado exigentes e perfeccionistas, que depois
desistem de alcançar ou que os impedem de progredir (por considerarem que não é
possível “queimar etapas”, deixar algo por fazer ou com menor qualidade.
• Dar ao aluno oportunidade de experimentar alternativas de confronto cognitivo com
alguns dos seus insucessos, isto é, oportunidade de experimentar verbalizações mais
e menos funcionais (ver Quadro A.). Por exemplo, aprender a pensar em voz alta: “o
que é que eu tenho que fazer para conseguir isto? Por onde posso começar? Posso
dividir isto em partes?”
• Criar, sempre que possível, ocasiões em que o aluno possa observar e experimentar
tendências mais funcionais: por exemplo, discutir crenças sobre o erro, explicar que
é natural cometer erros, que é natural que outras pessoas notem os nossos erros, mas
que toda a gente erra, toda a gente pode ser vista a errar.
I. INTRODUÇÃO 82
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
• Reforçar o próprio aluno ou outros (reforço vicariante) pela utilização de hábitos
mais funcionais.
Esta perspectiva insere-se numa corrente cognitivista que tem por base o estudo
das relação entre a cognição (auto-verbalizações ou pensamentos automáticos) e
comportamentos, em sentido amplo (reacções emocionais, respostas neuro-fisiológicas,
compostamentos observáveis). Mais do que pensar que o indivíduo reage passivamente
a um conjunto de estímulos ambientais em função de contingências de reforço, os
modelos cognitivos consideram que cada pessoa é um activo construtor da sua própria
“visão” do mundo (Bandura, 1986; Kaplan, 1991; Meichenbaum, 1977, 1986; Meyers,
Cohen & Schleser, 1989). Esta perspectiva encontra-se descrita com maior detalhe no
capítulo sobre psicoterapia e apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de
aprendizagem (capítulo 3.3.).
Quadro A.
Paralelismo entre verbalizações mais e menos funcionais e adaptativas
Verbalização não funcional Alternativa construtiva
“...as coisas vão correr bem de qualquer modo,
quer eu trabalhe ou não.”
“...se eu não me esforçar, as coisas não vão correr bem!”
“...a escola devia ser divertida, interessante,
confortável.”
“...o trabalho escolar vai ser difícil, chato, às vezes; não é o
fim do mundo, quando as coisas não correm ao meu gosto,
não temos de gostar de tudo. Eu aguento!”
“...os meus amigos não vão gostar se eu me
esforçar muito.”
“... se por trabalhar no duro eu perder um ou dois amigos,
então não deviam ser grandes amigos. Posso passar sem
esse tipo de amigos.”
“...eu tenho que ser capaz de ser 100% perfeito,
ou então isso quer dizer que nunca vou ser
ninguém. Para que é que serve passar?”
“...se não faço uma coisa bem, não significa que sou um
falhado, pois não? Quando descubro um erro é porque
aprendi alguma coisa. Se eu já soubesse tudo não precisava
de continuar a aprender.”
“Nada do que se aprende na escola me vai servir
no futuro, é tudo para esquecer!”
“...o que eu faço agora na escola, as notas que tenho vão
influenciar as minhas oportunidades no futuro. Trabalhar
no duro agora pode abrir portas no futuro.”
I. INTRODUÇÃO 83
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
2.2. Crenças pessoais sobre o conhecimento e a aprendizagem.
A investigação psicológica sobre o desenvolvimento epistemológico teve início
em meados do século XX. O termo “epistemologia” é sinónimo de “teoria do
conhecimento (Blackburn, 1997) e engloba diversas questões nucleares, entre outras: a
origem do conhecimento e a forma como experiência e razão intervêm na sua génese; a
relação entre o conhecimento e a certeza ou entre o conhecimento e a possibilidade de
erro. Relaciona-se com questões filosóficas mais amplas, tais como: a natureza da
verdade, da experiência e do significado. Na procura de respostas para estas questões,
confrontam-se essencialmente duas metáforas opostas (“rivais” na acepção de
Blackburn, ob.cit.).
O conhecimento pode ser concebido como um edifício em construção sobre
fundamentos, escolhidos ou aceites, convencionais ou alternativos. Os “dados” estão na
base de todo o conhecimento e ao epistemólogo cabe a tarefa de descrever
fundamentos sólidos e de identificar os métodos de construção mais seguros.
Ou, por outro lado, o conhecimento pode ser concebido mais como um barco ou
um aeroplano, onde o equilíbrio da estrutura não depende tanto dos fundamentos nem
da solidez de fixação às “raízes”, mas cuja força advém essencialmente da estabilidade
e coerência interna, dada pelas partes inter-relacionadas. Lauden (citado por
O’Donohue & Kitchner, 1996) sugere que os problemas conceptuais surgem quando
uma teoria parece internamente inconsistente, quando os seus conceitos são vagos ou
quando colide com outras teorias que também se consideram verdadeiras. Neste
sentido, pode considerar-se que há progresso científico, não tanto quando os factos
confirmam as teorias, antes quando é possível resolver um problema conceptual sem
que isso acrescente um sem número de novos problemas, empíricos e conceptuais.
O objectivo principal corresponde sempre a um esforço de maximizar o número
I. INTRODUÇÃO 84
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
de problemas com resposta, minimizando o número de problemas insolúveis15.
No âmbito da Psicologia da Educacão, a designação “crenças epistemológicas”
tem sido referido para designar crenças sobre a natureza do conhecimento e da
aprendizagem (Schommer, 1994b). Estas crenças, mesmo que implícitas, podem
influenciar muitos aspectos relacionados com a aprendizagem: atitudes, raciocínios,
tomadas de decisão, etc. Só nas últimas décadas se tornaram efectivamente objecto de
estudo da Psicologia da Educação. Da psicologia e não da filosofia.
Numa perspectiva filosófica, as crenças sobre o conhecimento são analisadas
numa perspectiva universal, absoluta e isenta em termos de conteúdo. Em investigação
cognitiva, o foco não é a crença em si, antes o indivíduo. Procura-se determinar, por
exemplo, até que ponto cada pessoa acredita realmente na verdade (certeza e rigor
absolutos) da informação e do tudo o que é dado conhecer, na escola e no dia-a-dia,
através dos media ou de outros elementos de divulgação científica. Numa perspectiva
psicológica, estuda-se o modo como cada indivíduo concebe a estrutura e a natureza do
conhecimento, como descreve os processos de aprendizagem, de aquisição e acesso a
esse mesmo conhecimento. Ou ainda, que valor, credibilidade e permanência atribui
cada pessoa às leis e asserções científicas, bem como a outras formas de saber.
Crenças, concepções, descrições (“visões”) da vida e do mundo, atribuições são
conceitos psicológicos relacionados entre si e de delimitação muito difícil
(Quackenbush, 1988; Rego, 1999). Na literatura são muitas vezes referidos de forma
quase indistinta, na prática é possível que se refiram a aspectos que se sobrepõem ou
interagem.
15 O conceito de “learning disability” tem-se revelado um conceito extremamente difícil, difícil
de operacionalizar e definir, de uma forma clara, específica e consensual, difícil de avaliar e diagnosticar.
Pode perguntar-se até que ponto para resolver um problema conceptual, não se acrescentaram afinal
muitos outros problemas (e.g. Stanovich, 1993).
I. INTRODUÇÃO 85
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
2.2.1. Crenças epistemológicas
Vários trabalhos podem ser referidos como marcos significativos no estudo de
uma epistemologia de senso comum (Greene, 1994; Greeno, Pearson & Schoenfeld,
1999; Hofer & Pintrich, 1997; Hofer, 2000; Montgomery, 1992).
Schommer (1994a, 1994b) iniciou o seu próprio projecto de pesquisa tendo
como referência os dados e os questionários de Perry (1968, citado por Schommer,
1990) e alguns resultados de estudos anteriores no domínio da compreensão da leitura
(Schommer & Surber, 1986). Desenvolveu um Questionário Epistemológico que
permite um estudo das crenças epistemológicas mais normativo e quantitativo do que
os anteriores (quase sempre com base em entrevistas para análise qualitativa). Além
disso, sugeriu que as crenças epistemológicas não fossem concebidas de uma forma
unidimensional, nem associadas a uma sequência fixa de estádios de desenvolvimento.
Ao contrário, propôs um sistema de crenças complexo, constituído por cinco dimensões
mais ou menos independentes: estrutura, certeza, origem do conhecimento, controle e
velocidade de aquisição do conhecimento.
O Questionário Epistemológico, constituído por 63 itens agrupados em 12
subconjuntos, permitiu a identificação de quatro factores, que formulados de uma
perspectiva ingénua, são: I) a capacidade de aprender é fixa e não pode ser melhorada;
II) a aprendizagem ocorre rapidamente ou já não ocorre; III) o conhecimento é simples,
constituído por elementos isolados; IV) o conhecimento é absoluto, fixo, o que é
verdade hoje será sempre verdade. A hipótese inicial de uma quinta dimensão (sobre
autoridade epistemológica e origem do conhecimento) não emergiu como factor. Esta
estrutura factorial tem sido estudada e revista em diferentes contextos (universitário,
secundário), relacionada com diferentes tarefas escolares de compreensão da leitura em
diferentes domínios (matemática, ciências sociais, ciências físicas), em estudos
transversais e longitudinais (Schommer, Calvert, Gariclietti & Bajaj, 1997).
Mais recentemente, Qian & Alverman (1985) relacionaram os resultados do
Questionário Epistemológico com medidas de desânimo aprendido e de modificação
conceptual, em estudantes do ensino secundário. Os estudantes com desânimo
I. INTRODUÇÃO 86
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
aprendido percebem os obstáculos e as dificuldades como insuperáveis e indicadores de
baixa capacidade. Acreditam que é inútil esforçarem-se porque o fracasso é inevitável
e não depende do seu próprio controle. Os resultados sugerem a existência de uma
relação moderada entre crenças epistemológicas e desânimo aprendido, e indicam que
a existência de crenças epistemológicas mais imaturas (certeza e simplicidade do
conhecimento e rapidez na aprendizagem) é factor preditivo de um pior desempenho
em tarefas de aprendizagem de conceitos.
2.2.2. Concepções de aprendizagem.
As concepções pessoais sobre conceitos científicos têm sido estudadas em
muitos domínios com o intuito de desenvolver e assegurar um ensino de conteúdos
científicos de maior qualidade (Welford, Osborne e Scott, 1996). No domínio da
Psicologia Educacional têm-se multiplicado os estudos sobre concepções pessoais, em
diferentes contextos e sobre conteúdos muito diferentes.
Os estudos sobre a concepção de aprendizagem têm surgido sobretudo na
Europa, em equipas de investigação nórdicas e anglo-saxónicas, privilegiando
metodologias fenomenológicas, estudos de casos e outros, em investigações quase
sempre de natureza qualitativa. Neste capítulo, podem referir-se entre outros, os
estudos que abordam as concepções16 sobre a aprendizagem em diferentes níveis etários
e de escolaridade, desde os primeiros anos da infância (Klatter, Lodewijks & Arnoutse,
2001; Pramling, 1988, 1996) até ao ensino universitário (Bruce & Gerber, 1995;
Eklund-Myrskog, 1997; Lonka & Lindblom-Ylänne, 1996; Marton & Booth, 1996).
Os trabalhos sobre concepções de aprendizagem têm surgido no contexto de
acções e cursos de formação de futuros professores e na formação inicial de outros
técnicos em ciências da educação, psicologia, pedagogia, sociologia. Neste contexto,
reflectir (e ajudar a reflectir) sobre concepções pessoais quanto à aprendizagem, pode
associar-se a uma reflexão formativa sobre concepções e crenças sobre o ensino
(Duarte, 2000; Rego, 1999; Tynjälä, 1997).
16 a referência ao carácter pessoal destas concepções, embora possa parecer uma simples
redundância, pretende sobretudo reforçar o carácter subjectivo e tácito deste conceito.
I. INTRODUÇÃO 87
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
2.3. Métodos de investigação de concepções e crenças pessoais.
Desde o início dos anos 80, final do século XX, um grande número de estudos
tem vindo a comparar concepções de pessoas comuns (“laypeople”, leigos na matéria,
isto é, pessoas sem formação específica na área em estudo) e concepções de
especialistas e investigadores. Estes estudos têm sido considerados particularmente
importantes porque estas teorias de senso comum resultam e dão origem a
comportamentos sociais. Compreender os fundamentos que lhes dão origem, prever
futuras concepções que deles resultam pode ser útil em diferentes domínios, da
psicologia social á psicologia educacional, da psicoterapia à intervenção socio-política.
As teorias implícitas de senso comum diferem das teorias explícitas e
cientificamente fundamentadas de muitos modos. As primeiras baseiam-se no
significado socio-cultural atribuído às palavras e aos conceitos. As segundas tentam
definir e medir, procuram resistir ao tempo e á cultura.
Mas numa perspectiva pós-moderna sabemos como a fronteira entre os dois
domínios não é tão firme e estável como pareceu em épocas passadas. Até ao século
XVII parecia haver uma fronteira intransponível entre opinião e conhecimento, entre
objectividade e subjectividade, entre exacto e impreciso (Hacking, 1975, citado por
Olson & Bruner, 1996). Hoje em dia duvidamos cada vez mais do carácter definitivo e
absoluto de uma tal fronteira e não parece necessário “lançar para a fogueira” tudo o
que não pode ser logica ou empiricamente demonstrado, como afirmava Bruner numa
conferência proferida em 1993, em Toronto (Bruner, 1995), referindo-se à forma como
o pensamento grego tolerava todas as formas “naturais” de elaboração de significado
(“sens”). Na perspectiva de Bruner, o pós-modernismo retoma essa tradição,
provavelmente de uma forma menos ingénua. Procurar saber, entender e explicar, como
as pessoas chegam á compreensão de determinados conceitos complexos (mas de uso e
referência comum) permite, além do mais, um reconhecimento de diferentes modos de
elaboração de significado. Na perspectiva de que a ciência cognitiva sintetiza todo o
I. INTRODUÇÃO 88
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
nosso saber sobre as diferentes possibilidades de utilização do pensamento. Se a
intersubjectividade não basta como critério de validade e rigor, não nos pode bastar
também uma simples e reducionista restrição do saber às necessidades e questões
geradas no âmbito de uma ciência analítica, positivista e distante do senso comum. Se
hoje em dia parece cada vez mais importante difundir e vulgarizar o conhecimento
científico, divulgar pressupostos e resultados empíricos, não deve ser considerado
como menos importante o objectivo de estudar “a psicologia comum da gente vulgar”
(Bruner, 1997, p.39). No fundo, trata-se de compreender que estudar crenças e
concepções de senso comum, não é simplesmente analisar um conjunto de “ilusões
auto-suavizantes” (obra citada, idem), tão pouco o estudo de ideias ingénuas e muito
pobres, difundidas entre gente inculta ou pouco atenta. Ao contrário, trata-se antes de
uma evolução conceptual e metodológica com implicações e aplicações muito mais
profundas e inovadoras (Bereiter, 1994; Bereiter & Scardamalia, 1996; Costley, 2000;
Dockrell, Lewis & Lindsay, 2000; Egan, 1996; Marton & Booth, 1996; Mertens, 1998;
Pramling, 1996). O estudo de uma psicologia do senso comum, o estudo de crenças e
concepções pessoais é afinal o estudo de um importante conjunto de factores
mediadores, com um papel nuclear para o estudo e compreensão de muitos
comportamentos e fenómenos humanos.
Alguns dos conceitos estudados situam-se na área da saúde e do bem-estar
físico e psicológico: concepções sobre causas e tratamentos em situações de doença,
mental ou física (Furnham, 1984; Furnham & Henley, 1988) e concepções sobre
psicoterapia, prognóstico e indicações terapêuticas (Furnham & Wardley, 1991;
Furnham, Lillie & Wardley, 1992). Ora, na medida em que as dificuldades de
aprendizagem podem ser popularmente consideradas como problemas de saúde,
factores de risco pessoal a nível físico ou psicológico, na medida em que são situações
que requerem apoio psicopedagógico especializado ou adaptações curriculares esta
linha de investigação parece ter um particular interesse e funcionalidade.
Por exemplo, para o controle de problemas psicológicos tais como: agorafobia,
anorexia nervosa, jogo compulsivo e esquizofrenia, Furnham & Henley (1988)
identificaram com base num questionário, cinco factores que os leigos consideravam
como importantes: controle interno, compreensão sobre o problema, evitamento, base
fisiológica do problema, ou destino (“fate”). Estes cinco factores, num contínuo entre
total ausência de controle pelo sujeito e a possibilidade de um controle interno, foram
I. INTRODUÇÃO 89
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
replicados em estudos posteriores (Furnham, 1988, citado por Furnham, Lillie &
Wardley, 1992). Comparados com os leigos, os psicoterapeutas revelam maior
cepticismo e pessimismo relativamente aos resultados da terapia enquanto os leigos
revelam uma maior ingenuidade conceptual e um maior optimismo quanto ao
prognóstico de cada caso.
No entanto, estes estudos apresentam alguns problemas metodológicos
específicos, nomeadamente:
• A generalidade dos estudos que colocam em confronto a perspectiva de leigos com a
de especialistas, não permite controlar o factor educação ou escolarização. Além de
especialistas na matéria em análise, os não leigos apresentam em média um nível de
escolaridade e de formação superiores. As diferenças observadas podem decorrer
dessa formação adicional, mais do que de uma formação específica na área em
estudo.
• Muitas vezes estes estudos não permitem controlar diferenças individuais a nível
conceptual, diferenças que se podem observar no seio de cada grupo. Tal como a
investigação tem mostrado, por vezes podem observar-se tendências e concepções
bem diferenciadas entre os próprios especialistas. Ao comparar, por exemplo, a
perspectiva de leigos com a de psicoterapeutas, não é possível ignorar a diversidade
de tendências e de perspectivas sobre o processo terapêutico que este grupo
profissional encerra (Vasco, 2001). É provável que uma variação similar ocorra em
qualquer grupo, mesmo quando existe uma formação ou experiência profissional
comum.
Apesar destas limitações, os resultados e a reflexão que estes estudos têm
gerado reforçam a importância de prosseguir nesta via de investigação. A título de
exemplo, a visão epistémica do mundo e as “teorias implícitas do terapeuta” (Najavits,
1997, citado por Vasco, Silva & Chambel, 2001) e do cliente, têm sido apontadas como
variáveis influentes na forma como se conjugam entre si na relação terapêutica. As
“visões do mundo” influenciam aquilo que cada pessoa considera como conhecimento
válido e formas de o obter. Uma maior similitude entre a “visão” do terapeuta e as
concepções dos clientes pode contribuir, nalguns casos, para aumentar o envolvimento
I. INTRODUÇÃO 90
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
na terapia e facilitar a aliança terapêutica (Vasco, Silva & Chambel, 2001) embora estes
resultados variem em função da orientação terapêutica em causa.
Algo de similar pode talvez ser sugerido para a aliança pedagógica (ver também
capítulo sobre formação de professores) e pode ser estudado através de várias
metodologias de análise de natureza qualitativa e quantitativa.
A metodologia de questionário tem sido utilizada com frequência, nestes como
em outros estudos: no estudo de crenças, concepções e teorias implícitas sobre a
aprendizagem (Chan & Sachs, 2001; Lamon, Chan, Scardamalia, Burtis & Brett, 1993),
sobre o conhecimento (Hofer, 2000; Schommer, 1990), e sobre a inteligência (Faria,
1996; Faria & Fontaine, 1989, 1997; Lynott & Woolfolk, 1994; Mettrau & Almeida,
1996; Sternberg, 1985). No entanto, alguns autores consideram a importância de
associar outros procedimentos de natureza mais qualitativa, nomeadamente a resposta
livre e por escrito a perguntas abertas (Lonka, Joram & Bryson, 1996; Stanovich,
1989), a entrevista e o estudo de caso para análise e reflexão pessoal sobre situações de
ensino e aprendizagem (Duarte, 2000; Entwistle, 1991, 1997; Kassar, 1995;
Lewis,1995; Marton & Säljo, 1997; Rego, 1999), para análise de histórias de vida de
alunos ditos com dificuldades (Crozier & Tracey, 2000; Dickinson, 1998; Fink, 1996;
Lauren, 1997) ou para o estudo de concepções precoces em relação a tarefas escolares
específicas, escrita e leitura, por exemplo (Bintz, 1997; Mann, 2000; Martins,1994;
Richardson, Anders, Tidwell & Lloyd, 1991; Shook, Marrion & Ollila, 1989).
I. INTRODUÇÃO 91
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3. Desenvolvimento e modificação de concepções e
crenças pessoais.
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I. INTRODUÇÃO 93
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3. Desenvolvimento e modificação de concepções e crenças pessoais.
Neste capítulo analisam-se algumas estratégias de ensino e de intervenção
clínica para a modificação de concepções e crenças pessoais.
Contem três secções distintas, que abordam o papel da mudança conceptual,
respectivamente: em psicoterapia e no apoio individualizado a alunos com
Dificuldades de Aprendizagem; no ensino e na aprendizagem de conceitos científicos;
na selecção e na preparação de estratégias de formação de professores.
Em psicoterapia e no apoio individualizado, descreve-se o modo como de
acordo com os pressupostos de uma intervenção comportamental-cognitiva se promove
uma mudança conceptual que possa facilitar a mudança de atitudes e de
comportamentos.
No domínio do ensino e da aprendizagem de conceitos científicos analisam-se
estratégias, modelos e métodos de intervenção pedagógica no ensino de disciplinas de
cariz científico.
Na selecção e na preparação de estratégias de formação de professores
enumeram-se estudos anteriores sobre a natureza e o papel de crenças, concepções e
pressupostos de professores. Além disso, reflecte-se sobre modelos e estratégias de
formação, inicial e contínua. Referem-se alguns testemunhos e experiências anteriores
neste domínio.
O capítulo tem a seguinte estrutura:
3.1. Ensino e aprendizagem de conceitos científicos.
3.2. Formação de Professores: o papel das concepções e crenças pessoais.
3.3. Psicoterapia e apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de
aprendizagem.
I. INTRODUÇÃO 94
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
I. INTRODUÇÃO 95
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3.1. Ensino e aprendizagem de conceitos científicos.
Ao ensino das ciências têm sido apontadas muitas críticas e deficiências, em
Portugal, como em muitos outros países.
Neste capítulo, sintetizam-se e relacionam-se alguns estudos que podem
contribuir para uma reflexão sobre o ensino e sobre a aprendizagem de conceitos
científicos. Reflecte-se essencialmente sobre algumas dificuldades que podem colocar-
se à reconceptualização de ideias prévias (pressupostos, crenças e concepções pessoais
anteriores), à mudança de atitudes e ao desenvolvimento de novas perspectivas mais
consonantes com o que em investigação realmente se faz e produz.
Parte-se do pressuposto que o ensino e aprendizagem de conceitos científicos
deve ser essencialmente um processo de educação e formação científica. Deste modo,
deve estar fortemente associado: 1) ao desenvolvimento de uma atitude científica mais
fidedigna e actual; 2) à compreensão de princípios epistemológicos básicos e a um
maior conhecimento sobre procedimentos de investigação; 3) à ligação entre todo um
corpus de conhecimento científico e a vida prática de todos os dias; 4) ao
desenvolvimento de uma atitude pessoal mais crítica, questionadora e interventiva, a
todos os níveis (pessoal, familiar, social e político) e não só no domínio científico
(Simon, 2000). Perceber afinal que “de cientista e louco” todos temos um pouco e que
a ciência pode mudar a vida de todos os dias, não tanto pela tecnologia e pelo saber que
difunde, muito mais pelo método, pelos pressupostos e pelos valores de que está
imbuída e que podem igualmente ser difundidos e partilhados com a comunidade.
Ensinar e aprender ciência tem dado origem a duas grandes linhas de
investigação: uma melhor compreensão das ideias intuitivas dos alunos sobre a ciência
e o desenvolvimento de currículos mais adequados às suas potencialidades.
I. INTRODUÇÃO 96
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3.1.1. Ideias prévias e representação social da actividade científica.
Alguns estudos recentes têm vindo a analisar a imagem pública e a
representação social da ciência e dos cientistas.
Nos media, da literatura ao cinema, o cientista é muitas vezes representado
como alguém alheado e distante, distraído e sonhador, absorvido por teorias e
problemas de investigação, metido num laboratório a tempo inteiro, muito diferente de
uma pessoa “normal”, às vezes muito próximo da loucura (Furnham, 1992; Mead &
Metraux, citados por Newton e Newton, 1992).
Na publicidade, o cientista também é representado normalmente como uma
pessoa diferente. Diferente, neste caso, pela forma como se veste, se comporta e
sobretudo pela segurança e autoridade no falar. O cientista é geralmente representado
de bata branca, sério e rigoroso, detentor de certezas e muito saber.
Na escola, no ensino de conceitos científicos, está muitas vezes implícita a
imagem de um cientista que trabalha isolado, na busca do “progresso científico” e de
um saber objectivo, na melhor tradição analítica e positivista (Cawthron & Rowell,
1978). O conhecimento científico é apresentado quase sempre na dualidade entre um
ideal de racionalidade e a mais completa aridez de um saber hermético e
despersonalizado. Por um lado, os cientistas são descritos como seres humanos de
capacidade superior, empenhados na procura de verdades que poderão depois ser
oferecidas em benefício de toda a humanidade, como solução e panaceia para a maioria
dos problemas. Por outro, o conhecimento científico é apresentado de uma forma
desumanizada e despersonalizada, como um corpo de conhecimentos árido, objectivo e
frio, repartido por múltiplos e infindáveis domínios, de apreensão extremamente difícil,
quase inacessível.
Quando se pede às crianças que desenhem um cientista, estas representam-no
maioritariamente como um homem (em 83% dos casos, num estudo inglês de 1992,
Newton & Newton, numa amostra de 1143 crianças entre os 4 e os11 anos), quase
sempre de bata branca e com óculos, algumas vezes com barba (em cerca de um terço
dos casos) e careca (em 37% dos rapazes e 62% das raparigas). À sua volta há tubos
I. INTRODUÇÃO 97
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
de ensaio e materiais de laboratório para experiências com líquidos (o cientista é
geralmente associado à imagem da experimentação em Química) ou microscópios e
outros instrumentos na área da Medicina. Seres vivos surgem apenas em 15% dos
casos, sendo muito mais frequentes os animais do que as plantas. O cientista é quase
sempre representado num espaço interior (95% dos casos), por vezes em pose, mas
normalmente envolvido em procedimentos de manipulação de objectos. Apenas em 5
imagens (0.44%) o cientista foi representado a escrever, no meio do aparato
laboratorial, e em outros dois casos, a escrever sentado numa secretária.
O ambiente que as crianças desenham à volta do cientista, pode fornecer alguns
indícios sobre a percepção que essas crianças têm sobre o que é a ciência. Na
generalidade dos casos pode inferir-se uma concepção de ciência como um processo de
experimentação e manipulação de objectos inanimados para a resolução de problemas
concrectos (Newton & Newton, 1992). Parece haver uma tendência para associar o
processo científico à invenção de coisas novas, mais do que à descrição e compreensão
de fenómenos naturais.
Estes dados sugerem que as crianças desenvolvem uma imagem estereotipada
do cientista desde muito cedo. Aos seis anos, no início da escolaridade, essa imagem já
existe e persiste nos anos seguintes de uma forma quase consensual. E é provável que
estas ideias persistam anos mais tarde quando os alunos são introduzidos a uma
formação e informação científica mais aprofundada. Alguns estudos sugerem que as
percepções pessoais sobre a ciência não se baseiam na experiência escolar, embora
possam ser influenciadas pelas actividades desenvolvidas na escola. Mas as concepções
científicas, as concepções sobre a própria ciência, desenvolvem-se precocemente, no
seio da comunidade e de uma cultura.
Nesta perspectiva, a formação e educação científica ministrada na escola não
deve ignorar as ideias prévias que os alunos trazem consigo e que, provavelmente,
partilham com a comunidade em que estão inseridos. O ensino das ciências, como no
fundo acontece com o ensino de qualquer outra matéria, é essencialmente um exercício
de identificação e de reformulação de ideias prévias e de esquemas anteriores. A
informação nova que é proporcionada aos alunos, pode ser adicionada de forma passiva
e inerte, ou activamente analisada, reflectida e integrada. Numa perspectiva
I. INTRODUÇÃO 98
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
construtivista, o ensino e a aprendizagem nos domínios científicos, deve ser sobretudo,
um exercício de reconceptualização cognitiva e de desenvolvimento conceptual.
Como se referiu, numa perspectiva de senso comum, o cientista é concebido
como um ser relativamente estranho e diferente, mais ou menos alheado do mundo real
e da maioria dos cidadãos.
A ciência, tal como é ensinada nas nossas escolas, também parece muitas vezes,
distante e “divorciada” da realidade (Piburn & Baker,1993, citados por Canavarro,
2000). Desta forma, tanto nos alunos como na comunidade em geral, desenvolve-se
um olhar sobre a ciência simultaneamente distante e reverente. O que a ciência sabe,
sabe. Não se discute nem se questiona. Mesmo que não tenha muito a ver com o dia a
dia do cidadão comum, que vive muito bem sem teorias. No fundo, acredita-se que
provavelmente os cientistas têm razão, que será certo o que dizem, mas que em termos
práticos muito do que eles sabem não tem aplicação prática nem útil. A invenção
tecnológica e as descobertas laboratoriais, são talvez a face mais visível e inteligível do
trabalho desenvolvido por uma comunidade de génios semi-loucos, tolerados,
incompreendidos e mal amados.
E pensando assim, com tais ideias prévias, qual será afinal a reacção dos alunos
ao ensino das ciências?
Esta é uma perspectiva em que naturalmente serão sobretudo valorizados alguns
produtos mais concrectos do esforço científico, tanto em termos inventivos e
tecnológicos como em termos de leis e factos que a ciência determina como
verdadeiros, certos.
Com o desenvolvimento do conhecimento sobre o modo como os alunos
organizam e percepcionam o mundo em volta, tornou-se cada vez mais claro que o
ensino das ciências não poderia continuar a ser concebido como um simples processo
de iniciação dos alunos a conteúdos considerados como completamente novos.
Neste contexto, é especialmente importante encontrar formas mais eficazes para
a modificação conceptual, sobretudo perante a evidência de que muitas das ideias
I. INTRODUÇÃO 99
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
prévias oferecem uma enorme resistência ao tempo, à formação, até mesmo à
experiência pessoal e profissional17.
Para melhor compreender e promover a mudança das concepções prévias é
necessário identificar algumas das razões que lhes estão subjacentes e compreender a
forma como um novo conhecimento interage (ou pode interagir) com ideias prévias
incompatíveis. O estudo da literacia científica, o estudo dos conceitos e conhecimentos
básicos sobre ciência difundidos na comunidade a que o aluno pertence, pode constituir
um meio auxiliar neste processo.
3.1.2. Literacia científica.
Numa área que tem sido genéricamente designada por compreensão da ciência
pelo público (Ávila, 2000; Bergeron, 2000) surgem os estudos que visam medir o nível
de literacia científica na comunidade. O objectivo destes estudos é o de avaliar
conceitos e conhecimentos básicos sobre ciência existentes na população em geral.
A generalidade destes estudos visa uma avaliação da cultura científica dos
cidadãos e a determinação do grau de profundidade dos seus conhecimentos. Alguns
destes estudos incluem também medidas de atitudes e crenças sobre a ciência (Castro &
Lima, 2000).
O grau de conhecimentos científicos correlaciona-se positivamente com a
crença num impacto positivo da ciência na vida quotidiana (Ávila, Gravito & Vala,
2000). Quanto maior o conhecimento científico, maior o apoio à ciência. No entanto, o
grau de conhecimentos não basta para assegurar a existência de atitudes positivas
perante a ciência. Qualquer pessoa pode ser simultaneamente muito empenhada e
muito crítica perante a ciência. As atitudes são complexas e podem conter aspectos em
conflito18.
17A generalidade destas ideias prévias é diariamente reforçada na comunidade. 18 “Um mesmo indivíduo pode reconhecer os efeitos positivos das descobertas científicas e o
impacto positivo desses efeitos na vida quotidiana, e, simultaneamente, reconhecer efeitos negativos no
I. INTRODUÇÃO 100
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Alguns estudos referem que os estudantes com desempenho escolar médio ou
abaixo da média na área de ciências demonstram atitudes mais positivas relativamente
à ciência do que os bons estudantes (Baker, 1985, citado por Canavarro, 2000).
Isto é, um nível superior de conhecimento científico não parece assegurar uma
atitude passiva de anuência e concordância. Pelo contrário, se a ciência for concebida
como um empreendimento humano necessariamente imperfeito, nunca isento de
controvérsia e sem verdades absolutas nem universais, se a ciência for entendida nos
seus pressupostos, procedimentos e intenções mais do que pelos seus resultados e
conclusões, então, este conhecimento mais rigoroso e profundo do que é ciência e de
como se faz, conduzirá provavelmente a atitudes mais críticas e, por vezes,
ambivalentes (isto é, de valência simultaneamente positiva e negativa).
Germann (1988, citado por Canavarro, 2000) também considera que a atitude
em relação à ciência é uma variável complexa, influenciada por um grande número de
outras variáveis (inerentes aos próprios sujeitos, referentes aos professores, aos
programas, á escola, à família). Não pode ser definida com facilidade nem entendida
de forma linear. Mas é uma das muitas variáveis que pode influenciar o desempenho
escolar dos alunos na área das ciências.
Em Portugal, um estudo conduzido pelo Observatório da Ciências e das
Tecnologias nos anos de 1996/97 confirmou uma tendência já claramente observada
nos inquéritos anteriores de 1990 e 1992: uma situação de acentuado défice de cultura
científica por comparação com os outros países da Europa (Rodrigues, Duarte e
Gravito, 2000). O inquérito efectuado permitia a determinação de índices de
conhecimento científico, e neste aspecto, Portugal apresenta o valor mais baixo de entre
todos os países da Europa.
Observou-se que a variável que mais explica a variação de conhecimentos
científicos é a escolaridade, seguindo-se, embora a larga distância, a mobilização
cognitiva e a exposição aos media informativos. Neste quadro, parece necessário (e
avanço da ciência e da tecnologia ou temer riscos possíveis associados a esses avanços. Esta percepção
de vantagens e inconvenientes gera sentimentos de aversão e simpatia.” (Ávila, Gravito & Vala, 2000,
p.25)
I. INTRODUÇÃO 101
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
urgente) questionar as condições actuais do ensino das ciências em Portugal. O défice
de cultura científica observado não pode deixar de estar relacionado com as deficientes
condições de trabalho nas escolas, reduzidos recursos e prática deficiente. O ensino
experimental das ciências é quase inexistente. O contacto e a colaboração entre a
escola e outras instituições produtoras de conhecimento científico é insuficiente. Fora
da escola, as oportunidades de formação científica e tecnológica são escassas. O
essencial do desenvolvimento neste domínio parece depender, apesar de tudo, das
condições e incentivos criados na própria escola.
3.1.3. Concepções dos estudantes sobre a natureza da ciência.
Nos últimos anos muitos estudos se têm debruçado sobre a temática das
concepções pessoais de jovens estudantes sobre a natureza da ciência. Estes estudos
investigam o modo como os estudantes em formação no ensino secundário ou superior,
pensam sobre a ciência, que imagem possuem dos seus métodos de investigação, das
questões que se investigam, dos resultados que se obtem. Analisam até que ponto estes
jovens desenvolveram atitudes e pressupostos epistemológicos mais ou menos
consonantes com o desenvolvimento científico das últimas décadas, com a evolução
dos modelos sobre filosofia da ciência (Driver, Leach, Scott & Wood-Robinson, 1994;
Driver & Oldham,1978; Leach & Scott,1995; Leach, Millar, Ryder & Séré, 2000;.
Novak, 1988; Ryder, Leach & Driver,1999; Songer & Linn, 1991). Todos estes
estudos salientam a necessidade e a importância de uma intervenção pedagógica
pensada no sentido da mudança conceptual e da estimulação do desenvolvimento
epistemológico dos alunos.
3.1.4. Aprendizagem de conceitos científicos e mudança conceptual.
A noção de mudança conceptual define-se por uma modificação de conceitos
por via da aprendizagem em interacção social (Chi, Slotta & Leeuw, 1994).
I. INTRODUÇÃO 102
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Uma área fundamental da Psicologia da Ciência tem comparado a mudança
conceptual nas crianças e a evolução conceptual no cientista adulto. A criança pode ser
concebida como um aprendiz de cientista, que adopta uma perspectiva racional para
lidar com os problemas do mundo físico e social mas a quem faltam os recursos
metodológicos, a experiência e os conhecimentos acumulados ao longo do tempo pela
instituição científica. Este primado de uma racionalidade egocêntrica pode ser
considerado como similar ao que sucede em ciência no quadro de um paradigma
científico. Na ausência de métodos, dados e conhecimentos científicos, a criança
teoriza com base em pressupostos anteriores, no âmbito das suas ideias prévias. É
provável que a mudança só ocorra quando no momento em que se descobrem
problemas e identificam inconsistências, no momento em que se encontram
dificuldades, quando se percebe que é impossível responder como se respondia, quando
os pressupostos e teorias anteriores não chegam para encontrar uma resposta. Caso
contrário, continua a pensar-se como sempre se pensou. A mudança é uma resposta a
necessidades, a dificuldades. Não é provável que aconteça suavemente, na rotina de um
dia-a-dia “normal”, tanto em ciência (Kuhn, 1962), como na escola e na vida (Peck,
1978).
Piaget, todo o seu trabalho no domínio da epistemologia genética, foi um dos
primeiros a sensibilizar a comunidade escolar para a necessidade de articular as
exigências cognitivas de um determinado currículo ao nível de desenvolvimento dos
alunos e tem continuado a ser um contributo essencial no domínio da psicologia da
ciência e do ensino das ciências (Bliss, 1995; Kitchener, 1996). A epistemologia
genética, o seu contributo para a compreensão do conhecimento, representa em si
mesmo, um esforço de convergência entre a psicologia cognitiva e a filosofia da ciência
(de Mey, 1982, citado por Kitchener, 1996).
As tentativas de adequação dos conteúdos curriculares ao nível conceptual dos
alunos procuram respostas pelo menos a dois níveis essenciais:
• qual o nível conceptual mínimo que o aluno deve ter desenvolvido para
poder interessar-se e envolver-se activamente na aprendizagem de um
determinado conteúdo científico?
• que nível conceptual é necessário para que seja possível uma compreensão e
aprendizagem efectiva sobre os conceitos em causa?
I. INTRODUÇÃO 103
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Nesta perspectiva, procura-se o momento mais adequado para a introdução de
cada conceito ou conteúdo. Um desfasamento entre o nível de desenvolvimento dos
alunos e o tipo de exigências cognitivas colocadas pelo currículo que frequentam, pode
dar origem a dificuldades de aprendizagem e aumentar a probabilidade de insucesso
escolar. Um planeamento adequado, uma selecção criteriosa de conteúdo e estratégias
pedagógicas, pode prevenir ou ajudar a superar com maior eficácia as dificuldades que
naturalmente surgem em todas as situações de aprendizagem e de mudança conceptual.
Mas mais do que esperar pelo momento “certo” para introduzir determinados
conteúdos, é possível começar por estimular competências, assegurar o
desenvolvimento atempado das melhores condições para a aquisição ou mudança
conceptual19. E sobretudo, mais ainda do que adequar-se ao desenvolvimento ou de se
empenhar num esforço de o estimular, a escola pode cuidar de oferecer ao aluno
oportunidades de reconceptualização cognitiva e de mudança conceptual. O que, na
perspectiva da epistemologia genética, é realmente a melhor forma de promover e
assegurar o desenvolvimento cognitivo do aluno (Adey, 2000).
Numa perspectiva construtivista, é essencial que o professor tenha um
conhecimento relativamente aprofundado sobre o sistema conceptual em que o aluno
tem que integrar o que lhe é dito, no binómio entre assimilação e acomodação. No
ensino de conceitos científicos, talvez seja mais determinante compreender a dinâmica
dos invariantes funcionais do que a possibilidade de identificar o estádio específico em
que cada aluno se encontra. Qualquer que seja o seu nível de desenvolvimento, propor
ao aluno informação “nova” não dá origem a uma assimilação imediata. Neste sentido,
o estudo da epsitemologia genética facilita uma compreensão do processo de
construção de conhecimento. No entanto, especialmente o conhecimento sobre como os
alunos mais velhos, ao nível do secundário, pensam e vão construindo conhecimento, é
relativamente limitado.
Muitos estudos têm procurado identificar as concepções intuitivas (ou prévias,
no caso dos alunos que já tenham sido alvo de estimulação específica neste campo) em
inúmeras áreas do ensino das ciências: alternância dos dias e das noites (Vosniadou &
19 “A ideia de “prontidão” (readiness”) é uma meia-verdade perniciosa. É uma meia-verdade em
grande parte porque, afinal a prontidão ensina-se, ou proporcionam-se oportunidades para o seu treino,
não se fica simplesmente à espera.” (Bruner, 1999, p.49)
I. INTRODUÇÃO 104
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Brewer, 1994); forma da terra (Vosniadou & Brewer, 1992); o conceito de força
(Ioannides, 1991, citado por Vosniadou, 1994); o conceito de velocidade, distância e
tempo (Ramsden, Masters, Stephanou, Walsh, Martin, Laurillard & Marton, 1993)
Identificar, descrever e compreender a natureza, a estrutura e a evolução destas
concepções pessoais, de natureza intuitiva ou transitória, pode contribuir para uma
melhor adequação e eficácia das estratégias pedagógicas utilizadas para o ensino das
ciências. Partindo do que o aluno já sabe, vão-se construindo novos saberes. Neste
sentido, a tarefa do professor pode ser relativamente facilitada se possuir quadros de
referência que lhe permitam “ver” como os alunos “vêem”, saber o que e onde
procurar, antecipar a sequência de desenvolvimento mais provável, mesmo em contexto
educacional. Uma criança pode, por exemplo, aprender a dizer que “a Terra é redonda”
e assim dizendo, continuar a conceber esse atributo “redondo” como um círculo, plano
e limitado. Ou, um aluno pode até aprender a dizer com maior rigor que “a Terra é uma
esfera” e mesmo assim conceber-se a viver num plano, dentro desse globo envolvente,
com um hemisfério inferior, por baixo do “chão”, e um hemisfério superior como
“céu”. Sob a aparência de uma resposta correcta, pode conservar-se uma concepção
imprecisa ou mesmo totalmente incorrecta. Estudos como os desenvolvidos por
Vosniadou & Brewer (1992), podem esclarecer sobre uma sequência previsível de
modos de conceber e assim ajudar o professor a situar cada aluno num percurso ou
sucessão de etapas. Mas, além disso, estudos como este podem sugerir novas formas
de inquirir, de questionar os alunos, de ajudar a reflectir, em suma, novas formas de
promover a mudança conceptual e o desenvolvimento. Permitem determinar a etapa ou
estádio em que o aluno se encontra (diagnóstico de estado ou produto actual) e a partir
daí, promover a mudança (estimulação e facilitação do processo de desenvolvimento).
Aprender ciência requer muitas vezes o desenvolvimento de novas formas de
pensar o que já se conhecia (ou julgava conhecer), sobre fenómenos já familiares,
muitas vezes usando palavras comuns, e conceitos que se usam no dia a dia. Deste
ponto de vista, aprender ciência pode ser um processo descrito como de “enculturação”
e de “descoberta de sentido” (Leach & Scott, 1995), de reorganização e
reconceptualização de significados anteriores. Trata-se por isso de um processo pessoal
(mas não solitário) de apropriação e de interiorização de códigos, linguagens, regras e
pressupostos de uma cultura diferente a que chamamos “ciência” (Jones, 2000).
I. INTRODUÇÃO 105
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Imbuídos dessa cultura, alheios a diferenças de perspectiva, manuais escolares e
professores nem sempre antecipam o grau de dificuldade emocional e cognitiva das
tarefas de aprendizagem que propõem ou exigem. Um exercício pode ser
percepcionado pelo professor como simples, sem qualquer tipo de dificuldade e vir
depois a levantar inúmeros problemas aos alunos, simplesmente porque existem
inúmeras diferenças entre uma perspectiva de senso comum e uma perspectiva
científica. Um bom professor de disciplinas científicas precisa de um conhecimento
aprofundado sobre o ponto de vista dos seus alunos e sobre a perspectiva científica,
deve ser sensível e saber reconhecer essas diferenças. Muitos fazem-no de forma
intuitiva. Outros precisarão de formação e de aquisição de novas competências, como
por exemplo, ser capaz de suscitar, manter e analisar um diálogo construtivo sobre um
conceito em estudo ou sobre os pressupostos e metodologias de trabalho numa
determinada área disciplinar.
Em síntese, o ensino da ciência deve integrar, sempre que possível, três
elementos complementares:
• compreensão de partes do corpus científico da disciplina em estudo.
• compreensão de alguns dos métodos e dos procedimentos utilizados no
estabelecimento (e constante desenvolvimento) desse corpus.
• compreensão da ciência como um empreendimento de origem social e com
implicações sociais, nomeadamente na relação com a sociedade, ao nível das
aplicações tecnológicas, ao nível das regras, pressupostos e estruturas no âmbito
científico.
3.1.5. Ensino das ciências e estratégias de aprendizagem.
Por fim, sintetizam-se alguns dos aspectos que permitem relacionar o ensino das
ciências com a aquisição e domínio de novas estratégias de aprendizagem (Edmondson
& Novak, 1993):
I. INTRODUÇÃO 106
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
• algumas estratégias de aprendizagem promovem uma aprendizagem científica
mais profunda e significativa, e o desenvolvimento de novas formas de pensar,
de novas perspectivas epistemológicas (e.g. Café, 2002).
• por outro lado, quando se desenvolvem novas perspectivas epistemológicas, de
carácter menos estático, absoluto, determinista e universal, isso pode facilitar o
desenvolvimento de atitudes mais favoráveis à utilização regular de estratégias
de aprendizagem diferentes e inovadoras, de carácter menos estático, absoluto,
determinista e universal (Duschl & Gitomer, 1991).
No ensino e na aprendizagem de conceitos científicos, no desenvolvimento de
concepções mais maduras sobre ciência, não é possível esquecer que o conhecimento
científico é essencialmente um produto social (Leach & Scott, 1995). As teorias
científicas que são ensinadas na escola foram prolongadamente debatidas e reiteradas
por uma comunidade de cientistas. Não são, como tantas vezes se pensa numa
perspectiva de senso comum, nem verdades absolutas nem leis naturais, nem foram
directamente extraídas dos factos tal como eles são, como se desde sempre tivessem
estado inscritas no “livro da natureza” para serem lidas pelo labor científico. Um
cientista não é um leitor, nem mesmo um intérprete: é um construtor, de edifícios
conceptuais e de metáforas (Meichenbaum,1993). Todos os cientistas enfrentam o
desafio de se colocarem perante os seus pares e de os convencerem da validade e da
consistência das suas propostas.
A aprendizagem de conceitos científicos requer a elaboração de novas formas
de pensar, introduzidas na interacção social com o professor e com o grupo (Zeidler &
Lederman, 1989).
Aprender ciência, aprender a fazer e como se faz ciência, pode generalizar-se a
outras situações de aprendizagem pelo desenvolvimento de atitudes e de estratégias
pessoais mais activas, participativas, críticas e questionadoras. Na diferença entre a
passividade de quem aprende o que lhe é ensinado, o que a ciência dita e os sábios
explicam, e uma atitude reconstrutiva e responsável de quem participa e partilha um
esforço comunitário de compreensão da realidade e de construção do saber.
I. INTRODUÇÃO 107
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3.2. Formação de Professores: o papel das concepções e crenças pessoais.
Numa perspectiva actual, por vezes também designada de pós-moderna, a
formação de professores apresenta novos desafios, exige uma diversificação de
métodos e uma maior articulação com as características de cada professor, enquanto
pessoa autónoma e enquanto autor (Ferreira-Alves & Gonçalves, 2001). A noção de
“autoria” revê e prolonga a de autonomia. A autonomia supõe, até certo ponto, a noção
de independência, supõe a capacidade de adaptar e de percorrer um determinado
percurso, de acordo com os objectivos definidos. Supõe a capacidade de rever e
modificar estratégias em função dos resultados. A modernidade espera dos professores
que sejam autónomos e flexíveis, que se adaptem e adaptem os seus procedimentos em
função das circunstâncias e das vicissitudes de percurso. Mas a noção pós-moderna de
autoria, vai para além disso. O professor enquanto autor (muito mais do que enquanto
“actor”, prisioneiro de um enredo e de um papel pré-definido) é, simultaneamente,
personagem e produtor, de significados e sentidos, da sua própria narrativa e história de
vida, pessoal e profissional. É alguém comprometido, participante, envolvido nas
circunstâncias, alguém que determinada mas que também reconhece até que ponto é
determinado. Tudo isto requer um desenvolvimento emocional, narrativo e conceptual
da pessoa do professor, que impõe alterações significativas das práticas e dos modelos
de formação de professores.
3.2.1. Formação em Psicologia Educacional e concepções pessoais sobre
dificuldades de aprendizagem.
Em 1966 (1999, na tradução para língua portuguesa), Bruner referia a vontade
de aprender como um motivo humano intrínseco e universal. A curiosidade, a vontade
de saber e de se apropriar do conhecimento, são nesta perspectiva, comuns a todos os
alunos, de todas as idades e de todos os níveis de ensino, apesar do currículo e mesmo
I. INTRODUÇÃO 108
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
em condições adversas. Podem não se manifestar em algumas situações: em contextos
educativos inadequados, rígidos, desfasados dos alunos e das suas necessidades de
aprendizagem. Em muitos casos, deduz-se que efectivamente não existe vontade de
aprender onde apenas não existe uma adequada estimulação e activação do aluno, tal
como, por exemplo, pode ser suscitada na aprendizagem por descoberta (Bruner, 1998).
Na descoberta, o pensamento intuitivo alia-se a um esforço de raciocínio indutivo.
Bruner acredita que o professor deve criar e propor situações problemáticas que
estimulem a questionação, a exploração, a experimentação (Raposo, 1983). A
aprendizagem vai sendo progressivamente construída na busca de soluções para
problemas específicos, no intuir de respostas, na definição de novas questões,
reformuladas, reestruturadas, para uma verdadeira compreensão da estrutura essencial.
Essa compreensão mais profunda não decorre nem da adição de novas respostas nem de
uma mera acumulação de factos e dados. Nesta perspectiva, o processo de
aprendizagem de um determinado conteúdo pode decorrer de forma isomorfa ao
processo de investigação e estudo nesse mesmo domínio ou disciplina científica.
Na escola como na ciência, dificuldades e imprecisões, dúvidas e perplexidades
podem constituir-se como elemento motivador essencial. Por vezes são as dificuldades
que nos movem, que nos motivam e incentivam, por curiosidade, vontade ou
necessidade de saber. Obstáculos ou insucessos, desafios e enigmas, podem prejudicar.
Ou, em alternativa, podem estar na origem de novas aprendizagens, de descobertas
inovadoras. Podem, como sucede em resposta a situações de conflito cognitivo,
enriquecer estruturas e conduzir a estádios superiores de desenvolvimento. Porque
enquanto as respostas e os conhecimentos adquiridos nos oferecem a segurança do que
julgamos saber, os insucessos, dificuldades e obstáculos apontam para além disso.
Tal como a epistemologia genética sugere, o processo de desenvolvimento
cognitivo pode ser descrito com base em invariantes funcionais, comuns em todos os
períodos de desenvolvimento e em todos os indivíduos. No binómio assimilação e
acomodação, conhecimento e estruturas integram e vão sendo integrados, permitem
formular (princípios e asserções, factos isolados ou leis universais) e impõem
reformulações. No paradoxo de só se poder saber e conhecer o que de algum modo já
se sabe e conhece. Ou o que sendo moderadamente discrepante, possa ser factor de
desenvolvimento. E neste sentido, pode dizer-se que aprendizagem e desenvolvimento
convergem ou coincidem. Na escola como na vida.
I. INTRODUÇÃO 109
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
Na ausência de deficiência ou patologia específica, dadas as condições físicas e
sociais necessárias ao desenvolvimento normal de uma criança ou adolescente, a
psicologia cognitiva, a psicologia do desenvolvimento, permitem-nos esperar que todos
os alunos disponham de uma normal e adequada capacidade de aprendizagem, de um
normal potencial de desenvolvimento. E as dificuldades, os problemas, os
desfasamentos entre o que se sabe e o que se precisa de saber, são, de algum modo, o
fermento natural para o desenvolvimento. Num movimento universal, contínuo e
adaptativo de apropriação e integração, por assimilação e acomodação, num esforço de
equilibração. Nesta perspectiva, não há realmente aprendizagem por imitação,
memorização ou reforço. Só o conflito cognitivo, só o confronto com situações
problemáticas, só o processo de procurar soluções e de reformular premissas, conduz a
uma aprendizagem em sentido lato. Neste sentido, não só todos os alunos trazem
consigo o essencial para a produção de qualquer processo de aprendizagem, como esse
processo só é possível no confronto com dificuldades.
Na escola como na ciência, o corpo de conhecimentos que vai sendo
sucessivamente adquirido, serve normalmente de ponto de partida para a introdução de
novos conceitos, ponto de partida para reformulações e novas reorganizações de
informações e conceitos anteriores. Parte-se muitas vezes do que se sabe, do que se
acredita saber, de tudo o que se foi aprendendo ao longo do tempo, no contexto escolar,
por intuição, aculturação ou senso comum. Até certo ponto, essa é sempre a matéria-
prima para a construção de novas aprendizagens. No paradoxo de só se poder saber e
conhecer algo de novo, algo de diferente, no enquadramento do que já é familiar. E a
partir daí, reformular, refazer, construir, um renovado ou mais complexo conhecimento.
Na escola como na ciência, as perguntas podem conduzir ao saber, permitem
construir saber e as dificuldades podem incentivar-nos no caminho do sucesso. Nesse
percurso, tantas vezes difícil, mesmo os insucessos podem representar novos desafios,
abrir novas oportunidades. Na escola como em ciência as dificuldades são parte
integrante do processo.
I. INTRODUÇÃO 110
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3.2.1. Concepções e crenças dos professores sobre a aprendizagem e sobre o
ensino.
Muitos estudos têm vindo a sugerir que é possível encontrar em jovens
professores em formação ou em início de funções, concepções sobre a natureza do
processo científico que podem ser classificadas como ingénuas, inconsistentes e
resistentes à mudança, tal como se pode observar ao nível dos seus próprios alunos
(Cachapuz, 1977; Edmondson & Novak, 1993; Monk & Dillon, 2000; Newton &
Newton, 1997; Solomon, Duveen & Scott, 1994; Trindade, 1996). Além disso, a falta
de formação e de informação no domínio da história e da filosofia da ciência podem
limitar imenso o trabalho do professor, privando-o de ideias sobre como ensinar acerca
da natureza dos processos científicos. E as lacunas observadas actualmente na
formação básica dos futuros professores (que como todos os outros alunos têm uma
formação quase nula no domínio da epistemologia) tende a fazer perpetuar esta
situação.
As crenças epistemológicas dos professores podem ser determinantes das suas
escolhas e práticas pedagógicas (Pajares, 1992). Provavelmente, os melhores
professores, sempre souberam e utilizaram todo um conhecimento intuitivo sobre quase
tudo o que acima se descreveu, mesmo indo contra princípios e normas vigentes
(Glasersfeld, 1995). Mas nem todos são espontaneamente detentores de crenças e
concepções construtivas e adaptativas.
Se um professor concebe a aprendizagem como um mero processo de
acumulação de conhecimento, como pode aceitar o desafio de criar situações de
conflito cognitivo e de construção activa por parte do aluno? Ou como será que vai
entender a possibilidade (e o desafio de) ensinar qualquer coisa a qualquer aluno em
qualquer idade? Talvez como uma impossibilidade, uma bizantinice própria de teóricos
e teorizadores, sem aplicação nem aplicabilidade. E, no entanto, nada como uma boa
teoria para mudar a prática. De um ponto de vista construtivista, o conhecimento é
considerado como uma actividade adaptativa, no sentido em que é composto por uma
espécie de compêndio de conceitos e acções que nos permitem atingir objectivos. Se
um professor parte da noção de que aprender é acumular conhecimento, adquirir e
I. INTRODUÇÃO 111
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
acumular, isso, essa forma de conceber e no fundo de teorizar sobre a aprendizagem,
muda a sua prática. O papel do professor passa a ser o de veículo, transmissor e
produtor das melhores condições para que essa acumulação (leia-se aprendizagem)
ocorra.
Neste sentido, a formação de professores deve e pode ser uma ocasião
privilegiada de mudança conceptual (mudança dos conceitos e ideias prévias), de
desenvolvimento pessoal e epistemológico (disputa de crenças sobre o ensino, a
aprendizagem e o conhecimento em geral), de consciencialização sobre si mesmo e
sobre as suas próprias crenças, concepções, metáforas, narrativas e estratégias de
aprendizagem e ensino (Alexander & Dochy, 1994; Duarte, 2000; Gonçalves &
Ferreira-Alves, 1995; Hand & Treagust, 1994; Pultorak, 1993; Rego, 1999; Santos &
Gonçalves, 1988).
A formação de professores integra normalmente o estudo de múltiplos modelos
de aprendizagem (Gredler, 1997). Deste modo, os professores em formação são
colocados numa situação, por vezes completamente nova20, de aprendizagem de
conceitos científicos. Neste sentido, é necessário não esquecer tudo o que em capítulos
anteriores ficou dito sobre o ensino e a aprendizagem de conceitos científicos. É que
apesar de se tratar neste caso de formação a alunos universitários, adultos e em vias de
integração numa actividade profisssional, por vezes já com alguma experiência na
docência, estes alunos trazem para a formação ideias prévias, concepções e crenças que
podem persistir apesar da formação e alterar de forma significativa a eficácia desses
mesmos programas. Como podem afectar de forma significativa, quer o discurso quer
as práticas pedagógicas desses futuros professores. E, numa história sem fim, esses
discurso e essas práticas pedagógicas podem determinar as concepções e crenças
pessoais dos seus futuros alunos, alterando de forma significativa a eficácia dos
programas e currículos oficiais. Algumas dessas crenças e concepções, e
20 No caso específico da formação de professores ministrada pela Faculdade de Letras em
colaboração com a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, a
generalidade dos alunos em formação inicial provem de uma formação de carácter mais humanista
(ensino e aprendizagem das Línguas, Filosofia, História e Geografia) onde, por uma razão ou por outra,
(talvez como acontece à generalidade dos alunos do ensino Básico e Secundário) lhes foi proporcionada
uma reduzida experiência de aprendizagem activa de conceitos científicos e uma reduzida compreensão
da natureza e da metodologia de investigação científica.
I. INTRODUÇÃO 112
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
consequentemente algumas dessas práticas e discursos pedagógicos, podem contribuir
de forma significativa para o desenvolvimento de dificuldades de aprendizagem.
No âmbito da investigação sobre o pensamento do professor (Clark & Peterson,
1986; Harrington, 1994; Greene 1986), alguns estudos concentram-se especificamente
na determinação de crenças e concepções pessoais dos professores sobre dificuldades e
distúrbios de aprendizagem, sobre práticas de ensino e de apoio aos alunos (Kassar,
1995; Kavale & Reese, 1991; Phelan & McLaughlin, 1995). Entender como os
professores entendem, identificar crenças e concepções pessoais, parece ser uma tarefa
essencial para o desenvolvimento de estratégias de formação mais adequadas, mais
adaptadas e adaptativas, na prevenção ou no apoio a alunos com dificuldades de
aprendizagem.
Tal como “a flexibilidade no estilo terapêutico depende da flexibilidade nos
estilos epistémicos” (Vasco, Silva & Chambel, 2001, p. 300) talvez no caso dos
professores seja possível supor que uma maior maleabilidade e qualidade na integração
de diferentes estilos e estratégias pedagógicas (num esforço de adaptação a cada turma
ou de individualização para alunos em dificuldades) dependa também da sua
maturidade e flexibilidade em termos epistemológicos e conceptuais. A formação numa
era pós moderna deve actuar no sentido de tornar cada professor mais consciente da
complexidade dos processos de conhecimento e de aprendizagem, mais flexível e mais
disponível para compreender e partilhar múltiplas perspectivas (Ferreira-Alves &
Gonçalves, 2001). Se o professor for desenvolvendo ao longo da formação crenças e
pressupostos mais próximos de um relativismo conceptual, uma visão mais dinâmica e
contextualizada sobre o conhecimento, talvez seja mais fácil que venha a desenvolver
na sua prática pedagógica atitudes e práticas mais “ecléticas”, integradas e integradoras,
mais adaptadas a cada caso e a cada necessidade.
I. INTRODUÇÃO 113
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
3.3. Psicoterapia e apoio psicopedagógico a alunos com dificuldades de
aprendizagem.
Como se referiu anteriormente, ao invés de pensar que cada aluno reage
passivamente a um conjunto de estímulos ambientais em função de contingências de
reforço, os modelos cognitivos consideram que cada pessoa é um activo construtor da
sua própria “visão” do mundo (Bandura, 1986; Kaplan, 1991; Meichenbaum, 1977,
1986; Meyers, Cohen & Schleser, 1989). Isto cria uma interacção dinâmica entre o
comportamento individual, os processos de mediação cognitiva (incluindo crenças,
concepções, avaliações e juízos de valor, regras e expectativas pessoais) e o ambiente.
Para ajudar qualquer pessoa a superar as suas dificuldades pessoais é necessário
considerar, analisar, compreender o funcionamento e dinâmica de todos estes factores,
isto é, torna-se necessário considerar simultaneamente três ordens de variáveis:
comportamentais, intrapessoais e situacionais.
Isto significa que qualquer dificuldade de aprendizagem deve ser descrita em
contexto (Cousin, Diaz, Flores & Hernandez, 1996; Grave & Walsh, 1998; Keogh,
1994; Lyon, 1994; Thomas, 1993), nomeadamente:
• em primeiro lugar, no contexto de uma teoria ou de um modelo conceptual –
diferentes modelos sugerem diferentes formas de avaliar e descrever uma
dificuldade de aprendizagem. No caso presente, a avaliação proposta decorre
essencialmente de uma perspectiva cognitivo-comportamental.
• num contexto intrapessoal – incluindo os aspectos cognitivos, metacognitivos,
emocionais, motivacionais, atendendo nomeadamente ao significado atribuído à
dificuldade, crenças, expectativas e atribuições.
• num contexto temporal ou desenvolvimentista – incluindo aspectos referentes ao
próprio aluno (anamnese, história de aprendizagem, projecto de vida, projecto de
aprendizagem, etc.) e à dificuldade de aprendizagem em estudo (evolução da
I. INTRODUÇÃO 114
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
dificuldade actual, historial de esforços de avaliação e de intervenção anteriores,
etc.).
• num contexto situacional – incluindo a análise funcional do comportamento
(associação entre estímulos antecedentes, comportamentos e consequências), análise
curricular, métodos instrucionais e estratégias de avaliação, limitações físicas dos
locais em que decorre a aprendizagem.
• num contexto social e interpessoal – incluindo uma determinação de expectativas
sociais, crenças e concepções vigentes, imagem e inserção do aluno no grupo de
pares, etc.
Quadro A.
Dimensões para avaliação de Dificuldades de Aprendizagem.
COGNITIVA
EMOCIONAL COMPORTAMENTAL
TEMPORAL
SOCIAL
I. INTRODUÇÃO 115
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
A adopção de uma perspectiva comportamental-cognitiva parece especialmente
adequada para a avaliação e intervenção em dificuldades de aprendizagem por se
centrar no processo de mudança. O conceito de mudança é fundamental para a
definição e caracterização de qualquer situação de dificuldade de aprendizagem
(Francis et al.,1994; Shaywitz & Shaywitz, 1994), talvez precisamente por ser
“dificuldade” e por ser “aprendizagem”. Numa perspectiva quase intuitiva:
• aprendizagem significa “mudança”. Quer se trate da aquisição de conhecimento
novo ou de um aumento de mestria e competência, quando se fala de aprendizagem,
pressupõe-se que algo mudou ou está a mudar. Algo de novo, algo mais, maior ou
melhor.
• dificuldade significa “bloqueio”, “paragem”, “obstáculo”. Ou, por outro lado,
“oportunidade”, “desafio”, necessidade de solucionar ou de descobrir algo novo ou
diferente. O que é certo é que quem está em dificuldade precisa de mudar, a
diferentes níveis: produto, processos, hábitos, pressupostos, objectivos. A
dificuldade corresponde a uma insuficiente ou deficiente mudança, ou a mudanças
consideradas negativas para o indivíduo e para o contexto. Mudanças que é preciso
recuperar ou incentivar, estimular e reforçar.
No contexto de uma psicoterapia de natureza comportamental e cognitiva,
passa-se (pressupõe-se) algo de similar. Quer se trate de dificuldades comportamentais,
cognitivas, emocionais, motivacionais, ou relacionais, em todos os casos o problema é
concebido em função de objectivos de mudança terapêutica (Adelman & Taylor, 1988;
Leahy, 1995). Para mudar, o cliente é convidado a aprender21: sobre si próprio, sobre as
suas queixas, sobre o seu problema, sobre a perspectiva dos outros.
As técnicas de avaliação cognitivo-comportamental podem solicitar ao aluno:
predições sobre o seu desempenho antes da realização de uma determinada tarefa; que
21 Paralelamente, os resultados das investigações sobre concepções pessoais sobre a
aprendizagem, sugerem que a concepção de maior complexidade e abrangência corresponde precisamente
à possibilidade de o aluno ”mudar enquanto pessoa”. Por exemplo, “aprender o significado pessoal de
uma experiência; uma nova filosofia de vida; envolver-se na aprendizagem.” (Saljö, 1979, citado por
Stevenson & Palmer, 1994).
I. INTRODUÇÃO 116
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
verbalize durante a realização (técnicas de think aloud e amostragem cognitiva); ou
que, depois de concluir a tarefa, recorde alguns dos seus pensamentos e estratégias
utilizadas (evocação estimulada, entrevista clínica, preenchimento de protocolos de
auto-registo, de listagens, escalas, inventários e questionários). Todos estes
instrumentos e procedimentos podem ser associados ou complementados por métodos
de avaliação provenientes de outros domínios, podendo referir-se a título de exemplo:
no domínio pedagógico, a avaliação análoga (Gettinger, 1988) e avaliação com base no
currículo (Hammill & Bartel, 1986); no domínio da avaliação formal, provas e
instrumentos de avaliação diferencial e psicométrica (Smith, 1994); no domínio da
avaliação informal, procedimentos e instrumentos de observação do comportamento
(Estrela, 1984; Irwin & Bushnell, 1980); do domínio da avaliação operatória do
desenvolvimento cognitivo, protocolos de avaliação inspirados nas entrevistas clínicas
descritas por Jean Piaget ao longo da sua obra (Pauli, Nathan, Droz & Grize, 1981;
Dolle & Bellano, 1993).
Uma perspectiva cognitivo-comportamental concebe a intervenção mais numa
perspectiva educacional e desenvolvimentista, do que como um acto clínico ou de
reeducação. Todos os alunos, com e sem problemas de aprendizagem, podem
beneficiar da estimulação e da preparação oferecida por programas de prevenção
(Adelman, 1989). Aprender a identificar e a lidar com crenças irracionais é um dos
objectivos da Educação Racional-Emotiva, numa perspectiva preventiva e educacional
(Knaus, 1974; Vernon, 1994). Mas uma intervenção cognitiva pode contribuir para uma
modificação de atitudes, concepções, estratégias e comportamentos em muitos outros
problemas escolares nomeadamente em situações de procrastinação, baixa resistência à
frustração, ansiedade a testes, depressão, fobia escolar, agressividade, isolamento social
e outros problemas interpessoais (Burns, 1992; Cohn, 1998; Rothschild, 1994; Wilde,
1992). Entre todas as possíveis aplicações deste tipo de intervenção, é de realçar a
importância da terapia cognitiva de carácter individual para reestruturação e disputa de
erros cognitivos (erros lógicos de percepção e de avaliação) e de crenças irracionais
(Bard & Fisher, 1983; Rothschild, 1994).
Outro aspecto fundamental no apoio a alunos com dificuldades de
aprendizagem prende-se com a avaliação e estimulação de competências socio-
I. INTRODUÇÃO 117
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
cognitivas e de relação interpessoal. A inserção de alunos percepcionados pelo
professor e pelo grupo como tendo dificuldades de aprendizagem pode afectar o seu
estatuto sociométrico e a interacção com o grupo de pares (Frederickson & Furnham,
1998; Juvonen & Bear, 1992). Estes alunos podem beneficiar de uma intervenção que
modifique algumas deficiências na dinâmica da turma e de treinos para o
desenvolvimento da auto-estima, de competências de afirmação pessoal (assertividade)
e de estratégias de resolução de problemas no contexto social (Catterall & Gazda, 1978;
Kaplan, 1991; Pope, McHale & Craighead, 1988; Putnam, Markovchick, Jonhson &
Jonhson, 1996).
O papel dos pais, a influência que os pais exercem sobre os filhos em risco de
insucesso ou com dificuldades persistentes, também pode ser alvo de intervenção e
apoio. Pode ser controlada por programas de treino parental, para a modificação de
atitudes e práticas parentais, mas sobretudo para a modificação de crenças e
expectativas (Bernard, 1977; Joyce, 1994; Wilde, 1992). Verifica-se, por exemplo, que
os pais podem ter influência na modelagem de atitudes mais ou menos positivas e
confiantes (Brewin, Andrews & Furnham, 1996).
Nas últimas décadas, multiplicaram-se os estudos sobre o stress dos professores
(Pinto, 2000). Este é um aspecto muito pouco referido ao nível da formação, mas
efectivamente os professores também podem beneficiar com a participação em
programas de grupo para a aprendizagem de atitudes pessoais e interpessoais mais
adaptativas e de crenças mais racionais, mesmo se apenas com um carácter preventivo.
Estes programas podem constituir um complemento da formação inicial (Payne &
Manning, 1990). Além disso, em situações de crise pessoal ou de stress acrescido é
possível aprender a lidar com os problemas, e adquirir estratégias de controle e de auto-
regulação em situações difíceis e de maior pressão e risco (Forman, 1994; Wilde,
1992).
I. INTRODUÇÃO 118
Concepções Científicas e Concepções Pessoais sobre o Conhecimento e Dif. de Aprendizagem – Mª Dulce Miguens Gonçalves
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4. Objectivos e Hipóteses em Estudo.
I. INTRODUÇÃO 120
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I. INTRODUÇÃO 121
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4.1. Objectivos
1. Descrever e caracterizar concepções pessoais de estudantes e professores
sobre dificuldades de aprendizagem, em diferentes momentos da sua formação.
2. Desenvolver um questionário e outros instrumentos de avaliação qualitativa
para a caracterização de concepções pessoais sobre dificuldades de aprendizagem.
3. Comparar concepções pessoais e concepções científicas sobre dificuldades de
aprendizagem.
4. Analisar a evolução e reflectir sobre os efeitos da formação, escolar ou
profissional, na modificação de concepções pessoais sobre dificuldades de
aprendizagem.
5. Sugerir estratégias de ensino e formação que favoreçam a reflexão e
estimulem o desenvolvimento conceptual no domínio das dificuldades de
aprendizagem.
I. INTRODUÇÃO 122
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4.2. Hipóteses em estudo.
1. Espera-se que a tradução para língua portuguesa do Questionário
Epistemológico apresente, na sua versão para estudantes universitários, uma estrutura
factorial similar às observada em estudos anteriores para a população americana.
Tratando-se de um questionário sobre crenças sobre a natureza, estrutura,
acessibilidade e processos de aquisição do conhecimento, não se esperam diferenças
significativas entre estas duas populações. Dado que as crenças pessoais, intuitivas ou
de senso comum, estão (e são) difundidas numa comunidade sociocultural, sujeita ao
fenómeno de globalização e de aculturação (uniformização) pelos media, esperam-se
resultados equivalentes (Estudo 1.).
2. Espera-se poder estabelecer um paralelismo entre as concepções científicas
sobre as Dificuldades de Aprendizagem (desenvolvidas ao longo das últimas décadas) e
concepções pessoais difundidas numa população de estudantes universitários em
formação, destinados à área da docência, da Psicologia e das Ciências da Educação
(Estudo 2.).
3. Espera-se poder observar uma crescente maturidade conceptual e
epistemológica ao longo do percurso de formação. Esta diferença será observável por
comparação entre os resultados obtidos por estudantes em dois níveis da sua formação:
universitários e provenientes do ensino secundário (Estudo 3.).
4. Espera-se que as crenças pessoais sobre dificuldades de aprendizagem possam
constituir uma nova escala complementar ao Questionário Epistemológico. Esperam-se
relações significativas entre esta nova escala e as escalas identificadas no estudo
psicométrico do questionário sobre crenças epistemológicas em geral. Isto é, espera-se
que as crenças pessoais sobre dificuldades de aprendizagem se correlacionem de forma
significativa com as crenças epistemológicas. Espera-se que quanto maior for a
maturidade epistemológica, mais os alunos acreditem no carácter funcional das
Dificuldades de Aprendizagem (Estudo 4.).
I. INTRODUÇÃO 124
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