Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social histórias de cachaça e povos indígenas camila becattini pereira de caux Rio de Janeiro 2011
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social de Camila Caux no Museu Nacional/UFRJ (2011)
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Museu Nacional
camila becattini pereira de caux
Rio de Janeiro
Museu Nacional
camila becattini pereira de caux
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal
do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em
Antropologia Social.
Rio de Janeiro
Caux, Camila Becattini Pereira Histórias de cachaça e povos
indígenas/Camila Becattini Pereira de
Caux – Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2008. xi; 181 ff.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu
Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
2011.
1. Antropologia. 2. Etnologia Ameríndia. 3. Consumo de Destilados.
I.
Viveiros de Castro (orient.). II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro,
Museu Nacional. III. Título
histórias de cachaça e povos indígenas camila becattini pereira de
caux
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
_______________________________________________ Prof. Dr.
Eduardo Viveiros de Castro – PPGAS/MN/UFRJ
(orientador)
_______________________________________________ Prof a.
Dra. Aparecida Vilaça – PPGAS/MN/UFRJ
(suplente)
(suplente)
Caux, Camila Becattini Pereira. Histórias de cachaça e povos
indígenas . Dissertação de Mestrado em Antropologia Social: Museu
Nacional/UFRJ. 2011.
Nesta dissertação, procuro fazer uma reflexão sobre a bibliografia
que se dedica a discutir o consumo regular e excessivo de
destilados por povos indígenas no Brasil. Convencionalmente chamado
de “alcoolismo indígena”, esse consumo tem sido considerado um dos
maiores problemas enfrentados pelos índios em seu cotidiano e tem
sido frequentemente alvo dos programas de Saúde Pública. Na Parte I
desse trabalho, busco perceber o conjunto de recursos geralmente
acionados por essa literatura para refletir sobre o tema do
alcoolismo indígena. Detenho-me mais demoradamente em três: em
primeiro lugar, na noção de cultura; em seguida, nas consequências
do contato com a frente de expansão colonial e na violência
decorrente das bebedeiras; e, por último, nos projetos de
intervenção sanitária. Após essas análises, e tendo percebido
alguns espaços que essas discussões costumam deixar em aberto,
prossigo para a Parte II. Nela, procuro fazer um apanhado de
narrativas com ênfase mais etnográfica, que mostram, em meio ao
emaranhado de sentidos encontrados pelos indígenas em sua vida
atual, interessantes motivações e sentidos para a sua embriaguez
por destilados.
palavras chave :
Caux, Camila Becattini Pereira. Histórias de cachaça e povos
indígenas . Dissertação de Mestrado em Antropologia Social: Museu
Nacional/UFRJ. 2011.
In this work, I propose a discussion on the literature around
regular and excessive consumption of spirits (distilled alcohol) by
indigenous peoples in Brazil. Conventionally glossed as “indigenous
alcoholism”, this consumption has been thought to be one of the
main problems which the native people have to deal with in their
quotidian life, and it has been an important focus of public health
policies agenda. In the first part of this
work, I outline a set of resources usually
employed by the literature to conceive indigenous alcoholism. Three
of them are more closely examined: the notion of culture; violence
and the consequences of contact with colonial and national agents;
and the projects of sanitary intervention. After these analyses,
which display the spaces usually not approached by the literature,
I proceed to the second part. Here, I attempt to assemble some
narratives with ethnographic emphasis. In these narratives, the
motivations for the
Amerindians’ drunkenness are to be found among the many
senses of their contemporary lives.
key words :
agradec imentos
Aos Asurini, que me receberam em sua aldeia, compartilharam
conversas e momentos e tanto me ajudaram. Também a funcionários da
FUNAI de Marabá, que me ajudaram com questões logísticas e
administrativas.
A Eduardo Viveiros de Castro, meu orientador, pela atenciosa
correção desse texto, pelas oportunidades e pelos valiosos
conhecimentos.
A Márcio Goldman, Renato Sztutman, Aparecida Vilaça e Eduardo
Vargas, por terem aceitado tão gentilmente fazer parte de minha
banca.
Aos professores do Museu Nacional, pelas interessantes aulas.
Às bibliotecárias e as secretárias, que foram sempre tão cuidadosas
e prestativas. À CAPES e à FAPERJ pelas bolsas durante esse período
e ao PPGAS pelo auxílio financeiro ao campo.
Aos autores que tão prontamente me disponibilizaram suas
teses e artigos: Renato Sztutman, Marco Antônio Gonçalves,
Maximiliano Sousa, Laércio Fidelis Dias, Ana
Alvarenga, Rosângela Tugny, João Pena. Agradeço também à
Lúcia Andrade.
À minha família, que respeitou como ninguém meu retiro nos
últimos tempos, assim como soube bem quando desobedecê-lo. Agradeço
pela amizade e força.
Ao Bruno, meu namorado, por todos os raptos, que fizeram não
só as pausas desse trabalho, como a força pra continuar. Espero que
ele esteja pronto para o doutorado!
A alguns amigos que leram partes desse trabalho e deram
inestimáveis sugestões: Levindo Pereira, Brisa Catão, Luisa
Girardi, Bruno Rocha, Claudia Bongianino, Rogério Pateo, Luisa
Reis. A Carlos Gomes, com sua ajuda única na revisão. Às Luisas
Girardi e Reis, que me ajudaram com as traduções
estrangeiras.
Aos colegas do Museu Nacional. Em especial a Guilherme
Heurich, que passou pelos mesmos passos que eu, e a Orlando
Calheiros, sempre muito generoso.
A Armando Barros, que me propiciou não só abrigo, mas apoio
inestimável no meu primeiro ano de mestrado. Gostaria que ele
estivesse aqui para compartilhar os resultados desse projeto, pelo
qual ele mostrava tanto interesse.
nem tudo que é torto é errado vide as pernas do garrincha
e as árvores do cerrado (Nicolas Behr)
capítulo 2 como se define o alcoolismo indígena: a
cultura .................................................................................................................................48
capítulo 3 quando se conhece o alcoolismo indígena: o contato
............................................................................Error!
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capítulo 4 como se age sobre o alcoolismo indígena: a saúde
pública .....................................................................................................................111
parte II outras
histórias.........................................................................Error!
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Saté e o karowara .
Certa tarde, durante minha breve experiência de campo entre os
Asurini do rio
Tocantins1, estávamos Iara e eu na sala que serve de
consultório odontológico da aldeia
Trocará. Iara é uma agente indígena de saúde. Pouco tempo
antes, ela ajudava a organizar
a fila para os atendimentos, mas agora ela havia entrado para
descansar e fugir do sol.
Estávamos sentadas e observávamos o movimento que se passava no
exterior do
cômodo. Nesse momento, Iara começou a me contar sobre o antigo pajé
Nakawaé. Ela
me disse que esse xamã jamais deixava um dentista encostar em sua
boca. Ela explicou o
motivo: é nas gengivas, entre os dentes e os lábios, onde se alojam
os karowara . Caso
mexessem nessa região, eles seriam expostos e poderiam ir
embora.
Nakawaé morrera treze anos antes, por mordida de cobra, e ninguém
tomou seu lugar
desde então. Iara me disse que, para ser pajé, era necessário ter
esses karowara , uma
substância – “como um dentinho de peixe ou uma espinha” – que se
consegue com o
sawara , o espírito-onça. Ela acrescentou que os três caciques
atuais também possuem essa
substância, mas a receberam do próprio Nakawaé. Eles não
continuaram o aprendizado
3
necessário para se tornar xamãs e, portanto, não obtiveram, daquele
espírito, o karowara .
Por isso, eles não sabem fazer curas. Nas festas, porém, após
alguns dias de danças e
fumo, eles podem, certas vezes, “pegar karowara ”. Ela contou
que eles começam a fazer o
barulho de um pássaro e a bater os dentes e, aí, as pessoas já
sabem o que fazer: é
necessário correr, pegar um pintinho e jogar para eles. Eles irão
morder, arrancar a
cabeça do bicho, “o pinto sai ainda andando”, ela certificou.
Todavia, caso eles não
consigam animais, eles irão correr atrás das pessoas, morder
alguém, deixando essa
pessoa doente.
A antropóloga Lúcia Andrade, quase 30 anos antes, esteve
entre esses mesmos índios,
quando escutou muitas histórias sobre o karowara . Embora ela
não tenha ido ao campo
com o objetivo de estudar esse tema, a pesquisadora notou que essa
era a conversa que
mais lhes interessava na época. Muito se falava sobre os seres
sobrenaturais, sobre
xamanismo, sobre o karowara . Este, ela qualificou como uma
“substância-força”: eram os
dentes e ossos jogados por espíritos da mata
( Takwitimasa ) nos humanos e, ao mesmo
tempo, uma potência xamânica própria do pajé, adquirida por meio de
seu contato com
sawara . Era tanto o que causava doenças quanto a força
necessária para sua cura.
Assim como me contou Iara, Andrade também assinalou que,
durante os rituais, essa
força podia ser colocada pelo xamã no corpo de um adulto, a seu
pedido2. Nessas
ocasiões, Nakawaé enrolava o karowara com o cigarro de
tawari e passava-o para o
homem, que o fumava. Como descreveu um deles, Puraké, para a
pesquisadora, sente-se
vontade de tossir e tonteira, “como quando bebe bebida
alcoólica” (1992: 95).
Entretanto, é necessário continuar fumando, tragando fortemente,
até sentir, na garganta
ou na boca, a substância. Aí o homem perderá suas forças e deverá
ser amparado. Com
isso, ele experimentará um pouco da potência xamânica
( ibid. ).
De todo modo, Andrade presenciou momentos em que o pajé ou outro
adulto “pegam
karowara ”. A pesquisadora descreve um episódio que acompanhou
em uma festa do
tabaco: Karo (um dos caciques atuais) fumou tawari e, em
seguida, começou a tremer.
Nakawaé, percebendo sua fraqueza, procurou “acalmar” seu
karowara com a i’a , a varinha
4
com rabo de macaco da noite; sem sucesso, porém, Karo se pôs a
correr pelo pátio da
casa de danças. Após uma volta, ele abandonou o recinto e se
dirigiu para a aldeia, à
procura de sangue para devorar. Logo depois, ele desmaiou.
Carregado por outros índios
para a tokasa , uma casa cerimonial, jogaram-lhe um pinto
vivo; ele o mordeu, e logo
desmaiou novamente. “Caso ele não encontrasse (ou recebesse) um
animal para comer”,
Andrade comentou, a respeito, “ele morreria – o
karowara morderia seu coração,
provocando sua morte” (1992:114).
Devo dizer que eu também havia ido aos Asurini com intenção
refletir um pouco mais
sobre o karowara . Interessava-me a maneira como as doenças
trazidas por essa substância
podiam relacionar-se com os atendimentos sanitários “brancos”,
continuamente
fornecidos por meio das políticas nacionais de atenção à saúde
indígena. Ao longo de
minha visita, porém, o que ficou claro desde o início é que esse
assunto não estava
presente na fala do dia a dia. Talvez entre os mais velhos, que
conversavam entre si na
“ gira ” (a “gíria”, sua língua), esse tema podia ainda
ser motivo de preocupações; no
entanto, isso era algo que eu não poderia perceber, dada minha
incompreensão de seu
idioma. De todo modo, esse jamais surgia espontaneamente na fala de
meus
interlocutores. Quando eu incitava o assunto por meio de perguntas,
recebia respostas.
Mas, ainda que elas não fossem evasivas, como era comum, logo a
conversa mudava de
tema para algo que lhes chamava mais a atenção3.
Foi justamente por esse motivo que aquela narrativa de Iara, no
consultório
odontológico, marcou-me. Essa indígena não só mencionou
características fundamentais
sobre o karowara , como especificou também vários aspectos da
prática do xamanismo.
Não bastando, ela ainda considerou interessante acrescentar uma
curiosidade, algo que
havia despertado sua atenção nos últimos tempos. Iara me disse que
Saté, um Asurini
que rodeava seus 25 anos, também “pegava karowara ”. Mas duas
coisas faziam desse fato
um estranho acontecimento. Em primeiro lugar, Saté não possuía
karowara . Por ser ainda
jovem e por mostrar uma certa predileção por momentos de
divertimento (como
bebedeiras e namoros), Saté jamais recebeu essa substância do pajé
ou de outro adulto 4.
3 Entretanto, essa situação pode ser diferente quando o Dia do
Índio se aproxima, no mês de abril. Nessa época, os Asurini fazem
uma festa de cerca de um mês, com muito canto, dança e tabaco. Aí,
eles me disseram, três ou quatro anciãos podem ‘pegar
karowara ’.
5
Em segundo lugar, e talvez mais estranho, esse rapaz pegava
karowara por meio da
embriaguez de cachaça, e não pela fumaça do tabaco. Iara contou
então que, às vezes,
quando muito bêbado, Saté começava a bater os dentes, assim como
fazem os homens
na festa do tawari , e, com fome de sangue, corria aldeia
afora. Era necessário, como
vimos acima, jogar-lhe um pinto vivo.
Foi então, por meio da narrativa de Iara, que eu pude reencontrar o
tema que,
inicialmente, tinha me proposto. Se eu não escutava muito sobre o
karowara no cotidiano,
posso dizer, ao contrário, que eu muito ouvia falar sobre as
bebedeiras na aldeia. E não
era só dos índios que eu percebia essas conversas. Antes mesmo de
visitar os Asurini, eu
recebi vários alertas sobre o hábito de bebedeiras que aquele povo
progressivamente
contraía. Fui avisada também sobre uma possível
“desestruturação” da aldeia, em função
de sua vizinhança com a cidade de Tucuruí, a somente 24km de
distância.
Quando cheguei aos Asurini, no entanto, deparei-me com uma aldeia
organizada e
acolhedora. Certamente, muito havia mudado desde o contato com as
frentes de
expansão, na década de ’50, e, principalmente, desde a pesquisa de
Lúcia Andrade (na
década de 1980)5. Sobretudo a partir do início dos anos ’90, quando
o acesso a Tucuruí
foi facilitado pela abertura de uma rodovia, as transformações se
intensificaram. Agora,
era muito mais fácil e rápido visitar a cidade dos brancos, assim
como adquirir seus bens.
Além disso, com a criação de políticas governamentais
específicas para povos indígenas,
foram construídos um posto de saúde e uma escola na terra indígena
(T.I.). Estes, aliás,
pareciam figurar, muitas vezes, como o centro da aldeia. Sempre
havia pessoas por perto,
passando, observando, esperando. A enfermaria, principalmente,
parecia especialmente
atrativa: muitos habitantes a visitavam diariamente, na busca
constante por
medicamentos, consultas e medições.
Nesse contexto, o que eu percebi como preocupação dos indígenas foi
a embriaguez
recorrente de alguns jovens ou adultos. A cachaça fazia parte de
muito do que se falava.
Presenciei ali episódios de bebedeiras, alguns deles seguidos de
brigas ou conflitos. Essas
situações logo se tornavam o assunto dos próximos dias, e não só
entre os indígenas,
como entre os brancos que vivem nas aldeias, que prestam serviços
como professores,
Asurini reivindicam como sua origem]. Ele não é considerado
um pajé, mas detém vários conhecimentos relacionados ao xamanismo”
(1992:96)
6
enfermeiras, funcionários da Funai e da escola. Para estes, as
bebedeiras configuravam-se
como o grande problema atual da aldeia. A cada momento, sugeriam-se
possíveis formas
para a ‘solução’ do alcoolismo. Ouvi aventarem-se possibilidades
variadas, como a de
uma professora que defendia a contratação de um psicólogo para a
aldeia, ou a de um
funcionário que sugeria a entrada da Igreja Universal do Reino de
Deus na terra indígena.
Em meio a essas constantes preocupações com as bebidas, a menção de
Iara sobre Saté e
o karowara me chamou atenção. Foi precisamente esse
comentário que me fez refletir
sobre o que mais a embriaguez de cachaça podia dizer. Eu tinha em
mente, então, a
disjunção clássica entre as práticas rituais Tupi, que envolvem
seja o cauim alcoólico, seja
o tabaco: o primeiro, bebido nos festins que congregam grupos
aliados, é associado aos
motins de guerra e vingança; o segundo, utilizado em sessões de
cura e de viagens
xamânicas, é um meio de acesso ao mundo sobrenatural. As bebidas
destiladas
consumidas pelos Asurini parecem conjugar características de ambos.
Como o cauim,
elas são consumidas em grupo, incessantemente, até que elas
terminem ou que os
bêbados acabem desmaiados; além disso, suas bebedeiras também podem
se reverter em
encontros furtivos entre casais, ou ainda, muito frequentemente, em
episódios de
violência. Como o tabaco, por outro lado, elas propiciavam
que um jovem pegasse
karowara , assim como os adultos o fazem após muito dançar e
fumar. Com essas
reflexões, passei a me interessar também pelo consumo de bebidas
destiladas.
O problema do alcoolismo.
Uma vez de volta do campo e inquieta com as conversas que tanto
ouvi dos Asurini,
resolvi buscar publicações que versassem sobre as novas bebedeiras
propiciadas pelas
fortes bebidas dos brancos. Encontrei aí uma grande quantidade de
textos que se
direcionavam ao consumo exagerado de algumas substâncias, como:
cachaça, cerveja,
vinhos, whisky, álcool doméstico, perfume, desodorante,
acetona e, em algumas
circunstâncias, até mesmo o cauim (mas agora com novas
características de distribuição e
consumo). Essa literatura que coletei apresenta, em sua maioria,
uma especificidade: ela
se propõe o objetivo de procurar mecanismos culturalmente
diferenciados para a
redução ou a supressão do “problema do abuso de bebidas alcoólicas
por povos
7
ensejo dessas leituras, que minha dissertação deixou de ter como
tema os próprios
Asurini e passou a se direcionar para o estudo desses
textos.
O “problema do alcoolismo” foi algo que prendeu minha atenção desde
o início. Pus-me
a buscar os elementos levantados pelos textos para declarar que
esse consumo fosse um
problema. Não que eu considerasse que não o fosse, mas – esse era o
ponto – eu não
pensava que ele necessariamente devesse sê-lo. Entre os Asurini,
parecia-me, as
bebedeiras eram um grande sofrimento, uma dificuldade, e também um
‘tema’, isto é,
algo que ocupava seus pensamentos e os preocupava. De certo modo,
elas configuravam,
sim, um problema. Porém, não estava certa se esse problema dos
Asurini era o mesmo
que o dos funcionários da FUNASA6, da FUNAI, da Escola ou, ainda, o
dos habitantes
da cidade vizinha, que poucas relações mantinham com os índios em
seu cotidiano.
Percebi, após isso, que as bebedeiras dos índios pareciam ser
também um problema para
muitas outras instâncias, às vezes muito distantes das realidades
indígenas, como a mídia
brasileira, por exemplo, que noticia, com certa frequência, o
“alcoolismo indígena”7.
De todo modo, o abuso de bebidas configurava, também, é claro, um
problema para a
literatura que procurava refletir e intervir sobre o alcoolismo
indígena. Nesses textos,
podem-se encontrar listadas várias situações associadas ao consumo.
Estas consistem
tanto nas tragédias que podem ocorrer quando os índios bebem – como
violência
doméstica, atropelamentos, brigas, suicídio etc. – quanto nos
efeitos fisiológicos que
acontecem de tanto os índios beberem – como cirrose, pancreatite,
anemia etc. Assim,
percebi que muito do “problema do alcoolismo” se constitui a partir
de seu vínculo com
essas conexões de diversas naturezas.
6 Sobre percepções de profissionais de saúde ‘brancos’ que
trabalham nas aldeias, uma pesquisa de Melo et al . retraça as
associações com o alcoolismo feitas por funcionárias do Distrito
Sanitário Especial Indígena Potiguara, na Paraíba – em geral,
enfermeiras que trabalham há pelo menos 4 anos nas aldeias. As
falas foram coletadas pelas autoras e reunidas em um
corpus de entrevistas, a partir do qual as autoras
discriminaram as palavras mais recorrentes para caracterizar o
hábito de beber indígena. Suas conclusões foram que: “Nesta
categoria [definições de alcoolismo], a palavra álcool (k2 =21)
mostra-se significativa, estando relacionada a outras, como: ruim,
distúrbio, algo facilitador nas relações interpessoais, droga,
hábito, vício, um meio de diversão, uma coisa maléfica” (Melo et
al., 2009: 6). Elas trazem exemplos de falas das enfermeiras: “
“Acho que é um distúrbio que há na pessoa em conseqüência de vários
fatores, como depressão e falta de amor” (enfermeira). “Justamente,
porque é um vício, é a busca do lazer na bebida. Aquela sensação de
prazer de alegria e tudo” (enfermeira).” (Melo et al., 2009:
6).
8
Alguns dos programas de intervenção sobre o alcoolismo
especificam que o primeiro
passo de suas ações é perceber se o consumo de bebidas,
em uma etnia específica, é
considerado um problema pelos indígenas que moram ali (cf.
Ferreira, 2004b; Oliveira;
2004). O Diagnóstico Antropológico Participativo sobre a
Manifestação do Alcoolismo entre os Povos
Indígenas: subprojeto Mbyá-Guarani , por exemplo, teve essa
como sua primeira atribuição
(Ferreira, 2004:90). Entretanto, a esse respeito, Luciane Ouriques
Ferreira, a antropóloga
convidada pela FUNASA a realizá-lo, pontuou:
“Tenho como hipótese que o próprio processo de pesquisa deste
Diagnóstico pode ter sugerido aos Mbyá-Guarani pensar o uso de
bebidas alcoólicas como uma questão de saúde e doença. Na medida em
que instituições da sociedade ocidental, responsáveis pela
assistência à saúde indígena (FUNASA), detêm sua atenção sobre esta
problemática, criando um debate sobre o tema, pode desencadear um
intenso processo cultural de construção da doença alcoolismo entre
os Mbyá-Guarani, desencadeado por estas relações interétnicas”
(2002: 58- 59, nota 25).
O problema das bebedeiras para os Mbyá, portanto, pode ter sido
despertado pela
insistência e priorização do tema pelos programas ocidentais de
saúde. Laércio Fidelis
Dias intui algo semelhante a partir de uma entrevista com um
funcionário indígena:
“Fica evidenciado que o auxiliar de enfermagem indígena avalia o
‘problema do alcoolismo’ de acordo com aquilo que lhe foi ensinado
durante o curso de enfermagem em centros médicos de Macapá, onde
são formados. No depoimento do auxiliar, o que enfatizado é o
‘problema’” (2006:190).
Isso não quer dizer, porém, que o consumo regular de bebidas não
tenha se tornado, de
fato, um problema para os indígenas. Afinal, como ressalta ainda
Ferreira para os Mbyá,
conceber o consumo regular como um problema não é “apenas uma
imposição dos
segmentos da sociedade nacional responsáveis pela questão da saúde
indígena”, pois há
inúmeras concepções próprias desses índios sobre a prática (2002:
41). Todavia, a
questão que trago com essa discussão não é a de saber de onde vem o
problema, quem o
instaurou ou se ele deveria ou não existir. O que questiono é se os
problemas dos
indígenas e os problemas dos brancos sobre esse consumo, ambos
coexistentes nas
aldeias, são os mesmos.
Por um lado, o consumo excessivo regular de destilados por
indígenas parece ser algo
que as instâncias de saúde pública se sentem no dever de resolver.
Ao organizar os
serviços de saúde para prover uma assistência sanitária julgada
adequada, essas
embriaguez. As intervenções, portanto, formulam, entre suas
estratégias 8, “reuniões de
sensibilização para o envolvimento da comunidade e priorização do
problema” (J. Sousa
et al., 2001c:199). Elas procuram salientar, ou ‘fazer visível’ o
problema – ou seja,
localizá-lo em pessoas, notabilizar as frequências de uso,
verificar as quantidades
usualmente ingeridas. Só assim elas poderão entrever formas para
controlá-lo.
No caso dos indígenas, por outro lado, carece ainda saber
como o consumo de bebidas se
configura como um problema, ou, ainda, o que conta como problema
para eles. Eles
consideram as bebedeiras, por certo, algo que requer ações para seu
controle, o que eles
demandam a várias instituições ocidentais. Porém, para a vida
cotidiana de parte dos
indígenas, esse consumo parece ser menos um problema a se
solucionar do que uma
questão (problemática, provavelmente) a se lidar. Antes de qualquer
coisa, ela é algo que
está presente em suas vidas e em suas relações. Com a proximidade
das cidades, a
facilidade de acesso aos mercados, a disponibilidade financeira
para a aquisição das
bebidas, o uso de destilados se intensificou. Com isso, faz-se cada
vez mais penoso
conviver, dia após dia, com situações recorrentes de embriaguez de
parentes, muitas
vezes conjugadas a atos de violência. As bebedeiras
frequentes me parecem, então, trazer
dificuldades para as formas de se relacionar e de se aparentar, e
para as possibilidades de
“viver bem” com os co-residentes9.
Considerando tudo isso, decidi, então, que o que gostaria de levar
adiante nesta
dissertação seria o tema, não o problema priorizado pela saúde
pública. Ou seja, mesmo
sabendo que essa é uma acentuada questão entre as etnias
brasileiras, não pretendia
iniciar este estudo com a certeza de que o alcoolismo indígena era
um problema – muito
menos, um a ser resolvido. Obviamente, isso não quer dizer que ele
deva ser ignorado ou
amenizado, menos ainda que ele seja desejável. Digo somente, com
isso, que o que me
coloquei como o objetivo de pesquisa foi tratar dessas bebedeiras
como algo problemático,
8 Na conclusão do “Seminário sobre alcoolismo e
vulnerabilidade às DST/AIDS entre os povos indígenas da
macrorregião Sul, Sudeste e Mato Grosso do Sul”, o primeiro grande
debate sobre esse tema no Brasil (de que tive notícia), os autores
pontuam 17 “Estratégias de Prevenção e Intervenção”. Entre elas,
destacamos algumas, direcionadas também a “priorizar” o assunto nas
comunidades: “Disseminar a informação sobre DST/AIDS e alcoolismo
(impactos físicos e sociais)”, “Organizar curso de especialização
nas áreas de DST/AIDS e alcoolismo”, “Prevenção nas escolas,
incluir o tema no currículo transversal”, “Grupos de conversa sobre
alcoolismo (auto diagnóstico)”, “Incluir o tema alcoolismo na
rotina de trabalho dos agentes indígenas de saúde”, “Elaboração de
material de apoio: cartilhas, vídeos, folders, etc.”.
10
isto é, algo que traz dificuldades – e, portanto, algo que exige
trabalho, que exige ainda
muitas discussões a seu respeito. Dessa forma, a certeza que
levarei adiante, após essa
introdução, é que as bebedeiras de destilados não são um assunto
fechado a novas
reflexões.
Os Asurini e as bebidas .
Seria interessante trazer algumas notas sobre a minha breve
experiência entre os Asurini.
Não poderei dizer muitas coisas a esse respeito, por motivos que
esclarecerei em breve,
mas, de certo modo, essa experiência poderá me ajudar a ter o
impulso inicial para refletir
sobre o tema. Pois, naquela aldeia, todos – tanto índios como
brancos – pareciam referir-
se a essas bebedeiras como problemáticas. Descrevo um pouco essas
situações.
Posso começar dizendo que, durante muitas tardes, sentada no pátio
de alguma casa ou
no Posto de Saúde, onde invariavelmente reuniam-se alguns
indígenas, eu podia perceber
algum burburinho ao longe, no pátio da aldeia. Quando se tratava de
um bêbado com
quem os índios que me acompanhavam não possuíam relações de
parentesco, eles logo
se voltavam para mim ou para um parente e comentavam “fulano está
porre”. Às vezes
riam, às vezes se mostravam preocupados, mas, pouco tempo depois,
continuavam o
curso normal de sua tarde. Se se tratasse de um parente, ao
contrário, essa reação podia
ser diferente. Rapidamente eles procuravam se dirigir para as
proximidades do bêbado –
porém, nem sempre muito perto. Perto, somente alguns parentes
próximos chegam,
correndo sempre o risco de receber ofensas ou golpes. Esses
indígenas procuravam,
então, acompanhar as andanças do embriagado entre uma casa e outra,
e para o Posto de
Saúde, para a Escola, e de volta às casas. Um bêbado nunca para em
um único lugar, é o
que logo se constata. Mas, passados os momentos iniciais do
espanto, e quando a
situação não se encaminhava para episódios de conflitos, essa
novidade deixava de
despertar a curiosidade e a preocupação. Somente a esposa, os pais
e, às vezes, os irmãos
do bêbado mantinham-se apreensivos noite afora.
Muitas vezes, então, o bêbado ficava somente a tropeçar de um lado
para o outro,
dirigindo palavras tortas para quem cruzasse seu caminho. Em certas
ocasiões, todavia,
alguma ação violenta pode resultar de sua ebriedade. Por isso, a
primeira medida que se
faz, após sua chegada, é esconder facas e objetos perigosos.
Algumas vezes, já se prepara
também uma amarra para passar em torno de seus pulsos, segurados
atrás do corpo; até
11
alguma pancada, e mesmo retrucá-la. Nesse momento, tenta-se fazer o
bêbado ficar
quieto em sua casa, mas quase sempre esse esforço é em vão, pois
uma urgência parece
lhe demandar movimento. Logo ele se colocará em marcha outra vez,
em alguns casos,
conseguindo desatar o laço que o segura; caso não o consiga, é
desse jeito, com os braços
para trás, que ele irá andar, por vezes até ameaçando outras
pessoas e provocando brigas.
Não consegui delinear, nos casos que observei ou de que ouvi, para
quem se dirigiam as
ofensas dos bêbados. Nas vezes que pude notar, foram a pais e
irmãos, uma vez à avó
(mãe de criação), outra ao Chefe de Posto, outra à Escola. Mas os
motivos sempre me
foram um pouco indecifráveis. O que percebi é que as pessoas da
aldeia não gostam
muito de falar sobre essas brigas e, delas, não fazem mais que
dizer que ‘fulano estava
porre e brigou’.
Não é com liberdade, então, que os Asurini respondiam às minhas
questões sobre as
bebedeiras. Muitas vezes, eu os ouvia caçoar do bêbado, ou se
preocupar com ele, ou
ainda se indignar com a situação, mas não falavam mais que isso.
Tampouco os próprios
bêbados, nos dias seguintes: às vezes, eles trocavam palavras
fugidias, com vergonha; às
vezes, em conversa com outros, eles admitiam que beberam,
talvez que brigaram, mas
não entravam muito no assunto; uma vez, aconteceu também de pedirem
dinheiro para
comprar mais uma garrafa. No entanto, o que eu ouvia frequentemente
era um mote de
mobilização: “Tem gente bebendo muito na aldeia hoje. Tem que
parar”. Sempre assim,
indefinidamente. Nunca ouvi alguém acusar outra pessoa diretamente,
ou proferir seu
nome. Nunca vi, muito menos, alguém definir uma pessoa
como “bebedor”, “alcoólatra”.
De um velho senhor, aposentado da FUNAI, por exemplo, dizia-se:
“aquele ali gosta de
uma cachaça!”. Entretanto, essa era uma afirmação que só vinha
quando se estava a
contar algum caso sobre ele10.
Todavia, é necessário observar que a evitação dos índios de
nomear pessoas e discorrer
sobre o assunto é algo que diz respeito a suas relações comigo,
talvez à minha posição de
‘antropóloga’, entre eles. Nada posso dizer sobre como os Asurini
falam sobre isso com
as enfermeiras da FUNASA, com os médicos, com os servidores da
FUNAI, com os
funcionários da Escola. O que pude perceber sobre isso é que existe
um discurso
“oficial” sobre a bebida. Muitas vezes ouvi as lideranças
discursarem sobre “o problema
12
de bebida” na aldeia. Algumas vezes, aliás, ouvi algumas dessas
jovens lideranças
conversarem largamente comigo sobre isso, dizendo que “tem gente
ali bebendo”, que
várias medidas estão sendo feitas para diminuir o uso, que o
problema atual da aldeia são
as bebidas. No outro dia, ou em algum seguinte, eu podia ver esses
mesmos jovens
cambaleantes, perguntando se eu poderia lhes dar dinheiro para
comprar uma cachaça.
Pude observar também algumas mobilizações internas contra o
consumo. Os treinos de
futebol, que ocorrem quase diariamente, eram uma delas. Sobretudo
quando havia um
torneio em vista, quem bebia em um dia não podia jogar no time
titular da próxima
partida. Como se pode imaginar, ouvi disso algumas reclamações,
pois algumas lideranças
(ou seus parentes) conseguiam, muitas vezes, burlar essa regra sem
muitas repreensões.
Muitas vezes, porém, ela é eficaz.
Havia também o controle realizado pelos filhos do cacique-geral
sobre as mercadorias
que chegam à aldeia. Recentemente, os Asurini ganharam um caminhão
da prefeitura de
Tucuruí para realizar o transporte de pessoas até a cidade.
Esse veículo sai, em média, 4
vezes por semana (a depender da época do mês), carregando
indígenas que desejam
adquirir mantimentos ou resolver outras pendências. Na volta à
aldeia, o motorista e,
principalmente, seu irmão vasculhavam as compras que subiam ao
caminhão, jogando
fora os litros encontrados. Cabe dizer, em relação a isso, que ouvi
contarem, sempre aos
risos, insólitos esconderijos onde já se acharam a bebida.
De todo modo, o que se percebe é que o acesso às bebidas naquela
área indígena não é
difícil. As aposentadorias, os salários e os pagamentos por
serviços informais têm
facilitado a aquisição dessa bebida. Além disso, a cidade de
Tucuruí fica a uma hora de
carro, um pouco mais de caminhão e a algumas horas andando. Uma ou
outra vez, ouvi
dizer de indígenas que não retornavam com o veículo da aldeia: eles
ficavam na cidade,
bebiam e, depois, voltavam à pé, certas vezes mesmo sob o sol
quente. Contaram-me que
alguns acidentes podem acontecer nesse percurso, como quedas à
beira da estrada ou das
pontes, atropelamento, insolação. Além da cidade, há, também, uma
mercearia no meio
da estrada, a cerca de uma hora e meia de caminhada da aldeia, onde
alguns indígenas
conseguem adquirir as bebidas. Essa é a maneira mais fácil de se
adquirir cachaça,
quando não resta mais nenhuma garrafa na aldeia. Aos finais de
semana, por exemplo,
13
se dirigem. Em todo caso, os Asurini sempre dizem que, nos dias de
semana, bebe-se
mais que aos sábados e domingos.
Com esse breve resumo, finda-se o que posso falar sobre os Asurini
e suas bebedeiras.
Por nunca ter conseguido conversar profundamente com eles sobre o
assunto 11, e pelo
pouco tempo que passei em campo, não consegui ir além de um
conjunto de relatos
dispersos e essa compilação de observações. A partir daqui, o que
pude aprender sobre
as bebedeiras dos índios veio das leituras posteriores ao campo.
Estas é que serão, enfim,
as protagonistas desta dissertação, e é a elas que iremos nos
dirigir a partir de agora.
A dissertação.
Esta dissertação tem como objetivo inicial apresentar um emaranhado
de ideias. O que
buscarei fazer aqui é, em primeiro lugar, uma reunião da produção
sobre a consumo
regular de bebidas destiladas, sobretudo cachaça, por populações
indígenas no Brasil.
Nesse sentido, este trabalho pode ser encarado como uma revisão
bibliográfica sobre o
que é muitas vezes taxado como “alcoolismo indígena”. Ele se
caracterizará pelo esforço
que empregarei para ‘organizar’ minhas leituras. Todavia, a escolha
de como fazer essa
composição não é simples. O impulso para iniciá-la é algo que
encontrei em uma
importante questão formulada por Annemarie Mol (2002). No início de
seu livro, ela se
pergunta: como relacionar-se com a literatura? E acrescento: como
relacionar a literatura
entre si?
Reconheço, aqui, a inspiração que tirarei de um princípio elementar
de Bruno Latour:
“nada é, por si mesmo, redutível ou irredutível a outra coisa”
(Latour, 1993). Qualquer
aproximação ou afastamento não pode ser feito a não ser mediante o
complicado
trabalho de associação. Nada é consequência imediata de outra
coisa, nada é sua
evidência explícita, sua explicação direta, seu exemplo, sua
demonstração, seu
esclarecimento, seu comentário, seu resultado – a não ser que se
produza a
transformação necessária para se associar um ao outro. Assim,
qualquer conexão
14
demanda um esforço imaginativo de criação de correspondências, de
invenção de
analogias, de estabelecimento de relações.
Isso descreve, de certo modo, o que procurarei fazer com essa
literatura. De fato, o
conjunto de textos de que tratarei aqui não forma um
conjunto a não ser pela
determinação de uma frágil associação: o “consumo de destilados”
por “povos indígenas
no Brasil”. As ideias desse conjunto serão aproximadas por
associações construídas, que
não são ‘impostas’ por conteúdos evidentes, mas negociadas por meio
de acordos. Cada
ideia, é o que notaremos, resiste a uma outra em maior ou menor
grau, e meu trabalho
consistirá em criar sentidos que estabelecem relações, contrastes,
traduções, lugares,
durações, ordenações, hierarquias.
Mas haveriam, idealmente, infinitas possibilidades de instauração
de tal ordem. Haveria,
por exemplo, a opção de me concentrar especificamente em cada
publicação, ou em cada
pesquisador, e produzir resenhas interconectadas de seus
argumentos. Porém, meu
objetivo não é discutir autores ou textos. Não pretendo realizar
exegeses minuciosas ou
expor coerentemente os argumentos que cada texto procura
apresentar: não pretendo
discutir as ‘verdades’ de cada texto. A intenção aqui nunca foi a
de ‘representar’ a
bibliografia. O que produzirei se relacionará, em cada um de seus
pontos, com essa
literatura. Contudo, ao seu cabo, essa narrativa dirá
essencialmente outras coisas – como,
de resto, qualquer outra faria.
De maneira diferente, então, meu objetivo será o de procurar,
nesses textos, alguns dos
recursos utilizados para sustentar, ou, em outros casos,
censurar, a noção de “alcoolismo
indígena” – noção que se tem feito bastante corrente nos últimos
tempos. Trata-se de
procurar perceber as conexões dessas pesquisas para sustentar
algumas colocações sobre
o tema, para modificar concepções, perceber dificuldades e propor
novas medidas. Meu
objetivo, então, será o de refletir sobre esses recursos.
Desse modo, minha intenção será, em primeiro lugar, delinear alguns
dos pontos de
apoio para as afirmações desse conjunto de textos para, em seguida,
fazer outros
experimentos, propor outras conexões possíveis. As discussões
presentes nesta
dissertação não serão, enfim, mais que um ensaio de pensamento, um
exercício de
15
escutar o que mais se pode dizer sobre as práticas alcoólicas dos
indígenas atuais. Essas
torções, porém, não serão propositivas. Elas não serão capazes de
apresentar respostas.
Ao contrário, só será possível encontrar aqui outras
questões.
Para fazer esse caminho, esta dissertação será dividida em duas
partes, denominadas
Algumas histórias e Outras histórias . Porém,
o termo ‘história’ foi acionado, nesses títulos, de
maneira despretensiosa – assim como no próprio nome deste trabalho.
Não será o
objetivo organizar qualquer descrição cronológica sobre a
introdução dos destilados
entre ameríndios12 ou, menos ainda, mobilizar uma discussão
teórica sobre o conceito de
história na antropologia. O que trarei aqui não passam de
“histórias”, “casos”,
“narrações”, ou seja, maneiras diferentes de se contar certos
eventos. Como em qualquer
tipo de narrativa, essas histórias permitem que alguns elementos se
tornem visíveis e
manifestos ao longo da exposição, enquanto outros são jogados para
o segundo plano ou
ofuscados. As duas partes que compõem essa dissertação serão, de
formas diferentes,
retratos dos elementos feitos visíveis pelos textos que compõem
cada uma delas.
Cabe salientar, todavia, que a estruturação das partes (em primeiro
lugar, a literatura
sobre Saúde Pública e, em segundo, a literatura de ênfase
etnográfica) não é fortuita –
mas ela é tampouco necessária. Devo admitir que o movimento da
leitura poderá dar a
impressão que a segunda parte virá para “resolver” alguns dos
pontos – ou espaços
“vazios”, como irei chamar – deixados intactos ou omitidos pelos
textos da primeira
parte13. Porém, o que é necessário deixar claro é que essa mesma
impressão poderia
ocorrer, caso a ordem das seções do trabalho fossem invertidas: se
Outras histórias viessem
antes de Algumas histórias . Da maneira como as concebi,
as bibliografias de ambas as
partes parece realizar um jogo de figura-fundo, nos qual
destacam-se e explicitam-se alguns
aspectos do tema tratado, deixando outros obscurecidos. O contraste
entre as partes
pode ser visto como uma alternância, dessa dissertação, entre as
“figuras” realçadas em
cada momento; ao mesmo tempo, esse trabalho se coloca a constante
questão do que é
deixado no “fundo”, nesses momentos. Assim, a escolha da presente
ordenação de
Partes não é fortuita, uma vez que eu decidi jogar a “figura” da
segunda parte como
réplica ao “fundo” da primeira – e não o contrário. Entretanto, é
necessário dizer que o
mesmo trabalho poderia ter sido feito contrariamente, e,
certamente, questões
igualmente interessantes poderiam resultar.
Feita essa consideração, trago aqui um pequeno resumo das seções do
trabalho. Em
Algumas Histórias , a parte que ocupa a maior parcela
deste trabalho, foram agrupados os
artigos, as teses, os projetos que eu denomino de “literatura sobre
alcoolismo indígena”14.
Esta bibliografia foi reunida aqui principalmente em função de
certos objetivos,
delineados entre as várias afirmações contidas ali, como: o empenho
em refletir sobre as
diferenças do consumo dos índios em relação ao dos brancos, as
propriedades
“culturais” do uso, os danos advindos da inserção das bebidas por
meio do contato com
o ocidente, os possíveis problemas derivados dos excessos
cotidianos de álcool, as
medidas de intervenção culturalmente diferenciadas. Dentro desse
conjunto de textos, o
trabalho principal consistiu em divisar aqueles recursos, acima
referidos, que permitem
aos pesquisadores refletir sobre os problemas do alcoolismo
indígena.
O Capítulo 1 terá, em grande parte, a função de sinalizar, talvez
delinear, esses recursos.
Ele proporá um sobrevoo por algumas das ideias que pude apreender
dessas leituras.
Nesse momento, porém, não terei a preocupação de acrescentar
debates ou
considerações diferentes das que geralmente aparecem por ali. O
capítulo só terá o
objetivo de acompanhar o que se costuma falar do álcool nessa
literatura. Ele partirá das
considerações sobre a própria substância “etanol” e a fabricação de
bebidas alcoólicas,
para, em seguida, observar como, progressivamente, irão agregar-se
a ela outras conexões
– que caracterizarei sob o rótulo de ‘fisiológicas’,
‘orgânicas’, ‘psicoativas’, ‘culturais’,
‘psicológicas’ e ‘sociais’.
Já no Capítulo 2, procurarei entrar em um desses recursos: a
cultura. O tema principal
dessa seção será a necessidade levantada pelos textos de negar uma
parte fundante do
conceito de alcoolismo – o universalismo, o determinismo biológico
– para poder
afirmar a importância dos variados “estilos de beber” dos
indígenas. Esta será a principal
passagem proposta pelos textos: o abandono do domínio da natureza e
a concentração
no âmbito cultural. Procurarei, então, compreender mais
especificadamente o que esse
“cultural” pode querer dizer, além de quais novidades os textos
aportam com essa
transição. A isso, enfim, acrescentarei algumas considerações
baseadas em discussões
17
atuais da antropologia e da etnologia ameríndia, com as quais
refletirei sobre uma
segunda passagem possível.
O Capítulo 3 será consagrado à ênfase dada às consequências do
contato com as frentes
nacionais de expansão. Uma das visões correntes, nessa literatura,
é que o hábito ou a
“dependência” de alguns indígenas por bebidas destiladas é
decorrente das violentas
relações travadas pelos brancos com os índios, desde os primórdios
da colonização. Com
isso, uma divisão é criada entre bebidas tradicionais (como os
fermentados de mandioca
e milho) e bebidas dos brancos (como a cachaça, o álcool doméstico
etc.), sendo as
segundas consideradas como índices de ‘deterioração’ e fontes de
violência. Este capítulo
procurará, por fim, contrapor alguns debates a esses pontos,
argumentando que talvez
existam outras perspectivas possíveis sobre as relações dos índios
com os brancos, com a
história, com as bebidas e com a violência.
O Capítulo 4, enfim, discutirá algumas escolhas metodológicas
realizadas nos projetos de
intervenção sobre o “consumo excessivo de bebidas” em áreas
indígenas. Ao trazer
exemplos que, à primeira vista, não se relacionam com as realidades
nativas, irei discutir
algumas das opções geralmente colocadas em prática nesses
programas, como, por
exemplo, quem serão os agentes interventores, de quem serão
coletadas as principais
informações sobre o consumo, qual será o alvo das ações, quais
serão as ‘especificidades
culturais’ levadas em conta, quais aspectos do consumo serão
levados em conta. A partir
disso, procurarei propor outras questões, refletindo sobre que tipo
de mudanças poderia
ocorrer se alguns pequenos deslocamentos fossem acrescentados a
essas orientações, ou
que implicações poderiam resultar ao se reconhecer a capacidade de
alteração dos
pensamentos, falas e ações nativos.
A segunda parte, Outras Histórias , consistirá em um
apanhado de narrativas etnográficas.
Ela não se dividirá em capítulos, pois o trabalho aqui será somente
o de resumir outras
possíveis maneiras encontradas por alguns autores para falar sobre
as bebedeiras –
maneiras que não são orientadas pelas práticas e pelas finalidades
da Saúde Pública. Os
textos que servem de base para esses resumos geralmente abordam não
só as bebedeiras
ocorridas nas aldeias, mas também outras variadas observações sobre
os modos e os
sentidos de vida de alguns povos indígenas, sendo o consumo de
bebida um dos aspectos
importantes de suas existências atuais. Resumirei, desses textos,
alguns dos diversos
Observações e ressalvas
Para finalizar essa introdução, cabe algumas ressalvas. Elas serão
dirigidas a dois
‘movimentos’ próprios da leitura desta dissertação, a algumas
escolhas nela feitas e a
descuidos que não puderam ser remediados para, ou após, a
escrita.
Em primeiro lugar, é necessário advertir que o leitor poderá
estranhar, em um trabalho
sobre um tema tão prático quanto o das bebedeiras atuais dos
indígenas, o tom
essencialmente teórico das discussões iniciais. Como se poderá ver,
os Capítulos 1 e 2
são especialmente abstratos, para não dizer enfadonhos. Entretanto,
esse
aprofundamento conceitual será, de certa forma, inevitável, uma vez
que ele reflete
discussões, igualmente teóricas, que a própria literatura sobre
alcoolismo indígena aciona
com muita frequência – entre elas, e sobretudo, o debate sobre as
relações entre biologia
e cultura. Este trabalho iniciará, portanto, com uma leitura pesada
e técnica; porém, esta
será progressivamente abandonada ao longo dos capítulos,
desembocando nas descrições
essencialmente etnográficas da Parte II.
Um outro movimento que se poderá perceber é o da escolha de termos
para designar o
consumo de álcool. Será possível observar que os capítulos iniciais
fazem o uso frequente
da palavra “alcoolismo”, assim como de noções críticas a ela, como
“alcoolização” ou
“comportamento alcoólico”. Todo o caminho posterior expressará,
contudo, a
preferência por termos ou expressões como “bebedeiras”,
“embriaguez”, “consumo
regular”, “hábito de beber” etc. De forma similar ao movimento que
vimos acima, o
daqui também espelha, de certa forma, os assuntos de que tratarei
no curso desses
capítulos: se começarei retratando as discussões sobre ‘alcoolismo
indígena’, terminarei
resumindo descrições sobre as ‘ebriedades de destilados buscadas
por alguns indígenas’.
Algumas escolhas estilísticas e editoriais também devem ser
notadas. Primeiramente, é
importante dizer que preferi traduzir para o português as citações
em língua estrangeira.
Quase todas serão reportadas somente em sua forma traduzida, exceto
por aquelas cuja
versão para o nosso idioma se fez especialmente complicada.
Estas últimas foram mantidas
em sua forma original no corpo do texto e traduzidas, de modo
aproximativo, em nota.
Em segundo lugar, optei por empreender uma revisão ortográfica das
transcrições de
grafadas como “qualquer”, “bebendo”, “queria”, “me embriagar” etc.
Com essas
marcações de oralidade, realizadas sem muito rigor fonético15,
salientam-se traços que
não são exclusivos ou característicos da pronúncia indígena, mas,
em muitos casos,
pertencem a falares regionais. Assim, essas transcrições podem
acabar gerando um efeito
bastante diferente, pois, ao salientar regionalismos que destoam da
fala normatizada,
podem veicular uma noção enganosa de “erro”, ignorância, exotismo,
todas imbuídas de
preconceito linguistico16. Da mesma forma, ao citar trechos dos
textos em que me baseei,
escolhi não utilizar a fórmula [ sic ], optando por
fazer revisões pontuais quando
necessário17. Embora eu saiba que essa é uma escolha delicada, meu
objetivo, ao adotá-la,
foi o de não enfatizar aspectos dessas obras que pudessem diminuir
seu valor só em
função de questões gramaticais. De todo modo, um anexo com as
citações originais pode
ser encontrado ao fim deste trabalho.
Em outro sentido, ainda uma importante ressalva é necessária,
relativa à generalização
dos dados etnográficos sobre povos ameríndios. Muitas vezes, como
se verá,
confrontarei práticas e noções próprias de uma etnia com as de
outras; às vezes, também,
referirei-me a concepções compartilhadas pelo conjunto desses povos
como “cosmologia
indígena”, no singular ou no plural. Esse amalgamento pode,
certamente, ser um
problema. Teria sido melhor, é claro, se este trabalho enfocasse em
um povo específico,
ao qual fossem comparadas análises sobre outras regiões. Com isso,
seria possível buscar,
por meio da experiência etnográfica e dos registros históricos,
elementos etnográficos
que possibilitassem refletir sobre (ou contrastar com) algumas
ideias correntes sobre o
consumo de bebidas destiladas. Porém, isso não pôde ser feito aqui.
A duração do meu
campo e a extensão da bibliografia disponível sobre os Asurini não
me permitiriam fazer
tal aprofundamento.
Espero, todavia, que essa limitação não transforme esta dissertação
em um trabalho
inválido, sobretudo porque essa comparação não foi realizada de
maneira disparatada.
15 Aparentemente, não houve uma escolha criteriosa de quais
traços fonéticos seriam preservados. Assim, me parece que muitos
fenômenos linguísticos retratados por certos autores pertencem à
fala de seus próprios idioletos – como, por exemplo, apócope do “r”
final dos infinitivos – e não exclusivamente à dos indígenas.
Curiosamente, outros fenômenos que são comuns à sua fala, como o
alçamento do “e” tônico em oxítonas como “se”, “me”, “te”, são
transcritos de acordo com a ortografia do Português Brasileiro.
16 Cf., sobre essa escolha fonética em transcrições indígenas
e suas implicações políticas, Viveiros de Castro, 1999:188ss.; para
uma visão introdutória sobre o preconceito linguístico em Português
Brasileiro,
Procurei considerar cautelosamente as observações etnográficas
sobre cada um dos
povos indígenas indicados aqui. Além disso, apoiei-me também, para
prosseguir com
essa escolha, em um esforço realizado por estudos etnológicos
recentes, incentivados
principalmente por trabalhos de Lévi-Strauss (especialmente as
Mitológicas). Essas
análises fogem das fronteiras dos “grupos” étnicos historicamente
delimitados para se
centrar em relações que perpassam as unidades. Evidentemente, isso
não quer dizer que
não existam diferenças locais, ou que estas não passem de
expressões uniformes do
conjunto; o que se defende, ao contrário, é que alguns princípios
podem não só informar
sobre essas diferenças, como podem, aliás, ser constituintes
delas.
Tendo isso em mente, o termo “cosmologias ameríndias” servirá
aqui, principalmente,
como um instrumento heurístico, que designará o modo de pensamento
do ‘conjunto’
indígena das baixas terras da América do Sul. Seu papel principal
será o de se contrastar
com as concepções ocidentais e, mais especificadamente, com certas
considerações
biomédicas e socioculturais que se fazem sobre ‘o alcoolismo’. Essa
oposição (indígenas
x brancos) apresentará, por vezes, uma feição grosseira, quase como
um jogo entre preto
e branco, em que muitos matizes em cinza não poderão ser
retratados. Se o escopo fosse
modificado – se não se tratasse aqui de uma revisão bibliográfica –
e o foco direcionado
– se o trabalho consistisse em uma etnografia –, talvez fosse
possível levar adiante a
acuidade das nuanças. Por enquanto, porém, resta somente seguir
para as próximas
páginas, ficando à espera de outras oportunidades.
21
capí tulo
Este capítulo consiste em uma apresentação do que se costuma falar
sobre alcoolismo
indígena. Iremos, aqui, montar um texto que procurará relacionar
muitas ideias
encontradas durante a leitura das publicações que problematizam a
questão dos
destilados nas aldeias indígenas brasileiras. Recortaremos partes
desses escritos, algumas
expressões, opiniões recorrentes, citações. Montaremos, ao fim, um
texto completamente
diferente, mas que procurará retratar um conjunto de afirmações com
que muitas vezes
se depara, nas reflexões sobre o tema. Essas afirmações serão
encaradas, neste trabalho,
como ‘recursos’, ou seja, dispositivos acionados pelos autores para
que lhes seja
permitido alentar certas proposições sobre o consumo, sobre a
‘dependência’, sobre os
efeitos do álcool – ao mesmo tempo em que lhes permite recusar
outras. Procuraremos
divisar, enfim, recursos que permitam aos autores mudar alguns
caminhos de reflexão e
tirar outras consequências das particularidades da embriaguez
contumaz dos índios.
Elencaremos e ordenaremos, então, alguns desses recursos. Porém,
não iremos, ainda,
acrescentar discussões que não estejam já presentes nessa
literatura. Isso buscaremos
fazer somente nos três capítulos seguintes, nos quais colocaremos
sob exame três
recursos específicos: a cultura, o contato com os brancos e os
projetos de intervenção.
Nesses últimos, procuraremos debater algumas considerações
geralmente defendidas pela
amplas da antropologia (ou da etnologia ameríndia, em específico);
neste primeiro, ao
contrário, nos limitaremos a “apresentar” o trajeto feito pela
literatura sobre alcoolismo,
assim como as ideias que eles procuram, muitas vezes,
defender.
O formato que formulamos para essa apresentação é um percurso: um
passeio pelas
idéias aventadas e pelas críticas formuladas pelos artigos em
questão. De uma certa
maneira, esse percurso obedecerá a uma inclinação já existente
nesta própria literatura,
uma separação entre os pólos natural x cultural. Nela, muitas
vezes, tem-se definido o
que é oriundo da biologia e o que é um fator cultural do álcool,
sugerindo-se conciliar
essas abordagens equilibradamente ou escolher uma delas (quase
sempre, a cultural). De
todo modo, carece sublinhar que, conquanto procuremos respeitar
essa classificação já
traçada nos textos, não pretenderemos alimentar tal oposição.
Ciências Biológicas (e
Biologia) e Ciências Sociais (e Cultura) não denotam, nesta
dissertação, essências
discretas ou partições privilegiadas a que uma idéia possa ser
reduzida. Esses termos –
natureza e cultura – serão certamente acionados aqui, mas eles
serão tratados mais como
tendências, e não como pólos. Eles só existirão contrastivamente, e
só serão visualizados,
em cada caso, pelas suas diferenças.
O percurso que faremos aqui respeitará esse trajeto: ele possuirá
um começo e um fim,
atualizando em suas extremidades essas duas tendências. Irá, então,
da tendência
biológica à tendência cultural – como, aliás, parte dos textos que
encontraremos aqui o
faz. Todavia, ele apresentará modulações que o conturbam. Sofrerá
difrações, ao
relacionarem-se ideias que o modifiquem, contraponham, desviem ou,
até mesmo,
engendrem novos caminhos. As idéias irão continuamente se aliando,
formando bases
para outras relações que podem não só confirmá-las, mas também
modificá-las.
A escolha dessa configuração é motivada pela tentativa de
abrir possibilidades para os
textos, em vez de enquadrá-los e domesticá-los. Cada um deles
poderá ser mobilizado em
distintos momentos do percurso e poderá expressar, com intensidade
e graus diferentes,
coisas variadas. Isso lhes permitirá exprimir
mais ideias do que a fixação em apenas um
textos e idéias. Tal configuração pode lhes possibilitar, então,
gerar modificações mais
expressivas no conjunto18.
No que se refere a essa literatura, carece retornar a um ponto que
foi mencionado na
introdução, mas que não pudemos detalhar. Os textos que compõem a
Parte I foram
selecionados em função de sua relação com dois critérios
específicos: deviam tratam do
“alcoolismo”, “alcoolização”, “consumo abusivo de álcool” etc., e
ter como foco
populações indígenas que se situam no Brasil. Em decorrência desta
última opção, os
textos são, em grande parte, oriundos de
231#7453614413315272829383789#######
30
A distinção do estado patológico de J. Sousa começa com uma
definição generalizada de
doença:
"Toda e qualquer condição individual que traga dor, sofrimento
próprio ou de outrem, de qualquer etiologia, e que em função desta
condição traga diminuição, limitação, incapacitação, piora da
qualidade de vida, seja de forma provisória ou permanente, parcial
ou total” (J. Sousa, 2001:24).
Assim, tem-se o estado patológico quando o equilíbrio e o
bem-estar são abalados, isto é,
quando “a intensidade ou a qualidade destes fenômenos começam a
causar dor,
sofrimento, levando à limitação, à incapacitação total ou parcial,
provisória ou
permanente” (J. Sousa, 2003: 69). O pesquisador, contudo, pontua a
complexidade desta
definição quando se trabalha entre povos indígenas: “como será a
percepção deles em
relação ao sofrimento, ao mal-estar? Será que eles possuem uma
concepção própria do
que seja doença?” (2003: 70).
Veremos, posteriormente, que J. Sousa, assim como muitos
outros, chamará a atenção
para não se “trabalhar apenas com o álcool de uma forma isolada ou
específica”
(2003:70). Ele dirá que: “Se de uma perspectiva biomédica o consumo
de álcool em
grande quantidade é considerado um problema de saúde, para os povos
indígenas essas
questões são muito mais complexas e dizem respeito a formas
específicas de relações
sociais e cosmológicas” (2003:70). Todavia, no momento, iremos nos
limitaremos a
traçar as configurações clínicas da condição patológica do
alcoolismo.
"
O rótulo de alcoolismo, desde sua definição como patologia, já foi
trasladado por
diferentes classificações19: doença, síndrome, distúrbio ou
transtorno20. O sofreu um
último movimento em sua definição como problema de saúde pública,
na Classificação
31
Internacional de Doenças de 1967 (CID-8), da 8ª Conferência Mundial
de Saúde. Aí, ele é
estabelecido como “Transtorno de Personalidade e de Neurose”, e é
reclassificado, na
CID-10, como “Transtorno decorrente do uso de Substâncias
Psicoativas” (cf. Souza e
Garnelo, 2006:281-1; Aguiar e J. Sousa, 2001).
A definição proposta nas CID-8 e 10 detém especial
autoridade, sendo
internacionalmente reconhecida em função da precisão das “condições
clínicas” e das
“diretrizes diagnósticas” que são nela listadas. É importante notar
que o detalhamento
dessas especificações tem como objetivo permitir uma maior
possibilidade de acerto do
diagnóstico individual entre as consultas clínicas. No entanto,
dentre toda a listagem de
possíveis quadros clínicos da CID-10, a “Síndrome de Dependência ao
Álcool” aparece,
na literatura, como o aspecto principal para a elaboração do
diagnóstico de alcoolismo.
Tomaremos aqui a definição dada a ela por J. de Sousa:
“A Síndrome da Dependência ao Álcool, tratada como alcoolismo
crônico, deve ser entendida como sendo uma gradação - primeiramente
com o início da ingestão de bebidas até chegar a uma situação de
dependência, num período que varia entre 5-10 anos - e
caracterizada como um grupo inter-relacionado de sintomas
cognitivos, comportamentais e fisiológicos. (…) [A]s incapacidades
relacionadas ao álcool consistem em disfunções físicas,
psicológicas e sociais, que advêm direta ou indiretamente do uso
excessivo da bebida e da dependência.” (2001: 24)
O conceito de gradação é importante, e voltaremos a ele
em breve, quando analisarmos as
probabilidades de progressão do quadro alcoólico. Por enquanto,
detenhamo-nos ainda
na Síndrome de Dependência ao Álcool. Ela denota uma condição
processual, com
sequência de graus de ingestão, que culmina em um estado compulsivo
de necessidade.
Esse estado, como qualifica Manuel Quiles, implica,
psicologicamente, “uma falta de
controle , uma falta de liberdade [em que] o indivíduo não
pode mais escolher entre beber
ou não beber (...)”; e, quimicamente, ela implica “um estado de
impregnação celular que
exige a renovação do suprimento, sob pena de grande desconforto
(síndrome de
abstinência)”21 (2000:5, grifo original).
A tolerância, um conceito correlato, designa uma capacidade
progressivamente adquirida
de ingerir e metabolizar o álcool no corpo (Quiles, 2000:6). O
consumo regular de
32
bebidas torna a pessoa menos sensível a muitos de seus efeitos,
fazendo-a ingerir uma
porção cada vez maior para obter os mesmos efeitos. Há uma
insistência nas diferenças
fisiológicas relativas à tolerância, que são associadas a variações
entre precedentes
genéticos de um indivíduo ou de linhagens. Pessoas com pouca
tolerância atingem o
estado de embriaguez com pouca quantidade de bebidas, enquanto
aquelas mais
resistentes necessitam de doses maiores. Em ambos os casos,
contudo, o organismo se
adapta ao consumo contínuo e amplia gradualmente o nível inicial de
metabolização,
devido à adaptação do sistema nervoso central (Aguiar e Sousa,
2001: 53).
Em todo caso, entramos, nesse ponto, no terreno pouco consolidado
dos estudos
genéticos sobre alcoolismo. Autores ressaltam que a variabilidade
estrutural ou funcional
nas células e nas suas reações com o etanol poderiam influenciar a
propensão para se
tornar alcoólatra22 (Coloma, 2001:152), a aversão orgânica a
algum dos elementos da
substância (Aguiar e Sousa, 2001: 55), a suscetibilidade para uma
lesão grave ( ibid .: 54), a
diferença de metabolismo por gênero (Dias, 2006:77), ou até mesmo o
processo de
“recuperação fácil do ‘porre’” (Viertler, 2002:17).23 Aguiar e
Sousa assinalam:
“Dados acumulados até então permitem concluir que o alcoolismo pode
ser uma desordem das mais complexas, envolvendo múltiplos genes,
sistemas de transmissão neural, o que o faz diferir de família para
família e entre os indivíduos (...)” (Aguiar e Sousa, 2001:
54)
A complexidade da doença, inclusive, possibilita a J. Sousa
multiplicar “o alcoolismo”:
“A ingestão de bebidas alcoólicas pode levar a quadros muitos
diferentes, com cursos irregulares e prognóstico variável,
dificultando o reconhecimento e a aceitação do alcoolismo como
patologia. Em função disto, Keller (1980) recorda e enaltece duas
grandes contribuições de Jellineck, que, ao descrever os quadros
clínicos, deu ênfase a diferentes tipos e à proposta de se
considerar vários ‘alcoolismos’” (J. Sousa, 2001: 24).
Podemos ainda ressaltar que a própria classificação de “síndrome”
é, também, capaz de
abrigar idealmente essa diferença, uma vez que ela é definida como
um conjunto de sintomas
associados a uma condição, os quais podem ou não aparecer,
conjuntamente, em um
22 “Há certos dados que apoiam a idéia que geneticamente o
índio tem menos resistência à bebida destilada e que podem ter
geneticamente uma predisposição maior para a dependência física
(Simonian 1998: 97).
Também parece provável que a ingestão precoce de tais
substâncias em grandes quantidades entre adolescentes cria uma
dependência com muito mais rapidez” (Langdon, 2001: 88).
23 Contudo, devemos deixar claro que a ideia de prioridade e
autonomia da genética como propensora, por si só, do alcoolismo –
ou que “não é o álcool em si mesmo que provoca, necessariamente, a
doença, mas sim uma característica individual [genética], seja o
“metabolismo lento” de algumas raças, em especial os
mesmo quadro clínico. Há, assim, inúmeras possibilidades de
conjunção desses sintomas,
todas elas levando ao alcoolismo. De qualquer forma, múltiplo ou
não, o alcoolismo é
geralmente encarado, na prática biomédica, como uma patologia
única, com sintomas
universalmente válidos e com progressão uniforme a partir do
primeiro copo.
Isso nos encaminha para a fórmula evolutiva da doença, denominada
na clínica de
“história natural do alcoolismo”. A trajetória do bebedor possui
uma “cronologia” de
eventos simples: parte do primeiro drinque (de 12 a 14 anos), passa
para primeira
intoxicação (de 14 a 18 anos), seguida de problemas leves (de 18 a
25) e graves (de 23 a
33), supõe o início do tratamento (40 anos) e propõe a idade usual
de morte (55, 56
anos), em função de patologias associadas (doenças do coração,
câncer, acidentes,
suicídio) (J. Sousa, 2001: 29). A leitura mais aceita dessa
sequência – e, ao mesmo tempo,
a mais controversa para os estudos transculturais sobre ingestão de
bebidas – é a de que,
uma vez instalado o alcoolismo, não há retorno ao “consumo social”.
O alcoolismo é
uma condição que não prevê cura, e o único mecanismo tido como
eficaz no seu
tratamento é a abstenção do uso. De fato, assinala J. Sousa, “[a]
intervenção, quando a
dependência e suas consequências já estão instaladas, traz poucos
resultados.” (2001: 37)
Esther Langdon nota (ao que ela irá se opor, como veremos adiante,
cf. p. 37): “O
enfoque, neste caso, é o indivíduo, a causa é uma dependência
biológica e, uma vez que a
dependência se estabelece, a doença se desenvolve como um processo
natural e
inevitável. A dependência segue uma única direção, sem relações com
o contexto
sociocultural” (2005:105). Cabe sublinhar que o próprio conceito de
“história natural”
prevê um desenvolvimento universal, em que os diferentes períodos
de evolução podem
ser identificados independentemente do portador ou de fatores
psicológicos e
contextuais. Contudo, J. Sousa admite aí uma certa variabilidade:
“Há consenso dos
pesquisadores com esta trajetória, havendo porém, divergências
quanto às faixas etárias
de instalação dos eventos, que variariam, principalmente, em razão
de fatores socioculturais
(permissividade, disponibilidade e acesso)” (2001:29). Embora sejam
discriminados, nas
citações acima, traços de uma sensibilidade cultural, o percurso do
alcoolismo continua
sendo linear em todos os seus casos, com instalação progressiva e
lenta.
A lentidão característica do alcoolismo torna-se um problema
para o diagnóstico clínico,
34
um organismo (J. Sousa, 2001: 32). Os sinais da doença devem
apresentar qualidades
sensíveis, de modo a acionar algum (ou alguns) dentre os quadros
nosológicos virtuais
que compõem o conhecimento clínico. Entretanto, J. Sousa reconhece
que “a passagem
de uma pessoa não-alcoolista, para ser considerada como alcoolista
ou dependente (…),
não é abrupta, mas, sim, exterioriza um processo que demora cerca
de 7 a 10 anos”
(2001: 33). Ele continua:
“Masur (…) reconhece não existir dificuldades em distinguir um
alcoolista de um não- alcoolista. Porém, o momento ou a ocasião em
que ocorre a ‘viragem’ é mais difícil perceber. ‘É fácil perceber
qual é o rosa e qual é o vermelho, o difícil é perceber quando o
rosa está virando vermelho’” (2001: 34).
Portanto, a momentaneidade da consulta clínica, frente a todo o
decurso de instalação da
dependência, não é suficiente para uma diagnose indefectível24. Por
esse motivo, como
lembra Coloma, “o diagnóstico médico é frequentemente feito de
maneira tardia, ou seja,
quando o sujeito está com um alto grau de deterioração biológica e
social” (2001: 132).
A situação se complica mais quando o objeto da análise do
quadro de alcoolismo é um
grupo de pessoas e não indivíduos isolados. Nesse caso, a diagnose
populacional, ainda
que informada pela clínica, foge dos objetivos estritamente
terapêuticos para atender a
exigências políticas, administrativas e sociais. Ela tem a
finalidade de definir o “estado de
saúde coletivo”, buscando comparar diferenças quantitativas entre
subconjuntos
delimitados espacialmente ou variações internas a um desses
subconjuntos ao longo do
tempo.
A Epidemiologia é o braço da Saúde Pública que busca criar o
“perfil epidemiológico” de
uma população (Kohatsu, 2001: 193), estimando a curva normal de
distribuição de uma
patologia e comparando-a com a de outros grupos. Ao produzir taxas
de populações e
detalhamento de áreas de concentração, ela pode, oferecer
mecanismos para medir a
vulnerabilidade dos grupos e, assim, subsidiar estratégias de
intervenção e prevenção25.
Um dos princípios que a impulsiona é o direcionamento adequado de
distribuição de
35
recursos humanos e financeiros (M. Sousa, 2004: 122; Koh