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HISTORIA SOCIAL DO BRASIL
3.º TOMO
A EPOCA REPUBLICANA
LIVROS DO MESMO AUTOR
TRILOGIAS: O REI DO BRASIL (Vida de D •. João VI) - · Llvr. José O!lmpio -
Rio, 1935. O REI CAVALEIRO (Vida de D. Pedro 1) - Comp. Editora Nacional
- S. Paulo, 1933. O REI FILOSOI<'O (Vida de D. Pedro II) - z.• edição - Comp. Editora
Nacional - S. Paulo, 1939.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL - 1.0 (Espir ito da Sociedade Colonial) - 2.• edição - Comp. Editora Nacional - S . Paulo, 1937.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL - 2. 0 (Espirito da Sociedade Imperial) - Comp. Editora Nacional - S . Paulo, 1937.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL - 3.0 (A Epoca Republicana) .
LITERATURA HISTORICA: PEDRA D'ARMAS (contos) - Monteiro Lobato & Cia. - S. Paulo, 1923. O TESOURO DE BELCHIOR (Novela, 1.º premio da Aca,demia Brasi-
leir a, 1929) - Comp. Melhoramentos de S. P aulo. OS MALflS (Novela ) - Pro Luce, Petropolis, 1933. O CRIME DE ANTONIO VIEIRA - Comp. Melhoramentos de S. Paulo. ANCHIETA, O SANTO DO BRASIL - Comp. Melhoramentos d e S. P aulo. O MARQUtS DE ABRANTES - Guanabara Editora - Rio, 1933. GOMES CARNEIRO, O GENERAL DA R EPUBLICA - Guanaba ra Edi-
- tora - R 'o, 1933. V IDA E AMORES DE CASTRO ALVES (2.• edição) - Editora A Noite
- Rio, 1937. FIGURAS DE AZULflJO - Editora A Noite - Rio, 1939.
HISTORIA: HISTORIA DA INDEPENDEN CIA DO BRASIL - Imprensa Nacio
nal, 1928. HISTORIA DA BAHIA (2.ª edição) - Comp, Melhoramentos de S. Paulo. HISTORIA DAS BANDEIRAS BAHIAN AS (esgotada ) - Imprensa Na
cional . 1929. HISTORIA DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA (3.• edição) - Comp, Ed i
tora Nacional, 1937. GREGORJO DE MATOS (Biografia, Obras, vol. VI, edição da Academia
Brasileira) . POR BRASIL E PORTUGAL (sermões do Padre Vieira, anotados)
Cornp. Editora Nacional - S. Paulo, 1937. P EQUENA H ISTóRIA DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA (4.• ed:ção)
Comp, Editora Nacional - S. Paulo, lD39, HISTORIA DO BRASIL, Secµ lo XVI' (As origens) - Comp. Editora Na
cional - S. Paulo, 1939. J-IlSTORIA DA CASA DA TORRE - Llv. J osé Olimpio - Rio, 1939.
DIREITO: DffiEITO DE PROPRIEDADE (Á ma rgem dos problemas) Imprensa
Nacional, 1926. A REFORMA CONSTITUCIONAL DA BAHIA (Discursos) Im:pren!!a
Oficial. - Bahia, 1929. A FEDERAÇÃO E O BRASIL (Rumos constitucionais) - L ivr . Freitas
Bastos - Rio, 1933. INTERVENÇÃO FEDERAL - Livr. Freitas Bastos - Rio, 1936. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO - Livr. Freifas
Bastos - · Rio, 1937. CURSO DE DIREITO PUBLICO - Llvr. F:iie!t-aa Ba-stos - Rio, 1938.
Serie 5.ª BRASILIANA Vol. 173 BIBLIOTECA PEDAGOGICA BRASILEIRA
PEDRO CALMON Da Academia Bra1ilelra
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL
3.0 TOMO
A EPOCA REPUBLICANA
COMPANHIA EDITORA NACIONAL São Paulo - Rio de Janeiro - Recife - Porto Alegre
1939
DO MESMO AUTOR:
N esta série :
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 1.0 Tomo: Espirito da Sociedade Colonial... . .. .. Vol. 40
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 2.0 Tomo: Espirito da Sociec\;lde Imperial ... . .... Vol. 93
HISTORIA DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA.... Vol. 14 O REI FILOSOFO - Vida de D. Pedro II. .. .. . .. Vol. 120
No Prelo:
HISTORIA DO BRASIL - l.º Tomo ~ As Origens
Edições da
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
São Paulo
INDICE
EXPLICAÇÃO .XIII
l - OUTRO R EGlMEN, EM SECULO N OVO ...... ... .
lI - A REPUBLICA TRIUNFANTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 O Governo Provlsorio - Odlo ao passad o - Federação.
III - O DELIRIO DO " ENCILHAMENTO" . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Aventura financeira. - Jogo, riqueza e desastre -A volta ., . d0s conservadores - Deodoro e a ussem-bléa - A CSl>ada na balança .
IV - A ESFINJE . .... .. .. . .. . , .. . . : . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. 31 Flor iano - Golpe de Estado - O elemento novo -A d emissiio do " Fundador" - A "legaJldade" a stuta - O governo do marechal - Agitnção in termitente -O Rio Grande - O cbóquc de prlnci:pios - A Revolução.
V - A CONSOLIDAÇÃO TRAGICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 O poncho solto ao pampeiro ... - A questão Presiden-cial - A vez da a rmada - Cus todio e Sa l<lnnha -Ma rcha sob re S. Paulo - O General Carneiro - O epilogo da revolta - Quando d esaparece Gumercindo - A rcprcsn lia - Prudente de Mo ro es - Clemeneia ororl'unn.
VI - A PACJFICAÇÃO A epopéa dos sertões - P,rosscgulmento da crise -Supr emacia do poder ;pessoal - O ultimo chóque - O aisassinato do ma·r echal Bittencourt.
71
VII - A RECONSTRUÇÃO . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . . .. . . . . . . . 89 A banca.rôta - Regeneração f inancei ra - Os banqueiros .
VIII - O REGIMEN DEFINIDO · (S íntese o critica) . . . . . . . . . 96 . Polltica d os 1tover:nadorcs - Os d ous partidos - A
-~ XII -
miqulna - Desilusão. . . - Centralização - O presidente - A União e os Es tados - Descoordenação -E a justiça ? - F ím do século.
IX - A POLITICA EXTERIOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128 Rigorosa contlnu:dade - Cabo Frio e Quinl lno - Onde surge Rio "Branco - Cordia l idade sul-americana - As a rbitragens - El barón.
X - A CAPITAL F EDERAL • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
O Café - Agitação de idéas - Reação - A rua do Ouvídor - A epidemia - As aven:das.
XI - O NOVO BINóMIO: CAFÉ E BORRACH A A e,cpr cssão paul!sta - Indole e rumos do café Industrialismo - l mig.raç:lo - Os portos - Ouro negro - Café e cacáo na Ilahia - A crise do "ouro verde" - P rimeira intervenção.
t83
XJI - DISPE RSÃO E CONCENTR AÇÃO DE RIQUE ZA . . . . . 221 Itinc rarios do planalto - Centro e norte - Cana. de
assucar, a lgodão .. .
XIIl - O "CLIMA" DE 1902 234
O exilo de Campos Salles - Os conselheiros .
XIV - O PROGRESSO, AFINAL .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . 191 1904 igual a 1897 - A revolta <los cadetes - Epilogo
das a rruaças - V itória tol'at - A cida d e 1·ed lm lda.
XV - A PRESIDENCIA PENNA
Minas Gera is 4 frente - Ritmo novo -
- Um apogeu: 1908 - Crise pelitlcn.
XVI - PINHEIRO
Para o oéste
O clviilsmo - No domínio do môrro da Graça - As "salvações', - S uper-auto nomias - o :ficeis momentos - Entre os Cari ris e o Contes!a,do - Sertões do sul
· - M inas e S. Paulo.
248
269
XVII - EM TF.MPO DE GUERRA . . .. .. ... . . . . . .. . .. .. . .. .. . 284 O oca,o do chef e - A conflagração mund ial - O B rasil no confl it'o - Animação civica - Consequencias eco. nomicas -· Numer-Os - Indices - Finanças.
XVUI - UM SECULO DE POIS DA I NDEPENDENCIA . . . . . . . . 298 P residencin E pitaclo - Fatos culminantes - A sucessão dramá t ica - 1922.
Bibliografia 310
EXPLICAÇ~O
Este livro é o terceiro da série de "H is(,oria Social do Brasil". Interpretamos no primeiro o "espirito da sociedade colonial". No segundo, o "espírito da sociedade imperial". No presente volume se expõe a evoliição nacional sob a égide da Republica Federativa. 1889, 1922 . ..
O método adotado. anteriormente não poude ser reproduzido aqui. Deixamos acolá descrita a formação bra• sileira. Cumpria-nos apreciar agora, n'mna síntese conipreensiva, e larga, a movimentação, as forças próprias, o sentido desse regúnen, e como o país o entendeu... Sem detalhes que distráiam a atenção das linhas me,s,tras; sem
o meiído crivo do regionalismo; despersonalisando a crítica; com o interesse informativo e realista d'uma reportagem; com a tolerante serenidade das narrações . ..
Certo , a proximidade dos fatos prejudica-lhes o julgamento. Não ha defini1tiva história de conte1nporaneos. Não é junto da niontanha que se terá a impressão de sua graiideza. O tempo dá a perspectiva, na placidez do ho-
- XIV -
rizonte despraiado. I nvoluntariainente, sônws induzidos a pensar com os da nossa geração. Qua.ntos preconceitos dela não se i11i5inúam e a:gazalhani e\m S;entenças que julgamos e.1:tremes de paixão, limpas de insidioso subjeotivismo, imparciais, incontestaveist
Traçamos, porém, o 11osso roteiro.
Começamos a vencê-lo em 1935, com o tomo iniáal desta coleção de télas retrospectivas. Não devianios parar em meio da; jornada. Outros farão nielhor. E :i:atamiente para provocar-lhes a iniciativa., mais brilha1~te 011. 111ais ren. dos_a, foi que no.si abalançâ11ios a Pt regrinar, co111, o leitor
paciente, pelos ·itinerários obscuros da. história social da Pátria. Vimos a colonia. Conhecemos o Império. Temos agora a Republica.
Nos livros, o pr·incipal não ~ o que o autor pretende ensinar. E ' a idéà que desperta. O pensain,,ento que im
péle.. A consciência que alerta. E, em tudo isso, as me
ditações que suscifo.
Não é suficiente dizer o que se sabe da..s realidades 11acio11ais. hnportante é tambe·m indicar o que resta saber . . . Por que se estude: ,com profundo e intuitivo
designio de verdade, o. nosso passado. E, na coincidên
cia dos traços, na conjunção das côres, na combinação
dos retratos, na austéridade e 11a autoridade dos relatos, resurja, autentico na sua fisionomia sincera, o Brasil, que
tanto amamos!
P. C.
Rio de Janeiro, Janeiro de 1939.
OUTRO REGIMEN, EM SÉCULO NôVO
O seculo histórico não coincide, no Brasil, com o seculo cronologico.
O nosso seculo XVI começou em 1532, com a fundação de S . .Vicente; o XVII em 1625, com a restauração da Bahia; o XVIII, ao contrário, em 1694, com o desco
\brimento das minas; o XIX, em 1808, com a chegada da côrte portuguêsa. O Seculo XX iniciou-se em 1888-89, com a abolição da escravatura, que transformou a economia, e a fundação da Republica, que modificou a face politica do país.
A revolução de 1888-89 foi profunda e geral.
Não era um regimen que capitulava, vencido pelas novas circunstancias da vida nacional : federalismo, liberalismo revolucionário e americanista. Era uma sociedade diferente que tomava o Jogar á hierá rquica e respeitavel sociedade imperial. A rutura de equilíbrio entre os velhos
2 PEDRO CALMON
antagonismos da evolução brasileira - côrte e provincias, agricultura e industria, imitação francêsa e imitação a,mericana, ordem e idealismo, os barões da monarquia e os bachareis, a estabilidade tradicional e o progresso impetuoso - fôra, até aí, protelada e disfarçada pelas hábeis
fo rmulas conciliatórias do parlamentarismo de D. Pedro II. Mas a maquina desandára, nos tumultos da década de 80: campanha abolicionista, questão militar, cepticismo dos partidos descontentes ( o liberal, que perdia eleições por idealismo, 1881, 1884 ... , o conservador, que inutil
mente as ganhára na sua exausta batalha contra as reformas esbulhadoras), velhice e doença do Imperador.
A gente nova pedia leis nóvas.
As províncias -do sul queriam industrias favorecidas
pel::i p roteção da Alfandega; e as do norte exigiam amparo á lavoura decadente, créditos e livre-cambismo.
A subita emancipação dos escravos inaugurou a epoca 1m1grantista. O 'bom preço do café suportou em S.
Paulo o golpe da abolição, sem que se desarranjasse a agi-icultura aristocratica. Os fazendeiros podiam remunerar o trabalho sem a perda elos braços indispensaveis, adquiridos nos ultimos ano's aos traficantes de negros. Os colonos estrangeiros - a partir ele 1888 entravam anualmente 100 mil pelo porto ele Santos! - completaram os quadros do trabalho.
Na província do Rio e no Reconcavo, enlanguesceu e definhou a lavoura, porque as suas condições eram precarias, anómalas : terra esgotada, antigas e retalhadas pro-
HISTORfA SOCIAL DO BRASI L 3
priedades de rendimento escasso, formação patriarcal da economia sustentada ainda pelo espírito de classe, pela histórica vinculação das familias a seu chão tri-secular ... A usina esmagou o engenho. A grande fabrica instalada pela sociedade anonima, extinguiu o " banguê", assimilou os velhos b;ns da nobreza... O eixo <la riqueza, e, com ele, o eixo do poder, deslocou-se do Reconcavo para o sul. Em 1887, os pólos da política foram Cotegipe e
Antonio Prado, ou Paulino e Silveira Martins. O ciclo do açucar contra o <lo café e o do gado. O binômio do seculo XIX ( açucar e café), talvez a fórmula agrícola da unidade do imperio na epoca das culturas oligárquicas (latifundio de conteúdo nobiliárquico, periodo dos barõescoroneis), québrou a sua primitiva solidariedade. O café, que podia sobreviver sem o escravo, comportou o "chisma" de Antonio Prado. O açucar, porém, bloqueado no Brasil pelo espantoso desenvolvimento dos outros centros produtôres, não resistiu· ao "chisma" de João Alfredo. O açucar fizéra a Independencia: 1822. O café fez a Repu'blica de 1889.
Não que as forças conservadoras da lavoura de café fossem, por definição e indole, anti-monárquicas. Ao revéz disso, apoiaram-se, até 1888, ao arcabouço imorvel das instituições. Mas estavam ligadas á mentalidade da civilização veloz. Pertenciam ao tempo das iniciativas ousadas.
A divergencia entre as duas zonas economicas é essencialmente um contraste de ritmos. E' uma desigualdade de movimentos. O açucar ia devagar, o café, vertiginosamente : um era a cultura fixa, de poupança, o outro a
Cad. 2
4 PEDRO CALMON
cultura estensiva, de expansão. A vertical ( açucar) combinára-se com a linha horizontal (café) para definir o "dinamismo" do Brasil: solido e instável, paralizado numa conquista, Brasil estrutural do norte, Brasil polimorfo do sul. ..
Os plantadores de café surgiram com o liberalismo, que é o ambiente do individual e ilimitado enriqueci
mento. Dispensaram a madureza e a serenidade da outra lavoura, da lenta cultura da cana, que cristalizára os seus
tipos sociais á sombra do engenho colonial, ganhando em ra1zes sentimentais o que lucrára o fazendeiro em hori
zontes nóvos ...
Se uma palavra póde resumir uma confusão política, na fase intermediária de regimens que se substitúem, essa
palavra fo i - impaciencia.
O efeito da abolição não fôra menor nas conc1enc1as do que na ordem material.
Em tres dias caíu o jnfâme sistêma que durára tres
seculos. Se assim as refónnas eram fáceis, totais, porque
se hesitaria, em iluminar o país com as quentes luzes do
seu tempo? Federação, á americana; republica, á fran
cêsa; governo forte, segund; Auguste Comte; industrias, fábricas, companhias, bancos, inflação, negocios, como nos Estados Unidos: e nada de prudencias senís . . .
O movimento de idéas que envolveu o golpe militar de 15 de Novembro carregava essa impaciencia informe, como o vento de verão carrega a tépidez do solo, o fogo do espaço. . . Levantou-se uma vaga cruzada contra os
H ISTORIA SOCIAL DO BRASIL 5
dogmas. Uma insurreição espiritual, contra o passado, os valôres consagrados. Uma substituição de simbolos, de principias, de fi ns. Em vez da continuidade política, a revolução; em Jogar do rurali1S 1110 monárquico, a cidadania republicana; não mais unidade nacional, mas união, com Estados autonomos; governo de mão firme, e não débeis governos de gabinete ; discursos na rua e não no parlamento; nacionalismo aliás, "jacobino" e li rico, como em 1831, porém com modêlos distintos - igualdade dernocratica, barulho de reivindicações populares; e, para suceder ao Imperador ancião, um presidente-marechal. Para que o gigante andasse .. . - justificavam os propagandistas. Para que os costumes patriarcais se enchessem duma democracia operosa ; para que ois E stados, clesembaraçaclamente, aparelhassem uma prosper idade sem obstaculos ; para que o cidadão não sentisse o governo, ,na sua liberdade recortada pelo figurino de Gambetta e Castcllar.
O exercito arrédou o Imperio desse caminho clareado pela lua romantica. O exercito precipitou a transformação: sobretudo lhe assegurou a paz externa, a aparencia de transição sem sobresaltos. L icenciados os partidos constituciona is, a classe dirigente, déra ele, com a sua organização, uma disciplina e uma ordem á federação nascente. Um oficial assumiu o governo da provincia; apoiou-se á sua guarnição; manteve nos seus póstos o funcionalismo, garantiu a magistratura ; e essa circunstancia obstou á anarquia.
De fáto, a revolução menos scm;ivel foi a política, do trôno apeiado pela segunda brigada, do Rio de Janeiro,
6 PEDRO CALMON
tendo á testa o marechal Manoel Deodoro da Fonseca. Alterára-se, na sua propria razão de sêr, a sociedade brasileira. Não fôra uma tempestade superficial: convulsionára todas as camada,s sociais. Era menos regímen novo que seculo novo. Republica? M elhor: seculo XX.
Aristides Lobo, correspondente do "Diario Popular" de S. Paulo, escreveu para os seus leitôres uma carta que tem a nitidez d'um retrato - em 15 de Novembro de 1889:
"Por ora, a côr do governo é puramente militar, e devêra ser assim. O fato foi deleG, deles só, porque a colaboração do elemento cviil foi quasi nula. O povo assistiu áquilo bestializado, atônito, surprêso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada." ( 1 ) .
( 1) Moreno Brandão, Aristides Lobo, p. 108, Rio 1938.
II
A R.EPUBLICA TR.IUNFANTE
O governo provisorio, chefiado pt;Jo marechal Deodoro, no dia Geguinte á partida do vapôr "Alagôas" com o Imperador banido, meteu-se a reformar tudo.
O ano de 1890 é de demolições freneticas no campo político, de delírio e sonho na Bolsa e no mercado, de
\Juxo e prazer nas esféras sociais da "Capital Federal " . O ruido dessa agitação abafou os protestos espamos, inutilizou as vózes oposicionistas. Não havia trn1po para lastimar a monarquia depósta ; os barões do I mpério resan;ciam febrilmente, na confusão financei ra, os prejuízos da abolição. Enchem-se as cidades ele fazendeiros fasc inados pela facilidade do crédito. O Rio de Janeiro exerce de subito sobre o resto do pa_ís uma atração tirânica. Paradoxo inicial : nunca foi tão completa a concentração como em 1890, quando começou a descentralização f~derativa. Os senhôres de engenho arruinados, os cafézistas ambiÇÍOêQS qe -P.Qvas atividades~ uma inqu.iéta ~eração, que saíra,
8 PEDRO CALivION
da propaganda republicana com grandeis projétos de obras públicas, de civilização material, os "saint-simonianos ", os
discípulos de Mauá, os optimistas, atropelam-se nos corredôres dos 1bancos onde tumultúa o "encilhamento ". Prevaleceu-,se o governo desse derivativo - " pratiotismo '' (de prato .-.. ) disse Benjamin Constant com mordacida
de, (2) definindo o ma,terialismo daquilo - para empreender depressa as suas realizações.
A ventura financeira
Que filosofia orientava o ministério, que doutrinas o conduziam?
O governo provisorio não interpretava uma ideologia, senão todas as correntes que áquele tempo dominavam o liberalismo. Deodoro, sem nada entender de política, pensava e agia como um austéro comandante: impulsivo, ás vezes violento, magnânimo, empírico, desconfiando -no 15eu instinto de autoridade - dos demagogos, dos
ortodóxos, mais inimigos seus do que os sebastianistas . Ruy Barbosa, prin:cipal figura do gabinete, era substan
cialmente jurista: possuía p 15egreclo do Direito americano; seria melhor rn,inistro da justiça que da fazenda.
Começára, porem, redigindo o decreto numero um, que mudou o nome ao país: agora, Estados U nidos do Brasil. Republica federativa. União de autônomos Estados.
(2) Visconde de Taunay, Reminiscencias, )!. 217, S. Paulo, J923,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 9
Fôra providencial Ruy Barbosa, em 15 de Novembro.
Se OIS positivistas se antecipassem, decretando, no papel, uma divisão territorial arbitrária; se vencessem as doutrinas anti-"yankees" ; se não se postulasse logo o descongestionamento federalista? Poderia ter sido a aventura; Ruy trouxe a razão. Impr-imiu á nova ordem de cowsas o sêlo de suas convicções. Escrevendo a primeira lei do regímen, de fato o atirava de encontro ás forças atrativas do continente: suspendeu o europeismo teimoso de nossas inclinações. T rocou America por França; popularizou - o que até aí fôra fraseado de jornal ou assunto acadêmico, de recintos fechados - a politica dos Estados Unidos, as soluções dos Estados Unidos, o seu hibridismo invejavel. Com o decreto numero um, coroára Ruy a 6Ua carreira de reformador politico. Apagára a superstição francêsa do nosso constitucional ismo. Inaugurava esse americanismo de que foi, até morrer, o advogado nem sempre compreendido. T eórico e heroico .. .
Benjamin Constant estava des locado na pasta da Guerra . Egresso da caserna., professor antes ele tudo, c apostolo da cátedra, ficaria á vontade na repartição do E nsino. Quintino Ilocayuva sempre fô ra jonnalista: levara para o governo a sua literatura da imprensa de catequése e combate; esbarraria, por isso, nas desilusões do tratado com a Argentina.
Nes,se conj unto de mentalidades distintas, talvez desavindas, teria de impôr-se o positivismo ele Benjamin, de Demetrio Ribeiro. Impoz-se. Começou pela bandeira
10 PE DRO CALMON
nacional. Na primeira hora adotára-se a do " club" de Lopes Trovão: copia inestética, em listas auri-verdcs, do pavilhão norte-americano. Pareceu ridicula. Em 19 de Novembro foi decretada a defi nitiva, proposta por Teix ei ra Mendes ( 3) por intermedio de Benjamin Constant : respeitava o desenho da bandeira imperial, menos o escudo, em cujo Jogar resplandece o globo estrelado com o dístico de Comte : Ordem e Progresso. Esse lêma apregoava o predomínio d'uma filosofia. Dir-se-ia o novo regimen embrulhado nas faixas da religião da Humanidade. Era ilusório . Não revela a bandeira a preeminencia d'uma convicção, porem d'um homem: a ocasional
preeminencia de Benjamin. Culto e sentido de uma geração: das &colas Milítar e Politécnica, de 1878--88 . . . ( 4). Nos fatos políticos e sociais de então a pro
jeção do positivismo é mais de uma educação, disciplinante, do que de um programa, em execução. Explica Sampaio Corrêa o sentimento de ordem que, apezar de tudo, se manteve naqueles tempos confusos, "pela ditSciplina mental dos nossos homens, que rece'biam a influencia, diréta ou incliréta, da escola positivista ... " ( 5). Um sub-consciênte de resi,stencia á anarquia conserva as velhas linhas do liberalismo 'imperial. Flamêja, de contra-partida, o laicismo comum ás idéas radicais.
(3~ Ivan Lins, Benjamin Co11sta11t, p. 79, Rio 1936.
( 4) V d. carta de Laui:o Sodré, a J orgc Hurley, Nações de Historia do Brasil e d; Pará, p. 572, Belem 1938.
(5) Franci.co Pereira Passos (conferencia) , p. 21, Rio 1936.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 11
Instituiu-se o tratamento de "vós", em vez de "excelencia ", aboliu-se o "Deus guarde", em proveito do galicismo: "Saúde e "Fraternidade". Decretára-se, em 7 de Janeiro de 90, a separação da Igreja e do Estado (que Benjamin julgava precipitada e o bispo do Pará, D. Antonio de Macedo Costa, ( 5) ap rovára previamente, entendendo - ele que fôra prisioneiro na monarquia -separação como libertação da Igrejà) e o casamento civil - em 24 de Janeiro - que pedia Ruy desde o seu "O Papa e o Concilio" (7). Foi alem o decreto de 26 de Junho de 90 : obrigatoria seria a precedencia do casamento civil ao religioso, este facultat ivo, questão de fôro intimo . .. Déra-se de secularizar, laicizar tudo. Separação irritadiça. Não indiferença, mas rompimento ,apezar da atitudP, afavel do clero, solidário com a Republica, segundo a pastoral coletiva de 19 de Março. Não durou. Em 1904, citou Delcassé no parlamento francês o Brasil como exemplo de separação da Igreja e do Estado sem· rutura, \Sem hostilidades.. . (8). Drarnatico era o primeiro impulso. Quiz o governo mudar o nome do cemiterio de • S. João Batista: chamar-se-ia Sul-Colombiano. O Conselheiro Paulino, provedor da Santa Casa, com a finura
(6) Ruy Barbosa, Discurso no Senado, 12 de Janeiro de 1890.
(7) Ruy, O Papa e o Concilio, p. CCLXIX ;· Waldemar Ferreira, O Casamento religioso de efeitos -civis, p. 4, S.' Paulo, 1935.
(8) Magalhães de Azered9, O Vatfrq1io e o Brasil, p. 101,
Rio 19??,
12 PEDRO CALM ON
do seu sarcasmo, objetou: faltava o consentimento dos que lá estaivam . . . - E re,spondeu ao oficio em que se comunicava a exigencia da fórmula, "Saude e F raternidade": Nesta casa ainda ha Deus ...
Os políticos em evidem;ia tiveram honras militares : Quintino, Glicério, Campo:s Saires, o próprio Ruy .. . Uma alegoria!
ODIO AO PASSADO.
Um odio fr ívolo ao passado circulou pelas cidades. Os antigos símbolos desapareceram. A -intranquilidade dos quarteis aguçou essa ira de massas. Os populares que arrancaram as corôas dos gradis do Campo de Sant' Ana ( agora Praça da . R epublica) rquizéram derrubar a estatua de D. Pedro I ao Rocio (aliás praça T iradentes). Por pouco esse admiravel monumento não desabou do ,seu sóco de bronze. O Colcgio Pedro 2.0 ficou sendo Colégio Nacional, o Largo do Paço, Praça 15 ele Novembro, a Estrada de Ferro Pedro 2.0
- Central do Brasil. A estrêla apunhalada pelo gladio da justiça -do timbre republicano - tomou o logar das armas impena1s. A t radição mai~ comovida e poderosa do calendário cívico paStSou a ser Tiradentes. Os que na ves-pera não acreditavam na Republica, agora a julgavam eterna, estranhou Nabuco. Escritores positiviistas tenta-1-am uma revisão critica da história: para condenar as guerras, promover a devolução ele troféos, a extinção de emblemas guerreiros, da glorificação do velho heroísmo. As culpas da monarquia, do parlamentarismo, a pessôa
1-IJSTOHJA SOCIAL DO BRASIL 13
<lo monarca, adquiriram propO'rções insólitas naquela fúria destruidôra. Sómente o hino foi logo restabelecido: o povo não se conformaria com a substituição daquela mu
sica de Francisco Manoel que as fanfarras de Tuiutí e Itororó atacaram nos campos de batalha, á frente dos
regimento,s . . . Rebelam-se os est_udantes contra os mestres, acusados de sebastianismo. P leiteiam e conseguem,
<'m S. Paulo, a jubilação do conselheiro Justino ... (9).
Os do Rio, com o di retor da Faculdade de Medicina,
Erico Coelho, á frente, oferecem-se a Benjamin para
deíender a Republica: são os batalhões academicos que se improvizam. . . Houve um movimento para que se
rompôsse com a França, porque prestou honras de soberano a D . Pedro II , por ocasião de sua morte (10). O
nacionalismo exacerbou-se. Lembrava o ro111antism0 ab rmado e juvenil dos tempos da Regencia.
\ Federação
As províncias - a maior novidade ! - tinham sido elevadas á categoria de E stados. E stados Unidos cio BratSil, disséra o decreto numero um, de 15 de Novembro. A vara de condão da ditadura fizéra brotar do bloco nacional a fonte federalista. E Estados 110 rigôr do termo - exageraram os políticos locais, deslumbrados com uma
(9) Alcantara Machado, Brasilio Ma chado, p. 20, Rio 1937.
(10) Rodrigo Octavio, Minhas Memorias dos Outros, l.ª série, Rio 1934.
14 PEDRO CALMON
descentralização cômoda. O Ceará teve até um minis
tério, ao qual não faltou ministro .. . da marinha.
Como o direito norte-americano era mal conhecido,
e:spécie de mistério entendido de poucos, não se per
cebia a impropriedade do sistêma nos seus excéssos tri
viai s . O s Estados olharam d''.\lt0, com arrogancia, o
poder central. Deodoro, é verdade, nimbára-se de um
prestigio magnifico: mas, caído ele, podia acontecer a de
sagregação. Ou, pelo m enos, uma profunda diferencia
ção de regiões.
Cada Estado, uma organização . . . No Maranhão se
decretou, antes da União, a separação da Igreja e do Es
tado (II). Em dissidencia com os históricos, o visconde
de Pelotas, governador do Rio Grande Sul, falou de ple
biscito, para continuar no cargo ( 12). Mais tarde, a
Constituição rio-g randense, de Castilhos, autorizou o pre
sidente do Estado a nom ear o vice-presidente, seu even
tual i;ubstítuto. A Constituição do Amazonas habilitava
o g overnador a decretar estado de sitio ( 13).
A propaganda, cm S . Paulo, extremá ra, antes da Re
publica, a sua concepção de autonomia, o desafio ao uni-
(11) Alberto Pizarro Jacobina, Dias Carneiro, p. 140, S. Paulo, 1938.
(12) Othelo Rosa, ! 11/io de Castilhos, p. 164, Porto Alegre 1928.
(13) Arthur Cesar Ferreira Reis, H istória do Amazonas, p.
258, Manáos 1931. Esse artigo constitucional íoi declarado nulq por um tclei;rama do 111inistro da J ustiça ...
HISTORIA SocrAL oo BRASIL 15
tarismo velho, quando a "civilização do café" amadurecia em progressos inqui étos e largos. O " movimento de 1887" enche de compromissos federalistts a ala avançada do partido anti-monarquico. D'uma apootila de Martim Francisco é esta indicação : "1886. Começo da propaganda da idéa separatista e visita do Imperador Pedro II á provinda de S. Paulo" (14), Aparecem no mesmo ano, 1887: A Patria Paulista, de Alberto Sales (Tip. Gazeta de Campinas), S. Paulo Independente, de Martim Francisco (Tip. União, S. · Paulo), do D r. Joaquim Fernando de Barros, A Pátria Paulista (Tip. da "Provincia de S. Paulo) ; e com igual titulo, um folheto do Dr. Francisco Eugenio Pacheco e Silva... Este, com o pseudônimo de FEPS, no "Diário Papular", e aquele, n'A Provincia de S. Paulo, sustentaram uma campanha em favor desse regionalismo. . . ( 1 S). O novo regimen não lhes consagrou as idéas: mas encontrava, difici l, um ter reno de gerais desconfianças, sempre que não favoneasse o prin-
\ cipio autonomista. Campos Salles, por exemplo, faz ia questão do qualificativo "soberano", para o Estado ...
Apenas o tumulto se amorteceu numa propagação subsequente de conflitos, divergencias, interesses. A aspereza da luta ritmou-se com a animação economica. O distico da bandeira correspondia em metade á realidade: muito progresso, numa ordem mínima, mesmo numa de
sordem crescente. Desordem financeira, do "encilba-
(14) Contribuindo, p. 59, Rio 1921.
(15) Notas cm. pelo Dr. Carlos Pinto Alves (S. Paulo)
16 PEDRO CA L MON
menta". Desordem política, na crise de instalação do poder permanente depois de promulgada a Constituição federal, de 24 de Fevereiro de 1891. Desordem moral,
o no vazio causado pelas demolições sistematicas, pelo "em-
plastro adesivo que cobrira o país" - na frase de Carlos de L aet, pelo litígio de convicções . . . r.fas, por toda parte, a despeito dessas perturbações graves, os indícios d'uma prosperidade espontânea, duma riqueza múltipla, d'uma civilização penetrante e expansiva.
III
O DELIRIO DO "ENCILHAMENTO"
Encilhamento é neologismo esportivo. Porque nas
barracas onde se ensilham, no Derby ou no Jockey Club,
os cavalos, campeasse o jogo, as apostas, o frenesi dos
palpites, o elegante azar do hipódromo, se chamou aSGim a loucura financeira, que entre 1889 e 91 - depois do
i ue sucedêra ~a Argentina, de Juárez Célman - infes
tbu o Rio de Janeiro.
Iniciou-se antes da Republica, com as medidas dos
ministerios João Alfredo e Ouro Preto em favor da lavoura. Desenvolveu-se, desencadeou-1S e, no dia imediato
á extinção do Imperio.
O governo provisorio viéra com transcendentes com
promissos economicos: montagem da industria com a proteção ·aduaneira, sempre combatida pelo Imperador; bara
teamento do credito com a emissão de dinheiro-papel ,
legislação estimulante dais sociedades anónimas, política de
18 PED RO CALMON
animação das iniciativa,s, de concessões de obras imensal> com a garantia de juros, visando á aplicação de capitais de todas as origens. E cumpriu-06, com imprudente precipitação, com entusiasmo infausto.
A ventura financeira A Republica encontrára o erario forte, o cambio aci
ma do par, as notas do Tesouro valendo mais que o correspondente em metal. Ouro P reto, fundára um banco emissor com o triplo do capital em ouro, e concedêra a faculdade de emitir a companhias com capital de 10 a 5 mil contos . Nunca estivéra tão pr06pera a fazenda publica.
O governo provisorio fêz o oposto. Abandonou o velho criterio da emissão sobre lastro metalico, e, por decreto de 17 de Janeiro de 1890, permitiu a bancos nacionais que o fi zessem sobre apoiices : papel, garantido por papel. Admitiu-se, por outro lado, qu~ as Gociedades anommas se const1tmssem com todas as faci lidades, fi cando as diretorias isentas de responsabilidade pelo voto da assembléa geral. E ssa isenção favorecia o abuso, a fraude, até o crime, pelos, negocios fantasticos que burlavam os incautos, de maneira a sucede'r uma falencia escandalosa a uma emissão de má-fé, de titulos da bolsa . . . A jogatina empolgou a praça, asfixiou o comercio, corrompeu os costumet>, iludiu o povo, como se fôra o sinal de uma riquêza estavel e milagrosa, desequilibrou as finanças do E stado. . . Mas amorteceu a política: foi o derivativo, que cimentou o "fato consumado". "Se o enci-
HrsTORIA SocrAL DO BRASIL 19
lhamento não tivesse vindo por si, devia a Republica tê-lo inventado, por que não houve melhor diversão da política" (16). Entre Novembro de 89 e Outubro de 90, crearam-se sociedades anonimas com o capital de 1.160.000 contos, emquanto em todo o período anterior esse capital não passára de 813.489 contos (17). Não houve empresa, para os fins mais bizarros, que se não fundasse então : cometimentoo espantosos, 'iniciativas atordoantes, ligação perpendicular ou em diagonal por estradas de ferro, exploração de quantos minérios se cobiçava, fabricas de todos os artefactos, fantasticos contratos de imigração, sociedades de credito para todos os propooitos, - a ponto de "já escassearem ao genio inventivo denominações", disse, mezes depois, o barão de Lucena. "A Republica - escreveu Eudydes da Cunha - feita numa madrugada, criára a ilusão de grandes cousas feitas da noite para o dia" ( 18). Pensou-se mesmo em resgatar as companhias estrangeiras, expulsar o capital euro-
\ peu ... (19).
Parecia um fecundo rumor, de país novo que se enriquece, a exemplo da · Argentina,. de 1890. (20).
(16) Oliveira Lima, Memorias, p. 81, Rio, 1937. (17) Antonio Carlos, Bancos de Emissão do Brasil, Rio 1933.
(18) Discursos Academicos, 1, 276, edição da Academia, Rio 1934.
(19) Visconde de Taunay, Império e Republica, p. 59.
(20) Horacio C. Rivarola, Las Transformaciones de la Sociedad Argentina, p. 153, Buenos Aires, 1911.
Cad. S
20 P E D RO CALMO N
Era, porem, uma artificial animação de especuladôres que se aproveitavam da ingenuidade publ ica, da,s esperanças provocadas pelo advento da Republica, do interesse dos capitais estrangeiros pela America, da rutura dos
·dogmas ... Tombou a taxa cambial, de 27 a 9. Circulavam, em 1889, 193 mil contos de papel-moeda.
Deodoro emitiu 321 mil.
Jogo, riqueza e desastre
A tarifa protecionista de 1890 (ministério Ruy Barbosa) inspirou a fu ndação de numerosas industrias. J ustificára o grande orador, pensando na America de 1862: a democracia apoiar-se-ia a essa nova fórma de riqueza. Deu-lhe uma razão politica. Mas a, quéda das importações perturbou o ritmo economico, lucrando o café, pelo preço crescente, em cot11Sequencia do abatimento do mil-reis. Em 1891 o Estado a rruinava-se, e o particular estava rico. A Republica encontrou em São Paulo uma cômoda base economica. Em 1897 . fo i o contrario: o Estado arranjou-se, e o particular empobreceu, com a alta da moéda. A agricultura satisfez-se : mas a Bolsa se surpreendeu com indignação. O "crack" das companhias ficticias aterrou a cidade, no ultimo quartel do ano. O sonho durou pouco.
P orque era a'bisurdo.
O "jogo" suplantou, dispersou o "negocio".
E era bem simples.
HISTORIA SocIAL Do BRASIL 21
Corria um postulante a um ministério e obtinha uma concessão. Por exemplo: para colonizar cem legoas de floresta no Araguaia, evidentemente uma fantasia. Mas a idéa soava esplendidamente. Tinha em seu favôr uma publicidade fácil : todo mundo entendia que a colonização era o futuro, a revelação da,s maravilhas sertanejas . . . Logo o concessionário - que gastára naquilo apenas a estampilha do requerimento - vendia o seu privilegio a u.ma companhia incorporada por hábil corretor que d istribuía, em ações, um capital nominal. No dia seguinte á noticiá, as ações levadas á bolsa obtinham uma procura frenética. Os primeiros compradores vendiam-nas com "agio". Os segundos compradôres revendiam com vantagem. Dobrava-se o dinheiro. 5, 10, 20. Era tentadôr, sumário, febricitante. Tudo dependia da sugestão publica. A "corrida" ás açõés tanto que eram atiradas ao mercado, para melhores preços, no dia imediato duplicados, triplicados, com as revendas sucessivas, enchia a cida~ e de um barulho de feira, de um alarido de leilão. Dominavam-no os "zangões", os intermediáric13 sabidos, os financistas arrastados pelo turbilhão, e cujo trabalho se re.duzia a imaginar empresas de beloo títulos, sôfregamente aceitas pelos subscritôres em delírio. A crédulidade popula r tornára-se desnorteante, incomparavel. Na sua novéla realista "O Encilhamento", mais retrato do que sátira daquela psicóse coletiva, o visconde de Taunay cita exemploo magníficos. Um banqueiro célebre anunciava uma companhia para cultivar o peixe "bijupirá" ; recomendava outro a · "Melhoramentos de Cuiabá"; um
22 PEDRO CALMON
t erceiro, o "Bal'!co de Credito Confirmado" . . . Era receber e largar; arriscar e recolher ; multiplicar, como na roléta; ou afundar-se, corno nos "casinos": peor do que especulação, que se refere a uma transação de substancia economica, de fundo real - tróca de papeis, inundação de papeis, engôdo e confusão . . . ( 21 ) .
1890 foi o ano do optimismo; 1891-92, de um desencanto irritado. Em 1890 se esquece a monarquia; em 91, quasi esquecida ficou a Republica.
A nuvem de papeis - títulos da Bolsa ! - que em 1890 escondeu o horizonte imperial, se dissipou em 92, sobre um campo de cles:róços. Dir-se-ia a Republica esgotada, quando apenas ensaiava oo primeiros passos: embriagára-se de fantasias, que se esvaneceram como uma alucinação.
A maior das companhias do "encilhamento", a Geral de Estradas de Ferro, presidida pelo mesmo personagem que dirigia o Banco de Credito Universal ao qual o governo (21 de N overnbro de 91) mandou recolher as sóbras do Tesouro, só porque esta ultima ordem foi dero-
(21) V d. Visconde de Taunay, O E11cilha111ento, 2.ª ed., S. Paulo 1923. (A 1? é de 1893). Vd. Americo Lacombe, Ruy Barbosa - Mocidade e Exílio, p. 162, S. Paulo 1935: sobre emprêsa de seguros, presidida pelo Conselheiro. Valentim Magalhães, Sylvio Roméro, os intelectuais do momento, todos se deixaram atrair pela móda, das companhias.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 23
gada (26 do mesmo mez) teve as ações desvalorizadas de 95% ! (22).
As falencias encadearam-se, numa série solidária. Com igual rapidez, corretores se tornaram milionari06, e milionários conheceram a miseria. Multidões de prejudicados prometeram as suas represálias contra os espértos "incorporadôres". As málhas de, um vasto escandalo tolheram o mundo dos negocios. Nem o governo escapou a essa atmosféra. Caíu, em virtude de desinteligencias insanªveis, de incompatibilidades irreparaveis, de descrença na própria obra, de pontos de vista desavindos.
Num ano pediu Ruy Barbosa demissão sete vezes (23 ) . Por fim resistiu Deodoro á pretensão de Francisco Glicério ( substituto de Demetrio Ribeiro na pasta da Agricultura) de dar-se á companhia "Hidraulicas" garantia de juros sobre 100 mil contoo aplicados em obras gigantescas, que lhe eram concedidas no Rio de Janeiro, \(24), e quiz impôr aos ministros, em contra-partida, garantia de juros para o capital utilizado na abertura do porto de Torres, no Rio Grande do Sul. Ambos os negocios eram inoportunos ou injustificaveis: o porto de Torres não valia o sacrifício ( diziam os ministros, citando a barra do Rio Grande) e a "Hidraulicas" pedia demais ...
(22) Almirante Custodio de Melo, capitulo de Memorias, publ. no Jornal do Comércio, 3 de Abril de 1938.
(23) Fernando Nery, Ruy Barbosa, p. 62, Rio 1930.
(24) Tobias Monteiro, Pesquisas e depoimentos, p. 328, Rio 1913.
24 PEDRO CALMON
A desavença em torno desse caso serviu de pretexto para exonerar-se o miniGtério. Simples pretexto - acentuou Deodoro, na carta de 21 de Janeiro de 1891 em que lhe concedeu a demissão.
O governo provisorio - com efeito - realizára um
ingente esforço. P residira á eleição da Constituinte ( 1 S de Setembro de 90) que se instalára em 15 de Novembro, no palacio de São Cristovão. Bem ou mal, ajustára o país ás condições novas de sua vicia economica. Caíra ao pêtso dos seus erros: mas nenhum destes era irremediavel.
A volta . . . dos conservadores !
21 de Janeiro de 91 é uma data-limite.
O prurido liberal da propaganda, a influencia dos "historicos ''; dos republicanos da primeira hora, não passaram daí. Deodoro naquele ano de consulado fôra sóbrio na sua ação pessoal, dócil ás conveniencias administrativas demoootradas por seus aux iliares, _sobretudo sensível ás
ponderações de Ruy Bar1bo~a. Abandonado por eles, entrou a fazer política própria.
Até então houvera uma ditadura plural, uma especie
de governo colegiado. A partir de Janeiro de 91 , o ditador singular exerceu a sua autoridade. Desamparado dos ortodoxos, pediu a colaboração aos amigos intimas, do antigo partido conservador, á frente o barão de Lucena, magistrado e presidente de província na monarquia.
HISTORIA SOCIAL oo BRASIL 25
Produziu-se inesperado fenômeno político. Numa tentativa de reorganização, os conservadôres se ligaram a Deodoro. E os liberais procuraram, por instinto, a figura silenciosa do marechal F loriano Peixoto, pr imeira patente do exercito. A dualidade de milita res-índices, de chefes de espada, esboçada no passado regímen ( Caxias e Osorio, Deodoro e Pelotas, já no gabinete Ouro Preto, Deodoro e M!3-racajú ou Floriano), quando' os partidos constitucionais cultivavam os seus " heróes", os generais predilétos, reviveu mais nítida e humana. Revelou-a a crhse mais séria das instituições recentes - exatamente a sua crise sintomática: a eleição do chefe do Estado.
Deodoro e a Assembléa
A Constituinte fôra eleita pelos republicanos. Silva Jardim, porém, não conseguiu eleger-fie no seu Estado. Não tinha monarquistas. Poucos eram os conservadôres
\adeptos do novo regímen. Alguns liberais, tambem egressos do monarquismo, se perdiam lá, na grande maioria de gente "descoberta" pela Republica. Apenas 38 vinham do parlamento do Imperio. Para 128 bachareis, havia 55 mi litares. . . (25). Saraiva cometêra a fraqueza de vir senador pela Bahia ("para dar juizo aos men inos", (26) disséra, com bonhomia) e humilhado, incompativel com essa geração irreverente, renunciára o man-
(25) Tavares de Lyra, Organização politica e admi11istrativa do Brasil (tése apresentada ao 3.° Congr. Nac. de Historia, 1938) .
(26) Visconde de Taunay, Reminiscencías, p. 121.
26 PEDRO CA LM ON
dato. Custodio em vão insistira com ele, depois, para aceitar o governo da Bahia. A maio ria não perdoou a Deodoro a briga com os ministroo de 15 de Novembro e a volta - ameaçadôra - aos arraiais conservadôres, pela mão de Lucena, suspeitado de "se'bastianismo".
O Fundador não mostrava uma crença suficiente nessa Republica que proclamára á testa dais tropas : não é na velhice que se mudam os habitas, que se trócam os crédos e substituem as devoções. Fiel até o derradeiro instante ao Imperador, embóra desapegado da monarquia ( sutilêza compreern,ivel no Império liberal), entrára constrangido, empurrado por Benjamin e Quintino, conduzido pelos aconteciment~s, convencido cto seu papel providencial, por solidariedade com os companheiros, num mixto de convicções e impulsos, hesitante e consternado, ora resoluto e brilhante, ora: pessimista e inquiéto - na ordem de cou,sas delimitada pelo seu sabre impolúto. Não compreendêra a politica nas suas miudêzas: menos a entendeu nos seus caprichos. Dispensando os homens que lha faziam - áquela política de construção d'um governo, d'uma reorganização total - pensára imitar D. Pedro II, chamando oo do outro lado. '
Chamára Lucena. Mas esquecia a assembléa. Votou ela a Constituição promulgada em 24 de Fevereiro.
Constituição federal e presidencialista. A assembléa era indissoluvel. Tremendo obstaculo !
O Imperador resolvêra os sem:; problemas mudando ministros. . . e parlamentos. Ele derrubára os ministros; porém não podia tocar no parlamento. Era um poder
HISTORIA SocrAL DO BRASIL 27
novo e arrogante: com a arrogancia própria á sua novidade. O Senado constituia-se de delegados dos Estad06 autonomos : não eram os senadores de Sua Majestade. A Camara formava-se de deputados do povo: eram os representantes da Republica! De repen te, desequilibrou-se a balança: assembléa forte, em coptraste com o ditadôr coagido. A Constituição autorizára a eleição do primeiro presidente da Republica pela aS6embléa. O destino do marechal, portanto, dependia daqueles homens irritados, desconfiados, coligados contra a sua autoridade cada vez menos republicana.
Se não 0 elegessem? Se o depuzessem, sufragando outro nome? Sería mais do que uma derrota: a expulsão do cargo, um ultraje ...
Deodoro deu essa significação temível ás vozes opo-sicionistas que cresceram no Congresso. Indignou-se. E
\prometeu - ao que propalaram oo seus correligionários - dissolver a assembléa. A maioria desta levantou a luva: aconselharia a revolução.
A espada na balança
Em Fevereiro de 91 o conflito estava travado: o Congresso pretendia libertar-se do ditador e o ditador resmungava advertencias sinistras, intimidando o Congresso. Os rapazes de colête encarnado ( um dos símbolos de fidelidade á Republica na rua do Ouvidor) prestigiavam o parlamento; os militares, descontentes com a marcha dos fáto,s, a luta política, rodeavam o marechal. Viam-no com
28 PEDRO CALMON
interesse os monarquistas, que preferiam Lucena a Glicério e Ruy; e, com desconfianças crescentes, os positivistas, que abomfoavam o "retrocesso". O retrocest;o possível, anelado pelo alto comercio, pelos grupos conservadores refeitos da desilusão de 1888 - era o retôrno da monarquia. Se o marechal se zangaS1Se - imaginavam muitos - telegrafaria a D. Pedro II em Cannes, pedindo-lhe para voltar.
Ferreira Vianna, Gaspar, Penedo, Ouro Preto, no exilio, compunham uma espécie de conselho de Estado da "restauração".
Dependia d'um impulso de Deodoro.
Em todo caso, a eleição de outro presidente conflagraria o país.
Em 25 de Fevereiro ocorreu a eleição num ambiente de sobresaltos. Ó6 estudantes queriam armar-se, para defender o Congresso - e Prudente (27). Contaria depois o almirante Custodio de Mélo, deputado pela Bahia, que tomára providencias para levantar a armada, ::e o marechal fosse derrotado. Levantaria preventivamente a armada. para salvar a Constituinte. Quando o presidente <la assem'bl.éa proclamasse o resultado, contrário a Deodoro, explodiria a desordem, a começar pelas galerias, infestadas de policiais á paisana, agentes do governo ...
Custótlio não precisou apelar para os couraçados, majestosamente adormecidoo na Guanabara. Esse trunfo
(27) Visconde de Taunay, Imperio e Republica, p. 20, S. Paulo 1933.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 29
teria a sua hora. A Constituinte foi salva pela moderação do Partido Republicano Paulista.
A oposição combinára o binomio - para a presidencia e vice-presidencia da Republica: Prudente de Morais e Floriano Peixoto.
Prudente, presidente sevéro do Congresso, a cujos esforços disciplinadôres se devia a 'pronta votação da Constituição, encarnára afinal os ideais do "civilismo". Do "civilismo" contra o " cesarismo", o que era razão velha. Do " barrête frigia" contra o maréchal de idéas ambiguas: no fu ndo, da farda contra as bécas ( a generalização foi de Sena Madureira). Propagandista de 1870, da "guarda velha", tão responsavel pelo regímen como os apostoloo da primeira linha - inspirára á maioria parlamentar uma confiança pressurosa. Floriano, como seu companheiro de fórmula, aguenta ria a crise: ficaria como condestavel desse governo arriscado ao azar de acontecimentos trágicos. Para que a espada do Fundador encontrm:;se_ outro aço - na trajetória da usurpaçãQ, e não se dissésse que era só "bacharelismo". . . E onde estava o sacrifício pela Pátria? - apelaram os pacifistas, os políticos de sangue frio, como Campos Salles. Este e Bernardino de Campos - com Prudente e Glicério, os homens de São Paulo - pleitearam a desistencia da candidatura civil (28). Foi mantida pelos intransigentes. Em consequencia: Deodoro saíu eleito por 129 votos coi1-
(28) Tobias Monteiro, O Presidente Campos Salles na Europa, p. XIX, Rio 1928.
30 PEDRO CALM ON
tra 97. Para vice-presidente: F loriano com 153, contra o candidato deodori6ta, o almirante Vandenkolk, com 57 votos.
Respirou-se. Passára a tormenta. Ou antes : fôra adiada a crise. Mas se definiu a 26 de F evereiro, posse do primeiro governo constitucional.
F loriano entrou debaixo de palmas. E uma fr iêza sombria acolheu o velho marechal: a hostilidade palpavel e intolerante. Via-se que o Congre.tSso, festejando o vicepresidente, que era o astro novo, abrira um vacuo em tomo do Fundador, vingando-se da humilhação da vespera: porque Prudente de Morais só não fôra eleito pela coação,
que andava no ar !
Era o conflito.
Um dos dous teria de ceder.
Floriano ou Deodoro, Vandenkolk ou Custódio de Mélo, Prudente ou Lucêna, o regimen estréante ou a politica decaída e renascente . ..
IV
A ESFINJE
Entre Fevereiro e Novembro de 1891, a luta ferida entre o Congresso e o Presidente concentra e detennina a politica do país.
Com a extinção doo partidos históricos, tudo se personalizára, tomára a fórma de paixões individuais, o car~cter de psicologías dispersivas.
Deodoro caprichosamente impuzéra o barão de Lucena ao regímen. O Congresso, em represália, elegêra
0
vice-presidente da nação ('portanto presidente do Senado) o marechal Floriano. As velhas divergenciais - o conservador contra o liberal, de outr'ora -adquiriram uma expressão decisiva. Vencêra a tactica dos deputados inérmes : ferro contra ferro ...
E não se pareciam, os dous expoentes do exercito.
No palacio Itamaratí ( séde do governo provisório) Deodoro lembrava o Imperador. Mas não "o rei com,titucional": evocava D. Pedro I, explosivo, enfurecido, im-
32 PED RO CALMON
pulsivo. A sua linguagem era violenta. Sofria. Por vezes ,em crises de dispnéa, cardíaco e desanimado, prometia largar aquilo: e logo, numa reação, sublime, alteando o largo busto constelado de condecorações, afron
tava os adversários com ameaças tremendas.
Floriano
Floriano, ao contrário, abusava da estrategia do silencio. Numa caricatura, Angelo Agostini lhe traçou o
perfil: a Esfinge. Sempre fugira aos debates. Ninguem lhe sabia o pensamento. Só se imaginava e se deduzia a sua vaga atitude de anti-Deodoro. Deixou-se com ha
bilidade tram,formar em simbolo, em mito, em personagem. Afetava indiferença, uma calma desinteressada, um
alheiamento teimoso. Mas conspirava. Conspirou antes da derrocada elo trôno, embóra confiasse nele o visconde
de Ouro Preto : conspirou por omissão, por tolerancia, por cépticismo, conhecendo a trama e fechando-lhe os olhoo, num fatalismo espérto? Esse sagaz fatalismo é a sua ati
tude durante o consulado de Deodoro. Conspirou com os deputados que procuravam re~gir contra o "golpe de estado", caso fosse eleito Prudente: diz Custódio de Mélo que assistira ás suas reuniões. Não se precipitava: obser
vava. Segurava a tropa, centralizando os descontenta
mentos, inspirando ás patentes jóvens - frementes de
indignação contra Lucena - uma confiança que preconi
zava o fanatismo: a béla fidelidade dos militares moços, de 1893. A' medida que Deodoro se afasta da caserna,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 33
nela se instála Floriano. Acaricia e cultiva a força que utilizará no momento exáto. O seu plano é o'bscuro: mas é certo. A politica perdêra o primeiro e achára o segundo marechal. F undador e conrsolidadôr. . . Os dias daquele estavam contados. Não podia governar contra a assembléa. E esta não pretendia permitir que a dissolvessem : para isso, elegêra Floriano!
A Constituinte t ransformou-se ' em Congresso ordináno. Mata Machado foi eleito presidente da Camara por uma maioria de tres votos sobre o candidato da oposição, Bernardino de Campos. Os inimigos do governo dispunham da máquina parlamentar. Não pensaram em acomodá-la á situação: investiram com ela. Em S. P.aulo, fôra destitui do o presidente do Estado, Jorge Tibiriçá, e nomeado Americo Brasiliense. O Partido Republicano Paulirsta mudou de tom. Enfileirou-se, para o combate. P rudente, ·na vice-presidencia do Senado ( da qual Floriano se afastára para fórrar-se das meúdas manobras politicas)
\foi irredutivel. Debalde Lucena, por intennedio de Campos Salles, o mais razoavel dos oposicionistas, negociou um acôrdo. As medidas financeiras do governo ersbarraram nessa intransigencia. Passou a lei de responsabilidade do Presidente, vétada por Deodoro, confirmada pelo Senado. Sabia-se que, a essa lei ameaçadôra, se seguiria a denuncia, com o " impeachinent". Seria a deposição! Aprovada segunda vez .no Senado, foi logo mandada para a Camara, ( cuja presidencia assumiu então Bernardino de Campos) , onde, com calôr, a maioria saíu ao debate, exprobrando a Deodoro a sua condUta.
34 PEDRO CALM O N
A Custodio de Mello afigura-se que mais irritou o barão de Lucena a resistencia á reforma do banco dos Estados Unidos do Brasil, em que se interessava. Com a ditadura - diz o almirante - a reforma rejeitada pelo Congresso seria logo decretada (29).
Golpe de Estado O marechal perdeu a paciencia. E - a 3 de No
vembro - decretou a dissolução do Con!;resso Nacional. Respondia com a fôrça ás impertinencias do próprio regímen que nunca chegou a compreender. Dispersou a representação popular. Voltava a ser ditadôr.
• Por quanto tempo?
Os governadores dos Estados, exceção feita de Lauro Sodré, no Pará, apoiaram a violencia. Mesmo J ulio de Castilhos, no R io Grande do Sul, custou a definir-se. Aprovou tacitamente, num telegrama: "Porto Alegre 4. Ordem publica será plenamente mantida aqui. J ulio de Castilhos." ( 30). Dessa atitude indecisa resultou a complicação inicial que pôz abaixo Deodoro.
A Republica fôra feita no Rio de Janeiro : mas a sua energia civil, o alento economico, viéram de São Paulo. Joaquim N abuco tratou-a de "republica militar c,tfézista . .. " Formára-se entretanto no sul outra mentali-
(29) O Governo Provisorio e a Revolução de 1893, I, 89. (30) Almirante Custodio J osé de Mello, O Governo Provi
sorio e a Revolução de 1893, I, 170. Othelo Rosa parece não ter conhecido este telegrama.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 35
dade. Não era mais o liberalismo. Era o positivismo, a politica "orgânica".
Tinha um chefe moço, capaz e sugestivo : Castilhos.
Atléta da " propaganda", como Glícério, veterano da federação, como R uy, fiel á sua filosofia, como Benjamin, possuía além desses títulos um poder <le comando, de direção, de arregimentação, ainda não demonstrado por outro politico-bacharel. Fôra vencido 'na Constituinte pela ciência jurídica de Ruy Barbosa. Valera-se, porém, da ampla autonomia estadual para lhe dar uma Constituição "sui generis" ( 31). Exagerou a autoridade pessoal no seio do seu partido, provocado para a luta das urnas, breve tambem para a das armas, pelos antigos dominadôres do Rio Grande, a gente de Gaspar da Silveira Martins, entre 1872 e 1889 maioria absoluta do eleitorado. Não poude, com isso, evitar a cisão (Barros Cassa!, Demetrio Ribeiro, Assis Brasil). Os dissidentes, acusando Castilhos de ditadôr, lançando-lhe em rosto a desobe<lienfia ao espírito das instituições, aproveitaram-se da perple
xidade causada pelo "golpe de estado", tomaram a sua prudencia como uma adesão a Deodoro, e, a 12 de Novem'bro, revolucionaram Porto Alegre. Dignamente, renunciou Castilhos a presidencia, assumida por um triunvirato encabeçado por Assis Brasil: e a junta protestou, a sua oposição ao governo central.
(31) Vd. Victor Russomano, Historia Constitucional do Rio Grande do Sul, p. 228, Pelotas, 1932.
Cad. 4
36 PEDRO CALMON
O elemento novo Essa reprovação repercutiu como um sinal de guerra,
em meio ás incertêzas de uma ditadura desorientada. Havia uma resistencia. Se tivesse no Rio de Janeiro um po~to de apoio, a legalidade seria restaurada.
O almirante Custódio revelou-se então. O eixo da conjura é Floriano (32). ,
Entrou na contenda o elemento arredio e decisivo que se mantivéra á margem dela desde 15 de Novembro: entrou a armada.
Até 23 <le Novembro o dissidio é de marechais. Depois -intervêm os almirantes. Por fim, combatem o sabre e a ancora.
A marinha fôra uma força de equilibrio. E', de sua natureza, aristocrática. O exercito fundára sem ela a Republica ('33). Os dous oficiais que., em 1891, polarizam as energias inquiétas da armada - Custódio e Sal
danha da Gama - estavam ambos ausentes do Brasil quando tombou o Império. Mas a marinha continuou sendo, na dinâmica da evolução, um fatôr estático. Conservou, graças a esse isolamento, o seu integro potencial militar. Melhor: Saldanha, sua figura romanêsca, suces
sôr do prestigio dos Tamandaré, Inhaúma, Barroso, apro-
(32) Euclides da Cunha, Contrastes e Confrontos, p. 86, Porto 1907.
(33) Vd. Custodio José de Mello, O Governo Provisorio e a R evolução de 1893, I, 124.
HISTORIA SocrAL no IlRASIL 37
1veitou a confiança de Deodoro para aumentar a eficiencia
do regimento naval, do corpo de marinheiros. Organizou,
com evidente intuito de atirar algum dia aqueles trunfos
na mêsa - uma pequena milicia de elite cujo quartel
era Villegaignon. No dia em que a anarquia rolasse pelaG
ruas, desembarcaria, com os fuzileiros: Saldanha tornouse um observador silencioso e respeitado. Teceram-lhe á
volta uma lenda. Crearam com ela uma esperança: se
uma espada poderia restabelecer o trôno de D. Isabel, essa espada era a sua. Opunha-se a Custódio, como Deodoro
se opunha a Floriano. Luta de gigantes. . . Alem disso, experimentavam ambois uma arma que nunca fôra mane
jada: a pezada marinha, fundeada, com os seus navios
de ferro, diante da ilha das Cobras, como instrumento de
ação ou de reação na. politica interna. Poderia o "Ria
chuelo" ou o "Aquidaban" fazer calar o palacio da rua
Larga? A ancora sujeitaria o sabre?
A demissão do "Fundador"
Em 22 de Novembro, declarou-se na Estrada de Fer
ro Central a "gréve" operária, premeditada para aturdir o governo. Custódio e seus companheiros de conspira
ção apoderaram-se de surprê,sa dos tres maiores barcos da esquadra. Tentou em vão Saldanha - disposto a <lefendês Deodoro e Lucena até ao desespêro - aparelhar
e articular a resistencia. Percebeu o marechal a enormidade da briga. Se perseverasse, os couraçados abri~
38 PEDRO CALMON
r iam fôgo. Contava talvez com a guarnição, e Floriano lhe assegurava indirétamente, molemente, um apoio dúbio. Dependia de sua vontade de lutar. Aparentava, possuí-la. Mas foi traído - não pelos soldados, porém pela saúde. Sentiu-se oprésso pela sua dispnéa, fraco de coração, velho demais para uma batalha. Foi D. Pedro I em 3 de Novembro e D. Pedro II em 23. P referiu largar o fardo, a tingí-lo de sangue. Indignado, altivo, feroz na sua cólera impotente, chamou o vice-presidente, renunciou o mandato, recolheu-se á sua residencia hu-. milde. Vingou-se de Floriano na hora dramatica, falando de "funcionario", que o substituiria... Faleceu meio ano depois : e quiz ser sepultado sem uniforme. Nunca mais pégou na espada que a mão trémula não poude 'brandi1· na manhã da revolta. Na sua paz descontente rompeu com a classe, escondeu a farda, esqueceu as condecoraç,es do seu heroísmo e extinguiu-se num desengano sem indulgencias.
Os pessimistas agouravam fim semelhante para o regímen.
A "le_g-alidade" astutà Sobreviveu, porém, ao Fundador. E sobreviveu, devido a Floriano. Subira por fôrça de um contra-golpe ; logo, gover
naria com a "legalidade" republicana, os ortodóxos, os rapazes de colête vermelho, as patentes jóvens, os "puros". Ao contrário dos impulsos desordenados do coléga, palpitava na sua placidez uma vontade tranquila, calculista
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 39
e paciente. Não era homem de planos mas de disciplina, economico de palavras, sóbrio de get>tos, pacato no seu solido_ bom senso, irredutível na sua opinião calada. Imagem da pachorra, educado na tarimba, soldado até a medula, bastante ascéta para desprezar o confôrto da vida
resplandecente, mas suficientemente pessoal para encarnar a própria Republica, confundindo-se com ela, correndolhe a sorte, afro"ntando os mesmos inimigos - Floriano resumiu e viveu nm proposito sevéro. Era dar geito e estabilidade ao regimen que ia por agua abaixo!
A 26 de Janeiro de 1892 - vá um exemplo da opinião que formára - um militar probo assim falava dele a um jornalista combativo ( carta do coronel Gomes Carneiro a João Erigido, no Ceará) :
"Tudo se vae encaminhando pela Divina Providencia ou pelo determinismo historico, pelo acaso ou pela logica dos acontecimentos, para o restabelecimento de um goremo forte e respeitado, Otl antes, para afirmar essa força e esse respeito no atual governo, que so'bretudo nos tem dado desde seu inicio a mais intransigente moralidade e amplíssima liberdade de imprensa, cousas que haviam desaparecido inteiramente do Brasil desde 15 do Novembro de 1889, não por causa da republica, mas por causa
da deshonestidade de uns e inexpericncia de outros dentre
os que a fizeram" (34).
(34) Carta m~. inéd. cm. pelo Dr. Mario Tiburcio Gomes Carneiro.
40 PEDRO CAL:MON
O Governo do Marechal
O governo de Floriano apareceu ao país - realmente em situação de invejavel solidez. Firmava-se sobre
um triangulo: a marinha ( Custodio encarregara-se da paista de ministro), o exercito, personificado no proprio presidente, o Estado de S. Paulo, representado pelo conselheiro Rodrigues Alves no ministerio da Fazenda. Fernando Lobo, ministro das Relações ;Exteriores, José Higino na paJSta da justiça, Antão de Faria na da agricultura, completavam o caracter cívico dessa administração "consolidadôra". Levava consigo, entretanto, o fermento ele uma pronta dissolução: o seu sentido revolucionário. Das palavras de Custodio, a exprobrar a Floriano a sua hesitação em "derrubar", logo de inicio, OIS governos estaduais q~e se tinham conformado com o "golpe de estado", ressumbra a incompreensão do sistêma federativo que, finalmente, havia de singularizá-lo. Considerava o almirante, como principal responsavel pela mutação política, que os governadores, exceção feita de Lauro Sodré, no Pará, estavam incompaüveis com a nova ordem de cout5as porque não se tinham rebelado, antes aceito submissamente, a violencia de 3 de Novembro. Julgando-os pre
sos a Deodoro pelo vinculo do "adesismo", queria-os todos no chão. . . ( 35). A sua retidão de homem de honra e de espada insurgia-se contra a acomodação, algo humilhante, daqueles políticos ladinos, na véspera soli<la-
(35) O Governo Provisorio e a Revolução de 1893, I, 143.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 41
ri06 com o marechal-fundador, agora subservientes ao marechal-substituto. . . Não lhes perdoava os telegramas dóceis e prestativos do dia 4 de Novembro. Esquecia que, eleitos pelos respectivos Estados, embora muitos deles eleit06 em pleitos inacreditaveis, ( 36) indemissiveis em todo caso, não poderiam eles legalmente opôr-se á exorbitancia do presidente nas suas relações com o legislativo federal, e condenaveis eram apenàs os que, a)em da obediencia confessada, haviam prometido apoio e aplausos ao barão de Lucena... A praxe da deposição dos "manhosos", elos "malabaristas", dos "indecisos", subverteria o regímen, iludindo-lhe as normas constitucionais: os governadores passariam a ser pessoas "de confiança" do centro, como na monarquia. . . Tudo, porém, ao calôr da crise militar se justificaria bem, se Floriano adotasse o plano de Custodio, qual a exoneração prévia e simples dos partidarios de Deodoro. Sem querer feri-los de frente, foi mais cruel : cobrou-lheis de começo uma adesão alvoroçada e inútil, e mandou a força federal, aliada dos grupos locais de oposição, lançá-los fóra de palacio .. . Propiciou pequenas revoluções em cada uma das capitais: desde Manáos até Florianopolis. Instaurou um "método" proprio. Dava instruções reservadas aos co
mandantes dos batalhões, para que, cooperando com os aclversarios regionais dos governadores, lhes intimassem a deserção, por bem ou por mal. Tipo de&se "sistêma" foi ,
(36) Vd. v. g. General J. B. Bormann, Dias Fratricidas, I, 23, Curitiba 1901.
42 PEDRO CAL::S{ON
no Amazonas, a deposição do tenente-coronel T aumaturgo de Azevedo. Nove oficiais de terra e mar, em nome do governo federal, requereram passasse o governo ao comandante da flotilha, e assim fez (37). José Gonçalves, na Bahia, (38) Araujo Góes em Alagoas, (39) foram premidos a largar o cargo apenas se soube do advento de F loriano. No Estado do Rio, renunciou Francisco Portel la, em consequencia da insurreição que se declarou em Paraíba do Sul ( 40). Em Santa Catarina, Lauro Muller resignou nas mãos do chefe da guarnição militar (41 ). O general J osé Clarindo, no Ceará, foi <leposto pelos alunos da Escola Militar e tripulantes de dous navioo de guerra ( 42) ; o presidente do Paraná, Generoso Marques, substituído por uma junta ( 43). Clara ou indirétamente, Floriano demonstrava ao país que a "legalidade" era ... revolucionaria, ou melhor, anti-deodorista. Agindo de acôrdo com as leais intenções de Custodio, num dia só, a'bateria os dezenove inimigos. Para ele, todavia, a mais
(37) Artur Cesar Ferreira Reis, Historia do Ama::onas, p. 259, Manaos 1931.
(38) Braz do Amaral, Historia da Bahia do [mperio á R e
publica, p. 362, Bahia 1923. (39) Craveiro Costa, Historia de Alagôas, p. 163, S. Paulo. ( 40) Antonio Figueira de Almeida, Historia FlumÍlle11se, p.
211, Rio 1930.
( 41) Lucas Boiteux, · Peq. Historia Catari11e11se, p. 122, Florianopolis 1920.
(42) Vd. Custodio José de Mello, op. cit., I, 164.
( 43) Rocha Pombo1
Historia do Paraná, p- 124! S. P aulo,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 43
breve estrada era o zig-zag das ordens confidenciais e das surprêsas tácticas.
O ca/So do Rio Grande, por isso mesmo, tinha absoluta gravidade. Lá a propria politica havia derrubado o governador suspeito ele aderente a Deodoro: mas era por sua indole e principias infensa a Floriano. Este, cruzou os braços. Deixou que J ulio de Castilhos, com os proprios recursos, se desembaraçasse' da junta de Porto
Alegre.
A este tempo, a questão mais sena afigurava-se, no Rio de Janeiro, aos homens de partido e de jornal a sucessão de Floriano, o tempo que lhe restava do mandato. Far-se-ia a eleição pre6idencial, ou governaria ele até completar o quatrienio iniciado pelo antecessor?
A agitação intermitente
Não podia aspirar a um ambiente tranquilo quem, ao \troar dos canhões, imprimia ao paíz uma plastica inesperada. Sucessor de Deodoro contentára a armada, mas ofendêra as altas patentes militares. Desgm;tára os "conservadores" da vespera, misturados, á sombra de Lucena, com os monarquistas, e desmantelando a arrumação const itucional drn, E stados clesnorteára muitos dos que o tinham aplaudido, como vingador do Congresso. . . Em
torno de Deodoro continuaria a fr emir a conspiração ininterrupta: para repô-lo, se possível ; para obrigar F loriano a decretar a eleição presidencial, se a dispnéa do marechal o impedisse de retomar o poder ; em todo caso para reins-
44 PEDRO CALMON
talar ais situações estaduais apeiadas. Nem a excitação particlaria se limitava ao Rio de Janeiro. Era geral e anárquica. Habituára-se a politica a empunhar as armas. O exercito subdividira-se. Dissolvia-se visivelmente -dedarára o general Ewbank, ao ser forçado a voltar da viagem ao Mato Grosso pelas tropas revoltadas no forte de Coimbra. O aviiso para as medidas extraordinarias, que restaurariam a ordem, foi dado pela insurreição das fortalezas de Santa Cruz e Lage, em 19 de Janeiro de 92. Comandava aquela o sargento Silvino de Macedo, á frente dos calcêtas que conseguiram prender a guarnição. Debelado o movimento com um luxo de manobras de terra e mar que indicava a preocupação do governo em entorpecer as multiplas ligações revolucionarias - ouviu o almirante Cwstodio do proprio sargénto Silvino os nomes de generais e politicos implicados ( 44) . Em S. Paulo e no sul de Minas Gerais inquiétações populares, logo a seguir, revelaram. a extensão e complexidade da trama. Adquiriu um aspecto nitidamente político em 5 de Abril, quando treze oficiais generais divulgaram o manifesto em que convidavam Floriano a mandar proceder quanto antes á eleição protraída (45).
Diz ainda o almirante Custodio que o marechal hesitava, quando ele, na reunião dos ministros, defendeu com energia a unica solução conveniente: imediata reforma dos signatarios do manifesto. Floriano adotou-a em silencio.
( 44) Custodio, oP. cit., I, 220.
( 45) V d. Custodio, op. cit., I, 259.
HISTORIA SocrAL no BRASIL 45
Como que lhe custava vibrar golpe assim diréto na classe cujo apoio era a sua obcessão e a sua esperança. Em 10 de Abril, porém, deixára de lado todas as indecisões para, só2ifoho, impôr aos rebeldes um castigo pron.to. Foi quando organizaram eles uma homenagem popular a Deodoro, convertida logo em tentativa de marcha sobre o palacio do Itamarati com o fim de depôr o presidente, e aclamar o "Fundador " ( 46). Este saiu para a rua, entre os soldadoo fieis. Dispersaram-se os manifestantes. No dia seguinte estava decretado o estado de sitio por 72 horas. Ato complementar era a deportação. ou a prisão nas fortalezas dos principais amotinadôres do povo. Imunidades parlamentares? O marechal não considerava as " legalidades" em detalhe, mas em grande. Prendeu quatro senadores, sete deputados. . . Desterrou para o alto Amazonas o deputado Seabra, o fil)ancista conde de Leopoldina, José do Patrocínio. . . "Foi o 1 O de Abril um divisor de aguas." (47).
Voltemoo, porém, aos sucessos estaduais . .
A centêlha que abrazou o panorama turbulento da Republica no ano de 92 não partiu do centro ; saltou do "fogão gaúcho".
(46) José Lavrador, Heróes de Noventa e Tres p. 85, Rio 1938.
(4i) Helio Lobo, Um varão da R ep11blica, p. 128, S. Paulo 1937.
PEDRO CALM ON
O Rio Grande
Floriano preferiu Castilhos aos "gasparistas" e "federalistas".
Não ousou agredir a junta de Porto Alegre. Deixou - apoiando-o indiretamente - ( 48) que Castilhos a abatesse com o seu aguerrido partido recomposto, revigorado, graças a um elemento inédito de Juta política: a militarização civil, para a escalada, a ofensiva.
Desde a "guerra dos farrapos", a gauchada: de lança alta não corria os campos natais numa fórrna ele combate, que era antes manifestação de força6 espontâneas, de índole social em contacto com as rudas influencias do meio físico. A Republica despertára esse amôr da ação e da bravura, adormecido no Rio Grande como uma remóta vocação guereira ali á espera de um chóque traumatico, que a desencantasse. A quéda de Castilh06, pelo motim, preveniu os animos: á força se replica com a força; insensivelmente se abrira a éra da violencia,; foi o licenciamento ela politica, em proveito das armas. Não se achára outra solução. Na. côrte e na província, em terra e no mar, na oposição e no govêrno, no liberalismo e no posit ivismo, em todas as esféras partidárias. O "cesarismo" da primeira hora convertera-se numa mística, que o tempo tornou absorvente: a da sanção das armas, á justiça elas causas. - A cavalo, pois! - comandou oportunamente o Dr. J11lio Prates de Castilhos.
( 48) Custodio José de ]v!:ello, op. cit., I, 308, JlJ, 315 ...
HrsToRIA SocrAL DO BRASIL 47
A revolução castilhista inaugurou na Republica dous tipos de reação "paisana": milicias civis, cujos chefes se concertam na fronteira ( foi preparada sob os auspícios de Pinheiro Machado, na cidade argentina de Caseros); ( 49) ação diréta, como recurso de reivindicação da "legalidade" . Em 1892, aliaram-se, para esse efeito, Castilhoo, Pinheiro, o general Rodrigues Lima, outras influencias territoriais elo Estado cada um oferecendo -como no t empo dos "farroupilhas" - certo numero de homens armados. E, num golpe inteligente, auxiliado pelo desgosto da policia estadual que o presidente interino, Pelotas, pretendera remover de Porto Alegre para Bagé, reconquistaram o governo, dous dias antes elas eleições, que lhes seriam então contrarias. A Constituição local permitia que o presidente nomeasse o vice-presidente. Antes ele abandonar o cargo, Pelotas nomeou o general João Nunes da Silva Tavares (J óca Tavares) que se achava em Bagé, e contava com os "gasparistas ".
A volta de Silveira Martins ao Rio Grande reacendêra a flama liberal. Com aquela herança trágica - o governo transmitido telegraficamente por Pelotas ao general Tavares - os "gasparistas" eram chamados ao campo ela luta. Contra a vontade de Gaspar, que não acreditava - com o seu robusto espírito civil - em revoluções; contra as tradições de sua política, de pala-
( 49) V d. João Francisco, Psicologia dos acontecimentos politicos sul-riograndenses, p. 54. S. Paulo 1923 A primeira revolução com civis armados ocorreu em Mato Grosso, para repor no governo o coronel Generoso Ponce em 1892.
48 P EDRO CAL :MO N
vra e voto; conrtra os desígnios dos homens experientes do partido - mas por uma fatalidade ambiente ...
Os dous primeiros anos do regimen tinham dissipado os anelos partidários, a confiança numa eivolução incruenta. Como em 1890 se creára a mentalidade economista,
e todos jogavam na Bolsa, em 1892 se fixára a menta
lidade belicosa, e todos sobraçavam uma arma. Se esse
desvio <lo senso político não foi sensivel no norte e no
centro, no Rio Grande - onde a sociedade madrugára
pelejando, no "pampa", área das cavalarias heroicas -
se tornou inevitavel.
O chóque de principios
Fracassou a revolta da flotilha. Os grupos "federa
listas" foram inicialmente diispersados. O governo federal estava contra eles. Dir-se-ia que a vitória do jóven
caudilho da lei, Castilhos, era completa. Mas o antago
nismo se definira, radical. Chocára-se a Republica com
os que não a percebiam á maneira positivista, da mão forte,
<la mística. Gaspar é, como Deodoro ou Saldanha, como
Lucena ou Barr06 Cassai um rebelado contra o "comtis
mo" geométrico, sÍ.5tematico, "orgânico". Floriano e Castilhos personalizam essa idéa de governo irresistível, ungida de uma fé, que aos adversarios parece sofistica: porque resulta do principio de autoridade, de uma organização inteiriça, que a fórma, e nela se continúa. Liberalismo ( e Gaspar era cada vez mais parlamentarista !)
HISTORIA SocIAL DO BRASIL 49
é antitese de sistemati zação, de militarismo. Castilhos
montou no R io Grande uma primorosa maquina politica
que lhe permitia administrar corno chefe supremo, eficiente.
Gaspar detestou esse regímen; em nome do seu passado
civiliGta ("chefe da democracia rio-grandense", chamá
ra-lhe Quintino em 1878) tentou evi~ar a insurreição, nãc
poude impedí-la, e, por solidar iedade com os amigos, se
meteu nela. ( 50).
(50) A divergencia entre Castilhos e Gaspar, de que resul
tou a tremenda crise de 1893, não se revestiu inicialmente de intransigencia. Com "espírito republicano" propuzéra aquele eleições livres, que diriam qual a maioria real no Estado, com a condição de ambos os partidos concordarem com o " veredictum,,. Mas Silveira Martins exigia, de acôrdo com o resolvido no con~resso de Bagé, de 31 de Março de 1892, que antes de tudo se !ubstituisse a Constituição "comtista ", por out ra, "republicana representativa modelada segundo os princípios do governo parlamentar". E nenhum quiz cedêr. A questão de "princípios"
superou as considerações de paz, de regímen "cm si" . Foram á luta - pelas idéas. Quarenta anos a história do Rio Grande do Sul refléte essa fidelidade - ás idéas nitidas, de um lado federalistas, com o programa de Gaspar, do outro republicanos,
com a organização de Castilhos. - Vd., sobre Gaspar, José Mariano Porto, Apontamentos
biograficos de Gaspar da Silveira Martins, Rio 1891; José Julio
da Silveira Martins, Silveira Martins, Rio 1929, e Osvaldo Orico,
Silveira Martins, Rio 1935. Sobre Castilhos, o livro de Othelo
Rosa, citado.
50 PEDRO CALMON
A revolução
O anti-castilhisrno (federalistas) imitou o castilhismo (republicanos) naquela novidade de 1892: o movimento tramado ao abrigo da fronteira, rnilicias "paisanas" em logar de tropa regular, ação diréta ! "Armas, cada um se servirá da que tiver. Quando ha bôa vontade, até a cacete se briga" - escreveu um dos generais "federalis-tas". "As armas, bravos dos chefes governistas, o Oliveira. Cincoenta anos creditado esse paroxismo.
Rio-grandenses ", intimou um general Isidoro Fernandes de de paz politica tinham desaA guerra do Paraguai empre-
gára em outros horizontes os sobêjos da energia rural, dos iwstintos marciais da gente "gaúcha". A Republica -exatamente reclamada pelos que ambicionavam a tranquilidade justa e digna - desfraldára, ao contrário, um estandarte sangrento. Trancadas as urnas, os "peões" saltaram sobre os cavalos. Os sacrifícios poupados em 1889 eram cobrados com avidez em 1892.
A revolução foi urdida no Estado Oriental. Em resposta á comunicação elo governador interino do Rio Grande - ácerca dos plànos "federalistas" de invasão da zona fronteiriça - Floriano definiu ( 51) a sua mi,ssão " providencial" : "sempre acautelado para fazer casti-
(51) Vd. telegramas de Floriano, Custodio José de Melo, op. cit., I, 359. Sobre o "golpe" de Castilhos: "Não me surpreendeu conduta brilhante e patriotica dos ilustres membros do Partido Republicano ... "
HISTORIA SocrAL DO BRAS rL 51
gar conspiradores sebastianistas ", " a consolidação republicana ha de ser feita" ... ( telegrama de 3 de Novembro
de 92).
Assim creava o rótulo - sebastianista.s - e o titulo
- consolidação.
Preparava-se para entrar na História punindo aque
les, consolidando a Republica. A ~edição aconteceu no R io de Janeiro em 6 de Setembro do ano seguinte: mas
já estava classificada e condenada pelo marechal. SebastianiGtas, para ele, eram tanto os parlamentaristas, de Gaspar, como os civilistas, de Prudent e, a mar inha, de Cus
tódio, e atraz dela os imóveis fuzileiros e os aspirantes, de Saldanha; os negociantes portuguê,ses, a alta finança "conserva<lôra", os remaneGcentes do regimcn passado; poétas, legistas, a vasta oposição . . . Contra eles, agitou um "republicanismo" ardente: dos radicais, ou jacobinos,
dos mili tares moços, que tinham substituído o culto de l¾njamin pela admiração de Floriano, <los "ordeiros" , dos positivistas, que achavam a "autoridade" uma panacéa ...
Essa aliança do presidente com o castilhismo, dividiu em partidoo nacionais a contenda provincial. Quando se estabeleceram as ligações - lógicas - entre o " gaspa
risrno" e a armada de Custódio, os "restaura<lôres" do Rio e cio norte e os "federalistas" de um lado, e os republicanos integrai,s do outro (Floriano, o Partido Republicano Paulista com Bernardino de Campos á frente <lo Estado, Castilhos e o seu "caudilho" Pinheiro Machado,
Cad. 5
52 PEDRO C ALM ON
Barbosa Lima em Pernambuco, Lauro Sodré no Pará ... ) - estava delineado um imenso panorama de guerra. Afinal a guerra intestina, que evitára D. Pedro II em 15 de Novembro: indispensavel - ai de nós! - para o equilíbrio, a serenidade posterior. . . Descarga de eletricidades suspensas, latentes 1
V
A CONSOLIDAÇÃO TR.ÃGICA
O poncho sôlto ao pampeiro
J óca Tavares concentrára em Cerro Largo, no Uruguai, a sua força.
A 2 de Fevereiro de 1893 ( no dia 25 de Janeiro Castilhos assumira o governo) atravessaram a fronteira
\os primeiros destacamentos comandados por Gumercindo Saraiva e Vasco Martins.
Gumercindo - logo alcunhado de "Napoleão dos pampas", uruguaio de nascimento, mas brasileiro pela sua vinculação ·aos assuntos do Rio Grande, fôra nas situações " liberais" um aliado prestimoso de Silveira Martins. Ainda na ultima eleição da monarquia policiára a vitó ria "gasparista" (52). E ra, porém, um cabo dt
(52) Carta do minist ro Diana, de Agosto de 1889, ms. cm. por Olinto Sanmartin.
54 PEDRO CAL MON
guerra, do estôfo e do perfil dos melhores "caudilhos" orientais.
Bravo, sagaz, estrategista, generoso e implacavel a um tempo, nenhum dos· seus companheiros de aventura naquele 'bisonho exercito via mais longe. Foi, por isso, o inimigo mais perigoso que, em terra, defrontou Floriano. A marcha sobre São Paulo vae ser o feito culminante da revolução "federalista": o seu heróe foi Gumercindo. A estatura desse guerrilheiro cuja fisionomia atraente lembra os retratoo de Garibaldi - enrolado no mesmo poncho "guasca" - é gigantesca. Engendrou a lenda um antipoda de Bento Gonçalves - o republicano: Gumercindo - o sebastianista. Teve, é certo, a intuição nacional da luta: para não a asfixiar no Rio Grande, onde acabaria esmagado, projetou-a atrevidamente para o norte. Quando a vanguarda de Gumercindo ameaçou os limites ele São Paulo com o Paraná, o edificio do regimen estremeceu.
Estremeceu mas não caíu. A estrela de Floriano resplandecia: emquanto os ou
tros, Gaspar no exílio, a oposição parlamentar, Custódio nos seus navios, Saldanha na Escola Naval ou na caserna de Villagaignon, faziam um jôgo contrafeito, obrigados a uma violencia -destrutiva contrária á sua formação espiritual, á sua vocação patriotica, por fatalidade, por destino - integrava-se ele na sua função . Nascêra para isto : para o combate tenaz e a resistencia inclemente. A impulsividade de Deodoro fundou e desmantelou a Republica: a calma de F loriano aguentou-a. Sem e,ssa pa-
HISTORrA SOCIAL DO BRASIL 55
c1enc1a cabôcla - sem o cigarro de palha do marechal , símbolo de uma perseverança "caipira", de sua estoica tranqui lidade de "caçador de espera" - o regímen rebentaria, como uma bomba. E le congelou o explosivo. E sfriou a crise. Dominou-a, com metodo, força e vagar.
O presidente da Republica decréta a intervenção federal, para sustentar Castilhos. U ne, assim, oo efetivos militares do Rio Grande ás tropas estaduais. J óca Ta
vares assume a chefia aos insurrétoo. Manóbra com habilidade-. Evitan<lo uma ação geral, deriva para Dom Pedrito, que conquista, em 23 de FeYereiro. Debalde defenderam a vila o 6.0 de cavalaria e duzentos civis. E' a guerra. Tenta o general federalista tomar Sant'Ana do Livramento : é obrigado - pela aproximação dos legais - a suspender o cêrco. Outros grupos se desatam
para Alegrete e Quarahy. Perdem, em Itaroquem, e ganham, cm Jararaca . Barros Cassa! adére á revolta e Pinheiro l\fachado acóde á reação. Fórma a " divisão do
1norte", comandada pelo general Rodrigues Lima. No arroio Inhanduhy, seis mil r evolucionários pelejam com quatro mil governamentais. E' .a batalha campal, de inaudita violencia (53) . Retiram aqueles, em treis colunas ('favares, Gumercindo e coronel Salgado) . "Revolução estrangulada" - telegrafam a Castilhos os que ficaram no campo (Hipoliio Ribeiro, Rodrigues Lima, Pinheiro e Fernando A'bbott ) . Ilusão ! Era "revolução propaga-
(53 ) Vd. José Lavrador, Heróes de Noventa e Tres, p. 78, Rio 1938.
56 P EDRO CALMoN·
da". Dissipa-se aqui para resurgir adiante. Fragmentase. Passa e repaS6a a fronteira. Deslisa por entre os piquêtes do govêrno. Instala-se nos costumes "gaúchos": -e procura ligações externas.
A questão presidencial
O almirante Custodio, o homem de 23 de N ovembro, demitiu-se, indignado, da pasta da marinha, em 28 de Abril de 93. Desde a reposição de Castilhos e o levante da flotilha em Porto Alegre, divergira completamente da política do marechal. Naqueles turvos dias vira-5e este caso raro : o presidente apoiava o governador Vitorino Monteiro ('nomeado por J uli0-- de Castilhos) e o ministro da marinha quasi o insultava, dizendo n'um telegrama que, pela doutrina da "reposição", Deodoro teria de ser chamado para ... reassumir. Convencera-se da participação de Floriano, através do comandante do distrito militar general Vasques, nesses aco1;tecimentos decisivos. Pretendera remedia-los, quando o general Tavares pela segunda vez desembainhou a espada, exigindo dele a "pacificação". Parecia-lhe fácil, porque ainda estava em tempo - diziam os federalistas. Floriano prometeu, achou, iludiu, e, finalmente, falando em Con1Stituição, mudou de conversa . . . ( 54). Custodio demitiu-se pensando na reação da armada.
(54) Depoimentos do almirante, no seu livro citado, 1.0
vol., 2.0 tomo.
HISTORIA SO CIAL DO BRASIL 57
O almirante Vandenkolk contrapõe, em aguas riograndenses, á intervenção militar em favor de Castilhoo, a intervenção naval em favor de Gaspar. A bordo do vapor "Jupiter", fórça a barra: porém o golpe fracassa, e o cruzador "Republica" - partido do Rio de Janeiro ao encalço do almirante sedicioso - o aprisiona. Réo de morte - julga o conselho de guerra a que comparece Vandenkolk; presidente do Club Naval - respondem os oficiais de marinha, elegendo, n'um acinte, o companheiro prêso. Que faltava para o "pronunciamento'' da esquadra? A "frente unica", de Crn,tódio e Saldanha. E o incremento da insurreição, no extremo sul.
Salgado invadiu segunda vez o E stado (10 de Agosto) e unindo-se a Gumercindo, destroçou, em Serro do Ouro, a brigada governista, que lá deixou 357 homens. Esse triunfo animou sobretudo Gumercindo, disposto a concluir a ação com os outros chefes, ou sem eles. O \sinal para a sua marcha larga seria a revolta dos navios.
A vez da armada
Na noite de 5 de Setembro, (55) embarcou o almirante Custódio no "Aquidaban" com alguns oficiais e
(55) O movimento devia rebentar a 7, durante a parada, com a prisão de Floriano, posse, consecutiva, de Prudente, como presidente do Senado, e, talvez, a eleição de Ruy para a presidencia da Republica, Lavrador, op. cit., p. 85. Antecipou-se porque Custodio se sentiu ameaçado pela policia.
58 PEDRO CALMON
politicos (deputados Seabra, Anfrisio Fialho, Vinhais. Francisco el e }.fatos, Jaques Ourique) ; hasteou o pavilhão de comando e a bandeira branca da revolta; e logo obteve a adesão de quinze navios, dominando a Guanabara. Amanheceu a cidade sob a pontaria cios canhões da esquadra.
Um só couraçado derrubára Deodoro. Os quinze
barcos não abalaram Floriano. Esperára de animo alerta a réplica de Custódio. L onge <le intimidar-se . redobrou
de energia. Distribuiu a tropa pelo litoral. Exercendo o estado de sitio, concedido em ,sessão secreta pelo Congresso,
reprimiu a agitação popular qu e se declarou cm varias
estações da estrada ele ferro. Mostrou, na decisão de cas
tigar exemplarmente todas as desobediencias, um rigôr
sugestivo, que tSÓ têm os governos está veis. Essa impavidez foi a sua salvação. Porque, enquanto, coagidos, silenciavam os "sebastianistas", e os homens representativos se recolhiam áos legações estrangeiras ou fugiam para
Minas Gerais, o "jacobinismo " - de mãos dadas á po
licia - saía para as ruas com o seu frenesí comunicativo.
Os jornais, inspirados pelo governo, tSobretudo "O País",
propagaram a fórmula: a co'nsolidação da Republica contra
a revolução restauradôra. Quem não iria lutar com os
retrógrados, os "saudosistas"?. . . Artilharam-se os môr
ros; convocada, a guarda nacional tSe apresentou; os alunos da Escola Militar tomaram posição, os governadôres apo iaram Floriano, a rua do Ouvidor estrugiu de declamações republicanas.
HISTORIA SocrAL DO BRASIL 59
Custodio e Saldanha
Apenas, o conflito não tinha .solução.
A 13 de Setembro a esquadra bombardeou a cidade terrível e ineficazmente. O exodo popular para os subur
bios dilatou o pavôr pânico e mant~ve impasGivel Floriano. Dispunha dais fortalezas, da cidade de Niteroi, que sómente no dia 8, tardiamente, os revoltosos pensaram conquistar, de todaos as forças do Rio, com exceção da infantaria naval de Saldanha, que se conservava ... neutro. A neutralidade de Saldanha, sem poder ser utilizado pelo governo legal nem engajado pela revolução, estático em meio á tormenta, em Villegaignon, era uma incognita: poderia alterar-se a cêna, quando ele falasse, com os seus aspi rantes, fascinados pela lSUa impecavel elegancia de chefe, com os seus fu,:ileiros. . . Aderiu Villegaignon, a 9 de Outubro. Novo assalto á Armação, em Niteroi, se inutilizou em 27 de Novembro.
Passou-se Saldanha para o lado de Custódio em 9 de Dezembro.
Assumiu o comando da esquadra rebelde. Custódio encarregar-.se-ia das operações no sul. Constavam da instalação, em Santa Catarina, de um governo revolucio
nário (missão <lo "Republica", sob o comando do capitão de mar e guerra Frederico Guilherme Lorena, saído do
Rio em 17 de Setembro), e da submissão do Paraná, ponto de apoio necessaro á marcha dos "feclera!istas" sobre São Paulo e ao direito de beligerancia, que pleiteava Custódio
60 PEDRO CALMON
das nações estrangeiras. Capitulou a cidade do Desterro, onde Lorena fez governo, e se reuniram os representantes "federalistas" e os da armada, combinando a ação conjunta. Salgado embarcou na Laguna para Desterro e Gumercindo, galgando a serra rio-grandense, sempre perseguido pela "divisão do norte", atingiu Santa Catarina e o Paraná, emquanto Jóca Tavares ocupava a cidade de Quarahim, aprisionava, na estação do Rio Negro, tres batalhões ( aí foram degolados o coronel Pedroso e quatrocentos homens) e levava o assédio a Bagé, que resistiu admiravelmente, desde 24 de Novembro até 8 de Janeiro. O cerco de Bagé, mantido pelo coronel Carlos Telles com mil e trezentos soldados contra efetivos quatro vezes superiores, foi suspenso á aproximação da "divisão do sul", organizada pelo próprio ministro da Guerra.
Marcha sobre São Paulo
O Paraná tornou-se, em· Janeiro e Fevereiro de 94, o campo de batalha em que se jogou a sorte do regimen. Saldanha não lográra· québrar a resistencia florianista em Niteroi, perdêra a, ilha do Governador, estava ameaçado de falta de vivereis e munições, trovejando em vão a fúria impotente no golfo do Rio de Janeiro. Se São Paulo, máximo sustentáculo do governo, aliado efetivo do castilhismo, do Rio Grande, se São Paulo cedêsse á revolta, entre dous fógos o marechal resignaria o poder. Bastava -diziam ali os adeptos do movimento - que as avançadas
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 61
de Gumercindo transpuzessem o desfiladeiro de Itararé. A velha guarda nacional, saudosa da monarquia, os antigos conservadôres, oo adver.sarios do Partido Republicano
· e de Bernardino de Campos, apressariam a rendição do Estado. Tudo dependia da velocidade daquela marcha.
O General Carneiro
Custódio com o " Republica" e, em van os vapôres, uma força de desembarque, tomou Paranaguá em 15 de Janeiro. Gumercindo irrompeu no Paraná por Ambrosios e Rio Negro. O comandante do distrito militar, general Pego Junior, descreu da resistencia e preferiu retirar-se. O governador, Vicente Machado, sem força para opôr-se á invasão, abandonou Curiti_ba, onde, no dia 20, entrou triunfalmente o almirante. A 21 foi na capital paranaense constituído um governo provisorio, sob a che~ia do Dr. João de Menezes Doria. A defêsa da "legalidade" circunscreveu-se á cidade da Lapa - após a rendição de Tijucas. Ficava a Lapa no caminho de Gumercindo, para o norte. O coronel Antonio Ernesto Gomes Carneiro - ·em quem confiára F loriano, como homem capaz de galvanizar as energias militares naquela região impropria para operações decisivas - dispôz-se a dar á sua classe um exemplo memoravel. Fortificouse com uns novecentos combatentes na cidade facilmente varejada pela artilharia dos invasôres, e não arredou pé dali. Rodeado por 5 ou 6 mil hom<:ns, investido
62 PEDRO CAL~ION
diariamente ( entre 13 de Janeiro e 9 de Fevereiro) por todos os lados, tendo de disputar-lhes, casa a casa, a Gua pobre praça de guerra, foi formidavel no seu espirito ele resolução e heroismo. Salvou Floriano, retardando Gu
mercindo ( 56). O mez de avanço que levava este sobre as tropas mandadas para barrar-lhe o passo no rio Ribeira, consumiu-se nas trincheiras da Lapa. Lá se esgotou a revolução, perdendo o que tinha ele irresistivel: o seu ímpeto. Demorou-se e sucumbiu. E' verdade que sucumbiram primeiro o coronel Carneiro, morto na refréga, e a Lapa, que Ge entregou, exausta, dois dias depois ( 11 ele Fevereiro).
Começou por aí a derrocada.
O epilogo da revolta
A vanguarda ele Gumercindo (J uca Tigre e Piragibe) alcança J aguaraíva, sabe ela aproximação elo exercito legalista, de 5. 800 soldados, e retrocede ( 57). Aparelhára o governo uma esquadra - adquirida por altos preços no estrangeiro - ' cm Montevicléo e na Bahia. Comandava-a o velho _almirante J eroniÍ110 Francisco Gon-
(56) Vd. Pedro Calmon, Gomes Carneiro, o General da Re
publica, Rio 1933.
(57) A volta foi convencionada em Ponta Grossa pelos chefes revolucionarios, que renunciaram á idéa d'uma desesperada separação dos tres Estados do sul, José Lavrador, H eróes de 93, p. 117.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 63
çalves, chamado á ativa para organizar a marinha florianista. Concentrou-a na Bahia, rumou cm seguida para Cabo Frio, e a 1 O ele Março apareceu na Praia Ver
melha, no Rio de, Janeiro. A' iminencia de um combate
naval, entre as duas esquadrais, a dos nóvos barcos tr ipulados por marinheiros de todas as nacionalidades, e a dos navios de Saldanha quasi sem munições, adotou este a resolução de abandonar a luta. 'No dia 11 , por inter
medio do comandante da corveta portuguê,sa ":Mindêlo", surta no porto, Saldanha ofe.receu as suas condições de retirada. Queria que lhe garantissem a ida para o estran
geiro, com os oficiais que o acompanhassem, respeitadas as vidatS, restituídos os prisioneiros. . . Floriano recusou qualquer acôrdo e anunciou a rep ressão definitiva, a ferro
e fogo. Então - a 13 de Março - o almirante e a
maioria das tripulações revoltadas pediram hospitalidade aos trcs navios portuguêses, que comandava o almirante Augusto de Castilho.
O bombardeio de terra não foi nesse dia respondido
pelos barcos insurgentes.
A esquadra de Gonçalves entrou, ufana, a Guanabara.
A vitória elo marechal era completa. Teria um caracter atroz, se caíssem em seu poder Saldanha e os companheiros: mas estavam sob a dupla proteção, da bandeira de Portugal e da honra de Augu,sto ele Castilho. A camaradagem naval encerrou galantemente um episoclio funesto: hostilizado pelas notas irritadas cio governo, pela imprensa jacobina, pela excitação das ruas, Castilho, insen-
64 PEDRO CA L MON
sível a outros consêlhos alem do seu dever - saíu no dia 18 a barra com os refugiados, que, foi depositar no porto
de Montevidéo.
Quando desaparece Gumercindo
Queimou Custódio o ultimo cartucho na 'barra do Rio Grande, tentando, por mar e terra, desalojar a guarnição local. O coronel Telles voou de Bagé em socorro da cidade do Rio Grande. O almirante, repelido, teve de desembarcar a sua infantaria no porto de Castilhos, e
- secundando a Saldanha - largou a luta, levando para
Buenos Aires a sua esquadra. A 17 de Abril, invocando o asilo argentino, entregou-a ao governo da vizinha Re,
publica. Na vespera, no porto de Santa Catarina, o "Aquidaban" - derradeiro navio de bandeira branca -
foi inutilizado por um torpêdo. A guarnição dele juntou
se ao exercito de Gumercindo, em re.tirada. Gonçalves retomou Desterro, no mesmo dia 17 de Abril. A 23,
' apoderou-se de Paranaguá. Os revolucionários abando
naram Curitiba, ocupada pelo exercito legal, do general Ewerton Quadros. Reentrou Gumercindo no Rio Grande e foi batido no alto Uruguai pela "divisão do norte", ata
cado em Passo F undo, atingido afinal, no planalto de Carovy ( 1 O de Agosto de 94), onde uma bala perdida prostrou sem vida o grande, guerrilheiro.
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 65
A represalia
O ciclo das ásperas lutas encerrava-se. Se, porém, a vitória fosse magnanima, como heroica fôra a pelêja, uma conciliação breve desarmaria os espiritos. No Paraná e em Santa Catarina, foi inclemente. Moreira Cesar, no Deisterro, e Ewerton Quadros, en1 Curitiba, autorizaram ou consentiram fuzilamentos que qmsterna,ram e indignaram o país. A punição complicou-se com o crime. Lorena e, o barão de Batovy, veteranos do Paraguai, foram fuzilados ( 58). O barão de Serra Azul, reispeitavel industrial, foi vilmente assassinado no trajéto para Paranaguá ( 59). O odio soprou as brazas da insurreição que se extinguia. Saldanha passou a ser, no Uruguai e na Europa, para onde viajou, um atormentado pela idéa da desfórra. A "consolidação" da Republica nimbava de. lenda a figura fleugmatica do marechal ; mas fizéra incontentaveis . Os excéssos na guerra e após a guerra limi-
\ taram ()lS campos com um rio de sangue. Os degolamentos no Rio Grande, as execuções no Paraná ~ em Santa Catarina, a perseguição aos remanescentes ela revolta da armada, alimentaram o furôr dos exilados que achavam indigno o repouso, sem a vingança. A anistia fôra o hábil recurso de D. Pedro II para pacificar o Brasil, nos
(58) Lucas Boitcux, Pequena Historia Catarinense, p. 123, Florianopolis 1920.
(59) Valfrido Piloto, Paranístas, p. 18, Curitiba 1938 (resumindo o que se apurou da tragédia) .
66 P EDR O CALMON
primórdios do reinado. Floriano não a concederia. T irava do triunfo as suas consequencias. F icaria isto para um temperamento moderado, a autoridad~ civil, que lhe sucederia ...
Prudente de Morais
Paradoxo da politica : Floriano ganhára a guerra e perdêra a partida.
Enfrentando Custódio, não vira Prudente de Morais.
"Consolidando" o regímen, te.ve o cavalheirismo ele respeitá-lo, no seu ritmo eleitoral. Soára a hora da eleição presidencial no territorio indêne da conflagração. O Partido Republicano Paulista, fatôr importante da "situação", (60) conservára invulneravel o seu simbolo: Prudente .. Vencido em 1891 pelo militarismo (como ele definira a sua cand ídatura), ficára como o estadista á espera da pacificação, para dar á Republica o seu feitio civil. Concorreu sem competidôres; foi eleito sem entusiasmo, quasi surdamente, em meio a uma descrença sintomática - do· exercito que só enxergava Floriano, da política atônita na sua atmosféra de terror. O exito desse bacharel austéro, em cujas barbas de patriarca resplandecia uma tradição de. d ignidade individual, de idealismo civico - consistiu na sua fé. Se o Partido Republicano
(60) Candido Motta F ilho, Uma Grande Vida, p. 102, S. Paulo 1931.
H rsTORJA SOCIAL DO BRASIL 67
Paulista tolerasse o adiamento do pleito, postergasse aquilo para um momento socegado, prorogasse num artificio constitucional o pcriodo governativo do "marechal de ferro", de premio ao triunfo, aumentando-o, a R epublica não emergcria tão cêclo da confusão em que se atufára. Prudente não torceu. Responsavel pessoal pela obra da Constituinte, ligando a rada ar't igo da Carta de F evereiro uma importancia ,supersticiosa, ansiava pela ccm
cordia sob o palio da lei, como a tinham preconizado os propagandistas, no decênio de 80, na linha ela Mogiana e em Campinas. . . Por seu lado, Floriano não era homem de iniciativas audazes que desfigurassem o seu papel de condestavel do regimen. Deixou correr a honesta aventura política de Prudente: eleito, reconhecido, proclamado, a empossar--se pres idente cm 15 de Novembro
de 1894. Dir--€e-ia pelo seu silencio que não acreditava
nisso. Os jóvens oficiais promovidos pelos feitos d'armas, ~s florianistas ébrios de alegria nas manifestações da rua
do Ouvidor, OIS nacionalistas exaltados contra a pretensa intervenção dos naivios estrangeiros cm favor dos rebeldes,
idolatravam o marechal. Far-se-iam matar por ele. A R epublica e Floriano confundiram-se. A lenda di latavase; Quando Ruy Barbosa - exilado na Inglaterra -o comparou a Rosas, teve em vista a solércia, que lhes foi comum, e eSISa popularidade exorbitante. Deodoro não compreendêra o regímen, juridico demais para a sua mentalidade de velho soldado: por isso dissolvêra o Congresso. Floriano não o compreendêra, quando centrali
zou nas suas mãos ativas todois os negocios do Estado,
Cad. 6
68 PEDRO CALMON
nomeou para o Supremo Tribunal um medico e um general, deportou parlamentares, utilizou o estado de sitio ao seu alvedrio. Era natural, pois, que respondesse com ironia ao optimismo de Prudente, e mandasse-o embóra, por um alferns, na manhã de sua posse.
Floriano não fez isto. Deixou correr a cousa. . . A' ultima hora, quando a oficialidade prometia opôr-se pelas armas á transmissão do governo, exigiu disciplina, largou o palacio Itamaratí vazio, sem funcionarias, sem criados, como uma· casa que o inquilino larga, silenciosa, ao senhorio antipát ico - e recolheu-se á vida privada. Falece,u em J unho do ano seguinte. Como Deodoro, não sobreviveu m uitos mezes á inação. Venceu-o decérto a saúde esgotada. A exemplo do Fundador, foi atraiçoado por ela. O sol da glória levantara-se demaisiado tarde para a sua carreira pacient~. Uma eleição discreta e a doença do marechal, fizeram sem ruido o que, seis mezes, os canhões da armada, estrondeando na Guanabara, não conseguiram.
Prudente, a 15 de Novembro, de chapéo álto e corréta sobrecasaca, saltou de um carro de aluguer á porta do Itamaratí. Era sombrio Ç> aispecto do palacio deserto. Se fôsse dado a leituras americanas lembrar-se-ia de Lincoln chegando, com tôsca simplicidade, á Casa Branca. Olhou á volta: não havia quem lhe tomasse a cartóla. Sorriu com amargura.
A circunstancia de não lhe ter F loriano passado o governo_ (desculpou-se, dizendo que •se aparecesse em publico a tropa subverteria a cêna . . . ) não o humilhou :
H1sToRIA SocrAL oo BRASIL 69
preveniu-o. Frizava o dissídio: acabava ali a situação florianista, do colête encarnado; começava o civilismo de Prudente. A' "consolidação", esbrazeante, se seguiria a "pacificação'' humanitária . .. Note-se que a palavra "humanidade", á força ele ser repeJida pelos positivistas, perdê.ra a sua sonoridade : Prudente preferia outra fórmula. "Justiça e lei".
Clemencia oportuna
A quem se apoiaria, para governar? O exercito pareCJa não o suportar. As forças políticas mal se desvencilhavam ela preissão mil itar. O sul não· fôra apaziguado. No Rio , era impopular. Os "jacobinos" rompiam em opos1çao. Os " puros" continuavam a falar de Floriano, da ditadura redentorial. . . A expedição desesperada de Saldanha - em 22 de Ahri l de 95 - prometia prolongar a guerra intestina. Cuidou Prudente, ansioso de, normalidade ( 61 ), de enviar um delegado de confiança - o
general Innocencio Galvão de Queiroz - para combinar as pazes entre o castilhisnio e os "federalvstas". Em 24
de Junho, a pequena tropa de Saldanha foi dizimada em
(61) Em carta de 10 de Setembro <l e 94, dirigida a Max fl eiuss, Prudente j á se mostr_ara enfadado com a excitação reinante . . . ( 1L Fleiuss, A S emmza, p. 120, R io 191 5). A pacificação chocava-se com as i<léas de castigo, de eliminação, manifestadas por J ulio de Casti lhos, d. documento cit. por Alfredo Varela, Rcs . .dvita, p. 369, Rio 1935.
70 PEDRO CALMON
Campo Osorio pela cavalaria legalista. .11orreu o almirante no "entrevera", selando, com o sacrifício novelêsco, um sonho malogrado: o '"ideario" de Gaspar.
Cinco dias mais tarde, faleceu F loriano.
O general Galvão de Queiroz apalavrou-se, em Pelotas, com J óca Tavares, em 10 de Julho. Era o armistício virtual, garantido pela paz prometida, com a anistia, que o Congresso - remoendo razões difíceis, incompatibilidades irreconciliaveis - concedeu afinal : a anistia de 19 de Setembro de 1895, plena e conciliatória, assim aos revoltosos do sul como aos · da esquadra, a militares e civis, restituídos aos póstos e aos cargos numa larga medida de clemen<::iit.
VI
A PACIFICAÇÃO
O quatrienio d e Prudente de :Morais integrou o regímen na normalidade legal.
Dispensou da mística revolucionária a evolução repu'blicana, correspondendo ao cansaço, á consternação do país de finanças esgotadas, credito abatido, populações separadas por odios excusaveis. Sobretudo se prevaleceu da confiança das claSGes conservadôras - aterrorizadas pelo florianismo - e da simpatia dos antigos rebeldes -aliciados pelo generoso perdão - para impôr a ordem civil sem timidez.
A tremenda provação de 1893 mostrára que a solução das armas era ilógica na democracia do voto, da palavra.
O próprio Presidente foi o exC'mplo da vitória paci
fica e hábil sobre éU5 forças materiais : poder-se-ia ter economizado aquela revolução, esperando pelo pleito, que o sagrou. A imoaciencia dos anti-florianistas destruira as ;:io~sibilid~des ele restauração da monarquia, os inimigos
72 PEDRO CA L MON
fórtes da R epublica, e tambe~ o militarismo, como sua fórma permanente. A marinha anulára-se como fatôr de opinião. O exercito queria voltar á missão apolitica, profissional. A lavoura e o comercio pediam paz, para re,cuperar os dânos sofridos. Restava o desarmamento espiritual, nas zonas do "jacobiniismo". "O túmulo do marechal Floriano foi transmudado na arca de aliança da rebeldia impenitente ... " (62). Aquiétados os moços da ~ua do Ouvidor, que se não conformavam com a anistia dos insurrétos, o país retomaria o seu ritmo constitucional.
A epopéa tdos sertões
Foi preciso um acontecimento eispantoso, para que Prudente consumasse com a ·sua intrepidez civil a "conisolidação ", de Floriano. Esse acontecimento foi a «campanha de Canudos", diversão das cóleras " jacobinas" excitadas com a concordia do sul. Os mitos creados com o regimen - salvação da Republica com a descoberta dos sebastianistas, identificação dos restauradôres que, a ameaçavam, conspirações monárquistas - exageraram a significação d'um modesto chóque sertanejo, entre um destacamento punitivo e os fanaticos de Antonio Conselheiro.
Canudos foi ma~s invenção de publicidade nefasta do que arraial de i;evoltosos. A' beira do Vasa-Barris, no municipio de Monte Santo, no mais isêco interior da
(62) Euclides da Cunha, Os Sertões, S.ª ed., p. 293.
H1sTORIA SocrAL Do BRASIL 73
Bahia, "sertões" calcinados pelas estiagens, onde os carac
teres humanos adquirem o aspecto desolado e agressivo da flóra rala e feia - úm "monge " cearense, Antonio Con
selheiro, fundára uma aldeia de fieis. Sexagenario semilouco, vestido de uma tunica comprida, cabelos e barbas
incultos, uma cruz pendente do peito magro, o ascéta não era original nem perigoso. Outro~ "monges" perambulavam - menos sociáveis, mais estúpidos - p_elas "caatingas" do nordéste, pelos caminhos do centro e do sul, mesmo nas regiões lavradas pelos colonos estrangeiros. A matança dos "mukdens", em São Leopoldo, em 1874, fôra - entre. alemães - produto da mesma psicóse. A Canudos sucederia o Contestado, em Santa Catarina .. . A gente simples seguia o falso proféta: engano já advertido pelas Escrituras. E o governo não soube distinguir do lado ingênuo do problema a sua expressão social. Explica-se o equivoco: após a vitória legal, de Floriano, se ~guçára a sensibil idade republicana, contra qualquer ajuntamento que pudésse servir de apoio a rebeldes, sebaslianistas.. . Começou deploravelmente a contenda. Comprára o "monge" a negociantes de Joazeiro umas madeiras
para a igreja que construia em· Canudos - povoação de cinco mil casebres, che.ia de "jagunços" dóceis ao Con,::elheiro. Houve obstáculos á entrega. Irritaram-se os fanaticos, anunciando a intenção de ir tomar a mercadoria. Achou pre{erivel o governador do Estado, conselheiro Luiz Vianna, expedir uma centena de homens, que os dispersassem em Uauá. Se a expedição fosse numerosa, a lenda de Canudos não se teria formado. Os "jagun-
74 PEDRO CALMON
ços", porem, apercebidos da debilidade do destacamento, saíram contra ele, alçando estandartes, de rosarios chocalhando ao pescoço, brandindo as:., armas rústicas, em torvelinho velhos e criançaJS, como se se tratasse de res-guardar o seu santuário, e do governo queria prender. soldados foram destroçados,
o "monge", a quem a gente Surpreendidos em Uauá, os
repelidos em desordem, caça-dos pelos campos : uma catastrofe.
Em outra epoca seria um "caso" no policiamento do sertão: mas a imprensa, interessada em documentar o perigo 1que corria o regimen contra o optimismo conciliadôr de Prudente, alarmou o país, sacudiu a opinião de norte a sul, romantizou a rebeldia, manipulou noticias graves, ligou sentimentalmente a repres6ão de Canudos -no interior da Bahia, ponto que não se via nos mapas -á rua do Ouvidor. O "Conselheiro", em 1895, disséra não reconhecer a Republica. Possivelmente - argumentavam os exaltados - era um instrumento dos "restauradôrns" ( 63). Precisava ser esmagado, antes que o incendio se espalhasse ...
E foi esmagado.
Apenas as proporções x:la t ragédia deixaram perplexo o país.
(63) Nenhuma prova existe de entendimento entre os politicos e o " Conselheiro". Das investigações policiais quanto a comboios de armas em direção a Canudos, Elysio de Araujo nos dá um relato sem conclusões, Através de meio sec11lo, p. 111, S. Paulo 1932. No espolio do fanatico_ nada se encontrou em abôno das suspeitas.
HlSTORlA SOCIAL DO BRASIL 75
De fáto, o "Conselheiro" não compreendia a Republica. E a Republica não compreendeu o "Conselheiro" . .. Decerto lhe disséram - em 1890 - que a Igreja se separára do Estado, o caisamento civil dispensava o religioso, o lema da bandeira era ímpio, suprimira-se o "Deus guarde" das saudações, emfim, o regimen começára acatólico... O "beato" ligou facilmente as ameaças policiais á nova ordem de cousas; deu-se como perseguido pelo antiCriGto; concentrou em Canudos a. ralé celerada dos " sertões". O governo - em contra-partida - considerou o demente um revoltoso; localizou-o, na sua "fortaleza" da "caatinga"; atirou-lhe - em substituição ao contingente destroçado - meia 'brigada, que. lá não chegou, e, a seguir, uma brigada inteira do exercito nacional.
Proseguimento da crise
O dissídio na política federal deu um colorido novo a cnse.
O vice-presidente da Republica, eleito com Prudente. era o Dr. Manoel Vitorino Pereira. Revelára-o o regímen. Grande medico, orador admiravel, considerado um dos chefes do "republicanismo" na Bahia, tinha os requisitos pessoais para galvanizar os florianistas cujo chefe natural - Castilhos - ficára no Rio Grande. A divergencia de mentalidade, entre presidente e vice-preisidente
-- do primeiro governo constitucional - se projetou sobre o segundo. Prudente orientava-se para a pacificação fria:
76 PEDR O CALMON
queria a ordem. Vitorino tendia á realização dos fins espirituais - poderíamos dizer, místicos - dessa Republica á maneira dos vencedores de 1894: entusiastica, extreme, estética. . . Seguramente a diferença temperamental entre os dous altos magistrados não afetaria a vida
do Brasil se a grave enfermidade de Prudente não désse ao jóven substituto eventual a sua " oportunidade". Adoeceu o presidente em principios de Novembro de 96. Para 6er operado de calculos vesiculares precisava transmitir o governo. Operação difícil. Ao diagnostico sombrio se somava o depauperamento do enfermo. Manoel Vitorino assume a direção do país em condições raras. Poucos acreditavam no r tôrno de Prudente. Dir-se-ia que a sua vida perdêra, com a anistía de Setembro, a própria razão de ser. O astro adventício fulgurou sobre o horizonte tran6torna,do. Folgaram os adversários <lo homem moderado que pretendêra asfixiar a exaltação republicana. Reparassem: Deodoro fôra um converso, Floriano um militar, Prudente um juiz. Com Vitorino, começava série distinta: dos "portadores de ideal". . . A rua do Ouvidor tripudiou então sobre o infortunio do P residente que ia morrer e promoveu festas interesseiras em honra do suceissor. Vitorino não soube, ou não poude evitá-las. Sent iu-se estável. Aliás, tinha reisponsabilidades definidas : não era um suplente, mas o "indicado pela nação", para a vaga. . . Inaugurou, em 24 de. Fevereiro de 97, o palacio do Cattete, como séde do governo. Ciênte do fracasso da segunda expedição a Canudos, escolheu um oficial famoso para comandar a terceira: o menos suspeito aos "jaco-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 77
binoo", Moreira Cesar - com artilharia, quatro 'batalhões de infantaria, um esquadrão de cavalaria. . . Para pôr côbro áquilo ! Foi popular: estatura de Presidente moderno; outro homem - aplaudiam os jornais, espicaça-_ dos pelo recrudescimento dos boatos de insurreição restauradôra ...
Mas Prudente recuperou a saÚ?e, Escondêra no seu repouiso a irritação que lhe causára a politica de Manoel Vitorino. Não disséra palavra. A noite de 3 ele Março - cálida, num verão propicio ás "vilegiaturas" - passou-a o vice-presidente na Tijuca. No dia imediato, sem se fazer anunciar, surgiu no palacio do Cattete o velho presidente. Repetia a cêna de 15 de Novembro de 94. Tomava uma casa vazia. Dependurou num cabide o chapéo e mandou um recado ao substituto : Reassumira o govêrno.
Uma decepção forte girôu pelOIS corredôres do Congresso. A oposição a Prudente estrugiu a 1Sua cólera coe
lrênte: então quando a Republica estava "em perigo" se perseverava em abandoná-la? - Com isto, indigitavam a anistia, que acoroçoára o 1Sebastia-nismo . ..
O Partido l\fonarquista reorganizára-se ( manifesto de 12 de Janeiro de 96) com uma guarda velha, que era bem guarda de honra: Ouro Preto, João Alfredo, Andrade Figueira, Lafayette, Car!Ct.s Affonso, no Rio de Janeiro. O coronel Gent il de Oastro, intimo do visconde de Ouro Preto, possuia a "Gazeta da Tarde" e geria o jornal "Liberdade", que faziam a propaganda da restauração. Eduardo Prado e Affonso Arinos secundavam, no "Ço-
78 PEDRO CALMON
mércio de São Paulo", essa campanha de imprensa. Campos Salles - que sucedêra a Bernardino de Campos no governo do Estado - mandára fechar o "Centro Monarquista". Acusava-se Prudente de não empregar a mesma energia. . . Esqueciam que a Constituição amparava as propagandas pacificas.
A intolerancia era um co,rolário da vitória armada: a violencia andava no ar.
Canudo3 explicou o r esto.
A ida de Moreira Cesar responsavel pelas exe-cuções de Santa Catarina - déra hierarquia á obscura guerrilha. Mandára-se um "puro". E' imaginar o espanto público - a 7 de Março, quando a excitação era mais viva - ao chegar a noticia de que a triunfal expedição se eisfrangalhára num desastre inaudito. Moreira Cesar? l\forto. O coronel Tamarindo? Morto. A 'brigada? Despedaçada. O arh1amento? Tomado. Mil e tantas carabinas Comblain e lVIannlicher. Munição para um ano de cêrco. Os "jagunços" poderiam substituir as suas "lazarinas" por espingardas do ultimo tipo. A temeridade do coronel - lançando-se á frente da tropa contra o arraial, para expungi-lo a arma branca - déra em resultado a transformação de 'Canudos numa praça forte. Os sertanejos andrajosos chamavam ironicamente de "fraqueza" do governo á "força" do governo. Enchiam o deserto com o seu clamôr selvagem. "Morra a Republica, os maçons, os protestantes" - era o seu grito inconsciênte. O exercito fôra ultrajado na prnsôa dos oficiais, assassinados .na retirada, extirpados, dependurados ás arvores,
HrsToRIA SocIAL no BRASIL 79
degolados depois de mortos, deixados pelas estradas, assinalando os limites do "Coniselheiro", novo Estado no Estado, espécie de Menclik ( a literatura fazia comparações) no seu retalho de Etiopia, zombando dos brancos ...
Vitorino expedira Moreira Cesar: mas a indignação se voltou contra Prudente. O poyo amotinou-se. A rua do Ouvidor voltou aos seus dias terríveis, do "jacobini8mo" incendiário. Num instante foram empastelados os tres pcriodicos monárquicos. Magótcs de exaltados depredaram, na rua do Passeio, a casa de Gentil de Castro. Procuravam o "sebastianista". Surpreenderam-no na tarde do dia seguinte, na estação de São Francisco Xavier, quando tomava o trem para P etropcifü, em companhia de Ouro Preto e Afonso Celso : foi cobardemente
assassinado. O visconde e seu ilustre filho salvaram-se em condições quaisi milagrosas (64). O "Club Tirad entes" decidiu agir em defêsa das instituições, sobrepondo-se
\ao governo. A oposição parlamentar apoiou com frenesí essa atitude pre-revolucionária. Açulou a desconfiança elo exercito, ferido nos seus melindres. O ministro da justiça, Amaro Cavalcante, tevé de ir aplacar as iras na rua do Ouvidor ( 65). A grossa expedição que foi bater Canudos, sob o comando do general Artur Oscar, inspecio -
(64) Affonso Celso, O Visconde de Ouro Preto, p. 196, Porto Alegre 1936.
(65) Vd. discurso de Ruy Barbosa no Senado, 6 de Novembro de 1897, em que descreve a situação do país na crise "jacobina".
80 PE DRO CALMON
nada pelo ministro da guerra marechal Carlos Machado Bittencourt, acompanhada de abundante material, - não o aquiétou. Lográra-se desacreditar o P residente da Republica, cujos sentimentos foram póstos em duvida. Tolerancia e cumplicidade, pareciam sinônimos. . . A Escola Militar trepidava de indignações ruidosas. Os motins de 1895 reproduziram-se. Tinha em deposito 50 mil cartuchos : requisitados pelo ministerio da guerra, os cadêtes se negaram a entregá-los (26 de Maio) . Essa provocação descobriu o voluntarioso, o intimorato, que se ocultava sob o aspecto glacial de Prudente. Deu ordens fulminantes. Dous navios de guerra postaram-se diante da Praia Vermelha e tropas das tres armas correram á Escola revoltada. Os- rapazes despertaram do seu delírio, entregando as armas. E logo uma atmosféra de respeito modificou o clima de impopularidade do governo: a· ordem, mantinha-se ...
Supremacia do poder pessoal
Mas o caso dos cadê~es era episódico. A verdadeira luta travava-se no Congresso, onde a representação republicana, graças á normalidade constitucional, lembrava a agitação atrevida do ultimo parlamento do Império. Franci1Sco Glicerio dizia-se general de vinte brigadas, aludindo á disciplina das bancadas estaduais á sua voz de comando, como interprete daquele Partido Paulista, que era o do Presidente. Creára, para dar um pouco de coesão a essa
HrsToRIA SocrAL oo BRASIL 81
politica, o Partido Republicano Federal: coligação dos partidos estaduais a que pertenciam os re,spectivos governadôres ( o Paulista, o Riograndensc, com Castilhos; o Paranaense, com Vicente Machado; da Bahia, com Luiz Vianna, de Santa Catarina, com Lauro Muller, do Pará, com Paes <le Carvalho. do Es,tad~ do Rio, com Porciuncula, de Minas Gerais, com Affonso Penna).
N uma carta a Bernardino de Campos (antes da doença), desabafára Prudente : "Sei que os jacobinos têm me odio - e tornam-se dia a dia mais arrogantes - .í. proporção que vão sendo animados pelos chefes - generais Quintino e Glicerio: e logo que se si ntam com forças para 6ubstituir-m e por algum "general " - que faça a política forte do Marechal, não adiarão para o dia seguinte. Mas emquan to não chega es~e dia - continuarei meu caminho - traçado pelo meu programa de governo, que é o mesmo do Partido Republicano Federal, cujos chefes têm-me creado dificuldades e embaraços, dizendo-se amigre ". E num remate: "Estou cada vez. mais enojado da
política e dos politicors" (66 ).
Pois o deputado Seabra apresentou uma noção de congratulações com o governo pela sua severidade no caso da Escola Militar. Equivalia a um petardo. Os que a apoiassem - ficaivam com a conduta legal e intransigente do governo, contra o jaco'binismo; mas os que a combatessem, teriam 06 aplausos do club T iradentes, dos florianistas e da rua do Ouvidor. Glicério, em nome de suas
(66) Doe. in Motta, Uma Grande Vida, p. 272.
82 PEDRO CALMON
vinte brigadas, opôz-sc á moção numa linguagem tímida. Preferiu recordar comovidamente as tradições republicanas ela Escola, as gloriosas parêdes, o,s alicerces beijados respeitosamente pelo mar.. . Nunca se viu numa ati tude mais estranha e mais temível. Caíu naturalmente a moção do deputado bahiano - que, com a sua iniciativa oportuna, desvendava o mistério daquela incompatibilidade 60-
turna, entre Prudente e o seu general parlamentar. Caiu por 86 contra 60 votos.
A resposta do Presidente foi indiréta e mortal.
Constou de uma "varia" elo Jornal do Comercio. Di
zia apenas que Glicério "não interpretava perante o Congresso a politica do governo" ...
Essas palav ras anonirnas ditSsiparam as brigadas e demoliram o " leader". O presidente da Carnara, Artur Rios, demitiu-se. Seis dias depois, a luta se circunscrevia em torno desse logar. Os governistas sustentavam o nc,me de demisionário e Glicério fez-se candidato contra ele. Quintino agourou, na imprensa, a intervenção militar ( 67).
Insensivelmente voltavam os tempos sobreisaltados do
conflito entre Lucena e a assembléa. O novo Lucena não
mudou; matS a assembléa hão era a mesma. Glicério foi
derrotado (88 contra 76 votos). Sumiu-se, pela brécha
que no Partido Republicano Federal abriu esse revéz.
Não conseguiria reeleger-se no ano imediato ...
(67) Tobias Monteiro, O Presidente Campos Salles na Europa, p. LXXVIII.
HJSTORIA SOCIAL DO B RASIL 83
O ultimo choque
Ficavam contra o Presidente nove governadores, a começar por Julio de Castilhos, cujo procurador, no Senado, era Pinheiro Machado. Estavam com ele os de São Paulo, Minas, Bahia, P ernambuco, Rio de Janeiro.
' O equilíbrio tornava-se mais instavel.
Contaria d'outra feita com a tropa, para reprimir um motim, a,friar, na rua do Ouvidor, os animas afogueados?
Artur Oscar e o marechal Bittencourt cuidavam de ultimar a guerra de Canudos : um novo desastre seria fatal ao governo.
A questão presidencial deu á separação dos partidos um sentido prático: as eleições de 1.0 de Março. São Paulo ( solidariamente com Prudente) indicou Campos Salles (68) . Pernambuco dava o vic~-prn,idente: Rosa e Silva. Aquele, civil, antigo ministro de Deodoro; este, correligionário do barão <le Lucena. A oposição lançára os nomes d'um discípulo e d'um auxiliar de Floriano : Lauro Sodré e Fernando Lobo. O fim d'uma querela começada em 1891 . . . Manoel V itorino fôra requestado pela coligação de Glicério, Quintino, Barbosa Lima. Os símbolos continuavam a ter vida própria. A "pacifi cação" civil de um lado, a " espada salvadôra", do outro. Mas o florianismo, invencível com Floriano, esbarrava na firmeza sevéra de Prudente.
(68) Oliveira Lima, Memorias, p. 85.
Oad. 7
84 P EDRO CALMON
Em 5 de Outubro o rugido de Canudos extinguiu-se, num horizonte de hecacombe. A' frente de 5. 800 soldados, Artur Oscar árrazou a cidadéla. Acharam numa sepultura o corpo do "Coooelheiro", numa furna alguns sobreviventes agarrados ás clavinas, pelas choupanas abrazadas montões de cada veres. . . Um traço de sangue fechou o capitulo. Quantos prisioneiros caíram nas mãos dos vencedores? Nunca se soube. Porque não chegaram . . . ( 69). Foram sacrificados, aos lótes, metodicamente - numa explosão de adio barbara que empanou o brilho do triunfo. Este, realçára o heroísmo do exercito, das policias de vários Estados, sobretudo da Bahia, resi:stente e estoica. Aquele exagêro de crueldade ( «as degolas truculentas e atrozes de Artur Oscar em Canudos", acusou Ruy) encheu de tSUrprêsa, de indignação crescente, (70) os meios idealistas. Os estudantes de Direito da Bahia lançaram um protesto bravio (Methodio Coelho, Vital Soares, Abílio de Carvalho, Madureira de P inho, Celso Spinola, Elpidio Canabrava, Ariston Martinelli, Raul Alves, Raul Passo, H eraclito Carneiro, Augusto Pedreira Maia, Henriques de CatSaes, Afonso Maciel Filho ... a geração que despontava) erp 3 de Novembro de 97. Ruy Barbosa - que reclamára da tribuna o castigo dos crimes de Março, no Rio, aplaudiu os moços : quando os estadistas se faz iam crianças, era justo que crianças se fizesisem
(69) Braz do Amaral, Historia da Bahia do Imperio á Republica, p. 375, Bahia 1923.
(70) Doe. in Rocha Pombo, Historia do Brasil, X, 432-3. Rio 1914.
HrsTORIA SocIAL DO BRASIL 85
estadistas. Um academ(!::o de medicina, Alvim Horcades, contou, num opusculo, o que vira (71). E surgiu Euclydes da Cunha, para marcar com um estilo agreste e soberbo os contornos á Iliada humilde: homenagem de um sonhador da Republica á bravura sem história dos fanaticos do "Conselheiro" . ..
O assassinato do Marechal
Vitoria: - rejubilou-se o povo. O marechal Bittencourt chegára da Bahia com o coração contente. O Presidente fingiu não ouvir as intrigas dos adversários que lançavam contra ele o exercito. Quiz - a 5 de Novembro - assistir pessoalmente ao desembarque dos primeiroo conting.ente1S que voltavam do inferno sertanejo.
Aconteceu então o esperado. P rofetizára-o Ruy \ (disse no Senado, no dia seguinte) ao considerar a impunidade dos delitos um incitamento para as violencias maiores. . . Gritos de viva F lot'iano - saudaram hostil mente o Presidente, que não se perturbou. A' porta elo Arsenal de Guerra um anspeçada do 10.0
- o cearense Marcelino Bispo, de 24 anos - at irou-se, de garrucha em punho, sobre o grupo que se formára á roda do chefe de Eistado. Tres vezes negou fogo a arma. O marechal Bittencourt e o coronel Mendes ele Morais atracaram-se com o criminoso, que, aos ,trambolhões, munido já de um
(71) Uma Viagem a Canudos, p. 114, Bahia 1898.
86 PEDRO CALMON
punhal, a um tempo fugia ás mijos daqueles oficiais e os atingia com a sua lamina. Quando foi dominado, jazia mortalmente ferido o ministro da Guerra, e com o abdomen rasgado o coronel Morais (72) .
Poucos momentos mais de vida teve o marechal Carlos Machado Bittencourt.
Salvára, com o .seu sacrificio, o Presidente. Não fôra isto, e o "simile" de L incoln estaria completado, pelo holocausto, na hora do regozijo civico .. . Em Março, Gentil de Castro; cm Novembro, o proprio Presidente da Republica.
Essa "demagogia do revólver" - como lhe chamou Ruy - abusára da ação diréta.
A figura de Prudente avultou naquele dia trágico. O manií'esto incisivo que endereçou á nação, prometendo não desertar elo clevêr, emocionou a alma generosa da cidade, o espírito público ludibriado pela exaltação das ruas. Como que uma trégoa triste se abriu, para dar passagem aos clespójos do militar cheio de nobreza vítima de sua dedicação, da honra de seus bordados. Ela'borou-se uma lenda de frieza heroica em torno de Prudente, quando, desprezando 06 cautelosos avisos elos amigos, saiu a pé, acompanhando o feretro. Ganhou, numa jornada lugubre, a popularidade alijada nos dias felizes. O exercito - como que petrificado pelo atentado, que só podia ter sido concebido por alguns insensatos - acalmou-se com cligniclacle.
(72) Vd. Felino Guedes, O Marechal Carlos Machado Bittencourt p. 43, Rio 1898.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 87
5 de Novembro é uma data terminal.
Acaba aí, na porta do Arsenal de Guerra, com a vida exemplar do marechal Bittencourt, o ciclo das agitações crônicas e latentes.
A policia persegue os jacobinoo, e emudece-os.
Os exaltados tratam de escapar, ás malhas do processo.
Manuel Vitorino, inocente, sem outra culpa alem da presunção de beneficiário, como substituto eventual de Prudente e seu antagonista, amargou no acaso político a decepção de uma denuncia, élJS mortificações da insidia partidária ...
As urnas, em 1.º de Março, déram o poder a Campos - Salles. Não as urnas leais, de uma Republica apetrechada para realizar a democracia: mas os governadôres, que supriam o eleitorado. . . Pleito sincero? Não se cogitava disso, num regímen mal firme, na sua débil estrutura, nas
\ bases trémulas, quando o problema da ordem era agônico, premente.
Prudente não pedira, c:m 1894, bôas eleições, o que seria pueril, em plena guerra intestina; pedira apenas eleições. Graças a elas, entalára a Republica nas suas faixas constitucionais. Não pensára desinteressar-se da
própria sucessão, como Floriano. Bafejando o nome de Campos Salles, que tinha direitos iguais á alta magistratura - ( como ele propagandista, mais do que ele, ministro e presidente de Estado) guardava para São Paulo a situação dominante. Punha de manifesto a importancia de sua organização, o seu interesse em verte'brar, aprumar o
88 PE DR O CALMON
regimen, com um forte governo civil - numa epoca em que os ,demais Estados' diispunham de partidos ficticios ou governadôres assoberbados por dificuldades ingentes, incapazes, por isso mesmo, de lhe incutirem a necessaria confiança. Sílvio Roméro definiu o dilêma: oligarquia ou anarquia (73). Com aquele pessimismo de Eça de Queiroz : ditadura ou conquista ...
O Pacificador não deixou em meio a sua obra de normalização do país. Nem a ela se limitou. Devéras, pacificando permitia, indicava o resto: solução favoravel dos _litígios internacionais, restauração financeira, incremento economico, civilização e cultura.
Até 1897, a Republ ica é uma experiencia.
A partir da Pacificação, até 1910, é construtiva e operosa.
Mas os acontecimentos se encadeiam, solidários. Sem Deodoro não haveria o 15 de Novembro. Sem Floriano não se consolidaria a Republica. Sem Prudente não prevaleceria a ordem legal, com a tolerancia e a prosperidade, a reparação dos erroo passados e o largo progresso. ·
(73) Discursos Academicos (saudação a Euclides), I, 326.
VII
A RECONSTRUÇ.ÃO
A mistificação economica dos primeiros dias da Republica - com o cncilhamento - empurráram para o abismo o crédito publico.
A guerra civil não podia reerguê-lo.
Nas dóbras da contenda, entre o cesarismo e o civilismo, havia de insinuar-se o interesse estrangeiro - da fi nança internacional - pelo 6eU capital que ficára desamparado, pelos dividendos suspensos. O tratado de comercio de 1891, com os Estados Unidos, foi providencial a Floriano, porque, com a ajuda da diplomacia de Salvador de Mendonça (74), fixou a simpatía da grande Republica pelo governo do Rio de Janeiro . Graças a essa aliança, arranjou o marechal a esquadra suplementar, com que acabou a revolta no mar. T eve <linheiro para aguentar a ordem periclitante e resistir á pressão européa. A Europa
(74) Oliveira Lima, Memórias, p. 146.
90 PED!{O CAL:i\ION
era em iése favoravel á revolta, encarada com esperanças eloquentes pelos mercados de Londres (havia 100 milhões esterlinos empregados no Brasil) (75), de Paris, de Lis
bôa, de Roma.
A razão era prática.
No Congresso de \Vashington, um senador falou intuitivamente - em tentativa das potencias européas de re-monarquizar o Brasil.
Era falso.
Aquelas potencias começavam por não rodear de cuidados especiais a pessôa do Imperador exilado, cuja po
breza, digna, silenciosamente tSofricla, destacou melhor o seu caracter estoico. D. Pedro II, como recusára, em 15 de Novembro, a hospitalidade da esquadra chilena surta na Guanabara, confessava em Paris, aos brasileiros que o
procuravam, um desejo ingênuo, de prestar á pátria tServiços desinteressados, no seu ostracismo:· á imigração, á educação... O governo português naturalmente veria com
satisfução e desafôgo a restauração do trôno de Bragança : a propaganda republicana, a que se tSeguira a revolução do Porto, ganhára lá uma animação insólita, uma verosiinilhança imediata, com o banimento da dinastia brasileir~.
Daí, em parte, o papel relevante que desempenhou Augusto de Castilho no epilogo da revolta da armada: e o nati
vismo enfurecido, dos florianistas, contra o comercio por-
(75) James Wells, Revista da Sociedade de Geografia, tomo
III, 184, Rio 1887.
HISTORIA Soc 1AL no B RASIL 91
tuguês, o rompimento diplomatico, o delicado restabelecimento <l e relações no governo de Prudente de Morais (mi6são <le Tomás Ribeiro ) ...
Mas as a(in idades entre Saldanha e a Europa eram de
natureza mais concréta. A Europa desconfiava da Repu
blica jacobina que lhe "bloqueava" o ouro aplicado na America, os 30 milhões da divida externa, existente em 1889, e propiciaria o advento d'uma administração que cumprisse os contratos, e pagasse.
A bancarôta
A' alucinação de 1890 se seguiu, já tardia, a moderação de 1891, logo, com a restrição dos negocios, as falencias encadeiadal:3, e o crack, do fim daquele ano. Desman
telou-se o castelo de cartas. A montanha de papel bancário \ desmoronou-se ·sobre um público aturdido, que continua
va a sua estupefação: de 15 de Novembro, da rutila jornada do encilharnento, da des ilusão das québras. . . V iuse que tudo fôra artificial. As especulações não podiam prolongar-se. As empresas tinham rótulos e ações, ma6 não tinham produção; as "concessões" vendidas eram apenas idéas; a jogatina absorvêra o negocio real; a miséria
substituia a inflação; desencanto amargo, volta ás reali
dades tradicionais, pessimismo paralizante . . .
Sobreveiu a luta. Esgotou-se o erario nacional. Floriano teve de lançar mão de .:f 2. 500. 000 do lastro dos bancos e 80 mil contos ele papel moeda d'uma emissão que
92 PEDRO CALMON
nem siquér lhe autorizára o Congresso (76). Displicente em relação· aos numeras, encomendára ainda material de guerra e navios, sendo o ultimo contrato, lavrado na vespera da posse de Prudente, de .dous milhões esterlino~. Vencida a primeira prestação, de 300 mil libras, não havia
cambiais para a remes1sa. . . O emprestimo de seis milhões de libras negociados pelo presidente civil, importava a confirmação do descrédito: fôra feito ao tipo de 85 (15% ele abatimento), talvez uma das menores cotações da bolsa de Londres. . . Resolve o governo ( 1896) arrendar as estradais de ferro federais e põe em concorrencia, em Londres, a Central do Brasil. O sacrifido é imenso : salva-nos a timidez da finança internacional. Ninguem quér candidatar-se á exploração da principal Estrada da Republica ... E' a "crise permanente ", lastimou Bernardino de Campos,
ministro da fazenda de Prudente. Não se iludiu este: o unico fatôr capaz de neutralizá-la, seria a confiança.
Outra mentalidade politica. Paz interna. Entendimentos dirétos. A eleição de Campos Salles depois da aquiétação das ruas, da vitoria republicana. Por isso, eleito o sucessôr, aconselhou-lhe a viagem á Europa, para discutir com os banqueiros as finanças do país e estabilizar a divida,
sustentando o cambio, atraindo capitais, normalisando re
lações. A viagem, por outro lado, era uma propaganda: depois de tantas incertezas, aparentava um regimen conso
lidado; e belamente representado por um cidadão respei-
(76) Tobias Monteiro, O Presidente Campos Saltes, p. LXII.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 93
tavel, saído da terra do café, coração economico da Republica, disposto a dar ordem aoo negocios ...
Regeneração financeira
Bernardino de Campos acertou o acordo do "funding Joan", que Campos Salles - em 10 de Abril de 98 -foi ajustar na Europa. 01egava então ao Rio o representante do London & River P late Bank autor do projéto (77) o sr. Tootal. O contrato definitivo é de 15 ele Junho. Consiste o "funding" numa operação fictícia: um emprestimo de consolidação. Emitiam-~e "bonus", a juros de 5% e prazo de 63 anoo, representando os juros acumulados, que formariam a divida nova. E ra a melhor cousa no momento (78). Porque abrangia os juros devidos ás companhias inglêsas e francêsas que tinham empregado no Brasil capital garantido pelo governo ( eram treze) : assim poderia ele cuidar da reorganização interna e ainda seduzia as iníciativa,s estrangei ras. Mas forçava a administração a duras economias: a principal delas, a incineração de papel moeda (a Republica emitira 521 mil contos!) á propor
ção dos títulos do "funding" emitidos. De fa to o cambio se normalizaria .. . Mas a crise de numerario se agravá-
(77 ) Calogeras, Formação Historica do Brasil, p. 444, Rio 1926.
(78) Vd. Nuno Pinheiro, A' Margem da Historia da Republica, p. 117, Rio 1926.
94 PEDRO CALJ\ION
ra. A alta cambial (a taxa alcançára a casa de 6, em 1898) feriu fundo a lavoura. D eclarou-se, no fim de 1897, a crise do café. Quando enriquecia o Estado, depauperava-se o particular. A situ,ção economica entenebreceu-se, em contraste com a melhoria dos negocios públicos.
A vocação do segundo preGiclente civil estava determinada: sanearia o tesouro. Prudente deu-lhe bôa política; e ele fez bôas finanças. Deixou o cambio a 12, tres milhões depositados em Londres, resgate de títulos ouro no valor de 4.400. 000 esterlinos, de papel na importancia de 115. 997 contos ...
Os banqueiros
Os capitais estrangeiros - afugentados na "decada republicana" - acharam de novo os itinerarios do Brasil. Vinham caros e fecundos, com usura e oportunidade, regateados e propícios, emprestados com juros devoradôres e indispensaveis ás realizações vastas. Um calendário de negocios excelentes para ' OS banqueiros, mas materialmente úteis para a nação retardada, a t ra111sformar-se: 1901, "Rescision ibonds " , para a cncampação de estradas de ferro. 1903, para as obras do porto do Rio de Janeiro, 8. SOO. 000 libras ( tipo 90 e 5 % ) . 1906, para o Lloyd Brasileiro, e já ao par, 1.100. 000 libras. Até aí, emprestam Rothschild & Sons. 1909, 100 milhões de francos ( Banco de Parils e Paizes Baixos) para a construção da
H1sToRI A SocIAL no BRASI L 95
Noroeste, 40 milhões para o porto de Recife.. . Dcvéras a riqueza exploravel é tão abundant e que a propria agiotagem internacional, endividando o país, não lhe embaraça o progresso: compromete-o, mas o fertil iza. Peores são os emprestimos pedidos para obras improdutivas, " deficits"
orçamentarioo, remodelações urbanas , construções suntuá
rias, que constituem um engôdo do prestamista, com a desmoralização do devedor ( famosos emprestimos estaduais e municipais cujos titulos, irretri buiveis, haviam de
pezar no crédi to e na fama do Brasil ... )
E' o ciclo das migrações do dinheiro. A éra dos bancos. A moda de aplicarem as suas economias nas
miragens dos trópicos os pequenos capitalistas ele Paris e de Londres. U m "americanismo" confiante.
Assim cm 1911 . E' a plenitude desse capitalismo ten
tacular. Destinaram-se naquele ano ao Brasil, em fran
cos, 331 milhões oriundos de França, 336. 596 mil da Inglaterra. O capi tal estrangeiro <l istribue-se então: 6 bilhões no Brasil, 4 bilhões na Argentina, 1 bilhão respecti
vamente no U ruguai, no Chile, no Mcxico ... (79)
(79) Georges Lafond, L 'Effort /rançais eii Amérique L a
tine, ps. 104-5, Paris 1917.
VIII
O R.EGIMEN DEFINIDO (Sintese e critica)
Não é a republica dos meus sonhos .. . - queixaramse os " puros". A principiar por Silva Jardim, Benjamir. Constant, padre João Manuel, que déra o primeiro "viva" á nova forma ele governo, em 7 de junho de 89, e do seu isolamento, em Minas Gerais, atacava os marechais; pelo generaliss imo Deodoro que confessou a Oliveira Lima sofrer duplamente, elo fisico e do mora l ; Ruy Barbosa, Quintino. . . Experimentára ela duas fases opóstas . A anarquia das ruas e a onipotencia do poder armado. Flutuára, en tre um extravagante federalismo e a abolição tácita das autonomias estaduais. Provára os mais diversos climas políticos : o idealismo das primeiras medidas, a luta regional pelas posições, o choque entre os " fundadôres" e os " organizadôres", o abandono da Constituição pela necessidade de or<lem. Corréra depois muito sangue. Prudente não se aguentára ao sabôr das idéas, mas por força
HISTORIA SOCIAL DO BRASI L 97
das circunstâncias. O país varrêra de Gi a fa ntasia dos dogmas francêses, que o tinham empolgado nos ultimos anos do Império. Queria trabalhar. Pedia paz. Nessa atmosféra de saturação, de desencant o e fadiga, é que submerge a Republica teórica, que. não fôra exequível, e se impõe a Republica que pudemos ter. A que foi possível. . .
Com a monarquia se extíng1,1íram nominalmente oo partidos. Nomeára Deodoro para governar os Estados oficiais do exercito ou republicanos da te rra, que montaram, empiricamente, a maquina do regímen. Fariam cousa melhor se houvésse luta. O acúmnlo de adesões dificultoulhes o trabalho. A sobrevivencia dos partidos antigos, transformados cm grupos de interesses, ensejou uma separação imperfeita. De resto, onde quem não era conservador era liberal, contando-se pelos dedos os republicanos de antes de 1888 - os interesses estavam naturalmente delimitados. Quem caíra com o golpe militar? A facção liberal, de Ouro Preto. Doutrinas á parte, folgavam os conservadôres. . . Mais se regozijaram com a subida de Lucena, que acentuava a simpátía de Deodoro pelos correligionários de outr'ora. Os rapazes de colete encarnado, os "propagandistas", os liberais, acharam em F loriano a sua estréia polar. Navegaram com ela. Lucena derrubou os
governadores da oposição; F loriano repetiu a manobra com os governadores da situação. A revolta da armada plantou entre os dous campos uma balisa trágica. Mas os florianistas ganharam o pre6ente e perderam o futu ro. Hostilizado por eles, P rudente de Morais alcançou a confiança dos vencidos. A sua pacificação exacerbou os irredu-
98 PEDRO CAL:MON
tiveis. A ·sua fírmêza conteve-os. Glicério julgára valer, com as vint,e e uma brigadas, como uma força moderadôra ou intermediária, acima do Presidente, (80) que não tinha a espada doo m;:,_rechai s nem a mística dos " republicanos".
O Partido Republicano Federal era ilusório.
O presidencialismo ( só então se déram conta disto) não se harmoniza facilmente com partidos nacionais : a sua base são os Estados, e os Estados são os governa<lôres.
Prudente, na sua "fleugma", viu melhor que Glicério,
na sua audacia.
Uma "varia" do Jornal do Comercio dissipou o patronato da agremiação, cuja vida, enÍanguescente, se prolongou até 1.0 de Março, quando, nas urnas, foi sagrado o sucetSsôr de P rudente. E leição fraca, sem possib!ii<lade <lc sttrprêsas, prólogo de conciliação cspérta, mostrava mais desânimo - em face d'uma luta impertinente - do que atrito de ideais.
Os homens apartavam-se antes por suas tendencias, pelo passado, por uma coerência, a que se apegassem. Silveira Martins, Ruy, os amigos pernambucanos de Lucena, com Rosa e Silva á frente, Luiz V ianna e os velhos conservadores da Bahia, ' (81) como Severino Vieira e
(80) Glicério, por exemplo, qu1z impôr a Luiz Vianna a exclusão de Ruy Barbosa do Senado. O governador da Bahia, opondo-se á manobra, reelegeu Ruy (Fernando Nery, Ruy Barbosa, p. 100).
(81) Sobre os fátos da Bahia, Braz do Amaral, op. cit., p. 367.
HISTORIA S OCIAL DO BRASIL 99
Seabra, José Tomaz Parciuncula no E stado do Rio, sustentam Prudente, combatido pela fina flôr do florianismo: Castilhos (e Pinheiro Machado), Lauro Sodré, Bar'bosa
Lima, Lauro Müller, Vicente Machado . . .
Politica dos governadôres ,
O presidente, porém, é um civil, que tem na lei a sua segurança, a razão de ser. Não podendo mais demitir governadores, como Deodoro e Floriano, e precisan do do Congresso para as medidas essenciais, abandonou - com
um translúcido senso pratico - a idéa de Glicério e Castilhos, do partido, e inaugurou o sistema "dos governado
res". Prudente iniciou-o, sobrepondo aos congr~ssistas, solidár ios com Glicério, os governadores, solidários com ele ; mas Campos Salles lhe deu a consagração final.
"Nada mais convinhavel e cômodo ao poder central - estigmatizou Ruy -, cuja oligarquização, para se consumar, e se considerar eetrnizada, não necessita<va de mais que de vêr executada a oligarquização dos Bstados. Desde aí a intervenção nos Estados encontrara a sua norma conciliatória, mediante um tacito ajuste entre eles e a União. Uma troca de atribuições e uma cessão mutua de garantias harmonizavam as diferenças. O Governo Federal entregava cada um dos Estados á facção, que dele primeiro se apoderasse. Comtanto que se puzesse nas mãos do P residente da Republica esse grupo de exploradôres privile-
Cad. a
100 PEDRO CALMON
giados receberia dele a mais ilimitada outorga ... " (82). " L onge de 6e mostrarem ciosos ele autonomia local, os partidos nos Estados disputam o apoio violento e inconstitucional elo Presidente ela Republica ... " (83 ) O "autono
mismo" é, por vezes, reação veemente. Por exemplo, no Estado do Rio, em protesto pela "derru bacia "florianista, quando - em 1895 - se fére a eleição disputada pelo <lep01.,to presidente Portella. E ste, na oposição, tem 10.137 votos, contra Mauricio ele Abreu, 20 .068 (84). A idéa não dá para vencer, mas congréga . . . Demais disto, ironiza o romancista em 1911, "duas Câmaras que se apuram, se elegem, se pagam, sem a menor importancia do papel sujo que as fórmulas ainda preparam e que suprem representar eleições que não se realizaram. . . e vinte governadores .e presidente de Estados que se revezam, se conchavam, se traem e nos exploram ... " (85) "Nenhum ideal coletivo . .. " (86)
"Um dos flagelos que desgraçam hoje este país -continuava Ruy, esboçando o programa do fugaz P artido Republicano Liberal, em 1913 - 6ão as chamadas oligar-
(82) Ruy, O Art. 6.0, n'.0 3, Documentos Parlammfares,
Intervenção Federal, XIV, 469, Rio 1921.
(83) Carlos. Maximiliano, Comentários á Co11st. Eras., 3.ª ed., p. 158.
(84) E lysio de Araujo, Através de meio seculo, p. 148.
(85) Afrânio Peixoto, A Esfinje, p. 470, Rio, 1911.
(86) Oliveira Vianna, Pequenos Estudos de Psicologia Social, p. 104, S. Paulo 1922.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 101
quias estaduais, que o Governo da União acoroçôa, explora, sustenta e agrava, servindo-se, para isso, já dos exercitas militares de mar e terra, já do exercito civil, que o nosso inumeravel funcionalismo lhe proporciona. No dia em que a União deixe de ser o guarda-costas das oligarquias locais, e entre a velar seriamente, com as atribuições que a Constituição já lhe dá, e as que a reforma constitucional lhe der, contra os desregramentos, pelos quais, no!! Estados, se anula ou subverte o sistema republicano federativo, a autonomia dos membros da federação começará, desde logo, a ter fóros de verdade, e a política brasileira deixará de ser, como é, Q sindicato dos Governadores presidido pelo Chefe do Poder Executivo" ( 87) . Este, "o sol do nosso Gistema ... "
Em 1891, a formula fôra : obediencia ou intervenção. Em 1898: defêsa mútua. Produziu os seus frutos, já na sucessão de Prudente. A Concentração (ala governista do Partido Republicano Federal ), cujos nomes mais
\ evidentes eram Bernardino de Campos, Aristides Lobo, Severino Vieira, Ubaldino do Amaral e Tomaz Porciuncula, acertou a candidatura <l'um correligionário e conterrâneo do Presidente. Campos Salles ! Dali saíu Severi
no para o telegrafo (89). No dia seguinte, Luiz Via,nna
(87) Comentarios á Constituição Federal Brasileira, textos col. por Homero P ires, V, 17, S. Paulo 1934.
(88) Paulo Prado, Retrato do Brasil, p. 211, S. Paulo 1929.
(89) Sertorio de Castro, A Republica que a revolução destruiu, p. 151, Rio 1932.
102 PEDRO CA L MÓN
lançava - como iniciativa da Bahia - aquela candidatura. Severino seria ministro da viação de Campos Salles e sucessôr, no E stado, de Luiz Vianna. Assim, os Estados apareciam, em vez dos partidos. Pczavam, como entida
des políticas que teoricamente dispunham de tantos mil
votos. De fato, valiam como unidades de força. Quantos Estados teria o Presidente? Contra P rudente tinham fi
cado n Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e o P ará . . . N'outros tempos d ir-se-ia : o partido liberal. Agora, á americana: o sul e o extremo norte .. .
Os dous partidos
Duas agremiações estaduais são vivazes: os Parti
dos republicanos paulista e rio-granclense, exatamente oo que tinham antecedido á Republica.
Acham, porém, o segredo de sua preservação num
processo antagônico: o de São Paulo dá sucessivamente tres presidentes e faz a grande política, derivada de sua robustez econornica; o dq sul se rctráe, recuperando, no
regionalismo, uma força crescente, e limita-se - irresistivelmente - á pequena politica, A tendencia paulista é
expansiva, a rio-grandense é de fixação. O malôgro elas idéas de Castilhos na Co111st ituinte federal por certo lhe desatára n'alma o fel das renuncias, que se tornam inconformidade1 revolta intima, cisão virtual. F azendo diferente das demais a Constituição do Estado, ('a "ditadura com-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 103
tista ", chama-lhe Ruy BarbÓsa) (90), determinára-lhe um isolamento metódico, compativel com a sua particularidade geográfica, iniludível u;pmto próprio. N ~turalmente outra seria a configuração política do Rio Grande se vingasse, coptra Prudente, uma candidatura florianista, haurida das mesmas fontes ideologicas do castilhismo. Castilhos elegeu Borges de Medeiros, que governou, ao todo, vinte cinco anrns. Essa singularidade deita a sua raiz numa tése - o positivismo - ; numa condição - o partido "orgânico", que fundára o extraordinário homem de ação que fo i J ulio de Castilhos; e numa decepção - a paz de 1895. E aprumou-se, graças ao sistêma erigido pelo mesmo Prudente: a política do:- governadôres. Se os " federalistas" houvessem dispôsto de um apoio federal, semelhante ao que Floriano <lispensára aos republicanos cm 1892, a gtwrra civi l te ria, sem duvida, alterado esse panorama de tintas uniformes e perspectivas calmas, que perdurou até 1923.
Borget; de Medeiros reduziu as ambições rio-grandenses no áml>ito nacional, para que lhe não perturbassem a vida interna, do Estado solidamente firmado na "organização" castilhista.
O partido republicano paulista, ao revéz, se fazia no Estado a politica diuturna, era para a nação que volvia os olhos experientes. O "rio-gran<lense" era uni-pessoal,
c.Ie mão forte, dogmático, com Castilhos e depois Borges;
(90) Ruy, Conferencia 110 Politeama, 24 de Maio de 1897.
104 P E D R O CALMON
o " paulista" era colegiado, aristocratico, dirigido por um
estado maior, cuja unidade de vistas foi mais aparente
ou exterior, do que real. Provou-o o "shisma" de Gli
cério. Mesmo a vontade do Presidente da Republica e membro <lo partido se exercia com reservas. Prudente preferia Bernardir,o de Campos, e teve de aceitar Campos Salles, então governador de S. Paulo, para a sua suces
são : (91) em breve se deçlarou a dissidencia paulista,
encabeçada por J ulio de Mesquita, apoiada pelo ex-pre
sidente ...
Esses dous partidos, emfim, em me10 ao desconcêrto
geral tiveram um poder de coesão e a sua bandeira, dü,ci
plina aguerrida e inteligencia condutôra, que assegurariam
a estabilidade do regímen com o auxilio de uma força
compl/:men'tar,,; oonservadôra e numerica, que lhes suyria as insuficiencias inatas. O Estado de Minas. Formava Minas o centro - moderado e cauteloso - de alas
divergentes : a mentalidade civil de Prudente, o "irreden
tismo" floriani,;fa •de Castilhos. Campos Salles ,soube desenvolver a politica do antecessôr, que apresilhára á si
tuação federal o concurso mineiro, graçrus ao "sistêma dos
governadôres", e Pinheiro Machado completou a aliança
elos tres Estados. Essa união, estabilizou a concórdia.
(91) Sobre a divergencia entre Prudente e Campos Salles,
vd. carta de 1890, cit. por Motta F ilho, Uma grande vida, p. 275.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 105
A máquina
Campos Salles, embora candidato de luta, de Prudente contra Glicério, ou, por uma abstração doutrinária, de Deodoro contra Floriano, a cuja sombra se aliára Glicério - no seu programa declarou que não pertencia a
esta ou aquela facção, mas ao' Partido republicano hi1.,tórico (92).
N'outras palavras: pertencia aos seus antecedentes, a s1 mesmo ...
Reconhecido por unanimidade, batalhando pelo credito nacional, cujo valor imponderavel é a confiança, sem interesse por uma reorganização partidária, bastando-lhe
a do seu Estado - levou a "política dos governadôres " ás extremas consequencias. Aceitou-os todos. A começar por Borges de Medeiros ( e Pinheiro Machado) ... Para cativá-los áquela solidariedade indispensavel - alegando a conveniencia de ter Congresso que lhe referendasse as propostas financeiras - ordenou um critério novo para o reconhecimento dos congres,sistas que acaba
vam de ser eleitos. O critér io oficial - e porque não dizer, oligárquico? - d.e abrir a porta aos que viéssem
confirmados pelas juntas apuradoras . Estas eram manipuladas pelos governadôres. DC1St'arte, fariam eles a re-
(92) Alcindo Guanabara, A Presidencia Campos S alles, Pq· lítiça ç Finanças, p. 31, ~io 19041
106 PE D RO C A LMON
presentação ; e eles só. E fizeram - com o protesto vivo
e t repidante da dissidencia paulista, de uma oposição esparsa, idealista e escandalizada.
O Rio Grande - para continuar em paz - estava
de acôrdo. Pinheiro destaca, no Senado, o perfil anguloso e empolgante de caudilho parlamentar. O ciclo de sua influencia, decisiva, na política do país, inicia-se nesse
episodio, para só expirar com ele mesmo, em 1915.
Transformou-se em "leader" dos reconhecimentos de di
plomas, árbitro, primeiro como representante de Castilhos,
depois por conta própria, de parte desse Co11gresso cuja
porta de entrada se fazia gradualmente mais difícil: para
entrarem obediêntes os que não chegavam - e foram tão poucos! - em nome de oposições locais restritas e indo-
maveis ... C:·
Visitando Belo H orizonte, quatro mezes após a sua
posse, foi Campos Salles banqueteado pelo presidente do
Estado, Silviano Brandão, que lhe assegurou " apoio in
condicional.
O "apoio incondicional" era a peça que faltava para
a regularidade desse singélo Gistêma astronômico, Pre
sidente. do mesmo teôr ideologico do antecessor, gover
nadores seus correligionários, como satélites, municípios
enfeudados pelos governadôres e rep resentação nacional,
solidária com eles e, portanto, com o P residente, centro,
ele 11ma harmoni(l. monotona (.! inflexível,
I-IisT01tr.'\ SocrAL Do BRASIL 107
Depois, como antes, o Presidente interviria, para a escolha dos governadores. . . (93).
Desilusão ...
A Republica comprou o seu farto periodo de paz com um quinhão largo de idéas.
Articulára-a Deodoro com a unica organização possivel, em 1890: o exercito. Campos Sa11es exigiu uma unifonniclade parecida: a máquina do governo.
Em Jogar dos comandantes de distri to, de 1889, os govemadôres, de 1899.
E a agitação partidária, o ardôr dos postulados, os principias?. . . Abriga-os a imprensa vivaz, e se refugiam nas capitais, onde a inquiétação - sob o amparo da lei, que é liberal, e da autoridade, nem sempre intolerante -se instala, e permanece. O interior silencía. Ou, como
\ durante as "derrubadas", do Imperio, por vezes se ilumina com o clarão de insurreição breves. Ruy Barbosa alvitra - maior na prégação energica, em nome da verdade constitucional, que podia definir melhor do que ninguem - a solução razoavel e j uridica.. Seria a re.vit,ão da Carta de Fevereiro, para temperar o presidencialismo
e restaurar o regímen nas suas linhas liberais. J ust iça . e representação. Liberdades substanciais: de opinião, de
(93) V d. Mauricio de Lacerda, Outras revoluções virão .. . , p. 36, Rio 1932.
108 PEDRO CALMON
reunião, de cornsciencia e voto. . . Ha quem fale - em 1899 - em socialismo. Corno na Europa ! (94) Os vencidos mais radicais, que não tinham apagado a sua flâma, , das jornadas militareis, põem em Lauro Sodré esperanças lancinantes: preparam a revolução. A política dos governadores equilibrára a 6Ítuação federal e fortalecêra-a, mas - obstando ás mudanças de cenário, á periodicidade das dominações locais, inspirou a rebelião como "ultima ratio". Reagrupam-se, ao mesmo tempo, os monarquistas: Andrade Figueira é então a GUa figura mais cornbat_iva. Tramam a sua conspiração de saudade -pelo velho liberalismo - e desforra - pelos agravos de 97. Silveira Martins néga-lhes solidariedade (95), descrendo do golpe, e, depois,, a policia de Campos Salles os persegue. Esse incidente de 1900 encerra uma fase ele latentes intranquilidades, que, a partir de então, se circunscrevem, aos arraiais da ortodoxia republicana : oposição verbal de Ruy, em nome da Constituição desrespeitada, revitSionisrno preconizado por ele no jornal "A Imprensa" (1898-1901) ; prédica revolucionária de Lauro Sodré e Barbosa Lima; desencanto e revisionismo de Manoel Vitorino cm 1902; impopularidade de Campos Salles, em virtude das "depurações" do Congresso, dos impostos que creou ( apelidam-no de Campos "sêlos "), da crise econom1-ca, acentuada pe;la quéda doo preços da exportação, angus-
(94) Vd. Martim Francisco, Contribuindo, p. 62, S. Paulo 1921.
(95 ) José Julio de Silveira Martins, Silveira Martins, V· 412,
HISTORIA SOCIAL DO BRAS[L 109
tia da lavoura, perplexidade do comercio premido pelas taxas impiedosas, do programa do ministro da fazenda, Joaquim Murtinho .. .
l
Um republicano historico confidenciava em carta ( 1905) : "De mim penso que uns restos ele mocidade nacional estão nas almas de meia cluzia de sexagenarios dos bons tempos de outr'óra. Entre esses desfibrados e jóvens imbecis tenho ás vezes vontade de perguntar a um Andrade Figueira, a um Lafayette e a um Ouro Preto se já fizeram vinte anos" (96).
Centralização
O nosso presidencialismo era plástico. ' Providencial ou infecundo, creador ou destrut ivo, indispensavel ou nominal, conforme a apl icação que lhe déram. Utilizando-o com igual firmeza, Prudente aquiétou o país, Campos Salles restaurou --lhe as finanças, Rodrigues Alves fez melhoramentos públicos; Afonso Penna desdobrou a viação. Com o presidencialismo Floriano e Hermes modificaram a fisionomia da federação, W encesláo Braz restabeleceu o seu equilíbrio politico e empírico. Cada homem, portanto, valia por uma interpretação inesperada da Republica. E esse peroonalismo propagava-se, do centro para a perifer ia, com a mesma nitidez. A experiencia de Glicério,
(96) F. Venancio Filho, Et1clide.s da Cunha a se11.s amigos, p. 154.
11 0 Pr; DRO CALMON
com o partido nacional, não pudéra mais ser renovada. As tentativas de mudança de rumos, na surprêsa d'uma consulta optimista ás urnas, haviam de coincidir com acl sucessões presidenciais : parece11do uma reação, contra o personalismo, realmente o confirmava. Ao homem que baixava prentendia impôr-se· o que subisse, oferecendo á coletividade eleitôra melhores garantias de representação e justiça.
Emquanto viveu, foi Ruy Barbosa um candidato implícito. Apostolizava o contra-personalismo, o anti-confo rmismo, a "republícanização", numa refórma profunda, de hábitos e idéas. Por isso, em 1909, o marechal fôra consagrado candidato por uma Convenção de governadores, e R uy - corrétivamente - por uma convenção de mumc1p1os. Aqueles sobrepujaram a estes.
Até 1930, a Republica se manteve sobre esta base solida, crúa e visível: o seu "estatismo" (poder presidencial incontrastavel) é feito de "estadualismo".
O presidente
Bagehot descobriu, na Inglaterra, além da Constituição legal, a "convencional" . Mai,s agudo na sua analise,
Sidney Law achou, sobreposta, á "convencional", uma Constituição "real" . . . Esta, no Brasil, discordava [~S
sencialmente da Carta de Fevereiro. · Nesse regímen ha uma figura política que adquire
crescente, irresistível autoridade: é o Presidente.
H1sToRIA SocIAL oo B RASIL 11 1
A monarquia - dir-se-ia - vingou-se da Republica, legando-lhe, de começo, a desconfiança "positivista" doo governos débeis: em contraste com eles, surgiram os de braço forte, pessoais, gradualmente omnipotentes. Deodoro e Floriano representam a fase incerta e tumultuosa da comsolidação: foram expressões isoladas, "providenciais ", na história das instituições. O presidencialismo tem em Prudente o primeiro magistrado civil, imbuido da teoria de sua função, empenhado em pacificar e organizar.
Por mais energico e estoico que fosse Prudente, e111 comparação com os sucessôres fez um governo fraco.
Resistiu-lhe o Congresso ; a sua vontade generosa, como no caso da anistía, por pouco não se anulou, vencida, na atmosfera de odios jacobinos em que a oposição lhe preparou e moveu luta feroz; e houve de prevalecer-se de acontecimentos emocionantes - como o assassinato do ministro da guerra - para impôr definitivamente a ordem. Pretendeu regulamentar o artigo 6.0 da Constituição ( intervenção federal nos Esta.dos) : e os partidos paulista e rio-grandense frustraram-lhe a intenção, em nome da au tonomia estadual que não tolerava restrições (97) .
A severidade republicana de Prudente agarrava--t,e áquela esperança d'uma ação diréta e sincera do governo
federal qu e puzésse em bom caminho os assuntos estaduais. Pedia que lhe déssem o direito de chamá-los á ordem. A
"intervenção", que desejava, devia s er legal e frequent e:
(97) Alcindo Guanabara, A presidencia Campos Salles, p. 26.
112 PEDRO CALMON
reparar-se-ia assim <!- impotencia aparente do governo federal, d'outro geito forçado a interferir tardia e violentamente, á moda de 1891 ...
"O regímen federativo, advertia ele, não funciona regularmente". Solicitava: "E' do mesmo modo urgente que regulamenteis os preceitos do art. 6.° da Constituição não só quanto á interpretação positiva e clara do texto constitucional, como etStabelecendo o meio pratico da intervenção federal nos casos em que ela é permitida".
A recusa do Congresso foi peremptória.
Campos Sall(ls opôz-4se: era o "coração do regimen" . . . O Rio Grande não quiz.
O geito seria utilizar a arma do "estadualismo " como lhe foi apresentada: Campos Salles consumou essa tácita aliança, montando a "máquina".
Serviu-se do Congresso, por intermedio das "oligarquias" estaduais. Fez a politica de reciprocidade, que não é, por certo, a de dominação, diferença preliminar que achâmos entre o incipiente "pinheirismo", de 1900, e o "pinheirismo" supremo, de 1910.
Rodrigues Alves é um pretSidente á moda americana. Tem vontade, tolerancia e' força, nos seus atos que revelam espirita publico e coragem cívica. Faltou-lhe, em certo momento, a engrenagem. Para ser eficiente como administrador, perdeu o contacto das influencias partidá
rias, que se agruparam, renovando a cêna política, em torno de Afonso Penna. E', quanto á política individual do Presidente, uma crise benéfica. Rodrigues Alves e Afon-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 113
so Penna não manejaram as bancadas <lo Congresso com a habilidade de Campos Salles. Destacam-se os núcleos diré' tivos. Pinheiro Machado contraría oportunamente o Cattete, e a espada do marechal Hermes brilha, imprevista, nos bastidôres da intriga presidencial. O quatrienio de 1910 a 14 só não foi nitidamente o do poder pessoal e incontrastavel do chefe da nação, porque, ao lado dele, sobreleva,va o perfil imperioso do "conde.stavel ". Peor <le que um homem, predominou um sistêma: o do "grupo", que Pinheiro dirigia. Esse grupo subverteu a fisionomia política do país, derrubando quantos obstaculos se lhe antepnzeram, acabando com as "oligarquias", fundadas na epoca de Prudente e Campos Salles, distribuindo os governos locais e tentando crear, em bases nova,s, uma situação "pinheirista" que, se prevalecesse, extinguiria a mecânica das compensações estaduais: S. Paulo, Minas Gerais . . .
\ Rodrigues Alves e Bueno Brandão - os dous Estados intactos - derrotaram Pinheiro, elegendo vVencesláo
Braz. A morte trágica do vice-presidente do Senado, em
1915, e as preocupações do governo em tempo de guerra, puzéram de manifesto a utilidade de um presidencialismo temperado, legitimista e complacente. E' a bonança, após
a procéla. Dependia dos homens. Epitacio Pessôa fez um governo de iniciativas individuais, de inspiração própria, de atos rigorosos: fugiu á regra, no principio e no fim. No principio, porque não era "estadualista"; e no fim, porque não cuidou de sua sucessão, entregue ás for-
114 PEDRO CALM O N
ças "estadualista,s", em conflito com a "reação republicana". Contenda eleitoral, inconsequente como em 1909; exacerbação da juventude militar; reaparição do marechal Hermes; revolta do forte de Copacabana, em 1922 ...
Praticamente, dispunha o Presidente da maioria do Congresso, da quasi totalidade dos governadores, dos meios necessarios para administrar como quizésse. Foi um isoberano de prazo certo. Tirando da America do Norte a doutrina de sua autoridade, de muito a ultrapassou na realidade brasileira. Faltaram-lhe, para imitar o estadista de Washington, o Senado Federal, censôr da administração, a Côrte Suprema, fiscal da constitucionalidade das leis, e a ciosa autonomia estadual. Filiou-se ao tipo latino-americano dos presidentes organizadôres, creadôres, poderosos, sem oo quais não se compreende a diisciplina social nos paises recentes e heterogênos.
Salvador de Mendonça, signatário do manifesto de 1870, estranhava em 1913: "Dentro em pouco, se não é este já o fáto, o Presidente da Republica será o poder unico no Brasil " (98).
A União e os Estados
Dir-se-ia, em 1891, fadada a federáção a desarticular-se com a rebeldia inevitavel e lógica dos Estados "so-
(98) Azevedo Sodré, Discursos Parlamentares, p. 53, Rio 1924.
H ISTORI A SOCIAL DO BRASIL 115
'beranos". Ao contrario disto, os Estados não lhe crearam dificuldades duráveis. A "soberania" era débil e
transitoria. A tendencia centrifuga do regimen estava nas
palavras e não nos fátos. Deodoro e Floriano removeram
facilmente os governadôres hostís. Até a "consolidação",
a autonomia estadual dependeu da "confiança" do presi
dente. Com a paz, o movimento centralizadôr toma duas direções: a "política dos governadores" de Prudente e Campos Sa11es e a "intervenção", pura e simples, do poder central. A "política dos governadores" assegura a harmonia total do sistêma; mais a "intervenção" é a sua garantia . . Aquela segue o destino das presidencias civilistas e cautas: faz-se isob a égide do Par.tido Republicano Paulista. A "intervenção" dra,stica é "pinheirista": tem o apelido de "salvação".
A história desse instituto de direito público é a propria história da expansão presidencialista no federalismo brasileiro.
Até 1906, a "intervenção federal nos Estados" é atribuição que exercita o Congresso, a quem o executivo e o judiciario reconhecem autoridade para dirimir as questões políticas. O Presidente não interfere dirétamente nos conflitos estaduais: mantem a ordem sem perturbar o exercido dos poderes regionais, ou transmite ao legislativo as dúvidas sobre a "fórma republicana", que é obriga
ção comum das unidades federadas. Predomina o exemplo norte-americano... Em 1906, travando-se no Mato
Cad. 9
116 PEDRO - CALMON
Grosso trágica luta partidá ria, Rodrigues Alves manda
restabelecer a ordem e sugére ao Congresso a possi'bili
dade, que encarou, de nomear interventor seu no Estado
conflagrado. Interventor á moda argentina. . . Um ab
surdo, clamou, na Camara, Carlos Peixoto; uma exorbi
tancia, disse, no Senado, Ruy Barbosa.. . Fausto Car
doso no mesmo ano, em Sergipe, pagou com a vida a sua exaltação flamejante de eloquencia romântica e filosofia
de T obias. Recebido em festas quando ia agradecer ao
povo a eleição para a Camara, dez dias depois, com um pugilo de entusiastas e a multidão fanatizada pela sua pa
lavra, depoz o presidente Guilherme Campos. Esse tu
multo de rua tinha granclêza imaginativa, sinibolismo e
originalidade. Um professor apaixonado pelais idéas
lançava-as contra o mecanismo l~al, o "statu quo", o
sistêma. com uma bravura insólita e inconsequente. Se
Rodrigues Alves désse por bem desti tuído Guilherme
Campos e lhe reconhecesse a revolta, venceria o protesto,
vingaria a reação - um pouco a escola teuto-sergipana ... - e a máquina dos. estadualismos compactos se desarran-
jaria de _ cdm,eço. Para ' Ísso, precisaria sobrepôr-se ao
Congresso. Rodrigues Alves não foi tão longe. P refe
riu mandar repôr a autoridade apeiada. Dous batalhões
ocuparam Aracajú. O general Firmino Rego intimou a decisão do governo. Foi quando Fausto Cardoso quiz morrer, num exemplo que tivesse esplendôr dramático, num gesto capaz de dar, ao episodio uma intenção mais extensa,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 117
um sentido mais durável: balearam-no nalS escadas do Palacio; expirou pouco depois (99).
Na presidencia de Nilo Peçanha, porém, o "clima" era bem diferente. Ha duplicata de assembléas no Esta<lo do Rio. O chefe da nação, tam'bem principal figu ra da politica fluminense, confià o caso ao Congresso. Relatan<lo-o no Sena.do, Antonio, Azeredo defende a tése da intervenção presidencial "de oficio", para salvaguardar a tr;i.nquilidade e a fórma republicana, perturbadas nm, Estados. Ruy Barbosa escreve ao Senado uma carta profética: acha que a interpretação extensiva do dever de intervenção a,frouxará,.' compromentendo-o :irremediavelmente, o liame federativo... Na Camara, Irineu Machado e Pedro Moacyr propõem que sejam nomeados interventôres para todos os Estados cujas Constituições discrepassem <lo modêlo federal: Rio Grande do Sul, Pará. Alagoas, Sergipe... A ni,entalid<11de ".intervencionista" empolga o Supremo Tribunal: entra na queréla, beneficiando, com uma ordem de "habeas corpus", uma das assembléas do Estado do Rio... A questão de 1910 careceu de importancia, porque o governo federal "reconheceu" assembléa e governador de suas simpatías, maneira americana e legitima de solução do problema da "dualidade'~. Mas 'fez escola. Foi principio de série. As intervençõeG "pinh'e\ristas" de 1911~1914 abalaram o país, de norte a sul. Os canhões ribombaram no
(99) José Calasans, Fausto Cardoso e a revolução de 1906, discurso no Centro Estudantino de Sergipe, 28 de Agosto de 1938.
118 p E D R.O C A L M O N
Amazonas e na Bahia. Correu sangue no Ceará, no Pará, em Pernambuco, na Bahia. Foi por isso recebido com emoção e espanto o ato inicial da presidencia Wenceslau, mandando cumprir o " habeas corpus" que a56egurava o governo do Estado do Rio a Nilo Peçanha. . . O Supremo (resalvou o Presidente) fôra alem de sua jurisdição: porém devia ser respeitado . . . W enceslau imita Rodrigues Alves e Nilo Peçanha, encomendando ao Congresso a pacificação doo Estados: entretanto, não sofre mais duvida a competencia que tem o governo para intervir. Em 1917, um interventor apazigúa Mato Grosso. Em 1920, queixa-se Ruy da intervenção feita na Bahia sem a substituição do governador, contra cuja autoridade se tinham levantado em armas muitos chefes sertanejos. Em 1923, o presidente Bernardes intervem no Estado do Rio com interventor que afasta ambos os candidatos litigantes e propicía a creação de uma ordem nova. (100)
A Constituição não discriminára as faculdades que se contém na clausula da intervenção federal. F icavamos equidistantes das fórmulas "yankee" e "argentina". Comportou esta meúda e intensa fiscalização dos assuntos que pertencem á autonomia estadual ; e aquela os isentou sempre da tutéla federal, nos_ Estados Unidos distante e tímida. A nossa experiencia republicana creou um "tipo
( 100) V d. Documentos Parlamentares, Intervenção Federal, IV a XII, XIV-XVI. Pedro Calmon, Intervenção Federal, Rio 1936.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 119
brasileiro" de sistêma federativo. Plasmado pelas crises cíclicas do regimen ; feito de transações politicas, de choques necessarios ; peculiar á nossa evolução «det>coordena<la" e desigual .. .
Descoordenação
O estadualismo, porém, não se deixou manejar pelos cordéis d'um partidarismo coordenador.
Como se julgára - em teoria - contrária a federação ao sistêma parlamentar ( Castilhos), na pratica se considerou infenso ao presidencialismo a movimentação de um partido nacional (Prudente). Exatamente a necessidade dele reaparecia sempre que - nas crises de sucessão - os homens se tinham de entender. O nome de partido era excessivo então : havia coligaçõe,s transitórias ; ou partidos nominais e insubsistentes. Glicério poude dirigir as "vinte e uma brigadas" emquanto o poder presidencial, na evolução da luta civil para a paz desarmada, foi débil e incolôr. P inheiro, com o Partido Republicano Conservador, tentou, aproveitando-se da fraqueza do governo do marechal, sobrepôr-se á convenção das forças estaduais que devia indicar o sucessôr daquele. O estadualismo, pela voz inicial de Dantas Barreto, em Pernambuco, desligou-se sem demóra do grêmio e impoz, com a união útil de S. Paulo e Minas, a pacifica solução de Wencesláo Braz. Efêmero como o de Pinheiro, situacionista, foi o partido de: Ruy, oposicionista... A Republica de estilo
120 PEDRO CALMON
presidencial não podia articular energias morais superiores ás do governo, para subordinar a elas uma política realista, progressivamente desapegada das idéas, indiferente aos programas, ( 101) ou fiél a eles apenqs nos períodos retumbantes de publicidade eleitoral.
Ausentando-se, todavia, oo ideologos, sumindo-se o espirito de disciplina partidária, desfeitas as tradições do Império, dissociadas as coletividadas influentes, restava um embate de correntes regionais n'uma mecânica sem precedentes : as soluções violentas estariam, por certo, incluídas no s<.:u fataliismo.
E a. justiça
E o poder judiciário?
Ruy Barbosa puzéra nele uma confiança temerária: copiára-se o regímen norte-americano, porém não a educação norte-americana, inimitavel.
A justiça constitucional dos Estados Unidos formára-se numa paciente sedimentação de atos decisivos, energicos, respeitados: não se improvizára, ao sabôr das leis.
Em 1891 continuavam ministros do Supremo Tribunal Federal os do velho Supremo Tribunal de Justiça: os orgãos eram diferentes ( na força que lhe déra a Cons-
(101) Vd. Oliveira Vianna, O Idealismo da Co11stit11ição,
p. 55, Rio 1927.
HISTORIA SOCIAL 00 BRASIL 121
tituição da Republica) mas os homens iguais. Dependeria dos magistrados a inclusão do seu Tribunal entre as peças reguladôras do sistê,ma, ou o confinamento dele na aparelhágem judiciária sem projeção política? Foi o proprio Ruy, no seu desenganado senso jurídico, quem lhe tirou a prova, batendo-lhe as portas em 18 de Abril de 1892.
F loriano prendêra, na vigencia do sitio de 72 horas, quatro senadores e sete deputados. Infringira a Constituição. O remedia consistiria n'uma ordem de "habeas corpus". Se lha concedesse, ficaria evidente a influencia política da justiça, mesmo a custo de sua invulnerabilidade.. . Mas recusou, contra o voto isolado do ministro Pisa e Almeida ( 102). Neste momento, confirmava-se a supremacia do executivo. E o judiciário encetava a sua jurisprudencia hesitante, e incerta ácerca dos "casos politicoo" ... (103).
Fale, porém, o proprio Ruy:
"Distinguia-se, então, no Supremo Tribunal Federal, entre os seus ministros, um magistrado, que passava pelo mais instruído entre os seus para; - conta em que tambem o tínhamos, e temos. . . Um dia, encontrando-se em
(102) Ruy, O Estado de sitio, p. 221, Rio 1982; Fernando Nery, Ruy Barbosa, p. 68.
(103) Pedro Lessa, Do Poder Judiciario, p. 169, Rio 1915; Herman G. James, Tlze Co11stitutio11cl System of B rasil, p. 109, Washington 1923. E o juizo critico de Levi Carneiro, Pela Nova
C onstitllição, p. 43, Rio 1937.
122 PEDRO CALMON
um bonde, por sinal que na praia do Flamengo, onde a
esse tempo rcsidiamos, nos interpelou ele com expressão
de séria estranheza, perguntando :
- Ouvi dizer que o senhor vae acionar a União, em
nome dos militareis e paisanos reformados e demitidos pelo
Marechal F loriano, para obrigar o Governo Federal a rein
tegrá-los, ou indenizá-fos. Será possivel?
E' exato.
Mas como?
Muito simplesmente. E' que, no regímen de agora,
não só os atos administrativos, mas até os legitSlativos,
em sendo contrarios á lei constitucional, são nulos, e a
justiça é o poder competente para lhes declarar a nuli
dade, pronunciando-lhes a incornstitucionalidade.
"O meu interlocutor não se convenceu, obrigando-me
a lhe apontar os textos da nova Constituição, onde estri
bava a minha tese, e assim nos separamos, prometendo-lhe
·eu, para o familiarizar com a novidade, pô-lo em relações
com a grande -obra de Carson, acerca da Suprema Côrte dos Estados Unidos, obra de que, daí ha dias, lhe ofereci
um exemplar.
"Tempos depois esse Ministro mergulhava a fundo
no direito norte americano, com as produções do qual
sortiu em abundancia a sua copiosa livraria; e essas noções, cuja primeira inivocação entre nós tão extravagante
lhe parecera, nele, como juiz, e, mais tard e, como advo-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 123
gado, vieram a ter um aplicador habil, convencido e fre
qu~nte" (104).
Devéras Ruy não mudou de opm1ao, querendo que a ordem de "habeas corpus" amparasse todos os direitos, inclusive os po1iticos, na hipotese de esbulho facioso ( 105) .
O poder presidencial, porém, não se deixou convencer.
A-proposito das dualidades de governadores ou assembléas, de investiduras municipais e insegurança dos orgãos da
administração estadual, o "habeas corpus" foi liberalizado, desatendido, ílaqueado por violencia ou omissão, e ás vezes acatado, por entre manifestações de regozijo dos que ainda confiavam no predominio da toga... Melhor
afirmação de independencia tivéra ela quando, no rigôr
do sitio do quatriênio Hermes, e exigida pela censura
policial a publicação dos discursos de Ruy BarlJ:iosa sómente no "Diario Oficia:!", apelou este para o Supremo
Tribunal afim de serem as orações parlamentares estam
padas na imprensa em geral, o que reputava essencial á independencia do legislativo, que as medidas de exceção não podiam suspender. . . Expedido o mandado de "ha
beas corpus", a imprensa passou a publicar os libélos da
oposição. Oscilou, entretanto, a côrte de justiça, no seu
(104) Ruy Barbosa, O art. 6.0 Documentos Parlamentares, Int., XIV, 467-8.
(105) Ruy, Commeii/arios á Constituição (edição de Homero Pires), V, 504, Rio 1934.
124 PEDRO CALMON
critério de defini r os "casos políticos", até 1926, quando foi revista a Constituição -de 1891 ( 106). ·
Comprovava-se - por experiencia velha - o assêrto alheio: de pouco valem as leis, .sem os costumes . ..
Fim do seculo
O tSeculo finalizou com a paizagem política delinerla nos seus traços caracteristicos.
O aparêlho, be.m ou mal, fôra equilibrado, de um modo oligárquico, porém rendoso. A ebulição popular estravaza do Rio de Janeiro (a rua do Ouvidor não cedia
os seus fóros de orgão do pensamento nacional ) para as capitais dos Estados: mas o trabalho sôa mais forte do que a po'litica - e o Brasil prospéra.
De que valia riqueza sem liberdade? - lastimavam os republicanos, em 1889. De que valia liberdade sem autoridade: ? - refletiam os positivistas cm 1893. De que valia autoridade sem riqueza? - convinham os desiludidos, em 1899.
( 106) V d. nosso "Direito C 011stit11cio11al Brasileiro" , p. 187, Rio 1937. - Em 1895, não deu o Supremo "habeas corpus" para garantir o governador de Sergipe, processado pelo juiz secional:
considerou competente o Congresso. E ntendeu diversamente em 1910 (Estado do Rio), 1912 (Bahia) , 1913 (Ceará), 1914 (Estado do Rio), 1917 (Matto Grosso), 1922 (Estado do Rio) ...
HISTORIA SocIAL oo BRASIL 125
O ,signo de 89 fôra a Idéa; de 93, a força; de 99 era a civilização material, o progresso rápido, a volta do capital estrangeiro com a dissipação do jacobinismo, a síncope
do café, mas o entusiasmo da borracha, eletricidade, industrias, colonizaçfo, o cacáo da Bahia, a herva matte do Paraná e Matto ·Grosso, estrada,s, pontes, portos . . .
O seculo XX inaugura-se numa atm06fera febricitante.
Na sombra daqueles dez anos de politica, um Brasil diferen te se formára.
IX
A POLITJCA ·EXTERIOR
Rigorosa continuidade
A politica exterior não póde ser estudada, no perioclo que vimos. tratando, em conexão com as crises do regímen.
F icou á margem dele, como uma atividade que se desenvolvia segundo tradições irrecusaveis, nórmas precisas; manteve, com a do Imperio, uma continuidade que - pesadas as influencias perturbadôras, a renovação dru; mentalidades - nos parece um milagre de sentido histórico.
Entre as razões dessa coerência está a "carriere", essa profissão diplomatica bem vigiada e escorreita de outr'ora, a cuja formação se aplicára a monarquia, ·em sucessão diréta do sistêma português, dando-lhe uma importancia particular. Na America do Sul singularizou-se o Brasil neste critério, de constituir uma diplomacia de escola, em contraste com a acidental, a descosida diplo-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 127
macia das Republicas vizinhas, confiada a homens politicos assim de art iculação dificil, ele projeção desigual, sofrendo, a subitas, desnorteantes injunções partidárias.
O "sistêma elo Brasil" eleve figurar, no conjunto dos "sistêmas" internacionais do lSeculo passado, como uma linha de conduta que apenas ligeiramente se flexiona, com
\
as alterações institucionais, arrancando das origens da pátria, peculiar ao seu crescimento e á indole de ,suas relações com os países limit rofes . Os vestigios portuguêses (reinado de D . João VI) do "sistêma do Bra,sil", foram decerto preservados peJa unidade dinastica, do Império de avô, filho e neto: resentir-se-ia do espírito de familia, como, no seculo XVIII, a politica estrangeira, na Europa. Mas não era uma fórmula imperial, uma doutrina pessoal : consistia na defêsa da integridade do terri
torio imenso mediante um acôrdo juridico ( exclusão da força para as convenções de fronteiras ) e uma ação externa tendente ao "equilibrio sul-americano". No mais, o Brasil, mesmo de D. Pedro I, sempre foi americanista.
menos interes,sado em ult ramar do que no P rata, destituído de paixões agressivas, porem sensível ás alheias e por isso inclinado a aliar-se a governos calmos e constitucionais, tanto quanto desconfiava e aborrecia os ambi
ciosos e exórbitantes. Não fizera a guerra ao general Rosas para engrandecer-se materialmente. Adotando, em 1828, a independencia do Uruguai como uma condição de paz na bacia do Prata, a este principio permaneceu fiel quando circunstancias desgraçadas para a jóven Republica poderiam tê-lo tentado a recuperar uma situação
128 PEDRO CALl\ION
dominante, nesse país tão invejavelmcnte aparelhado de virtudes cívicas para uma perene vida autônoma. Seria um erro imperdoavel, justificado pelo tempo cruel: o imperialismo de Napoleão III. . . Lutando contra López, o Imperador não lhe cobiçára a terra, em 1870 terrivelmente devastada: queria, com impaciencia, restituí-la a um regimen razoavel, exatamente o que reparou os estragos da guerra, em varios decênios de normalidade, de reconstrução. Caíndo o trôno, viu-se que não havia "irredentismos" adjacentes, a pleitearem da Republica positivista, imbuida de religião da _Humanidade, do idealismo de Miguel Lemos e Benjamin, do pacifismo de Quintino Bocayuva, da galharda generosidade de Deodoro ( sentimento próprio do heróe que vertêra o sangue nos pântanos paraguai06, onde lhe ficaram tres irmãos!) -uma revisão de tratados.
Mas o "sistêma" estava encarnado num funcionário, representado por uma elite de diplomatas que a Republica aproveitou, embora distribuindo legações aos propagandistas recomendáveis por seus talentos literários.
O funcionário era o visconde do Cabo Frio. Diretor geral do mi11isterio de Estrangeiros, aceitou
a Republica, e esta a ele, com a condição de não mudar de habitas. Passou a ser a história viva da casa, sobrecarregada de perto de um seculo de grandes questões internacionais resolvidas com habilidade proverbial. Assegurou-lhe a disciplina antiga, o aspecto respeitavel, o decôro, que tornariam o Itamaratí ('palacio ocupado pelo ministerio em 1897) notavel entre as chancelarias do uni-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 129
verso. Cabo Frio fo i~providencialmente conservado: nas suas mãos seguras a política exterior da nação não de.,caíu em aventuras ridículas e iniciativas fúteiG. Sustentou-se, elevada e digna. Agarrou-se a tradições obcessivas, ilustres.
Cabo Frio e Quintino
Inicialmente, Cabo Frio e Quintino defrontam-se. Era como se se chócassem o lrppério, metódico, e a Republica, indignada com a rotina, estranhando a sábia pasmaceira de outr'ora... O problema mais difícil, que então obscurecia o nosso horizonte pan-americanista, era o do territorio das Missões, que, por pouco, em 1882, não se ext remára em "casus bell i". Fremente de ideali smo, achou Quintino de retribuir o gesto amoravel da Argentina, a primeira a reconhecer a Republica, cuja int imidade com o seu miniGtro, Enrique Moreno, tão simpatica a fizéra aos homens de 15 de Novembro. Cabo Frio manipulára a decisão de 7 de Setembro de 89, do gabinete Ouro Preto, que mandava a arbitramento a questão. Rejeitára o ponto de vista de Buenos Aires, qual a divisão fraterna do territorio contestado. Cabo Frio argumentava com o direito integral do Brasil; o governo portenho pleiteava a renuncia de metade dessa pretensão.
Quintino, a bordo do couraçado "Riachuelo", foi ÍCG
tivamente liquidar a pendencia. Assinou em Montevidéo, com Estanisláo Zeballos, o tratado que sufragou a tése
130 PEDRO CALMON
argentina, partindo pelo meio a área disputada. Reju'bilou-se a imprensa do Prata; armou-se de ásperas prevenções a do Rio de Janeiro. A opinião conservadora do B rat>il recebeu consternada aquele primeiro ato do ministro-jornalista. Foi censurado com acrimonia, comba-. tido com violencia, derrubado sem defesa, numa desaprovação, 1quasi unanime, do Congresso Nacional. Prevaleceu o parecer inflexivel de Cabo Frio. A vitória da doutrina clássica - do arbitramento - dissuadiu a Republica de nóvas experienciais do mesmo genero. Entre
gue o caso á sentença arbitral do presidente elos Estados
Unidos, foi nomeado representante do Brasil junto ao pre
sidente Cleveland o barão do Rio Branco.
Onde aparece R.io Branco
O aparecimento de Rio Branco na cêna politico-di
plornatica dependêra de uma conjunção de circunstancias
propiciais. Vago o Jogar, com o falecimento do barão de
Aguiar d'Andrada, Nabuco sugeriu-lhe o nome a Souza
Dantas, que estava na presidencia do Banco do Brasil, e
este falou a Floriano. A comissão era devida ao gene
ral Dionísio de Cerqueira, segundo plenipotcnciario: mas
o marechal preferiu o barão, ( 107) conhecido e acatado por seus estudos de geografia histórica, pela sua prática
(107) Oliveira Lima, Memorias, p. 184.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 131
dos é\SSuntos diplomaticos. Rio Branco foi muito feliz na sua missão. O laudo de Cleveland entrego u ao Brasil quasi todo o territorio pretendido (30.622 quilometros quadrados) : e projetou de repente o nome do negociador, como um insuperavel advogado em querélas de limites.
A integração territo rial, do ciclo Rio Branco, com os sucessivos tratados, que confirmaram 'oo contornos geograficos do Brasil, começou com a decisão de 1895. Cabo Frio sobrepujára Quintino. E não mais abandonaria o mi
nistério das Relações Exteriores a poderosa sugestão desse êxito.
Sobrevem o incidente da T rindade.
E' ministro de Prudente o jurisconsulto Carlos de Carvalho.
· Iluminado pela sua convicção jurídica, dotado de uma energia comparavel á do governo civil a que pertence, em
luta com a desordem ambiente, recusa a arbitragem oferecida pela Inglaterra, que 6e apossára da ilha como "terra de ninguem", e qualifica de extremamente grave a fórmula de lord Salisbury, sobre a impossibilidade de continuar
deshabitado um trêcho de solo, numa epoca de necessida
des imperiosas, das potencias. . . R esiste á Inglaterra,
usando de uma linguagem digna: e sentindo a sua semrazão - porque a Trindade sempre fô ra portuguêsa e
brasileira, retira ela a bandeira que lá plantára.
Cad. 10
132 PEDRO CALMON
Cordialidade su)camericana
Campos Sa1les fez t imbre de uma política amistosa, em relação á Argentina, sem prejuizo do cordial entendimento que vinculava o Brasil ao Chile e ao Uruguai. O ministro do Exterior, Olintho de Magalhães, desenvolveu uma hábil diplomacia de duplo alcance : confirmavamos as tradiçfüs pacifistas do regímen (polít ica dos encontros amaveis, de Quintino) e o nosso interesse pela concordia sul-americana (política de equilibrio, do Império). Não era preocupação exclusiva do Itamaratí · a aproximação da Argentina, que a segunda presidencia. do general J ulio Roca, após a sentença de Cleveland, tornára perfeitamente espontânea e natural. A situação em 1899 era grave. O Império poderia ter-se 'beneficiado da lutá de vizinhos, quando precisava resolver problemas militares próprios. A Republica, porém, vira alarmada entenebrecer-se o horizonte do continente, com o conflito de fron
teiras entre o Chile e a Argentina, países igualmente armados, prontos para a guerra, e póstoo decisivamente um em frente ao outro 12eia exacerbação de sua querela. Momentaneamente a troca de cumprimentos entre oo chefes das duas Republicas, nas aguas do estreito de Magalhães, arrefecêra o desconcêrto. Era tempo de definir o
Brasil a sua intenção de preservar a paz, por uma demonstração prévia e eloquente de neutralidade, justificada tanto pelo desinteresse nacional, ácerca da contenda entre as nações amigas, como pelas circunstancias internas, da pros-
HrsroRIA SocrAL no BRASIL 133
tração do crédito publico, da reorganização lenta das forças armadas, sobretudo da recuperação morosa e dificil d'uma armada que preenchesse os claros abertos pela revolução de 93. Culminou essa politica com as visitas do presidente Roca ao Rio de Janeiro ( 1899) e do presidente Campos Salles a Buenos Aires ( 1900). Veio Roca com brilhante séquito reafirmar ao' governo do Brasil o seu apreço (108). Correspondia com magnificencia á visita de Quintino. A viagem de Campos Salles deu uma ressonancia duradoura a esse intercambio oficial. Lá e aqui, a multidão completou o júbilo das autoridades, assegurando a ambos os governantes a veemencia dos seus sentimentos pacíf icos. Morriam, nos estridôres da festa popular, os écos doo velhos desentendimentos. E caía na balança do equilíbrio sul-americano um pêso oportuno: não haveria guerra, com a atmosféra de confiança internacional que se resta'belecêra gradualmente.
Teve ainda Olyntho de Magalhães o bom senso de não mandar delegação brasileira á conferencia da paz, de Haia, de 1899, onde se discutiram, por sugestão do tzar da R ussia; a solução jurídica dos conflitos en tre os póvos e o desarmamento geral. Em primeiro logar, da America do Sul apenas o Brasil fôra convidado, por ser a unica Republica que mantinha legação em S. P etersburgo. Seria, em seguida, irrisório pactuar com a Europa tratados <lesar-
( 108) Ismael Bucich Escobar, História de los Preside11tes Argentinos, p. 344, Buenos Aires 1934. Da visita de Campos Salles e Buenos Aires o Dr. Cesar Viale escreveu um relato 6Uges tivo (1935).
134 PEDRO CALMON
mamentistas, quando nos achavamos praticamente desarmados e num período de restauração metodica de forças essenciais ( 109). Foi previdente a nossa ausencia do
(109) Destacando o acerto da ausencia do Brasil na conferencia de 1899, em artigo estampado n' A Noite, do Rio de J aneiro, tivemos, como refôrço dos conceitos expendidos, a seguinte carta do eminente sr. Olyntho de Magalhães, antigo ministro do Exterior e embaixador brasileiro, cujo afastamento da vida publica não diminúe o seu interesse pelas questões primordiais da nossa diplomacia.
" Rio, 9 de Junho de 1938.
"No momento do convite (Conferencia de 1899) o Brasil estava desarmado, e, ao invéz, necessitado de reorganizar as suas forças. Tínhamos dous vizinhos bem armados - a Argentina e o Chile, que estavam na iminencia de um conflito por causa do litígio sobre a posse dos territorios de Atacama. A honra do convite era decerto grande, mas o Brasil foi o unico país sul-americano a ser convidado, por ser o unico que mantinha então representação diplomatica junto da corte de Nicoláo II. O Conde de Monrovieff, seu Ministro das Relações Exteriores, que eu conhecera em S. P etersburgo, desejando limitar o numero dos Delegados á Conferencia, julgou que o meio mais seguro de evitar descontentes, seria este: di rigir convites apenas ás nações acreditadas perante o Imperador da Russia, que tomára a iniciativa da convocação. A nação não poderia decerto aprovar que o Brasil, desarmado, se comprometesse a não encarar o futuro, com as suas responsabilidades e interesse na paz comum, quando dous vizinhos nossos, bem armados, não comparacendo á Conferencia, não estavam obrigados a se desarmarem. _ Na iminencia de um conflito no nosso Continente as reservas e prudencias do Governo Campos Sa11es se justificavam.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 135
congresso de 1899. O governo de Campos Salles acentuou com isto o seu sistêma pan-americanista. Não lucrou o Brasil em alterá-lo em 1907, quando Rio Branco deu á segunda conferencia de Haia a eloquente participação do nosso país com a alta voz de Ruy Barbosa. Conservou-o o barão, porem, na sua política de aproximação com os Estados Unidos, coerência diplomatíca e sentido continental a que o Itamarati se manteve fiel.
"A nossa politica não podia ser de "grandes gestos ", mas de grandes cautelas, no intuito de harmonizar os nosos vizinhos e resguardar os nossos proprios interesses. E' sabido que, depois da troca de visitas entre os Presidentes Roca e Campos Salles, melhorou a situação internacional no nosso hemisfério, e que os dous referidos vizinhos acabaram concordando com o arbitramento do rei da Inglaterra Eduardo VII, no litígio que os ia encaminhando para um desfêcho armado.
"A só demonstração da amizade que, na hora oportuna, o Brasil ofereceu á nobre nação argentina, com a qual queria ser tão bom amigo, como era de longos anos amigo sincero e le.il do Chile, teve salutar efeito.
"A política bismarckiana das ' ' altas vozes" não tinha, pois, cabimento, nem podia ser feita, sem um halo de ridículo.
"A diplomacia é, como a pintura, uma arte. Os grandes mestres, porem, dão grande relevo no contorno de suas figuras e paizagens. A arte da diplomacia é de linhas menos acentuadas, como nos "grisailles ", e por isso as suas atitudes nem sempre são entendidas e bem apreciadas pela maioria dos julgamentos.
" Eis porque muito lhe agradeço o comentário sobre o meu " retraímento prudente" neste caso, que já hoje pertence á historia."
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136 PEDRO CALMON
As arbitragens
O caso da Trindade foi pacifico.
Mas o do Amapá começára mal.
Francêses e inglêses defendiam o prolongamento daG respectivas Guianas até o Amazonas, cujo acésso o Brasil preservara ciosa e resolutamente. A descoberta de ouro no Calçoene, entre os rios Oiapock e Araguarí, alvoroçou as autoridades de Cayenne, atraíu mineradôres brasileiros. Um destes, Veiga Cabral, em 27 de Dezembro de 1894 declarou a região independente da França. Contra ele enviou o governador da Guiana o capitão Lunier com 130 homens. Os francêses entraram na vila de Montenegro e o capitão quiz prender o pioneiro, que, mais ágil, o matou com a propria arma. Travou-se um combate mortifero. Caíram 38 "caboclos" e 28 estrangeiros, retiran do-se os demais ( 110). No Rio e em Paris, a noticia desse conflito irritou as multidões. Carlos de Carvalho conseguiu encaminhá-lo para o arbitramento da Suissa; e Rio Branco foi advogar em Berna os direitos do Brasil, transparentes, visíveis. Dependia do laudo do presidente Hauser uma zona de 200 mil quilometras quadrados . .. A justificação de Rio Branco arrastou o honrado juiz: a sentença de 1 de Dezembro de, 1900 deu o Amapá ao Brasil. Foi delirantemente festejada no Rio de Janeiro:
(110) Capitão Lima Figueiredo1
Limites do Brasil, p. 14,
Rio 1?~9:
Hr~TotuA SocrAL oo BRASIL 137
e contou o ministro Pichou a Rodrigo Octavio, que a recepção popular do velho Kruger em Paris ( através de manifestações anti-britânicas, em honra do patriarca do Transvaal) aproveitou ao governo francês, para atenuar o choque produzido em Paris. . . ( 111) A Amazonia permanecia brasileira! O Congresso Nacional galardoou Rio Branco com o titulo de "brasileiro benemerito".
Não fomos felizes na arbitragem subsequente, da Guiana Inglêsa, confiada ( e não podia ser melhor a escolha) aos talentos de Nabuco.
O autor de "Um Estadista do Impérió " arredára-se altivamente da política, com o advento da Republica. Protestára contra o que chamou a intervenção estrangeira, a favor de Floriano, em 93. O ministro do Exterior, de Campos Salt:5, Olyntho de Magalhães, soube atraí-lo ao serviço do país numa comissão diplomática que não exigia uma real adesão ao regimen. Nabuco aceitou o cargo. Perante o arbitro, o jóven rei da Italia Victor Emanuel III, demonstrou em mil e tantas páginas o direito do Brasil. A sentença, entretanto, foi favonwel á Inglaterra, que, mais afortunada do que a França, obteve assim uma passagem para o vale do Amazonas. Fieis á doutrina, beneficiarios dela duas vezes, acabando de conquistar ao poderoso antagonista a posse da T rindade, tínhamos de aceitar o laudo e prestigiar o principio. O revéz não abateu a popularidade de Nabuco, reclamado, a seguir,
(111) Rodrigo Octavio, Minhas Memorias dos outros, nova :;érie, ·p. 133, Rio 193?,
138 P E DRO CALMON
para a nossa representação nos Estados Unidos, a que deu um fulgôr esplendido ; mas destacou as vitórias de Rio Branco. Em 1902 foi retirá-lo da legação de Berlin um convite insistente do sucessor de Campos Salles, Rodrigues Alves, para ocupar o I tamaratí. Veiu com dificuldade; e saíu dali, dez anos depois, para o cemitério, numa apoteose, saudado pelo conselheiro Ruy Barbosa como ,o " deus Tenninus" ...
"EI Barón"
Os sucossos, de \Vashington e Berna, e a influencia alemã sobre a sua formação de homem publico, explicam a resolução do Rio Branco, de acabar com os litigios de limites, e o caracter inconfundível, de " grande politica", de diplomacia apoiada ao respeito efetivo que deve inspirar a nação, que teve o seu longo ministério . Quatro presidentes deixaram-lhe os movimentos livres. Serviram-se de seus triunfos suces'Sivos para robustecer a
polít ica interna, e raramente o contrariaram . Poude ser ele pessoal, superior aoo regulamentos burocrat icos ,tão absorventemente ministro ( 112) como o chanceler europeu da melhor confiança de seu so'berano . Não afastou o Brasil, porisso mesmo, de suas tradições internacionais e
(112) Vd. J oão Lyra Filho, O Barão, p. 66, Rio 1936. Sobre o seu modo de trabalhar: Rodrigo Octavio, Minhas Memorias dos o,utros, 1.º vai.
HrsToRIA SocIAL no BnAsrL 139
americanisticas. O Territorio do Acre é a inicial e retumbànte consagração dos seus métodos. Juntou aí com pontualidade persuasão e força, a um tempo francez e germânico, na arte de negociar e na prontidão <los reforços mili tares remetidos cm socôrro dos "seringueiros" revoltados contra as autoridades bolivianas. De fato, as propriedades particulares dos brasileiros valia:m pelo "uti pos6idetis".
( 113) Anteciparam-se eles ás autoridades, cobrando, com armas na mão, o seu direito (114). Um dos segrêdos da política do barão era a prodigalidade. Habituára-se a considerar a economia um elemento sórdido dos paises débeis: o dinheiro gasto oportunamente é fator decisivo. O caso do Acre tomára uma feição alarmante, com a interferência do sindicato norte-americano a quem o governo vizinho transferira os direitos sobre a zona reclamada . Rio Branco pôz fóra de cêna o sindicato, para não melindrar os Estados Unidos, com uma indenização de um mi
lhão de dolares. Assim o tratado de Petropolis, que incorporou ao territorio nacional os 200 mil quilometros quadrados do Acre, constituiu um ato pacifico, amenizado pelas concessões de ordem economica, que haviam de vincular ao comercio amazonico a Bolívia. Dando por outro lado - em 1909 - meiação ao Uruguai no gozo da
(113) Leão de Vasconcellos, As terras e propriedades do Acre, memorial, Rio 1905.
(114) José Freitas Nobre, A epopéa acreana, p. 24, Fortaleza 1938.
140 PED!tO CALMON
Jagôa Mi rim, e do rio J aguarão, ( 115) o que não era novo, (116) mas constituía fraterna) convite a uma poE
tica de melhor entendimento, avivava a praxe de outr'ora, das bôas relações ele vizinhança, continuando, o segundo, o progra,ma do primeiro Rio Branco, como se o "sistêma", a que nos referimos, devêsse ser mantido sem desfalecimentos.
Zeballos e o barão não se estimavam. ( 117) AJS relações com a Argentina tornaram-se delicadas em virtude dessa divergencia pessoal, é a impressão que se tem, ressonancia afinal do choque entre Quintino e Cabo Frio. Fôra Zeballos ,signatário do tratado de Montevidéo, de
1890, triunfo adjudicado á sua diplomacia, porém recusado pelo Congresso e ,3ubstitui<lo pelo laudo de 1895. Coin
cidiram as desavença,s de chancelaria com o recrudescimento dos preparativos militares. De resto, a renovação da a rmada, que mais impressionou a America do Sul, não se dirigia contra ninguem. Tinha de sobrevir á destruição da frota do Império, em 1893, provisoriamente suprida, em 1894, por uma esquadra ele emergencia, e encomendada aos estaleiros ingleses, segundo o plano do almirante Julio de Noronha, de 1905, como uma dais conse-
(115) Vd. H. D., Ensayo de História Patria, p. 795, Montevideo 1923 ; e Jose Aguiar, Evocacio11 dei Baró11 de Rio Branco, Porto Alegre 1938.
( 116) Coronel Sousa Docca, M ensario do J ornai do C o
mércio, Setembro de 1938, p. 723. (11 7) Vd. Guilherme Guerra, O Dr, Zeballos, trad. de S.
Marchesini, p- 44, Rio J92;i,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 141
quenoías da regeneração financeira do quatrienio de Campos Salles. A exaltação dos jornais prejudicou a exata compreensão dos fátos. Exagerou-se o intuito da encomen.Ja d06 dous "dreadnoughts", que foram os primeiros, e mais possantes, a singrarem o A,t:Jantico isul : o "São Paulo" e o "Minas Gerais" ( 1908). Esses navios, rivais dOJS maiores ·do mundo, nesse ano, cobiçados pelos almirant°ados inglez e "yankee "' indicavam a importancia do nosso poder naval, e o proposito do governo da Republica de
não o deixar cair. Efetivamente , o pacifismo brasileiro 11ão sofreu, a srnaléfa de objetivos extranhos ás boas prática6 da diplomacia impregnada de espirita americano. Rio Branco fazia a política "de prestigio".
Era, por igual, a de reabilitação aos olhos da Europa, uma vez debelada a febre amarela, renovada, em tres anos, a capital federal, reconhecida a vitalidade do país na sua reação economica, após a sucessão calma de Rodrigues Alves, o tratado de Petropolits e o programa de gigantesca,s obras públicas, da presidencia Penna.
Morto Rio Branco, em 1912, Lauro Muller, seu sucessor, co111Servou com habilidade a polí tica de entendi
mento espiritual e bôas palavras, do Governo Provitsorio e do quatrienio Campos Salles.
H ouve, com a· Argentina, ·uma troca de "embaixa
dores de luxo", que compensasse a noosa ausencia nas festas de seu centenario, de 1910. De um lado, o velho
Campos Salles, d'outro lado, o general Roca, no epilogo
d.e 4ma cqrreira ~loriosa, em n}IBSÕes especiais afirmar;uq
142 PEDRO CALMON
reciprocamente a vontade de uma conciliação definitiva e prática. Selou-a com o seu timbre augusto Ruy Barbosa, embaixador ás comemorações, tambem centenárias, de
1916, como supremo representante da inteligencia brasi
leira que apregoava a sua fé nas soluções juridicas dos conflitos internacionais.
X
CAPITAL FEDERAL
1890 é o ano das imprudentes alegrias, d'uma 1·evolução de costumes mais intensa, mais profunda que a revolução politica .
Cáem as travas da hierarquia, do polido e sóbrio "bom tom" imperial. O Rio de Janeiro transforma-se nas suas camadas extremas: decóta-o, em cima, a "igualdade" republicada, e lhe asseia as raizes a pol icia de Sam, paio Ferraz. O "cncilhamento", subvertendo os valôres economicos e fazendo <lo dinheiro um ideal comum e domina!1te, destróe de subito a moderada e elegante concepção da vida que andava implícita, inherente ao sistêma monarquico, com o Senado vitalício, as honras da côrte, a tra
dição de empobrecerem os estadistas no serviço público em lugar de se !ocupletarem com êle, a irradiante, enfadonha honestidade do Paço de São Cristovão. Os barões de recentes titulas acotovelam-se noo corredôres da Bolsa ou na rua da Alfandega, comprando e vendendo ações
144 PEDRO CALMON
de companhias; e os "tilburis", que enchem o largo de São F rancisco, são tomad()IS por uma onda de milionários de fresca data - corretôres de negocio, advogados ativos, incorporadôrcs de emprêsas, políticos da nova gera. ção, os homens do dia. Destes se afastam com dignidade 06 "abencerragens", os inconformados, velhos· titulares ou políticos do Imperio que não aderiam: no ano seguinte o seu numero cresceu ,com os desiludidos. r-.-Ias
a Republica não é um movimento sómente contra Suas Excelencias, em nome de vós. V em armado de prevenções especiais contra a "capociragem", a desordem dos
'bairros populares. Sampaio Ferraz, nos primeiros dias do regímen, limpou a cidade da <<malandragem" que a in
festára cem anos, dividida por duas zonas, a zona dos nagôs, inimiga d()IS guayamús, estes protegidos dos liberais, aqueles dos conervadores . . . ( 118)
Desaparecem concorni,tantemente os "capoeiras" e os
môços-fidalgos: o símbolo da classe que prevalece é o "bonde", que une nos seus bancos burguêses - á es
quina da rua Gonçalves Dias - todos os "cidadãos".
Impéra o prazer fácil, comercial, exótico. Os cafés
estão cheios, a rua do Ouvidor repleta, os " bondes" api-
( 118) Evaristo de Moraes, Da M onarcliia á R epublica, p. !'99, R io 1937. - A história dos "capoeiras " não foi feita. De suas designações se deduz que os " guyamús ", amparados pelos liberais, eram mais nacionalistas, e os " nagôs ", de parceria com os conservadores, mais tolerantes em relação aos negociantes portuguêses.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 145
nhados. Instalam-se roletas em casas particulares ( 119), o "club" é centro de negocio, discutem-se as surpresas do "encilhamento " nas mesas das confeitarias onde se abalrôam literatos, financistas, batoteiros, "cocottes" e homens do interior, atônitos, deslumbrados. "Cidade de vicio e prazer", resumia, enjôado, Anselmo, da "Capital Federal" ...
O café
O café é a alma da cidade. Do Pascoal poderia dizer-se como Balzac, do Flo
rian, de Veneza: "instituição indefinivei ", escritório de advocacia, Bolsa, "foyer" de teatro, gabinete de leitura (120) ...
A botica de 1822, a charutaria de 1860, o café de 1890, a opera de 60, a rua do Ouvidor de 90, a marcha da sociabilidade feminina. Na dispersão das atividades, é uma concentração obrigatoria. Supre a ausencia de grêmios, o espírito associativo incompatível com a confusão desse tempo <le nervosismos desnorteantes. A inteligencia e a especulação, a galanteria e a política, a arte e a intriga molham-se de licôres nos cafés de tres ruas essenciais, triângulo economico e social da metropole: a rua 1.0 de Março, a da Alfandega e a do Ouvidor.
(119) Coelho Neto, A Capital Federal, p. 189, S.ª edição.
(120) H. E. Jacob, Biografia dei Caffé, p. 243, Milano 1936.
146 P EDR O CALMON
Em 1889, "os grupos literarios mantinham firmes as suas posições: os naturalistas, no Cailtau; os romanticos,
no Castellões; os pamasianos no Pascoal" (121). Faziam casa á parte os simbolistas, no Deroche ...
A Aca<lemia apareceu em 1896, fundada por um aristocrata, Joaquim N abuco, ·UP1 retraido, Machado de Assis: até então, o café é o salão literario, da cidade, onde surgem os poetas com o seu ar sombrio, a gravata em borbolêta e os cabelos compridos, e onde se aparam as farpas, escrevem-se artigos ele imprensa, os escritôres convivem -bebendo - o que é indispcnsavel - e fazendo frases -o que é temivel. A "boêmia" esteriliza todos os genet"os de literatura, porque a Universidade, o parlamentarismo, o jornal conceituoso, a livraria, tudo isso é substituído pelo café. Como o alcool é inseparavel do çafé, o bom gosto está em se embriagarem os rapazes de espirita: a ala da "Conquista", os que adérem em grupo á Republica em 17 de Novembro, como uma falange aguerrida - Bilac. Paulo Ney, Guimarães Passos, Coelho Neto, Pardal Mallet, é composta de boêmios de talento, que dissipam a saúde por preceito, por escola ,por moda intelectual, alguns n'uma agitação transitória, que abandonam mais tarde, outros perdidamente, ruinooamente. A primeira reunião de homens de letras, em grêmio, o Oub "Rabelais" ( 1892-95), de Araripe, Pompéa, Lucio de Mendonça, Valentim Magalhães, Raymundo Corrêa, Urbano Duarte, e, mais
(121) Coelho Neto, Fogo Fátuo, p. 41, Porto 1929.
HrsTORIA SocrAL Do BRASIL 147
jóvens, Rodrigo Octavio ('122) e João Ribeiro, consistiu numa Gér ie de alegres banquetes, o primejro dos quais no "Stad Munchen", famoso "restaurant" do Rocio. Assim faziam, em Portugal, os "vencidos da vida" . . .
A mediocridade é seria; a inteligencia é rebelde, escandalosa: e zomba do burguê6, com os ademanes que usam os poetas. A gravata e o colête vermelho dos republicanos, a cabeleira, o ar de fadiga, a bengala, o bigode de pontas levantadas, o "tipo simbolista", da epoca de Baudelaire e Rirnbaud, que não é mais o elegante exótico, da geração de Musset, de Fagundes Varela e Castro Alves.
A Republica não faz logo escola ]iteraria ( 123) .
Não vem, como a de 1789, com um corpo de doutrinas. São esparsos os d iscípulos de Tobia.s Barreto, como Martins Junior ( 124) e Sílvio Romero, e os de Miguel Lemos e Benjamin, que querem atribuir-lhe uma filosofia, uma positividade.
A dúvida de Machado de As,sis parece ser o seu sainéte espiritual. Cepticismo galante, ferino, amargo, algo desdenhoso, como uma síntese de decepções. O resumo das ilm,ões do seculo XIX, que a realidade crestára, e faziam pena, como documento de uma ingenuidade inconse-
(122) Rodrigo Octavio, Minhas Memórias dos Outros, Ultima série, p. 49, Rio 1936.
(123) Vd. Pedro Calmon, O Rei Filosofo, p. 442, S. Paulo 1938.
(124) Oliveira Lima, Memórias, p. 86.
Cad. 11
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quente... Negar, tornou-se no estilo do nos,so purista uma obcessão: é o ,seu "leit motiv". ( 125)
Parnasianos e simbolistas - ao contrario dos românticos da geração de Castro Alves - fazem uma arte contemplativa, interiorista, diáfana, que não convida á ação, mms á atitude. Bilac e Alberto de Oliveira são joalheiros do verso. Cruz e Souza, Alfonsus de Guimarães ( 126), Emiliano Perneta, destacam-se á frente dos "baudelairea
nos ". Seguem-nos Petion de Vilar (Egas Moniz), Felix
Pacheco, Nestor Vítor, Carlos D. Fernandes ... Vêm com
eles Emilio de Menezes, Mario Pederneiras, Silveira Neto. E' ao tempo em que as côres substituem os rit
mos, predomina o lilás, o visualismo de Rimbaud, descrevem-se, ou fingem-se as torturas sentimentais. O seu livro de estréa, "Rosa Mística", impresso policrômicamente em Leipzig, J ulio Afrânio (Peixoto) dedica á trindade
"que adora", Junqueiro, Eugenia de Castro, d'Annunzio ... Esses íntimos martírios, aquela angustia da fórma nos primôres verbais, correi:spondem a uma fase de transição pe
t1osa e confusa. No Brasil, revelam antes de tudo a incerteza de missão histórica, de sentido de vida e afirmação nacional, compreensão do meio e do homem - na do· lorida imitação dos estilos peregrinos.
(125) Vianna Moog, Heróis da Decadencia, p. 202, Rio 1934.
(126) Enrique de Resende, Retrato de Alfonsus de Guimaranes, p. 10; Rio 1938; Felíx Pacheco, Pa11l Vaiéry e o momtmento a Baudelaire, p. 8, Rio 1933.
HISTORIA SocrAL no BRASIL 149
Circunstancia imprevista - o chóque de 1893, a censura da imprensa, a coação do pensamento, desviando da politica - védada aos profanos - as inteligenciéllS moças, animou, apurou . a literatura.
A "Semana", de Valentim Magalhães e Max Fleiuss
- disse Bilac - revelou numerosos "valôres" jóvens, uma
geração de poétas e escritôres ( 1~7) . E' em 93 que ini
cia Nabuco a sua grande obra sobre o pae ( 128) , que de
via exercer, no meio aacional, uma infl uencia analoga :i
de Taine, sobre as origens de França.
Quem diria que as nossas infelizes lutas civis serviriam
para dar áis letras uma côr local, um nacionalismo forte -
não mais o convencional e romântico; da década de 30 -
a que não pudéram aspirar até ent ão?
Olavo Bilac compoz "O Caçador de esmeraldas" em
1894, no seu refúgio de Minas: creou o mito literario que
sugeriu, em seguida, um pressuroso movimento de pesqui
sa das fontes heroicas -da expansão brasileira, do "bandeiriGmo" . O primeiro marco dessa jornada, sobretudo em
polgante, decisiva para a formação do ·espírito civico, em
São Paulo, foi a comemoração, em 1897, do 3.0 centenário da morte de Anchieta (Eduardo P rado, Teodoro Sampaio, Nabuco, Brasílio Machado, João Monteiro, Couto de Maga-
(127) Max Fleiuss, A Semana, Rio 1915.
(128) Minha Formação, p. 301, Rio 1900.
1S0 PEDRO CALMON
!hães, padres Francisco de Paula Rodrigues e Americo de Novais). (129)
Inaugurou Nabuco a Academia, lembrando o fascinio que Paris continuava a desempenhar, sobre a nossa cultura sem originalidade ( 130). A própria Academia, moldada pela de França, não podia combater essa influencia. Foi necessário o traumatiismo social, a tragédia bruta e alegórica de Canudos, que inspirou "Os Sertões".
O livro de Euclides da Cunha( 1902) juntou ao país uma dimensão nova : a sua rude e curiosa paizagem interior.
Antes, romantisavamos, idealizacvamos o sertão, confundindo-o com a zona da mata onde floresciam as fazendas dos titula res do Imperio: era mais a região rural, cheia de interesse economico pela conjunção da iniciativa do «fidalgo" da casa-grande e do trabalho escravo, do que o Brasil sertanêjo. Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues,
- Bernardo Guimarães, José Verissimo, Afonso Arinois, com os seus contos ressumbrantes de panorama agreste ( 131) : o visconde de Taunay, nosso primeiro novelista <le cousas do sertão, - tinham substitui<lo os têmas líricos do romantismo por quadros nóvos, <le geografia histórica.
(129) III Ct:1ilc11ario do vrneravcl Joseph de A nchieta (Conferencias preparatorias), P aris 1900.
(130) Disrnrsos Acarlemicos, I, 14, e<lição da Academia Brasileira, Rio 1934.
(131) Vd. A ffonso Arinos, Historias e Paizagens, p. 226, Rio 1921; e Mario Matos, Ultimo bandeirante, p. 44, Belo Horizonte 1935.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 151
Não viram, pórém, os "sertões" bravios, tócados de uma infernal magia de coragem e fanatismo, que Euclides encontrou nas "caatingas" de Monte Santo, na rampa da Favela, no leito sêco do Vaza-Barris diante do arraial dos "jagunços". Euclides foi genial utilizando na sua descrição um estilo igualmente 'barbaro, ora de engenheiro, que mistura á sua estetica a sua técnica, ora de sociológo, que entrelaça meio e homem . . . Contou - fatôr importante de exito ·- com a curiosidade pública. Toda gente queria conhecer a verdade da carniceria que arrast:ára, para tão longe, uma parte do exercito nacional, e puzêra em risco o regímen ...
Canudos proporcionou livro e leitôres: "o unico livro digno de tal nome que se publicou no Brasil depois de 15 de Novembro", segundo Ouro P reto ... (132) O sertão tornou-se moda.
O café e a borracha continuaram a ressonancia "naturalista" daquela campanha obscura. (133)
(132) Francisco Venancio Filho, fatclides da Cunha a seiu amigos, p. 85, S. Paulo 1938.
(133) O regionalismo de Domingos Olímpio, com LuziaHomem (1903), de José Veríssimo, de Alberto Rangel, com foferno Verde ( 1908), de Gustavo Barroso, Terra de Sol, (1913), de Afranio Peixoto, Maria Bonita (1914) e seus romances de Lençóes, na Bahia; Rodolfo Teofilo; Alcides Maya e seus contos ,rio-grandenses ; Xavier Marques e suas cenas praieiras da Bahia; de Graça Aranha com "Chanaan" - parece culminar em 1919, com Urnpés, de Monteiro Lobato, que crêa o "Geca ", como tipo !iterado, como personagem que participa da vida ...
152 Pl!Dl'tO CALMON
Agitação de idéas
A ciência, em geral, a meia-ciência, em particular, demonstram o progresso das idéas.
A política é preponderante elemento dessa transformação.
A luta democratica, contra a monarquia, importava -no terreno da instrução - o dissídio entre as human.idades (muito latim) e a isabe<loria nova, entre a "artinha" e o "evolucionismo", entre o colégio do Caraça e a escola de Recife, entre o romantitSmo passado e o realismo cobiçado,
Tobias Barreto vae á dianteira, com o estandarte da emancipação do "ranço human,ista", do "aristotelismo" pretérito, em favor da cultura germânica que introduz com escandalo e admiração no ensino do direito, em Pernambuco. Fazendo popular Ha.eckel, vertendo do alemão a filosofia materialista, de isubito transporta para a área modesta do pensamento indígena o duélo - entre a "Kultur", o germanism·o autônomo, e as romanidades que ele despreza, no orgulho das vitórias recentes, torna,ndo a embraçar o escudo de Arminius, que derrotou as legiões augusteas .. . Mas o im,igne Tobias ( o mais espantoso auto-didáta da nossa historia intelectual) não ligou á sociologia a consideração conveniente ( 134). Divulgou, além da moderna inquiétação cientifico-filosofica, a Gua nomenclatura, que
(134) Clovis Bevilaqua, H istoria da Faculdade de Direito de Recife, I, 120, Rio 1927.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 153
ganhou mundo, falando á imaginação irreverente e "snob", dos semi-eruditos. A "escola teuto-sergipana", motejou Laet; (135) de fáto, a revolução mental! ( 136). Artur Orlando perdeu um concurso porque abusou do haecke
lismo. Nãó houve bacharel, em 1892 e 95, que não dissertasse sobre o monismo, ontologia, seleção natural, o seu ateismo a rrogante, e as "mentiras" de Ma,x N ordau . .. O Seculo XIX começára deslumbrado pelo para-raio de Franklin e acabava na monera, no microbio, no átomo .. . As livrarias portuguêsas traduzem, vulgarizam os sábios do dia, alemães, inglêses, francês es, instalando-os nos liceus.. . Populariza-se, pedante, a técnologia cientifica: é a ilusão da cultura!
O momento é propicio ás revisões do nO\Sso exíguo cabedal cientifico, a avaliação de quantidades esquecidas, no cálculo dos valôres brasileiros ...
O índio fôra assunto obrigatório do segundo reinado: moti1vo literario, filologico, arqueologico; e atraz dele, na sua selva, tinham andado os viajantes celebres.
Nina Rodrigues reivindicou para o negro o seu quinhão de analise. Aplicou os ultimas estudoo sobre raças e costumes d' Africa á etnologia afro-brasileira, á sua medicina legal, fundando a "escola bahiana" ( cujos expoentes csão, em 1898, os adolescentes Juliano Moreira,
( 135) C. Sus5ekind de Mendonça, Sílvio Roméro, p. 248, S. Paulo 1938.
(136) Leia-se Sílvio Roméro, Historia da Literatura Brasileira, II, 476, Rio 1903; e Hermes Lima, Tob ias Barreto, S. Paulo 1939.
154 PEDRO CALMON
Afrânio Peixoto, Manoel Bernardo Calmon, discípulos diletos do grande legista.
"Foi a escola bahíana que despertou a curiosidade em questões de patologia tropical. .. " ( 137). Iniciou, antes do Sul, a experimentação cientifica, com \iVucherer, Silva Lima, Pacifico Pereira, Alfredo Brito . . . Podia Lombroso saudar Nina Rodrigues como " apostolo da Antropología Criminal no Novo Mundo" ( 138) .
Em plano mais vasto, fundou Osvaldo Cruz o Instituto de Manguinhos, o " laboratorio" brasileiro ( 139) ...
T eodoro Sampaio antecedera de vinte anos a Euclides, enriquecendo a exposição cientifica com uma literatura realista, na previsão do que seria a geografia humana do Brasil. Em muitas paginas de sua monografia sobre o São Francisco reluzem paizagem;; dignas da moldura dos "Sertões". E ' de 1902 o seu " Tupi na geografia nacional". Ratzel e Buckle refletem-se na obra dispersiva e séria de Capistrano de Abreu : culmina-a o livro que escreveu para o centenario da abertura dos portos, "Capítulos da História Colonial ", nos quais, pela primeira vez, a compreensão dos fatôres fi sicoo-humanos iluminava os relêvos do passado. João' Ribeiro faz tambem história
(137) Clenientino Fraga, Orações á M ocidade, p. 73, Rio 1937.
(138) Afranio Peixoto, pref. a Nina Rodrigues, As Raças H ermanas, p. 7, Rio.
(139) Artur Neiva, Esbôço liistorico sobre a Botanica e a Zoologia 110 Brasil, p, 112, S. Paulo 1929.
H I STORIA SOCIAL DO BRASIL 155
nova de inspiração alemã. Deixa os antigOG modêlos e esboça os quadros sociais; acentúa a influencia do rio de S. Francisco sobre a civilização brasileira; rompe com a monotonia dos compêndi06 amedalhados pela crônica oficial. Ambienta-se dest'arte o criticismo que Silvio Roméro, fervoroso admirador de Tobias, fundára em 1880, e graças á mesma inspiração polemista e doutrinária uma sociologia adaptada ao Brasil íloresce em ensaios vigorosos. E' a epoca da filosofia do direito. As escolas ressôam em ardentes interpretações do fenomeni,smo, do transformismo. . . Aparecem Clovis Bevilaqua, Martins Junior, João Higino, Aníbal Falcão, João Vieira, Leovigiklo Filgueiras. Laurindo Leão em Recife, o joven Almáquio Diniz _e Virgílio de Lemos na Bahia, Fam,to
Cardoso, Sil vio Roméro no Rio ( 140) , divulgam os pensadôres alemães e italianos sacudindo de sua sonolência românica a,s ciências jurídicas, prósperas apenas, até aí, no direito político muito norte-americano e na criminologia antropologica, de mestre Lombroso. . . A codificação civil é que vulgariza, em 1899, o recente Codigo Civil Alemão e o projéto suisso.
E porque essa inquiétação global não clarearia a complexidade das questões nacionai,s? Artur Orlando vê o Brasil - terra e homem - segundo o método de Le P lay ; Graça Aranha descobre Chanaan ( 1902), o vale abençoado da colonização; Alberto Torres intenta orga-
(140) Vd. Clovis Bevilaqua, Juristas Philosophos, p. 133. Bahia 1897.
156 PEDRO CALMON
nizar a nação desdenhando o formalismo constitucional em proveito das soluções práticas. Não Carta politica que fosse razão de técnicos; mas tegumento do organismo brasileiro, ajustada á sua vida real. . . Farias Brito faz um espiritualismo reformador; Gonzaga Duque legisla sobre os canones artísticos num meio cm que a incompreensão do público se somava ao abandono das vocações (141); Teixeira Mendes prosegue o apostolado de Miguel Lemos com uma constancia comovente. J osé V crissimo, Carlos de Laet, Constancio Alves, Medeiros e Albuquerque pertencem á mesma falange : são os mestres da crônica.
Em literatura, Dcikens, Flaube1·t, Zola, e os russos, Tolstoi, Dostoiewski, ensinam um reafü,mo que adquire feição rústica, um tom de verdade t riste. Júlio Ribeiro ('que contraste com a suavidade aristocratica de Alencar!) é terrível no seu romance "A Carne", apodado de "carniça" peloo antagonistas ... (142). Aloisio Azevedo substitúe os tipos novelescos de Macedo pelo motivo urbano, banal , familiar ; " Casa de P ensão", "O Cortiço" .. . Raul Pompéa, Adolfo Caminha, Coelho Neto, Lima Campos, Lima Barreto, João do Rio, fazem um naturalismo a que não faltam pompas verbais:, e a originalidade de Machado, a majestosa singularidade de Machado de Assis, consiste em tratar os seus enrêdos burguêses, sem énfase e sem
( 141) Vd. Rodrigo Octavío Filho, Velhos Amigos, p. 76, Rio 1938.
( 142) Afranio Peixoto, Noçõ·:.s de Historia da L iteratura Brasileira, p. 249, Rio 1931.
HISTORI4 SOCIAL DO BRAML 157
grandeza, simples e humanos, num vernáculo gabado por Camilo.
Reação
O português castiço de Machado, protesto silencioso do romancista incorruptivel, contra a "politica" dos sole-cismos. . . nacionalistas, ficára no meio do campo, como um pendão de batalha. Valentim Magalhães levantára a gramatica contra o "ba_ndo nacionalista", dos sectarios de Alencar (143). Explicava-se, esse prélio muito do agrado de noSGas elites letradas. Sendo o nacionalismo, de 1822, de 1831 , anti-português, e vindo de Portugal as normas gramaticais, contrariadas na rua pela linguagem do povo, de prosódia e sintaxe rebelde a todo jugo, tinha um profundo sentido nativista a agressão aos clássicos, aos filólogos. . . Reacendeu-se em 1889.
D. Pedro II tentára difiundir a escrita corréta: para isso contratára José Feliciano de Castilho e aborrecêra José de Alencar. Românticos contra arcádicoo ...
Respondendo á corôa, que pretendia colocar certo os pronomes, o positivismo entrou em cêna. Não se im
portava com a gramatica: fazia questão da ortografia, de uma simplificada ortografia pooitivista .. . ~(Miguel Lemos, 1888). O "cientificismo", do fim do seculo, defron-
(143) Coelho Neto, Fogo-Fátuo, p. 42.
158 PEDRO CALMON
tava agora com os devoradôres de clássicos portuguêses, do tempo em que as humanidades gozavam de prestigio largo. A polemica entre Ruy Barbosa e E nm,to Oirneiro Ribeiro (1902-1905) filólogo da Bahia, seu antigo mestre, a proposito do vernaculo do Codigo Civil, teve o merito de ministrar aos brasileiros uma lição impressionante -e1Stavamos na epoca das calorosas polemicas de imprensa! - sobre as leis da gramatica. Pode-se dizer que a partir de então velhos e voluntarias vicias da escrita brasileira foram póstoo de lado, e os pronomes apareceram em bôa fórma.
1900 proporciona uma "renascença" de cultura humanista, inevitavel como reação aos absurdos da meiaciência de 1895 ; é a moda das leituras clás6icas, a grande extração de Vieira ( que a oratória de Ruy elevou á categoria de modêlo persistente), Frei Luiz de Souza, Camilo e Herculano.
A reação estende-se ao nacionalismo, que se bifurca, em jacóbinimo, demolidôr e flamejante, e tradicionalismo, cuidando de restaurar os padrões do passado que n06 faz honra.
O Instituto Historico, principalmente no periodo em que o preside o barão do Rio Branco ( continuado dignamente pelo conde de Afonso Celso), centraliza estudos básicos, cris@liza juizos indispensaveis, desagrava o "passado", no que tivéra de orgânico, contra a indiferença ou os vitupérioo, mantendo, nessa coerência, uma linha de conduta, que será atitude pacifica, respeitada, dez ou vinte anos depois.
HrsTORJA SocrAL no B RASI L 159
Mello Moraes Filho colige as tradições do povo, Afonso Arinos defende as lendas brasileiras, Vieira Fazenda rebusca as "antiqualhas" do Rio de Janeiro, Capist rano faz escóla, proseguindo as pesquisas de Varnhagen, arredando da historiografia nacional os erros grósS06, do tempo em que ela se elaborava fóra dos arquivos, alheia ás ciências auxiliares, repetida, cortezã, «populista" e festeira. Nabuco, Afonso Celso, Eduardo Prado, o barão do Rio Branco, em seguida Oliveira Lima, opôem ao negativismo jacobino a,s suas visões ou revisões sugestivas da monarquia: a dos estadistas (Nabuco), do Imperador (Celso), do espírito público (Prado) ou da diplomacia ( o Barão). A paSISagem deste pela chancelaria (1902-1912) reabil itou, não já idéas, como as exterioridades, o "processo" do Império, considerados pelo ministro como indicativos de um Brasil fóra da "regra geral", das republicas continentais, isolado nos seus títulos de mo
narquia unica, expansiva . ..
Floriano fôra o colête vermelho, a gravata de borbolêta e o bengalão doo republicanos "puros". Ao· contráno. Prudente governára com 06 generais. Campos Salles governára com os banqueiros. Os dous presidentes seguintes, conselheiros do Imperio, homens de outr'ora : por
mais republicanos que fossem agora não renegavam a ilustre carreira feita no regímen anterior. A policia de Afonso Penna não permite - em 1908 - o desembarque
do príncipe D. Luiz, neto de D. Pedro II, pretendente
do trôno; mas Rio Branco convida o rei D . Carlos, de
160 PEDRO CA L l\!ON
Portugal, para assistir á Exposição comemorativa do centcnario da abertura doo portos.
A voz de Ruy Barbosa, com entonação profética, continúa a pedir a revisão constitucional, a refórma dos erros políticos, deformadores da Republica, que não era mais dos sonhos de ninguem ...
Nenhuma deserção das idéas da mocidade parecia mais dramatica no proprio silêncio do que a de E uclides da Cunha, cadête da Escola Militar que se inebriára de positivismo e taciturno engenheiro, dez anos depois, a fa. zer-se socialista em S. José do Rio Pardo por desânimo e revide. "Os Sertões" só podem ser comIJreendidos, na sua intenção transparente, estudando-se a crise espiritual do escritôr áquele tempo. Crise analoga á de Antéro de Quental. . . Desinteressado da política, imaginou reivindicações sociais; promoveu, com alguns amigos, um teórico partido operario; organizou passeatas de 1 .0 de Maio na suave cidade da Mogiana ( 1900) ; impregnou-se de leituras incandescentes - e as esqueceu depois, solicitado para as honrosas comissões técnicas em que seguidamente se ilustrou. Essa agitação intima correspondia ao que se passava na Europa: mas não perturbou a mística liberal até 1919. Foi eventual e multiforme. Curiosidade insaciavel. D elírio de novidade, Sempre a moda intelectual. O materialismo historico. Os profétas da luta de classes. Os incendiários que ,doutrinavam em estilo enfático. Literatura mais difundida onde a imigração estrangeira se adensára: protestos esparsos e inconsequentei , contra o capital, que todos procuravam crear . ..
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 161
Em 1914, promoveu o mesmo Instituto - por 1111-
ciativa de _!\fonso Celso - o 1 .° Congresso de Historia Nacional. Essa data é memoravel, como anuncio de uma independencia de critica, de uma reparação intelectual, de
uma "renascença" de estudos brasileiros, a modo das comemorações anchietanas em relação á escola paulis-ta de história. De um lado, é a geração nova que se apresenta,
o espírito formado na tolerancia do primeiro decênio do scculo, ambiciosa de cultura substancial , de "realidades" sociais; do outro, as pazes que se celebram, entre os liti
gantes idealistas, em torno dos princípios. . . Cada vez se discute menos a Republica, a federação, o laicismo político; exatamente para que se exacerbassem os debates sobre as reformas técnicas, as melhorias morais do regi
men, que não ganhára em solidez, siquér em créditos, á medida de sua prosperidade aparente. . . Enrolam-se as bandeiras no campo das lutas de antanho, quanto á fórma
de governo; e o jacobinismo se dissipa em manifestações esporádicas, retardadas.
Confundem-se, misturados, os antigos combatentes. Ruy Barbosa proclamará, em 1921, a sua sábia indi-·
ferença pela exterioridade das instituições; e nenhuma voz se elevará a esse tempo, para opôr-se ao gesto piedoso do presidente Epitacio Pessôa, mandando um couraçado trazer da Europa os restos mortais de Tereza Cristina e D. Pedro II. Essa consciência coletiva é o fruto sazonado de uma resistencia restrita e heroica: dos que, nos dias da iconoclastia sistematica, tinham zelado com di~nidade o
162 PEDRO CALMON
fogo das tradições. . . Paixões que esfriam tráem deca
dencia, desenganos; perdia a politica; mas a cultura se
enfeitava de outras galas.
A rua do Ouvidor
A democracia vem antes com os meios de t ransporte,
a grande concentração urbana que tor:-ia impossivel a manutenção da nobreza antiga, do que com a Republica que faz - no "encilhamento" - barões, "nababos", argentários magnificas ...
O teatro ajuda a imprensa e, melhor do que ela, impõe ao povo uma critica mordaz a esses falsos aristocratas.
No "Bilontra", Artur Azevedo, em 1886, r idicularizou o negociante que, enriquecendo, comprou a um espertalhão o diploma de fidalguia. . . Barõe,s á maneira dos de Camillo, dos "Brasileiros" que ofendiam, em Portugal, a decencia grave dos costumes com a fortuna arrogante, e de máo gosto: e em contraste com a vulgaridade do " bonde", do emprêgo publico, da bacharelice, do "tilbury", da política republicana de estadistas escassos e recentes, expressões defin.itivas da sociedade carioca em 1895 e
1900.
As carruagens de preço, as parêlhas do Rio da Prata,, as mil loucuras do período aureo da finança, 1890 e 91, desapareceram nos dias apavorados da guerra civil. A
HISTORI A SOCIAL DO B RASI L 163
revolução expurgou a capital. A' estrêla de Mayrink e de 1\lto Mearim, ditadôres da Bolsa, sucedeu o govêrno taciturno de F loriano: e o Rio voltou á modcstia anterior, á ponderação burguêtsa de 1887.
O exemplo descia do palacio Itamaratí.
Floriano recolhia-se todas as noites, á sua casa de Cosme Velho, num lento " bonde" de Laranjeiras. Os auxiliares de P rudente não tinh~m carro oficial. O desencanto de tantas tribulações repuzéram a cidade no seu bom senso: apenas a rua do Ouvidor não decaíu de prestigio. Aí vive a metropole com uma :intensidade frenética, até
1905, isto é, até a Aevnida Central, que desviou dela o monopol io do pensamento, do luxo, do esplendôr e da política, das letras e da galanteria, da exibição e da futilidade .. .
A história da rua velha, porém, oferece a,;,pectos desconcertantes ( 144) . E m 1890 lá se instalam corretôres de negocios e "boêmios'\ o "bilontra" e o literato. Em 1895, investe-a o jacobino. Sofre a vizinhança do largo de S. Francisco, onde - nos degráos do monumento de José Bonifacio - Ge fazem os comícios populares. A desordem rompe dali ; demagogia e tumulto; a cólera irresist ível e sonóra.. . O crime de Marcelino Bispo, em 1897, esfria esses entusiasmoo que atemorizam o comércio: e a rua do Ouvidor se ilumina de outros sorrisos. Resplandece. Restaura-se.
( 144) Vd. Mello Moraes Filho, Factos e Memorias, p. 329, Rio 1904.
Cad. 12
164 PEDRO CALMON
A epidemia
Essa Capital Federal - entretanto - refulgente de espi rito e trepidante de excitações civicas, tinha a sua
estação de elegancia e os 6eus mezes tristes. E' certo que
ci carioca se habituou á febre amarela. Acostumou-se a
ela como a um flagelo cidico, a sua doença do verão,
todos os anos repetida, entre Dezembro e Abril, o que de
começo foi terrível, sobretudo para os estrangeiros, e
depois já não perturbava a grO!Ssa vida urbana que resol
veu da melhor maneira o problema. Transportava-se para
a serra. Fugia para os sitios altos de vilegiatura. Reen
trava na natureza, abandonando a cidade - e quantos
não podiam despegar-se dela - á sua tragedia periodica.
Ficavam oo pobres, os comerciantes, os funcionários. Pc
tropolis sorria os seus encantos de cidade européa inva
dida pela bôa gente. Era mais imperial na Republica:
mais opulenta, mais procurada, agora sem os exemplos
de 6obrie<lade, as lições de modestia de D. Pedro II .. .
Ao comemorar-se o cincoentenario da ch egada ao Brasil
das irmãs de Notre Dame de Sion ( desembarcaram no
Rio a 9 de Outubro de 1888) foi divulgado o seu "diario",
com as impressões decepcionadas do estio fluminense em
pestado, o horror que fazia a fe'bre. . . Uma das religio
sas, mere Felix, logo morreu; e as outras 6e passaram para Petropolis. Receberam ordem de lá ficar. com o colégio de meninas, que, entre 89 e 92, funcionou parte
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 165
do ano no Rio, a outra parte no alto da serra ( 145) . Educandário que retivesse alunos no período da epidemia, isto é, durante o verão, cometeria um crime. Tornava-se inhabitavel a capital, principalmente para os forasteiros. O obituario aterrorizava. Centenas cada mez.
Renovação do Rio de Janeiro
Oswaldo Cruz e o prefeito Passos são os braços poderosos que agitam a cidade adormecida. Desperta em sobresalto, com a,s chusmas de trabalhadôres que começam a demolir o Rio vetusto. E' a éra do "bota abaixo".
A monarquia caíu em efígie, em 1889.
O passado caíu realmente, em 1904: com as viélas do centro urbano, com a angustia de espaço do coração da capital, para que, em avenidas modernas, circulasse fartamente um povo lisonjeado pela civilização que o investia assim.
Se o duélo entre o saneador e a desconfiança popular teve làncinantes aspectos, de,sde a fria descrença até a reação á mão armada - a luta do remodelador com a rotina não foi menos teatral e dificil.
Ambos contaram com a irrestrita solidariedade do governo federal: nem de outro modo Cruz e Passos acei-
(145) Artigo sobre a história do Colegio de Sion, prof. Maria da Conceição de Moraes Jardim, Jornal do Comércio, 9 de Outubro de 1938.
166 PED R O CA L MON
tariam a missão perig06a e decisiva. A lei de 29 de Dezembro de 1902 enfeichou nas mãos autoritárias do P refeito poderes quasi ditatoriais. O artigo 25, por exemplo, autorizava-o a despejar os moradores dos predioo condenados com a intervenção da policia, sem ouvir o Judiciario. Obtivera ,tudo. Os recalcitantes que batessem ás portas da justiça encont ravam antes a escolta: era a ar'bitrariedade; terrivelmente injuridica, porque um homem só, metido nos segredos de suas plantas de urbanismo, disporia da sorte da cidade. Mas eficaz; indispensavel. Um emprestimo de seis milhões esterlinos que a Prefeitura ficou habilitada a lançar, fracassou na E uropa: cobriu-o a propria praça do Rio de J aneiro, na importancia- de 4 milhões. Com força e dinheiro - a 1Sua vontade fér rea faria o resto. Essa vontade não esmoreceu.
Cruz e P assos, lavraram, paralela e concertadamente, um chão ingrato.
A higiêne dependia da remodelação da cidade, que lhe esmontasse as trapeiras e resolvesse o lixo velho ; e o novo Rio só podia perfazer-se com a profilaxia da febre amarela. Em zonas independentes, os dous ditadôres do melhoramento p~blico arrostaram a mesma hostilidade. Osvaldo Cruz sustentou a batalha das convicções: era mais abstrata. Pereira Passoo enfrentou a liga dos intereses : era espêssamente concreta. Teve contra si o comercio. Os proprietarios. As classes morosa e solidamente conservadôras. A pacatez dos moradôres, a força do hábito, o liberalismo que o impregnava, a consciência da casa inviolavel, os costumes . ..
HrsTORTA SocrAL DO BRASIL 167
Se pretendesse realizar as reformas parciais, á semelhança das do fim do Imperio, como a abertura das ruas Gonçalves Dias, ( 1854), Senador Dantas ou do bairro de Vila Isabel, contaria com os aplausos de toda gente. O seu programa, porém, exatamente como o do higienista, era total e brusco.
Desde 1871, em comissão nomeada pelo ministro J oão Alfredo, cogitava Passos do seu grande projéto. Guardára-o até 1902. Em 1882 obtivera, com T eixeira Soares, o privilegio de construção da estrada de ferro do Corcovado... Consistia agora o seu plano, em alargar simultaneamente as ruas mais movimentadas ('146), derrubar os pardieiros, desafogar o centro urbano, corrigindo, com traçados retilíneos e arborizados, a tortuosa planta colonial. Nada de alcovas sem luz, de· casarões caindo em ruinas, de ruélas sujas, de fachadas desbotadas, de ranço e repugnancia de bêcoo pestilentos, do ar tôrvo da colonia. Muniu-se de seus instrumentos de engenharia como de uma vassoura. Para varrer a imundície de uma cidade comercial que crescera demasiadamente n'uma área estreita em que cabia a sua asfixiada prosperidade e as suas mazélas, a sua fartura e as suas doenças, os seus armazens e a sua sociedade entanguida, respirando mal, contrafeita na clausura dos seus muros históricos. Passos atacou o
( 146) Em 1890, Dec. de 9 de Nov., de 16 de Agosto, mandara ampliar varias ruas centrais. . . Ao prefei to Barata Ribeiro, 1893, deve-se a primeira campanha contra as casas de habitação coletiva, insalubres e sórdidas. - Sobre as obras de Passos, Sampaio Corrêa, conf. citada, p. 30.
168 PEDRO CALMON
problema em conjunto. Desalojou inéxoravelmentc os
comerciantes atingidos pelas desapropriações e tomou para
base delas as baixas declarações para o efeito do impôsto.
Deu á construção das novas artérias a aparencia de uma
catastrofe, repentina e fecunda. Tinha muita prés,sa. Sa
bia que sem precipitação e energia, olhos fechados aos casos singulares, não levaria por diante o plano. E o
peor seria deixá-lo a meio, as caEas derrubadas e as ave
nidas por abrir, tudo mergulhado na poeira dos desmontes
sem a compensação da obra concluida. Foi implacavel,
para ser eficiente. Resistiam-lhe, os jornais injuriavam,
os negociantes prejudicadoo se opunham, a justiça era
chamada durante o dia e á noite o prefeito se antecipava a ela começando a pôr abaixo as paredes, o conflito se enrodilhava em questões inesgotaveis e as picarêtas não paravam. Sem es,sa violencia útil e larga fracassaria no principio. Ele e Osvaldo Cruz. O seu heroísmo estava em insenbilizar-se diante dos protestos. Rodrigues Alves armou-,se de igual estoicismo. O homem parecia ter endoidecido. De chapéu "côco" e guarda-chuva, comandava o seu inevitavel exercito de demolidôres. A tática era hábil: derrubando logo, e em gran<le, ficaria com a liberdade de refazer, a seu geito. ,.Ampliou doze velhas ruas: Estreita e larga de São Joaquim, Uruguaiana, Carioca, Sacramento, Camerino, Assem'bléa, ao tempo em que Paulo de Frontin, em complemento das obras do porto que- Lauro Muller empreende apressada e definitivamente, ra5i;ava a Avenida Central.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 169
O primeiro trecho do novo porto do Rio de Janeiro foi inaugurado em 8 de Novembro de 1906.
Naquele ano a luz eletr ica banhou a cidade com um clarão famoso.
Quiz o prefeito que fôsse a mais iluminada do mundo.
Seria como a "féerie" indispensavel para que se visse o prodígio : o lineamento moderno da metropole remoçada, a destacar-se das profundas ruinas do ano das devastações . . .
"O Rio civiliza-se" - trauteavam os cantôres populares. E estes viam fugir a seus pés a cidade patriarcal que, nas noites alumiadas frouxamente de gaz, toda se enchia de suas serenatas lânguidas. E ' quando os mô rros completam a sua função de refúgio da pobreza. O de Santo Antonio, o do Castélo, o da Conceição, a Favela ... Em baixo, as turmas de operarioo avançam sobre a nu
vem de pó das derrubadas. E emergem as reluzentes pistas do "tilbury" e do automovel recern-chegado. O prefeito é um romântico do urbanismo a idealizar as avenidas de contôrno. Para onde se voltavam os fundoo das casas do Flamengo, e em logar das humildes praias da Gloria e ele Botafogo, desata-se agora, asfaltada, a Avenida Be-ira Mar. Resplandece de luz e arvorêdo. As avenidas Mem de Sá e Salvador de Sá abreviam trajétos. Ao primei ro tunel de Copacabana, que o engenhei ro Coelho
Cintra ab ri ra em 1894, vae suceder o tunel novo, forçando o deslocamento, para outras praias que o " tramway" procura,, a,ntecipando-se a,os mora,dôres, va,lorizando os terr~-
170 PEDRO CAL:\íON
nos, inventando paizagens "turisticas", ( 147) orientandn o povoamento, já dispersivo, ccn,trifugo.
Passos, porem, não fica no gizamento dos itinerarios.
Indica os modêlos arquitetônicos, inaugura monumentos públicos, ajardina as praças, constróe edifícios típicos. O Teatro ~1 unicipal é um esplendor de marmores e bronzes, compatível com o senso contemporaneo do mundanismo artistico. O governo da Republica instala o palacio Monroe, a Bibliotéca Nacional (trabalhos do general Sou
za Aguiar), a Caixa de Amortização, no gôsto clássico, o Supremo Tribunal, no indeterminado estilo vistôso, o palacio cardinalicio, de um impreciso "moderno", ern que predomina a cúpola - ornamento que faz furôr na arquitetura da Avenida Central. Entre o Municipal e o :\Ion
roe, continuava a exibir a sua severa velhice o conve11to ela Ajuda. Cairia mais tarde ( 148). Os monges beneditinos, isensiveis ás idéas do tempo, nas suas hortas sobre a Avenida levantaram uma casa gótica para escritórios. Os barbadinhos do morro do Castelo aguentaram-se no antigo Colégio dos jesuítas até 1922. O p rogresso era
(147) Decreto de 1874 concedera ao Dr. F rancisco Teixeira de Magalhães a construção de uma linha de " bondes", da rua dos Ourives - Copacabana. O tunel no morro do Livramento foi autorizado cm 1875.
148) O Decreto de 26 de Julho de 1876, prorogou o prazo para o arrazamento dos morros de Santo Antonio e Castelo ... O Dr. Possidonio de Carvalho Moreira, por dec. de 8 de Março de 79, teve concessão para desmontar Q do Senado e ªterrar os vantanos .. .
l--IlSTORIA SOCIAL DO BRASIL 171
inflexível: confundia inicialmente os moderados, os tímidos, espantados dessa febre de novidaclC6; depois, em 1906, tranquilizára, envaiclecêra a cidade vestida de novo, principalmente inundada ele claridade, com jornais nervosos que a convenciam de ser a mais bela elo mundo ...
Amaro Cavalcante, Frontin e Carlos Sampaio pro.seguiriam o hercúleo trabalho rernoclelaclôr ( 149). Não se hesitaria mais diante cl'um arrasamento (mesmo elos morros do Senado e do Castélo), ela recuperação ele um pedaço ele mar ( a ponta elo Calabouço), ela construção ela Avenida Atlantica. . .. Era a transição, ela cidade malsã para a "maravilhosa".
O saneamento
Seria isso possível :oem o saneam..,nto ? Não. Só foi praticavel depois dele.
O forasteiro temia o "vômito negro". Os marinheiros italianos, mortos ás dezenas ·durante a estada, na Guanabara , ela frota ele observação, estrangeiros ilustres vitimados pela epidemia, todos ' os anos renovada, num inclemente sincronismo, faz iam daqui um "porto sujo", evitado com prudencia pela navegação européa. Buenos Aires engranclecêra-se; na America, todas as cidades, no decênio de 1890-1900, tinham visto multiplicar-se população
(149) Max Fleiuss, Historia da ÇidÇJde do Rio de Janeiro, p. 225, S. Paulo.
172 PEDRO CALMON
e riqueza. Apenas o Rio se arrastava, no profundo desânimo de suas estaçõoo mórbidas. Foi quando apareceu o medico de fibrâ heroica, armado, pelos estudos infatigaveis, no Instituto Pasteur e em Manguinhos, (fundado em 1899) de ciência e caracter necessarioo para extinguir o flagélo ( 150) . A ciência descobrira-lhe o remedio; não bastava. Era insuprível qualidade a témpera, ( 151 ) para resistir, pelejar, vencer, arriscando a vida entre uma população irritada, afim de doar-lhe o beneficio final, da saúde publica. Em tres anos - prometeu - expurgaria a cidade ... (152).
O heroismo do progresso
Se Rodrigues Alves não fosse o animador inteligente das iniciativas que tornaram inolvidavel o seu quatrienio, sómente a solidariedade dispensada a Osvaldo Cruz e Passos - !Sustentando-os a despeito de tudo - faria honra a seu patriotismo, e lhe asseguraria um governo memoravel.
Desafiára Prudente a: revolução, para pacificar; Campos Salles enfrentou a revolução, para organizar; Rodri-
(150) Phocion Serpa, A vida gloriosa de Osvaldo Cruz, p. 57, Rio 1937.
( 151) Clementino Fraga, Orações á Mocidade, p. 77, Rio 1937.
(152) Ruy B~rbos;i, Osvgldo Cruz, discurso, p. 31, Rio 1917.
Ht5TORIA SocrAL no BRASIL 173
gues Alves desarmou a revolução, como veremos adiante, para edificar.
O Partido Republicano naqueles doze anos foi uma · força propulsôra e um espírito de ordem, a cuja influencia o regimen adquiriu um sentido construtivo e uma solidez inflexível, suficientes p~ra que a sua estrutura perdurasse através das crises sucessivas. Sem a firmeza de Prudente, Campo Salles não regeneraria o credito, e sem este, não remodelaria Rodrigues Alves a capital. Passára-€e portanto da fase das experiencias cautelosas, dos equílibrios instaveis, para a <las obras eSGenciais, das soluções definitivas. Mesmo se passára do liberalismo economico
de M urtinho para a "valorização do café ... " O resul
tado era positivo: não se desenvolvêra, porém, em har-monia com os ideais polit icos da propaganda, com a Re
publica, "os sonhos", de 89... Daí, periodico, o chóquc,
que devia abalar, ano após ano, a arquitetura do regímen
como o plasmára o Partido Republicano Paulista, nos três quatriênios de muitoo fátos e escassa doutrina.
Em 1897, a revolta é de chefes, sem povo; em 1900,
de contribuintes, sem multidão; em 1904, de povo, sem chefes.
A sedição da Escola Militar, em que perdeu a vida o general Travassos, e o vrn,to motim da "vacina obrigatória", serviram para desanuviar um horizonte longamente
carregado e - como o sangue do marechal Bittencourt
~ dtnenta,r o :prestigio d9 Cattete,
174 PEDRO CALMON
As duas sedições dramaticas e fracassadas emolduraram a figura de Rodrigues Alves num cenário de energias corretivas, de civilisnw vertical : e deram a Osvaldo Cruz a evidencia de um triunfo trágico. Mas pudéram interromper o predomínio da política instalada com o "Paci
ficador".
O "minuto" de P inheiro Machado foi em 1906.
Luz e força
O capital estrangeiro chega com atrazo e abundancia. Traz a eletricidade das grandes us inas, a experiencia dos Estados Unidos, a visão da Cosmópolis. São influencias entrelaçadas: o governo, que abre os rumos, o engenheiro
internacional, que desembarca com os seus planos de bom negocio, o banqueiro, que o acompanha . . .
Rodrigues Alves tivéra a fortuna de dirigir o Brasil
na epoca em que a tração eletrica desfigurava a viela mansa das cidades populosas. Sem os canadenses da "Light and
Power" Pereira Passos n_ão poderia, em 1906, iluminar as avenidas que traçára.
Déra-sc a William Reid, em 1899, concessão municipal para instalar m, inas eletricas, geradas por força hi
draulica, no Distrito Federal. Em 11 de J unho de 1904 organizou-se no Canadá a "The R io de Janeiro T ramway L ight and Power Company Lirnited ", com o imenso capital de 19 milhões de libras. Alexandre Mackenzie adqui-
HISTORIA SocrAL no BRASIL 175
nu a William Reid (20 de Maio de 1905) a sua concessão, e a transferiu para a companhia canadense, no mesmo ano autorizada a funcionar na Republica. Comstruiu ela em Ribeirão das Lages (1905-1908) poderosa usina, capaz de fornecer a força reclamada pelas industrias e pelo trafego de carris urbanos do Rio de Janeiro durante varios anos (secundada, em 1913, pela usina da ilha dos Pombos). Iluminou a cidade,' antes da saída de Rodrigues Alves. E tratou de unificar as linhas de "tramways" ( 1907), adquirindo todas as companhias que faziam es·se serviço, dispersas ou decadentes emprêsas de "bondes" <lc tração animal, logo substitui das pelos "carros eletricos" que déram á fisionomia da capital o definitivo retóque moderno (153) ..
O mesmo fenomeno de descentralização graças a esse transporte rápido engendra, no Rio e em S. Paulo. outra febre de negocios: os de terrenos. São os suburbios que se unem aos bairros velhos pelos trilhos de "bondes". Estes desafogam as areas centrais, que a valorização e o urbanismo destinaram ao comércio ou á moradia cara: e descobrem arrabaldes, que compensam a distancia com o pitorêsco. O veículo eletrico rompe a concentração da ·vida nas cidades densas, e realiza, no perímetro urbano,
(153) Noronha Santos, Meios de transporte 110 Rio de Janeiro, I, 409, Rio 1934. E' interessante notar que Londres só teve " tramways" depois de Janeiro de 1905 (Gaston Cadoux, Remie des Deux Mondes, Abril 1906, p. 581). A eletrificação dos transportes começou em Paris em 1900 e em 1895 em Berlim.
176 PEDRO CALMON
0 que faz a estrada de ferro nas zonas rurais : atraz da linha, que se distende, marcha o povoamento. Aqui,
povoamento das cercanias saneadas de fresco, apenas arrebatadas ás emanações palustres dos IJ:irejais, ou esquecidas,
até á vespera, no seu deserto de praias ensombradas de
cajueiros . . .
As avenidas
As avenidas do Rio de Janeiro remodelado desdobra
ram a vida social, que até aí se entalára, mais elegante e
aparatosa po1· it>so mesmo, na estreita rua do Ouvidor.
A avenida Beira-Mar dá ao carro uma importancia Lotai: é o "corso", duas vezes por semana, que, em 1905,
ao entardecer, podia juntar uma multidão curiosa e galante a observar o desfile preguiçoso das equipagens de luxo. . . O proprio Presidente Rodrigues Alves ia vê-lo,
da esquina da rua Silveira Martins, deitando á praia do Flamengo ( um caes provincial transformado em arteria
suntuosa) os olhos satisfeitos, de quem vencêra.. . Ao
"coupé" tirado por cavalos platinos ia suceder, em 1907,
o automovel, em luta com o "tilbury" até 1909, quando
dominou - com as suas máquinas fragorosas - o trafego
urbano. Ha um som novo na cidade: "fon-fon" (titulo da revista ilustrada, fundada em 1907).
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 177
Vêm, pitorescos, d esastrosos, os primeiros automoveis, em 1903. ( 154) Adaptam-se com dificuldade: sete em 1904, doze em 1905, 35 em 1906. Rio Branco comprou - em 1907 - uma poderosa "limousine" para o rei D. Carlos, esperado no ano seguinte.
O exemplo convenceu: o prefeito Passos compreendêra - com as suas pistas de alfalto - a éra dos motôres de explosão . A cidade colonial ' não previra as viaturas:
foi preciso um seculo para se ajustar a elas, com as ruas cimentadas, corrigidos os traçados tórtos. A nova cidade, porém, antecipou-se, graças ao " tramway", ao grande automovel "Benz". Ha, com isso, um descongestio
namento dos bairros centrais, a inclusão, pela facilidade do transporte, de suburbios amênos na economi~, na ex
pansão e nas preferencias da metropole, que se desata peleis vales adiante, e mesmo. procurando o Leme e Copacabana (distrito creado em 1915), rompêra o granito das montanhas. . . A sétima do mundo, em perímetro urbano!
As praias, devéras, não esvaziam a rua do Ouvidor:
mas lhe abalam o prestigio. Gostam disto oo li teratos
que fielmente se reunem na livraria Garnier: têm mais
tranquilidade para a palestra d}ária. . . Ferrem lá os
viu, em 1907 . Machado de Assis presidia sempre, com
a sua dôce autoridade, o grupo dos prosadôres: Silvio Roméro, Araripe, Coelho Neto, Graça Aranha, José Ve-
(154) Noronha Santos, Meios de transporte no Rio de Janeiro, II, 85, Rio 1934.
178 PEDRO CALMON
nss1mo, João Ribeiro, Oliveira Lima, Souza Bandeira,
"tutta l'Aca<lemia brasiliana ... " ( 155)
Mas a Avenida Central desloca o eixo mundano. O "J o mal do Comercio" transfere-se do sobrado da rua do Ouvidor para o palacio de cinco andares <la esquina <la Avenida: essa mudança valia uma indicação. Ganhando espaço - é certo - a cidade perdia o velho apu
ro fidalgo, apressava-se, vulgarizava-se, solicitada por influencias rudes e saudaveirs - o "sport" -, por uma necesi<la<le de movimento - o trafego dispersivo, por uma
libertação vantajosa - descentralizando-se, com ímpeto . ..
A transformação fôra brusca e atordoante. "A vida entre nós ... mudou - queixava-rse Euclides da Cunha numa carta de Novembro de 1907. Ha um delírio de automoveis, de carros, de cot1Sos, de banquetes, de recepções, de conferencias, que me perturba... Que saudades da antiga simplicidade brasileira !" ( 156). E hoteis de luxo? Faltavam os "Palaces ", os internacionairs e fartos hoteis "turísticos" - e João <lo Rio, severamente, duvidava deles ainda em 1911, achando qui:: ficariam vazios, sem hóspedes... ( 157). Conrstruiram-se, apezar de tudo. Ao tempo em que era 4e bom tom a ceia no Pavilhão Mourisco (1906, 1912),. e o Teatro :Municipal arrebatava ao velho Lírico o esplendôr social das grandes noites ...
(155) Ferreiro, Fra i due mondi, p. 19, Milano 1913.
(156) Vcnancio Filho, Euclides da Cunlza a seus amigos, p. 196.
( 157) João do Rio, Os Dias passam, Porto 1912.
HISTORIA SOCIAL DO BRASI L 179
A arquitetura
Que relação terá com o espirito publico a arquitetura
moderna? O satírico Emilio de Menezes comparou, com
amargura; Gente nova, casa da Avenida. Muita frente e
pouco fundo... A arquitetur~ subsequente ás demolições
de Passos foi de fachada, exteriorizando com imponencia
uma presunção de cultura que começa sem exagêros, nos
primeiros edificioo, que os negociantes conservadôres
acham suficientes com tres pavimentos e a armação de
ferro, e avança, encorpando, florindo , crescendo, até
copiar, nos mais recentes, o desenho esguio dos fura-céos
americanos.
Arranha-céos. . . de seis andares: - pasmavam, em 1906, os cariocas, diante do prédio de Guinle & Cia.
E reputava-se um mimo a Avenida, com o belo edi
ficio d'O Paiz ( 1904), o Monroe ao fundo, fechando, com
a sua cupola classica, um horizonte de pequenas tôrres
de ardosia, o colunado de marmore da Caixa de Amorti
zação, a Biblioteca Nacional, o Teatro Municipal tendo a
um lado a cêrca das clarissas com o entulho do convento da Ajuda arreado (1912) pela mesma fúria arrazadôra,
que fizéra o milagre ...
A arquitetura de 1900 é, por itoda parte, um falso
clássico sobrecarregado de enfeites que dão a medida da
capacidade de ostentação, da ignorancia folgazã da socie-
ta.i. 13
180 PEDRO CALMON
dade que adorava ídolos bem diferentes dos do prmc1p10 do seculo XIX.
Enriquecia-se prodigiosamente; subvertêra-se a antiga hierarquia social ; o dinh~iro comprava tudo; pedia-se o vistoso, o deslumbrante, o "trompe-d'oeui l ".
No Brasil, o segundo Reinado desprezára o colonialportuguê.s ( tão ternamente conservado nas províncias portuguêsas) e adotára o estilo Império, uma combinação de fórmas, da França de Napoleão III e das casas solarengas da Virgínia, um pouco das linhas inglêsas da éra victoriana, do "modernismo" da Terceira R epublica, do confôrto cosmopol itá. . . Mantivéra com tudo, nos bairros socêgados do Rio, a aristocracia recatada das chácaras, o sobrado entre arvores, um jardim com cGtatuas de louça do Porto, duas heráldicas palmeiras guardando o portão sobre cujos pilares enroscavam a cauda lanceolada dous dragões da casa de Bragança.
O aumento da cidade ,sacrificou esses sítios de isolamento nobre.
As ruas novas rasgaram os parques majestosos. Os ornatos, que podiam lembrar a monarquia, foram suhstituidos pela moda da estrêla - uma estrêla de estuqtE', num vago escudo de platibanda. A auster idade das arcadas deu Jogar a escadas e varanda.6 de ferro, e imperou
o "chalet" amaneirado, onde a arte de construir fugiu á ro tina dos quarteirões sem fisionomia própria, sem traço particular, sem estética e sem idade certa. . . E ' um pe-
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 181
riodo arquitetônico sem originalidade ou nacionalismo ( 158). Em S. Paulo, pelo menos, a predominancia do capital estrangeiro bate o sêlo de suas fórmas preferidas : e é a Europa medi terrânea que renasce, na "garôa" do planalto, com o tom uniforme do casario (tão alegremente matizado no Rio de Janeiro como em Lis'bôa), a repetição de "motivos" célebres, a iµ1portação dois "modêlos" de Veneza e Florença... Na capital federal, a luta entre o comercio cauteloso e o progresso, que lhe impõe a prefeitura, faz brotar uma selva desigual de prédios mássiços, faceiros ou tôscos, imensos ou fanados, que denotam
(158) O caso da capital federal é um exemplo e um convite ás grandes obras de embelezamento urbano, que as capitais dos E&tados aceitam, consagram e imitam. Entre 1907 e 1914, quasi todas se transformaram, ao sabôr dos recursos dos banqueiros estrangeiros, de administrações municipais ativas e ousadas, de projétos magnificentes. S. Paulo, Manáos e Belem· não copiam o Rio, porque o anteciparam. A Bahia passa pela sua reforma vasta, e ganha avenida asfaltada e novos bairros da "cidade baixa", a partir de 1912. O sr. Júlio Brandão, prefei~o, e o secretario geral, Arlindo Fragoso, são os dirigentes desse amplo programa de melhoramentos. A engenharia sanitarista de Saturnino de Brito (1908) provê a cidade de excelentes serviços de agua e esgotos. Esse notavel construtor hidraulico liberaliza a sua técnica, desde Piracicaba (1893), Belo Horizonte ( 1895), Vitoria (1896), outras cidades paulistas (96-97), Petropolis, Campos, até Santos e S. Paulo (1905), Rio Grande, Paraíba, Aracajú ... (Vd. Satttrnino de Brito, dados para um estudo, p. 6, Recife 1930). Perde Recife o seu velho traçado, os seus principais vestígios da cidade colonial, para res_urgir, com as largas ar terias, rica. de edificios modernos, do tipo internacional que está em voga.
182 PEDRO CALMON
- em 1907 - a perplexidade d'uma civilização sem fórmulas definitivas.
As sugestões chegam da America do Norte, o arquitéto é europeu, o mestre de obra é nacional e o proprietario, em maior numero, português . . . Aquele tempo tambem as idéas flutuavam, imaturas ou variáveis, num regimen sem ressonancias espirituais; o materialismo "saint-simoniano" empolgava a sociedade muito ocupada em viver sem protestos. inúteis a sua hora; e o 6igno do trabalho substituira o das ilusões - das epocas fecundas de outr'ora ...
Ramos de Azevedo e Ricardo Severo a este respeito encarnam - associadoo - as divergencias psicologicas de que resultaria a renovação artística de 1922. Vindo da Belgica, apaixonado pelas audacias_ da construção de efeito, o primeiro dá a medida do seu temperamento no Teat ro Municipal de S. Paulo, nesse bizarro pavilhão paulista da Exposição Nacional de 1908, no pinturesco Palacio das Industrias. O segundo, emigrado português de 1891, no fundo um tradicionalista, ousa, antes dos outros, falar em S. Paulo na · conveniencia e na 6ingeleza da casa histórica, do tipo cplonial tão ingratamente esquecido ( 1911). Foram palavras proféticas. 1922 assinala a eclosão desse movimento de reivindicação arquitetônica que encontrou na Exposição do Centenario, no Rio de J aneiro, um propicio e largo ca~po experimental. ·
XI
O NOVO BINÔMIO: CAFÉ E BOR.R.ACHA
O café e a borracha não sofreram com as lutas da
"consolidação" do regimen. Beneficiaram-se sofrega
mente de duas consequencias dele: a depreciação do mil
réis e a animação do comércio. A zona sacrificada pela
revolução era a pastoril e a hervateira~ Obstruira-se o
porto do Rio e deixára-se franco o de Santos .
O norte ganhou, desenvolveu-se. A éra da borracha
prolonga, Amazonia dentro, a festa do "encilhamento":
interna-a, ruraliza-a, instalando em Manáos - índice desse
esforço súbito - uma inquiéta e deliciosa met ropole de
riqueza.
A pro:;peridade <lo café põe nos alvoroços da economia paulista uma audacia construtiva que lhe ficará característica, como um traço fis ionômico.
184 PEDR O CALMON
O açucar mantem-se estável ( 159) . O revéz politico sornou-se ao desânimo da a ristocracia dos engenhos,
desalojada pela usina. E o mercado dessa induGtria já não póde ser a Europa, os Estados U nidos : é, acanhadamente, o Brasil só.
A seringueira tem o condão de de,sviar oportunamente o interesse economico do norte para aquele mundo inédito e húmido: sem isto, um desequilibrio grave perturbaria m uito tempo a dist r ibuição do trabalho e das correntes povoadôras. Decérto os "retirantes", o,.; jóvens
cheios de ardôr, os "flagelados" das terras sêcas, refluiriam para ais r icas lavouras do sul e as cidades resplandecentes de progresso ilusório. E a Amazonia ficaria perigosamente enjeitada, na sua selvagem imensidade .. . A _gôma abriu-lhe as portas a uma invasão bcnefica. Os seus rios atraíram dezenas de milhares de seringueiros . Emquanto a capital federal sugava substanciais energias dos campos, no centro e no sul, a miragem amazônica absorvia lévas inumeras de desbravadôres. Ü6 estrangeiros. desde o começo do seculo XIX cobiçosos do Ama
zonas, (160), já o encontraram ocupado. O BraEil cresceu. Ganhou um contôrno septentrional e uma densidade sertanêja que prometiam rasgar-lhe os horizontes
(159) Periodo de 1861-1889: o café representa 53,8%, o açucar 11,1 % e a borracha 5,4% da exportação brasileira. 1890-J 821 : café: 55,5% ; borracha 16,4%; açucar 3,4%.
(160) Vd. Fernando Saboia ele Medeiros, A Líberdade de navegação do Amazonas, S. Paulo, 1938.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 185
do "Dourado": de repente, as proprias fronte iras lhe parecêram estreitas. . . Um sonho!
A expressão !Paulista
A solidez da economia do ,café, em São Paulo, depois da, crise de 1886, ficou demonstrada no temporal da abolição.
Houve, na safra de 1889, uma quéda, de 600 mil sacas. No ano seguinte, a exportação paulista (2.874 -mil sacas) ultrapasisava a de 1887. O preço maximo ( unidade de 10 quilos), fôra, em 1889, de 7$810, e em 1890, de 9$870.
Que melhor estimulo, para o proseguimento daquela investida, sem precedentes na história das culturas nóvaG - sempre para o· oeste?
A alta é constante, até 1896. Salta o preço, de 11$600 em 1892, a 17$400 em
1895: café vale ouro. Descem por isso para o porto de Santoo, 3 .686.084 sacas em 1891-92, e 4 .007.380, em 1894-95 .
Regorgita, no Estado, uma prosperidade que não des-cança em faustos inativos: irrompe, creadôra, em todas as fórmas de animação, de valorização da terra.
Estacionária nos outros paiGes, a produção paulista, em tr inta anos, subiu de um para dez (161) .
(161) Discurso de Alcindo Guanabara, Dorninentos Par!«mentares, Valorização, II, 69.
186 PEDRO CALMON
Enrico Ferri diss e que a cultura do café é a obra mais notavel do genio agrícola do mundo !
Surgem, como por encanto, cidades cheias de vida onde era, ha pouco, o deserto hostil. A grossa imigração estrangeira (um milhão de italianos n'um decenio !) leva por diante os obstaculos da geografia e dps pacatos costumes rurais. Soma ás energias dos nacionais, "yankees do Brasil", como lhes chamou Couty, a sua experiencia da·s industrias, o seu espírito poupado e organizador, que contribúe para corrigir a mentalidade dispersiva e magnificente do fazendeiro.
O jornalista Max Leclerc que em 1890 visitou Santa Veridiana, a grande fazenda de Antonio Prado, maravilhou-se com a sua organização impecavel e achou colonos que liam as «Cartas de Ciccro". (162)
O complexo psicologico que é o "economismo" paulista - genio industrioso, audácia agrícola, trepidação
de iniciativas grandiosaB, largueza de vista e gastos, em contraste com a ponderação lenta das populações que não se renovaram ao contacto dos alienígenas - fórma-se em virtude desse choque: a ayidcz de trabalho do colôno, ás voltas com a pertinácia do desbravador nativo.
Este não permite a desnacionalização da gleba. Notou-o argutamente Roberto Simonsen : "Nessa grande invasão do territorio paulista pelos elementos estrangeiros,
( 162) Afonso Taunay, artigo no "J ornai do Comercio", Rio, 22 de Janeiro de 1939.
HISTORIA SOCIAL DO BRA~IL 187
que em dez anos elevaram sua população de cerca de 1 milhão de habitantes, é que se pódc devidamente aquilatar do valor do tipo social do fazendeiro, ao qual comumente se atribuia o defeito de e..xcessivo mandonismo e sentimentos· nativistas. De fáto, o fazendeiro era o senhor e chefe de uma organização produtôra latifundiária, e, como sóe acontecer com 06 pioneiros de terras novas, teria de possuir qualidades de energia e de capacidade creadôra postas continuamente á prova nos embates ininterruptos com a natureza. Foi o fazendeiro plasmado na evolução cafeicultôra do Brasil que poude, porem, pelas was qualidades, manter sempre firme o comando dessa multidão de invasôreis, conservando o sentimento nacional dos novos núcleos que se abriram e facilitando, assim, a colonização e absorção desses elementos e seus descendentes" (163). Fortunas brilhantes atiram para a Europa as familias sertanêjas, que voltam com largos projétos de transformação social, de melhoramentos soberbos. O papel det5empenhado, em 1850 ou 60, pelo senhor de engenho, cujos filhos frequentavam as universidades alemães, é preenchido, em 1890 ou 95, pelo fazendeiro de café, 1que concorre, em Paris, com o "estancieiro" platino, com o "cauchero" do Amazonas, nas prodigalidades célebres. Eduardo Prado e Santos Dumont são expoentes <lessa geração elegante, ambiciosa e reluzente de filhos de fazendeiros, que comovem a Europa com a sua inteligencia e a sua originalidade.
(163) R. Simonsen, Aspectos da História economica do café,
tése apresentada ao 3.° Congr. de Hist., 1938.
188 PEDRO C A LMON
O sibaritismo de Eduardo Prado inspirou a Eça de Queiroz o complicado Jacinto, dô:no das nmis difüceis utilidades da moderna mecânica. "Ais reformas que J acinto introduz em Tormes são as mesmas que Eduardo Prado introduziu na fazenda do Brejão, em São Paulo, com grande escândalo dos fazendeiros vizinhos, habituaJos á rotina e inacesisiveis á idéa de associar os trabalha-. . -dores aos benefícios da produção" ( 164) . Os requintes da remota fazenda do município de Casa Branca - para onde o nobre "latifundiario" transferira as suas comodidadeis de P aris - espevitára a fantasia do mais civilizado novelista do seu tempo. . . Brejão é uma proêza de espírito: do espírito paulista que traz a Europa para os cafezais. Com o seu conforto e os seus maquinismoo,
lembrou Santos Dumont ( 165) . E um prot sto amavel : o sertão, desdenhando o mar, a embeber-se do eGtrangeirismo que ha alem dele . . . Assim fizeram os senhôres de engenho no reconcavo, ao começar o seculo X IX, e os fazendeiros fluminernses á beira do Paraíba, pelo meiado
do seculo que acabou tão mal para ambos . . . Em 1887, é em Campina~ que Alberto Salles publica
"Patria Pa_ulista". Feder~lismo ultra-americano: a mentalidade peculiar ao torrão mais enriquecido e avançado, California das bagas do " tipo Santos" . . .
(164) Vianna Moog, E~·a de Queiroz e o S éculo XIX, p. 337, Porto Alegre, 1938.
(165) Santos Dumont, Os meus balões, trad. de Miranda Bastos, p. 49, Rio 1938.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 189
Santos Dumont empregou soberbamente as rendas pingues: experimentando as máquinas de voar que, em 1903, lhe déram fama universal. H auriu, nos cafezais pátrios, a abastança que aplicou á descoberta do aeroplano; o que parecia extravagancia de jóven milionário ( os parisienses diriam, adoráveis loucuras de americano pródigo) foi o invento que revolucionou os destinos humanos .. . (166).
A prosperidade na "terra roxa" revérte, em 1890, para uma série de obras formidaveis, que dão ao resto do país tipos definitivos de civilização material. A remodelação <la capital do Estado - precedendo ele doze anos á do Rio ~e Janeiro - mostrou primeiramente ao Brasil o que erá, e podia ser uma cosmopolis, com o seu viaduto de ferro, as ruas retificadas, os atoladiços transformados em parques, altos prédios dominando varzeas ajardinadas, outr'ora paúes repulsivos, um conjunto estético, á européa, de cidade de CtStilo contemporâneo.
Sem o café, ta rdaria a S. Paulo Railway; sem esta, . vi ria muito mais tarde o porto de Santos; sem os tres fatôres reunidos, o fenomeno ur'bâno de São Paulo -destinado a incluir-se entre as maravilhas do mundo atual,
(166) Antonio ·de Lacerda, o admiravel construtor do Elevador da Bahia, 1869-72, é um produto da sociedade enriquecida pelo açucar, que podia mandar os rapazes, e.m 1850, á Suissa e aos Estados Unidos. Santos Dumont é um expoente da sociedade cafézista: teve a gloria de corporificar o sonho de um paulista do século XVIII, Bartolomeu Lourenço, o Voador.
190 P EDRO CALMON
a par do que sucede na America do Norte - não poderia produzir-se.
A raiz desse esforço gigantesco prende-se á terra rôxa, penetra o âmago do planalto, alcança-lhe as balisas fluviais; mas, nos seus primôres, na feição nova, na sua paizagem de chaminés de fábricas, no seu tumulto de comércio exuberante, na sua ressonancia universal, distinguimos a aliança do imigrante, o concurso fórte do advena. Amarra-o ao Brasil sub-tropical, além do clima propicio, a dupla sedução dos seus problemas: aquela agricultura vantajosa, e to~as as induistrias, que estão por ser creadas. O capital estrangeiro é minimo: o braço estrangeiro, poderoso. E le não faz senão semear nos sulcos abertos peloo pioneiros paulistas : mas é bôa e oportuna a semente. Em 1883, seja cinco ano& antes da temporada imigrantista, reparava Couty que a produção paulista era igual a quasi o total das demais províncias. Referia-se com optimismo át; industrias nascentes e pasmava: 1. 500 kilometros de estradas de ferro em dez anos! (167) . Daí o prodígio.
Indole e rumos do café
A estrada de ferro entra com o café, e sabe encont rá-lo. Progridem juntos., os trilhos e a plantação. O traç~do ferro-viario impele a "onda verde" por sobre
(167) Couty, F..tude de biologie i11dustrielle sur le Café, p. 129, Rio 1883.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 191
o dôrso das serras, espraia-o, numa área crescentemente devastada, no rumo daquela penetração econômica e sistemática. Transforma a grande fazenda em tributária do transporte metódico. Basta a sua vizinhança para que fumégue a mata, no incendio creador : creador das riban
ceiras de café, sobre cujat; detritos encizeirados repontam os brótos ricos.
De começo, a lavoura puxou o progresso; agora é este que a desenvolve e intérna. Dist ríbúe-se por zonas de linhas férreas: a Central indica o itinerario velho, do café que entrou, lento e avassalador, da provinda do Rio para os campos de Taubaté. Campinas foi o centro de sua irradiação paulista: por isso a Mogiana o levou para
Ribeirão Preto, capital sertaneja do café, como fôra out r'ora Sorocaba dos gados do sul. A Paulista carregou-o para Rincão e Itirapina. Seguiram-se a Araraqua
rense e a alta-Paulista. A Noroeste arrancou-o de Baurú para o Mato Grosso, por Pirajuhy, e a Sorocabana, de S. Paulo para os barrancos ,do Paraná . . . Terras de distinta opulencia. A privilegiada Mogiana, do melhor café poosivel; mais recentes e rendosas, as da alta-Paulista, " terra rôxa" ao longo da Sorocabana ... E os sinais, nessa co;rida civilizadôra, da ocupação destrutiva do solo. O enfraquecimento dêle, nas regiões exploradas. O declínio da produção e a marcha do café - queimando matas, trasmontando divisôres d'agua. Aquem dos núcleos atuais de prosperidade, a fisionomia decrépita das plantações em agonia. Adiante, o quadro estupendo das
192 P EDRO CALMON
colheitas de 300 arrôbas por mil pés. A riqueza devóra o chão acidentado. Atraz do "ouro verde" vem a erosão. Alternam-se os espigões sêcos e erosados e as baixadas férteis. Pelas encostas sem sombra enfileiram-se, geométricos, os cafezais. As chuvas arrebatam o humus das curvas de nível para os vales, e aí a pequena agricultura retem o colono, emquanto o plantador ambicioso se desloca, para os horizontes nóvos. Por isso o café, varando o Estado, já lhe fóge pelas fronteiras, invadindo o Paraná, Minas Gerais, Goiaz. Não se deterá nas vizinhanças. Entrou, e sáe. E' o cultivo móvel, o trabalho andêjo e impetuoso, no qual se misturam - razão do fenômeno social e agricola do café - tendencias indígenas, psicologia européa, sentimento aristocratico, adaptação ás condições naturais. Do indio sumido é a primeira luta com a paizagem, o fô~o e a pósse intempestiva, o genio nómade dessa ocupação brusca. Do europeu é o negocio graúdo, o emprêgo dos capitais volumosos que devem voltar, em tresdôbro, com a segunda ou terceira safra. Da antiga aristocracia territorial o gôsto do " latifundium", que vincula ao solo o homem rural contente do seu exito, absorvido por ele. E corres.ponde á alma brasileira, no conjunto de circunstancias que fazem do café aventura, risco, imprevidencia, vitória, recuperação, proseguimento. O gado na colonia, o algodão no nordéste, os canaviais em S. Paulo antes do surto cafeeiro, tiveram essa índole de penetração, de deslocamento, de conquista ...
Antigamente o bandeirante, devassando os sertões, deixava no seu caminho fazendas de criar. Hoje, a via
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 193
ferrea semeia cidades. O plantador não entra sózinho. Segue-o o comércio. O crédito procura-o. A especulação, o povoamento, a eletricidade, a engenharia urbanista, a capacidade constrl!tiva d'uma sociedade que se esméra em improvizações fixadôras, rastreiam-lhe os paissos. A primitiva importação de muares do pampa consolidára, ao comprido das estradas, os pousos, que, um seculo depois, se chamaram vilas. O " rush " do café fez surgir povoados que em cinco anos se transmudaram em cidades, com o seu bancoJ a sua catedral, a sua usina hidro-eletrica, o seu mercado, a sua praça de jardim e corêto, o cinema, o "omnibus", o hospital, o "club" e a escola grande .. .
O café transita, anda, der ruba as florestas do oéste: mas essas pompas, que viéram com ele, não desaparecerão. Porque nas terras fatigadas branquejaram ( depois de 1920) oo algodoais. As cidades recentes industriali zam-se. A policultura, em que se especializa o braço imigrante, descobre outras raizes de valôr ( 168). A imen
sidade subdivide-se. A colonização paciente :substitue a ocupação transitória e isolada. A coletividade sem préssa, e que fica, sucede ao individuo precipitado, e que passa. A monocultura puxa, sempre para mais longe, as pontas dos trilhos , emquanto o trabalho intensivo aprofunda, nas
terras por onde o café estradeou, uma prosperidade complexa, sólida e múltipla.
(168) Vd. Comte Carton de Wiart, Mt's Vaca11ces au Brésil, p. 133, Paris 1928.
194 PEDRO CALMON
O café é o sertanista.
Bem o compreendêmos no clima histórico de F ernão
Dias Paes Leme.
Industrialismo
Ruy Barbosa fizera da industria uma "questão política" (169).
Considerára que Republica e industrialismo são expressões correlatas. Tivéra em vista emancipar o país das excessivas importações, que lhe drenavam o ouro, dar ás populaçõoo urbanas, sempre crescentes, trabalho rendoso, enriquecer com ele a terra ,atrazada na sua rotina agricola ...
Foi essa mentalidade "ultra-protecionista" que creou um industrialismo exigente, concentrado ( 170).
A tarifa de Ruy ( 11 de Outubro de 1890), francamente protecionista, 45% a 60% sobre trezentos artigos, aumentou logo a receita aduaneira ( 117 mil contos em 1890, 301 mil em 1893), , propiciou a fundação de muitas fábricas, estimuladas, seguidamente, pela tarifa de 1898-1900, pelo advento de capitais estrangeiros á procura do
(169) Affonso Bandeira de Mello, Politica Commercial do Brasil, p. 87, Rio 1933.
( 170) Mattos Faro, Congresso Brasileiro de Expansão Economica, p. 158, Rio 1906.
HISTORIA SOCIAL DO BRAS1L 195
bom negocio, pela instalação de colonos práticos nessas atiividades. A industria <la fiação disseminou-se pelo país. Foi seu patriarca em Minas Gerais Bernardo Mascarenhas. E' o Mauá da tecelagem. Teve o merito de instalar teares que pessoalmente foi comprar aos Estados Unido~ na longínqua fazenda do Cedro ('origem, em 1883,
da primeira isociedade anonima) e introduziu em Juiz de Fóra a industria hídro-eletrica, em 1889,
A cidade de Campos viu primeiro uma usina termoeletr ica e iluminação pública por esse sistêma. Mascarenhas, porém, dotou J uiz de Fóra (por isso, depois, a Manchester brasileira) com a eletricidade que seria força e nervo da civilização nova.
5 de Setembro de 89 é uma efemeride notavel : a iluminação de querosene cedeu á lâmpada incandescente na cidade animada d 'um progresso ambicioso. Completa-se, em 1898, com a inauguração, na fabrica de tecidos que Bernardo Mascarenhas al i fundára, do primeiro motôr
~letrico para a movimentação de suas máquinas (171). Era a passagem, afinal, da epoca dos combustíveis para a dos cont~ctos, da industria velha para as energias ultrapotentes. . . O que fizéra Mauá com a estrada de ferro e o gaz, fez o fabricante mineiro com o dínamo e os alter
nadôres de Westinghouse. O capital e,oArangeiro realizaria em grande, no Rio de Janeiro e em S. Paulo, o que
( 171) Albino Esteves, Bernardo Mascarenhas, estudo biográfico, Juiz de Fôra 1938.
\;nd. U
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em propor_çõr.s modestas, porém n'um exemplo decisivo, tentára com heroismo o 1pioneiro nacional. Em Minas havia 13 fábricas em 1885, 60 em 1915 . . .
Mas em São Paulo se centralizou um parque inrlustrial complexo e florescente, logo o mais importante da America do Sul. Explicam-no o concurso alienigena, a abundancia de dinheiro com a prosperidade do café, o transporte fácil da S. Paulo Railway, o sentido próprio da economia paulista .( de iniciativas audazes, em articulação com o espirito con,strutivo inherente ao ciclo do café ) em contraste com o "conservantismo" peculiar á zona do açucar, a dispersão implicita na industria extrativa da borracha, nas atividades pastorís do sul e do oeste . . .
1898 é uma data ilustre na historia economica do Brasil. A exportação ultrapassa a importação. Terde esta a restringir-se; aquela, a avolumar-se.
Imigração
No decênio (1890-1900) a população brasileira, em S. Paulo, aumentára de 33%, emquanto a estrangeira se acrescêra de 605% ! "De modo que, em 1900, os estrangeiros figuravam com 231 por mil habitantes e os nacionais se reduziam a 768 por mil, isto é, quasi 200 menos do que se verifica em 1890" ( 172). Em 1900 vivem no
(172) T. de Souza Lobo, S. Pau!o na Federação, p. 191, S. Paulo 1924.
H1s1'0RI A SoctAL no BHASI L 197
Brasil 1.500.000 italianos (173). Surgiu dessa colaboração "uno Stato fiorente e una splendida città, come San Paolo" (174).
Entre 1817 e 1920, entraram no país 2.900.000 in1Ígrantes. A década suprema da colotiização foi a de 1887-97: 1. 300 . 000 indi viduos incorporaram-se então ao nosso povo ('175).
Os destinos da 1m1gração cindiram-se, com a coilcentração economica de S. Paulo e a dispersão agrícola dos Estados elo sul. Nestes, a c_oerencia entre velhas e novas formas de trabalho não altera de subito a fisionomia social da província. A absorção dos colonos pelo meio nacional é menos visível, porém intuitiva e gradual: a pequena propriedade, o método brasileiro de exploração do solo, a influencia da terra sobre as familias isoladas, em tres g~rações extinguem o alienígena ( 176). Em certas zonas transformam-no em "caboclo": igual nos hábitOt:S, na vida, na rotina., ao "caipira", menos nos cabelos
1 loiros e na face nórdica. . . O Brasil reage esmagadora-
(173) Maurice Baumont, L'Essor industriei et l'imperialisme colonial, p. 286, Paris 1937. A estatistica indica: 1. 400. 000 italianos, 1.050.000 portugueses, 500.000 espanhóes ... Tambem B. King e T. Okey, L 'Italia d'oggi, p. 490, Bari 1910.
(174) Guglielmo Ferrero, Fra i due mondi, p. 111, Milano 1913.
(175) Carlos Martins, Uma politica de imigração, p. 122. Rio 1929.
(176) Essa assimilação do estrangeiro não justificou o que v. g., diz Maurice Lair, L'Impérialisme allemand, p. 266, Paris 1914.
198 PEDRO CAL MON
mente sobre o trabalhador estrangeiro onde ele não se junta para opôr-lhc, no cultivo da lingua de origem e das tradições européas, o espírito inassimilavel. O episodio <los "muckcrs", de S. Leopoldo ( 1874) , fanáticos alemães capazes da mesma insânia coletiva doo "monges" de Canudos e do Contestado, próva que a selva facilmente aniquila a educação religiosa e a alma ancestral dos homens da Europa (177). Reunidos em "colonias", porém, domaram, venceram a selva, estendendo as culturas da região serrana do Rio Grande ( diferenciação agrícola desse Estado, cujas cochilhas permaneciam entregues ao tradicional pastoreio gaúcho), as industrias e lavouras de Santa Catarina e do Paraná.
Em S. Paulo, o café era tSubstancialmente unificador. Significava a grande propriedade, condensação rural, urbanização, industrias e comércio nutridos pela prosperidade velóz, desse ciclo de trabalho intensivo, absorvente, integrativo. O processo de aglutinação étnica foi violento, defi ni tivo.
Os portos
Os primeiros portos modernos do B rasil - Santos, Manáos e Belem - foram construidos graças ao café e á borracha.
(177) vd. P. Ambrosio Schupp S. J., Os Muckers, p. 31, Porto Alegre 1901.
HISTORIA SocrAL Do BRASIL 199
Bastaria este fáto para marcar a significação nacional das duas culturas devoradôras de detSerto, responsaveis pelo internamento da colonização.
O porto de Santos foi obtido, em concessão, em 1888, (178) pela emprêsa que devia - com os seus capitais e corajosa iniciativa - aparelha-lo rapidamente, para, em 1895, corresponder ao impetuoso surto de progresso de São Paulo: Candido Gaffrée e Eduardo Guinle são os incançaveis diretôres desse empreendimento gigantesco e t1p1co. A S. Paulo Railway (com o,s 2.500.000 esterlinos de capital inglês) e a Companhia Docas de Santos dão ao café - retardado outr'ora por um transporte trôpego - a velocidade dos escoamentos mecânicos, imediatos. Cooperam com a super-produção. Oferecida á concorrencia em 1899 a construção do porto flutuante de Manáos, alcançou-a a firma B. Rymkievicks & Cia., que incorporou em Londres a Manáos Har'bour Ltd., cujas obras, orçadas primeiramente em 19 .450 contos, começaram em 1902. A borracha - com as taxas de exploração, os serviços de cáes - pagaria magnificamente esse auxilio estrangeiro, de ou ro e engenharia inglêses. O porto de Belem do Pará, entregue tambem a concorren.eia, só foi concedido em 1906, ao engenheiro Percival Faquhar, que organizou companhia em L ondrcis, á qual foi o contrato transferido (Decreto de 28 de Fevereiro de 1907, capital de 30. 942 contos). O primeiro trecho
(178) Helio Lobo, Docas de SçmtosJ suas oriflens etc.1 RiQ 1936,
200 PEDR O CALMON
de cáes foi inaugurado em 12 de Outubro de 1909 (179) Ainda a borracha ...
As demais docas tiveram de ser feitas por administ ração ou contraro, nos termos da lei de 1902, que creou a tax~ de 2% ouro e uma Caixa especial, para o financiamento dos traLalhos. Surgiu assim o porto do Rio de Janeiro ( 1903-1910).
Ouro negro
O preço crescente do "cautchú ", a facilidade de deslocamento ela população nordestina ( em seguida á sêca de 1879), o acêsso desimpedido da A mazonia, pelo grande rio aberto á navegação internacional, alardearam a maravilha, crearam a mística do "ouro nêgro", inventaram a "civilização da gôma elastica ", réplica ao " rush " das minas, dos diamantes, do café, que tinham sido anaIogos cícloo dê invasão sertanêja.
O cearense, que acóde ao Solimões, não sabe o que acontece nos centros inclustriª-is elo mundo: as novas apíicações da borracha, a int~rvenção dela em mil utilidades, depois do sistêma de vulcanização, de Goodyear . . . Vê a cotação subir, a despeito do aumento rápido de produção, cio afluxo de seringueiros.
De 2$400, em 1880, o quilo, elevara-se a 3$ em 1890
(li9) Ministerio da Viação - Portos do Brasil -' (Supl~mento 110 Rel<1torio do Ministro), p- 6, Ri9 i91?,
HISTORIA SocIAL oo BRASIL 201
( e a massa exportada, de 8 . 679 toneladas a 16 . 334). Em 1900, o quilo andava por 7$.
Um trabalhador fazia, de renda indi vidual, numa colheita, 4 contos ( 180). Dezenas de milhares investiram o Amazonas (60 mil em dez anos, 1887) (181) subiram-lhe os afluentes, entraram, em tropel os seringais, instalaram-se nessas florestas, com o "'barracão", o
armazem de gêneroo, a "montaria" á beira d'agua, o "rifle" para a caça e - como capital verdadeiro - a coragem.
O dono do seringai é o aventureiro que. primeiro
chega: agréga os adventícios, que toma a seu serviço por um contrato de parceria. Esse acôrdo, para a comum exploração da mata, é atroz e enleiante. E' um instrumento de servidão. Porque o "coronel do barranco" ( 182) enlaça o seringueiro cm obrigações incstrinçaveis, adiantando, com usura, o "aviamento" do trabalho. Ven-
' de-lhe, por preços inclementes, a carabina, o tecido, a munição, o sal, o qucrozene. Criva-o preliminarmente de dividas: o homem não o deixará sem as pagar. Fixa-o ao ávido pesquisador de riqueza - pela miséria. Vende, com lucros mirificos, a mercadoria extraída, e - com a
(180) Miguel Calmon, Valoriza,ãa da fiorracha, Parecer na Camara, in Boletim da Diretoria da Agricultura, Bahia, 1907.
(181) Euclides da Cunha, Contrastes e C 011fra11tas, p. 230.
(182) Vianna Moog, O ciclo do Ouro Negro, p. 38, Porto A.lesre 1931$,
202 PEDRO CA LMO N
mesma simplicidade do ganho, dispersa e díssípa a fortuna, todas aG safras renovada.
Manáos torna-se, em 1890, no coração da selva equatorial, a mais de novecentas milhas do Atlantico, nutn;;. latitude que se diria imprópria para a civilização, uma cidade cosmopolita, que recebe de Londres e Nova York, de Lisbôa e Liverpool, de H amburgo e do H avre, 1106
cargueiros inglêses e alemães, uma apressada · civilização exportável. Antes do Rio dP. Janeiro, que fica mais longe, que a febre amarela corvêja, nos verões fatais aos europeus, que, em breve, a revolta da esquadra fê.cha aos barcos estrangeiros - Manáos obtem as amostras do ultimo progresso, os requintes maiG vistosos ( os ricaços da borracha amam as exterioridades multicôres), os pequenos milagres da industria americana, do "confort ", da arte moderna de ferro e estuque da Exposição de Paris de 1889, do Palacio de Cristal de Londres, dos edificiOG altos de Chicago. Conhece o bonde eletrico, a "casino" e o "cabaret " boêmios, as casas de modas esfuziantes de " novidades", fab ricws de gêlo, logo as dócas, um teatro a<lmira vel, que custou 400 mil libras, digno da fantasia do maharajá no seu reino barbaro e far,to, arquitetura invejavel, todos os a<lemanes ' da metropole nova, construida pelo governador Eduardo Ribeiro (183) (1892-96)... Afon-
, so P enna, em 1907, na sua visita a Manáos, defi niu-a, com ênfase : "revelação da Republica".
(183) Arthur Cesar F erreira Reis, História do Amazonas, p. 260.
Hr~TORrA SocIAL oo BRASIL 203
Essa prosperidade comunicou-se ao porto de Belem (184), povoou o vale. Refletiu nas fronteiras. Fez valer a posse brasileira sobre o territorio do Acre, cujos direitos - á iminencia de uma guerra, conduzida destemidamente pelos vanguardeiros da borracha, com o auxilio do governo, sem ele e até contra ele, se lhes faltasse -( revolta de Placido de Castro, 14 de J ulho de 1899) cedeu a Bolívia, pelo tratado de Petropolis, de 1903.
Em 1874 havia no Amazonas 15 a 16 mil mateiros: era o deserto cósmico. Em 1910, o seu numero passaria de 200 mil. A população do Estado, de 14 mil indivíduos em 1890, em 1900 subira a 250 mil (185). A vida no recésso daquelas selvas haveria de lembrar a das jazidas •de ouro de Minas Gerais e Mato Grosso, no seculo XVIII. Brutalidade, justiça sumária, feudalismo economico, vitória do mais forte, a floresta primitiva, domada pelo homem primitivo. Este - observou Raymundo Moraes - é bem diferente no baixo e no alto Amazonas. ( 186) . Acolá, prepondera o "tapuia" moroso e calmo: é o descendente do indígena de costumes brandos, facilmente catequizado, incluído sem violencia no comércio dos civilizados. Mas
(184) "Nunca S. Paulo e o Rio terão as suas avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de arvores enormes". F. Vcnancio, Euclides da Cunha a seus amigos, carta de 1904, p. 141. E de Manáos: "grande cidade estrictamente comercial. . . "
(185) Recmseamento de 1920, I, 437, Rio 1922.
(186) Raymundo Moraes, Anfiteatro Amazônico, p. 63, S. Pi1ulo 1936,
204 PEDRO CALMON
na zona da " hevea" subsiste o colono vigoroso, o cearense de musculos de aço, o "caboclo" atlético ou sagaz, ágil, bravio, perseverante, que penetra sózinho, com o seu "rifle" e a "passóca" do farnel, varando os igapós, pela et;
pessura da mata, rastreando os seringais, numa luta perene contra os bichos graúdoo - que abate a tiro - e os minusculos, que acabam por abatê-lo. . . Resiste principalmente ao impaludismo.
O drama amazônico é doloroso e titânico, no seu aspecto biologico. O "inferno vê,rde" ( qualificação melancólica de Alberto Rangel, acentuada pelas paizagens lúgubres de Euclides) repele o homem, com as suas exalações letais, depois de atraí-lo com a sua infinda rêde fluvial. A terra foi desbravada an:tes de tempo - conjeturou Euclides da Cunha. Bates adivinhou aí a luta das espécies que Darwin esquematizou, e aí situou W ells a fauna dos ictio_sauros: . o pavoroso e belo cenário da creatura inicial ! Teoricamente inviolavel, abriu-o a tenacidade do nordestino á civilização tentada, comprada pelo abundante dinheiro da borracha. Em 1904, Euclides proíetisou-lhe um destino independente: despegar-se-ia do Brasil, tal um mundo, de uma nebulooa... ( 187)
Viria, :,tpós o deliri'o, a desilusão de crise vasta. Em 1875 o inglês Wickham, que morava em Santa
rem, cumpriu ordens de seu governo para enviar-lhe 70 mil sementes, dos seringais do Tapajós. (188). Essas
~
(187) Co11trastes e Confrontos, p. 23. (188) Tambem Raul de Azevedo, Me,, livrp dr sa11dades, p.
?69,Rio 19~,
HISTORIA SOC IAL DO BRASIL 205
mudas géraram as plantàções de Ceylão. ( 189) . O trabalho sistemático venceu devagar a aventura dispersiva. Quando no Amazonas se julgava estável a prosperidade, ('a exportação da borracha, de 1901-1912, elevou-se a 2. 736. 660 contos, menos apenas 545 . 565 contos cio que, em igual perí odo, a de café paulista) (190) a India se prepara va para dominar o mercado da 'borracha, exat.:mente como o B rasil, em 1860, dominára o cio café. Era a resposta do O riente, que perclêra a batalha da rubiacea e - em condições esmagadoras - iniciava a do "cautchú".
Verdade, Silverio Nery, governador bemfazejo, contratara a construção do porto e forçára o beneficiamento da 'borracha em Manáos. Não bastava.
Em 1906, uma voz autorizada se ergueu no Congresso Nacional, para prognost icar a ruína próxima da Amazonia . Miguel Calmon,. recentemente chegado do Oriente onde fôra estudar as lavouras de Java e Samatra, tendo em vista as da Bahia, opondo-se á valoriza,ção do café salientou por igual o perigo que cor_ria a borracha, se logo não lhe acudiss~m. Palavras proféticas : em 1910 (quando o preço do quilo da ,se ringa akançou 11$, seu limi te maximo) um como fragôr de catastrofe sacudiu aquela flutuante sociedade ( 191 ) que simbolizava no teatro, no Palacio da J ustiça de Manáos a magnificencia impreviden-
(189) Vd. John Ferguson, Ceylo11 in 1903, p. 152, Colombo 1903.
( 190) T. de Souza Lobo, São Paulo na Federação, p. 224.
{191) Pinto Pcssôa1 Selva. Selvapem; P· 201, Rio l9?J.
206 PEDRO CALMON
te. ( 192) Luxo, prodigalidade, esplendôr de fachada, imprudencia aurea e · prazenteira, a vesperas d'uma falencia global, sem precedentes . . . (193) Em 1905, a produção de borracha cultivada era de 150 toneladas, cm relação a 62 mil, da silvestre. Dez anos depois, a daquela procedencia pesava 107 mil toneladas, para 40 .800 do produto nativo, que, em 1925, se reduzia a 30 mil, emquanto os seringais do L evante forneciam ao mundo 452 mil toneladas! ( 194) A exportação amazonica, de 376.971 contos, em 1910, cáe a 58.350, em 1920.
O s ciclos economicos, é certo, torcem-se em espirais . . . A vez do Oriente chegaria: superprodução, prc-ços artificiais ou forçados, desordem de circulação e política tambem, de defêsa e dire窺· O monopolio malai~ britânico surgiu com o plano Stevenson, ( talvez inspira·· do na experiencia brasileira do café), que protegia a borracha, naturalmente contra o principal fr~guez, a America do N arte. Os que tinham preferido a goma asiatica agora se indignavam com a sua valorização: e lembraram-se da Amazonia empobrecida. A proeza de Henry Ford tem, para nós, em 1924-26, um aspecto de reparação incon.scicn'te e fortuita : vitima d,a "técnica", resurge a Amazonia <:orno uma condição de reequilíbrio universal. As vastas
( 192) Saladino de Gusmão, Rique:::as e Segredos da Amaz6-nia, p. 95, Rio 1932.
(193) • V<l. Miguel Calmon, Fátos Eco110111icos, Rio 1913; Arthur Neiva, Daqui e de lo11ge . . . , p. 119, S. Paulo.
(194) Mario Duprat Pinto, Amtarío do Mini#erio da Agriçultura, 1930, p. 123,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 207
plantações americanas da concessão Ford do Pará afiguram-se a muitos uma solução particular do problema da materia prima: é a descoberta, por uma emprêsa, das terras onde a produção é autêntica e barata. De fato, é o resta'belecimento das condições normais do mercado pela reação contra os planos "altistas". E' a resposta da America á India. E', d'alguma maneira, um " monroismo" agricola. Não 6 e repetirão as "californias" de 1890: porque passou o delírio. Mas s~ confirma ainda aí a verdade, de que, no Brasil, á febre das explorações intensivas se segue sempre um detSanimo largo, espécie de hibernação de energias esgotadas, que afinal despertam, mais calmas, experientes, provadas pelas desi lusões, fiéis ao solo. . . Ouro, algodão, café, borracha ...
Café e cacao na Bahia
O preço alto do café, na decada de 80, estimulou as plantações da Bahia, que, entre 1890 e 98, aparece dividida entre duas vivas solicitações agrícolas: o café da linha ·Nazareth e o cacáo do rio Pardo e Ilhéoo.
Em pouco tempo vilas prósperas repontam na região <la mata. A estrada de ferro atinge Santo Antonio de J esus e procura São Miguel e Amargosa. Do vale do Paraguassú, por outro lado, alcança Tapéra. Por ambas as linhas detSce uma produção crescente, sóbe e infiltra-se uma civilização tentacular. Póde sintetizar esse momento histórico, nas suas colinas ferteis, Amargosa. Freguezia cm
208 PEDRO CALMON
1855, arraial tôsco, em 1872, vila em 1877, cidade em 1891, foi, pelo seu activo comercio, pela sua copiosa exportação, apelidada de "São Paulo da Bahia". Em bôa parte esse esforço construtivo se deve á visão economica de um negociante que, a par do seu estabelecimento, ~0111-
pativel com um grande meio ( tem o pretencioso nome de "Paris na America") estende os cafezais, aprimora o produto, tenta a colonização italiana, (195) supre a deficiencia do dinheiro circulante com os seus "vales", melhor aceitos do que o papel-moéda, raro e fugidio. Seu exemplo faz.. honra a uma geração ! Não fôra a traiçoeira alta cambial de 98, que feriu inesperadamente a prosperidade do café, e fábricas, escólas, melhoramentos urbanos, assinalariam ali um progresso estável e irradiante. A partir de 1898 a Bahia ise <leEclassifica, na produção cafeeira: é a oportunidade do cacáo.
Como o café e a borracha, o cacáo (do sul da Bahia) é um fatôr de economia universal : o desdobramento das plantações ( estacionárias até 1884) repercute como outra revelação tropical, nas bolsas de Hamburgo, Londres, Nova York (aberta em 1925) (1%) . Os inglêses intentam realizar, na Costa do Ouro, façanha simétrica á do "cautchú" de Ceylão (1879) (197). Têm crédito, transporte, clima
(195) Raphael P . de Miranda, Cultura do Café na Bahta, p. 47, Bahia.
(196) Boletim do Minisl :rio da Agricultura, I, 104, Rio 1926.
(197) Torres Filho, E~pansão Economica do Brasil, p. 309, Rio 1935.
HISTORIA SocrAL DO BHASrL 209
propicio e - vantagem de que não <li spuzeram os holandezes em Java - braços sobejantes. Pódem presente.mente dispôr de um milhão de trabalhadores numa área agricola de 500 mil hectares, r::tzão por que, com o tripio pa produção, conqui.,;taram o primeiro Jogar no c'.Jmercio mundial de cacáo. Em numeros relativos, porem, o coeficiente brasileiro, é mais expre~sivo. Num decenio afi nal ( 1926-36), o aumento da produção anglo-africana seria de 16%, e o da Bahia, 103%. ( 198)
Filia-se o movimento de colonização do sul <la Bahia á crise das Lavras Diamantinas, depois da qué<la dos preços das pedras pre~iosas, em 1870. Reproduz-se o fe·!lÔmeno das migrações internas, perisistente em todas as epocas <la nOtSsa história.
Em 1884 delineia-se a pénetração. Em 1887 a expor tação é quatro vezes superior á <l~ um decenio ;mtes. Surge a Bahia cóm o virtual monopolio <la amendoa <lo ,país. Em 1890, o Brasil remete S mil toneladas ; em 1897, 7.632. Tres anos mais tarrle - o dobro. Em 1905 ('em quadra de deprt,!ssão economica, quando o valor da borracha supera o do café de Santos ) o cacáo do Brasil pesa 17.152 toneladas. São 25.142 em 1910 ; e em 1914 - - ao limiar da Guerra - 36.679 (20.838 contos de réis, em contraste com os 7.967, da exportação de 1897) ( 199).
( 198) Ignacio Tosta Filho, Restabelecendo a verdade sobre o cacaii brasileiro, p. 12, Bahia 1936.
(199) Mario Ferreira Barbosa, Anuário Estatistico do Estado da Bahia para o ano de 1924, Bahia 1925.
210 PEDRO CALMON
Como se ?rganiza essa riqueza? De começo, é a inva5ão, o tumulto, o "far west". Antigos proprietarios recúam diante da audacia, da esperteza e do crime do adventício. Tomam as terras bem e mal, na 6Urpresa dos esbulhos ou na astucia do "cachiche", termo que designa o "grileiro" ( como em S. Paulo se diz), o especulador do que nfto possúe, o embusteiro que explora a ignorancia do sitiante, que rouba o dono legitimo ou engana o forasteiro, mas, ap~zar de tudo, na febre da ocupação, um agente de cultura. . . A ordem vem com tempo e vem sem préssa. A sociedade á roda de Ilhéos em 1890 vive a sua epoca heroica, como o garimpeiro de Mucugê em 1844, como o "emboaba" das Gerais em 1700, como o faiscador de Garças, no Mato Grosso, vi;ite anos depois. Policiamento, direito, tranquilidade, cristalizam-6e cm temperaturas proprias. Foram energicas intervenções no sul do Esta<lo que o livraram dos rnáos elementos já desaclimatados e espor.átlicoo em 1908 e 1910. O "cachiche" passou. Ficou o cacaual.
E' o sucedâneo do açucar na economia - de caracteristicas estáveis, de índole pacifica - da Bahia, cujas perspectivas sociais foram, as do Brasil, noo tres primeiro5 seculos.
A crise do "ouro verde"
A "corrida" aos cafezais levava comsigo a consequencia de uma cri6e iminente e esmagadôra: a crise de superprodução.
HrsToRIA SocIAL oo BRASIL 211
Em 1896 - inquiétos, a vésperas de uma geral baixa de preços - os governos de São Paulo e do Espírito Santo promoveram a convenção de Petropolis, para apreciar o remedia mais consentâneo á extensão do mal.
Nada conseguem.
Em Outubro de 97 a calamidade está no auge.
Em 1896-97 vendíamos 8.68Q.OOO sacas das 12.608.000 da exportação mundial. Ficaram sem comprador . ·. . 1.581.440. Estimado em 12 milhões o consumo total, verificou-se que o porto de Santos podia abastecer, com saldo, toqos os mercados. E os inglêses, os holandêses, os francêses? A quéda de valôr somou-se á da cotação, em virtude da alta cambial provocada pelos ministerios de Bernardino de Campos e Joaquim Murtinho, pelo "funding loan" de Campos Salles, pela regularização fi
nanceira do governo deste. A exportação de Santos cáe, de 6.053.521 sacas, em 97-98 (a 13$400 por 10 quilos) a 5.535.361 (a 10$200), em 98-99. A produção, porém, triplicára em sete anos. O Brasil dispunha, em 1900-1901, de 16.145 mil sacas. Arruinam-se os produtôres de outros Estados. São Paulo resente-se desse declínio na sua massa exportavel, que até 1906 oscila entre 6 e 7 milhões, por preço, de unidade de 10 quilos, que se deprime constantemente, de 8$800 (1900) a 4$400 (1906). (200) E' um decenio máo em sucessão a um decênio magnifico. Ao contrário, a aceitação da borracha intensifica o "rusch"
(200) Valorização do Café, p. 12, Rio 1906 (do Boletim da Associação Comercial).
Cad. 15
212 P EDRO CALMON
amazônico, dá ao extremo norte uma importancia inesperada, no quadro da riqueza nacional. .Em 1905, a exportação do café em Santos valeu 176.907 contos, e a do "catchú", 226.174 ! Os industriais estão satisfeitos, amplamente "protegidos' ' ( tarifa Murtinho). Mas uma indefinível angustiá estrangula, no sul e no nordéste, a lavoura oprimida pela desvalorização que se acentúa de a 110
para ano.
"O período de então ( quando se reune, em 1901, o 1 .° Congresso Nacional de Agricultura) era angu~tiosissimo para o país: ás ancias da crise financeira, juntavamse os tristes prenuncios de uma crise economica, bem difícil de ser con jurada: todos se sentiam desanimados ante tal emergencia, que a muitos .parecia um fenômeno t:Xtraordinario, e, por assim dizer, peculiar ao nosso meio. Julgava-se, então, que a crise seria insoluvcl, e que, talvez, ao lado da falencia, por muitos esperada, sobreviesse o completo aniquilamento economico do país". (201)
Reclamou-se a intervenção oficial.
Esse! apelo ao governo, para que saísse de sua indiferença constitucional, do liberalismo economico, r,róprio da nossa organização política, para socorrer o café. pôz em jogo a preeminencia de S. ' Paulo no regimen. Acertou-~e que, sem um convênio, que limitasse em quotas a exportação "regulando" a venda, e assim, pelo equilibrio estatístico, mantendo a alta do café nos Estados ünidos, dada ,1 .,,itua-
(201) Miguel Calmon, Discurso inaugurando o 2.º Congresso Nacional de Agricultura, Fatos Eco110111icos, p 253-4.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 213
ção dominante do Brasil nesse mercado - jamais a produção se reanimaria.
O convênio de Taubaté é a maior novidade econômica do tempo.
Vale por uma alteração ::.uL6tancial de política, instinti vamente no rumo da economia dirigida, o que tntão não se percebe claramente; é - clamam os outros ramos da lavoura - um favôr concedido (202) ao produt0 p,.ulista ( o que sobejamente se justifica pela prcponckrancia
dele na economia brasiieira); e significa - adv-:rtem outros - um fatal convite aoo nossos concurrentes, p 'l.ra que se prevalecessem do bom preço e tratassem ele produzir, desalojando algum dia o Brasil de sua posição privilegiada... (203) Estes, viram profcticamentc ! (204)
Primeira intervenção
O convênio de Taubaté, que entra no rói das grandes medidas politico-economicas da fase de transição, do Estado liberal para o social-democratico ( da a eutralidadc para o intervencionismo) - não veiu embrulhado em es-
(202) Vd. Valorização do Café (Do Boletim <la Associação Comercial) , Rio 1906.
(203) Vd. discurso de Calogeras, 1908, Documentos Parlamentares, Valorização do Café, II, (Rio 1915).
(204) Vd. Louis Rongier, Les Mystiq11es t cono miques, p. 97, Paris 1938.
214 PEDRO CALMON'
peculações doutrinárias, senão, empiricamente , induzido por duas experiencias que parec iam aboná-lo.
A geada de 1902, desfalcando a produção, mclhorára o preço. Em 1903 surgiu em São Paulo o imposto em especie, "_para a in cineração de uma parte do excesso de produção". (205) Acende-se a fogueira que havia de consumir - no proseguimento inflexível do_ plano de valorização - fabulosa quantidade de café. . . Frio, que mata o pé; fogo, que reequilipra os '\stocks". . . Restaria sistematizar a retirada dos sobêjos. para " estabilizar" o preço.
O governador paulista Jorge Tibiriçá propoz a reunião, em Taubaté, de seus colégas de Minas Gerai6 e do Estado do Rio. O presidente da Republica bafejou o acôrdo, "que inaugurava um método até então desconhecido nos anais do direito comercial". (206). Urgia, porque a questão das candidaturas, á sucessão de Rodrigues Alves, enfraquecia a olhos vistos o governo federal. Esboçava-se a reação contra o Partido Republicano Paulista, encél:_beçada por Pinheiro Machado, e de que resultaria a apresentação, rnntra Bernardino de Campoo, do nome de Afonso Pena, vice-pr,esidente da Republica. No quadrienio deste, o convênio cafeeiro não seria possivel. (207)
(205) Armando de Salles Oliveira, Discurso em Jahú, 1934, Defesa do Café no Brasil, II, 172 (Rio 1935).
(206) Maurice P iettre, Produétio11 industrialle du café. p. 152, Paris 1925; e H. E. Jacob, Biografia de[ Càffé, p. 324.
(207) Vd. Documentos Parlament1res, Valorfr:ação do Café,
II, 56 ( discurso de Cincinato Braga, 1908).
HI5TORIA SOCIAL DO BRASIL 215
Não lhe daria assentimento o Presidente, que chamou para ministro da viação (pasta que englobava 06 negocios da agricultura, destacados em ministerio á parte em 1916) o deputa.do Miguel Calmon, infenso, nas comissões e na tribuna parlamentar, á fómmla de J orge Tibiriçá. (208) Os mineiros tentaram ainda "torpedear" o convenio, alvitrando tambem--1 em Taubaté, a fixação de um cambio, a ta.-xa <le 12, o que corrCGpondia a uma operação mais complicada, de repercussão profunda. Rodrigues Alves tomou essa sugestão como "sabotage" de adversarias, e na sua "vitSta geral da administração" ( 1906) a ela se referiu, com azedume: "Foi uma surpresa o que se passou então. Em vez de se restringirem á questão· do café, que era urgente, da atualidade, enveredaram os negociadors do acôrdo pela da moeda ... " Venceu o pensamento do Partido Republicano Paulista e foi firmado o convênio em 26 de Fevereiro daquele ano. ContSistia na sobre-taxa de 3 francos por . $aca, proíbida a exportação ?e cafés inferiores. Garantido pela sobre-taxa, seria contraído um emprestimo, até 15 milhões esterlinos, para a "regularização do comercio de café e sua valorização". (209) Os dous Estados retraíram-se. A U njão aprovou. A cargo de São Paulo ficou o financiamento do serviço: mediante emprestimos consolidados, em 1908, pelo de 15 milhões de libras a que deu o seu endosso a União. ( 1 milhão do Desconto Gese-
(208) Vd. discurso <le Barbosa Lima, na Camara, 19 de Novembro de 1908.
(209) Defesa do Café iio Brasil, I, 206, Rio 1935.
216 P EDRO CALM ON
leschaft, resgatado com os 3 milhões da casa Schroeder (210) resultantes do arrendamento <la Sorocabana, 3 votados em 1907 pelo Congresso Nacional ).
Menores safras, rasultantes de transtôrnos climatéricos, tornaram dispensavel outro apêlo á intervenção oficial até 1917, quando, á iminencia da quéda dos preços pelo excesso da oférta, na·s circunstancias desfavoraveis que a Grande Guerra creára, o governo federal emprestou 100 mil contos ele réis pa ra segunda e oportuna retenção
dos cafés de 9,47 centavos (Novembro de 1917) para 1 J centavos (Abril de 1918). (211)
Em 1920, porém, patSsára a reação salutar do mercado norte-americano. A confusão européa, a super-produção, agravaram as condições do comercio. Os altos preços (27 centavos em 1919) declinaram até os limites desanimadôres de 9 1/ 2 centavOtS, em princípios de 1921.
A lavoura pediu de novo o auxilio da União. Atendeu-a o presidente Epitacio Pessôa, desta vez resolvido a consu'bstanciar as providencias federais n'um "tSchema" de defésa continua. Um empresti_mo de 9 milhões de libras permitiu-lhe separar 4 e meio milhões de sacas (liquidadas até 1924).
Em 1924, afinal, t ransferiu a União para o governo paulista a direção dos negocios de " defesa do café". F oi instalado o Instituto para este fim. Agiria com os fundos
(210) H . E. Jacob, op. cit. p. 327.
(211 ) Roberto Simonsen, A spectos da Historia Economica áo Café (tése apresentada ao 3.° Congr. de Hist., -1938).
HISTORIA SOCIAL 00 BRASIL 217
obtidos com a cobrança da taxa de mil réis-ouro sobre todo café que Gaisse do Estado. Esse organjsmo de "con
trôle" da exportação - pelo principio de que a regularização dela, obstando ás ofertas desordenadas, sustentaria as cotações no estrangeiro - cuidaria igualmente do fi nanciamento dos agricultores e da intervenção no mero -
' . do, para corrigir flutuaçõeG ruinosas. Atos complementa-res do plano foram, em 1926, o emprestimo de 10 milhões de Iibra,s feito pelo Instituto, com o apoio do Estado, para constituir o fundo permanente ,de defêsa, e a creação do Banco do Estado de S . Paulo, com o principal escôpo de
financiar os cafés paradoo nos armazens reguladôres (212 ,.
(212) Roberto Simonsen, tése cit. Depois de 1920-21, a crise mais séria que atingiu o café ocorreu em Outubro de 1929. Para remediá-la foi feito, em Abril de 1930, um emprestimo de 20 milhões esterlinos, cujo serviço correria por conta da taxa de 3 shillings por saca de café em Santos e a amortização pela venda mensal de 137. 500 sacas. Os stocks, em 1 de Julho de 1930, elevavam-se, nos armazens reguladores, a 21 milhões de sacas. Depois de 1931, creado o Conselho Nacional do Café, aplicou-se cm parte o plano do sr. O 1arles Murray, de destru:ção das sobras, adquiridas pelo produto d'uma sobre-taxa. Instituto sem similar no mundo - disse o presidente Dino Bueno, na mensagem ao Congresso de S. Paulo, de 1927 . . .
XII
DISPERSÃO E CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA
Os deslocamentos de população assinalados, no Brasil, nos tres secul06 da formação nacional, corrigem agora ,o sentido litorâneo e a timidez agrícola da economia do Império.
Migrações
A invasão do Amazo_nas pelos " retirantes" do Ceará é o fenomeno típico da história nordestina de 1880.
Na decada suooequente, a onda de "seringueiros" in-, veste a zona limitrof e com o Perú e a Bolívia e acha o ·Acre. Sóbe em direção ás Guianas e impede a expansão fr;mcêsa pelos entre-rios do Oyapock. Desce, no rumo de Matto Grosso, em busca d06 itinerarios cuiabanos, avivados por Couto de Magalhães e desbravados afinal pelo
HISTORI A SOCIAL DO BRASIL 219
general Rondon. serto; e a quéda natureza voraz ...
A valorização da borracha revela o deda borracha não consegue restitui-lo á
O desencanto, do ciclo do '' ouro ne-gro", deixou povoado o vale imenso.
Não é menos profundo o movimento povoador que
parte da Vacaria, no Rio Grande, e s,e insinúa, estimulado pela guerra civil de 92-95, pelo sul do Matto Grosso, en° contrando, no vale do Paraná, os aqi.mpamentos da Companhia Mate Laranjeira, que até 1916 teve o monopolio da exploração doo hervais, tão cobiçados outr'ora por Francisco Solano Lopez. (213) Extinto o monopolio, a colonização lá se emparelha com o surto industrial, e corresponde ás esperanças que a linha ferrea da Noroeste 1evára aos confims ocidentais do país. O Rio Grande do Sul é igual a si mesmo na planície, por onde corre, tremulando ao_ "minuano", o poncho "guasca" do peão : mas
é diverso na região serrana, onde se localizam as novas colonias alemãs e italianas. .Aiqui, a agricultura e a industria de feitio estrangeiro esboçam um tipo social sedentario, pacifico, quasi indiferente ao cavalo, que é, nas cochilhas, o complemento do vaqueano. Dous Rio Grandes se defrontam nas vizinhanças de Porto Alegre: o de S. Leopoldo, de Montenegro, de Caxias ou do Erechim ( o municipio brasileiro de propriedade mais dividida), vinhateiro, cerealífero, industrial, da gléba bem repartida, e o
(213) Virgílio Corrêa Filho, A' Sombra dos hervais matogrossenses, S. Paulo 1936.
220 P2:DRO CALMON
dos campos, onde as " estancias" nucleiam a vida pa6tor:1 heroica, primitiva e tradicional.
O arame, o frigorífico e a melhoria dos rebanhos, a exemplo do qqe se passava na Argentina e no Uruguai. aprimoram e reorganizam ffisas "estancias ", que não são mais o " fogão" rude, a casa desataviada, as dependcncias pobres do tempo cm que o conde d'Eu atravessou a provincia acompanhando o Imperador ( 1865) . Na A rgentina a seleção do gado começou em 1826, os cercadCJIS ele arame em 1844, as instalações frigorifi cas em 1882. As <luas primeiras iniciativas foram de inglêses. ( 214) O arame, sobretudo, dando á distribuição da terra uma nitidez definitiva, induziu á concentração dos gados, ao afinam'.'nto das raças, á boa administração doo "plantéis", á ordem serena e útil das fazendas. Na primitiva indeterminação das "sesmaria" prevalecia a ocupação violenta; nas Iínhas dos "aramados" prepondera a discriminação jurídica. A par da propriedade desmesurada, os "si tios" pequenos· se limitam e se definem. A cada posse corresponde um balisamento notório. Da imensidade das pa8.tagens resalta um equilíbr io social : é a garantia da prosperidade no resguardo seguro dos seus 4ireitos. As estacas e o arame farpado contrariam beneficamente a tendencia nómade de pastoreio; fixam-no; aperfeiçôam-no ; emprestam-lhe a fi .
• sionomia - antes privativa da lavoura - do trabalho es· tável. O gêlo veiu depois. Imprimiu á industrializaçã:)
(214) Orlando Williams Alzaga, 2.° Congresso Internacional de Historia de America, III, 195, Buenos Aires 1938.
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 221
da pecuaria um caracter novQ: assegurou-lhe a freguezia ir1ternacíonal. Com o sal á moda cearense, Pelotas te.;<'! o seu xarque no fim do seculo ·XVIII : foi, em todo o seculo seguinte, o alimento básico, com a farinha de mandioca, do trabalhador brasileiro, especialmente no norte. Com o gêlo á maneira francêsa e inglêsa (a invenção do frigorifico é de 1872) principiou, no sernlo XX, a exportar carne vêrde.
ltinerarios do planalto
A mesma separação de costumes rurais é uma con.;;1:quencia da imigração intensiva entre os rios Pelotas e Tietê,
O planalto não é mais a ampla região dos gados sôltos, das "tropas" de muares tangidas do "pampa", da-;
vilas-fortes que, segundo Saint-Hilaire, tinham o aspecto agre5te de "redutos" no deserto. Ter ras de fraco povoa
mento até a díréta comunicação com o litoral ( estrada de ferro de Paranaguá a Curitiba, 1885, estrada de rodagem
da Graciosa, 1879) por isso mesmo foram absorventémente investidas pelos colonos loiros que se dividiram, en1 agricultôres, agarrados aos seus "lotes" de milho e cei, teio, e industriais, derrubadores da flora;ta de pinheiro~,
extratôres da herva-mate do oéste.
A estrada de ferro, que t ranspôz a serra do Mar segundo o plano de Antonio Rebouças ( que a queria,. entre~
222 P E D R O CALMON
tanto, a partir de Antonina), descobre, para o contSumo nacional, o pinho do Paraná.
No seu diário, conta André Rebouças - cuja empresa, para explorar essas reservas florestais, fracasso!.l como uma iniciativa temeraria - que em 1872 o engenheiro Wurffbam lutava por introduzir no mercado de Buenos Aires as madei ras dessa província . .. (215 ) Antes da inuaguração da linha férrea, o tráfego pela Graciosa era de cerca de oitocentas carroças, principalmente carregadas de herva-mate ( 216). Atingindo os trilhos a campina curitibâna, o barão de Serro Azul ( um dos Corrêati , a cujo prestigio politico se devia a vitoria de Paranaguá sobre Antonina, onde predominavam os Araujos, como ponto inicial da ferrovia) logo instalou a sua ,serraria a vapor de S . Sebastião da Roseira, modelar a tSeu tempo, (217) e a que se seguiram outras, n'um subito incremento de atividades desbravadôras.
O "rusch" da madeira, sem a importa,ncia das "entradas" do gado e do café, da 'borracha e dos diamantes, teve igual sentido de ocupação itinerante dos sertões, invariavelmente em marcha para o oéste. Os pinhais que envolviam Curitiba e dera~-llhe o nome ( em tupi, "muitos pinheiros"), desapareceram, em trinta anos de devastação
(215) André Rebouças, Diário e notas autobiográficas, p. 213, Rio 1938.
(216) Euvaldo Krüger, Cincoentenario da Estrada de Ferro do Paraná, p. 66, Curitiba 1935.
(217) Krüger, Cin,coentenario cit., ibd.
B:rsToRrA SocrAL DO BRASIL 223
s1stematica. A pequena cidade de S. José dos Pinhais conserwa u!n titulo vazio d~ significado : á sua volta não se vêm mais as araucarias elegantes que vestiam a terra plana. O serrador foi procurar as reservas flores tais do vale do Rio Negro e doo campos de Guarapuava. A colonização agrícola sucede á penetração destrutiva : pelo menos tomba o pinheiro e fica, com a sua fertilidade inta
cta, o chão adubado pelos detritos do gigante destruído. O café, este sim, é implacavel. A araucaria cáe a machado ; e é imensa queimada que prepara o terreno ao;; cafezais. (218).
A "onda verde" não perdeu a direção de les-oeste, que a conduziu, em 1850, de Taubaté para Campinas, e
em 1870, daí para Ribeirão Preto. Alargou a sua árq produtiva abraçando, na ver tigem da incursão atropelada, serras ainda ha pouco infestadas de indios. O trabalhador
paulista Gocorreu-se do nordestino e do colono europeu, para atacar mais duramente a mata. O belo salario dos cafezais reabriu o caminho interno das "tropas" de escravos que, na c.lecada de 70, comboeiros do 11orte iam vender nas cidades da Mogiana. "Desceram" os "sampaulei· ros": caipiras desanimados pela sêca, roceiros expulsos pela "politicalha" sertaneja, aventureiros á busca de melhor vida, ou simplesmente de outra vida, familias numerosas, milhares de lavradôres em exodo interminavel pelo vale do S . Francisco acima. E&Sa migração interior supriu
(218) Vd. Affonso Arinos, Historias e Paizagens, p. 169, Rio 1921.
224 PEDRO CALMON
de braços, na epoca aurea, a região do café, que se não circunscreveu ao oéste, onde as cidades surgiam como nos contos de fadas, improvizanclo-se, no acúmulo repentino
de elementos de progresso - mas acompanhou o traçado da Sorocabana até o vale do Paranapanema.
Centro e norte
A animação economica em Minas Gerais não se dis
tcibuiu com a mesma uniformidade. O norte do Estado, e iseus velhos centros de mineração do ouro, conservaram
a fisionomia tradicional, de povoações condenadas a perpetuar uma arquitetura nobre e ar.caica numa paizagem si lenciosa. O sul, a zona da mata e as ter ras ferriferas á
roda de Belo Horizonte - grande cidade que em trinta
anos ise tornou uma das melhores do país - ritmaram entretanto o seu progresso pelas influencias paulista e fluminense.
O café revelou, enriqueceu a faixa sul-mineira e o Espírito Santo. Na Bahia, porém, declinou, suplantado pelo cacau das plantações 'do sul, entre Illhéos o rio Doce.
A população sergipana fixou-se mais nu seu Estado optimamente clota,do de industrias equidistantes, pequenais propriedades, viação economica. Ao contrário, Recife se tornou, no nordéste, a capital da cultura de quat ro Estados, graças ao seu porto moderno, ás estradas de lá irradiante,,,, á atr;_,ção do seu comercio. O algodão - como
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 225
no tempo de Tollenare e Koster - substi.túe o açucar adstrito á zona histórica dos canaviais pela crise permanente em que se debate. O período das usinas, que assimilaram os engenhos velhos, começou com o governo de Barbosa Lima, que emprestou, sob garantia hipotecaria, dinheiro aos industriais, para transformarem com o maquinário novo as fábricas decrepitas. Passando de engenhos coloniais, com a sua lentâ moenda, á categoria de grandes estabelecimentos, a exemplo do engenho Quissanan, em 1877, transtornaram da mesma fórma as relações sociais e a fisionomia economica, no litoral canavieiro. A industria subdividida simplificou-se, no virtual monopolio de zonas, das usinas que devoraram banguês e engenhos. (219) Os senhôres desalojados tomaram o caminho das cidades : as usinas destruíram os aristocratas do ciclo da cana, (220) e a Faculdade de Direito de Recife diplomou os bachareis. A Bahia e Pernambuco sofreram diferentemente essa mutação de cenários, na fase de importação dos grandes maquinismos. O governo pernambucano, em 1893, teve a iniciativa corajosa de facilitar a instalação das usinas, salvando do abatimento irremediavel uma elite de antigos senhôres. O da Bahia encontr:i.ra uma industria débil e r:lesconc~rtada, e procurou transformá-la em 1898, mediante emprestimos para a construção do primeiro grupo de tres usinas, sistema cujo fra-
(219) Gilberto Freyre, Nordeste, p. 195, Rio 1937.
(220) Vd. Júlio Bello, Memorias de 111n senhor ~ engr.11/io, p. 234, Rio 1938.
226 PEDRO CALMON
casso lamentavam os governadores seguintes, até a liquidação ào negocio em 191 O, com quasi total prejuizo para o Estado. ( 221 ) Algumas usinas particulares na Bahia mantiveram emfim naquele reconcavo de tantas tradições a coerência do ciclo do açucar. Na policultura, porem, acharia o Estado as suas substanciaes fontes de renda.
Cana de açucar, algodão . ..
A associaçã0 dos produtôres remediou d'algum modo, a partir de 1898, a crise da lavoura. As Conferencias açucareiras interestaduais ( 1901, 1903, 1905), a Sociedade Nacional de Agricultura, a Sociedade Bahiana de Agricultura, a Auxiliadôra da Agricultura .de Pernambuco, se, de um lado, orientaram os Congressos, ácerca das necessidades rurais, do outro aproximaram e reuniram os interessados, para a defesa comum de suas aspirações. Resultado disto foi a lei de 11 de Junho de 1904, extinguindo os impostos interestaduais, de tão nociva influencia na economia brasileira... (222)
O que se passou em Alagôas serve bem de índice á transição da éra do açucar, da sua modesta e descoordena-
(221) V d. Mensagens dos governadores José Marcelino e
Araujo Pinho, p. 48, Bahia 1908, e Bahia 1909.
(222) Vd. Miguel Calmon, discurso, Trabalhos da Co,1ferencia Assucareira do R ecife, p. 34, Recife 1905.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 227
da fórma "banguêseira" para a concentração das fábricas absorventes. Em 1907 havia ali seis usinas apenas, que da
vam trabalho a 828 operarios. Capital invertido: 3 .140 contos. Em 1920, 15 usinas, 941 operarioo, 12.063 contos.
de capital. Dez anos depois, 27 usinas, 6.284 operarios
e 81 .158 contos de capital. Dos engenhos subsistentes,
40% tinham os fógos apagados; limitavam-se a fornecer
de c~nas a grande entrosagem. '.. (223)
Leia-se qualquer mensagem de presidente de pro
vincia alagoano ou paraibano no :segundo reinado: a frase
é sempre igual. Açucar e algodão, principais, ou unicos produtos de
0exportação. . . Em 1797 ou 1810, em 1862,
deprimido o preço do açucar e em alta o do algodão, muitoo senhôres de engenho abandonavam a moenda e o canavial, para cultivar a sua malvacea. E sse sucedâneo
ide atividades ambiciosas mas contrariadas, energicas e
tantas vezes malogradas, distribuiu pelo nordeste todo, do
S. F rancisco ao Parnaíba, aquele plantio capaz de retêr as
· populações nas suas área:s férteis, de nutrir um comércio
que as distancias e o clima enlangu~scem, de manter, á roda de suas vilas antigas e paradas, o cabôclo tenaz, que
resiste á sêca, á depreciação das safras, ás condições rudimentares da vida, graças ao vigôr e ao estoicismo da
raça... Raça mésclada de tapuia. Aco'breada nos cal-
(223) Humberto Bastos, Assitcar & Algodão, p. 72, Maceió 1938.
Cad. 16
228 PEDRO CAL!v!ON
deamentos que deixaram viziveis e nitidas as influencias do
potiguar ( o duro selvagem dificilmente domado), do caeté,
do gê. . . População que se tis na de parentesco africa
no pPrto das zonas açucareiras e alcança quasi a pureza
indig~na no sertão enxuto dos algodoais. Apezar dessa
clara herança brasileira, doo nómades primitivos, o homem
é fiel á terra. O emigrantismo do cearen<;e ( e em regra
do nordestino) não é uma propensão, é uma defesa. Reti
ra-se a custo de sua "caatinga" sem agua para ir tentar
nas reg;ões húmidas a fortuna que lá não acha. Os re
tirantes partem dos municipios flagelados, para a Amazo
nia principalmente, ou para o sul. Muitos voltam. A
proporção do exodo não é de ordem a despovoar o sertão
mais inhóspito: mal a chuva de novo o reverdésce, rcsur
ge, para retomar o que é seu, o pequeno lavrador resigna
do e rijo... Ha seculo e meio planta e colhe algodão: é o que de melhoi:. tem para exportar. A sua "roça" de
mantimentos, esta é escassa e desigual. Nas habitas do
nordestino a produção rac;onal e domestica, do que faria
a abastança do colono europeu, cereais, as farinhas, o pão, para o prato e a "feira": ainda não f:gu ra, como ha cin
coenta, como ha cem anos. A' falta dessa agricultura in
dividualista, que enraiza na gléba o camponez, ele é um
desprendido. Desloca-se facilmente. Foge e regressa.
Af!úe em massa onde ha um salario, obras públicas ('açu des e estradas ) , usinas e fábricas. Mas as fábricas são
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 229
raras. (224) Melhor do que ás atividades sedentarias, ajusta-se no pastoreio, onde lho permite o meio fisico.
No Ceará, no Piauí, no vale do S. Francisco, subsis
te a "idade do couro" de que falou Capistrano. Um re
latorio de 1800 conta que em Aracatí havia carnes secas de cincoenta mil rezes abatidas por ano, e a exportação do algodão pas·sava de 20 mil arrobas. (225) Cearense é o processo de fabrico do xarque, que um cearense levou
para Pelotas, iniciando dest'arte a industria "saladera" no Rio Grande. Chamava-se José Pinto_ Martins : emigrou em consequencla da sêca de 1777. (226) Desta, resultou a "xarqueada" gaúcha. Da sêca de 1877, o cíclo da borracha ...
O homem pode queixar-se do transporte, de que carece,. das estradas, que são más, ou não existem, das distancias que lhe confinam o trabalho assim inaproveitado,
quando chove, e impossível, quando não chove. . . Mai:: do que o litorâneo, que tem a seu serviço os itinerarios marítimos, para ele os inventos modernos constituem uma libertação. O caminho de ferro_ fecundou uma zona, em prejuízo das demais. Mas o automovel (na decada de
(224) Vd. Raimundo Lopes, O Torrão Maranhense, p. 194, Rio 1916.
(225) Barão de Studart, Notas para a Historia do Ceará, p. 499, Lisbôa 1892.
(226) Fernando Osorio, A Cidade de Pelotas, p. 29, Pelotas 1922.
230 PEDRO CAL::\ION
(1920-30) se insinúa em todas as <lireções. Mais tarde, a aviação completará o prodígio, da anulação dos óbices geográficos, pelas comunicações imprevistamente rapidas ... Henry Ford disse bem; ''O autom~wel está destinado a fazer do Brasil uma grande nação" (227). Porque se antecipa á estrada . ..
(227) Hoje e Amanhã (trad. de Monteiro Lobato), p. 233, S. Paulo 1927.
XIII '
O CLIMA DE 1902
O exito de Campos Salles
O exito financeiro da presidencia Campos Salles foi total.
O minis.tro Joaquim Murtinho ganhou· fóros de financista hábil e exemplar. Economia, impostos, seriedade nos pagamentos da divida externa, drásticas medidas administrativas, restauraram a confiança estrangeira no crédito do Brasil, desmoralizado lá fóra depois de 1889. O cambio :subiu a 12, os títulos da divida publica melhoraram de 35%, o tesouro dispunha em Londres de 3 milhões esterlinos em deposito.
A política do quatrienio não foi tãg feliz, mas permitiu ao presidente a realização inexoravel do seu progrâma. Como Prudente, não se preocupou com partidos, senão com os governadôres, que lhe retribuíram o apoio, apoiando-o, Gra<;as a esse sistêma ( que tinha sido o de J uarez
232 PEDRO CALM:ON
Celman, na Argentina) ao cabo do seu período constitucional podia Campos Salles passar o governo a outro estadista do Partido Republicano, de São Paulo. Os governadôres foram ao encontro dele. Tratava-se de crear um processo aparentemente democratico para a indicação do futuro presidente. Uma convenção de delegados dos governadores reuniu-se no Rio. Duas !orças pezavam sobretudo: São Paulo e Minas. O retraímeito do Rio Grande, em que se robustecêra o "castilhismo", dava a Pinheiro Machado autoridade para movimentar a política. Uma fórmula que aliasse São Paulo e Minas significaria a estabilidade desejada. Nenhum outro Estado podia disputar-lhes o bastão de comando. A convenção escolheu Rodrigues Alves para presidente e Afonso Penna, que acabava de governar Minas, para vice-presidente. Dous nomes do passado regímen - estranha_ram os florianistas, que ainda não se tinham dispersado de todo. Ambos conselheiros da monarquia . Par isso mesmo experiente:; e moderados - aplaudiram as classes conservadoras.
Os conselheiros
Foram eleitos. Nem podia ser de outro modo. A convenção valia por eleição prévia. Ficou o costume. Até 1930, a sucessão presidencial girou á roda d'urna convenção de representantes dos governadôres, substituindo partidos inexistentes , idéas que se não juntaram em fórma de movimento forte, senão nos arraiais da oposição,
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 233
condenados inicialmente á derrota pela falta de garantia e autenticidade dos pleitos presididoo pelas "situações" comprometidas, pelos governadôres-votantes . ..
Mas os conselheiros não eram personagens inativos e decrépitos. A surprêsa que cam,aram, foi a ação exub'!
rante de governos lucidos e energicos.
Afonso Pena, em Minas, i:esolvêra o problema da capital, instalando-a em Belo Horizonte, concepção grandiosa, á americana, de administração cheia de coragem e inspiração creadôra.
Rodrigues Alves encontrava o credito restabelecido: podia dedicar-se á remodelação do Rio de Janeiro, fazendo 1:m grande o que, em dimemões menores, já se rea!izára em São Paulo. Chamou, para tanto, auxiliares capazes. Deu o ministerio da Viação a Lauro Muller, que pretendia construi r o porto do Rio de J aneiro; a prefeitura da capital ao engenheiro Francisco Pereira Passos, decidido a transformá-la, com poderes amplos ( decreto de 29 de Dezembro de 1902) (228), arrancando das acanhadas fórmas da metropole colonial as linhas elegantes da cosmopolis de hoje; chamou o barão do Rio Branco para as Relações Ex
teriores e para a pasta da Justiça o deputado Seabra.
Francisco Bicalho, O sorio de Almeida, Saturnino de Brito, F rontin, dirigiram a:s grandes obras. Epoca de traba
lho vertiginoso; de planos amplos; optimismo administra-
(228) Luiz Edmundo, O Rio de /aneiro do 111e11 tempo, 11
34, RiQ 193&,
234 PEDRO CALMON
tivo - em contraste com a crise economica de que não se libertára ainda o país. A Republica de 1903 não se parece com a de 1897.
Um lustro modificára sensivelmente mentalidades, ritmos, espírito público.
Infiltra-s e na ação governamental uma vontade nova, de reparação imediata dos erros antigos, de avanço repentino, a remediar o atrazo habitual. O Rio de Janeiro histórico deixa de viver em 1904. A alma da cidade patriarcal transfere-se, em 1905, dos seus sitios plácidos de outr'ora para as artérias ruidosas, que os suplantam : e uma arquitetura diferente denuncía a transfiguração da sociedade.
XIV
O PROGRESSO, AFINAL
1904 igual a 1897
1904 prende-se a 1897. Não havia mais Prudente
e Floriano; porém o Partido Republicano paulista e o
colê,te encarnado da mocidade "jacobina". Lauro Sodré
é um dos chefes naturais da oposição: ninguem represen
tava melhor a Republica da "consolidação". A seu lado
move-se · Barbosa Lima, "leader" parlamentar do pensa
mento florianista e do regímen na sua pureza, dos dias
cálidos de 1893. Rodrigues Alves encarna a ordem civil
por uma sucessão "diréta e uma firmeza que lhe denuncía
a dupla origem: a escola da monarquia eos principios de
sua organização partidária. Fizéra Prudente a mística
da paz; Rodrigues Alves, a do progresso. Se Campo·.,
Salles désse a verba reclamada pelo conselheiro Nuno de
236 PEDRO CALMON
Andrade, teriamas a profilaxia em 1902 (229). Parn sanear a Capital federal, Rodrigues Alves assegurou ::. Osvaldo Cruz liberdade de ação e - o que foi mais -ab'ioluta solidariedade. Quando o jóven higienista lha pediu, concedeu sorrindo: Quer ser presidente <lo saneamento . ..
Importava isto uma transformaçã_o profunda de costumes. Mexia - não só com os hábitos rotineirn~ rla cidade, como, principalmente, com o seu espirito rebelde. O assa:tSinato do marechal Bittencourt aplacára a fúria jacobina; não a extinguira. O quatrienio de Campos Salles, foi, ele todo, um recalque de irritações populares, que explodiram, inj ustas, em 15 de Novembro de 1902, na assuada que acompanhou, até a estação da estrada de ferro, o estadista que acabava de deixar o poder. Alçou o coh a excitação democratica no protesto de Quintino, do Estado do Rio, de Pernambuco, contra a fórmula presidencial de 1902, ou Geja, a continuação de São Paulo no governo. Precisava..,se de um pretexto ou uma provocação, para deitar a procissão na rua ...
Osvaldo Cruz, no seu inflexível sistêma de higiêne, precipitou a tempestade.
Ao tempo em que iniciava o expurgo da febre amareia, obteve a decretação da "vacina obrigatoria", afim de imunizar, contra a varíola, a população. Muitos duvidavam da vacina, e a sua obrigatoriedade ofendia a consciência livre... Os positivistas estranharam; a oposição indig-
( (229) Phociqn Serpa, op. cit., p. 129,
HISTORIA SOCIAL 00 BRASIL 237
nou-se, falando em rffii-stencia á bala; os jornais atacaram a medida e o povo, nos bairros pobres, se encolerizou. Era uma tirania ! O ministro da justiça, Seabra, e Osvaldo Cruz, tornaram- e sub itamente alvo da dem~gogia. Uma feita, no seu carro, o sábio foi apedrejado. . . Quiz demit ir-se ; mas o presidente lhe deu todo o apoio. A policia, que reprimiu as primdras manifestaçÕC6, passou a ser agredida. E as tropas do exercito eram aclamadas quando apareciam, para ajudar a policia . ..
A vacina obrigatória
Parecia um prurido de velhos descontentamentos E era a revol ução. A mais extensa nas ruas da cidade, a mais popular de todas as sedições que a alarmaram : porque a política, que a inspirou, não se imiscuiu claramente ,:om os rebeldes do largo de S. Francisco e da Prainha. Ficou a lutar, na esquina, na barricada da praça pública, :las janelas dos prédios, o "pé-rapado". Uma revolta de esti lo parisiense: a insurreição das ruas! Começou a l O de Novembro. E por um incidente insignificante: a prisão, na rua do Ouvidor, de um moço que pretendia falar ao povo. Este - na praça Tiradentes - quiz tomá-lo aos policiais, e um piquete de cavalaria o diispersou. Generalizou-se o conflito. Interrompeu-o a noite. No j ia imediato, havia comicio contra a vacina no largo de S. Francisco. Faltaram os oradores. Um individuo, entretanto, subindo ois degráo:s da estatua de José Bonifacio,
238 PEDRO CALMON
fingiu que discursava. O delegado de policia mandou afastá-lo; a multidão vaiou a força; interveiu a cavalaria e espoucaram tiros. Não puderam as autoridades conter a turba: instalou-se, com ferozes propositos, nas praças Tiradentes e S. Francisco, nas ruas do Ouvidor e do Teatro. Ás 8 da noite-, Lauro Sodré e Barbosa Lima assistiam á sessão do Centro das Classes O perarias, finda a qual a massa tie deslocou, rumo do Cattete. O chefe de policia era energico - o Dr. Cardoso de Castro - e o comandante da brigada policial um soldado valoroso -o general P iragibe, veterano da revolução federalista. Correram ao palacio presidencial, logo cercado de tropas, á vista das quais a poulaça retrocedeu. Retrocedeu para levar o seu tumulto ao largo da Lapa, ás linhas de "bondes" . . .
No dia :.seguinte verdadeiroo combates se feriram na praça Tiradentes e ruas vizinhas, que se ensanguentaram, ás idas e vindas dos pelotões rechassados pelo tiroteio dos amotinados. Estes puzeram fogo noo carros eletricos, levantarain trincheiras, lançaram toda a sorte de projectís sobre os atacantes. A policia apelou para o exercito e a marinha. Ainda assim perdurou, indecisa, a sublevação - telefones cortados, iluminação extin_ta, mortos e feridos pelas calçadas, o comercio fechado. . . Amanheceu 14 de Novembro com peores perspectivas. Cértos de não se
puderem aguentar nos quarteirões do centro, os agitadôres prepararam a retirada e a resist~ncia para a Saúde, onde moram émbarcadiços, proletariado, a estiva. Surgiu a lenda. Como, áquela epoca, fa&se heroica a defesa d<;:
1-rrsToRI A SocIAL no ÊRASrL 2:39
Porto Artur, dos russos contra os japonezes, déram o apelido de "Porto Artur" ás "fortificações " da Saúde. Ganhavam relêvo hi·storico alguns perfis de lutadôres. Resurgiu a capoeira, que Sampaio Ferraz suprimi ra. A alma audaz de "nagoo " e "guanimús" transferiu-se para as ladeiras do Valongo. Bastaria, para que a crise se tornasse fatal , a adesão de elem,entos militares.
A revolta dos cadêtes
Preponderava, no Club Mil itar, o desgôsto manifestado por Lauro Sodré, o espirita florianista . Acreditavase que uma simples "demorn,tração" armada deporia o governo. Após reunião que ali se realizou (presentes Lauro e Barbosa Lima, os generai:s Olimpio da Silveira e Silvestre T ravassos, o major Gomes de Castro e outros oficiais ) se soube na cidade que a Escola Militar, á praia Vermelha, pegára em armas. O general Bibiano Costallat diretor da Escola, pessoalmente comunicou ao ministro da guerra, marechal Argollo, a noticia. Os alunos acabavam de insurgir-se, com T ravassos e Sodré á frente. Argollo transmitiu a Rodrigues Alves esse aviso que indicava, além da gravidade momentanea da situação, um possível transtôrno na ordem geral. Teria forças, o governo, para enfrentar, de uma banda o povo exaltado, e da outra os cadêtes, em cujo comando se investira o general Silvestre Travassos? Aconselharam o Presidente a recolher-se a um navio de guerra. R odrigues Alves foi igual a Prudente
240 PEDRn CAL MON
de Morais: bateu o pé. Que todas as· armas disponiveis fossem, sem <lemora, opootas aos rapazes da E scola. Os boatos sucediam-se, no Cattete. Os rapazes marchavam; vinham tomar o palacio; desfilavam, Praia Vermelha abaixo. . . O general Piragibe organizou a brigada de contra-ofensiva e saíu, a encontrá-los na rua da Passagem. Eram 11 horas da noite.
Que.queriam os cadêtes, que p~emeditára Lauro Sodré, qual o sentido profundo da rebelião. (230)
Falav~-se na ditadura do senador paracnse, apoiado á corrente castilhista do exercito, sob o comando rle Olímpio da Silveira, ao positivismo, ou á Republica r!e Benjamin Constant e Floriano. . . Dizia-se que a manifestação dos alunos se daria em 15 de Novembro, por ocasião da parada, e fôra precipitada, pelos acontecimc-ntos da vespera.
De fáto, a sublevação fôra ocasional. e durou pouco. Pirag:'be achou a rua _ da Passagem escura e silen
cio:sa. Adivinhou apenas, no outro extremo, a tropa revoltosa, que o saudou com quatro tiros, decérto um sinal. Talvez se destacasse o cavalo branco, que, imprudentemente, montava Travassos ...
Mas o comandante da policia não tinha nervos nem paciencia para as conversações em tal emergencia. Man
dou uma intimação, que foi repelida. A' sua ordem à e
(230) Sertorio de Castro, A Republica que a Revolttção "destruiu, p. 200, Rio 1932, e Dantas Barreto, Conspirações, p. 15, Rio 1917.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 241
fogo, a brigada descarregou as armas tres vezes. O adversario não respondeu senão fus duas primeiras descargas. Depois, recaíu no seu silencio misterioso. Não quiz Piragibe perturbá-lo com uma investida na tréva: preferiu retroceder, com a impressão falsa de ter por diante forças consideraveis. Houve um equivoco reciproco. O general legalista e os sediciosos, cada qual deixou o campo de luta: e, no Catt~te, se chegou a considerar a situação desesperadôra. Um telefonema providencial aivisou-lhe o resultado da fuzilaria na sombra. (231) A debelação da revolta !
Quando, ás 6 e meia da manhã, as tropas de reforço, comandadas pelo coronel Caetano de Faria, pelo proprio ministro da guerra, e pelo da Viação, Lauro Muller, co,m a sua farda de major que raramente vestia, - chegaram
(231) Os telefones tinham sido cortados, menos o do Hosvital Nacional de Alienados, cuja linha passa pelo morro dos Inglêses. Afrânio Peixoto, na interina direção do estabelecimento, foi quem comunicou ao Ca.ttete - onde reinava a ansiedade mais justificavel - o inesperado desfecho: os cadetes a retirarem, com a noticia do ferimento de Travassos ... Contou-nos Afrânio Peixoto que, pelo mesmo telefone, ocasionalmente o melhor orientador da fase final das operações, dissuadiu Lauro Mullc:;r da idéa de bombardear, por elevação, a Escola, o que já era desnecessario, de maneira que, na madrugada, o ataque aos revoltosos foi um simples cerimonial ... Na tréva, todos os gatos são pardos: os cadêtes julgavam Piragibe triunfante, e este decerto, imaginando a ofensiva dos rapazes, preferia reorganizar-se em defêsa do pa!acio, no Flamengo. A sua tropa debandára.
242 PEDRO CALMON
á Praia Vermelha, os cadetes se tinham rendido depondo, simplesmente as espingardas, reentrando na tranquilidade de suas salas de estudo ou refugiando-se nas residencias prox1mas. Porque? A razão era transparente. T ravassos e Lauro Sodré tinham sido. abatidos, fer idos, pelas descargas da brigada policial. O senador recolhêra-se a uma casa da rua da Passagem e o general, em perigo de vida, foi a ,seguir transportado, da casa da rua D. Mariana
onde recebeu o primeiro socôrro, para o hospital do exercito. Faleceu ali. Sem os chefes, desorientaram-se os
moços. Não sabiam bem a que iam. Tiveram o bom
senso de voltar para a Escola. Largaram os, fuzis e esqueceram o máo passo.
Onde reaparece um nome ilustre
Na Escola Militar do Realengo idêntico movimento se preparára. Apareceram lá os majores Gomes de Castro e Mendes de Moraes. O comandante da Escola surgiulhes por diante. E ra um general de brigada quasi des
conhecido dos homens políticos. Pertencia á grande familia de soldados de quem não se falava mais desde 1891. Era so'brinho de Deodoro, filho e homónimo daquele general H ermes da Fonseca que, no comando das armas na Bahia, relutára em aderir á R epublica. Defrontando os dous oficiais sediciosos não podia imaginar que o destino lhe armára uma peça definitiva. Mostrou energia calma,
HISTORI A SOCIAL DO B RASIL 243
uma força moral oportuna: e impediu o levante. No dia seguinte, o seu nome crescêra na consideração do governo e impressionava os meios militares. A mística de Lauro,
diléto discipulo de Floriano, ésbarrára na tranquilidade de Hermes, que era da raça de Deodoro. 1904 vingava, talvez, 1891. As barbas arrepiadas do Fundador branquea-yam na penumbra a que se recolhêra o herdeiro de sua espada. O exercito t inha - na categoria dos submissos , á lei - homens inabalaveis. Olimpio da Silveira e T ra
vassos ficaram para traz, no cáos da sedição popuJar: a hora de Hermes soára. Comandante do 4.0 distrito militar, no ano imediato organizou e dirigiu as primeiras manobras - em Santa Cruz - de largo efeito cênico e esplendidos resultados técnicos. Era um general que apurava a disciplina, a eficiencia e a emulação <le t ropas reju
venescidas: ninguem, antes dele, transmitira assim o "espí
rito novo" ás fileiras e despertára-lhes o entusiasmo do
seu oficio. Ganhou popularidade justa e incômoda: no
seu dia aniver.sario, em 1905, recebeu manifestação bri
lhante, de militares e civis. O Presidente seguinte con
fiou-lhe a pa,sta da guerra e, em 1908, o imperador da
Alemanha o convidou para assistir, em Potsdam, ás céle
bres manobras do seu exercito ...
Voltemos, porem, ao epilogo das "arruaças" de 1904. O Cattete estava salvo. Devia ser impiedoso na repres
são: urgia conquistar os redutos da Saúde.
Cad. 17
244 PE DRO CALMON
O epilogo das arruaças
O Congresso, no mesmo dia, concedeu o estado de sitio, por um mez, solicitado pelo Presidente. O couraçado Deodoro ('tal a importancia do levante no bairro da Saúde!) tomou posição, para metralhar os sublevados, e forças compactas infiltraram-se pelo bairro que se transformára em fortaleza. Havia nisiso . mais publicidade e alarido do que decisão de luta. "Porto Artur" era um reduto ilusório. Foi conquistado sem grande t rabalho além dos preparativos cautelosos - por marinheiros, o 7.0 de infanta riâ, a polícia. . . Uma Bastilha de papelão - disséram. Mas, a crise não fôra adstrita á juventude mil itar. Que se espalhava pelas guarnições dos E stados provq_u o levante do 9.0 de infantaria, na Bahia, sob o comando do tcmerario alferes Teodomiro de Queiroz, que. em 16 de Novembro, após ter assassinado o major Fabrício de Matos, comandante interino do batalhão, saiu com ele a reduzir as tropa:. do governo. Não andou muito. Tombou, colhido por uma rajada ele balas, no primeiro encontro, com o 16.0 de infantaria, á frente o coronel Sotero de Menezes; e o 9.0 regressou para o quartel.
Vitória total
Rodrigues Alves equipara-se a Prudente na energia e na largueza de vistas. Uma anistía oportuna desceu
HISTORIA SocIAL o o B RASIL 245
sobre o seu triunfo um pano de teatro: para que se aplaudisse outra cêna. Não mais o paroxismo politico dos dias violentos: agora, o espetaculo vertiginoso, <los melhoramentos materiais. Osvaldo Cruz venceu. Pereira Passos remodelou o Rio. Frontin aprontou a Avenida. R io Branco, após o exito do Acre, lisonjeou o sentimento católico do país obtendo a elevação <lo arcebispo do Rio de Janeiro á dignidade cardinalicia ( 1905). O primeiro purpurado da America do Sul! O almirante Julio de Noronha reorganizava a armada. O exercito retemperára-sc de um espirita construtivo, como devia acontecer depois dos fatos tristes que lhe sacudiram a estrutura, demonstraram a solidez. O Partido repu'blicano paulista saía da terceir; presidencia com a galhardia de 1898: manutenção da autoridade, obras públicas, governo fo rte. Sobretudo o medico que escapára de ser ma.rtir - da ciência que não sabe flutuar com a politica - abrira as portas do R io á civilização nova: saneou-o.
Osvaldo Cruz 11ão foi original, porque, antes dele, em Cuba e Nova Orleans, (232) se havia debelado a febre amarela : mas foi inimitavel, naquele combate com o meio hostil e a própria alta róda, a ironia da imprensa ( 233) e a insidia politica; na pertinacia de sua campanha, na sua fé incorruptível. Com a extinção dos fócos ela "stegomia" transmissôra ela doença, a vigilancia de toda a
(232) Afrânio Peixoto, Um su1,lo de rnltura sanitaria, p. 46, S. Paulo 1922.
(233) Olavo Bilac, Critica f. Fantasia, L isbôa 1904; Procion Serpa, Vida gloriosa de Osrnldo Cm:::, p. 138.
246 PED RO CA L MON
cidade pela brigada dOtS mata-mosquitos, logo a impermeabilização do solo pelo asfaltamento, do prefeito Passos - a epidemia declinou _ como por milagre. O numero de obitos, 584 em 1904, reduziu-se em 1905 a 53, em 1906 a trinta.
A duplicação do fornecimento d'agua á cidade no ministério de Miguel Calmon ( 1908) completaria a obra de Osvaldo Cruz: desapareceu da Guanabara o fantasma da febre amarela.
Comemorando o seu 77. aniversario, em 1906, a Academia Nadonal de Medicina prestou a Rodrigues Alves uma homenagem comovente.
O professor Azevedo Sodré declarou que o governo limpára o Rio de Janeiro <la mácula "de fóco de pestilencia e de ante-camara da morte e cuja fama exagerada por um continuo pregã~ difamatorio refletia sobre o Brasil inteiro .. . "
A cidade redimida
Rio Branco não tinha melhor oportunidade para alargar o prestigio social da ,Republica, no continente; obteve 1que nesta capital se reunisse, em 1906, a 3.3 ·conferencia Pan-americana. Patenteava a :salubridade dos ares cariocas. O Secretario de Estado americano, Elihu Root, recebido com grandes festa,s, verificaria "in situ" a redenção operada. . . E mais: o porto, onde podiam encostar transatlanticos, a Avenida Central, com os nóvos edifícios de
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 247
gosto internacional, a Beira-Mar, o Monroe ( copia do pavilhão que figurou na Exposição de S. Luiz, em 1904) na extremidade da artéria nova, por toda parte índices estridentes da prosperidade que destruía depressa as velharias da antiga metropole do Imperador ...
1908, centenário da abertura dos pol'tos, comemorou outra abertura de porto . . . Â inclusão do Rio, entre as cidades grandes do planeta, a passagem - resumiria Ruy Barbosa no elogio de Osvaldo Cruz - do Brasil pesteado, que encontrou, para o Brasil desenfetado, que nos deu . ..
XV
A PRESIDENCIA PENNA
Minas Gerais á frente
O problema político, er1 seguida á destruição ela rebeldia armada, reduzia-se a desaforar do Cattete o direito de fazer presidente. Pinheiro Machado comandava, com uma força que Glicério não conhecêra, a elite parlamentar. Invocava o espirita do regímen contra as praxeG, já estabelecidas. O Partido republicano paulista indicára Bernardino de Campos. Rodrigues Alves não saíra de sua neutralidade pacifica. Certo é que não qué'brou lanças pelo correligionário de S~ Paulo. Essa posição calma do presidente forte desembaraçou os movimentos do chefe
gaúcho. A Bernardino de CampoG, para imobilizar a grande organização partidária que hostilizava, opôz habil
mente o nome de Campos Salles. Podia assim dividi -la. Em 1905 surgiu o Bloco, como liga politica de senadores e
deputados para subtrair ao presidente da Republica a so-
HISTORIA SocrAL oo BRASIL 349
lução sucessória. Acentúa-se o perfil dominador de Pinheiro e adquire o seu relevo definitivo na história do regimen o môrro da Graça! onde ela morava. Estabelece-se uma ponte de entendimentos fáceis, entre o môrro da Graça e o Grande Hotel da Lapa, reduto da representação mineira. Nesse quiéto albergue se hospedavam, fazendo a sua mansa vida de provincia, João Pinheiro, Afonso Penna, $a bino Barroso', David Campista. . . V enceria Pinheiro Machado a partida, tSe lograsse o apoio de Minas, para ela deslocando o eixo politico desde 1894 situado em S. Paulo. Bastaria uma ação resoluta dessa mesma bancada mineira tão dócil antes, coê,sa e sem ambições. João Pinheiro assume o governo do Estado central e a "leaderança" dos seus deputados cabe ao jóven Carlos Peixoto: Ambos podiam empreender com decisão e clareza a ofensiva espiritual que ,invocava P inheiro Machado. Delineia-se o conflito. Rodrigues Alves desequilibra a balança em favor de Minas. Campos Salles escrcvêra ao vice-presidente do Senado desistindo ele sua candidatura inviavel. Publicada com atrazo esta carta, consta ter sido aconselhado Bernardino de Campos a ter igual atitude. De resto, o velho republicano sabe retrair-se com dignidade (234). Pinheiro apresenta Afonso P enna. O governo da Bahia, que apresentara a candidatura de Ruy Barbosa, diante da renuncia deste a wna luta inconveniente, e, de sua aliança com a oposição. aceitou com entusiaismo o candidato do Bloco. Os demais aderiram a
(234) Motta Filho, Unia grande vida, p. 203.
250 PEDRO CALMON
essa fórmula ( Afonso Penna e Nilo Peçanha) que tinha por si as melhores indicios de uma renovação de processos, de mentalidades e sistêmas. Conselheiro da monarquia e amigo de Rdrigues Alves, delegado do maior Estado bras ileiro, homem de 'bem, que na :i.dministração de sua pro · vincia resolvera com energia a questã01 da mudança da capital, hon:ibreando-se com os estadistas moços, na firmeza e no optimismo de sua conduta - Afonso Penna reforçaria as condições do regimen num clima de trabalho fecundo.
Ritmo novo
Bem sentiu o que significava a sua eleição. Empreendeu uma viagem por todo o país, a informar-se das regiões economicas e das situações locais, cuja fórma oligarquica fôra sustentaculo e impopularidade, apoio e precalço para Campos Salleis. Não imaginou contrariar, nas diretiva.is principais. a administração anterior. Chamou para o ,s,eu ministerio gente nova, em harmonia com a juventude inteligente de Carlos Peixoto, logo elevado á categoria de chefe parlamentar da política oficial. Tavares de Lyra na pasta da just'i.ça, Miguel Calmon, com 27 anos apenas, na da Viação, ao lado de David Campista (fazenda), Rio Branco (exterior), H ermes da Fonseca (guerra) , davam ao governo incipiente uma tonalidade de ação construtiva e pressurooa. Na Camara, cuja presidencia assumiu Carlos Peixoto, o bastão de "leader" da maioria passou para as mãos juvenis de James Darcy/
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 251
representante rio-grandense que dissentia de Pinheiro: é o declinio deste, logo a opooição que se declara, entre o vice-presidente do Senado e a politica do Cattete, é -na incompatibilidade que se agrava, entre o pensamento mineiro e a autoridade do "general" - o prólogo da crise que irá abreviar os dias do honrado chefe da nação.
A resposta de Pinheiro não demorou .•.
1906 foi um ano de largas esperanças c1v1cas com a solução feliz do problema presidencial. 1907, um ano de atividades exuberantes. O quatrienio de Rodrigues Alves completa-se com esse periodo de febris iniciativas. Miguel Calmon, á frente dos negocios da Viação, faz comu
nicações ferroviarias, povoamento e co!onização, como nenhum ministro conseguira ainda: a sua administração
elevou a quilometragem de tr ilhos no Brasil ao dôbro da
cifra até então atingida. Ficaram eistudadas as articula
ções racionais entre todas as zonas produtivas, de maneira
a cobrir-se o país de estradas, numa rápida valorização
dos sertões -sempre esquecidos.
Então se completam a ligação de São Paulo ao Rio Grande ( cobrindo a via-ferrea o velhq caminho das tropa,s de Sorocaba), do Rio de Janeiro a Vitoria, da Central do Brasil a Pirapóra onde a esperavam os vapôres
do São Francisco, de Itapura a Corumbá em procura da fronteira 'boliviana. . . Foram aprovados os projetos de
ligação da rêde da Bahia com a Vitoria a Minas e Per
nambuco com a Timbó-Propriá, para se fechar o circuito
252 PEDRO CAL:\'10N
ferro-viario do litoral (235). E o contrato para a construção da Noroeste, logo confiada á competencia técnica de Sampaio Corrêa, augurava definitiva integração dessas terras longínquas no "bloco" nacional.
Para o oeste
A Rondonia ( 236) é de 1907 ; de 1908 a Noroeste.
A abalada para o "far west", a junção afinal, da selva mais ocidental á costa, que continuára ignorante desses sertões subitamente evocados pelos litígios de fronteiras, por pitorescas expedições de sábios alemãet> completa um cído histórico.
A viagem do coronel Candido Rondou para ligar ao nordeste mato-grossense o Acre, o Alto Juruá e o P urús ( 1907), ultimada. em 1913. com a "entrada" de Rondon
e Theodoro Roosevelt, representa uma conclusão de reconhecimentos pacientes e demorados: as "bandeiras" do "ouro de Cuiabá", as incursões dos capitães dei-rei de Portugal, os demarcadôres do fim do seculo XVIII, os naturalistas-antropologos 'do segundo quartel do seculo
(235) Miguel Calmo11 - "ln Memoriam" - p, 41, Rio 1936.
(236) Foi Roquete P into que assim denominou a rc~ião entre os rios J uruena e Madeira, em 1915. É de 1912 a viagem do nosso grande antropologista e homem de letras, que lhe inspirou o livro de igual titulo (Rondonia, 3.ª ed., p. 17, 1935). V d. R11vista da S ociedade de Geografia, tomo XXV, Rio 1922.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 253
XIX. . . Graças a Rondon, são trilhadas as regiões dos Pareeis, dos N ambiquarais, do J uruena até o Madeira, incorporando á civilização territorios ricos (mais de 150 mil qmlometros, e populaçõe3 aborigenes exquivas, agressivas, que resistem, e se deixam vencer, pelos agrados e tacto do pioneiro generoso e hábil. Os fios telegraficos
(5 mil quilometros !) acompanham a marcha. As estra
das abertas orientam a penetração devassadôra, violando
os segredos da selva desconhecida do homem branco. Reconhece-se afinal a comunicação entre as bacias do Amazonas e do Prata (237). A imprensa do Rio chama o coronel de "Stanley brasileiro" ( 238). Roosevelt compara-lhe o esforço ao dos americanos rasgando o canal do Panamá... A Madeira-Mamoré procura, de um lado, a Bolivia; Rondon, d'outro lado, comparavel aos maiores exploradores dos tempos modernos, a ligação entre o
Mato Grosso e a Amazonia. Q uando se completasse a Noroeste, vazando-se, no planalto paulista, a riqueza dos
chapadões mato-grossenses, ffitaria o Brasil aritculado por um flexível sistêma ferro-viario que lhe traduziria a pro
pria unidade (239).
(237) Coronel F. Jaguaribe de Mattos, Les idées sur la phy
siographie sud-américaine, p. 50, 1937.
(238) S. Rangel de Castro, Quelques aspects ·dg la Civilis«tio11 Brésilie111ie, p. 119, Paris 1930.
(239) Vd. Euclides da Cunha, Contrastes e Co1t/rontos, p. 322, nota, Porto 1907.
254 PEDRO CALJIION
A mesma dificuldade retardou a construção das grandes estradas brasileiras de penetração: a malaria. A Madeira-Mamoré tantas vidas custou que se disse represen
tar cada dormente um operario morto. A N oroestc,
entre Baurú e <,1s ba rrancas do Paraná, foi feita pelo rijo e estoico trabalhador nacional, a despeito das febres, dos índios, do banditismo, do deserto. Uma comissão medica
- da escola de O svaldo Cruz - na Amazonia e em S. Paulo coadjuvou dt'Cisivamentc a engenharia. Dez anos
depois, a Noroeste era uma soberba novidade economica e social entre as componentes da civilização pátria. Um
ciclo novo no Geu inicio - propoz Artur Neiva: o italobrasileiro .. . (240).
"Aos poucos tudo serenou; as povoações surgiram e cresceram, o que fazem ainda de maneira descompassada.
Aqui, é Ba riguy, que no meu tempo era uma chave de estrada de ferro, onde não parava guarda que não fosse
trucidado pelo caingangue . . . Bariguy é uma cidade com
escolas, luz e!etrica, onde o terreno urbano hora a hora
se valoriza." ( 241 ) .
Aspectos de "rush" norte-americano: pioneiros, linha
ferrea, aborigenes disputando com furor a terra invadida. e, atraz do tumulto heroico, da abalada, a povoação flo
rescente, a agricultura, o progresso sem memória, só vendo presente e futuro.. . T erras sem passado. De hontem e
(240) Daqui e de longnLL, p. 129.
(241) A. Neiva, ibdem.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 255
de hoje. A crise da borracha definhou a Madeira-Mamoré; a eclosão do café enriqueceu a zona fecunda da Noroeste (242) .
Um a,pogeu: 1908
No mesmo prazo administrativo foram inauguradas mais de 3 mil quilometras de linhas telegraficas. Rondon une pelos fios Mato Grosso ao Amazonas. Dirige Sampaio Correa o serviço de duplicação do fornecimento d'agua ao Rio de Janeiro, considerado por Osvaldo Cruz uma condição eissencial da sua obra sanitarista. Frontin superintende o serviço de estradas de ferro. Carlos Chagas e Artur Neiva di1stinguem-se nos trabalhos de profilaxia do impaludismo das zonas vizinhas da Capital, e a mesma organização de defesa sanitaria auxilia os estudos ferróviarios da N oroéste, do prolongamento da Central do Brasil e da Madeira-Mamoré. Crea o ministro da Viação os :serviços do Povoamento do Solo (sob a direção de Joaquim Francisco Gonçalves Junior, benemerito engenheiro) e Estatística Geral ('confiado a Bulhões Carvalho, cujo valor técnico tanto se evidenciou no Recenseamento de 1920). A entrada de imigrantes atingiu numeras ainda não alcançados, e vinte nucleos coloniais,
(242) A receita da Noroeste, v. g., no seu primeiro ano foi de 1 :847$, e em 1921, 6.490 :000$ ... (A. Marques, Mato Grosso, p. 135, Rio 1923).
256 PEDRO CAL2JON
então fundados, logo se emanciparam. Os pootos da Bahia e de Recife foram aparel hados nessa oportunidade.
Um ambiente de geral animação economica podia inspirar iniciativas mais vistosas. O problema Gocial começa a preocupar o governo. Entusiasta da livre-associação dos produtôres para suprir e orientar a ação oficial, o ministro confia no cooperativismo. O decreto legislativo n. 1637, de S de Janeiro de 1907, trata dos sindicatos profissionais e sociedades cooperativas. Até 193 1, é a unica lei do gênero no país. Em 1908 fundou o sr. Piaciclo de Mello, em Friburgo ,a primeira Caixa Rural do
tipo Raiffaisen (243) . Idéas novas1 marcavam rumos,
predestinavam a revisão dos mctodos administrativos, as
fórmulas do nosso tempo ...
F estejava-se - em 1908 - o primeiro centenario da abertura doo portos.
O sonho de Cayrú realizára-se nas suas linhas proféticas. A chancelaria de R io Branco almejava consagrar, com uma brilhante encenação internacional, a "renascença" carioca. Afonso Penna queria mostrar que o regímen se normalizára. IvÍiguel Calmon ufanava-se dos índices de ,prosperidade' que seriam apresentados numa grande feira onde se representassem todos os Estados. Surgiu, da necessidade de documentar-se a situação do Brasil, a Exposição de 1908, que retomava a tradição im-
(243) H. Eboli, Anais da ·Conferencia Internacional Algodoeira, II, 286, Rio 1924.
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 257
perial, <le analogoo certamens ( 1861 e 1874) imitados á · Inglaterra e á França.
Na Praia Vermelha se construiu uma pequena cidade "feerica" de pavilhões monumentais, de perspectivas fantasticas, de esplendôr fascinante.
O assassinato do rei de Portugal con trariou o plano de Rio Branco, de prestigiar o Rio de Janeiro com tão ilustre visita. Mas o exito da ,Expooição foi retumbante.
Onze mil expositôres mostraram a um milhão <le curiosos o que o país produzia. A imprensa universal registou o "caso brasi leiro". Na paz pública, a nação de multipla r.iqueza achára, sem duvida, o seu caminho de civilização apressada e sólida. Entraram capitais estrangeiros. A industria centuplicava a s~1a força expansiva. Apezar da aparente indiferença do governo federal pela sorte do café, a valorização em São Paulo lhe aguentára os preços : e a borracha melhorava continuamente, no mercado de Londres. Rio Branco sentia-se triunfante.
A Conferencia de Haia coroára, com um reflexo de gloria intelectual, a sua política voluntariosa.
Ruy Barbosa aceitára a chefia da delegação do Brasil ao grande congresso da Paz, para afirmar os principios idealistas, de profunda fidelidade ao direito, que nos orientavam a ação exterior. Batendo-se pela causa dos pequenos Estados, assegurando-lhes a igualdade, sem con:siderar que as potencias maiores já não toleravam essa linguagem agradavel á -consciencia juridica da America - por cer to impediu que fizessemos acôrdos lisonjeiros,
258 p E D R O ( A L ;\! O N
com a Rwssia, a Alemanha, a Inglaterra, a F rança (244) . Mas recomendou o Brasil aos aplausos do nosso continente. Ganhamos em popularidade aqui o que perdemos acolá em oportunidades diplomáticas. O Barão regozijava-se. Tudo andaria bem se a honesta política ajudasse a eclosão das _energias economicas . . .
Crise politica
A política ,porém, mudou de fisionomia.
Em contraste com a t ranquilidade do t rabalho, agitava-se o mesmo espírito partidário que, em 1905, interrompera a influencia diretiva ele S. Paulo.
(244) Vd. Rodrigo Octavio, Minhas Memórias dos 011tros,
Nova série, p. 313, Rio 1935.
XVI
PINHEIRO
Esperava-se que o sucessôr de Afonso Penna fosse João Pinheiro, que governava Minas Gerais com. um espírito novo : com sociologia, com economia pratica, com o bom senso montanhez, com energia exemplar.
João Pinheiro é o Castilhos do Brasil central. Menos o positivismo, tem dele a visão de conjunto e o ,sentimento da terra. Em 1907, os ouvidos brasileiros ainda não se tinham acostumado ás frases que seriam moda dez anos depois: "realidades nacionais", (245) "politica de educação", "economia orientada". O caso do politico mineiro parece-se com o de Alberto Torres: com as responsabilidades d'um alto governo no principio da carreira, pois por alguns mezes administrára o Estado em 1890, depois se desiludira da politica militante e déra de meditar
(245) Leia-se Azevedo Amaral, O Brasil na crise atual, p.
174, S. Paulo 1934.
Ca d. 18
260 PEDRO CALMON
nos problemas gerais do país. Chamado em 1906 para o governo, falava uma linguagem brilhante e reformadôra : forças imanentes, crença no futuro e nas virtudes da raça, certeza de que a produção só seria sati6fatoria com a técnica, necessidade de instrução rural, de escolas agricolas, de regeneração do trabalhador dos campos ... Aliava a 03se plano "orgânico" a austeridade d'uma influencia moral extensa e reparadôra. Mas João Pinheiro morreu em Belo Horizonte em 19 de Julho de 1908. Alguem disse : a sua morte desviou • o. curso da historia do Brasil (246). Porque retirou á política presidencial o seu esteio mais rijo.
Pinheiro Machado, que fizéra Afonso Penna, não lhe perdoava a "política pessoal", de que se incumbira, na Camara, Carlos Peixoto. Corno levantára, contra Bernardino de Campos, o "bloco", em nome da liberdade que -deviam ter as "forças parti darias" para escolher o sucessôr do pre1Sidente, creou urna oposição fe~·oz a David Campista, candidato oficioso para o quatrienio seguinte. O morro da Graça converteu-se em reduto do "shisma" parlamentar. Para destruir a candidatura mineira precisava de outra tão forte que arrastasse os principais elementos -da cêna partidária. Apelou para o ministro da Guerra. O marechal H ermes, sobrinho do fundador da Republica, realizára memoravel administração militar. Desfrutava,
(246) João Pinheiro Filho, Problemas Brasileiros, p. 29, Rio 1938. A frase é atribuida a James Darcy e abonada por Julio de Mesquita.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 261
na classe, a popularidade de um chefe devotado, de um republicano puro. Crescêla, desde 1905, como um sim
bolo, uma esperança, uma solução. Representava o Exer
cito que desfilára em 15 de Novembro, o "deodorismo",
que esquecêra a desilusão de 1891, a idéa do Estado energico, contra o liberalismo ciriI a cuja conta corriam as deturpações do regímen, poSGivelmente a mentalidade que, em 97, resistira a Prudente, que em 1904 enfrentára Rodrigues Alves. . . Se aquiescêsse á manobra de Pinheiro, fazendo-se candidato para obstar á vitória "mineira", a situação anterior a 5 de Novembro de 1897 se renovaria,
_pelo chóque, entre os "ortodoxos" e o civilismo. Dantas Barreto prometeu auxilio dos generais mais em eviden
cia . . . O marechal aceitou. O golpe acertou no coração do governo (247). Foi tambem mortal para Afonso Penna. "Julgo inconveniente que se continúe a sustentar tal candidatura", declarou ele, em carta ao presidente, de
que o "Jornal do Comercio" publicou este resumo (248) .
O civilismo
Apresentada a candidatura Hermes, a de David Cam
pista, assim vétada, perdeu o proprio apoio de Minas
(247) Vd. Dantas Barreto, Conspirações, p. 92.
(248) Alberto Sarmento, No Parlamento (Discursos), p. 567, Rio 1924.
262 PEDRO CALMON
Gerais, cuja representação se dividiu. Carlos Peixoto
deixou a presidencia da Camara. O Partido republicano
paulista, com Bernardino de Campos á frente, identificou
a fórmula pinheirista com a oposição de Castilhos a Pru
dente e a de Lauro Sodré a Rodrigues Alves: e jurou ·defender um nome civil. Ruy, que aderira a Pinheiro
contra Bernardino de Campos, aliou-se a este contra
aquele, coerênte com as suas lutas anti-florianistas, as Guas atitudes liberais. A inesperada morte de Afonso
Pen na ( 14 de Junho) tornou dramatico esse instante da
evolução republicana. R uy disse alto o que, aos cochichos, se insinuava: morrêra o presidente de traumatismo
moral, desgostoso com o tumulto que se formára em torno de sua sucessão.
Para concluir o quatrienio, assumiu o governo Nilo Peçanha. Esposou a causa âo marechal. R uy e Albuquerque Lins, unid06 S. Paulo e Bahia, foram os candi
datos civilistas .
Pela primeira vez uma campanha eleitoral em gigan
t escas proporções ia sacudir o pais. No seu idealismo, ' de profundo conhecedor das instituições estrangeiras,
imaginava Ruy galvanizá-lo á maneira norte-americana,
arrancando ás 6Uas fontes de opinião um voto expresso. A sua eloquencia comoveu as elites, abalou, de norte a sul, a nação. Experimentou o afago de uma popularidade sem precedentes. Viajou triunfalmente por S. Paulo, Mi- ·
nas e Bahia.
HrsToRIA SocIAL oo BRASITJ 263
A "aguia de Haia", o "genio da liberdade", o "apostolo da democracia", titulas que a imprensa lhe deu
com a sanção das multidões embevecidas pela sua retórica
incandescente, iluminou os horizontes do Brasil com um
debate educativo, febricitante e prolixo. Dir-se-ia incum
bido pela Providencia de proclamar a nova Republica, da
sinceridade demo-liberal, da:s eleições autênticas.
Mas o adversario era invencível.
A par da maioria dos Estados ,em mãos de governos
aliados do vice-presidente do Senado, contava o marechal
com o apoio de sua classe, e contava Pinheiro com a
"máquina" ,no seu triplice aspecto, federal, provincial e
municipal. A . organização que Campos Salles instalára,
para reforçar a ação do centro ,e agora sustentada por
Quintino, Glicério, Antonio Azeredo, Sabino Barroso,
Urbano Santos, resistiu, incólume, á investida do proprio
Partido Repuhlic_ano paulista. O civilismo perdeu nas
urnas o que ganhou nas ruas. O poder verificador era
o proprio Congresso, que Pinheiro dirigia. . . Venceu,
sem convencer. Ficou a ressonancia verbal do civilismo.
Falhou na estrategia da campanha, porém se infiltrou nas
consciencias, preparando, para o quatrienio inquiéto do
candidato vencedor, a atmosfera impopular em que haveria
este de sofrer uma oposição ainda mais tenaz, ágil e ran
con~a do que a enfrentada pelos tres presidentes civis,
no período da estabilização do re9imen:
264 PEDRO CALMON
No domínio do môrro da Graça
O exito de Pinhe1ro foi absoluto. O morro da Graça dominou com a sua sombra ambiciosa o Cattete. Ma.e; o governo que ele propiciára não se beneficiou de largos dias construtivos: foi tormentoso, desigual e, por vezes, trágico. ;Entendeu de desmontar as "oligarquias", que datavam do principio do seculo: substituiu-as pelas "salvações". Floriano revive tardiamente, nesse plano de reconstrução temerária. Tambem oficiais afoitos e telegramas equivocas derrubam governos surpreendidos. Generalizam-se as "intervençõeis ". E o "estado de sitio" transforma-se em elastica medida de prevenção, prolongando-se mezes a fio, ano após ano, como uma condição normal de governo .
Repetem-se acontecimentos infaustos, que desde 1904 não viamas mais.
O ano de 1910 não se encerra sem a revolta dos marinheiros ,que, a bordo dos couraçados ,exterminam alguns oficiais e ameaçam bombardear a capital, em protesto con
tra os castigos corporais em uso na armada (23 de No,·embro). Para evitar desastre maior, o Congresso con.cede aos rebeldes, cujos canhões intimidavam o Rio, uma anistia antecipada.
Por esta ocasião visitava a Guanabara o jurista James Bryce. Deduziu com ligeireza um amargo comentário sobre a clecadcncia da Republica em climas sul-americapos. . . Será o povo <li~no desta terra? - perguntou,
Htsro:tuA SocIAL no BRASIL 265
consternado (249). De resto, o mal estar se ~palhou pelo país todo. Em 9 de Dezembro, rebelam-se os fuzileiros navais na ilha das Cobras. Foram reduzidos á obediencia pela artilharia legal. O estado de sitio, após a frustrada insurreição dos fuzileiros na Ilha das Cobras, aplaca a inquiétação das ruas. Mas o choque produzido pelos dous epfo,odios aguça e estimúla o sentido militarista da politica oficial. Um, gr:upo de generais envolve-se nos acontecimentos, acentuando uma incompatibilidade inicial com a absorvente influencia de Pinheiro (250), cujas vistas partidárias não passam dos fatos do dia: sua luta com a situação paulista, a necessidade de substituir oo governadores oposicionistas pelos correligionários ...
As "salvações"
O periodo das " intervenções" ant~ede, comtudo, o quatrienio Hermes. Em Outubro de 1910 a flotilha amazonense bombardeia Manáos, para depôr o presidente infenso a Pinheiro. N ilo Peçanha ordena a sua reposição. Logo em seguida - no primeiro mez do novo governo -diante da duplicata de poderes do Estado do Rio intervem o marechal, para impedir a posse do candidato da oposição (Edwiges de Queiroz, sustentado pelo antecessor,
(249) Vd. Baptista Pereira, O Brasil e a Raça p. 45, S. S. Paulo 1928.
(250) Vd. Dantas Barreto, op. cit., p. 208,
266 PEDRO CALMON
Alfredo Backer) e impôr a do amigo de Nilo Peçanha, Oliveira Botelho, sem embargo da ordem de "habeas corpus" que a assembléa obtivéra... O Supremo Tribunal perde o seu tempo em conceder tais medidas protetôras de direitos políticos. Erra decérto, deixando-se levar para o terreno das paixões do momento, numa abusiva, perigosa interpretação do remedia juridico. Não lho respeita o governo, no caso dos vereadores do Distrito Federal. Nem se exime o marechal das afeições e com
promissos de familia. Interfére em Pernambuco, a favor
do velho barão de Lucena que combatia Rosa e Silva, e
no Ceará, pelo coronel Franco Rabelo, que fôra secretario do governador partidário de Deodoro. O ministro da guerra, Dantas Barreto, deixa a pasta, para disputar o governo pernambucano. A guarnição federal apoia irre·sistivelmente o general. Corre sangue em Recife. Numa atmosféra de terrôr é vencido Rosa e Silva, e assume o poder, reconhecido pela assembléa onde não pódem figu
rar os deputados rosistas, Dantas Barreto. O ministro da viação, Seabra, aspira ao governo da Bahia. Pinheiro mandára rasgar o seu diploma de senador por Alagoas, em 1906. Não poude evitar a sua escolha parà o ministério de 1910: Seabra era sustentado pelos mais diléto-s
auxiliares do marechal. Este vae em visita á Bahia, com o fim evidente de prestigiar o ~inistro. Um acôrdo imposto á politica estadual, com a partilha dos lagares de representação, não impede ou remove o drama. O governador, Araujo Pinho, vê com alegria a sua siiccessão pn;i-
HI~TORIA SocIAL no BRASIL 267 "
metida, por um convê:nio das forças locais, a Domingos
Guimarães. Seabra, entretanto, é candidato. Como Dan
tas Barreto, tem o apoio do centro. Debalde procura Rio Branco obstar á dupla intervenção, em Pernambuco e na
Bahia, de repercussão deploravel nos meios diplomaticos,
como indicios d'uma profunda anormalidade política. A'
vista doo acontecimentos, cheg-0u a pedir demissão (251).
Estava, alem disso, doente. ,Surpreendeu-o a morte, em
13 de Fevereiro de 1912. O impulso é dado do centro:
porém os sucessos têm uma logica propria. Os atritos entre a policia e o exercito, na Bahia como em Recife, os
atos defensivos dos governoo ameaçados ,a publicidade ter
rificante, que impacienta e intranquiliza o povo, certamente
estavam a exigir uma energia repara<lôra, que obstasse á
tragedia. O marechal não autoriza nem evita. Silenciosa
e cauta foi a sua resistencia a Pinheiro, que se obstinava
em preconizar a intervenção em S. Paulo, para a qual se
preparáva, cm fórma de uma reação desesperada e extensa,
o grande Estado. Poupou ao Brasil uma cêna revolucio
naria de amplas proporções, recuando desse proposito.
Devia horrorizar-se com o imprevisto bombardeio da
Bahia. Brutal e desnecessario.
(251) Alberto de Faria, Revista da Academia Brasileira, XXXIV, p. 16, ( 1930); Rodrigo Octavioi Minhas Memorias, nova §~rie, p. 21Q.
268 PEDRO CALM:ON
Super autonomias
S. Paulo armára-se. Fôra o consêlho dado em 1892 a Bernardino <le Campos por Campos Salles (252).
Em 1904, nos dias angustiosos da revolta carioca, Rodrigues Alves contára com a força publica do seu Estado, posta a suas ordens pelo presidente Jorge Tibiriçá. Era secretario da justiça, energico e rrnoluto, o .,r. Washington Luis Pereira de Souza. Um batalhão paulista desembarcou no Rio em 15 de Novembro, na manhã da ocupação da Escola l\filitar. Se Travassos tivesse vencido a rcsistencia federal, tropeçaria, na "gare" da praça da Republica, com os conterraneos do presidente depOtSto. Tibiriçá cuidou de manter aguerrida brigada: em Março de 1906 instrutôres francêses déram-lhe o feitio e a técnica de um pequeno exercito. Esse "espirita" defensivo foi utifüado sem mistérios em 1911 e 12. O Partido Republicano militarizára os municípios , mobilizára tropais efetivas e voluntárias. "A propria capital se debatia, por fim, num apertado cerco, pois os pontos estrategicos e
dominantes da cidade estavam fortemente guarneci
dos" (253).
"A intervenção no Estado de S. Paulo foi projétada - testemunhou, em 1914, o marechal Menna Barreto, m~
(252) Carta cit. por Motta Filho, Uma Grande Vida, p. 273.
(253) Coronel Pedro Dias de Campos, O Espirita Militar Paulista, p. 165, S. Paulo 1923,
HISTORI A SOCIAL DO B RASIL 269
nistro da guerra àquela epoca - ; tanto que, na qualidade de ministro da guerra, tive ordem do Presidente da Republica para nomear uma epedição de forças militares, afim de seguirem para ali. Nesse sentido dei ordens por escrito . . . Posso entretanto afirmar que a aludida int ervenção era incessantemente reclamada perante o marechal presidente e perante mim mesmo pelo então minitStro da Agricultura Dr . Pedro <le Toledo, como representante da oposição ao governo de São Paulo".
Atesta o almirante J osé Carlos de Carvalho ( avisado em 28 de Dezembro de 191 1, por Cincinato Braga e Valois de Castro, da iminencia do conflito), que o governo paulista, com a cooperação do chefe da missão francêsa,
coronel Balagny, estudára um amplo sistêma de defesa
das fronteiras e do porto de Santos . . .
• "Antes, porém, da marcha das forças ( depõe Menna Barreto) o marechal desistiu da aventura, e, em segllida. fez partir para São Paulo o Dr . Fonseca Hermes, em mis
são especial ,cujo resultado é publico e notorio, poz termo á agitação altamente alarmante dos espiritos provocada por aquela tentativa". (254).
Suprimiu-se o chóque; mas perdurou o seu equivoco. A política de agressão <lo "pinheirismo", inutilizando as tendencias judiciarias do regímen, estimulou o armamcn-
(254) Vd. Hermes da Fonsec;i Filho, P inheiro M achado, V· 1901 Rio 1938,
270 PEDRO CALMON
tismo estadual, ·exatamente onde organizações partidárias robustas e veteranas representavam uma força vigilante.
O sistêma federativo retocava-se, com esses traço.s perturbadôres e com esses valôres perigosos. Insensivelmente ao Exercito nacional se opunha - em tése - um exercito local. Exercito e contra-exercito. Milicias de manutenção da ordem interna, como deviam ser, constitucionalmente, ais dos Estados, na evolução das crises e no violento rumo da política se transformaram em "quantidades de influencia". As "salvações" de Pinheiro agravaram, irremediavelmente, o mal-entendido que nisso houve. Castilhos e Bernardino de Campos ajudaram poderosamente o regimen, em 93. Desapareceram os proble!_Ylas daquela hora terrivel sem perecerem as 6uas consequencias naturais: os distur'bios de 1910-1914 mostra· ram ,na deformação das instituições, a sôma de ameaças que se acumulavam nos horizontes do Brasil. Daí a ne~ssidade de governos cautelosos, que perseverassem na politica de "justiça" federal; o acêrto momentaneo do método de Campos Salles, reconhecendo, sem melhores indagações, as oligarquias regionai s; a verdade que prégava Ruy Barbosa, de redenção do regímen pela regeneração do voto, pelo deslocamento dos fatôres permanentes do dissidio interno, por que os substitui sse a Republica dos podêres harmônicos, da representação autêntica, presidencialismo equitativo e moderado ...
Pinheiro vivia no clima agreste e belicoso de sua "divisão do norte", de suas jornadas heroicas... As "~alva~ões" continuava!ll !
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 271
Dificeis momentos
E' tipico o que então acontece na Bahia.
O governador Araujo Pinho renuncia em bôa hora. Apresisava-se a eleição do sucessor, e talvez se poupasse a propalada violencia. Afinal á, maioria da assembléa que
combate o seabrismo ocorre apenas um ardil, aliás extra
vagante e ineficaz : transfere-se para a cidade longínqua
de Jequié, pondo de permeio, entre a representação e a
desordem, um sertão sem estradas. Ruy colaborou nessa
!Solução engenhosa. Devéras, não aproveitou á paz. Os
deputados seabristas quizeram naturalmente reunir-se no
e<lificio <la Camara desamparado pelos colegas mas logo
ocupado - para impedir-lhes o ajuntamento - pela policia. Apelaram para o juiz federal Dr. Paulo Fontes, im
petrando uma ordem de " habeas corpus". O ambiente
tornara-se funesto. Armada e reforçada, a policia instala
ra-se nois proprios estaduais ; aprestara-se a guarnição
federal para atacá-Ia. Requisitou então o juiz ao governo
da Republica os meios necessarios para o cumprimento do "habeas corpus" concedido. Nem se esperou pela apre
ciação dele, como seria certo, pelo Supremo Tribunal. "A
resposta á segunda requisição foi um telegrama ao general Sotero de Menezes - comandante do diistrito militar, com
a rubrica - "M. Hermes" -, determinando que as guar
nições do Exercito e da Marinha existentes na Bahia
272 PEDRO CALMON
cumprissem o mandado do juiz requisitante" (255). O general deu uma hora para a desocupação dos edificios ... Como dispunha somente de Jous batalhões, preferiu utilizar a artilharia. Era em 10 de Janeiro de 1912. O bombardeio foi breve, exato e terrivel. Arderam Q Palacio do Governo, a secul_ar Bibliotéca Publica, a do velho Gremio Literario, alguns sobrados. . . (256).
Surprêsa e consternação refletiram-se em todo o país. Porque tamanho excesso? O Supremo Tribunal - ao calor da i~dignação ?'era! - reformou unanimem_ente a sentença do juiz. Demitiu-se ruidosamente o ministro da marinha ,almirante Batista de Leão. O presidente mostrou não concordar com os bravios atos do general Sotero, mandando restaurar o governo depOtSto, Aurelio Viana. Já não surtiria efeito. O general Vespasiano foi um tardo mensageiro de pacificação que se consumára antes, ao estrondo das armas. Mandou-o o presidente para repôr o governador legitimo, por exigencia do barão do Rio Branco - á beira da morte (257). O candidato reconhecido, o sr. Seabra, empossou-6e no governo do Estado. Era um epilo~o sem sobresaltos d'um drama lancinante. A imprensa do Rio escandalizava-se, dando uma resso-· nancia aflita aos protestos de Ruy: e a irritação revertia,
(255) Raul Alves, Historia Politica dos governos da Republica, p. 178.
(256) Vd. José de Sá, O bombardeio da Bahia e seus efei
tos, p. 366, Bahia 1918.
(257) Alberto de Faria, Revista da Academia, cit.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 273
em forma duma impopularidade mortificante, sobre o chefe <la nação que não pudéra moderar as "salvações". Sergipe, Alagoas, Ceará incluem-se na orbita do pinheirismo: e este habilmente desvia o. golpe que o marechal M enna Barreto preparava contra Borges de Medeiros, como candidato á sucessão rio-grandense. Não lhe tócam na política local; porem tem de abr ir mão de sua hostilidade ao Pª.rtido Republicano Paulista. O clarão dos incendios da Bahia, os tiroteios de Fortaleza, os assass inatos de Recife se renovam em Belem. O "caciquismo" de Autonio de Lemos ( outro "partido republicano" que c;e esborôa) é obrigado a concordar com a "conciliação", de Enéas Martins.
1913 começa sob outros signos. O predomínio de P inheiro arrefece, na, reação dos Fcmsecas, cujo principal apoio político estava na Bahia, de Seabra. O exercito confessava o seu descontentamento. Uma publicidade feroz exagerára o perfil politico de Pinheiro até a lenda e o paradoxo.
O peso do morro da Graça sobre a estrutura republicana parecia esmagador.
O presidencialismo não suporta, de resto, dualidade de dirigentes ; o presidenle e o condestável.
Pinheiro centralizava a politica. O Partido Republicano Conservador era ele. O reconhecimento dos parlamentares dele dependia. A sorte dos E stados enfeixava-se nas suas mãos autoritarias. O perfil de caudilho, 1ue se lhe lbronzeára na campanha federalista, adquirira, no inde-
274 P E D RO C A LMON
ciso cenário da capital, onde se agitavam as corrétas sobrecasacas dos senadores, a linha imperativa d'um chefe que sabe ser amêno, compreensivel, associativo, e implacavel. A sua força era um mixto de influencias: o Rio Grande, o comando do Senado, os consêlhos da maioria legislativa, a autoridade administrativa resultante do seu poder de, na votação da "cauda orçamentaria", cortar ou acrescentar despesas vitais.
Entre os cariris e o contestado
Incorrêra Franco Rabelo, o coronel governador do Ceará e amigo dos Fonsecas, no desagrado do vice-presidente do Senado pronunciando-se imprudente e antecipadamente contra a sua possivel candidatura á substituição do marechal. A antipatia de Pinheiro era decisiva : no
caso da "terra do sol" foi fulminante. Deu forças á opo
sição, de ,Flo,ro Bartolomeu, que conflagrou, contra o
governador ,oo adustos sertões do Cariry e as suas populações misticas. E' quando surge a figura contraditória
do padre Cícero Romão Batista.
A "guerra do Cariry" e, no ano seguinte, a do Contestado, lembram, nos contornos do agreste movimento de rebeldia e fanatismo, Canudos e o seu "Conselheiro". P ertencem a um ciclo á parte da nossa história rural. Aliando-se o môrro da Graça com o beato de J oazeiro, de fato se juntam correntes morais muitas vezes conluia-
HISTORIA SocIAL DO BRASIL 275
<las no decurso das crises políticas: o bacharel e o "jagunço", o candidato e o seu eleitorado de bacamarte de fai.sca, o chefe da cidade e a clientéla sertaneja que se atrazára dous seculo,s na vida, e na luta (258). O padre Cicero não era um demente ou um ascéta, como o seu
comprovinciano do Vaza-Barris : comungava com ele, porém, um provi,dencialismo apostólico, um amôr da gente
simples, uma vocação hospitalar, de grande protetor do
"cangaço", que lhe déram o prestigio de capitão espiritual
e invencivel do Cariry. Esse velho sacerdote que descambára em catequista de bandoleiros, considerado "santo" - na originalidade ,de uma existencia "milagreira" entre assassinos acoitados e "cabras" clavinoteiros que pediam humildemente "a sua bençam" - não escondia um acentuado pendôr político. Era com o "alter ego", Dr. Floro Bartolomeu, senhor incontestavel e desconfiado de sua região. Não tolerava aí autoridades alheias. Podia de
repente mobilizar um exercito de andrajos e carabinas, no
qual se misturassem, homiziados de todo o nordéste, jagunços, tropeiros, honestos tabaréos e criminosos calejados, gente simples e corações duros, a elite, a vaza, a aristocracia e o rebatalho, das "caatingas" adjacentes ... Isto fez em 1913. Apoiando-se á corrente de Pinheiro Machado se levantou, em armas, contra , Franco Rabelo.
(258) Rio 1933.
Cad. 19
Gustavo Barroso, O Santo do Bréjo (romance), p. 88,
276 PEDRO CALMON
O doutor Floro secretariava o padre. A réplica de Canudos era surpreendente: a argúcia do médico ( desde 1908 acólito do beato) fôra buscar no Rio de Janeiro a aliança preciosa. O "Conselheiro" fôra imolado porque se \Suspeitou de sua conivencia com a oposição federal. O padre Cícero venceu, porque fez jogo inverso: tornou-se no seu oasis cearense, campeão da "legalidade" . .. pinheirista. O Dr. Floro, presidente da assembléa cindida, intitulou-se governador do Estado, cuja capital mudára para Joazeiro. Sem perder tempo, Franco Rabelo despachou contra ele todo o batalhão policial. Este contava investir um arraial, e encontrou um reduto. E m seis dias os fanaticos (seguramente guiados por hábeis técnicos militares) construiram, inexpugnavel, uma trincheira de circumvalação, de t res legoas. O batalhão voltou para o Crato. Os rebeldes crearam alma nova. A segunda expedição fracassou igualmente. Dispersou-tie em Barbalha. O comandante teve a idéa original de aconselhar aos soldados a fuga, apontando-lhes o deserto. Diante desse desbarato, o inteligente Dr. Floro tomou a ofensiva. Os cangaceiros marcharam so'bre o Crato, que se rendeu, e, de roldão, sobre Fortaleza (259). U m espetaculo sem precedentes: o desfile dos "penitentes" de rosarios pendurados do "rifle", o cortejo dos guerrilheiros de "parnaíbas" no cinto e peito1S nús condecorados de amulêtos, a grande investida dos "afilhados" do "padim Ciço" (padrinho Cicero),
(259) Sobre essa luta, o notavel livro de Lourenço Filho, J oazeiro do Padre Cícero, p. 153, S. Paulo, 2.ª edição.
HISTORlA SOCI AL DO BRASIL 277
contra a capital onde a civilização dos ultimas tempos se aformoseára em cultos e brilhantes aspectos. . . As forças supostamente aniquiladas no Vaza Barris, desforravam-se com estrondo. Mesmo alguns fug itivos de Canudos brigavam ao lado dos escopeteiros ele Aracatí e Cariris N óvos. Representavam - veteranoo do chóque de 1897 - o sertão bárbaro que recobrava os seus direitos. Tinham-se unido a eles fasc inaras e voluntários da Paraí'ba, do Rio Grande do Norte, de P ernambuco e Bahia. O padre Cicero cresceu no espanto nacional : um "monge"
omnipotente do nordeste ... Não foi uma calamidade, porque a resist encia do
coronel cêdo se québrou, no desamparo a que a reduz ira a inimizade de P inheiro. Debalde a guarn ição quiz r:.uxi liá-io e, no R io, o Oub Militar pretendeu socorrer o companheiro de classe investido pelo fanatismo abraçado á politica. O governo federal interveiu, para, impedir o embate, em Março de 1914 : mas nomeando interventor o coronel Setem'órino de Car valho, que assumiu o poder e renovou a situação estadual (260) . Pinheiro vingou-se. O estado de sitio coíbiu as demom,trações prometidas, em favor de F ranco Rabelo: e o padre Cícero fi cou, triunfante
e modesto, irresistível e atento, em J oazeiro, donde não Jevia mais saír, respeitad·o como um taumaturgo e temido como um caudilho. Teve o bom senso de nunca se insurgir contra o centro. O Dr . F loro contentou-se com uma
(260) Carlos Maximiliano, Comentários á ConstitHição Brasileira, 3.ª ed., p. 175 not.
2í8 PEDRO CALMON
cadeira de deputado federal. O sacerdote suspenso de ordens, acoitando bandidos, medicando enfermos, abençoando romeiros, distribuindo esmolas, sustentando a nevrose mística dos sertan ejos que juravam a sua santidade, satisfez-se com a paz armada. Não fo i inquiétado. A nação respeitou o reduto "sagrado", a rude Méca, a fortaleza religiosa de Joazeiro. Os "monges" de Canudos e do Contestado sacrificaram-1Se pela inespertêza de uma luta desigual: a sua visão municipal não atingira as zonas altas do poder central. O padre Cicero, sagaz e coerênte,
acatou com lealdade as ordens do Rio de Janeiro. E Joazeiro, emquanto ele viveu, penuaneceu inacessível ás auto
ridad es profanas.
Sertões do sul
O conflito do Contestado é de espécie distinta. Filía-se, comtudo, á mesma barbárie rural. O "monge é o
patriarca d'uma sociedade primária e aguerrida. Na
ausencia cio "chefe" poFtico, do "coronel", sucessor do
capitão de ordenanças da colonia, do vigario ou do juiz
de paz, o "monge" dá a lei, regula a ordem e governa as
almas.
Nos confins <le "Santa Catarina errava, no começo do seculo, o " monge" João Maria. Estava-se no tempo das cinzas ainda quente,;, de Canudos e do inicio de Joazeiro, como concentração mística das "caatingas" nor-
Hr~TO:ltIA SocIAL ro B:itASIL 279
destinas. O beato fizéra copioso proselitismo. Como o padre Cicero, era curandeiro e apostolo. Missionava e medicava. Substituia a autoridade, na solução dos litigios ,sertanejos, e disseminava a fé através dos caminhos silenciosos, que as obras da linha férrea da Noroeste encheram subitamente de vida e rumôr. Morrendo ele, tomára a direção dos fanaticos 'José Maria Agostinho, em 1911 expulso, com centenas de " discípulos", dos arredores de Curitibanos para a propicia região " contestada", entre Paraná e Santa Catarina. A penetração da estrada de ferro transtornára os hábitos do povo simples e a questão dos limites inter-estaduais facilitou e agravou a luta (261). Onde não ha um policiament? respeitavel, e contendem, rivais, (262) os poderes que deviam assegurar a tranquilidade pública, resaltam, indomaveis, as energias dissolventes. José Maria apoderou-6e do sertão que os catarinenses disputavam aos paranaenses, e estes áqueles. Em 1912, perseguidos por um contingente policial do Paraná, os fanaticos reagiram com ferocidade: foi a guerra. A manhosa política municipal entrou em cê.na. Valeu-tõe decérto dos "caboclos" como de um instrumento de chóque, para complicar um problema na sua origem simples e removível. Tornou-o imenso o revéz do R egimento de Segurança do Paraná nos campos do Iraní. Entrou em ação uma anna ainda não experimentada nas lutas inter-
(261) Osvaldo R. Cabral, Santa Catharina, p. 385, S. Paulo 1937.
(262) Sobre a participação politica na luta, op. cit., p. 389.
280 PEDRO CALMON
nas : a metralhadora Maxim. Com 58 praças foi o bravo capitão João Gualberto assaltado por 300 fanaticos arma-• doo de facões, rifles e terçados. Quiz manejar a metra-lhadôra, e esta falhou. Atacado pelo "monge", prostrou-o a tiros de revolver, porém não lhe evitou o golpe de facão, na cabeça: tombaram mortos, o chefe legalista e o caudilho tôrvo (263). A força debandou.
Logo_ os dous Estados interessados cuidaram de remeter tropas : a acêsa questão limitrofe poderia transformalas em beligerantets. Achou o governo federal indispensavel uma intervenção em regra, afastando os contingentes estaduais. Mas agiu hesitante e economicamente, repetindo, no sertão do sul, o erro outr'ora cometido no sertão do norte.
PequenaG expedições foram lançadas sem resultado sobre o reduto de Tacuarassú, o arraial de Canudos dos fanaticos do Contestado. Só foi arrazado em Fevereiro de 1914, pela artilharia de montanha ( comando do tenentecoronel Duarte el e Aleluia Pires). Mas os sertanejos se fortificaram adiante, no Caragoatá, dominio do fazendeiro Manoel Alves, protetor , deles, e por isso aclamado ... "imperador". Os soldados não podiam desalojar aquela
furiosa gente_ com algumas peças, umas centenas de baio
netas, num tcrritorio desconhecido. A campanha prolongou-se, favoravel aos rebeldes bem escondidos e entrin-
(263) Lima Figueiredo, Oeste Paranaense, p. 197, S. Paulo 1937.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 281
mheirados. A 'brigada do general Frederico de Mesquita (Março de 1915) destruiu o reduto de Santo Antonio. Uma vitória precária. Ficou um batalhão em Porto Uuião. Aprovei taram-se da dispersão dos adversarios, os bandoleiros, para depredar as fazendas do Campo de São Roque e incendiar a estação de Miguel Calmou. O capitão Matos Costa saíu contra eles, e, surpreendido ao desembarcar do trem, foi morto, com dez praças. Esse sacrifício alertou afinal o governo. Seis mil homem, foram mobilizados, ás ordens do general Setembrino de Carvalho, o reduto de Santa Maria caíu, ante a impávida investida do capitão Potiguara, a coluna do coronel Estillac Leal tomou o reduto de Santa Maria, e a ferro e fogo os regimentos federais expugnaram as matas inçadas de clavinoteiros, vingando, n'uma ação defini tiva, tantas vidas pi:rdidas na zona "contC6tada" (264). Tres anos durára o confli to ...
E' certo que, com os próprios recursos, e a despeito d~ sua selvagem valentia, os acólitos do "monge" não teriam sustentado tanto tempo o chóque das expedições pun:t1vas. A meúcia política municipal misturou-se com eles. Ocultoo interesses acompanhavam os enfeitiçado,;. Em Canudos não se percebe a influencia política, cumplicidades regionais, que transparecem na tragédia do ContP.stado. A repressão abriu, comtudo, horizontes rconomicos, restabeleceu, naqueles campos, o respeito á ex1.s-
(264) Romario Martins, História do Paraná, ps. 360-71, Curitiba 1937.
282 PED~O CALMON
tenda humana, ampliou uma área de colonização maior que o Estado de Sergipe. E o exercito praticou com material moderno a técnica militar. A arma automatica, que não ajudou a João Gualberto, em 1912, foi decisiva, em 1915. E corta os ares o primeiro aeroplano de guerra: arrojou-se na floresta do rio Caçador, matando o pilôto ...
Canudos, Cariry, Contestado. Triangulam a odisséa dos sertões brutos. Foram terríveis tumultos fecundos. Rasgaram as perspectivas do interior bravio e esquecido: internaram a ciivilização.
Minas e S. Paulo
Logico seria que fosise Pinheiro o Presidente no período seguinte, vingando Castilhos, arredado da mais alta magistratura do país, a que decerto aspirára, pelo Partido Republicano paulista. . . De fato, a eleição do senador gaúcho retumbaria em S. Paulo como um desbarato : nem a desejava Minas, ofendida na sua consciência conservadôra pelos métodos violentos desse governo intervencionista. Em 1905, valera-s~ Pinheiro dos governadôres para vétar o quarto presidente paulistano. Em 1913 Rodriguea, Alves lhe respondeu ao golpe, mobilizando, contra Pinheiro, os Estados alarmados. Perdêra ele o "contrôle" da
propria :sucessão ,em 1905, por não contar com Minas Gerú,. Surgira Afonso Penna. O Partido republicano paulista soube, em 1913, entender-se com Minas. Gerais,
Hrs-roRIA SocJAL no BRASIL 283
e essa aliança ( erigida em sistêma de equilibrio até 1929) derrotou, antes <la luta, o castelão do môrro da Graça. Debalde procurou este recompôr fileiras desconjuntadas. A Bahia lembrava-se novamente de Ruy. Pernambuco e o Estado do Rio pendiam para Nilo Peçanha. Pinheiro teve a habilidade de retirar-se da <li6puta e o governador mineiro (Bueno Brandão) propoz ao de S. Paulo (Rodrigues Alves) o nome de Wencesláo Braz, cuja vice-presidencia, exercida sem rumôr, lhe dava a interessante autoridade de estadista fóra das paixões, dos odios e das rixas, que rolavam en_tão pelo tablado partidário.
Assim apareceu - para 6ubstituir o marechal -- o segundo pre~idente mineiro da Republica. Civil, após uma quadra de vivas atividades militares; pacifista, numa epoca de dificuldades criticas; sereno e sensato, em tempo de atitudes dramaticas; diferente de todos os anteriores, pela moderação modesta e pela tranquilidade natural de suas idéas de governo . . . Veria entretanto abater-se sobre o Atlantico o temporal da conflagração européa ; resistiria aos primeiros ímpetos da agitação" socialista"; assistir ia á explosão de grandes energias economicas, provocadas pelo disturbio mundial; assinaria o Codigo Civil; governaria um país eletrizado de excitações nacionalistas, á voz da guerra iminente; e não teve condestavel .. .
XVII
EM TEMPO DE GUERRA
Ruy Barbosa acreditava no poder das idéas. Venc:do, em 1909, pela máquina eleitoral, em 1913 resurge, novamente candidato da oposição, traçando o seu 'belo plano de reformais no programa do "Partido Liberal" -réplica que apresenta ao "Conservador", de Pinheiro. Tem de desistir da luta por falta de apoios reais. O nome de Wencesláo Braz fôra aceito como uma solução razoavel por todos· os E stados, claramente desejosos. de um período largo de paz, que contrastasse com o quatrienio turbulento.
O môrro da Graça aparentemente voltára a uni r-~e ao Cattete, pela ponte dos acôrdos tácitos, depois de 15 de Novembro de 1914. Mas a ponte ruiu, no dia em que Pinheiro, chefe inconte-stavel do Senado, "depurou" José Bezerra, candidato governista de Pernambuco, ·" reconhecendo" Rosa e Silva. V ingava-se de Dantas Barreto, que lhe vetára o nome no ano anterior : sobretudo acentuava, numa exibição de forças, o resto de sua autoridade. O Presidente conciliadôr levantou a luva. Vagando-se a
HISTORIA SoctAL oo BRM!IL 285
pasta da agricultura, pela passagem, para a da fazenda, de Calogeras,_ nomeou José Bezerra ministro de Estado. Desagrav~va-o.
Dizem que Pinheiro sorriu, e declarou, com espírito.: Pois está muito bem: O Senado u1Sou de sua prerogativa escolhendo ;Rosa e Silva, e o presidente da Republica usou da sua, nomeando José Bezerra seu ministro da agricultura. E' o jogo regular dos poderes constitucionais ! (265)
O ocaso do chefe
Efetivamente, a sua estrêla desmaiava. Não rompe com o governo : procura conservar a exterioridade de 15ua magistratura de "censor" do regímen e diretor moral da política. Seguramente adiava a revide para a sua oportunidade: resurgiria maior, no transe da GUcessão vindoura. E' - em 1915 - um "condottiere" cm supôsto licenciamento, observando com o olho vigi lante as correntes poli ticas. O gigante está presente. Ignora-se o que imagina e1Ssa poderosa cabeça varonil tão duramente plantada sobre uns fortes hombros de cavaleiro "guasca". Wencesláo faz a útil política das acomodações, que começa bem - aplaudida por um telegrama de Ruy Barbosa -com a garant ia que dá ao "habeas corpus" do Supremo Tribunal em favor de Nilo Peçanha, candidato ao governo fl uminense, contra o das simpatias · de Pinheiro. No caso difici l de Matto Grosso age ainda mais discretamente, bafe-
(265) Sertorio de Castro, op. cit., p. 348.
286 PED1'0 CALMON
jando a renuncia dos dous pretendentes, para que um terceiro, o eminente arcebispo de Cuyabá, D. Aquino Corrêa, serenasse, com a sua apostolica imparcialidade, os animos exaltados. Quer governar sem estado de sitio, sem violencias desnecessarias. . . Vae adiante: nova lei eleitoral, fazendo presentes ás mesas juizes togados, (266) poderá regenerar os costumes, reabilitando a representação . . .
Na tarde de 8 de Setembro de 1915, no saguão sombrio do Hotel dos Estrangeiros, um popular, de cóleras atiçadas pela publicidade hostil a P inheiro Machado, sal-tou, como um tigre, sobre o Apunhalou-o pelas costas. feri-lo! Caíu fulminado.
seu alto vulto desprevenido. Pela frente não ousariam
O magnicidio de Manso de Paiva - cuja demenda obscuramente se ligou a misteriosas influencias, · aliás nunca identificadas - esvaziou repentinamente o cenário político. Dir-se-ia que caíra, com a "eminence grise", um arcabouço inteiro. A morte de Pinheiro dissipou a organização parlamentar que, á roda do Môrro da Graça, podia opôr-se ao Cattête. W encesláo pranteou um republicano de serviços incontestaveis á fórma de governo. Este haveria de tomar, sem ele, outra configuração. A perda do chefe energico parecia mais sensível naquela epoca de escuros horizontes internacionais: já roçavam as nossas praias as tentações da guerra apetecida pelo· idealismo latino, a profunda irritação ocidental contra oo Imperios Centrais ... E o governo precisava restaurar as
(266) Edgard Costa, Proniptuario da Legislação Eleitoral, p. 16, Rio 1922.
HISTORIA SOCIAL DO B RASIL 287
finanças, deixadas pelo antecessôr ern condições deploraveis.
A conflagação mundial
A revolta dos sargentos, de 1916, é uma repercussão tardia de descontentamentos militares. Candidato dos insurrectos ao governo provisorio, seria o general Dantas Barreto. Em linhas gerais, assemelhar-se-ia o movimento ao de 1904, substituidOG Travassos e Sodré pelo ex-governador de Pernambuco e pelo deputado Maurício de Lacerda . . . (267) Devéras, nenhum oficial do exercito figurou na Conspiração. (268). Descoberta ela, contra os
cumplices agiu Wencesláo sem excessos ,limitando-se a enviá-los para os respectivos Estadoo, onde foram desligados da tropa. O momento era impropr io para as agitações 'internas. O Brasil passára a lucrar com a alta universal da,3 materias primas, e a idéa da Patria em perigo, na atmosfera guerreira que envolvia o mundo, despertára a sua consciência cívica. A questão estava em saber se interviriamos na guerra.
As simpathías pelos aliados entroncavam-se cm multipios interesses morais e economicos. A invasão da Belgíca, a iminente ·derrota dos francêses, que evitou J offre em
(267) Mauricio de Lacerda, Entre d11as Revoluções, p. 44, Rio 1927.
(268) M ensagcm pre.ridencial de 1917.
288 P EDR O CALMON
La Mame ,a aliança anglo-franco-italiana, a propaganda aliadófila, recebida com entusiasmo pelos meios intelectuais, como tudo o que nos vem de França, prepararam o terreno para a definição americana. A voz de Ruy Barbosa emerge das contendais politicas para estender-se á confusão internacional. Preconiza a québra de uma neutralidade que chama de indiferença criminosa diante dos crimes contra o Direito. Antes dessa pregação, porém, em que o civilismo, na sua coerência idealista, faz soar na bainha a espada a meio arrancada - espíritos cautelosos advertem o país de sua debilidade técnica em face do annamentismo europeu.
Realmente, o que 1914 representou para os póvos fóra do. quente. e desconfiado ambiente europeu foi, antes de tudo, a dissipação das promessas diplomaticas que os entorpeciam em esperanças de paz defin itiva. A obra de H aia fôra utópica. A diplomacia gastára palavras inúteis n'uma preparação inconsciente ( ou sistemática) das grandes surprêsas militares. N inguem apoiasse mais a sua segurança a um acôrdo internacional .. . O cataclismo - definiu
Theodoro Roosevelt logo em seguida - tinha esse se11-tido de decepção e advertencia. (269)
Achava-se Miguel Calmon na Suirna quando foi declarada a guerra. Assistiu, em Pariis, ás medidas heroicas tomadas pelo governo para obstar á captura da capital. Regressou impressionado pelos processos de mobilização militar, economica e espiritual de França, a braços com a invasão, e, numa conferencia publica, na Bahia, trau-
(269) America and the world war, p. 3, London 1915.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 289
matizou a opinião descuidada dos brasileiros com os exemplos e idéás que expôz. Varias militares jóvens aplaudiram a lição e solicitaram que a repetisse, para platéa mais numerosa, no Rio de Janeiro. Foi a pedra angular da Liga de Defesa Nacional, que logo fundaram Miguel Calmon, Olavo Bilac e _çoelho Neto, com o franco aplauso de todas as classes. O papel benefico da Liga no aprestamento do Brasil para a resistencia a um inimigo ainda oculto, mas passivei, numa epoca de im;egurança exterior e agressões •s úbitas, de mares sem garantias e fronteiras sem pr:vilegios, de tratados sem validez e postulados juridicoo enjeitados - só póde ser calculado pela atmosfera emocional que produziu, (270) reios estimulo.s que levou ao voluntariado <las armas, pela "moda", dos exercícios militares, pelo prestigio que deu - popular e sentimental ,- á6 medidas acauteladôras da nossa soberania emanadas do governo .
1917 é uma antitese de 1910. Então o civilismo excitava ºJ espíritos contra o mili
tarismo, como política. Agora é a mentalidade líricamente marcial que exacerba as consciências, contra a indiferença civil como alheiamento dos interesses nacionais.
Dtsaparecêra, com Pinheiro, o condestável; ficára , com Ruy Barbosa, o oráculo.
A sua nomeação para embaixador nas festas do centenario da Independencia da Repubiica Argentina (9 de Julho de 1916) se, de um lado, mostrava que Wencesláo
(270) Vd. Olavo Bilac, Ultimas Conferencias e Discursos, p. 84, Rio 1924; e Miguel Calmon, fo Memoriam, cit
290 P EDR O CAL M ON
não continuava Hermes, de outro lado dava a Ruy Barbosa uma tribuna, mais audivel que a do Senado, para falar a um continente inteiro. Ele prégou a guerra, com a eloquencia sem meios termos de suas campanhas idealistas: proferiu o primeiro, fo rmidavel discurno reclamando a intervenção americana na guerra, em Buenos Aires, na Faculdade de Direito, em 14 de Julho.
O Brasil no conflito
A conferencia sobre "o dever dos neutros" soou como um toque de clarim. Valia como uma declaração tonitronante contra a Alemanha, convite ,solene ao rompimento, intimação intelectual dos latinos d'aquem-mar a uma atitude resol!tta... Ruy, porém, era embaixador. O sr. Bouilloux-Lafont mandou para Paris, pelo telegrafo, na integra, o texto da conferencia. "L'entrée de l'Amérique dans la guerre ! " - apregoaram, nesse dia, os " j ornaleiros" parisienses (271). O ministro do exterior, Lauro Muller, de familiá alemã, dado como germanófilo, não podia gostar do diswrso : mas no Congresso de Washington foi apontado como a iniciativa continental d'uma luta franca, pela civilização.
Um homem só, com a imensa responsabilidade de suas idéas, podia, áquele tempo, retirar uma vasta região do globo de sua inércia alarmada. Deslocou a pedra.
(271) F. Nery, Ruy Barbosa, p. 152 not.
H1sT0RrA SocIAL oo BRASIL 291
Logo se formou ,no Brasil, pujante, o partido em pról dos aliados. Foi incançavel a diplomacia destes, em soprar, com a isua publicidade, a fogueira que nos incandecía a alma iacial. Um pretexto bastaria, para a explosão; mesmo sem pretexto algum foi inevitavel, após a entrada dos Estado3 U nidos na guerra. A mensagem de Wilson ao Congresso ,propondo a declaração de guerra aos Imperios Centrais, é de 2 de A'bril de' 1917. O Brasil declarou isuspensa a neutralidade em relação aos Estados Unidos, atendendo á mensagem de Wencesláo Braz, de 21 de Maio. Quebrára Wilson a tradição abstencionista de seu país em face da guerra submarina sem respeito pela bandeira neutral. Identico motivo desvaneceu os escrupulos pacifistas de noSt.So governo. Quando foi torpedeado o terceiro vapôr bra-sileiro, ('as relações diplomáticas com a Alemanha tinham sido interrompidas desde o primeiro caso ) ouvindo o clamor publico, que exigia a guerra, não esperou mais. Lauro Muller deixára a chancelaria, substituido por Nilo Peçanha. A população era cada vez mais aliadófila. A destruição de naviois brasileiros em aguas européas valia como um reiterado ato de hostilidade. Em 25 de Outubro dirigiu-se o Presidente ao Congresso Nacional comunicando o torpedeamento do vapor "Macau", cujo comandante fôra aprisionado, e pedindo o reconhecimento do "estado de guerra que nos é imposto pela Alemanha" (272). A lei de declaração da guerra foi assinada no dia seguinte.
(272) Otto Prazeres, O Brasil na guerra, p. 26, Rio 1918.
Cad. 20
292 PEDRO CALMON
Animação civica
Os aprêstos militares datavam de 1915, quando foi creado o serviço d e conscrição, a exemplo das nações mais ameaçadas. Em 1915 e 16, inumeros tiros de guerra tinham sido fundados em todo o país. O ano de 1917 foi harmoniosamente marcial. Na capital e nos Estados, a mocidade das escolas e do comércio alistou-se nos !Seus batalhõt:ts de voluntários. O Tiro 7, do Rio de Janeiro, tornou-se celebre, pelas personalidades ilustres que nele juraram bandeira. Estudantes de todos os cursos militarizaram-se, apressadamente instruidos por inferiores do Exercito. A parada de 7 de Setembro de 1917 foi memoravel. Significava uma demon15tração de· forças imprevistas. Afluíram ao Rio "atiradores" de todas as províncias. Representantes de todos os "tiros" estaduais marcharam em continencia ao presidente da Republica. Formára-se, de fato, eficiente e novo, um exercito, em cujo entusiasmo pulsava um profundo sentimento de Pátria.
Teve o governo a habilidade. de fazer a guerra á Alemanha sem sacrif:car contingentes de terra nos campos de Europa e limitando á remessa de uma flotilha de policiamento a sua contribuição naval. A índole da nossa participação no conflito ( reconhecendo o estado de guerra que a Alemanha noo impunha nos mares) não exigia mais. O peso da colaboração norte-americana abateu a balança do lado dos aliados: salvou-os. O Brasil não aumentou,
I-hsTORIA Soc1AL no BRASIL 293
com os seus mortos, as "cruzes de madeira " dos cemiterios francêses: a esquadra que, em 1918, saíu a auxiliar, no Atlantico t>ul, a vigilancia franco-i nglêsá, prestou útil e incruento serviço. O armisticio ,de 11 · de Novembro, dissipou comtudo um pesadêlo : a possibilidade de mais atiiva contribuição nmsa para a catastrofe longínqua. Fi· camos com a beleza do gesto, segundo o preconicio de Ruy. A politica de Rio Branco, de aproximação com os Estados Unidos, acentuára~e em bôa hora. Se não auferimo::. o lucro dos países que quizeram pe1manecer neutros, pelo menos não desmentimos. o culto do direito, o amôr da justiça, a coerência do idealismo internacional.
A guerra européa, que desfigurou o mapa político do universo, não chegou devéra,s a estas plagas em fórma d'uma calamidade.
Repercutiu como uma convocação dramatica de energias produtivas. O seu aspecto tropical foi essencialmente economico. Revestiu-se do caracter comercial d'uma corrida ás fontes de materias primas.
Consequencias economicas
Sempre as crises da Europa se refleti ram benefica
mente nas exportações do Brasil. Em 1914-18, entretanto, não houve apenas uma geral
animação de trabalho agricola ,a reoen,tina valorização
dos produtos que lá escasseavam : o bloqueio inglês pro
piciou, ao mesmo tempo, ampla tentativa de emancipação
294 PEDRO CALMON '-'
industrial do Brasil. O êrro velho d'uma industrialização mantida á custa de favôres alfandegarios, tornou-se subitamente um acêrto. Porque, se de longa data impunha ao consumidor, por preço alto, mercadorias que melhor obteriamos do estrangeiro (protecionismo exagerado), pelo menos aparelhára a organização fabril que, ao desencadear-se a guerra, podia lançar os fundamentos d'uma autarquia real. Era a outra face da política industrialista de Murtinho. Quando as nações de economia colonial se viram na contingencia de improvizar urna aparelhagem
que as suprisse dos artefactos subitamente retidos nos por
tos ( bloque10 de uma banda, campanha submarina <le outra, recaíndo os pezados prêmios de segurois sobre o preço, já inaces.sivel, das utilidaD.~s que podiam escaparlhes), contava o Brasil com um esperançoso arcabouço de industrias básiéas. Fabricava os própri0ts panos, as suas lãs e mesmo algum superfluo exportável. A care,stia geral movimentou iniciativas valentes. Os Estados do sui triplicaram a sua importancia economica. Sobretudo se positivou a admiravel capacidade crcadôra <lo trabalho pauliista.
O quatrienio da guerra, na sua prosperidade, foi um período de ensinamentoS' práticos e magnificas. A elevação dos preços não se circunscreveu a zonas produtôras : estendeu-se a toda a lavoura. Estimulou as atividades mais diversas. Québrou a rotina agrícola dos sertões e descobriu nóvos itinerarios economicos. Perdeu o Brasil a sua característica tradicional de produtor de café e açucar e importador do résto. Surge como terreno próprio de
HISTORIA SocrAL DO BRASIL 295
todas as culturas.. E' país de algodão, de carnes congeladas, de manganez e ferro, rie carvão e oleos, de ma.terias primas da indrnstria bélica e cereais, de fábricas de tecido e usinas elétricas . . . O signo da policultura e a vocação autonomista de sua vida economiéa revelam-lhe um "momento" irrecuperavel. Não o perdeu.
Numeros - indices
Vejamos os numcros-indices: A industria paulista que produziu apenas 69. 7 52
contos em 1900, 189.730 em 1910, em 1915 aparece com o rendimento de 274.147, que em 1920 se elevava a 775 .915 (273).
A produção industrial do país, de 1. 352 mil contos em 1914, subira. á irnportancia de 3 milhões de contos de réis em 1920.
O consumo do algodão, somente de 14.943 toneladas em 1914, em 1918 andava por 87.695 (274).
A exportação de minerais , de 187 mil toneladas em 1914, alcançou 536 mil em 1917.
A importação brasileira caíu, do peso de 3.478 mil toneladas em 1914, para 1.740 mil em 1918. O valor da exportação subiu ,de 755 mil contos em 1914, a 1 . 137 mil
(273) A progressão não se interrompe : 1.213 mil contos em 1925, 1.897 mil cm 1930 (Alfredo Ellis op. cit., p. 225).
(274) O Brasil Atual - Ministerio da Agricultura, p. 19, Rio 1930.
296 PEDRO CALMON
1918. O consumo interno, porem, compensando a criise do intercambio internacional, absorveu a produção do país, já suficiente para suprir o "deficit" da importação e refor
çar a balança comercial. Melhor se observará o fenomeno, apreciando-lhe a
curva na estatistica bancária ( apezar da influencia superficial dos estabelecimentos de credito na evolução da nossa
riqueza): O valor das letras descontadas ;subiu, de 262 .139 con
tos em 1914, a 565.830 em 1918; o dos emprestirnos cresceu, de 391 . 829 n~quele ano, para 801 . 635 neste ; sobretudo é expressivo o aumento dos depositos, de 649. 973 em 1914, para 1. 550.219 cm 1918.
O cambio ( sem embargo do descàlabro financeiro anterior a 1915) permaneceu, em 1918, na taxa de 14, que a guerra encontrára.
Finanças
As fi nançais da União são más em virtude dos "deficits" de exercício e dos créditos extraordinarios a desequilibrarem, todo ano, orçamentos sem unidade. Cob rem as despêsas maiores que a receita dous recursos abusivamente explorados : a emimão de apoiices como apêlo aos capitais do país, e a fabricação de papel-moeda. As apoiices desde 1868 tinham revelado as possibilidades do mercado nacional de dinheiro. Poderia o país dispensar os emprestimos estrangeiros se lograsse interessar os capi-
HISTORIA SocrAL Do BRASIL 297
talistas nacionais nas obras de vulto, sem onerar simplesmente o Tesouro para satisfazer os gastos comuns do governo. O quatricnio Hermes emitiu 210.816 contos, o de Wencesláu, 253 .465, e o subsequente, 519.293. Mais se emitiu papel-moeda. Hermes: 221.008; Wencesláu 856.680; Delfim-Epitacio, 667. 951. "Em resumo: - em 16 anos (até 1926) emitiram-se 3.341.000 contos, dos quais se destinaram a cobrir "deficits" ' 1 . 090. 000, ao passo que
mais do duplo - 2.251.000 contos,_ foram empregados em auxílios ao comercio e á produção" (275). Não havia pessimismo definitivo. O desenvolvimento elas forças economicas tornava logo insignificantes os erros cometidos, inconsequentes o atropêlo e a imprevidencia das administrações. O meio circulante continuou escasso. As apoiices tiveram sempre bôa colocação. Acumularam-se sobretudo nas cidades de iniciativas industriais moderadàs ou nulas, como uma fórma cômoda, habitual e proveitosa de capitalismo !brasileiro. As rendas nacionais avultam sem cessar.
Um decênio todo (1900-10) a receita federal (em papel) não passou da casa de 200 mil contos. De 292. 242 contos em 1914 ( e 7 4 mil em ouro) alteou-se a 437.196 em 1918 (88.510 cm ouro), ponto de partida para uma duplicação quinquenal (276).
Proporcional prosperidade bafejou os Estados, a cuja
dianteira S. Paulo se colocára desde 1888.
(275) Brenno Ferraz, A Situação do Brasil e a estabilização da moeda, p. 33, S. Paulo 1928.
(276 ) Em papel: 946.601 em 1924, 1.530 . 108 em 1929 ...
XVIII
UM SECULO DEPOIS DA INDEPENDENCIA
A .sucessão <le Wencesláo Braz teve a naturalidade d'um sistêma que se confirma,. a placidez d'uma ordem que se não conlesta.
Devia a S. Paulo a cadeira . Fôra Rodrigues Alves o seu eleitor primordial. Pois aconselhou - protestando uma neutralidade t>Óbria - que a Rodrigues Alves se r es-tituisse a cadeira. Delfim Moreira.
Para vice-presidente, daria Minas o sr. Os dous grandes Estados revezaram-se,
utilmente aliados, projetando sobre a política, .sem chefes permanentes, a invencível união. "Café com leite", maliciava o povo. Realmente uma fórmula hábil de sub tituição de partidoo, desaparecidos, de forças morais, ineficazes, de correntes orgànizadas, por uma definitiva coligação de govcrnadôres. A vice-presidencia servia para estreitar o laço. Importava uma antecipação de compromissos. S. Paulo estaria no Cattete em 1918, e Minas em 1922. S. Paulo voltaria em 1926, e Minas, logicamente, em 1930. . . O homem capaz de perturbar esse equilibrio caíra, apunhalado, num saguão de hotel, tres
HISTORIA SocIAL no BRASIL 299
anos ante,s. O sennador Antonio Azeredo, seu sucessor na chefia da Camara Alta e na situação eventual de diretor da politica fóra dos quadros 3'dmin.istrativas, não tinha a autoridade substancial de Pinheiro. O môrro da Graça sumira-se, num turbilhão de fatos nóvos. As forças partidarias dependiam agora das posições oficiais : e só o inesperado poderia alterar os definitivos designios de dous ou trcs estadistas amigos. O inesperado foi a morte.
Em 15 de Novembro Rodrigues Alves, de saúde combalida, não poude empossar-se. A sua idade avançada fazia temer a breve acefalia do governo. F aleceu o Presidente -- cheio de serviços á nação - em 18 de Janeiro de 1918. Habitava o Cattete, inadaptado ás funções, surpreendido por elas sem a necessária prática de encargos tão graves, o sr. Delfim Moreira. Quem preencheria a vaga? S. Paulo havia de pleitea-la para seu governador, Altino Arantes, politico da geração nova, ilustre, porém ainda pouco conhecido, por isso mesmo recusado por seu colega mineiro, que tam'bém não tivera tempo de encanecer nos póstos de governo: o sr. Artur Berna,rdes. O Rio Grande do Sul aproveitava-se do en6ejo para "vetar", a ambos . .. O secretario do interior de Minas era Raul Soares. Dotado de inteligencia límpida, culta e energica, podia incluir-se entre os "1eaders" do Brasil a este tempo, pelas qualidades valorosas a que não faltavam tacto e espirito público. Foi o mensageiro do. sr. Bernardes para observar no Rio de Janeiro o problema delicado. Se Minas rompia momentaneamente o 6eu acôrdo com S. Paulo, o candidato devêra vir de outro Estado.
300 PEDR O CALMON
Nenhum nome seria melhor recebido do país que o ele Ruy Barbosa. Um mez inteiro, foi o preferido dos meios politicos. 1fas se o povo o queria, temiam-no os governadores, sendo que o hQ.stilizava o da Bahia, Antonio Mouiz, seu acl versario na terra natal.
Corriam então em Paris as negociaçõrn da paz. Exquivara-se Ruy da chefia da delegação brasileira, que Roclrigues Alves mandára oferecer-lhe . Recaí ra a escolha num senador que aliava á notavel cultura jurídica os ti tulos -d'uma extensa e bri_lhantc carreira pública : o sr. Epitacio Pessôa. Paraíbano, ministro aposentado do Supre
mo T ribunal, representante, no Senado, do seu pequeno &tado, a missão da Paz o destacou do plano habitual da política. Tornou-se justamente uma figura do cenário
internacional. Sobre ele, portanto, tinham de pousar os olhos inquiétos os empre1ários da "sucessão", na sua préssa de concordar n'uma fórmula que paralizasse a propaganda ruysta.
Presidencia Epitado
Epitacio Peissôa recebeu com surpreza, na Europa, a noticia de o terem indicado (277). Admiraram-se -lison jeando-nos - os diplomatas de Versalhes, do exemplo elo Brasil, que fixava as suas preferencias num homem
representat ivo fóra das intrigas partidárias, elegendo-o
(277) Epitacio Pessôa, Pela Verdade, p. 43, Rio 1925.
HrsToR rA SocrAL DO BRASIL 301
sem trabalho, como um prémio automatico, dado ao valôr . . . S. Paulo e lVI ina:s, com o sr. Azereclo como presidente da "coordenação", patroc inaram o convénio em que foi declarado candidato o embaixador. Convenção Nacional, analoga ás anteriores . .. - exprobrou Ruy, que não quiz recuar da campanha em que os proprios acontecimentos já o tinham enredado.' Candidato oposicionista mesmo sem os fatô res de exito de 1909, condenado a identícas decepções n'um pleito sem as ressonancias daquele, frizou o velho paladino a sua coerência, indo até o fim, na luta sem espcrança,s, e na prégação sem fadigas. Viajou, para proferir discursos soberbos. Completára, no ano precedente, o seu jubileu intelectual. Podia alheiarse das contenda,s, para o descanço de uma velhice trabalhada por incandeS<:entes inspirações liberais: mas não hesitou. Vencido nas urnas, como se sabia, continuou, irredutível, na resistencía. A hora, era do sr. Epítacio.
Alguma cousa de estranho, perturbador e imprevi,sto acabava de acontecer . E vitando o orador, que flagelava as oligarquias, os governadores tinham sagrado um presidente fóra de seu grupo, pertencente a um Estado do norte sem comunidade de interesses economicos com S. Paulo,. Minas, o Rio Grande, dema is disso homem de vontade, sem compromissos de idéas e sem clientéla eleitoral, indiferente, por tanto, aos ritmos e ás concordancias de que, até aí , se fizéra a política republicana.
O bem e o mal, imputados ao "epitacismo", não podem separar-se da pooição isolada em que se conservou. Foi um governo forte , ciivifüta , de linhas nítidas, sem as
302 PEDRO CALMON
meias tintas do quatrienio de W encesláo Braz, porque não se enquadrou na moldura d'uma facção orgânica e durável. O que sobreleva, na epoca "epitacista", é o sr. Epitacío. Começou por um desafio indiréto ao preconceito de que as pastas militares deviam ser ocupadas por oficiais generais. Deu a da marinha a Raul Soares e a da guerra a J oão Pand iá Calogeras. P olíticos, e não militares. Gente de paletó. Segundo a praxe da monarquia, abandonada, aliás, pelo seu ultimo gabinete. Calogeras fez um ministerio digno, de vastos melhoramentos . Mas era aquilo temerario. Não sómente pelos equívocos, a que se pra;- 1
tava a direção dos assuntos técnicos por homens políticos, como pelo ambiente de irritações profundas, que o apostolado ruysta deixára, no seu malôgro. O descontentamento das clrusses armadas devia exacerbar-se com as criticas ele imprensa aos minstros civis . Expuzára-se o Presidente a ser suspeitado de infenso ao Exercito. E logo tinha de enfrentar delicados problemas internos, como o ela intervenção na Bahia, onde - contra a eleição de Seabra - se levantaram em anna6 varios municípios do sertão .. .
Fatos culminantes
Os fatos culminantes do triênio foram a nova defesa do café, o incremento gigantesco das obras contra as sêcas, o Recenseamento de 1920, a visita dos reis da Belgica, a repatriação dos <lespojoo mortais de D. Pedro II e da
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 303
Imperatriz, a Exposição Internacíonal de 1922 e a de'belação da revolta de S de julho do mC1Smo ano.
A sucessão dramatica
Realmente a mais ardua questão do governo do sr. Epitacio não lhe pertenceu propriamente: foi a da ordem publi~a no decurso da campanha presidencial, áspera e ameaçadôra, dramatica e intensa, que em 1921 e 22 dividiu as forças politicas e intranquifüou o país. A luta não devêra envolver no seu turbilhão o presidente, que protestava imparcialidade, que não esposára candidaturas, que não se metêra na contenda confinada, como em 1919, nos altos consêlhos estaduais. No seu livro "Pela Verdade", insistiu em dizer o que não era segredo para ninguem: o nome do sr. Artur Bernardes, seu sucessor, então presidente de Minas Gerais, não surgira de suas preferencias, mas, lançado pela r,situação paulista", (278) como uma solução natural, ou um corretivo da mecânica partidária.
(278) Diz o sr. Epitacio, que em Março de 1921 lhe mandara dizer o sr. Washington Luis, presidente de S. Paulo, por intermedio do Dr. Carlos de Campos, que via com simpatia a candidatura Artur Bernardes, que, o Dr. Raul Soares fôra sugerir-lhe, em S. Paulo: queria, porem conhecer antes a opinião do presidente da Republica (Pela Verdade, p. 476). O sr. Epitacio respondeu que guardaria estricta neutralidade. Convidado a lembrar um nome para vice-presidente, falou apenas da conveniencia de ser tirado d'entre os políticos do norte, afim de evitar rivalidades regionais uma vez o presidente saíndo do sul.
Cad, 21
304 PEDRO CALMON
Depois de Minas, S. Paulo. O problema de 1898, de 1905, de 1909, repetia--{:;e sem variantes sensíveis. Pinheiro perturbára-lhe o ritmo descobrindo o marechal, quando tudo se encaminhava para fixar em Belo Horizonte o eixo dessa poli tica. Contára, para tanto, com a aliança do presidente 1nteri110, Nilo Peçanha. Borges de Medeiros, no Rio Grande, aceitou, no episodio de 1921 , o papel que assumiria de novo Pinheiro, se vivo fôra, e que tinha sido o de Castilhos, de opôr á junção dos dous Estados ma:s poderosos uma desaprovação sevéra. Como Quintino outr 'ora, Nilo Peçanha tambem se definiu adversario da fórmula oficial. Tomou a frente á campanha como candidato ·da "Reação republicana", tendo por companheiro de "chapa" o sr. J. J. Seabra, governador da Bahia. A luta desenvolveu-se ampla e violenta, mas d'ante mão prejudicada pela certeza do esmagamento eleitoral da " R eação", á maneira de 1909 e de 1919, se não a seguisse de perto a "ques tão militar", em cujos écos se suspendiam descontentamentos e irritações que vinham de 1897, de 1904. . . A viagem por todo o país dos srs . Nilo e Seabra ambientou suficientemente o dissidio politico. O peor era a " liquidação" do episodio ao confirmar-6e, como teria de ser confi rmada, a vitórià dos srs. Artur Bernardes-Urbano Santos.
O Congresso, verificador dos poderes, não oferecia razoavei6 garantias de legitimidade : aí dominava a corrente triunfante noo Estados. O geito seria - remedio extra-constitucional - um "tribunal de honra", para apaziguar os espíritos . .•
HISTORIA SocrAL no BRASIL 305
O sr. Epitacio, porém, não permitiu que se encorpasse a idéa. Nada que ferisse a Constituição - bradou. Aconselhava, isto sim, meticulosa apuração das atas eleitorais e prévio consenso em acatar-se o resultado que exprimissem (279). Borges de Medeiros achava que se resolveria melhor com a "coparticipação de um ou mais juizes do Supremo Tribunal nos trabalhos pa apuração como membros integrantes de uma comissão especial". Seria um novo turno enxertado no processo eleitoral, senão - pela autonomia dessa comissão especial - a propria eleição indiréta, ou pelo Congresso, do presidente... Falhfu o alvitre. Acontecimentos marginais iam agravar terrivelmente esse epilogo de crise nacional. Abandonando, para facilidade de exposição, os trámites da "questão militar" de 1921-22, encontramos a vesperas de S de Julho a figura
respeitada e tranquila do marechal Hermes, que o destino retirára da penumbra em que preferira permanecer depois de 1914, para dar-lhe urna projeção analoga á dos dias que antecederam a substituição de Afonso Penna. Presidente do Club Militar, telegrafou, neste caracter, ao comandante da Região em Pernambuco, concitando-o a abster-se nas lutas locais, evitando "ao nosso glorioso exercito a odiosa posição de algoz do povo pernambucano". Isto em
30 de Junho de 1922. "ln continenti" foi censurado pelo governo. Não se conformou ele com a punição. O sr. Epitacio foi além: e ordenou a prisão do marechal. Fechado o Club, detido o seu presidente, estes fatos preci-
(279) Pela Verdade, p. 507.
306 PEDRO CA L l\ION
pitaram a revolta ( 280). Amanheceu S de Julho com os canhões do forte de Copacabana a ameaçar a cidade, e em armas a Escola Miltar. Rapidamente sufocada a sedição dos alunos, a do Forte se extinguiu num lance de desesperada bravura: o sacrif'icio, na ·praia de Copacabana, de dezoito combatentes, que enfrentaram até o ultimo alento as colunas legais.
O estado de sitio então decretado amorteceu temporariamente a agitação que ia pelo país. As comemorações do cenfenario da Independencia transcorreram serenas e refulgentes. O sr. Artur Bernardes empossou-se sem maiores obstaculos na suprema direção da Republica, em 15 de Novembro. Mas o abalo produzido pela tiucessão, pela revolta, pelas medidas policiais subsequentes á repressão, pelo advento do candidato contra quem tão largamente propagára as suas iras a "Reação republicana", preveniam os cspiritos e advertiam as consciências ácerca das próximas tribulações, dos choques inevitaveis que teriam, pouco depois, de pôr á prova a estrutura e as molas do regiruen. Evidentemente a atitude cauta e oportuna de Borges de Medeiros negando, na hora decisirva, o seu concurso á revolução, contribuiu sobretudo para que se circumscrevesse á capital federal, ao longínquo Matto Grosso, a demonstração armada. Enfrnquecera-se ele
propno, comtudo ,em face dos adversarias internos, pelo malôgro de sua politica de "véto" e oposição, e logo no
(280) O sr. Epitacio diz que a revolta estava iminente em varios Estados, Pela Verdade, ps. 545-6.
HISTORIA SOCIAL DO BRASIL 307
ano seguinte tinha de arcar com a insurreição federalista, que soprava as brazas do "irredentismo" de 93. A Republica experimentava Mi ultimas consequencias do "sistêma" de Campos Salles, da "organização" empirica que a -vertebrava, de sua "estática", de ordem e cc;mservação.
1922
1922 limita essa história politica, como se devessem reunir-se numa só época todas as queixas do pasisado, todas as objeções da prudencia, tqdas as excitações do desencanto, todas as impaciencias da desilusão.
A idéa da revolução instala-se nos debates públicos, como uma fórmula.
Presente-se que a paz nacional depende essencialmente das governos estaduais e dificilmente poderia manter-se n'outra crise de sucessão presidencial, assim tumultuosa e embravecida.
Pcrcebe-6e que a arquitetura de 1891 está a exigir uma larga remodelação.
O re~isionismo de Ruy - potente voz que para sempre silenciou em 1 de Março de 1923 - para certas inteligencias devia prevenir os males crônicos que empurravam a nação, por fatalidade e lógica das cousas, para a aventura das soluções imprevistas. Como em 1889 já não havia fiéis da monarquia que ousassem gritar a sua fidelidade, em 1922 já não tínhamos republicanos de qualquer modo contentes com a Republica que aí estava.
308 PEDRO CALMON
Nessa instabilidade oscilavam o sentimento público, as convicções coletivas, os programas dos partidos. O mal-estar do "após-guerra" roçava-nos com o seu contagio mórbido. A profunda subversão do velho mundo agitava-nos a sensibilidade fácil. As mutações de cêna brusca.is e atordoantes excitavam a nossa imaginação vivaz. E' de 1922 simultaneamente o grito de Graça Aranha em S. Paulo (Fevereiro) pelo modernismo literário, prólogo do seu rompimento rumoroso com a Academia, ( simbolizada na helênica serenidade de Coelho Neto) - e a reação tradicionalista da arte que sé consubrstancía no "estilo colonial". A juventude aceita, destemida, um futurismo inestético que foi exagerado, petulante e efêmero; e a cultura conservadôra não resiste sériamente ás imposições d'uma epoca revolucionária. Uma palavra híbrida vem da Alemanha e surpreende oo liberais: social-democracia. D1rse-ia que a experiencia da Guerra se cristalizára nas táboas da lei nova: a Constituição de \Veimar, de 1919. Como se combinaria essa flôr de decadencia com os princípios postulados pelos "fathers" americanos? Que con..sequencias teriam para estas plagas atlânticas a liquidação dos Impérios centrais, a metamorfóse européa?
Em contraste com a inquiétação profunda e geral, as luzes d'uma Exposição magnificente mostravam ao mundo ª" nossas realidades econômicas. O esplendôr das industrias. As cifras agrícolas. Os índices urbanos. Potencial, instrumentos e sínteses d'um progresso que nos enchia de orgulho. Festa de raça, alem di:,,30, Porque exibía ,através das vicissitudes d'uma evolução extensa, as
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qualidades primordiais e fortes do povo brasileiro. As suas energias creadôras; o dorninio do .seu cfona e de sua terra: a sua civilização perseverante; a capacidade do seu traba)ho e as medidas de sua ambição ;a sua alma social e o seu temperamento de resistente e estoico povoador de desertos .. .
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* Este livro foi composto e impresso nas oficinas da Emprêsa Gráfica da "Revista dos Tribu11ais'', à rua Co11dc de Sar:.edas, 38 - São Paulo, para a Companhia Editora Nacional, em 01~/u
bro de 1939.