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Web - Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 1 Número 6 fevereiro 2012 Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho 1 NORMA E PRECONCEITO SOCIAL 1 Roberto Gomes Camacho (UNESP-SJRP) [email protected] RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir as razões que motivaram ataques sistemáticos da mídia à política educacional do governo com base na divulgação da ideia de que um livro didático ensina errado. Por trás desses ataques está um conceito tradicional de norma que necessita urgentemente de revisão. PALAVRAS-CHAVE: norma descritiva; norma prescritiva; variação. ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the reasons for systematic attacks in the media to the government‟s education policy by spreading the idea that a textbook teaches wrongly. Behind these attacks is a traditional concept of language standard requiring urgent revision. KEYWORDS: descriptive standard; prescriptive standard; variation Palavras iniciais Vez ou outra uma questão linguística aflora na mídia. Em 1999, o deputado Aldo Rebelo propôs um Projeto de Lei para proteger a pureza do idioma mediante a proibição do uso de estrangeirismos. Mais recentemente, a mídia deu ampla divulgação a uma suposta sugestão de que o sistema escolar deveria incorporar formas “erradas”, contida no livro didático Por uma vida melhor da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático (do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). A acusação explícita de que o livro ensina errado não apenas descontextualiza o conteúdo do livro, mas também traz no bojo uma crítica oportunista orquestrada por alguns setores da mídia à política educacional adotada pelo governo. A polêmica foi sustentada e fomentada por uma atitude irresponsável por pessoas que interpretaram o que não está explicitamente formulado no livro, e o que é ainda mais grave, inclusive por jornalistas respeitáveis, como Clóvis Rossi 2 , e por um gramático conceituado 1 A discussão desse tema foi praticamente inaugurada na linguística brasileira pelo Prof. Ataliba Teixeira de Castilho, a quem este trabalho presta homenagem sincera. 2 Ver na seção Opinião do jornal Folha de São Paulo, de 15/05/2011, o artigo Inguinorança de Clovis Rossi.

Heterogeneidade linguística e preconceito social · Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho 4 em relação às variedades socioculturalmente prestigiadas, como afirmam

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Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande

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ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012

Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho

1

NORMA E PRECONCEITO SOCIAL1

Roberto Gomes Camacho (UNESP-SJRP)

[email protected]

RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir as razões que motivaram ataques sistemáticos da mídia à

política educacional do governo com base na divulgação da ideia de que um livro didático ensina errado.

Por trás desses ataques está um conceito tradicional de norma que necessita urgentemente de revisão.

PALAVRAS-CHAVE: norma descritiva; norma prescritiva; variação.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the reasons for systematic attacks in the media to the

government‟s education policy by spreading the idea that a textbook teaches wrongly. Behind these

attacks is a traditional concept of language standard requiring urgent revision.

KEYWORDS: descriptive standard; prescriptive standard; variation

Palavras iniciais

Vez ou outra uma questão linguística aflora na mídia. Em 1999, o deputado Aldo

Rebelo propôs um Projeto de Lei para proteger a pureza do idioma mediante a proibição do uso

de estrangeirismos. Mais recentemente, a mídia deu ampla divulgação a uma suposta sugestão

de que o sistema escolar deveria incorporar formas “erradas”, contida no livro didático Por uma

vida melhor da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático

(do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). A acusação explícita de

que o livro ensina errado não apenas descontextualiza o conteúdo do livro, mas também traz no

bojo uma crítica oportunista orquestrada por alguns setores da mídia à política educacional

adotada pelo governo.

A polêmica foi sustentada e fomentada por uma atitude irresponsável por pessoas que

interpretaram o que não está explicitamente formulado no livro, e o que é ainda mais grave,

inclusive por jornalistas respeitáveis, como Clóvis Rossi2, e por um gramático conceituado

1 A discussão desse tema foi praticamente inaugurada na linguística brasileira pelo Prof. Ataliba Teixeira

de Castilho, a quem este trabalho presta homenagem sincera. 2Ver na seção Opinião do jornal Folha de São Paulo, de 15/05/2011, o artigo Inguinorança de Clovis

Rossi.

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como Evanildo Bechara3. A falta de uma análise criteriosa do material revela, no mínimo,

desconhecimento lamentável sobre a realidade sociolinguística do Brasil. O assunto foi

incansavelmente debatido tanto por setores extremamente conservadores da mídia quanto por

setores mais inovadores e a ABRALIN, Associação Brasileira de Linguística marcou posição

com a divulgação de um pronunciamento4.

Meu objetivo neste texto é discutir a relação entre variação, norma e preconceito social

e, por outro, mostrar como o arcabouço teórico consolidado pela sociolinguística está na base do

texto do livro didático Por uma vida melhor. Para tanto, na seção 1 pretendo discutir o conceito

de norma a partir uma visão descritiva de língua; na seção 2, desenvolvo mais especificamente

os dois conceitos de norma; finalmente, na seção 3, procuro dar uma notícia sobre a origem

ideológica que perpassa o conceito prescritivo de norma; minhas palavras finais são destinadas à

análise de alguns conceitos desenvolvidos no livro didático, que provocaram a polêmica.

1. A noção de norma

Em torno dessas questões está um ponto nevrálgico da linguística, o que mais se presta a

polêmicas apaixonadas: a questão da norma. Segundo François (1974), para saber

adequadamente a razão por que a atitude prescritiva é tão difundida é necessário levar em conta

dois fatos. O primeiro é o de que, em razão de seu caráter convencional e de requerer, por isso,

um aprendizado, a língua, principalmente a escrita, levanta sérios problemas de ensino. Um

modo de nos garantir é recorrermos a uma atitude prescritiva. O segundo fato assenta na

natureza funcional da linguagem: a língua como instrumento de comunicação é um bem comum

do qual, como falantes, todos somos depositários. Por isso, somos tentados a nos atribuir o

direito de cuidar da língua, de preservar um traço de pureza original que ninguém sabe

exatamente qual é5.

3Ver entrevista de Evanildo Bechara à revista VEJA, edição 2219, de 01/06/2011, intitulada Em defesa da

gramática. 4Ver o artigo Língua e ignorância no site www.abralin.org/noticia?did.pdf.

5 É curioso verificar como a atitude prescritiva, que rege a gramática do português brasileiro, baseia-se no

português europeu escrito e literário do séc. XVIII, como se devesse encontrar no passado a pureza

original da língua, que seu uso quotidiano vem corrompendo. Um esquecimento, talvez necessário para

assumir uma atitude mítica como essa, é que o próprio português, como língua, surgiu de uma variedade

do Latim, falada e não escrita, e falada em situações informais, não em situações formais – o chamado

Latim Vulgar.

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A afirmação corriqueira de um linguista (e agora de autores de livros didáticos) de que

nós pega o peixe é uma forma alternativa legítima de nós pegamos o peixe desencadeia paixões

tão violentas quanto as vozes que se levantaram contra uma variante similar no livro didático

Por uma vida melhor.

No geral, os falantes/escreventes, que dispõem de um grau mais elevado de educação

formal, reconhecem, na língua, especialmente na variedade de prestígio, um signo exterior de

riqueza. No entanto, ao mesmo tempo em que aderem aos preceitos da variedade de prestígio,

esses mesmos usuários se surpreendem com a complexidade dos fatos linguísticos envolvida,

por exemplo, numa regra prescritiva como a obrigatoriedade da concordância verbo-sujeito.

Um caso simples como esse requer, em primeiro lugar, o domínio do conceito de sujeito

e de suas categorias constituintes (sintagma nominal, elementos nucleares como pronome

pessoal ou substantivo, especificadores, modificadores), da flexão número-pessoal do verbo, da

ordem do sujeito em relação ao verbo e assim por diante. Diante dessas dificuldades, o refúgio

mais confortável é fiar-se numa atitude prescritiva e admitir que Chegou os meninos está errado

e Chegaram os meninos está certo, a despeito do uso extremamente frequente da primeira em

função da posição pós-verbal do sujeito.

François (1974) aponta os seguintes traços comuns a toda atitude prescritiva:

(i) o privilégio, mesmo em assunto de pronúncia, das formas escritas que, quase

sempre coincidem com as formas literárias;

(ii) a identificação, com a mais extrema parcialidade e arbitrariedade, da porção da

língua que se destaca, atitude que provoca permanentes cuidados repressivos às

formas restantes;

(iii) fundamentação dessa triagem em critérios exteriores à própria língua, o que

significa identificá-la com uma variedade geográfica, temporal ou literariamente

delimitada.

Examinemos, agora, o que caracteriza uma atitude descritiva e como essa atitude

aparece no livro didático objeto de polêmica. Um dos postulados básicos, desenvolvidos

preliminarmente em qualquer curso de iniciação à linguística, afirma que nenhuma língua ou

variedade é inerentemente inferior a outra língua ou variedade similar. Esse postulado questiona

que uma variedade estigmatizada, ou destituída de prestígio social, seja um aglomerado de erros

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em relação às variedades socioculturalmente prestigiadas, como afirmam os postulados

prescritivos acima referidos.

Para a linguística, toda língua ou variedade é, na realidade, um sistema altamente

estruturado, mediante o qual é plenamente possível transmitir, lógica e coerentemente, qualquer

conteúdo a respeito da realidade circundante. Variedades linguísticas são, portanto, diferentes

no que concerne aos mecanismos expressivos disponíveis para a formulação de atos de

comunicação verbal, mas, ao mesmo tempo, absolutamente idênticas no que respeito à

qualidade comunicativa dos mecanismos que empregam.

O que isso implica na prática? A ideia de que a chamada variedade caipira do português

brasileiro com seu traço mais característico, a variante retroflexa do /r/ em posição de coda

silábica, é tão complexa para a formulação do pensamento lógico no processo de comunicação

quanto a variedade paulistana com sua variante apical, ou a carioca com sua variante velar; ou

que falar nós pega o peixe ou nós pegamos o peixe, em qualquer variedade, não interfere com a

capacidade cognitiva do usuário.

O surgimento da linguística moderna, entendida como a que se realizou a partir do

século XIX, com o modo imanente dos neogramáticos entenderem a mudança linguística, teve

seu apogeu com a publicação, em 1916, do Curso de Linguística Geral por Ferdinand de

Saussure. Saussure ([1916] 1977), amplamente reconhecido como o pai da linguística moderna,

deu sustentação à interpretação da linguagem como um objeto sincrônico em si mesmo e por si

mesmo. Essa sustentação representou, na realidade, um gesto de criação que propiciaria a

construção de um estatuto de autonomia para a linguística no conjunto das ciências humanas.

Embora rompesse com a tradição diacrônica do século XIX, em especial a de linhagem

neogramática, em que o próprio Saussure se formou, o princípio formal segundo o qual a língua

se define no jogo de relações de oposição no interior do sistema deu consistência formal à velha

intuição de que as línguas humanas são totalmente organizadas (cf. FARACO, 2004). Como a

construção teórica e o trabalho descritivo convergiram para criar a ideia de que não é

teoricamente legítima a crença na evolução degenerativa das línguas?

Comecemos com a construção de um objeto teórico. Ao instituir uma concepção de

língua como um sistema de valores puros, cujos membros se acham em estrita relação de

interdependência, Saussure ([1916]1977) a entendia como essencialmente arbitrária,

arbitrariedade fundada não só na relação do significante com o significado, mas também na

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relação do significado com a percepção dos fenômenos no mundo. Como esse sistema se basta a

si próprio, o equilíbrio solidário das partes que o compõem é absolutamente independente das

mudanças diacrônicas e é justamente por isso que o sistema linguístico é imune a uma

concepção de mudança como degeneração ou progresso (FARACO, 2005, p. 79). Uma

consequência prática dessa concepção está na ideia de que o uso de variantes estigmatizadas não

degenera a pureza do sistema linguístico, que apenas tende a mudar, nem para melhor nem para

pior.

Passemos agora a examinar como os estudos descritivos reforçaram o princípio de

plenitude formal sustentado por Sapir ([1924]1969). O compromisso com a tarefa descritiva era

proporcional, em grau de relevância, ao compromisso de evitar a interferência do conhecimento

acumulado com o estudo das línguas ocidentais indo-europeias. A orientação subjacente a esse

compromisso de que cada língua tem sua própria organização gramatical foi, segundo Ilari

(2004), reforçada pelas teses relativistas de Benjamim Lee Whorf.

A atitude objetiva em relação aos fatos da linguagem assumida pela linguística norte-

americana é historicamente derivada da vertente relativista da antropologia cultural, inaugurada

por Malinowski. Segundo Durham (1986) a pesquisa de Malinowski junto as Ilhas Trobiands

fez dele um inovador, já que o pesquisador se envolveu mais diretamente com o objeto de

pesquisa.

No início do século XX, antropólogos, como Malinowski, em contato com uma

realidade diferente e ao mesmo tempo altamente complexa, reagiram contra as medidas

avaliativas de seus predecessores nas ciências sociais, que descreviam culturas não-ocidentais

com base numa visão etnocêntrica, usando como régua justamente os parâmetros da cultura

ocidental.

Esse processo propiciou ocasião oportuna para que se desencadeasse reação similar no

modo como os linguistas passaram a enxergar as diferenças entre duas línguas ou duas

variedades de uma mesma língua. A insistência dos antropólogos, na análise descritiva de

culturas diferentes, em contornar os problemas de uma visão evolucionista, vigente desde o

século XIX, fê-los abandonar a ideia de classificar algumas culturas ou mesmo línguas como se

estivessem num estágio comparativamente inferior, simplesmente porque não se achavam

associadas a avanços tecnológicos próprios de outras civilizações ocidentais. O conceito de

língua ou cultura primitiva foi, portanto, denunciado como um produto ideológico de uma visão

etnocêntrica, cujo olhar partia sempre da lente de civilizações tecnologicamente avançadas.

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Como um resultado natural da primazia absoluta da cultura greco-latina sobre o

pensamento ocidental, em virtude do grau de desenvolvimento atingido pelo Império Romano, o

latim acabou se fixando como modelo por excelência de língua flexional. Tanto é verdade que,

no início do século XVI, quando os estados europeus começaram a traçar seu processo de

consolidação, a busca de legitimação para as línguas que se firmavam encontrava no latim seus

critérios de autoridade.

Esse processo de atribuição de prestígio cultural acabou gerando outros tipos de

preconceito ao ser transposto para as línguas dos povos colonizadores, como o inglês, o

espanhol, o português, o francês, o holandês, em relação às línguas “exóticas” faladas pelos

povos das terras conquistadas (algo próximo ao rótulo de bárbaros que os gregos costumavam

colar nos povos não helênicos).

A abordagem descritiva de línguas sem tradição escrita de povos indígenas da América

do Norte, e mais tarde da América do Sul, forneceu evidências suficientes de que algumas

dessas línguas são comparativamente muito mais “flexionais” que o próprio latim, o modelo,

por definição, desse tipo de estrutura.

É com base nesse ponto de vista que, para Sapir ([1924]1969), como para qualquer

outro linguista estruturalista das gerações seguintes, passou a ser suficientemente claro e

evidente que cada língua deveria ser enfocada segundo a natureza de sua própria organização

estrutural. Esse postulado envolve abandonar a ideia de ver a língua segundo um modelo de

referência, geralmente uma língua do tipo flexional, cujo critério fundamental, de natureza

extralinguística, tem base na distribuição de prestígio cultural.

O correlato mais evidente do etnocentrismo está na orientação normativa, que, segundo

Ilari (2004) facilita o entendimento de que somente a variedade padrão é sistemática e regular.

Tudo quanto dela foge constitui formas corrompidas dessa variedade. Já a orientação descritiva

permite descobrir naturalmente que as variedades não-padrão não têm uma estrutura ilógica ou

ineficiente, mas é apenas diferente da organização disponível na variedade padrão (cf. ILARI,

2004, p. 87). Ao fazer um balanço da influência do estruturalismo na linguística brasileira, Ilari

(2004) ressalta que um dos saldos mais positivos foi justamente ter instaurado a crença de que a

língua portuguesa deveria ser tomada como objeto de descrição atitude que contrariou em

grande medida a longa tradição normativa.

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2. Dois conceitos de norma

Como uma consequência natural do princípio pós-estruturalista de que a variação e a

mudança constituem propriedades constitutivas da linguagem (WEINREICH, LABOV,

HERZOG, [1975] 2006), uma questão importante de política linguística é o de padronização.

Como as línguas variam tipicamente na pronúncia dos fonemas, na codificação gramatical e na

organização lexical, as forças centrípetas que produzem uniformidade podem, inclusive, levar

alguns países a sentir a necessidade de estabelecer princípios de padronização, como a busca de

critérios para determinar que variedades são consideradas mais apropriadas para publicações

governamentais, ensino público, uso na mídia e demais instituições públicas. Alguns países

atribuem às academias a tarefa de estabelecer os critérios de padronização. Papel importante

nesse âmbito tem sido atribuído à L‟Académie Française, para determinar o padrão do francês, e

La Real Academia Española, para o do espanhol.

A discussão desse assunto enveredou para um campo aparentemente neutro ao se

entender a padronização como um procedimento de seleção entre variantes com a finalidade de

obter uniformização em alguns usos mais formais da modalidade oral e da modalidade escrita.

Entretanto, a noção de padronização tem aspectos simbólicos que ultrapassam muito seus

aspectos puramente técnicos e pragmáticos. Mesmo nos casos em que se atribui a padronização

ao trabalho das academias, as pessoas passam a acreditar que a língua descrita nas gramáticas e

nos dicionários é a única variedade correta.

A estratégia cortadora da relativa, por exemplo, de que a menina que você gosta é um

caso ilustrativo, é extremamente usada em vários contextos sociais por todos os tipos de

falantes, mas a impressão que passa é a de que apenas a estratégia preposicional – a menina de

que você gosta - é a correta e, portanto, mais adequada não apenas ao uso formal escrito, mas

também a todas as demais circunstâncias de interação. A noção de correção, atribuída por algum

critério padronizador, é, portanto, entendida como correta num sentido tão absoluto que deixar

de usar a variante padrão equivale a deixar de usar a língua real. É esse conceito que está na

base do discurso de Cipro Neto, segundo o qual para “o pensamento de uma corrente

relativista”, o dos linguistas, o certo e o errado em português não são conceitos absolutos6. E

não são mesmo!

6 Veja, edição 1725 de 7 de novembro de 2011, p. 112.

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Como o termo padrão é em si mesmo ambíguo, pode-se afirmar que há dois tipos de

padrão, que Fasold (2006) identifica como mínimo e arbitrário. Por trás do estabelecimento de

um padrão mínimo, acha-se uma escala de mensuração. Respeitá-lo implica atingir o ponto de

referência adotado como medida mínima de aceitabilidade. Já o estabelecimento de um padrão

arbitrário é uma questão totalmente diferente por implicar a existência de características não-

mensuráveis de comportamento que resultam de convenções socialmente estabelecidas.

Quando um linguista usa o termo variedade padrão, ele certamente quer referir-se a um

padrão arbitrário, como as regras convencionais que governam, por exemplo, o uso de garfo

para a ingestão de alimentos sólidos e a de colher para a ingestão de alimentos líquidos (ainda

que seja muito mais prático usar uma colher para comer um alimento sólido como ervilha).

É extremamente vantajoso haver consenso em torno de certos padrões arbitrários para o

uso de uma língua, que é reconhecidamente derivada de um acordo tácito. Em geral, é a

aceitação social que deveria fornecer um padrão arbitrário operacional, não alguma

superioridade inerente das características que ele especifica. Padrões arbitrários de correção

mudam, ainda que vagarosamente e, enquanto isso ocorre, as penalidades possíveis são

derivadas das regras sociais convencionalmente estabelecidas, que se resumem a seguir ou a não

seguir os padrões arbitrários em circunstâncias em que eles devem ou não devem ser

observados.

A oposição entre padrão arbitrário e padrão mínimo se correlaciona aproximadamente

ao conceito de norma postulado por Rey (1972). Para ele, um enfoque lexicológico da palavra

norma detecta dois conceitos por trás de seus usos: num deles, norma é dependente da

observação, e no outro, de elaboração de um sistema de valores. O primeiro conceito

corresponde a uma situação objetiva e estatística, baseada em convenções sociais, que se alinha

ao de padrão arbitrário; o segundo a um conjunto de intenções subjetivas, que se alinha ao

conceito de padrão mínimo.

Desse modo, o mesmo item lexical (a palavra norma), empregado sem a devida

precaução, corresponde, por um lado, à ideia de frequência, de tendência geral e habitualmente

realizada, e, por outro, à ideia de conformidade a um padrão mínimo de referência, de

julgamento de valor. Para dar conta dessa diferença semântica, a morfologia portuguesa conta

com dois adjetivos derivados: normal para o primeiro sentido, e normativo para o segundo7.

7 Ver também a esse propósito Bagno (2003).

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Os fatos convencionais, produzidos com base no estabelecimento de um padrão

arbitrário, nos termos de Fasold (2006), possibilitam ao observador detectar uma média objetiva

entre os usos correntes para registrar o que, na fala é sentido como normal. Já os fatos

estabelecidos com base numa medida externa produzem apenas a situação subjetiva dos juízos

de valores, a que é mais aplicável o epíteto normativo. Não é preciso muito esforço mental para

entender que os ataques ao livro didático se basearam num conceito supostamente imutável de

padrão mínimo e não no conceito de padrão arbitrário.

Uma medida mínima, historicamente estabelecida no debate travado no século XIX

sobre a “língua brasileira”, é considerar como critério de correção a modalidade escrita e

literária dos escritores clássicos portugueses. É considerada incorreta uma variante que estiver

fora da medida estabelecida pelo padrão mínimo, isto é, a que for usada em situações informais

por falantes de baixa escolaridade.

Sobre esse assunto, Faraco (2008) afirma que não foi a língua de Portugal, que serviu

como referência para o padrão mínimo, já que ela é, em si mesma, também marcada por um

conjunto diversificado de variedades; nem foi ela uma imposição de Portugal ao Brasil. Nesse

debate, alguns intelectuais portugueses contribuíram de fato para essa fixação, ao acusarem os

brasileiros de escreverem errado, mas a lusitanização da norma padrão brasileira foi

responsabilidade integral de nossa própria elite letrada (cf. FARACO, 2008, p. 81), que

combatia os fenômenos linguísticos típicos como sinônimos de corrupção e degeneração.

Castilho (1988) enumera ainda outros parâmetros de referência mediante os quais é

possível mensurar qualitativamente a variação para o estabelecimento de um padrão mínimo: há

concepções estéticas que medem o grau de beleza e elegância da norma; elitistas ou

aristocráticas, que medem o falar das classes elevadas, contrastando-a com o falar popular; há

concepções puristas, que usam o metro da vernaculidade, da tradição e até concepções

naturalistas, que, por identificarem a língua com um ser vivo, usam medidas baseadas no grau

de desenvolvimento: as línguas nascem, atingem o apogeu, decaem e morrem (CASTILHO,

1988, p. 55-56).

Para as elites, as mesmas que estrelaram os preconceitos recentes na mídia, há, portanto,

uma e somente uma língua correta e eficaz a todas as circunstâncias de interação, que se define

como norma padrão. Esse conceito, que não implica nenhuma variedade específica, como a

variedade culta falada nos centros urbanos, representa uma forma institucionalizada de

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imposição baseada em registros escritos e literários do passado. Adquiriu o direito de ser a

língua e de aplicar às demais variedades cuidados repressivos.

Alternativamente, a principal força centrípeta, passível de estabelecer uma aproximação

entre as variedades de prestígio e as variedades estigmatizadas, arbitrariamente estabelecidas,

estaria hoje, segundo Faraco (2008) na atração que exercem as populações tradicionalmente

urbanas, situadas na escala de renda média para alta, e que têm assegurado historicamente bons

níveis de escolaridade, ou seja, pelo menos o ensino médio completo e acesso a bens

simbólicos, como os da cultura escrita e letrada. Esse possível padrão arbitrário já está tão

suficientemente conhecido que pode guiar o uso de formas variáveis em situações formais.

Basta ver os trabalhos descritivos baseados no Projeto da Norma Urbana Culta que forneceram

subsídios para a elaboração de uma gramática do português falado culto (JUBRAN, KOCH,

2006; ILARI, NEVES, 2008; KATO, NASCIMENTO, 2009).

3. A origem ideológica de norma

Inicialmente, pode-se afirmar que é em razão do prestígio que a variedade literária

adquire para uma determinada elite letrada que a norma padrão das línguas europeias ocidentais

passou por um processo que Auroux (1992) denomina de gramatização. Na realidade, o advento

dos estudos linguísticos (mais adequado dizer “metalinguísticos”), somente ocorreu, na

civilização ocidental, com o advento da escrita, que congelou a forma falada das línguas, dando-

lhe formato apreensível e suscetível à análise. Paralelamente ao processo de formação dos

estados modernos, no início da era clássica, selecionou-se a variedade de uma elite letrada, que

se gramatizou como objeto de gramáticas e dicionários, para figurar como norma. Nesse caso,

dicionários e gramáticas não operaram como instrumentos descritivos em relação ao padrão

arbitrário, mas como instrumentos normativos direcionados para a fixação de um padrão

mínimo.

Também Gnerre (1985) lembra que o momento fundamental da ascensão de uma

variedade ao estatuto de norma foi a associação dela com a escrita, relação que lhe confere

legitimidade. Nada há de neutro no processo histórico de legitimação de uma norma e,

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sobretudo, nada de intrinsecamente linguístico na natureza de uma variedade para que seja ela e

não outra a norma padrão. Conforme afirma Gnerre,

(...) assim como o estado e o poder são apresentados como entidades

superiores e „neutras‟, também o código aceito „oficialmente‟ pelo poder é

apontado como neutro e superior, e todos os cidadãos têm que produzi-lo e

entendê-lo nas relações com o poder (GNERRE, 1985, p. 6).

O princípio que rege o estabelecimento de qualquer norma social e, por conseguinte,

também o da norma linguística, consiste na pré-existência daquilo que se pretende realizar, cujo

efeito é a fixação de um arquétipo, de um modelo. E uma vez que nos procedimentos que

produzem esse modelo, não se distingue a ação voluntária ou, ao menos, a intenção e a

finalidade de um legislador, esse arquétipo é, segundo Rey (1972), progressivamente desligado

da vontade dele para fundar-se ficticiamente em uma norma constituída, que basta observar-se

para que institua naturalmente um modelo de uso sadio que tenha o direito de sanar os desvios,

as diferenças. O que faz uma gramática prescritiva é repetir as mesmas regras presentes nas

gramáticas que a precederam, assumindo um gesto que as reitera acriticamente, sem entender as

razões que as motivaram.

Essas motivações permanecem no esquecimento mediante um processo que Bourdieu e

Boltansky (apud GNERRE, 1985, p. 21) denominam “amnésia de gênesis”. A amnésia de

gênesis permite que se continue a propagar e a aprender a norma padrão fora das condições

sociais e políticas de sua própria instituição, o que garante também sua legitimação. A variedade

escolhida como norma no século XIX não é a mesma que a do período clássico, mas a

impressão que dá é de haver uma continuidade (GNERRE, 1985).

Assim, em termos de linguagem, a construção ideológica da norma prescritiva se

assenta inteiramente sobre o conceito habilmente manipulado de „uso‟. Acrescenta Rey:

O discurso avaliativo-prescritivo da classe dominante se abriga sob a

constatação de uma lei abstrata. A regra da ratio, que os gramáticos se

empenham em descobrir por trás dos „usos‟, é assimilada a uma pseudo-

opressão da norma social (o uso geral) e reabre, de fato, uma intenção

unificante e opressora” (REY, 1972, p. 8, tradução minha)

A norma prescritiva é um pseudo-sistema, porque ela passa a representar a língua como

um todo, que, em grande parte ignora. Os usos que não se sujeitarem ao sistema, tomado como

norma padrão, são desqualificados socialmente e, como tal, cumpre corrigir.

Outro traço tipicamente ideológico, relacionado com o estabelecimento de uma norma,

é o próprio discurso que a instaura. O discurso prescritivo consiste ao mesmo tempo numa

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avaliação crítica e numa eventual condenação de outros discursos e é, ao mesmo tempo, um

discurso definidor, porque, ao rejeitar uma parte dos usos linguísticos, delimita também um

objeto, que é a própria norma padrão.

Uma das características essenciais do discurso prescritivo é a de que, a natureza

deôntica, ao mesmo tempo autoritária e coercitiva, do tipo se deve x não se deve, é

frequentemente omitida. O discurso modalizador é geralmente abandonado em proveito de

formulações alternativas que lhe dão a aparência de um discurso didático, objetivo e neutro (cf.

REY, 1972).

A preservação do processo de lusitanização na fixação da norma padrão brasileira (cf.

FARACO, 2008, p. 81), já mencionado, representa um procedimento ideológico, mediante o

qual certa elite pretende continuar a distinguir-se da “plebe”, principalmente no debate político,

em que usar a norma padrão acaba por constituir elemento de desqualificação individual8. O

mesmo movimento que combatia o “português de preto” no século XIX e defendia o

branqueamento da população mestiça brasileira se preserva nos mecanismos de desqualificação

social mediante o uso da língua.

Por isso é que Bagno (2003) afirma, com razão, que o preconceito linguístico não existe

em si mesmo, o que existe é o preconceito social. Como o preconceito racial, social ou sexual é

reprimido pela lei, é a repressão a certos usos linguísticos que permitem continuar a exercer, de

modo mais sutil e socialmente complexo, o preconceito social. Para isso, é necessário assegurar

como norma padrão uma variedade que nada tem a ver com o que falam e escrevem os

brasileiros.

Palavras finais

É tempo de fechamento. Para cumprir os dois objetivos fixados, resta-me agora discutir

como o arcabouço teórico consolidado pela linguística está na base do texto do livro didático

Por uma vida melhor, o principal protagonista da polêmica criada na mídia.

Na realidade, esse livro didático representa um sopro de renovação ao tocar na relação

entre norma e variação social. Lembra que as classes sociais menos valorizadas usam uma

8 Basta ver os ataques constantes da mídia ao discurso do candidato e, depois, do já empossado presidente

Lula, discutidos por Bagno,(2003).

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variedade diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização, mas as duas são

igualmente eficientes como meios de comunicação.

No entanto, em função do prestígio social atribuído à variedade utilizada pelo grupo

mais escolarizado, os falantes das variedades populares sofrem preconceito social e é justamente

em razão disso que um falante deve dominar diferentes variedades, cada qual com sua hora e

vez na interação verbal. Como a norma padrão representaria, assim, nessa concepção, uma

variedade a mais à disposição dos estudantes, a escola deve preocupar-se em mostrar-lhes a

relevância de seu domínio. Por isso, o capítulo 1 (Escrever é diferente de falar) mostra uma

clara preocupação em identificar os problemas que aparecem num texto tomado como ponto de

partida, e resolvê-los adequadamente, aplicando-lhe regras próprias da norma que rege a

modalidade escrita formal.

Em outra seção, o livro didático traz como exemplo casos de variação de concordância

nominal, como em Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados / Os livro

ilustrado mais interessante estão emprestado, para mostrar que, na variedade popular, a

indicação de plural se faz sem redundância. A resposta à pergunta retórica “Mas nós podemos

falar os livro?”é positiva, mas com um alerta de que não usar todas as formas de plural pode

tornar o aluno vítima de preconceito social.

O que causou a indignação de jornalistas, professores de língua portuguesa e de

membros da Academia Brasileira de Letras são frases pinçadas e despojadas de seu contexto,

como nós pega o peixe, os menino pega o peixe, que foram largamente usadas como exemplos

de que um livro didático, aprovado pelo próprio PNLD do MEC, ensina a escrever “errado”. No

entanto, o que faz o livro é relativizar o critério absoluto de correção, que rege a norma

prescritiva, afirmando que é preciso dominar a forma de prestígio, além da popular, para que o

aluno tenha capacidade de escolher a que considerar mais adequada à situação de interação. Em

nenhuma parte do texto, os autores fazem qualquer gesto possível de recusa do domínio a norma

culta.

A recorrência desse fato apenas reflete a recusa da imprensa e da população em geral de

aceitar uma visão descritiva, científica aos fatos da língua em face dos problemas de

aprendizagem que a língua provoca, o que implica recorrer sempre ao refúgio seguro da atitude

prescritiva para preservar sua pureza original, que, paradoxalmente, converge com o português

europeu falado no século XVIII, adotado como norma para o português brasileiro no século

seguinte.

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A explicação para esse processo, segundo Pagotto (2001), está no processo de

europeização da língua, que seria apenas o correlato linguístico de outros processos de

europeização da vida nacional. Esse processo responderia pela intenção das elites de cunhar

uma imagem da nação em que sobreviveriam as relações de poder, excluindo a maioria da

população do processo de identidade pela língua (PAGOTTO, 2001, p. 41-42).

A população iletrada fica configurada nesse espaço político como a que fala uma não-

língua, e dá sustentação ao mito, que continua a perpassar a sociedade brasileira moderna, de

que os brasileiros não sabem português, ou o de que a gramática do português é a mais difícil de

se aprender. É lamentável constatar que são princípios equivocados como esses que deram a

tônica dominante ao debate sobre o livro didático Por uma vida melhor na mídia.

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Recebido Para Publicação em 30 de dezembro de 2011.

Aprovado Para Publicação em 23 de janeiro de 2012.