As Semânticas_ Ataliba Castilho

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    O QUE É A SEMÂNTICA?* 

    Ataliba T. de CastilhoProfessor Emérito da FFLCH da Universidade de São Paulo

    Assessor linguístico do Museu da Língua PortuguesaPesquisador do CNPq

    2014

    SumárioApresentação1) O que é a Semântica?2) O problema da categorização.3) As quatro semânticas.

    1. Semântica lexical: o sentido das palavras; categorias da Semântica lexicalIntrodução: intensão e extensão

    1.1. Referenciação ou designação1.2. Paráfrase e sinonímia1.3. Contradição e antonímia1.4. Polissemia1.5. Hiperonímia, hiponímia1.6. Meronímia1.7. Campos semânticos

    2. Semântica gramatical: o significado das construções; categorias da Semântica gramaticalIntrodução: sentido inerente e sentido adquirido2.1. Predicação e papeis temáticos2.2. Apresentação2.3. Verificação

    2.4. Categorias semânticas do verbo: classes acionais, aspecto, tempo, modo, voz2.5. Conectividade preposicional e conjuncional

    3. Semântica discursiva: a significação dos textos; categorias da Semântica discursivaIntrodução: significação, texto e contexto3.1. Foricidade: anáfora e catáfora3.2. Dêixis locativa e temporal3.3. Inferência e pressuposição3.4. Paráfrase3.5. Articulação tema-rema

    4. Semântica cognitiva: processos de criação dos sentidosIntrodução: a criação dos sentidos

    4.1. Criação dos sentidos: (i) Representações das categorias cognitivas; (ii) Emolduramento dos participantes via criação de frames; (iii) Hierarquização dos participantes.4.2. Recriação dos sentidos: (i) Alteração da perspectiva sobre os participantes e os eventos: metáfora emetonímia; (ii) Alteração na extensão: especialização e generalização; (iii) Alterações na representaçãode PESSOA e COISA, EVENTOS, JUNÇÃO, MOVIMENTO, ESPAÇO, QUALIDADE e QUANTIDADE.

    5. Semântica diacrônica: processos de mudança do sentidoIntrodução: processos de mudança dos sentidos; dessemanticização / ressemanticização5.1. Referenciação: PESSOA e COISA 5.2. Predicação e EVENTO 5.3. Apresentação5.4. Verificação

    * Para as remissões em negrito do corpo do texto, ver Ataliba T. de Castilho – Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

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    5.5. Foricidade5.6. Dêixis e redobramento de locativos5.7. Junção: preposições e conjunções5.8. Desaparecimento de um campo semântico.

    APRESENTAÇÃO

     No segundo semestre de 2013, Rodolfo Ilari e eu ministramos um curso de pós-graduação na Universidade Estadual de Campinas, sobre Semântica diacrônica. O

     Projeto para a História do Português Brasileiro  serviu de pano de fundo aoempreendimento, embora esse projeto até agora não disponha de pesquisadoresengajados no estudo das mudanças semânticas da variedade brasileira da língua

     portuguesa.Para situar esta subárea no vastíssimo campo da Semântica, preparei um

    roteiro em que foram descritas as categorias semânticas e respectiva literatura, o qual

    foi distribuído aos alunos. Essas categorias permitem organizar a área em (i)Semântica lexical, (ii) Semântica gramatical, (iii) Semântica discursiva, (iv)Semântica cognitiva e (v) Semântica diacrônica. Importante reter, desde logo, que ascategorias constitutivas desses campos da Semântica não são opositivas, antesintegrativas e simultâneas. Quer dizer que uma mesma expressão exemplifica mais deuma categoria, e se as separamos, como acima, é apenas para dar mais visibilidade aosistema da Semântica.

    A ideia do curso não era apresentar aos alunos uma sequência monótona deconceitos, mesmo que razoavelmente organizados. Já sabemos que lecionar assim nãodá certo. Optamos, então, por envolver os alunos nas pesquisas sobre Semântica, de

    tal forma que cada um selecionasse um tema, que seria caracterizado a partir deexemplos por eles selecionados. A análise dos exemplos seria confrontada com oconhecimento disponível, constante da bibliografia, resultando daqui um ensaiomonoautoral.

    A turma respondeu muito bem a esse projeto, o que me animou a apresentara um público maior a vastíssima temática semântica, mesmo numa forma telegráficacomo a deste texto. Itens bibliográficos cuidadosamente selecionados permitirão queo leitor interessado alce voo neste campo. Trago esse texto à página do Museu daLíngua Portuguesa de São Paulo com o confessado propósito de ampliar a discussãoe, no melhor dos mundos, recrutar novos pesquisadores para uma área tão ampla.

    Finalmente, se uma língua natural pode ser definida como um conjunto de

    estruturas emparelhadas com seus significados, é fácil imaginar que as pesquisasgramaticais e semânticas ocupem um grande espaço nas preocupações dos estudiosos.Fácil, igualmente, entender por que essas duas disciplinas da linguagem assumiramtantas direções diferentes, motivadas pela tremenda complexidade de que é feita umalíngua, qualquer que ela seja.

    Seja bem-vindo!

    1) O que é a Semântica?

    A Semântica investiga os sentidos expressos nas línguas naturais, ocupando-se dos processos de sua construção, e dos produtos que daí resultam.

    Trask (2004, s.v.) mostra o caminho incerto dessa área na história daLinguística. O termo Semântica foi criado por Bréal (1911), em seu tratado Éssai de

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     semantique, que tinha por subtítulo a expressão “Science des significations”. Na primeira parte do livro, ele discute “as leis intelectuais da linguagem”, na verdade umconjunto de observações sobre a fonética e a morfologia: lei da especialidade, lei darepartição, irradiação, sobrevivência das flexões, falsas percepções, analogia, novasaquisições, extinção de formas inúteis. Na segunda parte ele passa a considerar o que

    atualmente se pode considerar como campo da semântica: restrição do sentido,alargamento do sentido, metáfora, “espessamento” do sentido, polissemia. Na terceira

     parte, ele trata da formação da sintaxe. Portanto, apenas a segunda parte viria a serdesenvolvida como o domínio propriamente dito da Semântica.

    O campo aberto por Bréal viria a ser largamente investigado, constituindo-sea Semântica lexical: ver seção 1.

    Muitas relações entre as estruturas gramaticais e o sentido foram examinadasdesde os primórdios da reflexão gramatical, conduzindo à organização da Semânticagramatical: ver seção 2.

    Outra divisão no campo se deu quando as pesquisas destacaram o fato de queos sentidos não estão inteiramente encapsulados no signo linguístico, pois em sua

    elaboração a língua depende fortemente da interação. Os sentidos são criados aolongo de uma conversa, servindo as palavras como uma sorte de gatilho para essaatividade. Surgiu, assim, uma nova disciplina para investigar as relações entre ossignos e os usuários, denominada Pragmática. Suas relações com a Semântica serãoaqui denominadas Semântica discursiva: ver seção 3.

    Ainda segundo Trask, depois do séc. XIX boa parte das pesquisas sobreSemântica foram conduzidas por filósofos, até que os linguistas buscassem parceriascom eles. Os estruturalistas consideravam difícil aplicar suas técnicas de análise aoque chamaram “o pântano do significado”. A gramática gerativa seguiu igualmente

     por aqui, causando um racha entre seus seguidores. Os insatisfeitos mudaram-se paraa costa americana oeste, dando início ao que viria a ser conhecido como Linguísticacognitiva. A Semântica cognitiva ocupa aí um grande espaço: ver seção 4.

    Pesquisas sobre a mudança diacrônica dos sentidos não têm tido presençaforte na literatura. Só mais recentemente, com o ressurgimento da LinguísticaHistórica, ensaiam-se alguns passos na organização da Semântica diacrônica, que é

     por onde essa disciplina tinha começado: ver seção 5.

    2) O problema da categorização

    De acordo com a Abordagem multissistêmica (Castilho, 2009), as línguas naturais sãoestruturadas em quatro sistemas: (1) Léxico (2) Gramática (3) Semântica, (4)

    Discurso. Conjuntos de categorias configuram esses sistemas. Precisaremos, portanto,discutir previamente o problema da categorização para melhor entender como essessistemas operam.

    Lakoff (1982) e Givón (1986), entre outros, dissertaram sobre as duas fontesda categorização linguística: a categorização clássica, elaborada por Aristóteles eretomada pela Semântica de Frege e pela Gramática gerativa, e a categorizaçãonatural, elaborada por Wittgenstein (1953/1979) e retomada a partir dos anos 80 pelaPsicologia, pela Antropologia e pela Linguística Cognitiva.

    Segundo a ciência clássica, as categorias espelham a realidade física; elas sãodiscretas e dotadas de propriedades inerentes. A percepção clássica das categorias sefundamenta nos seguintes pontos: (i) um conjunto de propriedades define uma

    categoria; (ii) uma entidade pode ser julgada não problematicamente como tendo ounão esses atributos; (iii) as entidades que integram determinada categoria são

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     predizíveis; (iv) do ponto de vista da ciência clássica, as categorias são limitadas, poisnão tomam em conta o processamento da língua, focalizando apenas os produtos quedaí resultam; (v) todos os membros de uma dada categoria têm estatuto semelhante.

    As categorias concebidas no quadro das ciências clássicas são postuladascomo entidades distintivas, opositivas, negativas, ou seja, uma categoria X exclui uma

    categoria Y.A categorização clássica apresenta alguns problemas, pois nem todos os seus

    membros exibem atributos criteriais idênticos. Na verdade, tem sido difícil propor umconjunto operacionalizável de critérios e até mesmo caracterizar esses critérios.

    Segundo as ciências dos sistemas complexos, as categorias são concebidas a partir das seguintes propriedades: (1) vagueza, indeterminação, (2) ambiguidade, polissemia, (3) problematicidade, integração, não negatividade, não exclusão, (4) polifuncionalidade. Essa percepção será perfilhada neste texto. Assim, uma categoriaX não se opõe a uma categoria Y, admitindo-se que elas são intrinsecamente vagas,

     polifuncionais, não excludentes, interpenetrando-se a cada passo. A Teoria dos protótipos elabora essa posição.

    Segundo essa teoria, as categorias devem ser vistas como uma representaçãoda realidade, não como sua reprodução, não como seu espelho. Por isso mesmo, nãohá limites claros entre as categorias, estabelecendo-se entre elas um continuum delimites imprecisos (Ing fuzzy edges).

    Algumas entidades compartilham muitos traços comuns, constituindo-se nos protótipos de sua categoria. Outras compartilham apenas alguns traços, integrando-secomo elementos marginais de sua categoria. Nestes casos, a descrição terá de lançarmão das “categorias quase”, de que foram examinadas nas seguinte passagens da

     Nova gramática do português brasileiro (i) as quase conjunções, em 4.3, (ii) os quaseverbos, em 10.2.1.3.2, (iii) os quase prefixos, em 14.2.2.4, (iv) os quase clíticos, em13.2.2.2.3, (v) os quase argumentos, em 6.4.1.2, 7.4, 13.2.1.1.1, (vi) os quaseasseverativos, em 8.4, 12.2.2.1.1, 13.2.2.1.1.1.2.

    De acordo com a teoria clássica, tais entidades constituiriam outras tantasclasses. De acordo com a teoria dos sistemas complexos, essas entidades possuemdiferentes graus de integração numa mesma classe, o que permite que muitas relações

     possam ser reconhecidas entre membros de categorias diferentes, num raciocíniotranscategorial. Não é possível predizer a pertença das entidades a determinadacategoria, e a integração de uma entidade em uma categoria é muitas vezes umaquestão de grau.

    Para configurar um procedimento analítico mais sensível às complexidadesdas línguas naturais, Givón (1984: 15) cunhou a expressão “continuum categorial”. É

    a similitude, e não a identidade, que deve ser buscada no processo de postulação decategorias. Seus traços definidores não devem ser estabelecidos a partir de propriedades necessárias e suficientes, ou a partir de seu valor de verdade, e sim a partir de certas semelhanças que os falantes percebem intuitivamente. Os homens nãolevariam em conta as propriedades “fisicas” dos seres no momento de suacategorização, e sim as propriedades que decorrem da imagem que eles têm dessesseres, ou, nos termos de Lakoff (1982), são valorizadas nesse momento as

     propriedades   perceptuais, tais como “as formas percebidas, as imagens, asintenções”.

    Ora, essas propriedades perceptuais não têm o mesmo status, podendoocorrer a supervalorização de umas em detrimento de outras. Estudos sobre as

    designações das cores e a classificação dos animais em diferentes culturas deram

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    fundamento à postulação dos “conceitos básicos”, assumindo um poder explanatóriomaior que os “conceitos primitivos” da teoria clássica: Kay (1983).

    Lakoff (1975: 234) propôs o termo hedges  (literalmente, “cercas”) paradesignar determinadas palavras e expressões "cuja função é apresentar as coisas deum modo mais delimitado ou menos delimitado (= fuzzy)" . Ele lista entre estas as

     palavras inglesas kind of, sort of, more or less, relatively, entre outras. A topologia davagueza vem sendo formulada pela semântica cognitiva: Talmy (2001: vol. 1, p. 31 e

     passim).Explorações da língua portuguesa à luz da Teoria dos protótipos revelaram

    que há, por exemplo, advérbios "mais adverbiais", mais prototípicos, como os predicativos, e advérbios "menos adverbiais", como os não predicativos: Ilari et alii(1990). Os advérbios delimitadores mais ou menos, praticamente, quase, tipo, umaespécie de, estudados por Moraes de Castilho (1991) e Lima-Hernandes (2005),funcionam como comprometedores da prototipicidade de sua classe-escopo. Tambémos pronomes foram assim estudados: Lavandera (1984: 109), Castilho (1993), Neves(1993), Ilari; Franchi; Neves (1996).

    Givón (1986) viria a propor uma solução híbrida entre as duas teorias. Emsua argumentação, ele confronta o ponto de vista platônico com as observações deWittgenstein (1953/1979: 62 e ss.). Segundo o ponto de vista platônico, as "categoriasda compreensão" são discretas, absolutas e pristinas. Segundo o ponto de vista deWittgenstein, as categorias não são discretas e absolutas mas, no lugar disso, como jáse destacou acima, são incertas e mal delimitadas, sendo que muitas relações podemser reconhecidas entre seus membros.

    Entre outros fenômenos semânticos, os pleonasmos derivam da vaguezanatural das expressões, levando-nos a contornar nossas dificuldade ao categorizar ascoisas mediante a utilização de uma única palavra. É como se uma palavra expressaisoladamente não desse conta do referente que queremos comunicar. O seguintesexemplos de pleonasmos, explorados por humoristas como Leandro Hassum, parecemapontar para a questão da vagueza, da indeterminação natural das palavras: elo deligação (um elo já não liga as coisas?), goteira no teto (de onde mais a água poderiagotejar?) , duas metades iguais, outra alternativa, comparecer pessoalmente, o diaamanheceu, conviver junto com, encarar de frente, fato real, surpresa inesperada,etc.

    LEITURAS SOBRE CATEGORIZAÇÃO LINGUÍSTICA

    Wittgenstein (1953/1979), Lakoff (1975, 1982), Givón (1986), Ilari et alii (1991), Moraes de Castilho(1991), Lima-Hernandes (2005).

    3) As quatro semânticas

    Para organizar as reflexões sobre a Semântica proporei quatro campos de estudos,mesmo reconhecendo sua difícil delimitação: (i) Semântica léxica, que trata dos

     sentidos das palavras, (ii) Semântica gramatical, que trata dos  significados dasconstruções, (iii) Semântica discursiva ou pragmática, que trata das  significações geradas no intervalo que medeia entre os locutores e os signos linguísticos, (iv)Semântica cognitiva, que trata da criação dos sentidos. Acrescento algumasobservações ainda muito preliminares sobre a (v) Semântica diacrônica, que trata damudança dos sentidos.

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    Caracterizo essas áreas especificando os respectivos objetos empíricosatravés dos termos sentido, significado e significação, tomando sentido  como umhiperônimo.

    Assim, numa palavra como balde:

    • 

    O sentido lexical de é algo como “objeto usualmente de metal, cilíndrico, dotadode alça, que serve para carregar líquidos ou sólidos”; o sentido de palavras comobalde configura o campo da Semântica lexical.

    •  O significado gramatical de chutar o balde, “desinteressar-se, desistir de umaação”, nada tem a ver com os sentidos lexicais de chutar e de balde,considerados individualmente;  podemos reconhecer que expressões idiomáticascomo essa são um problema da Semântica gramatical.

    •  A significação pragmática de Não consigo carregar este balde de areia pode serum pedido indireto de ajuda ao meu interlocutor, para além dos sentidos lexicaisde cada item e do significado proposicional dessa sentença.

    É preciso ficar claro que sentidos, significados e significações não devem serconcebidos como entidades dispostas em camadas diferentes, no conhecido raciocínioestruturalista dos níveis hierárquicos. O que temos aqui são conceitos complexos, queocorrem simultaneamente, numa disposição radial. O leitor pode imaginar situaçõesem que as expressões balde,  chutar o balde  e  não conseguir carregar este baldeexemplificam, ao mesmo tempo, sentidos, significados e significações.

    A configuração das quatro Semânticas fundamenta-se na Abordagemmultissistêmica, caracterizada em Castilho (2009). Insisto em que as categorias queorganizam as quatro Semânticas, aqui postuladas, são problemáticas, no sentido denão exclusivas, não negativas, mas, ao contrário, integrativas, simultâneas, o que deve

    ter ficado claro nas referências à categorização, que introduzem este texto. Assim,mencionar uma dada categoria não significa que as demais categorias estejam sendoexcluídas.

    LEITURAS: MANUAIS SOBRE SEMÂNTICA DESCRITIVA. TEORIA SEMÂNTICA 

    Silva Júnior (1903), Bréal (1911), Ogdens; Richards (1923/1972), Said Ali (1930), Morris (1938), Guiraud(1955/1975), Ullman (1962/1973), Baldinger (1970), Weinreich (1972), Leech (1974), Segre (1974),Amaral (1976), Lobato (Org. 1976), Pinto (1977), Kempson (1977/1980), Lyons (1977/1984, 1979),Rector; Yunes (1981), Ilari; Geraldi (1985), Ilari (2001), Chierchia (2003), Muller; Negrão; Foltran (Orgs.2003), Cançado (2005).

    ATIVIDADE 

    Resenhar um dos manuais acima.

    1. SEMÂNTICA LEXICAL: O SENTIDO DAS PALAVRAS 

    Apresentação: intensão e extensão

    A identificação do sentido das palavras envolve dois conceitos auxiliares, a intensão ea extensão.

    A intensão é o conjunto de seus traços semânticos inerentes. Para ficar emum só exemplo, num item como menino, podemos intuitivamente reconhecer os

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    traços inerentes /animado/, /humano/, enquanto em onça  teríamos /animado/, /-humano/.

    A extensão é o conjunto de indivíduos denotados por uma palavra. Esseconceito remete à teoria dos conjuntos.

    Os conceitos de intensão e extensão aparecem em Pereira (1907/1918: pág.

    61): “Devemos distinguir nos substantivos a compreensão e a extensão.Compreensão são os caracteres distintivos do ser nomeado pelo substantivo (=intensão, em nossa terminologia). Extensão são todos os seres abrangidos nessacompreensão”.

    Essas propriedades definem lexicograficamente uma palavra. Elas podem seralteradas pela coexistência de outras palavras, como veremos na seção da Semânticagramatical.

    Vejamos como elas funcionam:

    (1) O nenê começou a falar.(2) O nenê está quase falando. 

    (3) O nenê pôs-se a falar. 

     No exemplo (1), foram preservadas as propriedades intensionais de começare de falar, embora elas integrem uma perífrase. Casos como este foram estudados porWeinrich (1972), que as denominou mediante o termo Ingl linking “ligação”, ou seja,ligação dos sentidos das palavras envolvidas.

     No exemplo (2), ocorreu uma alteração parcial das propriedades de está e de falando, porque está se auxiliarizou, perdendo seu sentido original de “ficar de pé”, e falar  perdeu algumas propriedades intensionais, por estar no escopo do advérbiodelimitador quase, mantendo outras.

    Já em (3), ocorreu uma alteração total das propriedades intensionais de  pôr-

     se, que passa agora a significar “começar”, configurando um problema de Semânticagramatical.  Falar  preservou suas propriedades intencionais. O mesmo Weinrichconsiderou este um caso a que ele denominou Ingl nesting “nidificação”, ou seja,assim como do ovo nidificado surge um ser completamente diferente, assim emconstruções como  pôr-se + infinitivo essa palavra muda radicalmente de sentido,significando agora “começar”, desaparecendo seu sentido lexical de “depositar algosobre uma superfície”.

    Examinando as expressões formulaicas, Ilari (1992c) mostra que elasexemplificam um comprometimento mais radical da intensão, visto que o conjuntogerado se afasta do sentido de cada palavra considerada individualmente. Assim, em

    (4) Aquela construção é um verdadeiro elefante branco.

    elefante deixa de significar “mamífero de grande porte” e branco, igualmente, não émais a “impressão causada pelo raio de luz não decomposta”, para significar “obra ouiniciativa inútil”. O mesmo se pode dizer de estado-maior , controle remoto etc.

    Em

    (5) O cidadão pagou seus impostos,

    cidadão denota o conjunto total dos seres integrados numa comunidade organizada,no gozo de seus direitos civis. Ao operar sobre essa propriedade, o adjetivo temgeralmente um efeito delimitador. Assim, em

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    (6) O cidadão brasileiro pagou seus impostos.

    o conjunto de cidadãos foi limitado agora aos indivíduos nascidos no Brasil.A Semântica lexical, em suma, trata dos traços semânticos inerentes /

    intensionais, que são exemplificados nas diferentes categorias léxicas, tais comoverbos, substantivos, adjetivos, advérbios, preposições.Diferentes combinações dos traços inerentes permitem postular as seguintes

    categorias, que configuram o campo da Semântica lexical: (1) referenciação edesignação, (2) paráfrase e sinonímia, (3) contradição e antonímia, (4) polissemia, (5)hiperonímia e hiponímia, (6) meronímia.

    1.1. Referenciação e designação

    Denomina-se referenciação ou designação a função pela qual um signo linguísticodesigna quaisquer entidades do mundo extralinguístico, reais ou imaginários, ou seja,

    as PESSOAS e as COISAS: Ducrot; Todorov (1972/1998, s.v. referência).Há uma relação entre a referenciação e a teoria dos conjuntos. Uma dada

    expressão pode representar o indivíduo de um conjunto, como fazem (i) ossubstantivos próprios, (ii) os pronomes demonstrativos não neutros e (iii) asdescrições definidas. Entretanto, expressões indeterminadas representam todos osindivíduos de um conjunto, como os Quantificadores indefinidos quando aplicados aum substantivo.

    A teoria dos espaços mentais tem considerado a questão da referência de um ponto de vista cognitivista (veja a seção 11.2.2.1).

    Pesquisadores da Linguística do texto têm uma percepção diferente do queseja a referenciação, que assimilam à foricidade: ver 3.1, abaixo.

    1.2. Paráfrase e sinonímia

    São sinônimas as palavras que parafraseiam outras, dispondo de um sentidoaproximadamente idêntico, como ocorre em  sair / cair fora / dar no pé / escafeder-se

     /   puxar o carro, etc., ou então em  falecer / morrer / bater as botas / ir desta paramelhor / comer grama pela raiz / mudar-se para a chácara dos quietinhos, viver nobairro dos pés juntos, etc.

    Se você sair por aí recolhendo sinônimos, notará que cada termo traz consigoinformações adicionais, pois não há sinônimos perfeitos. Collinson, apud Ullman

    (1964/1970: 294-295) fez esse exercício, identificando nove tipos de sinônimos: (1)um termo é mais geral que outro , (2) um termo é mais expressivo que outro, (3) umtermo é mais emotivo que outro, (4) um termo pode implicar em censura moral,enquanto que o outro é neutro, (5) um termo é mais técnico que outro, (6) um termo émais literário que outro, (7) um termo é mais coloquial que outro, (8) um termo émais dialetal que outro, (9) um dos sinônimos integra a linguagem infantil:  papai /

     pai, etc. Maria Gabriela Silva Pileggi (com. pessoal) estudou estes sinônimos: chato(espontâneo) / mofino  (mais elegante); para amigo: bicho, cara, meu, bró (

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    São antônimas as palavras que se contradizem, como em alto / baixo, gordo / magro,alegre / triste, entrar / sair, subir / descer, etc.

    À semelhança dos sinônimos, cada antônimo agrega sempre um valoradicional, podendo integrar-se em outro domínio da Semântica lexical. Assim, osverbos acima relacionados guardam uma relação dêitica: só sobe quem está embaixo,

    e só desce quem está em cima. Por outras palavras, a relação de antonímia que seestabelece entre tais verbos está ligada ao LUGAR ocupado por seu sujeito, sendo estauma categoria cognitiva, estudada na seção 4, Semântica cognitiva.

    1.4. Polissemia

    Denomina-se polissemia o fato de uma mesma palavra ter sentidos diferentes, comoem cabo, “acidente geográfico”, “extremidade de uma ferramenta”, “prolongamento

     posterior de certos animais”, “fio metálico para transmissão de energia”, “ponto nahierarquia militar”; manga “fruta”, “parte do vestuário”, “chuva forte”, etc. Ocontexto vai especificar de que cabo, de que manga se trata.

    São diversas as origens das palavras polissêmicas:(1) Algumas derivam de uma mesma etimologia, como a palavra ação, Lat

    actione, que podem significar uma ação militar, uma ação legal, ou mesmo um títulode participação numa empresa: Bréal (1911: 154).

    (2) Outras derivam de mais de uma etimologia, caso em que tais palavrasconvergiram para uma só forma,

     por razões fonológicas. É o caso do Lat sanctu e sanu, que convergiram para são, quetanto pode designar um santo, como em São Paulo, quanto uma pessoa sadia, comoem ele ficou são depois da cirurgia.

    (3) A polissemia pode assentar numa metonímia. É o caso de passo “passada”,como em “deu um passo em direção à vitória”, que também significava

     polissemicamente uma negação, no Port arcaico, como em “nom falou passo”. A palavra francesa pas exibe o mesmo fenômeno de polissemia, assentando igualmentenuma metonímia. Os estudos sobre a gramaticalização das palavras têm focalizado as

     palavras polissêmicas.

    1.5. Hiperonímia, hiponímia

    Organizando as palavras em campos semânticos – como fazem os dicionáriosanalógicos -, observa-se que algumas dispõem de sentidos mais amplos, ashiperônimas, capazes de incluir aquelas de sentido mais restrito, as hipônimas. Assim,

    o campo semântico “animal” inclui hipônimos tais como cavalo, boi, leão, etc. Emconsequência, animal é um hiperônimo, quando comparado a cavalo, boi, leão, seushipônimos.

    Segundo Rodolfo Ilari (com. pessoal), o hipônimo anaforiza o hiperônimo,mas não vice-versa. Assim, em “O médico receitou umas vitaminas. O facultativodisse que o caso não era grave”, o hipônimo  facultativo anaforiza o hiperônimomédico.

    1.6. Meronímia

    Outra relação semântica entre as palavras se dá nos casos de meronímia, termo

    derivado do Gr méros “parte”. São merônimas as palavras que designam partes de um

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    todo. Houaiss (2001, s.v.) dá o seguinte exemplo: copa e aba  são merônimos dechapéu.

    1.7. Campos semânticos

    Campos semânticos, ou campos conceptuais, são reuniões de palavras sinônimas.Os campos semânticos são reunidos nos dicionários analógicos, em que osconceitos são sistematizados, seguindo-se as palavras que os designam. Consultamosum dicionário analógico quando dispomos de uma ideia mas não achamos a palavracorrespondente. Os dicionários analógicos são também denominados dicionáriosonomasiológicos.

    A sistematização dos conceitos de acordo com princípios filosóficos vai dosconceitos gerais para os conceitos particulares, e destes para uma análise em divisõese subdivisões, até o esgotamento do “mundo das ideias” – admitindo-se que isso seja

     possível.Spitzer (1936/1955) adotou o seguinte plano conceitual em seu dicionário

    analógico:

    I)  Relações abstratas (existência, relação, quantidade, ordem, número, tempo,mudança, causa).

    II)  Espaço (em geral, dimensões, forma, noção).III)  Matéria (em geral, anorgânica, orgânica).IV)  Faculdade cognoscitiva (1. formação das ideias; 2. comunicação das ideias).V)  Faculdade volitiva (1. vontade individual; 2. vontade intersocial).VI)  Faculdade afetiva (em geral, pessoal, simpática, moral, religiosa).

    São duas as estratégias dos dicionários analógicos: (i) sistematização dos

    conceitos numa forma pré-científica, natural, ou (ii) sistematização dos conceitos deacordo com princípios científicos.A sistematização de conceitos numa forma pré-científica, apriorística, parte

    do pressuposto de que nas diferentes línguas naturais o sistema de conceitos é omesmo. A sistematização mais conhecida nesta linha é a de Hallig; von Wartburg(1952/1963).

    Esses autores assumem que em qualquer parte o homem considera o mundonão como um caos, e sim como algo organizado, ordenado, como quer a ciênciaclássica. Segundo eles, o homem tem consciência dessa ordem, apesar das pequenasvariações no plano que a representa. Esse plano é apresentado em seu livro como umacontribuição à pesquisa lexicográfica, entendendo-se por ele “um sistema empírico de

    referências extra lexicais, contendo os conceitos gerais da linguagem, estabelecidossegundo certos princípios de classificação fundados numa base fenomenológica”: Hallig; von Wartburg (1952/1963: 51). Seu sistema de conceitos é o seguinte:

    I)  O Universo (o céu e a atmosfera, a terra, as plantas, os animais).II)  O Homem (o homem ser físico, a alma e o intelecto, o homem ser social, a

    organização social.III)  O Homem e o Universo (o a priori, a ciência e a técnica).

    Baldinger (1970) e Stengaard (1991) desenvolveram pesquisas sobre oscampos semânticos, entre muitos outros autores, a partir de uma perspectiva

    estruturalista. Pontes (1974) estudou o campo semântico formado pelo futebol.

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    LEITURAS SOBRE SEMÂNTICA LEXICAL 

    Bueno (1947), Ullmann (1964/1970), Greimas (1966/1973), Baldinger (1970), Bierwisch (1971),Pontes (1974), Marques (1976), Lyons (1977/1984, vol. 1), Rehfeld (1980), Stengaard (1991), Ilari(2001b, 2002, 2013, Org. 2014, Org. 2015), Chierchia (2003).

    ATIVIDADES SOBRE SEMÂNTICA LEXICAL 

    1. Organize uma lista de sinônimos e teste as possibilidades mencionadas em 1.2. Para tornar seutrabalho mais controlado, integre o sinônimo estudado em expressões, como em território extenso /

     pesquisa extensa, etc.2. Procure num dicionário etimológico a origem de palavras polissêmicas tais como cabo, manga paraentender a razão de sua polissemia.3. Identifique os contextos em que os antônimos podem ocorrer. Você diria, indiferentemente, saia da

     sala, desinfete da sala, pique a mula?4. Quais são as propriedades semânticas que permitem identificar classes de palavras tais comosubstantivos, adjetivos, verbos, advérbios?5. Organize um campo semântico (por exemplo, sobre futebol, modas, músicas, danças) e identifiqueas categorias semânticas e as classes gramaticais de que você se valeu para postular e descrever um

    campo semântico.

    2. SEMÂNTICA GRAMATICAL: O SIGNIFICADO DAS CONSTRUÇÕES 

    Apresentação: traços inerentes e traços adquiridos

    São inerentes os traços que se agrupam numa mesma palavra; disso trata a Semânticalexical. São adquiridos os traços que se movimentam de uma palavra para outra,quando contíguas na expressão ou seja, do MOVIMENTO de traços inerentes de umsigno para outro, o que dá lugar à aquisição de traços. A Semântica gramatical estuda

    a formação dos traços adquiridos.Quando comparamos traços inerentes de substantivos e de verbos em dada

    sentença, constatamos que estes apresentam “restrições de seleção semântica” sobreaqueles. Assim, atravessar se combina com entidades /animadas/, /concretas/,/móveis/, e por isso aceitamos

    (7) A onça atravessou a mata,

    mas o mesmo verbo não se combina com entidades /inanimadas/, /abstratas/, e porisso rejeitamos a famosa sentença, aqui adaptada:

    (7 a) * Ideias verdes atravessaram a mata.

     Nesse exemplo, aceitável apenas num texto fantástico, a palavra ideiaadquiriu o traço /animado/, podendo então ser qualificada pelo adjetivo verde.

    As seguintes categorias configuram a Semântica gramatical: (1) predicação e papéis temáticos, (2) apresentação, (3) verificação, (4) categorias verbais de aspecto,tempo, modo, (5) conectividade preposicional e conjuncional.

    2.1. Predicação e papéis temáticos 

    Dizemos que houve predicação quando uma palavra toma uma categoria sintática ouuma categoria discursiva por escopo, transferindo-lhes suas propriedades inerentes, de

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    que o escopo não dispunha antes. Pode-se reconhecer que a predicação assenta numarepresentação da categoria cognitiva de MOVIMENTO, operando na construção dalíngua. Essa categoria, aliás, é frequentemente mencionada nas definições de

     predicação. Por isso mesmo, antecipo alguns dados sobre essa categoria, que serámelhor estudada em 4.1.

    Segundo Talmy (2000), o MOVIMENTO pode ser FÍSICO, ou real, quando umOBJETO  se desloca num ESPAÇO, ou fictício, quando imageticamente supomos queocorreu a deslocação desse OBJETO.

    A predicação resulta de um MOVIMENTO  FICTÍCIO. Traços semânticosinerentes decolam da classe predicadora e aterrissam na classe-escopo. Observe esteexemplo:

    (8)  Aquele velhinho está lendo atentamente um livro divertido. Dá tanta risada que aqualquer hora destas ainda perde a dentadura.

    Se formos examinar todas as predicações contidas em (8), encheremos

     páginas e páginas. Vamos então nos concentrar só na primeira sentença, começando por livro divertido.  Livro é um objeto móvel, composto por páginas e capa, em queestão escritas muitas coisas.  Divertido é tudo o que nos torna alegres, felizes,transportando-nos para fora do humor habitual (veja a etimologia da palavra divertir ).Um livro não é necessariamente divertido: imagine, por exemplo, o  Livro dos mortos,do Bardo Todol, para começo de conversa. Mas em (8), o livro tornou-se divertido.Ou seja, traços lexicais inerentes de divertido voaram ao encontro de livro, e agora aintensão dessa palavra se alterou; ou seja, considerando-se apenas a palavra livro, vê-se que sua intensão não se alterou, mas isso ocorreu com livro divertido.

    Observe agora o que ler   está aprontando nessa sentença. Examinadaisoladamente, a palavra ler significava “colher”, em latim. Esse sentido ainda se

    mantém em legumes,  vegetais que colhemos para comer, separando-os das ervasdaninhas. Já em (8), ler significa “colher com os olhos as letras de uma página”.

     Nessa sentença, ler toma por escopo ao mesmo tempo aquele velhinho e um livrodivertido. Bem, não é todo velhinho que lê, mas o de (8) faz isso, pois um traçoinerente de ler acertou o nosso velhinho, que agora passa a ser velhinho leitor . Omesmo se pode dizer de livro:  nem todo livro é lido, muitos servem apenas paracalçar armários oscilantes, outros para esconder dinheiro, e por aí vai. Mas o livromencionado em (8) agora é um livro lido. Avance para a segunda sentença e continuea análise, observando o que dar risada está fazendo com aquele velhinho, o que tantafaz com risada, o que  perder faz com aquele velhinho e com dentadura, e assim pordiante.

    A predicação, portanto, é uma operação de transferência de traçossemânticos que se movimentam pela sentença e pelo texto. Meu amigo Rodolfo Ilaridiz isso de modo mais elegante: “a predicação é a inclusão em um conjunto definido

     pelo predicado” (comunicação pessoal). Ele informa que o exemplo clássico aqui é“Sócrates é ateniense”, em que Sócrates dessa sentença passa a integrar um doselementos do conjunto {os atenienses}.

    Toda sentença, todo texto, é um verdadeiro caldeirão predicativo. O examedo traço transferido permite identificar na predicação pelo menos três grandesmecanismos: (i) a transferência afetou a intensão da classe-escopo: ocorreu uma

     predicação por qualificação, como em livro divertido; (ii) a transferência afetou a

    extensão da classe-escopo: ocorrreu uma predicação por quantificação, como em

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    tanta risada; (iii) a transferência afetou a modalidade da classe-escopo: ocorreu uma predicação por modalização, como seria em

    (9) De fato / realmente , aquele velhinho está lendo atentamente um livro divertido.

    em que os predicadores de fato e realmente tomaram por escopo toda a sentença,tornando-a asseverativa. A predicação modalizadora faz mais que isso, transferindo para o escopo o traço de avaliação contido no operador: basta ver o trabalho dosadvérbios modalizadores.

    Apolônio Díscolo, gramático alexandrino do século I d.C., verbalizou umaintuição fundamental para o entendimento do processo semântico da predicação,ampliando-o consideravelmente. Ele integrava os estudos gramaticais em três pontos:o som e a sílaba, a classificação das partes da oração e a própria oração: BécaresBotas (1987: 32). A oração se realiza num nível duplo, o semântico (= a oração temuma significação autossuficiente) e o funcional (“os casos oblíquos se conectam comos retos por meio de um verbo inserido entre ambos, a ação do qual passa do

    nominativo para o oblíquo”: Díscolo, séc. I d.C./1987: 137).É precisamente sua concepção sobre os casos que tem importância aqui. Para

    Apolônio Díscolo, os casos não designam formas, e sim relações sintáticas. Assim, ocaso reto é o que está “ordenado”, ou está em “ordem coincidente” com a pessoaverbal (Díscolo, séc, I d.C.: IV 46), fenômeno codificado na gramática pela relação deconcordância entre o verbo e seu sujeito, ao passo que o caso oblíquo é o “desviado”,o não coincidente com a pessoa do verbo (Díscolo, séc, I d.C. IV 18), numa relaçãonão marcada pela concordância.

    Essa percepção permite postular a predicação como uma relação semântico-sintática de base, em que o predicador toma por seu escopo tanto o sujeito sentencialquanto os argumentos internos, atribuindo-lhes casos (nominativo ao sujeito,acusativo ao objeto direto, dativo ao objeto indireto, ablativo ao complementooblíquo), e papéis temáticos (agente, paciente, meta, beneficiário etc.).

    Há muitas ordens de predicação, na dependência da classe semântica doescopo. Se um predicador como divertido tomar por escopo uma expressão referencialcomo livro, em livro divertido, teremos uma predicação de primeira ordem. Se um

     predicador como atentamente tomar por escopo uma expressão predicadora como estálendo, em está lendo atentamente, teremos uma predicação de segunda ordem, ouseja, predicou-se um predicado. Mas se um predicador como de fato tomar por escopotoda uma sentença, como em (9), teremos uma predicação de terceira ordem, ouhiperpredicação, pois de fato predicou a sentença inteira.

    Resumindo, a predicação pode ser definida como a relação entre um predicador e seu escopo, tal que o predicador atribui traços semânticos, papéistemáticos e casos gramaticais ao seu escopo. De novo, aquele embate entre traçossemânticos inerentes e traços semânticos adquiridos. Vejamos mais de perto o que sãoos papéis temáticos

    Os papéis temáticos, denominados em certas teorias como casos, são traçossemânticos atribuídos por um predicador ao seu escopo. Dispondo de uma basecognitiva, os papéis temáticos correspondem a outras tantas representaçõeslinguísticas do mundo que nos cerca. Dada essa base, os papéis temáticos têm umcaráter universal, diferindo das categorias estritamente sintáticas, que assumem

     peculiaridades nas diferentes línguas naturais.

     Não há correspondência biunívoca entre as funções sintáticas de sujeito,complemento e adjunto e os papéis semânticos de agentivo, beneficiário, passivo etc.

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    que lhes são atribuídos. Tampouco dispomos de um quadro exaustivo desses papéis,conquanto alguns projetos interlinguísticos tenham trabalhado nessa direção.

    Para bem entender o que são papéis temáticos, é necessário distingui-los dostraços semânticos inerentes, examinados em 2.0.

    Diferentemente dos traços inerentes, os papéis temáticos, repetindo, são traços

    atribuídos por um predicador a seu escopo. É bem antiga a percepção de que asrelações gramaticais podem ser entendidas como uma combinação de papéistemáticos, ou de casos. A sentença é o lugar em que se realizam essas combinações.

    O termo  papel temático, usado pela primeira vez por Gruber (1965), convivecom os casos semânticos de Fillmore.

    Em sua Gramática de Casos, Fillmore (1968, 1969/2003) buscou identificar osuniversais sintático-semânticos. Deixando de lado a abordagem morfológica doscasos, vale dizer, a captação dos sentidos contidos nos sufixos nominais, Fillmoresubmeteu o assunto a uma forte generalização, definindo casos como um conjunto derelações semânticas, descritas inicialmente nos seguintes tipos:

    • 

    Agentivo: caso do instigador da ação expressa pelo verbo, com o traço /animado/.•  Instrumental: caso que corresponde a uma força inanimada ou objeto ocasionalmente

    envolvido na ação ou no estado.•  Dativo: caso de um ser animado afetado pelo estado ou ação.•  Factual: caso do objeto ou ser resultante de uma ação ou estado expressos pelo verbo,

    direta ou indiretamente.•  Locativo: caso que remete ao local ou à orientação espacial do estado ou da ação.•  Objetivo: caso de qualquer coisa passível de representação por um substantivo, cujo

     papel na ação ou no estado é atribuído pelo sentido do verbo. O objetivo é umaespécie de caso omnibus, pois esta definição engloba todas as anteriores (Fillmore,1968: 24-25).

    Esse autor voltou ao assunto em Fillmore (1969/2003), reformulando a versãoanterior e agregando outros casos.

    O termo “papel temático” e seu conceito têm tido uma enorme fortuna crítica.De Jackendoff (1972) eles se irradiaram entre os sintaticistas gerativistas, integrando-se na teoria auxiliar da estrutura argumental da sentença. Uma notável aproximaçãoentre funcionalistas e gerativistas se produziu quando Givón (1984) começou aestudar o fenômeno, agora rebatizado para  papéis  semânticos. Outros autores davertente funcionalista trabalharam a questão: Heine; Claudi; Hünnemeyer (1991)falam em categorias  metafóricas,  funções  de caso; Svorou (1993) joga com asentidades envolvidas num dado estado de coisas, focalizando as relações espaciais.

    Esses e outros autores foram recolhidos por Kewitz (2007a) no Quadro abaixo, aquireproduzido, mantidas as notas de rodapé do original.

    Quadro 1 – Papéis temáticos segundo Kewitz (2007 a)

    AUTOR  FUNÇÕES ou PAPÉIS

    TEMÁTICOS DEFINIÇÃO 

    FillmoreAGENTE  O “instigador” do evento.

    CONTRA-AGENTE  Força ou resistência contra o qual a ação é realizada. 

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    (1971, apudPalmer1972/1975)1 

    OBJETO Entidade que move ou muda, ou, ainda, cuja posiçãoou existência está sendo considerada. 

    RESULTADO Entidade que vem à tona, que surge como resultado deuma ação. 

    INSTRUMENTO  Estímulo ou causa física imediatos do evento. FONTE  Lugar de onde algo se move. ALVO  Lugar para onde algo se move. 

    EXPERIENCIADOR  Entidade que recebe, aceita, experimenta ou sofre oefeito da ação. 

    Chafe(1970/1973)

    AGENTE  Aquele que realiza a ação.

    PACIENTE Aquele que está num determinado estado ou que sofremudança de estado. 

    EXPERIENCIADOR  Aquele que está mentalmente disposto a receber umaexperiência, percepção etc. Não é o instigador da ação. 

    BENEFICIÁRIO  Aquele que se beneficia da ação. 

    INSTRUMENTO 

    Objeto que desempenha um papel no desencadeamentode um processo, não sendo, porém, a força motivadora,a causa ou o instigador. É algo que o agente usa naação. 

    COMPLEMENTO Relação em que o verbo supõe a criação de algo (emgeral, um nome cognato, como cantar uma canção,

     jogar um jogo).LUGAR   Relação do verbo com uma expressão locativa. 

    Radford(1988) 

    BENEFACTIVO Entidade que se beneficia de alguma ação. Ex.: Joãocomprou flores para Maria.

    INSTRUMENTO Meio pelo qual algo acontece. Ex.: João bateu emCarlos com uma vassoura. 

    LOCATIVO Lugar em que algo está localizado ou acontece. Ex.:João colocou a carta dentro da gaveta. 

    META 

    Entidade na direção da qual algo se move. Ex.: João

     passou o livro para Maria. 

    FONTE/ORIGEM Entidade a partir da qual algo se move. Ex.: Joãovoltou de Londres. 

    Givón (1984)INSTRUMENTO 

    Participante tipicamente inanimado, usado pelo agente para realizar a ação.

    BENEFACTIVO Participante tipicamente animado, para cujo benefício aação é realizada. 

    LOCATIVO Lugar, tipicamente concreto e inanimado, onde selocaliza o estado, onde ocorre o evento ou para onde oude onde algum participante se move. 

    ASSOCIATIVO Participante associado ao agente, paciente ou dativo,cujo papel no evento é semelhante, mas não tão

    importante. MODO 

    Modo como o evento ocorre ou como o agente realiza aação. 

    Svorou(1993)2 

    BENEFACTIVO TR   é uma situação; LM  é uma entidade; a situação TR  ocorre para o benefício ou em nome de LM.

    MALEFACTIVO TR   é uma situação; LM  é uma entidade; a situação TR  ocorre em detrimento/malefício de LM. 

    1 Estes papéis (casos, nos termos de Fillmore) foram reformulados em relação aos apresentados emFillmore (1968). O autor substitui o caso FACTUAL por RESULTADO, e DATIVO por EXPERIENCIADOR ,

    desdobrando o caso LOCATIVO em FONTE e ALVO.2 TR   refere-se a Ing “trajector” (= entidade situada no espaço) e LM, a Ing “landmark” (= ponto dereferência; entidade de referência para a localização no espaço).

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    INSTRUMENTO TR  é uma situação; LM é uma entidade; a situação TRocorre com LM enquanto instrumento. 

    COMITATIVO TR  é uma situação; LM é uma entidade que participa dasituação TR  junto com outros participantes. 

    AGENTIVO TR   é uma situação; LM  é uma entidade que atua nasituação TR . 

    OBJETO DIRETO TR  é uma situação; LM é uma entidade; a situação TR  évoltada para LM. 

    RECIPIENTE TR   é uma situação; LM  é uma entidade; LM  é orecipiente em que ocorre a ação designada pelasituação TR . 

    FONTE TR  é uma situação; LM é uma entidade; LM é a fonte deinformação ou ação que a situação TR  especifica. 

    RECÍPROCO TR   é uma situação; LM  é uma entidade múltipla; osmembros de LM  participam da situação TR   de formaque há interação entre eles. 

    REFERÊNCIA TR  é um estado ou característica; LM é uma entidade; oestado TR  existe em relação a LM. 

    DESSIVO  TR   é uma situação; LM  é uma entidade; a situação TR  envolve LM. 

    VIS - A-VIS  TR   é uma situação; LM  é uma entidade; a situação TR  ocorre na presença de LM. 

    CIRCUNSTANCIAL 

    TR   é uma situação; LM  é uma entidade envolvida nasituação TR , a qual ocorre enquanto LM  está numdeterminado estado (descrito por um adjetivo)temporariamente ou por acaso. Isto é, o estado não éuma característica permanente da entidade (ex.: elecomeu com as mãos sujas). 

    Peres e Móia (1995: 57) promovem uma discussão sobre os papéis temáticos,

    de uma perspectiva gerativista, insistindo em que “os verbos têm propriedades deatribuição de papéis semânticos”, e oferecendo os seguintes exemplos:

    (10) Rita dançou.(11) Rita desmaiou.

     Nesses exemplos, foram conservados os traços inerentes de  Rita, mas em(10) esse item atua como sujeito /controlador/, ao passo que em (11), como sujeito/não controlador/. Conclui-se que dançar atribui o papel /controlador/, e desmaiar, o

     papel /não controlador/.Outras observações nessa mesma linha podem ser feitas analisando as

    seguintes sentenças, propostas pelos mesmos autores:(12) Paulo bebeu água.(12 a)* Paulo bebeu a caneta.(13) Paulo engoliu água.(13 a) *Paulo engoliu a caneta.(14) Paulo obrigou Maria a cantar.(14 a) *Paulo obrigou Maria a desmaiar. 

    Além dos sintagmas nominais que funcionam como argumentos, também assentenças substantivas podem receber papel semântico do verbo, como se podeconstatar por estes exemplos dos mesmos autores:

    (15) João espera que lhe arranjem o telhado.

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    (16) João espera que lhe possam arranjar o telhado.(17) João pediu que lhe arranjem o telhado.(18) *João pediu que lhe possam arranjar o telhado.

     Nesses exemplos, nota-se que esperar aceita argumentos sentenciaismodalizados, ao passo que pedir os rejeita.

    O estudo da atribuição de papéis semânticos revela a riqueza sintática dos predicadores, que selecionam classes lexicais, funções sintáticas e casos gramaticaisabstratos. Assim, se fôssemos descrever o comportamento semântico-sintático deapanhar em

    (19) João apanhou da vizinha.

    teríamos, pelo menos,

    (19a) apanhar SN ______SPSujeito ___Argumento oblíquo

     Nominativo AblativoPaciente ___Agente

    O arranjo de (19a) tem a vantagem de destacar que numa sentença seabrigam várias categorias:

    (i)  categorias sintagmáticas (= sintagma nominal [SN] e sintagma preposicional[SP]), (ii) categorias funcionais (= sujeito e argumento oblíquo),

    (ii)  casos gramaticais (= nominativo e ablativo), e finalmente(iii)  a grade temática (= paciente e agente). É interessante refletir que, ao produzir

    uma sentença aparentemente tão simples, estamos na verdade operando

    com um conjunto complexo de categorias linguísticas de variada ordem.

    Cada uma dessas categorias pode ser assinalada nas diferentes línguas ou pela marcação de um caso visível nas expressões (via flexões ou via preposições/posposições), ou por sua marcação abstrata, invisível, porém detectável por expedientes sintáticos tais como a proporcionalidade a um pronome. O latimliterário se enquadra no primeiro tipo e o português, no segundo.

     Nessa rápida síntese, deve ter ficado patente que a teoria dos papéis temáticos écompartilhada por gerativistas e funcionalistas. Num excelente balanço dascontribuições de ambas as perspectivas teóricas, Kato (1998) mostrou que as duasconfluem precisamente no domínio dessa teoria.

    2.2. Apresentação

    Como se viu, na predicação há um MOVIMENTO FICTÍCIO  de propriedades lexicais(traços inerentes), semânticas (papéis temáticos) e gramaticais (casos morfológicos)de um operador para seu escopo.

    Diferentemente da predicação, o processo semântico-gramatical deapresentar um participante no discurso ou um estado de coisas não implica numaatribuição de traços. As expressões apresentacionais tão somente introduzem um dadonovo, respondendo à pergunta “quem é X?”, “o que é X?”.

    Bollinger (1975) descreve a motivação discursiva das sentenças

    apresentacionais, nas quais reconhece uma “função apresentativa” que não tinha sidoainda identificada entre as funções da linguagem. Suñer (1982) dedicou todo um livro

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    ao tema. Franchi; Negrão; Viotti (1998: 113) reconhecem nas apresentacionais um processo sintático que “coloca em proeminência um de seus constituintes (...), o ‘focoapresentativo’”.

    Seguem-se alguns exemplos de verbos apresentacionais, alguns delestranscritos desses autores:

    (20) Verbos apresentacionaisa) Em São Paulo tem um problema específico de ter-se tornado um centro indústria.

     b) Tinha um gato preto perto ela.c) Ali havia uns eucaliptos sendo plantados.d) Existe muitos outros meios de transporte que não são explorados (DID SP 46).e) A – Mas quem será , a estas horas?

    B – É  o Luís.

    Observe-se que os verbos ter, haver, existir, ser nessas sentenças nãoatribuem traços a seus escopos, não os predicam.

    Outras expressões, estudadas por Laura (2013), funcionam igualmente naapresentação de termos da sentença:

    (21) Expressões apresentacionaisa) Seguinte: de hoje em diante não trabalho mais.

     b) Quanto a isto, nada mais tenho declarar.c) Sobre esse assunto, melhor deliberar mais tarde.d) A respeito dos apresentacionais, poderíamos estudar diacronicamente esse lance.e) Relativamente a isso /  por falar  nisso, bom, deixe pra lá.

    2.3. Verificação: inclusão, exclusão, focalização

     No processo de predicação há um MOVIMENTO FICTÍCIO  de propriedades lexicais(traços inerentes), semânticas (papéis temáticos) e gramaticais (casos morfológicos)de um operador para seu escopo.

    O processo de verificação funciona diferentemente. Segundo Ilari; Basso(2008b), entende-se por verificação uma comparação implícita entre o escopo e o

     protótipo correspondente. Diversos resultados decorrem dessa comparação:

    1.  Há congruência entre o escopo e o protótipo: o escopo é afirmado.2.  Essa congruência não existe: o escopo é negado.3.  A comparação revela que há coincidência entre o escopo e o protótipo de sua

    classe, e que isso deve ser destacado: o escopo é focalizado.4.  Reconhece-se que o escopo corresponde ao protótipo de sua classe: o escopoé incluído.

    5.   Não se reconhece essa correspondência: o escopo é excluído ou é delimitado.

    Os conceitos de afirmação, negação, focalização, inclusão, exclusão edelimitação explicitam o que se entende por verificação, termo técnico, que significa“avaliar o conteúdo de verdade”, “tornar verdadeiro”. Deve ser isso o que se passa emnossa mente quando verificamos.

    Veja o seguinte exemplo:

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    (22)  Elas não  gostam de jogar bola, e sim  de passear na praia;  fora as colegas que elasacham chatas, convidam só aquelas mais chegadas, bem aquelas da turminha do colégio,

     praticamente umas seis ou sete. 

    Em (22), comparando gostar de jogar bola com passear na praia, negou-se a

     primeira atividade e se afirmou a segunda; comparando as colegas em seu conjunto, fora excluiu algumas e apenas incluiu outras; bem focaliza as colegas que integram oconjunto turminha do colégio; praticamente delimitou, no conjunto geral das colegas,apenas seis ou sete.

    As expressões não, sim, fora, só, bem e praticamente não transferiram traçossemânticos aos seus escopos, não predicaram, apenas verificaram sua congruênciacom os parâmetros relacionados anteriormente.

    A verificação se exprime através dos verbos apresentacionais existenciais eequativos, dos adjetivos classificadores, dos advérbios de afirmação/negação,inclusão/exclusão, focalização, delimitação; para uma elaboração, ver os capítulos “Osintagma verbal”, “O sintagma nominal”, “O sintagma adjetival” e “O sintagma

    adverbial”.Os conceitos de afirmação, negação, focalização, inclusão, exclusão e

    delimitação explicitam o que se entende por verificação, termo técnico que tambémsignifica “avaliar o conteúdo de verdade”, “tornar verdadeiro”. Deve ser isso o que se

     passa em nossa mente quando verificamos.Vamos nos limitar à verificação por inclusão/exclusão, e por focalização.

    (1) Inclusão / exclusão

    Ao longo de uma enunciação, incluímos ou excluímos participantes, através decategorias tais como os advérbios de inclusão / exclusão. Essas classes adicionam ou

    subtraem indivíduos de um conjunto, como em  Mais feijão e menos conversa! Nesteexemplo, a combinação de "mais" e "menos" com substantivos /contáveis/ produziu osignificado de adição / subtração de participantes. Se os substantivos predicadosfossem /não contáveis/, o efeito seria de Qualificação graduadora intensificadora,como neste diálogo: Mais amor e menos confiança!

    (2) Focalização

    É um processo por meio do qual pomos em destaque, em realce, parte da informaçãoque estamos processando.

    Esse processo se realiza prosodicamente (pronunciando a palavra focalizadaem tessitura diferente), lexicalmente (usando advérbios de focalização), esintaticamente (movendo para a esquerda o constituinte focalizado, ou destacando-o

     por meio de é ... que).Para Langacker (1991), a focalização ocorre quando acessamos porções

     particulares ou aspectos do nosso universo conceptual, para representá-lolinguisticamente. Segundo esse autor, a focalização envolve os seguintes graus: (i)Alinhamento por figura / fundo: tradicionalmente descritos em termos de estruturainformacional, relação “novo / velho”, “foco”, este processo se manifesta, porexemplo, na organização da sentença complexa, em que a sentença matriz declarativaexpressa o fundo, enquanto que a subordinada expressa a figura. (ii) Composição: é

    um tipo particular de focalização inerente a expressões individuais. Exemplificam acomposição as palavras compostas e as derivadas, tais como compositor, guarda-

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    roupa.  (iii) Escopo: é “a seleção inicial de um conteúdo conceptual para aapresentação linguística”: Langacker (em preparação: 3.7). Podemos ter aqui ou umacobertura total do domínio – o escopo máximo – ou uma cobertura limitada – oescopo imediato -. O escopo máximo de uma expressão é o conjunto de conteúdosconceptuais que ela evoca. Dentro do escopo máximo, há muitas vezes o escopo

    imediato, que é a porção diretamente relevante para determinado propósito. Um termocomo cotovelo envolve o escopo máximo que é o corpo humano, e o escopo imediatoque é o braço, o mesmo podendo dizer-se de dedo em relação a mão, e de nó do dedo em relação a dedo. O perfil de uma expressão é o foco específico de atenção dentro deseu escopo imediato.

    O domínio que foi escolhido via focalização torna-se  proeminente / saliente. Há dois tipos de proeminência: perfil e alinhamento trajetor / marco.

    (i) Perfil é o mesmo que referente: Langacker (em preparação: 3.11). Umaexpressão pode perfilar uma coisa ou uma relação. A mudança de perfildesencadeia uma metonímia; assim, quando num restaurante alguém diz “eu 

     sou tiramisu”, referindo-se à sobremesa que tinha escolhido, o perfil de sobremesa se moveu para o de  pessoa. Ao perfilar uma pessoa ou uma coisa,damos-lhe proeminência.

    (ii) Alinhamento figura / ponto de referência (Ing trajector / landmark ). Quandouma relação é perfilada, atribuímos diferente proeminência aos seus

     participantes. O participante mais proeminente é a figura, concebida como aentidade inicial que pode ser localizada, avaliada ou descrita. Ela é o primeirofoco dentro da relação que está sendo perfilada. O participante menos

     proeminente é o ponto de referência, tomado como foco secundário da cena.Assim, em “O abajur está sobre a mesa”, abajur  é a figura, e mesa o ponto dereferência. Parece haver uma regularidade no jogo entre a escolha da figura e aescolha do ponto de referência, tanto assim que dificilmente diríamos “A mesaestá debaixo do abajur”.

    2.4. Categorias semânticas do verbo

    Aspecto, tempo, modo e voz são categorias semânticas do verbo. Sobre isso, ver, pelomenos, Ilari; Basso (2008a), Castilho (2010: cap. 10).

    LEITURAS SOBRE SEMÂNTICA GRAMATICAL 

    Bolinger (1975), Lyons (1977, vol. 2), Suñer (1982), Negrão (2002), Castilho; Moraes de Castilho(2002), Chierchia (2003, caps. 1-4), Peres (2013), Laura (2013), Ilari (2014).

    ATIVIDADES 

    Organize um corpus, transcrevendo sintagmas de textos de jornal. Em seguida, procure caracterizar osdiferentes sintagmas de um ponto de vista semântico, focalizando seu núcleo. Verifique se o núcleoconservou seus traços inerentes ou se exibe traços adquiridos, explicando, neste caso, o tipo dealteração havida.

    LEITURAS SOBRE AS CATEGORIAS SEMÂNTICAS DO VERBO 

    Aspecto: Castilho (1968, 1999, 2010: pp. 416-440), Comrie (1981, 1981), Travaglia (1981), Soares(1987), Barroso (1994), Bybee; Pagliuca (ed. 1994).

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    Tempo: Castilho (1967), Corôa (1993), Ilari (1997, 1999), Ilari; Mantoanelli (1997), Ilari; Basso (2008a).

    ATIVIDADES 

    1. Com base na literatura acima, identifique os critérios adotados para a descrição semântica do aspecto

    e do tempo verbal. Pode-se afirmar que o aspecto verbal represente algumas categorias cognitivas?Quais?2. Compare o uso do tempo verbal em sentenças simples com seu uso nas sentenças subordinadassubstantivas e reflita sobre o papel dessa categoria numa língua como a portuguesa.3. Estude o voz verbal na organização semântica das sentenças.

    2.5. Conectividade preposicional e conjuncional

    Outra categoria da Semântica gramatical é a conectividade, gramaticalizada como preposições e conjunções. Essas classes ligam palavras e sentenças, com a diferençade que as preposições, como classe igualmente predicadora, atribuem ao seu escopotraços de lugar, tempo, entre outros, propriedade não exercida pelas conjunções. A

    face semântica dessas classes vem sendo vigorosamente descrita.

    LEITURAS SOBRE PREPOSIÇÕES E CONJUNÇÕES 

    Stammerjohan (Ed. 1977), Ducrot; Vogt (1978), Lemle (1984), Vandeloise (1986/1991), Guimarães(1987), Lobato (1989), Sweetser (1990), Moraes de Castilho (1991), Pontes (1992), Risso (1993),Longhin-Thomazi (2006, 2009), Castilho (2003 a, 2004 a, 2010: 591-610), Modolo (2004, 2006),Lima-Hernandes; Ilari (2008 a,b).

    ATIVIDADES

    1. Verifique na literatura como a categoria de referenciação vem sendo estudada. Pode-se dizer queessa categoria se limita ao campo da Gramática?2. Redija um texto apresentando os papeis temáticos que têm sido analisados em nossas gramáticasescolares.3. Faça um levantamento das conjunções que introduzem sentenças substantivas e sentenças adverbiais.Quais delas conservam um sentido identificável, e quais sofreram dessemantização? Procure explicar oque você descobriu.

    3. SEMÂNTICA DISCURSIVA: A SIGNIFICAÇÃO DO TEXTO E SUAS CATEGORIAS 

    Apresentação: a significação é uma categoria que só pode ser definida no texto ou nocontexto que envolve uma interação linguística. Assim, a Semântica discursiva, ouSemântica pragmática, trata das significações geradas no espaço que medeia entre oslocutores e os signos linguísticos, significações essas não contidas nas palavras nemnas construções gramaticais envolvidas, expressas no texto: Vogt (1977), Ilari;Geraldi (1985).

    As seguintes categorias são configuradas no espaço entre a Semântica e oDiscurso: (1) foricidade: anáfora e catáfora, (2) dêixis locativa e temporal, (3)inferência e pressuposição, (4) paráfrase, (5) articulação tema-rema.

    3.1. Foricidade: anáfora e catáfora

    Entende-se por  foricidade a operação desencadeada por itens lexicais que trazem de

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    novo à consideração noções já identificadas anteriormente (anáfora), ou a seremveiculadas posteriormente (catáfora) no texto. Essa palavra deriva do Gr  phoréo(“trazer”, “conduzir”), cuja contraparte latina é fero, de onde derivou foricitas, que é oétimo de foricidade.

    Assim, em

    (23) O aluno disse que ele não gosta de aulas.

    se entendermos que ele aponta para um participante da situação de fala, parafraseável por ele aí , houve uma interpretação dêitica do item. Se entendermos que ele retoma oaluno, houve uma interpretação fórica do item. Ambas as interpretações são

     perfeitamente possíveis, mostrando que há uma diferença entre retomar (= foricidade)e indiciar (= dêixis). De novo aquela ideia segundo a qual uma mesma expressão

     pode enquadrar-se simultaneamente em mais de uma categoria.Halliday; Hasan (1976) assim descreveram a atuação da foricidade: (1)

    endófora – retomada de referentes que já foram mencionados no texto (= anáfora) ou

    antecipação de referentes que ocorrerão no texto (= catáfora); (2) exófora – menção areferentes presentes na situação de fala, não verbalizados no texto. Numa sala de aula,

     pode ocorrer o seguinte ato de fala:

    (24)  Esta  é uma verdade: dentre os argumentos do autor, estes  primeiros são aceitáveis,aqueles  outros não se sustentam. Falando em sustentação, pegue esse aí   e preste maisatenção.

    Em (24), esta é um catafórico, anunciando o substantivo verdade e a sentençacomplexa que vem depois dos dois pontos. Estes e aqueles são anafóricos, retomandoargumentos próximos (estes) ou afastados (aquele) no tempo do discurso.  Esse aí  

    remete a um participante não verbalizado no discurso, provavelmente o lápis que caiuda boca de um aluno sonolento.

    Segundo Salum (1983), os comparatistas promoveram certa confusão no usodos termos designativos desses processos semânticos, tanto quanto no dos termosdesignativos das classes gramaticais que os expressam. De fato, o termo gregoanaphorikòs foi traduzido no latim por relativus (de re + latum, particípio de  fero) edeiktikòs por demonstrativus (de de + monstrare, “apontar para algo retirado de umconjunto”).

    Sucedeu que os termos anáfora, uma das manifestações da  foricidade, e dêixisforam apropriados pelos gramáticos para a designação de processos semânticos, ao

     passo que relativo e demonstrativo foram utilizados para a designação de classes de palavras. Ora, outras classes além do pronome relativo retomam conceitos, e odemonstrativo não é a única classe que indicia os referentes. E ainda por cima,referência, vocábulo latino calcado em refero (“voltar atrás”), que é uma tradução

     perfeita do grego anaphorà,  passou a ser usado modernamente para designar ora oconteúdo dos substantivos, ou seja, seu referente, acepção escolhida neste texto, ora

     para designar a retomada de conteúdos, como sinônimo de anáfora. Belíssimaconfusão!

    Essas observações mostram que os limites entre a dêixis e a foricidadetornaram-se pouco nítidos. Carreter (1953 / 1962: 130) agrega uma explicaçãoauxiliar sobre como os limites entre esses termos foram borrados: a dêixis

    “consiste em assinalar algo que está presente diante de nossos olhos: aqui, ali, tu,isto  etc. Quando a função dêitica não consiste em fazer uma demonstratio ad

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    oculos, mas apenas assinala um termo da frase já anunciado, recebe o nome deanáfora”.

    Embora se pudesse de fato reduzir a dêixis e a foricidade a uma só propriedade, considerando a anáfora numa sorte de “dêixis textual”, preferimos seguir

    distinguindo os dois conceitos, dada sua diferente representação na gramática denossa língua.Sumarizando, entendida como “remissão”, a foricidade representa um

     segundo conhecimento da coisa, sendo que o  primeiro conhecimento  é dado pelos processos de referência ou designação. Através da anáfora, retomamos um tópicodiscursivo, trazendo de novo à consciência os participantes do discurso mencionadosanteriormente, ou presentes no contexto. Analisando o papel da foricidade naconstrução do texto, Marcuschi; Koch (2006: 383) destacam a categoria deMOVIMENTO que subjaz à foricidade, quando afirmam que

    “Cabe, ainda, ressaltar que um texto não se constrói como continuidade progressiva

    linear, somando elementos novos com outros já postos em etapas anteriores, como seo texto fosse processado numa soma progressiva de partes. O processamento textualse dá numa oscilação entre dois movimentos: um para frente (projetivo) e outro paratrás (retrospectivo), representáveis parcialmente pela catáfora e anáfora.  Além disso,há movimentos abruptos, há fusões, alusões etc. (grifos meus)

    Marcuschi e Koch estão lidando com o movimento fictício, já referido aqui.

    3.2. Dêixis locativa e temporal

    Entende-se por dêixis uma categoria que depende crucialmente da situação discursiva,

    e não das propriedades intensionais necessárias à configuração das categorias dereferenciação e predicação, já aqui examinadas.Assim, o entendimento de expressões como (i) eu, este/esse, aqui, hoje; (ii) 

    você, esse/este,  aí , amanhã; (iii) ele,  aquele,  lá, outrora,  entre outras, depende dasituação em que elas foram veiculadas. A referência desses termos está no discurso,na situação social concreta que envolve os falantes, e não apenas nessas palavras. Asexpressões dêiticas selecionam obrigatoriamente a significação discursiva. Sem adêixis e o eixo que ela organiza no discurso, não há discurso.

    É o que se observa no seguinte exemplo:

    (25) Seguinte, meu caro, agora sou eu aqui e você lá , tá bom?

    Em (25) ocorreram as seguintes expressões dêiticas: (i) eu indica o falante eaqui, o lugar que ele ocupa; (ii) você indica o interlocutor e o lá, o lugar que eleocupa; (iii) agora indica um ponto na perspectiva temporal do discurso, implicitandoque desse ponto em diante a relação entre os interlocutores vai mudar. Note que se eucorresponder a João, e você corresponder a Pedro, este bem pode retrucar que

    (26) Você tá é esquecido, eu já tinha combinado isso com você faz tempo!

    Em (26), os termos mudaram de designação, e agora eu = Pedro, e você =João. Embora João continue sendo João, e Pedro, Pedro, pois são termos referenciais,

    eu e você mostraram-se intercambiáveis, pois são termos dêiticos.  Isso retoma a

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    conversa atual e as conversas anteriores mantidas entre ambos, pois é um termofórico.

    O termo dêixis corresponde em português exatamente à palavra gregadéiksis, que significa literalmente “mostração”. Esse termo deriva, por sua vez, doverbo grego déiknymi, “mostrar”, “apontar”. Nos exemplos anteriores, os itens

    lexicais eu  e  você “apontam” verbalmente para as pessoas do discurso, aqui e lá“apontam” verbalmente para o espaço físico ocupado por elas, e agora “aponta”verbalmente para o tempo em que o acordo deve ser observado. E não nosesqueçamos do adjetivo  seguinte, usado para introduzir no discurso o trato que estásendo estabelecido.

    Durante uma conversa, gesticulamos e produzimos sequências sonoras. Adêixis realiza as duas tarefas, nela confluindo o gesto de ostensão e a sequência desons. Por isso mesmo, a dêixis tem sido bastante estudada na literatura. Vale a penaretomar alguns pontos desse longo percurso.

     No mundo antigo, Apolônio Díscolo (século I  d.C., pág. 166 da traduçãoespanhola) argumentava que os pronomes de primeira e segunda pessoa:

    “servem para discernir pessoas ainda não definidas, com o que as pessoas por eles significadas se fazem definidas. É claro que as suas dêixis são as primeiras vias deentrada das pessoas que lhes subjazem, e por isso não precisam da companhia doartigo, já que não pode haver anáfora de pessoas que se mostram à vista”.

    Mas os pronomes abarcam também os de terceira pessoa, “pois também serealizam como anafóricos, desde que as pessoas sejam conhecidas de antemão, ecomo dêiticos, se a pessoa está à vista”: Apolônio Díscolo (séc. I d.C., pág. 165 datradução espanhola, 1987).

    Bühler (1934/1961) formulou a teoria da dêixis na Linguística moderna. Para

    ele, as expressões linguísticas (“campos”, em sua terminologia) se dividem emsimbólicas e em dêiticas. Os símbolos são referencialmente estáveis, ao passo que adêixis depende da situação de fala em que está ancorada. Entendida também como“ostensão”, a dêixis, segundo esse autor, representa um “primeiro conhecimento dacoisa”. Através da propriedade dêitica, inserimos entidades na corrente do discurso. O“segundo conhecimento” ocorre quando retomamos, via foricidade, essas mesmasentidades. Diferentes classes gramaticais codificam a dêixis: os pronomes, osadvérbios de tempo e de lugar, certos morfemas (como os de tempo), entre outros.

    Câmara Jr. (1977: 90) acompanha Bühler, ao definir a dêixis como a

    “faculdade que tem a linguagem de designar mostrando, em vez de conceituar. A

    designação dêitica, ou mostrativa, figura assim ao lado da designação simbólica ouconceitual em qualquer sistema linguístico. Podemos dizer que o SIGNO  linguísticoapresenta-se em dois tipos – o SÍMBOLO , em que um conjunto sônico representa ou simboliza, e o SINAL , em que o conjunto sônico indica ou mostra. O pronome é justamente o vocábulo que se refere aos seres por dêixis em vez de o fazer por simbolização, como os substantivos. A dêixis se baseia no esquema linguístico dastrês pessoas gramaticais que norteia o discurso: a que fala, a que ouve, e todos osmais seres situados fora do eixo falante-ouvinte”.

    Benveniste (1966: 84) mostrou que os dêiticos constituem uma “irrupção dodiscurso no interior da língua, porque o seu próprio sentido [...], embora releve da

    língua, apenas se pode definir por alusão ao seu emprego”. Comentando este autor,Mílton do Nascimento, em comunicação pessoal, me fez lembrar que a dêixis é uma

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    condição da linguagem: “não há enunciado sem enunciador/enunciatário sem aconstrução de um EU-TU, da relação espelhada EU-TU, a qual envolve os dêiticos porexcelência, num AQUI/AGORA da enunciação”.

    Para Ducrot e Todorov (1972/1998: 302), dêiticos são “expressões cujoreferente só pode ser determinado em relação aos interlocutores. Assim, os pronomes

    de primeira e segunda pessoa designam respectivamente a pessoa que fala e aquela aquem se fala”.

    Segundo Lyons (1979: 290),

    “todo enunciado linguístico se realiza num lugar particular e num tempo particular:ocorre numa certa situação espaço-temporal. É produzido por uma pessoa – o falante – e em geral se dirige a alguma outra pessoa – o ouvinte. O falante e oouvinte, diremos, são tipicamente distintos um do outro, podendo, certamente, havermais de um ouvinte, e estão, além disso, na mesma situação espaço-temporal”.

    Ele acrescenta que

    “a noção de dêixis – que é simplesmente a palavra grega que exprime a ação de“apontar” ou “indicar”, e veio a ser um termo técnico da teoria gramatical – foiintroduzida para indicar os traços “orientacionais” da língua que se relacionamcom o tempo e o lugar do enunciado. Os chamados pronomes pessoais – eu , tu ( você ), ele , etc. – constituem apenas uma classe dos elementos da língua cujo significado se determina pela referência às “coordenadas dêiticas” da situaçãotípica do enunciado. Outros elementos que incluem um componente de dêixis sãoadvérbios de lugar e de tempo – como aqui, aí, ali, lá, acolá (de lugar) e agora e então (de tempo), que indicam o “próximo” e o “não próximo” do falante (e às vezestambém do ouvinte) e o “momento em que se fala” e o “não momento em que se fala”. São esses os exemplos mais evidentes da maneira pela qual a estrutura

     gramatical de uma língua pode refletir as coordenadas espaço-temporais da situação típica do enunciado. A situação típica no enunciado é egocêntrica: como o papel do falante se transfere de um participante para outro numa conversa, muda-seassim o “centro” do sistema dêitico, usando o falante eu para referir-se a si mesmo,tu , você etc. para dirigir-se ao ouvinte. O falante está sempre no centro da situaçãodo enunciado”.

    Lahud (1979: 40) afirma que a noção de dêixis está muito vinculada à classelinguística dos pronomes pessoais (eu/você, mais precisamente), aos pronomesdemonstrativos (isso) e às formas temporais do verbo. Observe-se que essas classesrepresentam algumas categorias cognitivas: PESSOA,  ESPAÇO (proximidade/afastamento) e TEMPO. Isso faz delas uma única classe.

     No PB, a dêixis tem uma codificação flexional e lexical. A pessoa só temflexão no verbo; nas demais classes, é o lexema que representa essa categoria. Ositens lexicais expressam uma localização positiva e uma localização negativa dos

     participantes do discurso. Localizam-nos positivamente os itens que os dispõem numeixo de proximidade ou de não proximidade com respeito ao locutor: este/esse, aqui, hoje fornecem uma localização próxima, ao passo que aquele,  lá,  ontem/amanhã 

     provêm uma localização remota. Localizam-nos negativamente os itens que não têmesse poder de discriminação, como os artigos. Como já se disse, podemos tambémrepresentar a dêixis extra verbalmente, por meio da ostensão: apontar com o dedo,estirar os lábios, como na piada do caipira, quando informou que determinado ponto

    geográfico “ ficava logo ali, pertinho, pertinho”. Coitado de quem acreditou!

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    3.3. Inferência e pressuposição

    Inferir é criar realidades semânticas a partir daquelas previamente existentes. Veltman(1993, s.v. inference) distingue a inferência dedutiva da inferência argumentativa.

    A inferência dedutiva diz respeito ao raciocínio lógico, correspondendo à

     premissa de um silogismo, levando-nos a uma conclusão. Ela corresponde aoraciocínio:

    (27) Se p, então q. 

    como em

    (27a) Se está frio na sala, então ele fecha a janela.

    A inferência argumentativa diz respeito ao raciocínio baseado no sensocomum:

    (28) Se q, então p.

    como em

    (28a) Se ele fecha a janela, então é porque está frio na sala.

    Em (28 a), praticamos uma anomalia do ponto de vista da inferência dedutiva,aceitável, porém, do ponto de vista pragmático. A inferência argumentativacorresponde às implicaturas de Grice (1967/1982).

    As inferências podem trombar com outros processos semânticos, como neste

    exemplo:(29) Cena de inverno. A avó está sentada em sua poltrona, enquanto seu neto tecla

    furiosamente seu jogo eletrônico.

    Vovó: Mas que frio, nesta sala! Neto de antigamente: Vou fechar a janela, vovó. Neto de hoje em dia: É assim mesmo, vovó, os velhos vivem passando frio.

    O neto de antigamente inferiu que sua avó lhe pedia que fechasse a janela. Suafala criou uma realidade semântica inexistente na fala de sua avó. O neto de hoje emdia escolheu outro processo semântico, o da paráfrase, que não cria realidades

    semânticas diferentes, o que lhe permite continuar concentrado em seu jogo.

    Pressupor é entender alguma coisa que não foi dita, que não foi “posta”.Podemos entender (30b) a partir de (30 a):

    (30)a) Locutor: Xi, cara, estou sem dinheiro nenhum.

     b) Interlocutor:  Até você deu agora de pedir dinheiro emprestado? Eu não tenho. Depois,você não vai me pagar mesmo.

    A pressuposição decorre do princípio da economia comunicativa: muita coisa

    deixa de ser expressa no discurso, sendo então pressuposta.

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    Caffi (1993: s.v.) põe o assunto em termos dos segredos de alcova, quandodiz que “a pressuposição pode ser definida como um ‘ménage-à-trois’ entre o locutor,a moldura de sua locução e o interlocutor”. O interlocutor entende (30b) quando olocutor produz (30 a). Na moldura da locução, alguém não consegue um empréstimose há dúvidas sobre sua liquidez financeira.

    PB  e PE  parecem distinguir-se no jogo que fazem da pressuposição. Tantoquanto saiba, este é um recanto até aqui pouco explorado no conhecido esporte“comparando PB e PE”, vulgo, “as aves que aqui gorjeiam...”.  Vejamos alguns casos.

    (31) Diálogo numa papelaria em Lisboa, sexta-feira à tarde, hora de fechar o estabelecimento.Um brasileiro, percebendo certa irritação de parte do vendedor e já disposto a voltar no outrodia, pergunta:a) Os senhores fecham aos sábados?

     b) Não, senhor.

    O brasileiro volta no sábado, mas o estabelecimento está fechado. Na

    segunda-feira, trava-se o seguinte diálogo:c) Brasileiro:  Eu voltei aqui no sábado, mas a papelaria estava fechada, apesar de minha pergunta.d) Vendedor: O senhor perguntou se fechávamos, disse-lhe que não, pois se não abrimoscomo havemos de fechar?

    O operador argumentativo portanto não tem os mesmos usos no Brasil e emPortugal.

    (32)a) Brasil: estão fazendo uma pesquisa... não é? com os professores... (...) bem... eu fiz o

     seguinte... eu contei... a aula passa:da... quantos grupos estiveram... aqui presen:tes... fazendo aquele trabalho de:... definição: tare:fas “necessidades da sociologia do direito”...como grupo de trabalho e contei os seguintes grupos o grupo a: o b: o c: o d: o e: o f: o h:...e o i:...  portanto temos entre oito nove grupos... no máximo... talvez eu tenha deixado algum grupo... de fora... (EF REC 339). b) Portugal: Portanto... vamos ter ali ao bar e tomamos uma bica.

     No Brasil,  portanto de (32 a) anuncia uma conclusão derivada do dito, do posto, localizando-se entre sentenças. Em Portugal, portanto anuncia uma conclusãoderivada do pressuposto, do não dito, localizando-se à testa da sentença, como osmarcadores discursivos. No caso narrado em (32b), um grupo de amigos encontra-se

     por acaso. Armado o pressuposto de que amigos reunidos tomam logo um café (=uma bica), portanto anuncia uma conclusão sacada desse pressuposto. Não é preciso refletir muito para concluir que as fronteiras entre as

    inferências e as pressuposições exploráveis nas línguas naturais têm a robustez de umtecido de filó. Por conta disso, não faltou quem dissesse que a pressuposição

     pragmática, nascida com grande arruído na década de 1970, morreu na década de1980. Esse parece ser nitidamente o caso de coveiros apressados. Afinal, ainda nãoexploramos as formas gramaticais que criamos movidos por uma pressuposição. Queruma amostra grátis? Dê um pulo até Castilho (2010, seção 9.2.2.1).

    3.4. Paráfrase

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    Paráfrase é a recursão dos mesmos significados, com palavras diferentes. Ela é umdos processos constitutivos do texto, consistindo na recorrência de conteúdos. Otermo remete a diversas realidades, aqui sumarizadas.

    Fuchs (1982: 49-50) assim a definiu:

    “Transformação progressiva do ‘mesmo’ (sentido idêntico) no ‘outro’ (sentidodiferente). Para redizer a ‘mesma coisa’ acaba-se por dizer ‘outra coisa’, no termode um processo contínuo de deformações negligenciáveis, imperceptíveis.”

    O paradoxo da paráfrase está nisto: é uma repetição de conteúdos que, precisamente por terem sido repetidos, acrescentaram-se semanticamente e, nessesentido, mudaram. Não é preciso dizer mais nada para mostrar a importância da

     paráfrase na manutenção da conversação e na criação do texto.

    Vejamos este exemplo, em que M representa o segmento matriz e P, osegmento parafraseado:

    (33) Exemplo de Hilgert (2006: 290)M então a minha de onze anos... ela supervisiona o trabalho dos cinco...

    então ela vê se as gavetas estão em ordem... se o:: material escolar já foi re/arrumado parao dia seguinte... se nenhum:: fez:: arte demais no banheiro... porque às vezes... estãotomando banho e ficam jogando água pela janela

    P quer dizer... é supervisora nata

    Como se vê em (33), a paráfrase “tece a macroestrutura de um tópicoconversacional, na medida em que mantém a centração tópica” (Hilgert, 2006: 284).

    São muitas as funções da paráfrase no tratamento discursivo do tópico: (1)expansão vs. redução, (2) determinação vs. indeterminação, (3) ênfase vs. atenuaçãoetc.

    Vejamos exemplos dos dois primeiros processos.

    (34) Paráfrase expansiva/redutora. Exemplo de Hilgert (2006: 290-291)M não que eu deseje::: liberda...de... P deseje eh eh estar assim sem obrigações para com as crianças(D2 SP 360)

    (35) Paráfrase determinadora/indeterminadoraa)M eu noto que muito paulista fica um pouco chocado... com o linguajar cariocaP nós ficamos um pouco chocados com o esse e o erre exagerados (D2 SP 333)

     b)M agora vamos usar um termo que eu uso bastanteP e que todo mundo usa (D2 SP 333)

    Em (34), foi usado o esquema “matriz expansiva! paráfrase redutora”, vistoque liberdade tem uma amplitude semântica maior do que sem obrigações.

    Observe-se que em (35a) o locutor usou o esquema “genérico! específico”,ao trocar muito paulista, ou seja, um paulista que não se sabe direito quem é, por nós,especificando o sujeito da sentença. Já em (35b) o mesmo locutor seguiu o caminho

    inverso, “específico! genérico”, localizando em si mesmo a responsabilidade pelouso de um termo, generalizando depois esse uso, talvez para preservar sua face de

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     bom falante do português.Parece que as paráfrases ex