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Sylvia Mara Pires de Freitas Neuza Maria F. Guareschi A Construção da Pluralidade do Conhecimento na Formação e na Prática do Psicólogo no Contexto do Trabalho The Plurality of Knowledge in the Graduation of the Psychology Professional in the Work Context Resumo Neste artigo discutimos como algumas questões políticas que permearam as fa- ses da Psicologia Industrial, Psicologia Organizacional e da Psicologia do Trabalho ajudaram na construção do pluralismo teórico da subárea da Psicologia no contexto do trabalho, uma vez que essas se encontram hoje interagindo no mesmo contexto e assim, tornando-se faces desta subárea. A partir da configuração teórica mais plural da Psicologia no contexto do trabalho, apontamos também para o quanto essa diver- sidade em relação ao conhecimento interfere na política departamental das institui- ções, especialmente no que tange a elaboração dos planos de ensino das disciplinas ______ Sylvia Mara Pires de Freitas é Mestre em Psicologia Social e da Personalidade – PUCRS; Docente do Depar- tamento de Psicologia da Universidade Paranaense – UNIPAR e da Universidade Estadual de Maringá – UEM. Neuza Maria F. Guareschi é Professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais, Identidade/Diferença e Teorias Contempo- râneas. ____ Endereço para correspondência: E-mail: [email protected]. Aletheia Canoas n.19 jan./jun. 2004 p. 75-88

GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima e FREITAS, Sylvia Mara Pires de _ A construcao da pluralidade do conhecimento na formacao e na pratica do psicologo no contexto do trabalho

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Sylvia Mara Pires de FreitasNeuza Maria F. Guareschi

A Construção da Pluralidadedo Conhecimento

na Formação e na Práticado Psicólogo no Contexto

do TrabalhoThe Plurality of Knowledge in the Graduation

of the Psychology Professional in the Work Context

ResumoNeste artigo discutimos como algumas questões políticas que permearam as fa-

ses da Psicologia Industrial, Psicologia Organizacional e da Psicologia do Trabalhoajudaram na construção do pluralismo teórico da subárea da Psicologia no contextodo trabalho, uma vez que essas se encontram hoje interagindo no mesmo contexto eassim, tornando-se faces desta subárea. A partir da configuração teórica mais pluralda Psicologia no contexto do trabalho, apontamos também para o quanto essa diver-sidade em relação ao conhecimento interfere na política departamental das institui-ções, especialmente no que tange a elaboração dos planos de ensino das disciplinas

______Sylvia Mara Pires de Freitas é Mestre em Psicologia Social e da Personalidade – PUCRS; Docente do Depar-tamento de Psicologia da Universidade Paranaense – UNIPAR e da Universidade Estadual de Maringá –UEM.Neuza Maria F. Guareschi é Professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia daPUCRS. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais, Identidade/Diferença e Teorias Contempo-râneas.

____Endereço para correspondência: E-mail: [email protected].

Aletheia Canoas n.19 jan./jun. 2004 p. 75-88

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e, conseqüentemente, na formação dos profissionais que desenvolvem atividades nestaárea da Psicologia.

Palavras-chave: Psicologia no contexto do trabalho, Formação profissional em Psi-cologia, Pluralismo teórico.

ABSTRACTIn this article, we discuss how political issues which have permeated the phases

of Industry Psychology, Organizational Psychology and Psychology of Work, contri-buted to the construction of the theoretical diversity of the sub-area of Psychology inthe working context, since these phases today have been interacting in same context,thus, becoming phases of this sub-area. From the more plural, theoretical configura-tion of Psychology, we also draw attention to how much this theoretical diversity, inrelation to this knowledge, interferes in the departmental politics, especially concer-ning the construction of education plans and consequently in the graduation of pro-fessionals.

Key words: Psychology in the work context, Professional graduation in Psychology,Theoretical diversity.

Diante das crescentes demandasquanto à responsabilidade social da Uni-versidade, esta se viu dividida entre os ape-los do mundo industrial e do mercado eas necessidades sociais das comunidadesnas quais está inserida. Esta divergênciacolabora para produções científicas, tantono ensino, quanto na pesquisa e na exten-são, de concepções teóricas das mais di-versas. Por um lado, a necessidade deatender a interesses distintos, propicia oaumento da pluralidade teórica na produ-ção científica. As teorias trazem em seubojo idéias comprometidas com determi-nadas concepções de ser humano, com osocial, com a ética, com ações, as quais ten-dem a gerar ou não transformações, mar-cando um determinado posicionamentopolítico. Por outro lado, esta mesma plu-ralidade acarreta dificuldades para a polí-tica departamental dos cursos de Psicolo-gia, visto que estes precisam atender à exi-gência de um projeto pedagógico, confor-me definido pelas agências governamen-tais de educação, como o Ministério daEducação e Cultura (MEC). A existênciade um projeto pedagógico pressupõe queeste se apóia em uma política comum dodepartamento, que orientará ações dos/asdocentes no curso.

Diante o exposto, intentamos mostrar

neste artigo, uma discussão1 sobre a cons-trução do pluralismo teórico mediante al-gumas questões políticas, bem como tal di-versidade pode interferir na política de-partamental dos cursos de Psicologia, noque diz respeito à construção dos Planosde Ensino da subárea2 da Psicologia nocontexto do trabalho3 . Em um primeiromomento, mostraremos algumas questõespolíticas, teóricas e práticas que permei-

______1 A discussão aqui apresentada é o resultado da pes-quisa de dissertação do Programa de Mestrado emPsicologia Social e da Personalidade, da PontifíciaUniversidade Católica do Rio Grande do Sul intituladaA Psicologia no contexto do trabalho: uma análisedos saberes e dos fazeres, e os assuntos aqui aborda-dos, referem-se a duas questões que nortearam nos-sa pesquisa, quais sejam, (a) a necessidade de conhe-cer como estão construídos os planos de ensino dasubárea de Psicologia no contexto do trabalho, emalgumas Instituições de Ensino Superior (IESs) dasregiões Sudeste e Sul do Brasil e, (b) como os/as pro-fissionais/docentes se posicionam frente à constru-ção dos planos de ensino desta subárea em suas IESs.2 O termo subárea é utilizado para identificar a Psico-logia no contexto do trabalho, como uma especiali-dade da área de conhecimento mais ampla, que é aPsicologia.3 Quando optamos por denominar essa subárea daPsicologia como Psicologia no contexto do trabalho,estamos nos referindo, de maneira geral, à PsicologiaIndustrial, à Psicologia Organizacional e à Psicologiado Trabalho.

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am a formação do profissional de Psicolo-gia no contexto do trabalho, de acordo coma construção histórica de cada fase/face4

desta subárea. Para isto, realizaremos umacontextualização dos primórdios da Psico-logia e da Psicologia no contexto do traba-lho uma vez que, quando estas foram ges-tadas no Brasil, ainda não estavam regula-mentadas enquanto profissão, sendo que,após a regulamentação, a Psicologia nocontexto do trabalho foi colocada comouma subárea da Psicologia. Em um segun-do momento, apresentaremos como essasquestões produziram um pluralismo teó-rico que buscaram atender às distintas fac-ções da sociedade, e o quanto esta plurali-dade interfere na política departamental.Para esta discussão, fundamentamo-nosnas falas de 08 (oito) profissionais/docen-tes entre mestres e doutores, que atuam amais de 09 (nove) anos na subárea da Psi-cologia no contexto do trabalho, em Insti-tuições de Ensino Superior, particulares,federais e estaduais, dos Estados do Riode Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Cata-rina e Rio Grande do Sul.

Algumas questões políticas,teóricas e práticas que permeiam

a formação em psicologia do trabalho

A Psicologia no contexto do trabalhosurgiu no bojo da sociedade capitalista e foidesenvolvendo suas novas fases/faces deacordo com os momentos históricos dessasociedade. No Brasil, esta subárea teve seusprimórdios quando a sociedade brasileiraviveu a transição da economia agroexporta-dora do café para uma economia industrial.

A industrialização exigiu que os seres hu-manos desempenhassem atividades maiscomplexas e especializadas para atender aoprocesso produtivo. Deste modo, também foinecessário um campo de saber capaz de se-lecionar, acompanhar e treinar a mão-de-obra que comporia o trabalho industrial, eque também, com estas atividades, pudessejustificar o processo de inclusão e exclusãodo trabalhador no mercado de trabalho.

A Psicologia Industrial - a primeirafase/face da Psicologia no contexto do tra-balho - entra no mundo do trabalho paraatender às demandas criadas por um siste-ma de produção sob o controle de classeshegemônicas, as quais visam o acúmulo decapital. Sendo assim, não podemos apartara criação deste campo de conhecimentocientífico das questões políticas e econômi-cas que permeavam e permeiam as relaçõesde produção.

Como um campo de conhecimentoainda não regulamentado como profissão,a Psicologia no contexto do trabalho iniciousuas atividades no Brasil no início do sécu-lo XX, mediante a participação de médi-cos, educadores, administradores e enge-nheiros, os quais dirigiram sua atenção parao contexto das fábricas a fim de contribuircom seus conhecimentos para o aumentoda produtividade (Nunes, 1998). As ativi-dades iniciais da Psicologia Industrial, fun-damentadas pela Teoria da AdministraçãoCientífica de Taylor, restringiram-se à sele-ção e as técnicas de colocação e orientaçãovocacional e profissional, apoiada nos tes-tes psicológicos. A criação e o desenvolvi-mento destas atividades se deram em de-corrência da Primeira Guerra Mundial(1914-1918), inclusive os testes psicométri-cos, que, nesta guerra puderam “[...] serusados na designação de civis para diferen-tes tipos de tarefas militares” (Farr, 1998, p.185). Mais tarde, com a contribuição dosestudos realizados pela Escola das RelaçõesHumanas, esta fase/face amplia suas ativi-dades, desenvolvendo as técnicas já exis-tentes, direcionadas à seleção e colocaçãode pessoal, à avaliação do desempenho, àanálise e descrição de cargos e aos estudos

______4 Utilizamos a expressão face com fundamento noautor Sampaio (1998), que coloca que os diferentesmomentos da construção desta subárea da Psicologiateriam suas faces compreendidas na Psicologia In-dustrial, na Psicologia Organizacional e na Psicologiado Trabalho, as quais atualmente coexistem no mes-mo contexto. A expressão fase é utilizada conjunta-mente, porque optamos também por dar ênfase aosmomentos históricos em que foi construída cada umadelas.

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ergonômicos, e introduzindo o treinamen-to de pessoal, a partir das técnicas de dinâ-mica de grupo.

As condições nos campos político-ide-ológico, econômico, e científico-tecnológi-co dos EUA no período entre as guerras(1919-1939) foram favoráveis para o desen-volvimento de uma ciência direcionada aosprocessos grupais naquele país. Estas con-dições, na década de 30, permitiram queautores fundamentais para a dinâmica degrupo fossem desenvolver seus trabalhosnos Estados Unidos. Muitos deles eram deorigem judaica e fugiam do nazismo ale-mão, como Kurt Lewin e Jacob Levy More-no. Carneiro (2003) acrescenta que a reces-são favoreceu o estudo, por parte dos psi-cólogos, dos fatores determinantes de ren-dimento das equipes de trabalho. Na fasede recuperação houve a necessidade demobilização coletiva, o que necessitou doscientistas, pesquisas sobre os meios de açõessobre os grupos humanos. No período depreparação para a Segunda Guerra, pesqui-sas sobre os fatores de coesão e eficácia daspequenas unidades de trabalho, os elemen-tos do moral dos grupos isolados em ope-rações, e outros estudos sobre processosgrupais foram intensificados.

Farr (1998) também coloca que houveinteresse pelos Estados Unidos, durante edepois da Segunda Guerra Mundial, pelacompreensão da dinâmica de pequenosgrupos, como por exemplo, os estudos clás-sicos de Kurt Lewin, com grupos de trei-namento, conhecido como T-group, dentreoutros. O pressuposto básico deste estudoera de que a conduta individual é possívelde modificação através da transformaçãodo comportamento em grupo (Lewin,1975). Sendo assim, o trabalho da Escoladas Relações Humanas, voltado para o con-texto do trabalho, contribuiu, como aindacontribui para a modificação da condutaindividual através de técnicas grupais ob-jetivando a produtividade e o lucro.

No tocante à profissão de psicólogo,esta foi regulamentada no Brasil no ano de1962. A Psicologia Industrial já se encontra-va como uma subárea consolidada. No iní-

cio do século vários testes mentais haviamsido construídos por médicos, e várias Ins-tituições, como o Idort, o Dasp, haviam le-gitimado as atividades psicométricas. Noentanto, apesar de esta subárea já ter con-quistado seu espaço, observamos que as di-ficuldades encontradas para a legalização daPsicologia enquanto profissão deveram-se,em grande parte, à hegemonia da classemédica que atuava nesse campo de estudo.Não obstante, a dificuldade da legalizaçãoda Psicologia enquanto profissão não ocor-reu relacionada aos trabalhos da Psicologiano contexto de produção, mas sim em facedas atividades de psicoterapia. A regulamen-tação somente ocorreu quando foram dele-gadas aos futuros psicólogos as atividadesrelativas aos problemas de ajustamento, fi-cando o termo clínico restrito aos médicos.

A concepção brasileira de uma Psico-logia apoiada na idéia de ajustamento, daépoca de sua regulamentação enquantoprofissão foi influenciada pela Psicologiaamericana, cuja orientação e atitude é debase funcionalista. A ênfase nos estudos dosprocessos funcionais, através dos testes psi-cológicos, da aprendizagem, da percepção,e de outros, objetivam investigar o “[...] or-ganismo em sua adaptação e ajustamentoao meio ambiente” (Schultz, 1995, p. 123).Desta maneira, a Psicologia apoiando-senesta concepção tende a compreender quea sobrevivência ao mercado produtivo cabeaos seres humanos que apresentarem mai-or capacidade de adaptação ao mesmo. Talidéia retira do social a responsabilidade pe-los problemas de exclusão do ser humanodeste mercado. Além disso, o reconheci-mento por decreto-lei da Psicologia enquan-to profissão coincidiu com o grande desen-volvimento do parque industrial brasileiro,denotando a exigência de profissionais ap-tos a desenvolver atividades voltadas aosrecursos humanos.

Quando da regulamentação da Psico-logia como profissão, o objetivo da classemédica era de manter restritas ao seu do-mínio as atividades psicoterapêuticas, fican-do sob responsabilidade dos psicólogos osproblemas de ajustamento. Este fato nos faz

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notar uma separação de status face aos ob-jetos de estudo da Psicologia Clínica e daPsicologia no contexto do trabalho. En-quanto a Psicologia Clínica direcionaria seusestudos à elite, compreendendo um cam-po individualizado e particularizado, como objetivo de libertar os indivíduos, a Psi-cologia no contexto do trabalho teria a clas-se operária como seu objeto de estudo.Contudo, as atividades dessa última subá-rea não se respaldaram no sentido de liber-tação, mas sim da normatização e do ajus-tamento dos comportamentos.

Já regulamentada, a Psicologia passoua ser oferecida como um curso de gradua-ção universitário. Diante disso, tornou-seuma área de escolha profissional. No en-tanto, parece-nos que a escolha por esta áreaenquanto profissão fundamentava-se maispelo cunho humanitário-assistencialista doque pelo profissional, como nos mostrapesquisa realizada por Bastos e Gomide(1989), na qual há a afirmativa que ideaishumanistas são apresentados como moti-vadores da escolha do curso. A Psicologianos anos 60 também compreendia, como aMedicina, que as perturbações e doençasdo indivíduo eram de responsabilidade in-dividual, dimensionando como responsa-bilidade do indivíduo o ajustamento às nor-matizações sociais. Acreditando que a curaestava no âmbito individual, a PsicologiaClínica ganha status. (Cambaúva; Silva eFerreira, 1998). O ideário de liberdade eigualdade também influenciou os trabalha-dores, que viam no curso superior uma for-ma de poderem estabelecer uma relaçãoautônoma com o mercado de trabalho. Aidéia de progresso estava intimamente liga-da à autonomia do trabalhador para nego-ciar com o mercado, sendo a educação umdos meios para se conseguir a ascensão so-cial. Estes dois pontos representavam, jun-tamente com os ideais humanistas, com otecnicismo - configurado pelas idéias prag-máticas - e com a valorização da PsicologiaClínica, valores que se transformaram emmotivos para a escolha da profissão funda-mentados na concepção liberal, no roman-tismo e no racionalismo técnico-disciplinar,

ideal este desenvolvido no sistema capita-lista. Na década de 70, o Brasil importa osparadigmas do Desenvolvimento Organiza-cional, enquanto os norte-americanos e ja-poneses entravam na era da Qualidade To-tal (Canha, 1998).

O Desenvolvimento Organizacionalvisava melhorar a eficiência da organizaçãoem longo prazo; a mudança organizacio-nal se processaria através da resolução deconflitos entre as forças exógenas, influen-ciadoras no ambiente organizacional, comoas novas tecnologias, as políticas, a econo-mia etc., e as forças endógenas, provenien-tes do próprio interior da organização (Chi-avenato, 1983). Verificamos aqui que a con-cepção de conflito é vista como inevitável;no entanto, assim como na Teoria da Ad-ministração Científica e na da Escola dasRelações Humanas, o conflito deve seramenizado, evitado e/ou extinto. No inícioda década de 80, o Brasil já tinha apresen-tado uma abertura em direção à democra-cia, tendo em vista que a elevação assusta-dora da dívida externa, a inflação, o baixopoder aquisitivo dos trabalhadores e o au-mento dos juros, impossibilitaram a susten-tação do modelo econômico implantado noinício da ditadura de 64. Em 1978, os tra-balhadores, por terem adquirido um eleva-do nível de consciência política, se conven-ceram da necessidade de fortalecer a suaorganização, deflagrando muitas grevesneste período (Chenso e Kupper, 1998).

Um novo campo de estudo tinha co-meçado a ser produzido dentro da Psicolo-gia no contexto do trabalho: o da saúdemental e trabalho. A inclusão dos estudossobre a saúde mental do trabalhador se deua partir da prática interdisciplinar constru-ída na década de 80, quando a expressãoSaúde do Trabalhador surgiu no Brasil atra-vés do Movimento pela Reforma Sanitária,em contraponto aos modelos hegemônicosimplantados pelas práticas da Medicina doTrabalho, Engenharia de Segurança e Saú-de Ocupacional. A diferença do modeloatual de saúde do trabalhador para o ante-rior se dava pela concepção de que o traba-lhador é um sujeito ativo no processo de

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saúde-doença, devendo intervir/participarnas ações de saúde, o que se contrapõe àidéia anterior de um sujeito passivo, toma-do como objeto da atenção da saúde (Nar-di, 1999). Esta mudança do enfoque rede-finiu a maneira da Psicologia compreendera saúde mental do trabalhador. Antes, osproblemas advindos da relação ser huma-no-trabalho não eram concebidos comoproblemas relacionais. O contexto do tra-balho só era considerado como uma refe-rência para o ajustamento do trabalhador,e não como um fator constitutivo do adoe-cimento e da saúde mental, como passou aser compreendido após a década de 80 (Tit-toni, 1999).

Este período foi marcado ainda pordois acontecimentos na área da Psicologiano contexto do trabalho no Brasil, fatos es-tes contraditórios e vinculados a diferentescompromissos políticos. Um deles foi omovimento questionador, proveniente daPsicologia Social crítica, com relação ao fa-zer da Psicologia no contexto das relaçõesde trabalho, que era considerado pelos te-óricos críticos como um fazer comprome-tido com a classe dominante e com a ma-nutenção do status quo do sistema capitalis-ta. Este movimento se colocou em oposi-ção ao modelo de Psicologia Social dos Es-tados Unidos, fundamentado nos pressu-postos positivistas de causa/efeito, cujosprincipais elementos são a objetividade, aexperimentação/comprovação, a neutrali-dade e a generalização (Guareschi, 2001).

O outro movimento foi o surgimentodos CCQ’s (Círculos de Controle de Quali-dade), os quais se fundamentaram no en-volvimento e na participação dos trabalha-dores, mediante uma identificação positivacom o processo de trabalho, objetivando aeconomia, a racionalização e a melhoria daqualidade final do produto (Morro, 1999).Segundo Vico (1986), o CCQ serve maispara intervir na comunicação verbal entrechefias e grupos do que para contribuir comas transformações no sistema de trabalhoem si, tendo em vista que sua metodologiabaseia-se em reuniões de discussão sobre amelhoria da qualidade dos produtos para a

satisfação do cliente. Outras críticas são re-alizadas ao CCQ por Fonseca (1984) e Sa-lemo (1985). Estes autores apontam o CCQcomo uma estrutura paralela, em que osintegrantes continuam subordinados à hi-erarquia formal, não dando oportunidadespara mudanças no processo produtivo, sen-do que sua implantação nem sempre estáatrelada a uma política de participação. Narealidade, o interesse político e econômicodos donos de empresa eram implantar aQualidade Total objetivando a certificaçãodo ISO 9000. Canha (1998) menciona quea busca pelo certificado era mais por finscomerciais do que pela própria qualidadedos seus produtos. Se por um lado, eramdirigidas críticas ao “lobo-mau da Psicolo-gia”, parafraseando Codo, por outro, a ati-vidade de implantação da Qualidade Totalnas organizações engrossava a lista das ati-vidades do psicólogo.

O início desta nova fase/face da Psi-cologia no contexto do trabalho brasileirofoi atravessado por uma crise econômicaem 1983, que provocou desemprego emlarga escala, e a decorrência foi a reduçãodos quadros de pessoal de forma hierár-quica. Os primeiros a serem desemprega-dos foram os trabalhadores não qualifica-dos, e em seguida os de nível superior,dentre eles os psicólogos. Nas organiza-ções, quem sofreu diretamente foram osprofissionais de Recursos Humanos (Mou-ra, 1986), e uma das saídas dadas por es-tes profissionais à crise foi o trabalho au-tônomo de consultoria. Esta crise econô-mica gerou a precarização das relações detrabalho. Nos últimos vinte anos o empre-go formal vem sendo substituído peloemprego informal, o emprego sem regis-tro. Sendo este clandestino, dispensa oempregador de arcar com as taxas tributá-rias do empregado, como o fundo de ga-rantia, 13o salário, aviso prévio, férias etc.No entanto, muitas empresas de grandeporte não podem ser coniventes com es-tas práticas ilegais e então reduzem seusgastos substituindo empregados formaispor trabalhadores temporários, que são for-necidos por empresas locadoras de servi-

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ços de mão-de-obra temporária ou porprestadores de serviço (Singer, 2000).

O ideário neoliberal apresentou comoproposições: a contração da emissão mo-netária, a elevação das taxas de juros, a di-minuição de taxação sobre os altos rendi-mentos, a abolição de controles sobre os flu-xos financeiros, a criação de níveis massi-vos de desemprego, o controle e repressãosindical, o corte dos gastos sociais pela des-montagem dos serviços públicos e um am-plo programa de privatizações (Netto,1990).Estes fatos nos levam a crer que o valor di-recionado às atividades práticas foi produ-zido “pelas exigências do desenvolvimentotecnológico, da crescente transformação daciência em força produtiva [...]” (Santos,1999, p. 200).

Assim, vendo-se impelida para dire-ções opostas, “a universidade pôde tomarcada uma delas sem mudar de lugar” (ibi-dem). Desta maneira, podemos supor que amanutenção de atividades de fases/faces daPsicologia no contexto do trabalho, as quaiscompreendem objetivos mantenedores dostatus quo do sistema capitalista, tais comoaquelas hegemônicas da Psicologia da In-dústria e da Psicologia Organizacional, co-labora na resolução dos problemas das clas-ses empresariais; enquanto a inclusão dasatividades da Psicologia do Trabalho favo-rece os “grupos sociais dominados” (ibidem).Talvez por isso, podemos compreenderporque o Zeitgeist positivista, apesar de tersido superado por outros paradigmas, estápresente em todos os momentos da histó-ria da Psicologia no contexto do trabalho.

O pluralismo teórico permeandoa formação do psicólogono contexto do trabalho

Conforme dissemos anteriormente, anecessidade das universidades em atende-rem os apelos do mundo industrial e os domundo dos trabalhadores, colabora para aprodução de concepções teóricas das maisdiversas. Conseqüentemente, a falta de re-cursos financeiros do Estado para investi-

mento nestas produções gerou a centrali-zação dos mesmos nas mãos de agências,como por exemplo, grandes empresas in-teressadas nos ganhos de produtividade, oque impulsiona o crescimento de produ-ções científicas que colaborem com a ma-nutenção do status quo capitalista. O incen-tivo à busca por recursos externos, não es-tatais, acaba por privilegiar a investigaçãoaplicada, o que fortifica as relações univer-sidade-indústria. A autonomia docente naescolha dos temas para investigação come-ça a se fragilizar quando os temas passamtambém a serem definidos pelos interessesdas agentes financiadores das pesquisas. Poroutro lado, as pressões de orientações polí-ticas e sociais exigem das IESs produçõesmais críticas, que denunciem as contradi-ções do sistema capitalista, como a exclu-são social, o empobrecimento do operaria-do, o aumento do desemprego, a baixa qua-lidade de vida, que são mais evidenciadasem países com uma economia menos de-senvolvida, como o Brasil. Diante este fogocruzado, as IESs começam a perder seusvalores da ética científica, tais como “[...] ocomunismo, o desinteresse, o universalis-mo, o cepticismo organizado [...]” (Santos,1999, p. 204). Esses aspectos nos levam apensar sobre duas questões. Uma delas é anecessidade de atender a interesses distin-tos que propicia o aumento da pluralidadeteórica na produção científica. A outra é estamesma pluralidade que também acarretadificuldades para a política departamentaldos cursos de Psicologia:

[...] os programas foram construídos assim,não foi alguém que chegou lá e construiu,teve uma discussão, inclusive agora está ha-vendo uma grande discussão porque o cur-rículo vai mudar. Estão vendo assim, estra-tégias, que tipo de psicólogo a faculdadequer formar. Essa discussão envolve profes-sores/as, envolve alunos/as [...], existem reu-niões por semestre, reuniões anuais e quesão discutidas essas coisas. [...] de vez emquando surge algum tipo de necessidade,que são feitas reuniões assim, de nível, comose chama [...].

Os planos são construídos pelos do-

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centes integrantes da subárea de Psicologiano contexto do trabalho: “[...] na verdade nóssentamos e discutimos [...]. Discutimos no cole-tivo da área”. Do coletivo do departamentode Psicologia, passando pela subárea, che-gamos a “[...] um grupo de professores/as queeram responsáveis pela disciplina. Então eles/asmontavam um programa, já dentro de um en-cadeamento prévio, pra não fugir da cadeia eesses/as três professores/as submetiam o progra-ma à área e depois ao departamento”.

A política de construção dos planos deensino em outra IES corrobora com a idéiado individualismo. Nessa instituição, do-cente tem autonomia para construir o pla-no de ensino da disciplina a qual ministra-rá seu conteúdo:

A construção do plano acho que é muitosimilar às outras Universidades. Os profes-sores constroem os planos de ensino, passapor uma comissão que avalia os planos, masavalia mais do ponto de vista pedagógico,assim..., as questões pedagógicas, estrutu-ras, coerência interna, se tem uma progra-mação, se não tem, se cumpre, é aquela coi-sa mais administrativa, e o professor cons-trói seu plano, tem absoluta autonomia.

Apesar dos planos serem construídospelos docentes das disciplinas, os avais fi-nais são centralizados nas mãos de umapessoa, não oficialmente instituída comocoordenadora do eixo de disciplina:

[...] os/as docentes discutem bibliografias dasnovidades e algumas adaptações de conteú-do programático [...], mas é o coordenadorde disciplinas que vai dar, vamos dizer as-sim, um encaminhamento de uma matériacom a outra e aí vai ser aquela pessoa quevai poder falar: esse conteúdo está demais,esse aqui está de menos.

Notamos que esta política centraliza-dora forja um movimento na construçãodos planos, que a princípio parece ser cole-tivo. Sendo o objetivo desta IES normati-zar os planos “pra que todo mundo fale a mes-ma linguagem”. A idéia de igualdade pareceser imposta hierarquicamente, e não con-quistada pelo coletivo.

Podemos observar que, de uma for-

ma geral, a política de construção dos pla-nos de ensino das IESs envolve os docen-tes da subárea de Psicologia no contextodo trabalho. No entanto, um profissionalrefere à pluralidade teórica nesta subáreade sua IES:

[...] nosso curso é muito plural [...], quan-do a gente fala subárea do trabalho a gen-te está englobando a subárea organizacio-nal ou a subárea das pessoas preocupadasnas relações entre comportamento e orga-nizações. E aí temos, digamos assim, li-nhas de trabalho que vão no sentido depensar as organizações mais como insti-tuições, ou como processos quase que so-ciopsicológicos, menos necessariamenteorganizacionais ou do trabalho. Eu tenhouma atuação mais do ponto de vista deuma Psicologia do Trabalho típica, comorientação mais ergonômica, com forteincidência orgânica, mas aí tem tambémos psicólogos docentes organizacionais,tem os psicólogos formados na subáreaorganizacional mas com mestrado ou dou-torado na área da administração, então sãopsicólogos mais organizacionais [...].En-tão tem um espectro, e tem um Psicólogodo Trabalho formado/a em Social, douto-rado em Social que tem uma preocupa-ção, vamos dizer assim, mais comunitáriaou próxima disso, o trabalho dos movi-mentos sociais, o trabalho como modo deconstrução de subjetividade dos proces-sos sociais [..].

Diante esta diversidade teórica, comoos docentes conseguem oficializá-las nosplanos de ensino? É neste momento queem algumas IESs, a política departamen-tal esbarra em dificuldades. Se por um ladoa IES abre espaço para que a subárea sejacomposta por docentes com concepçõesteóricas distintas, o qual não podemos ne-gar ser um espaço rico e fértil, por outroesta mesma riqueza demonstra se perderno projeto pedagógico, quando este deveser orientado para o mercado de trabalho.Observamos a política da educação para otrabalho quando Freitas (2000) nos colocaque o Projeto Pedagógico “[...] como ins-trumento de ação política, deve propiciarcondições para que o cidadão, ao desen-

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volver suas atividades acadêmicas e pro-fissionais, paute-se na competência e nahabilidade, na democracia, na cooperação,tendo a perspectiva da educação/forma-ção em contínuo processo como estraté-gia essencial para o desempenho de suasatividades” (p. 15).

Apesar desse autor reconhecer asmudanças nas relações do mundo do tra-balho pelo processo de globalização, asaída que dá para a formação continuapautada, principalmente, pelas exigênci-as do mercado de trabalho. Sendo assim,quais modelos teóricos melhor atenderi-am estas exigências? E exigências dequem? Das classes hegemônicas? Da clas-se dos trabalhadores? De ambas? As res-postas para estas perguntas ficam a cargodas próprias IESs; contudo, a dificulda-de em defini-las no coletivo de cada su-bárea, e principalmente no curso de Psi-cologia, dá-se justamente porque as con-cepções teóricas dos docentes encon-tram-se comprometidas com macropolí-ticas, sejam elas reacionárias ou revoluci-onárias. Assim, ao mesmo tempo em queo mundo acadêmico é incitado a atenderas demandas do mundo do trabalho nassuas mais diversas contradições, de quesão exemplos os problemas relacionadosà necessidade da produtividade em opo-sição àqueles referentes à exclusão social,também é exigida uma definição da polí-tica pedagógica do curso, o que abarca,entre outros aspectos, a elaboração dosplanos de ensino. Sendo assim, podemossupor que, quanto mais pluralismo teóri-co um curso - ou mesmo uma subárea -apresentar, mais dificuldades haverá emdefinir seu projeto pedagógico, assimcomo na construção dos seus planos deensino. Não queremos dizer com isto queo ideal seria um curso que apresentasseum reducionismo teórico, pois perderiasua riqueza na produção de conhecimen-tos, mas que a dicotomia entre a políticapedagógica e a pluralidade do conheci-mento foi produzida pela própria contra-dição estabelecida entre o mundo da uni-versidade e o mundo do trabalho.

Como os profissionais se posicionamperante tais contradições? Que análises fa-zem da subárea da Psicologia no contextodo trabalho a que pertencem? Verificamosque eles apresentam os mais diversos posi-cionamentos. Alguns demonstram conhe-cimento sobre tais contradições, apontan-do por conseqüências diversas, outros re-ferem um posicionamento mais fechadosobre a subárea:

[...] enquanto a gente tem possibilidadesque a pluralidade nos revela, boas possi-bilidades de formação; entretanto na horaem que a gente vai formular o plano deensino, aí tem dificuldade administrati-va, de pensar a Psicologia como se admi-nistrativa. Quando a gente vai formularos planos de ensino, aí começa uma difi-culdade de abstrair toda essa minha pos-sibilidade e acabo formatando os planos,através do efeito reducionista pedagógi-co. [...] Você vai ver nos Planos de Ensinoaquelas categorias às vezes clássicas, àsvezes muito antiga [...], o psicólogo virouzelador do conhecimento.

Isto alerta sobre a redução do plura-lismo teórico a temas clássicos. Talvez aforma de não instituir mudanças no pla-no de ensino que contemplem temas maispolêmicos seja mantê-lo em seu estilo clás-sico, através dos temas já institucionaliza-dos pela própria subárea no decorrer dahistória desta. A subárea pode ser tomadacomo “muito problemática”, quando se ob-serva o pluralismo teórico nas formas di-ferenciadas dos docentes ministrarem omesmo conteúdo formalizado nos planosde ensino:

[...] eu vejo que, pelo programa eu nãoteria muito dessas minhas preocupaçõescom os alunos. O outro professor que di-vide aula comigo tem uma visão diferen-te.[...], ele tem uma visão crítica, mas, eleé muito mais do capital do que do traba-lho. [...] nosso programa é o mesmo, masele dá aula do jeito dele e eu dou aula deoutro jeito. As discussões que eu introdu-zo nas aulas são diferentes das discussõesque ele introduz.

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Assim, o que parece imperar é a igual-dade pela normatização, e não a liberdadee autonomia do docente. Por um lado aexigência é que a subárea seja unívoca; to-dos devem falar a mesma linguagem, lin-guagem esta que é definida pela Comis-são de Avaliação do Ensino Superior, ins-tituída pelo MEC; contudo, por outrolado se perde a riqueza que a pluralidadeteórica proporciona. Ao analisar a subáreade Psicologia no contexto do trabalho deuma IES, pode-se perceber que a forma-ção nesta subárea é “[...] fracionada, nãoexiste uma linha de pensamento coesa, firme,tipo: nós vamos preparar o aluno para umaatuação “x”, dentro da área da Psicologia doTrabalho”. O que o profissional critica éjustamente a falta de um projeto pedagó-gico que dê coerência para a formaçãonesta subárea:

[...] a disciplina de Psicologia do Trabalhotem que sofrer reformulação, não sei se muitogrande [...], ela está muito atrasada em ter-mos de conteúdo teóricos, da preparaçãodo/a aluno/a para ele/a ir pro estágio [...],ela é Chiavenato ainda, ela é muito indus-trial, muito organizacional, uma visão daorganização e não uma visão do indivíduo[...], os/as alunos/as ficando vendo recruta-mento, seleção, cargos e salários, avaliaçãoe desempenho [...].

Podemos observar a falta de coerênciano projeto pedagógico da subárea de Psi-cologia no contexto do trabalho, do cursodeste profissional quando o mesmo intitu-la a disciplina como Psicologia do Trabalhoe contempla conteúdos relativos a fase/faceda Psicologia da Indústria. Um outro pon-to é a atribuição de conteúdos, como o re-crutamento, seleção, cargos e salários e ava-liação e desempenho a “[...] uma visão or-ganizacional e não a uma visão do indiví-duo [...]”. Porém, tais atividades não estãoligadas a fase/face da Psicologia Organiza-cional e sim a fase/face da Psicologia Indus-trial, bem como estas atividades apresen-tam concepções que contemplam o indiví-duo e não a organização.

A fase/face da Psicologia do trabalho

iniciou seus estudos não mais se preocu-pando com a questão da produtividade, daeficiência, da normatização e do controledo comportamento humano como as duasanteriores, mas sim com o que é produzidonas relações ser humano-trabalho, no con-texto das políticas liberal e neoliberal. Osofrimento mental do trabalhador, a psico-dinâmica do trabalho, as relações entre sub-jetividade e trabalho são temas hegemôni-cos desta subárea.

Por expandir o contexto de estudo,a Psicologia do Trabalho deparou-se comnovas formas de relações de trabalho,dentre elas o mercado informal. A fragili-zação das instituições formais no Brasil,pelo processo de abertura da economiaao comércio e investimentos exteriores eo aumento da taxa tributária com empre-gados registrados que as empresas demédio e pequeno porte se vêem incum-bidas de pagar ao governo, aumentam omercado informal e o mercado terceiriza-do (Singer, 2000 p. 112), o que se confi-gura num montante de mão-de-obra au-tônoma, a maioria sem respaldo das leistrabalhistas. Este autor menciona que, noBrasil, em 1990, “[...] 54% eram de em-pregados informais, 30,5% eram autôno-mos, 13,7% eram mão-de-obra familiar eapenas 1,8% eram empregados”. Estesdados nos mostram os índices de excluí-dos do emprego formal, índices altíssimosde exclusão social.

Verificamos com isto uma nova dico-tomia dentro da subárea da Psicologia nocontexto do trabalho. Se, até então, as ati-vidades das fases/faces da Psicologia da In-dústria e da Psicologia Organizacional, ori-entavam por uma educação para o merca-do de trabalho, passou a se perguntar: aque mercado deve orientar a Psicologia doTrabalho? Para o mercado formal ou infor-mal? Ou para os dois? Se esta não orientapara o mercado produtivo, mas fundamen-ta-se na intenção de denunciar o que as re-lações de trabalho têm produzido na sub-jetividade do trabalhador, como sobrevive-rá no mercado de trabalho? Estamos dian-

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te de contradições na formação de psicólo-go para a subárea da Psicologia do Traba-lho. E tais contradições são colocadas deforma a fazer oposição ao movimento daPsicologia Social crítica:

[...] essa área social invadiu a Psicologiado Trabalho, e os professores novos come-çaram a ter uma interpretação daquelas te-orias, daqueles textos, de uma forma mui-to radical. Então chegou ao ponto em quea gente não faz Psicologia do Trabalho, massó faz Psicologia Social [...]. Então a áreade Psicologia do Trabalho na universida-de era uma área de Psicologia Social [...].Do ponto que tá, nós só ficamos critican-do, criticando, criticando [...]. Então agente não ensina pro aluno, por exemplo,como fazer seleção de pessoal. Quando elesai da universidade e vai arrumar um tra-balho, o primeiro que ele arruma é pra fa-zer seleção, aí o aluno volta desesperado,ou não volta e faz do jeitinho que a empre-sa faz e acha que não ta cumprindo o pa-pel dele. Embora seja um sistema perver-so, ele existe, ele está aí, é ele que mantéma sociedade.

Estes tipos de posicionamentos ilus-tram contradições da formação nesta su-bárea. Ao mesmo tempo em que se mos-tram críticas, também revelam concepçõesnaturalistas ou formas diferenciadas decompreender o mercado de trabalho:

[...] nós começamos a configurar as disci-plinas de trabalho em torno das mudançasdo trabalho mesmo. Então a gente já tra-balhava com o setor informal naquela épo-ca [...], estamos trabalhando com uma par-te do mercado mais voltado para as políti-cas públicas [...], muito por conta da aber-tura do mercado em absorver grande partedos formados na saúde pública, e porqueessa abertura coloca também o trabalho narede pública e não só no universoorganizacional [...].

Apesar de se evidenciarem preocupa-ções políticas para o público, para o coleti-vo, para as questões sociais, ou seja, umapolítica que transcende as questões pauta-das somente nas relações produtivas domercado, a dificuldade de intersecção com

outras áreas e outros departamentos, oca-sionada pelo pluralismo teórico e pela au-tonomia departamental, é também reco-nhecida:

[...] nós temos uma questão no curso, osdepartamentos são muito autônomos e agente tem muita dificuldade, até porque te-mos muitas diferenças teóricas, de produ-zir intersecções entre os departamentos.Então hoje a gente tem uma discussão coma clínica na área da saúde pública, a genteestá tentando interseccionar com a clínicapra poder discutir políticas de saúde e tra-balho que nos interessa, mas ainda é umacoisa bem recente. Mas depende muito dasatividades que as pessoas tem entre elas, issonão tenha dúvida. [...] a gente vai criando,vai fazendo parcerias com as pessoas assimque a gente tem entendimento, e às vezesnão é só dentro do departamento, mas tam-bém outros departamentos.

A Psicologia do Trabalho, por abarcaro tema do trabalho e por este ser de inte-resse de várias disciplinas, apresenta como“[...] uma característica recente [...] a inte-ração e a interdisciplinaridade. Conheci-mentos de áreas afins são úteis à compre-ensão do fenômeno humano na situaçãode trabalho [...]” (Sampaio, 1998, p.29-30).Este autor cita algumas disciplinas com asquais a Psicologia do Trabalho se intersec-ciona: Administração, Sociologia do Traba-lho, Antropologia das Organizações, Filo-sofia, Ergonomia, Engenharia, Direito Tra-balhista, Medicina, Economia e outras áre-as da Psicologia.

O interesse do Estado pelo desmon-te do aparelho público veio favorecendoo fortalecimento do campo privado. Ocompromisso do MEC com o ajuste neo-liberal incentiva o aumento dos convêni-os com empresas e IESs privadas, o queproporciona, na relação universidade -mundo do trabalho, o aumento de pes-quisas aplicadas para atender ao interes-se destes campos (Silva JR. e Sguissardi,1997). De outro lado, o aumento da ex-clusão social por este tipo de política pro-porcionou o surgimento de movimentospolíticos que denunciassem a exclusão

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social. A criação do PT, em 1980; a cria-ção da ABRAPSO, também neste ano,dentre outros, foram alguns destes movi-mentos que também incitaram a univer-sidade a assumir sua responsabilidade so-cial. Esta subárea, antes dos anos 80, apre-sentava duas fases/faces históricas criadase geradas por uma concepção adaptacio-nista e mantenedora de relações autori-tárias. Com a pressão dos movimentos deresistência por parte, especialmente, dooperariado, surgiu a Psicologia do Traba-lho, questionando a concepção de ser hu-mano-trabalho. Não mais somente com-prometida com o aumento da produtivi-dade, mas também com as vivências e ex-periências estabelecidas pelo trabalhadorna relação com o processo de trabalho,esta nova fase/face, amplia seus camposde intersecção com outras disciplinas.

Considerações finais

Se por um lado, a pluralidade teóricarepresenta uma riqueza, pela multiplicida-de de análises sobre produções científicas,por outro, a diversidade no conhecimentopode gerar competitividade e uma tendên-cia a se tomar posturas sectárias em relaçãoa este. Estas questões então, algumas ve-zes, presentes nas IES, dificultando assim,o crescimento para o projeto pedagógicodo curso de Psicologia.

Diversas razões podem justificar opluralismo do conhecimento na formaçãoda Psicologia no contexto do trabalho; maso que parece ser primordial é reconhecerque a diversidade teórica é também pro-duzida por posturas epistemológicas cu-jos pressupostos possuem maneiras dife-renciadas tanto para a compreensão de serhumano quanto para as análises deste nassuas relações no processo de trabalho. Po-demos supor que é justamente a crise per-manente das relações de trabalho que semostra mais explícita nos países ditosemergentes, pois gera uma tensão entre asteorias que procuram falar a linguagem do

capital e aquelas que o criticam. Essa ten-são denota a necessidade de que, em mo-mentos de transição paradigmática, as di-cotomias ou polarizações sejam superadasem questões fundamentais como, porexemplo, a importância do trabalho navida das pessoas.

Ao invés de tentar contrapor as açõestransformadoras às adaptacionistas, pode-mos pensar em um movimento de idéias eações que não se reflitam em sínteses rápi-das ou superficiais sobre os processos his-tóricos e políticos que constroem as áreasde conhecimento da formação profissio-nal. Entretanto, não podemos ser ingênu-os para pensar que uma teoria crítica, acurto prazo, venha deflagrar e irrompercom o sistema mantido à custa das rela-ções de trabalho e produção vigentes e, queesta, também não possua contradições.Além disso, os conhecimentos de cunhocrítico tendem, com o passar do tempo oupela continuidade das práticas sem refle-xões, a serem incorporados pelos discur-sos hegemônicos como forma de apropri-ações para uso próprio.

O sistema procura resolver as suas con-tradições atacando justamente os pontosque mais o deflagra, apropriando-se do dis-curso de seus críticos. A concepção críticanão pode estabelecer “por si” os fundamen-tos de oposição, mas procurar mostrar oque está posto, na tentativa de dar visibili-dade das relações contraditórias ou hege-mônicas, como forma de criar condiçõespara que se possa vislumbrar novas relaçõesde trabalho.

É neste sentido que consideramos deextrema importância o conhecimento daPsicologia no contexto do trabalho e a re-flexão epistemológica que permeiam as te-orias que fundamentam esta área. Direci-onando suas atividades para as relações detrabalho, essa área do conhecimento e oprofissional dela têm lidado, historica-mente, com questões hegemônicas queprocuram manter políticas adaptacionis-tas no campo das relações de trabalho. Apreponderância desse modelo inclina-se

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para a produção de concepções naturalis-tas sobre a análise dos objetos sociais. Porisso, a necessidade de discussões sobre asimplicações políticas que teorias hegemô-nicas podem produzir através das práti-cas da Psicologia no contexto das relaçõesde trabalho.

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Recebido em 04/2004Aceito em 05/2004