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ANAIS XII SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL 180 GT 2 – NOVOS DESAFIOS DAS FAMÍLIAS: ENTRE AUTONOMIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS PARTO ANÔNIMO E A APARENTE COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNTAMENTAIS DA MÃE EDO FILHO 254 Anonymous childbirth and the apparent clash between the fundamental rights of the mother and the child Tainah Simões Sales 255 Jéssica Cristina Melo De Matos 256 Resumo No presente trabalho, analisou-se, na perspectiva da constitucionalização do direito civil, a viabilidade do parto anônimo ser inserido no Brasil, o que os críticos e defensores alegam sobre essa possibilidade, e os assuntos polêmicos acerca do instituto, quais sejam, as colisões entre os direitos: à liberdade de ser mãe e à dignidade do filho; e ao sigilo da mãe e ao conhecimento da identidade genética do filho. Concluiu-se, mediante pesquisa pura, qualitativa e bibliográfica, que o parto anônimo é uma opção para minimizar os impactos causados pela gravidez indesejada e que o Projeto de Lei n. 3.220/08 não trouxe conflito de normas, como se alega. Pelo contrário, os direitos em análise se complementam. Entretanto, para ser posto em 254 Artigo submetido em 06/03/2016, pareceres de aprovação em 02/05/2016 e 05/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016. 255 Doutoranda e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada. E-mail: [email protected]. 256 Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada.E-mail: [email protected].

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PARTO ANÔNIMO E A APARENTE COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNTAMENTAIS DA MÃE EDO FILHO254

Anonymous childbirth and the apparent clash between the fundamental rights of the mother and the child

Tainah Simões Sales255

Jéssica Cristina Melo De Matos256

ResumoNo presente trabalho, analisou-se, na perspectiva da constitucionalização do

direito civil, a viabilidade do parto anônimo ser inserido no Brasil, o que os críticos e defensores alegam sobre essa possibilidade, e os assuntos polêmicos acerca do instituto, quais sejam, as colisões entre os direitos: à liberdade de ser mãe e à dignidade do filho; e ao sigilo da mãe e ao conhecimento da identidade genética do filho. Concluiu-se, mediante pesquisa pura, qualitativa e bibliográfica, que o parto anônimo é uma opção para minimizar os impactos causados pela gravidez indesejada e que o Projeto de Lei n. 3.220/08 não trouxe conflito de normas, como se alega. Pelo contrário, os direitos em análise se complementam. Entretanto, para ser posto em

254 Artigo submetido em 06/03/2016, pareceres de aprovação em 02/05/2016 e 05/05/2016, aprovação comunicada em 17/05/2016.

255 Doutoranda e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada. E-mail: [email protected].

256 Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Advogada.E-mail: [email protected].

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prática, é necessário reformar alguns termos do projeto e avaliar se o Brasil tem a infraestrutura para adotar o instituto.

Palavras-chave: Parto anônimo. Colisão de direitos fundamentais. Dignidade da pessoa humana. Liberdade.

Abstract

In this paper, we analyze the feasibility of anonymous childbirth in Brazil from the point of view of the constitutionalization of civil law, what critics and supporters claim about this possibility, and the controversial issues regarding this institute, namely the clash between different rights: the freedom of being a mother and the dignity of the child; the confidentiality of the mother and the knowledge of the genetic identity of the child. Our conclusion, based on a pure, qualitative and literature research, is that anonymous childbirth is an option to minimize the impacts caused by unwanted pregnancies and that Bill number 3.220/08 has not brought a conflict of rules, as has been claimed. Instead, these rights are complementary. However, in order to put it into practice, some of the terms contained in the bill have to be changed and we must assess whether Brazil has the infrastructure required to adopt anonymous childbirth.

Keywords: Anonymous childbirth. Clash between fundamental rights. Human dignity. Freedom.

Sumário

1 Introdução. 2 Conceito de parto anônimo. 3 Os projetos de lei sobre o parto anônimo no Brasil. 4 Legalização do Parto anônimo no Brasil. 5 Liberdade de ser mãe x dignidade do filho. 6 Identidade genética do filho x sigilo da mãe. Conclusão. Referências.

1 Introdução

Anteriormente, o Direito Civil era marcado, essencialmente, por características patrimonialistas e apartadas dos valores constitucionais. O Código Civil de 1916, influenciado, sobretudo, pelo Código de Napoleão, apresentava características de um ordenamento individualista e voluntarista (TEPEDINO, 2008), com ênfase aos papeis dos contratantes e dos proprietários. Afirmava-se que o Código Civil era a Constituição do Direito Privado.

A esfera privada não sofria interferências do Direito Público e pautava-se na segurança e na estabilidade das relações. O que determinaria o sucesso ou as falhas de um negócio seria a maior ou menor capacidade e astúcia dos contratantes (IRTI, 1992), uma vez que as regras permaneciam praticamente imutáveis. A liberdade de

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contratação era ampla e o princípio da autonomia da vontade prevalecia no Direito Privado. imutáveis. A liberdade de contratação era ampla e o princípio da autonomia da vontade prevalecia no Direito Privado.

Com o passar do tempo, essa visão não mais conseguia atender às demandas e às necessidades sociais. Passou-se por um processo de transformação, anunciando os primórdios de um Direito Civil Constitucional. A Constituição Federal de 1946 consolidou, em seu corpo, temas antes reservados à esfera privada, como a função social da propriedade, a família e as limitações das atividades econômicas (TEPEDINO, 2008). Leis extravagantes passaram a ser editadas com frequência cada vez maior, superando a exacerbada importância conferida ao Código Civil da época.

Entretanto, somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 foi possível verificar uma nova fase do Direito Civil, que passou a ser analisado e valorado conforme os ditames e princípios constitucionais. Observa-se a etapa de polissistemas ou microssistemas do Direito Privado, sobretudo caracterizados pela maior quantidade e importância conferida aos estatutos. Para Natalino Irti (1992), é a chamada “era da descodificação”. E a Constituição tem, nessa leitura, o papel de unificar os sistemas e harmonizar a diversidade de fontes normativas encontradas (TEPEDINO, 2001).

Para Pietro Perlingieri (2005, p. 191-192), o ordenamento só pode ser concebido enquanto uno e sistemático. A Constituição é a norma que possibilita o equilíbrio e a uniformidade de valores e princípios. É, nas palavras de Konrad Hesse (1991, p. 18), “a ordem geral objetiva do complexo de relações da vida”.

Nesse diapasão, as relações privadas não podem ser analisadas somente sob o prisma do Direito Civil. Os princípios, os valores e as regras da Constituição devem lhes conferir legitimidade e delimitá-las, sob pena da existência de uma ordem jurídica incoerente e injusta.

Tem-se, portanto, a era da constitucionalização das relações privadas ou a formação de um Direito Civil Constitucional. Dentre as consequências da evolução da doutrina civilista, apontam-se as seguintes: a unificação da ordem jurídica, com as normas constitucionais atuando como fundamento dos demais ramos do direito e a relativização da dicotomia entre Direito Público e Privado; e a simplificação do ordenamento jurídico, a partir da adoção da Constituição como referência para interpretação e aplicação das diferentes normas vigentes (SILVA, 2005, p. 48-49).

É nesse contexto de constitucionalização do direito civil que se pretende analisar o instituto do parto anônimo. Este é a faculdade conferida à mãe que não quer ter seu filho de entregá-lo aos hospitais, sem que sua identidade seja revelada, e com o acompanhamento social, psicológico e médico. A alternativa dá liberdade à gestante de assumir ou não a maternidade, sem que seja responsabilizada civil ou penalmente, e sem transtornos psicológicos, sociais e profissionais a ela.

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Esse instituto tem na sua essência a “Roda dos Enjeitados ou dos Expostos”, tradição iniciada na Europa e trazida ao Brasil, na época da Colônia, permanecendo até meados de 1950. Tratava-se de janelas ou portas de rodinhas colocadas geralmente nas Santas Casas de Misericórdia, onde as mães que não queriam seus bebês os colocavam e os giravam para o interior das instituições, tocando uma campainha ou sirene para alertar os responsáveis.

Bom seria se o país já tivesse uma educação e um planejamento familiar de qualidade, entretanto, enquanto ainda não há, deve-se se concentrar em uma forma de tornar a vida mais digna de mães e filhos que assim o são em decorrência de uma gestação indesejada. O parto anônimo é uma sugestão para solucionar essa questão. Os pais podem optar por entregar seus filhos, após o nascimento, aos hospitais, e deixar que os responsáveis da instituição tomem as devidas providências para a adoção, sem ter que passar por todos os procedimentos jurídicos, que podem vir a constrangê-los, ao invés de abandonarem seus filhos, ou, ainda que os assumam, tratem-nos sem afeto.

Faz-se importante o estudo e a pesquisa sobre parto anônimo como uma opção à gravidez indesejada e suas consequências no ordenamento jurídico, a fim de esclarecer os pontos relevantes sobre o assunto e, sobretudo, para demonstrar a importância desse instituto para a valorização da dignidade humana de mães e filhos. Há de se ressaltar que, no Brasil, não há lei própria sobre o parto anônimo, porém o Instituto Brasileiro de Direitos da Família (IBDFAM) foi o autor do projeto de lei sobre o parto anônimo, atualmente arquivado.

A metodologia utilizada basear-se-á em um estudo descritivo-analítico, desenvolvido através de pesquisa, quanto ao tipo, bibliográfica, por meio de explicações fundamentadas em trabalhos publicados sob a forma de livros, revistas, dissertações, artigos, em suma, publicações em imprensa escrita e via internet, que trataram sobre o tema em estudo; e documental, mediante dados oficiais estatísticos de instituições públicas e privadas, projetos de lei e legislações aplicadas ao tema.

Neste trabalho, analisa-se a viabilidade de inserir o parto anônimo no Brasil, pesquisando o que os críticos e os defensores dizem a respeito; e avaliando as aparentes colisões de normas que alguns autores alegam estar presente no projeto de lei sobre o parto anônimo, como direito à liberdade da mãe, em contrapartida ao direito à convivência familiar do filho, e o direito à identidade genética do filho contraposto ao direito ao sigilo da mãe.

2 Conceito de parto anônimo

O parto anônimo é a faculdade conferida à mãe que não quer ter seu filho de entregá-lo aos hospitais, com acompanhamento social, psicológico e médico, sem que sua identidade seja revelada, exceto sob ordem judicial e por motivos de doença

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genética, com fulcro no Projeto de Lei nº 3.220/08. Essa alternativa dá liberdade à gestante de assumir ou não a maternidade, sem que seja responsabilizada civil ou penalmente, e sem gerar transtornos psicológicos, sociais e profissionais a ela, conforme se extrai do Projeto de Lei 3.220/08, que versa sobre o instituto do parto anônimo.

O supracitado conceito está em consonância com o que Freitas ([s.d], on line) afirma como parto anônimo: „direito da mãe que entrega o(a) filho(a) para adoção em permanecer desconhecida e, portanto, isenta de imputação civil ou penal, podendo, ainda, realizar todos os procedimentos médicos antes, durante ou após o parto”. Bem como com o que diz Consalter (2010, p. 325):

[…] parto anônimo, prática provavelmente a ser implantada em breve no Brasil, que permite à gestante abdicar do direito à maternidade e seus respectivos ônus, o que se faz mediante o encaminhamento do recém nascido diretamente à adoção, com o apoio e assistência do hospital em que deu à luz e também do Conselho Tutelar do local do nascimento.

Alguns autores utilizam a expressão “parto em anonimato”, mas tem o mesmo significado de parto anônimo, que é “instituto jurídico, que tem o objetivo principal de preservar a mãe que quer ter o parto sem que seja identificada, já que não deseja criar aquele filho gerado em seu ventre.” (PEREIRA, 2009, p. 160)

Observa-se que a finalidade maior desse instituto é garantir o direito à vida com dignidade ao filho, e, em segundo plano, a liberdade da gestante de não assumir a maternidade. Entretanto, traz uma dúvida em relação a até que ponto pode-se priorizar o sigilo da identidade da mãe para um filho, que gostaria de saber a sua descendência genética. A questão é que não há uma unanimidade entre os juristas sobre a necessidade de regulamentar o parto anônimo. Há autores como Fonseca (2008) que trazem várias críticas a essa faculdade conferida a mãe.

Fonseca (2008) aponta seis críticas sobre o instituto, quais são: 1) o parto anônimo não irá descriminalizar o abandono, pois adotar não é crime; 2) não há inovação quanto ao sigilo do nome dos pais biológicos, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) menciona apenas a necessidade do registro dos pais adotivos, e não dos biológicos, alegando que o parto anônimo não altera muito a realidade; 3) muitas mães atualmente não necessariamente requerem sigilo total, como antigamente, em que praticavam adultério, por exemplo, apenas desejam ofertar melhor condição de vida a seus filhos, tendo em vista a situação de pobreza; 4) a legalização do parto anônimo estimulará mulheres a preferirem o abandono a outros meios meios de entrega e adoção, além de depender apenas da vontade da genitora materna; 5) crianças devem ter acesso aos dados de seus ascendentes; 6) o parto anônimo dá abertura para tráfico de crianças, e sobrecarrega a responsabilidade dos profissionais de saúde.

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Entretanto, é importante analisar todas as seis críticas apontadas pela referida autora. Sobre a primeira: no momento em que o instituto isenta a mãe de responsabilização penal por entregar o filho ao hospital quer dizer que não a penaliza por estar deixando o filho, sem identificação. E esse ato configura abandono. Quanto à segunda: o parto anônimo inova quanto ao sigilo do nome dos pais biológicos, pois, na adoção, é necessário que se registre os nomes dos genitores, e, depois de cancelado o poder familiar, que se altera o registro. Logo há uma identificação dos genitores no momento em que antecede a adoção, a qual não existe no parto anônimo em nenhuma fase.

Em relação à terceira crítica: o parto anônimo é uma faculdade, caso não optem pelo sigilo conferido por esse instituto, nada obsta que observem as regras da adoção. Sobre a quarta: o parto anônimo não é abandono, é um meio mais célere de providenciar a adoção com menos burocracia, apesar de que, de fato, tem uma falha, em razão de depender da vontade apenas da genitora materna, entretanto essa lacuna será novamente apontada no tópico que relata sobre o projeto de lei, no qual se observará que omite o consentimento do genitor paterno em realizar o parto em anonimato.

Quanto à quinta crítica: o parto anônimo prevê a possibilidade de os nascentes terem acesso às informações de seus genitores, por requerimento proferido ao juiz ou à direção do hospital em que a criança nasceu. Em relação à sexta: o instituto em análise não dá margem à prática ilegal de tráfico de crianças, pois essas ficaram sob a proteção do hospital, além de que não é possível que uma lei seja capaz de evitar todas as barbaridades humanas. E quanto ao aumento de encargos aos hospitais, o parto anônimo, assim como as demais medidas públicas, não será inserido sem que haja uma mudança no quadro de funções dos funcionários, e, caso precise, contratar-se-á mais profissionais capacitados. Sabe-se que toda inovação estatal requer uma organização orçamentaria.

Logo, observa-se que o parto anônimo é uma opção para evitar os abandonos cruéis e abortos clandestinos, mas é um instituto com muitas críticas e que, para ser instaurado no Brasil, requer várias mudanças, como no orçamento e na estrutura dos hospitais, ou seja, é preciso um esforço considerável por parte do Estado.

3 Os projetos de lei sobre o parto anônimo no BrasilNo Brasil, não há lei própria sobre o parto anônimo, porém o Instituto Brasileiro

de Direitos da Família (IBDFAM), tendo em vista o contexto de abandonos de recém-nascidos, foi o autor do projeto de lei sobre o parto anônimo, atualmente arquivado. Em 11 de fevereiro de 2008, foi apresentado o projeto de lei 2.747/08 de autoria do deputado Eduardo Valverde, pertencente ao Partido dos Trabalhadores em Rondônia.

Esse projeto tinha objetivo de evitar o abandono por parte das genitoras e tratava sobre o parto anônimo. Foi composto por 12 (doze) artigos, os quais

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asseguravam a todas as mulheres, indistintamente, a faculdade do parto anônimo, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). As gestantes teriam a opção, antes e durante o parto, de sigilo quanto à sua identificação, sendo, porém, advertidas sobre o impacto jurídico e a relevância de terceiros terem conhecimento sobre a ascendência genética da criança e teriam acesso a acompanhamento psicológico.

Ademais, as mães deviam fornecer possivelmente dados sobre a sua saúde e do outro genitor, além de outras informações relevantes sobre a origem do recém-nascido, as quais, todavia, só seriam reveladas pelo hospital em caso de ordem judicial ou de doença genética do filho. Após o nascimento, os profissionais da saúde encaminhariam o bebê à adoção depois de 08 (oito) semanas, contadas a partir do dia em que nasceu, momento em que é possível que os parentes biológicos possam se arrepender e querer a criança de volta. Por fim, destaca-se que a parturiente anônima não será responsabilizada civil ou penalmente por ter deixado o filho no hospital.

Posteriormente, veio o Projeto de Lei 2.834, de 19 de fevereiro de 2008, de autoria do deputado Carlos Bezerra, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro do Mato Grosso (PMDB/MT). Esse projeto instituiu o parto anônimo, mas apenas incluiu o inciso V no artigo 1.638 do Código Civil e o parágrafo único. Esse acréscimo disse respeito apenas a mais uma medida de suspensão ou extinção do poder familiar, caso os pais fizessem uso da faculdade do parto anônimo. Esses dispositivos afirmavam o seguinte:

Art. 1º: Esta Lei institui o parto anônimo. ‘Art. 1.638….: V - optar pela realização de parto anônimo. Parágrafo único. Considera-se parto anônimo aquele em que a mãe, assinando termo de responsabilidade, deixará a criança na maternidade, logo após o parto, a qual será encaminhada à Vara da Infância e da Adolescência para adoção.’

O último projeto de lei de número 3.220, de 09 de abril de 2008, do deputado Sérgio Barradas, do Partido dos Trabalhadores da Bahia e do Instituto Brasileiro de Direito de Família, buscava a normatização do parto anônimo, e, se comparado com os dois primeiros projetos, estava mais completo. Formado por 16 (dezesseis) artigos em uma lei própria, ao invés de estar inserido em outra já existente, como Código Civil. Assim como o primeiro projeto analisado (2.747/08), assegurava a faculdade do parto anônimo a todas as mulheres indistintamente, antes e durante o parto, por meio do SUS, isentando-as de responsabilidade civil e criminal, além de acompanhamento psicossocial, sendo advertidas das consequências jurídicas e da importância de suas informações genéticas e do outro genitor não serem transmitidas, estarem em sigilo.

Diferentemente do primeiro projeto, concedia o prazo de apenas 10 (dez) dias para o encaminhamento do recém-nascido à adoção, ao invés de 08 (oito) semanas, conferindo celeridade ao procedimento. Acrescentou que, se a adoção não se iniciasse em 30 (trinta) dias, o bebê seria inserido no Cadastro Nacional de Adoção. Além disso, o Juizado da Infância e da Juventude se encarregaria de realizar o registro civil provisório

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com um prenome à criança, sem que fossem completados os espaços correspondentes à filiação, apesar de ser dado à mãe biológica a opção de escolher o nome ao filho. Destaca ainda que a parturiente anônima não poderia ser submetida a nenhum processo judicial que envolvesse maternidade. Os profissionais de saúde e o diretor do hospital onde aconteceu o parto anônimo seriam os responsáveis por providenciar as formalidades referentes à criança ao Juizado da Infância e da Juventude.

Incluía também o dever a quem encontrasse um recém-nascido abandonado de entregá-lo a uma unidade de saúde, a qual, em, no máximo, 24 (vinte e quatro) horas, deveria relatar a ocorrência ao Juizado da Infância e da Juventude. Além disso, quem achasse essa criança deveria ir ao referido Juizado informar sobre todas as condições do local onde viu o abandonado e a respeito desse infante, com o fim de colaborar na identificação do responsável por esse crime. Ademais, quem encontrou o abandonado teria preferência na adoção, caso tivesse interesse. Por fim, a partir do momento em que esse projeto virasse lei, as unidades de saúde que fizessem parte do SUS teriam o prazo de 06 (seis) meses para se prepararem para atenderem gestantes e crianças no anonimato. Bem como afirmava que os hospitais e postos de saúde poderiam construir espaços próprios para receber os recém-nascidos, sem que a identificação da genitora fosse revelada.

É válido mencionar as justificativas apresentadas aos projetos. O primeiro (2.747/08): alegou o contexto do abandono cruel de crianças no Brasil e o desespero das grávidas indesejadas que optam por aborto ou infanticídio; relembrou a origem do instituto na Roda dos Enjeitados na Idade Média; acrescentou que o instituto está presente em países como Áustria, Estados Unidos, França, Itália, Luxemburgo, Bélgica; afirmou que se refere a um rápido processo de adoção, que evita que o infante aguarde muitos anos por um abrigo; e conceituou como a opção à gestante de ser atendida pelo SUS, com identificação sob sigilo, apesar de ressaltar que a criança não terá uma identidade até que seja providenciada a adoção por uma família.

O segundo (2.834/08) trouxe como motivos: a questão dos abandonos cruéis e a angústia das mães, assim como o fez o primeiro projeto; ressaltou a relevância que a regulamentação legal do instituto trará à sociedade, como meio de amparar a vida das crianças e a saúde da mãe, e de reduzir abortos. O terceiro (3.220/08) justificou a sua criação com os seguintes argumentos: criminalizar o abandono não será suficiente para evitar essa situação; meio de substituir abandono por entrega; encaminhamento da criança à adoção possibilitar-lhe-á melhores condições de vida; não se busca omitir a maternidade, mas assegurar a liberdade de ser ou não mãe, direito à vida e à convivência familiar do filho.

Oliveira (2011) observa que os três projetos de lei sobre parto anônimo não fizeram menção ao genitor paterno e à imprescindibilidade de sua anuência para encaminhar seu filho à adoção, sem que sua identidade fosse revelada. Além disso, a mesma autora ressalta o parecer da Comissão de Constituição e

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Justiça da Câmara dos Deputados sobre os referidos projetos. Sobre o primeiro projeto (2.747/08), alegou falta de técnica. A respeito do segundo (2.834/08), não se referiu sobre o procedimento do parto anônimo. Quanto ao terceiro (3.220/08), foi omisso em relação à presença do pai. Todavia, Oliveira (2011) relembra que apesar dessas falhas, o projeto traz uma adaptação à Roda dos Enjeitados.

O projeto de lei 3.220/08 e seus apensos foram arquivados em 2010. A Comissão de Seguridade Social e Família opinou no sentido de que os projetos eram inconstitucionais. (OLIVEIRA, 2011) A Comissão de Constituição e Justiça de Cidadania rejeitou os projetos, sob o fundamento de que: o instituto é um retrocesso à época da roda dos expostos; já há aparato legal que tutele a adoção; ao invés de o Estado incentivar o parto anônimo, deveria formular políticas públicas contra abandono e de incentivo à adoção. (BRASIL, CÂMARA, 2009).

Apesar de não haver previsão legal regulamentando o parto anônimo, destaca-se o procedimento que vem sendo adotado pela Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal, que possibilita às gestantes a faculdade de não assumir a maternidade, sem que seja necessário abandonar ou abortar. (IBDFAM, 2008, on line)

Esse procedimento denomina-se “Pasta Especial de Gestante”. Por meio desse, a mulher procura uma Seção de Adoção, a qual colherá as informações sobre o motivo da entrega, advertirá sobre as consequências jurídicas desse ato, e avaliará a possibilidade de o infante ficar com a mãe. Esses dados são remetidos à Vara, que providenciará um ofício à unidade de saúde mais próxima à gestante, para se responsabilizar pelo pré-natal, e por comunicar ao respectivo Juízo sobre os exames e o parto. Após o parto, à genitora lhe é perguntado novamente sobre a vontade de doar o filho, cujo relatório é enviado à Vara, para uma audiência com os agentes da justiça (juiz, promotor e defensor público). Optado pela adoção, a mãe volta para casa, e a criança é cadastrada para adoção e, em seguida, levada a uma das famílias registradas na Vara da Infância e da Juventude. (IBDFAM, 2008, on line)

Ante o exposto, percebe-se que já existiram três projetos de lei sobre o assunto. O segundo não relatou o procedimento, e o terceiro era mais completo que o primeiro, no que se refere ao detalhamento do funcionamento do instituto. Mas os três foram omissos quanto à figura do genitor paterno, tão importante quanto à mãe, na formação do filho, conforme a Constituição Federal. Os projetos, ao invés de emendados com o fim de melhorar as falhas, foram arquivados tendo em vista a previsão de adoção e a necessidade de incentivo a políticas públicas e não de leis que regulamentem o assunto. Todavia, seria melhor que os projetos fossem mais discutidos com o objetivo de demonstrar à sociedade que não se trata de adoção tradicional ou de incentivo à gravidez indesejada, mas de um meio de evitar abandonos cruéis e abortos clandestinos.

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4 Legalização do Parto anônimo no Brasil

É importante analisar se é viável lei sobre o parto anônimo para amenizar os impactos decorrentes de uma gravidez indesejada ou se bastam as políticas públicas vigentes. Sobre o assunto, Pereira (2009) afirma que o abandono sempre existiu, inclusive em países desenvolvidos, em que as políticas públicas têm mais eficácia, o que implica dizer que esse problema social não seria resolvido apenas com uma lei ou política, tendo em vista que se trata de uma questão intrínseca aos seres humanos, como a moral e a ética. O referido autor alega que a roda dos expostos foi uma tentativa de minimizar as consequências de uma gestação contra a vontade, mas acredita que uma lei sobre o parto anônimo não sanaria o contexto de abandonos no Brasil, apesar de diminuir seus índices. Pereira (2009) ressalta ainda que o Estado brasileiro deveria ao menos se preocupar em efetivar o planejamento familiar, previsto pela Lei 9.263/96, ou o que regulamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul (on line) se posiciona também contrário à inserção do parto anônimo em lei, sob o fundamento de que uma legislação não irá resolver o problema desde o primórdio, tendo em vista o mesmo entendimento de Pereira (2009) de que a mulher abandona o filho moral ou fisicamente por motivos psicológicos, e de que uma norma não é capaz de interferir nas atitudes da genitora, além de concordar com Fonseca (2008) de que já há aparatos legais próprios no Brasil, como no artigo 166 do ECA.257 Ademais, o órgão ministerial do Rio Grande do Sul (on line) afirma que a entrega de filhos em hospitais sem a presença do Conselho Tutelar, do juiz, do promotor e do defensor público é um retrocesso, uma vez que não haverá o controle judicial nesse procedimento. Para o Ministério Público do Rio Grande do Sul (on line) a omissão do Poder Judiciário na entrega de filhos para uma família substituta dá margem para a adoção à brasileira, em que não há o registro dos pais biológicos.

Diferentemente do que pensam os autores supracitados, Dias (2013) diz que a lei sobre parto anônimo não iria extinguir os abandonos trágicos no país, entretanto colaboraria com a redução dessas condutas que vão de encontro à dignidade da pessoa humana.

Welter (2008, on line) concorda, assim como Dias (2013), com a inserção de lei sobre parto anônimo, sob o fundamento de que trará melhores condições de vida às crianças, que, muitas vezes, são abandonadas. Entretanto, o autor traz sugestões relevantes para a inserção da lei, com o argumento de que os

termos do projeto de lei não observa a condição humana tridimensional, a qual engloba o ser no mundo genético, afetivo e ontológico. Logo, não permitir que o

257 Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem aderido expressamente ao pedido de colocação em família substituta, este poderá ser formulado diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes, dispensada a assistência de advogado.

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ser humano tenha conhecimento de seus pais biológicos é suprimir uma parte de sua existência, que se refere ao ser genético, o qual interfere na origem, nos princípios, na ética.

Para Welter (2008), a genitora não pode ficar no anonimato de forma permanente. Ela tem a faculdade de que o seu parto não seja público, mas não pode retirar a opção da criança de saber quem são seus pais biológicos. O projeto não omite essa garantia de o filho conhecer seus pais via ordem judicial, todavia Welter (2008, on line) sugere que o texto fique mais claro nesse sentido, inserindo, por exemplo, a expressão “assegurar direito ao anonimato e à saúde gratuita à mulher”, o que confere à genitora a possibilidade de não ter sua identidade relevada para a sociedade, sem suprimir o direito à personalidade de conhecimento à ascendência genética do filho.

Oliveira (2011) também defende a normatização do parto anônimo, entretanto também concorda com o Welter (2008), e alega que o termo “parto anônimo” é inadequado. O correto é “parto em sigilo”, em consonância com o que dispõe o projeto de lei. “Anonimato” dá a ideia de que não será possível conhecer a identidade dos genitores. Porém, o projeto de lei 3.220/08, em seu artigo sexto, confere, como exceção, que o filho tenha acesso aos dados de seus ascendentes, tendo em vista ser um direito fundamental da criança, do qual ninguém pode dispor, como melhor será explicado no terceiro tópico.

Freitas ([s.d.], on line) também considera relevante a legalização do parto anônimo, mas recomenda algumas mudanças. O referido autor afirma que o projeto apenas menciona a figura da genitora, ignorando os demais membros familiares biológicos, como genitor, avós, logo sugere:

[…] uma pesquisa no endereço fornecido pela mãe e no cartório onde esta tem seu registro civil, entre outros atos, a fim de saber se há cônjuge ou companheiro conhecido, bem como avós maternos ou paternos, sob pena de a hipótese configurar-se seqüestro infantil praticado pela genitora (em relação ao pai e demais familiares) com o consentimento estatal.

Freitas ([s.d.], on line) recomenda também que especifique melhor como será o processo de adoção realizado pelos hospitais ou postos de saúde, utilizando o procedimento de adoção tradicional, buscando saber informações da adotada e dos adotantes. Assim como propõe a assistência jurídica à genitora do parto anônimo, para informá-la da consequência de entregar seu filho, de que não poderá mais requerê-lo de volta.

Diante do exposto, observa-se que as críticas giram em torno de que uma lei não seria suficiente para sanar a questão do abandono moral e físico, e que já existem medidas atuais que buscam resolver esse problema, como a lei do planejamento familiar e a adoção. Entretanto, essa política pública e esse procedimento não estão sendo suficientes, tendo em vista o contexto atual brasileiro.

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De fato, uma lei nunca encobrirá todas as mazelas sociais, mas a proposta legislativa é uma tentativa, que não custa ser posta em prática. Todavia, como alegam os defensores da normatização do parto anônimo, antes de ser inserida, é relevante rever alguns pontos, como não centralizar a decisão pelo parto anônimo apenas na mulher; especificar melhor o procedimento da adoção; inserir um acompanhamento jurídico; e esclarecer que o parto não será permanentemente no anonimato, será em sigilo, para a sociedade, mas não para o filho, o qual tem direito de conhecer a identidade de seus ascendentes.

Observa-se que, ao menos aparentemente, o parto anônimo lida com dicotomias de direitos: liberdade da mãe e dignidade do filho, bem como sigilo da mãe e identidade genética do filho. A seguir, serão abordadas essas colisões.

5 Liberdade de ser mãe x dignidade do filho

Uma solução para tentar conciliar o direito à liberdade da mãe e à dignidade do filho, diante do contexto da gravidez indesejada é a inserção do parto anônimo, conforme se entende abaixo:

O Projeto de Lei 3.220/08 procurava priorizar não somente a liberdade da genitora de não ser mãe, mas também a dignidade da criança indesejada, buscando evitar um abandono selvagem e oferecer condições para que ela possa seguir sua vida em um lar saudável. Logo, falar em liberdade da gestante de não ser mãe não significa afrontar a dignidade humana, mas contribuir para a eficácia dos direitos fundamentais. (OLIVEIRA, 2011, p. 71)

Nota-se que a liberdade da grávida de não ser mãe está relacionada com a dignidade do filho de não ter direito ao convívio familiar e/ou de não ter direito à vida, decorrente do abandono selvagem ou aborto clandestino. Logo, priorizar a liberdade da genitora é valorizar a dignidade do nascente.

Uma criança que está em um lar que não lhe deseja, que não lhe proporciona carinho, tem seu direito ao convívio familiar violado, com fundamento no artigo 19 do ECA258 e implicitamente no artigo 226 da Constituição Federal.259 Ressalta-se que o direito à convivência familiar é um direito fundamental, pois, em conformidade com o que dispõe o artigo 5º, § 2º da Constituição, são fundamentais não apenas os dispositivos expressos, mas também os implícitos. Lima (2007, on line) alega que os direitos fundamentais são os que têm “forte vinculação com o princípio da dignidade da pessoa humana.”

258 Art. 19 ECA: Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

259 Art. 226 CF/88: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

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Antes, o conceito de família valorizava a instituição em si, limitava-se no vínculo casamento e no pai como o mais importante, formando uma hierarquia entre os componentes do grupo, o que desvalorizava os demais laços afetivos entre os membros Mas atualmente esse entendimento mudou. O número de membros familiares diminuiu, a mulher passou a participar do mercado de trabalho, o que fez com que o homem não fosse o único responsável financeiro pelo lar, participando mais da rotina da casa, retirando a ideia de ente hierarquicamente superior em relação aos demais. Além disso, Estado e Igreja deixaram de interferir tanto nas famílias, e surgiram vários tipos familiares, como monoparental e homoafetiva, desconsiderando como principal o casamento e a figura do pai como único provedor. Hoje, o que define as famílias são os laços socioafetivos entre os membros, há um incentivo à dignidade humana de todos os envolvidos e à convivência familiar. (DIAS, 2013)

A dignidade da pessoa humana é o princípio basilar da Constituição Federal, segundo o seu artigo 1º, inciso III260, e é “um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão jurídica.” (NUNES, 2011, p. 60)

Importante fazer uma breve análise sobre o direito à vida, o qual adentra no âmbito do direito à dignidade humana e tem relação com o parto anônimo, tendo em vista que esse instituto previne abortos, o que reduz os números de mortes decorrentes desse procedimento. O parto anônimo não incentiva o aborto, tendo em visa que a gestante, uma vez ciente da faculdade de entregar seu filho ao hospital em que realizará o parto, não fará uso de uma pratica tão invasiva como é o aborto. Sabe-se que o direito à vida é um direito fundamental, conforme estabelece o artigo 5º, caput, da Constituição Federal261, entretanto há uma discussão se é um direito ou pressuposto de vários direitos, já que, a partir dele, partem outros. Além disso, discute-se se o correto seria falar em respeito à vida, e não em direito à vida, uma vez que esta precede a sociedade e o direito. Essa ideia é demonstrada no Pacto de São José da Costa Rica, no artigo 4º, alínea 1, o qual afirma que “toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida.” (OLIVEIRA, 2011, p. 64-65)

Observa-se que o projeto de lei em análise tutela os dois ângulos do referido direito, tendo em vista que objetiva evitar abandonos de crianças, e que essas possam conviver em um lar que lhe garanta saúde e meios para se desenvolver social e psicologicamente, sem agressões, físicas e verbais. Paulo e Alexandrino (2012, p. 120) também entendem que o direito à vida possui essas duas vertentes, “sob o prisma biológico traduz o direito à integridade física e psíquica (desdobrando-se no direito à saúde, na vedação à pena de morte, na proibição do aborto etc.); em sentido

260 Art. 1º, III, CF/88: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:[…] a dignidade da pessoa humana.

261 Art. 5º, CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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mais amplo, significa o direito a condições materiais a uma existência condigna à natureza humana.”

Há uma dúvida em relação ao momento em que a vida passa a ser tutelada juridicamente, se é desde a concepção ou a partir do nascimento. Segundo o Código Civil, em seu artigo segundo262, a regra é que a vida é protegida com o nascimento, mas, excepcionalmente, desde a concepção, tendo em vista que se busca resguardar alguns direitos do nascituro. Assim como a legislação penal garante uma atenção maior ao nascente que ao nascituro, uma vez que penaliza mais severamente quem mata um ser vivo do que quem tira a vida de um ser em formação. O crime de aborto prevê pena de um a três anos de detenção, com fulcro no artigo 124 do Código Penal263, e tutela a vida do nascituro. O infanticídio pode ser penalizado de dois a seis anos de detenção, nos termos do artigo 123 da legislação penal264, e protege nascituro e/ou recém-nascido. Enquanto que o homicídio estabelece pena de reclusão de seis a vinte anos, tipificado pelo artigo 121 do CP265, e resguarda o direito à vida de um nascente. Logo, conforme o ordenamento jurídico brasileiro, é notória a proteção maior à vida extra-uterina que a intrauterina, apesar de que o nascituro não deixa de ser tutelado. (OLIVEIRA, 2011)

Outros dispositivos do Código Civil que reforçam a ideia de que a vida intrauterina já recebe tutela jurídica são os que retratam sobre curatela, no artigo 1.779, ao afirmar que: “dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar”; em relação ao reconhecimento da filiação, no parágrafo único do artigo 1.609266, que confere a possibilidade do pai reconhecer o filho, quando este ainda não nasceu; e a respeito de o nascituro já poder receber doações e ser beneficiado de herança, com fulcro nos artigos, respectivamente 542 e 1.798.267 (MELO, 2015)

Diante do relato sobre direito à vida, protegido desde a concepção, segundo a legislação brasileira, observa-se que os projetos de lei sobre parto anônimo estão em consonância com o ordenamento jurídico nacional, já que tutelam tanto o direito à vida do nascituro, a fim de evitar abortos, quanto à vida do nascente, com o objetivo de que

262 Art. 2º, CC/02: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

263 Art 124, CP: Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos.

264 Art. 123, CP:Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos.

265 Art. 121, CP:Art. 121. Matar alguém. Pena - reclusão, de seis a vinte anos.266 Art. 1.609. O reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento é irrevogável e será feito:[…]

Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou ser posterior ao seu falecimento, se ele deixar descendentes.

267 Art. 542. A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal. Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.

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não haja abandonos, concomitantemente com o direito à liberdade da gestante de não assumir a maternidade. Enquanto que o aborto apenas prioriza a liberdade da genitora de não ser mãe, esquecendo o direito à vida do nascituro. Portanto, não há um conflito entre direito à vida do filho com o direito à liberdade da mãe com a institucionalização do parto anônimo, pelo contrário, eles estão em consonância, complementando-se. (OLIVEIRA, 2011)

Sobre o direito à liberdade, questiona-se se há uma proteção à liberdade de não assumir a maternidade e a paternidade e, em caso positivo, se pode ser praticado de forma anônima. Esse direito está previsto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal e é considerado fundamental de primeira dimensão, assim como os demais já mencionados. O direito à liberdade engloba a liberdade de convicção e de expressão de pensamento, o que significa que a mulher, mesmo que esteja grávida, tem a autonomia de pensar se tem condições ou não de ser mãe.

Entretanto, a questão não é sobre o que a gestante acredita ou não. Os projetos legislativos em análise se referem a uma liberdade positiva, pois, com a inserção da lei do parto anônimo, seria possível que a mulher escolhesse

entre ser ou não mãe. O ordenamento jurídico atual traz a faculdade de não assumir a maternidade e a paternidade por meio da adoção, porém a burocracia e o sistema jurídico desse procedimento fazem com que as genitoras se desestimulem, devido ao preconceito com quem deixa as crianças nos orfanatos. (OLIVEIRA, 2011)

A diferença do parto anônimo para a adoção vigente é que a genitora apenas entregaria o filho, e o hospital seria o responsável pelo processo de adoção. A mãe biológica não teria que figurar como litisconsorte necessário passivo no processo de adoção, o que é necessário nessa ação, como explica Dias (2013), uma vez que precisa haver primeiro a destituição do poder familiar para, depois, os pais socioafetivos poderem registrar a criança como filho. Além disso, a genitora não precisaria passar pela audiência perante juiz e promotor de justiça para manifestar sua vontade de entregar o filho, como prevê o artigo 166, §§3o4o do ECA.268

Apesar de essa burocracia referente à adoção vigente buscar o melhor para a criança, concomitantemente, não incentiva os pais biológicos a realizarem o procedimento, tendo em vista o tanto que serão expostos. Se eles já não querem o filho, geraram-no contra a vontade, então não desejam demonstrar a aversão à criança para o Estado. O objetivo do projeto é evitar abandono físico e moral. E ocorre que pais que não cobiçam seus filhos, em geral, são pobres, sem ou com pouca

268 Art. 166 § 3o: O consentimento dos titulares do poder familiar será colhido pela autoridade judiciária competente em audiência, presente o Ministério Público, garantida a livre manifestação de vontade e esgotados os esforços para manutenção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa. § 4o O consentimento prestado por escrito não terá validade se não for ratificado na audiência a que se refere o § 3o deste artigo.

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instrução, e, quando têm conhecimento sobre o processo de adoção, não têm vontade de passar por todo o trâmite legal. Para eles, é mais conveniente deixar o infante na rua, ou levá-lo para casa, sem dar toda a atenção e carinho necessários.

Exercer a maternidade, para algumas mulheres que engravidaram indesejadamente, pode ser uma tortura psicológica, uma afronta à sua liberdade, sendo considerada uma forma de prisão, já que causa alterações no âmbito social, profissional e hormonal. Como o aborto é crime, e as políticas públicas de planejamento familiar no Brasil não têm eficácia, como já observado no primeiro capítulo deste trabalho, é válida a tentativa de verificar como seria o contexto brasileiro em relação ao abandono com a institucionalização do parto anônimo por meio de lei: priorizaria a liberdade de não ser mãe, sem que ofendesse o direito à dignidade da pessoa humana do filho. (OLIVEIRA, 2011)

O aborto é considerado pelo Código Penal crime contra a vida. Esse crime é assim classificado, tendo em vista que a doutrina e a legislação não priorizam apenas a vida extra, mas também a intrauterina. Segundo Mirabete e Fabbrini (2012, p. 58), protege-se a vida intrauterina, “uma vez que desde a concepção (fecundação do óvulo) existe um ser em germe, que cresce […] se movimenta […] executando funções típicas de vida.”

Ante o exposto, conclui-se que não há colisão de direitos no projeto legislativo em comento, pelo contrário, há uma harmonia, um complemento, o direito à liberdade da mãe valoriza o direito à convivência familiar do filho, e vice versa. Além disso, o parto anônimo protege também o direito à vida intra e extrauterina, bem como a dignidade da pessoa humana.

6 Identidade genética do filho x sigilo da mãe

Outra discussão que envolve o tema é sobre o direito ao sigilo da mãe e à identidade genética do filho. Há criticas no sentido de que o parto anônimo prioriza o primeiro em relação ao segundo, tendo em vista que, no projeto de lei, para o filho conhecer os pais biológicos precisa entrar com um pedido judicial, quando atingida a maioridade, ou se tiver alguma doença genética, solicitando a informação diretamente ao hospital.

Sobre essa polêmica, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (on line) afirma que a omissão da ascendência genética na certidão de nascimento pode trazer complicações, como um possível impedimento no futuro para casar, com fulcro no artigo 1.521, incisos I e IV do CC.269 Entretanto, é mais importante se preocupar

269 Art. 1521Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

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com um contexto muito mais sério de abandonos, abortos, de violação à convivência familiar do que com uma remota possibilidade, a qual pode ser resolvida, por meio de um requerimento judicial.

O direito ao conhecimento da ascendência genética não está previsto expressamente no ordenamento jurídico brasileiro, assim como direito à personalidade, entretanto pode-se dizer que estão implicitamente na Constituição Federal, tendo em vista que têm relação com a dignidade da pessoa humana, conforme estabelece o artigo 5º, § 2º, da Carta Magna.270 Além disso, o Brasil assinou o Pacto de São José da Costa Rica, o qual prevê expressamente o direito à personalidade, em seu artigo terceiro271. Bem como o artigo 5º, inciso X da Constituição traz um rol exemplificativo de direitos da personalidade, e o inciso II do mesmo dispositivo, por mencionar direito à liberdade e à dignidade humana, refere-se consequentemente ao direito à personalidade. (OLIVEIRA, 2011)

A análise do direito à personalidade no presente estudo se volta em torno do direito aos pais de não terem sua identidade revelada e do filho ter conhecimento sobre seus genitores, com a adoção do parto anônimo. O direito ao conhecimento à ascendência genética não deve se confundir com o estado da filiação, o qual “decorre da estabilidade dos laços afetivos construídos no cotidiano de pai e filho, constitui fundamento essencial da atribuição de paternidade ou maternidade” (LÔBO, 2011), e está previsto no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente.272

Lôbo (2011) diferencia os dois direitos, sob o fundamento de que a Constituição, no momento em que igualou os filhos biológicos aos socioafetivos, não priorizou mais a ascendência genética como critério determinante para a filiação. Para o referido autor, a origem genética está atrelada ao direito da personalidade, em dois sentidos. Um, relacionado ao direito à vida, de que é importante saber quem foram seus genitores, no caso de, no futuro, descobrir alguma doença genética. Dois, no contexto de que todos devem poder descobrir quem foram seus ancestrais, para conhecer sua identidade biológica. Enquanto que estado de filiação se refere à relação entre pai e filho, não necessariamente por meio de um vínculo biológico, mas afetivo. Sarlet (2012) reforça o entendimento de Lôbo de que o direito ao conhecimento à ascendência genética é o mesmo que o direito à personalidade.

Oliveira (2011) traz um exemplo em que há o conhecimento à origem biológica sem que necessariamente haja o reconhecimento do estado de filiação, qual seja, a

270 Art. 5º, § 2º CF/88: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

271 Art. 3º, Pacto de São José da Costa Rica: Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica. Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.

272 Art. 27, ECA: O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça.

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reprodução artificial, em que os filhos podem saber quem cedeu o material genético, mas os doadores não precisam reconhecer a paternidade ou maternidade.

Discute-se se o anonimato sobre a identidade dos genitores permitida no projeto de lei sobre o parto anônimo não afeta o direito à personalidade do filho em relação ao conhecimento à ascendência genética. O projeto 3.220/08 não viola o referido direito, tendo em vista a possibilidade de se conhecer quem foram seus pais biológicos mediante ordem judicial, conforme o seu parágrafo único do artigo sexto273, e diretamente ao diretor do hospital em caso de doença genética. Logo, observa-se que não há colisão real entre os direitos à liberdade e à personalidade.

É que, quando a mãe entrega o filho ao Estado e seus dados ficam resguardados, aparenta-se que houve uma preferência entre o direito à liberdade da genitora em relação ao da personalidade do bebê.

Entretanto essa regra do sigilo não é absoluta. Ocorre uma relativização ao sigilo dos dados da mãe, em relação ao direito ao conhecimento à ascendência genética do filho, através da possibilidade de requerer, mediante ordem judicial ou requisição diretamente ao hospital, as informações referentes à identidade biológica do filho nascido oriundo de parto anônimo. (OLIVEIRA, 2011)

Tendo em vista tudo o que foi exposto, conclui-se que o projeto legislativo em análise não confronta o direito ao sigilo da mãe com o direito ao conhecimento à ascendência genética do filho. O primeiro aparenta ser priorizado, para que as gestantes indesejadas, ao invés de abandonar seus filhos ou realizar aborto, realizem o parto sem que terceiros tomem conhecimento. Entretanto, esse sigilo é relativizado pela possibilidade de o filho, no exercício de seu direito à personalidade, do qual a mãe biológica não pode dispor, tenha acesso, via judicial ou requerimento diretamente ao hospital, à identidade de seus ascendentes.

Conclusão

Os críticos aos projetos de lei sobre parto anônimo alegam haver colisão entre liberdade da mãe e dignidade do filho e sigilo da mãe e identidade genética do filho. Entretanto, essas dicotomias não existem. Esses direitos se complementam, tendo em vista que, ao priorizar à gestante a faculdade de entregar seu filho ao hospital para que este realize a adoção, sem a burocracia do referido procedimento vigente, está valorizando a liberdade de não ser mãe, e, concomitantemente, concedendo à criança a opção de estar em um lar que lhe proporcione carinho, atenção, afeto, necessários ao bom desenvolvimento físico e psíquico. Bem como o sigilo da mãe está resguardado perante a sociedade, mas o filho pode conhecer quem foram seus

273 Art. 6º, parágrafo único, Projeto de Lei 3.220/08: Os dados somente serão revelados a pedido do nascido de parto anônimo e mediante ordem judicial.

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ascendentes, uma vez que se trata de um direito personalíssimo, irrenunciável da criança, desde que faça o requerimento pela via judicial.

Além disso, há autores que relatam que uma lei não seria capaz de resolver a questão do abandono e dos maus tratos, advinda de uma gravidez indesejada, e de que já existem a adoção e o planejamento familiar. Todavia, essas medidas não estão dando os resultados esperados, como se sabe.

Ademais, é preciso repensar em alguns aspectos do projeto, como incluir a anuência do genitor paterno, um acompanhamento jurídico, reformular o texto, mencionando «parto em sigilo», e não «em anonimato», para não sugerir a ideia de que será um segredo permanente, mas temporário, que não exclui o direito do filho de conhecer a identidade de seus pais biológicos.

Acrescenta-se que o parto anônimo requer uma reorganização na infraestrutura e no quadro de funcionários dos hospitais e postos de saúde que realizarão o parto anônimo, tendo em vista que esse instituto requer profissionais capacitados na área da saúde, da psicologia, e que realizem o processo de adoção, além de que as unidades de saúde abrigarão as crianças enquanto o procedimento é feito, o qual prevê um lapso temporal, após o parto, para avaliar se os pais biológicos realmente querem entregar ou não o filho.

Diante do exposto, conclui-se que, em tese, o parto anônimo, após algumas alterações em seu projeto, é uma alternativa para solucionar os problemas que envolvem o contexto de uma gravidez indesejada, entretanto, na prática, o Brasil, antes de legalizá-lo, precisaria reorganizar-se política e financeiramente, tendo em vista as mudanças necessárias para que a sua inserção ocorra conforme previsto na teoria.

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Referências

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