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Maria Antónia Pedroso de Lima
GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS
Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Lisboa
1999
INDICE
Índice
Índice de quadros
Agradecimentos
Introdução............................................................................................................... 1
1. A construção de um objecto de estudo e objectivos de análise ......................... 1
2. Objectivos e organização do texto .................................................................... 7
3. Trabalho de campo com grandes famílias empresariais de Lisboa ................. 10
4. Opções metodológicas e conceitos fundamentais ............................................ 21
Capítulo I
Grandes empresas familiares ................................................................................ 29
1. As grandes empresas familiares como objecto de estudo ................................. 31
2. Estudos sobre empresas familiares nas ciências sociais .................................... 41
3. Grandes grupos económicos de base familiar em Portugal: uma perspectiva histórica ............................................................................... 52
Capítulo II
Grandes famílias empresariais de Lisboa ................................................................ 69
1. As grandes famílias de Lisboa formam uma comunidade de práticas ................. 69
2. Estudos sobre elites na antropologia ........................................................................ 80
3. A importância da família na formação e na continuidade das grandes empresas ....................................................................................................... 84
4. A importância do passado e da tradição: a adesão ao ideal aristocrático .......... 89
5. A formação das novas gerações ............................................................................. 98
Capítulo III
Sócios e Parentes ................................................................................................ 111
1. Sócios e Parentes: dois jogos no mesmo tabuleiro ........................................... 113
2. A empresa familiar como elemento do parentesco .......................................... 124
3. Empresa e família simbolizam-se mutuamente ................................................ 133
Capítulo IV
A continuidade como ideal da família e do grupo social ............................... 145
1. De que falamos quando falamos de família ...................................................... 147
2. “Somos uma família antiga”: a importância do passado na organização do presente e na construção do futuro .......................................................... 155
3. Elementos de ancoramento da memória familiar ............................................. 163
4. Produzir a história da família ............................................................................ 174
5. A importância de ter o nome de família ........................................................... 183
6. Os nomes próprios como património familiar ................................................... 193
Capítulo V
Casamentos e descendentes ............................................................................. 207
1. Casamento: aliança entre indivíduos e relações entre famílias .......................... 209
2. Filhos, descendentes e sucessores ................................................................... 229
3. Casamento e herança: a devolução promove a continuidade ........................... 231
4. Afins: os novos membros da família ............................................................... 237
5. Divórcios: de como as práticas sociais não correspondem aos modelos culturais ............................................................................................................ 241
Capítulo VI
Homens de negócios e Gestoras familiares ...................................................... 247
1. Produzir diferenças num sistema igualitário: distinções de género entre a elite lisboeta .................................................................................................... 249
2. Formar homens como gestores ........................................................................ 260
3. Ser uma Senhora: a formação de “gestoras familiares” .................................... 275
4. Homens de negócios e gestoras familiares: a construção da complementaridade ................................................................................................... 288
Capítulo VII
O pé do dono é o adubo da terra ..................................................................... 299
1. O pé do dono é o adubo da terra: a importância de uma sucessão bem sucedida .................................................................................................. 301
2. A formação da vocação empresarial .............................................................. 308
3. A escola do trabalho: a valorização da aprendizagem pela prática ................... 314
4. A importância da formação profissional na produção de sucessores ............ 324
5. A transmissão de um capital compósito: o legado mais importante na produção de sucessores ................................................................................... 334
6. Herdar ou ganhar? Sangue e mérito como critérios na sucessão na empresa ......................................................................................................... 339
7. A lei das três gerações nas empresas familiares: o caso português .................... 351
Capítulo VIII
Conclusão ............................................................................................................. 367
Bibliografia ................................................................................................................... 383
ÍNDICE DE QUADROS
Quadro nº 1 - Sucessão da liderança na família Mendes Godinho .............. 48
Quadro nº 2 - Primeira definição de família usada por Mar ...................... 148
Quadro nº 3 - Segunda definição de família usada por Mar ...................... 149
Quadro nº 4 - Terceira definição de família usada por Mariana ................ 150
Quadro nº 5 - Quarta definição de família .................................................... 151
Quadro nº 6 - Linhas de transmissão das alianças......................................... 170
Quadro nº 7 – Linhas de transmissão do bule de doente ............................ 171
Quadro nº 8 - Transmissão de nomes masculinos ao longo de cinco
gerações de homens ............................................................... 194
Quadro nº 9 - Transmissão de nomes masculinos ao longo de quatro
gerações mistas ....................................................................... 195
Quadro nº 10 - Continuidade de laços de identificação através da
transmissão de nomes masculinos de familiares próximos 196
Quadro nº 11 - Continuidade de laços de identificação através da
transmissão de nomes de familiares próximos ...................... 197
Quadro nº 12 - Continuidade de laços de identificação através da
transmissão de nomes de familiares próximos .......................197
Quadro nº 13 - Nomes próprios masculinos transmitidos por famílias ....... 198
Quadro nº 14 - Nomes próprios femininos transmitidos por famílias.......... 199
Quadro nº 15 - Total de nomes próprios transmitidos por famílias.............. 199
Quadro nº 16 – Casamentos importantes para a família Espírito Santo ... 212
Quadro nº 17 – Alianças matrimoniais por famílias ................................... 213
Quadro nº 18 - Casamentos de descendentes de José Maria Espírito Santo e Silva
com sócios ......................................................................... 215
Quadro nº 19 - Número de divórcios nas grandes famílias ....................... 241
Quadro nº 20 - Sucessão na presidência das empresas da família Espírito Santo.... 262
Quadro nº 21 - Sucessão na presidência das empresas da família Mendes Godinho .. 263
Quadro nº 22 - Sucessão na presidência das empresas da família Pinto Basto............. 264
Quadro nº 23 - Sucessão na presidência das empresas da família Jerónimo Martins...265
Quadro nº 24 - Sucessão na presidência das empresas da família D’Orey ......... 266
Quadro nº 25 - Sucessão na presidência das empresas da família Queirós Pereira ....267
Quadro nº 26 - Sucessão na presidência das empresas da família Vaz Guedes ...... 267
Quadro nº 27 - Homens da família Mendes Godinho que trabalham nas empresas .272
Quadro nº 28 - Participação familiar nas empresas do Grupo Somague .... ...............274
Agradecimentos
O longo caminho de produção desta tese foi um percurso solitário durante o qual
recebi, no entanto, apoios fundamentais, sem os quais dificilmente teria conseguido
chegar ao fim da tarefa. A importância destes apoios não me permite esquecer que
afinal foram muitas as pessoas que participaram neste trabalho. A elas quero expressar a
minha mais profunda gratidão.
O meu primeiro agradecimento vai para o Professor Doutor João de Pina Cabral.
O rigor científico e a dedicação com que orientou esta tese foram decisivos para a sua
realização. Os comentários que fez às várias versões dos capítulos que fui produzindo
foram um estímulo permanente ao rigor científico e à imaginação antropológica. O
ânimo nas horas mais difíceis, a boa disposição e a amizade que soube dispensar em
doses fartas ao longo destes cinco anos foram, sem dúvida alguma, um dos ingredientes
indispensáveis neste percurso, ultrapassando largamente as obrigações inerentes à
“orientação”. Por tudo isto estou-lhe muito grata.
Para o cumprimento das várias fases da investigação tive o apoio de diversas
instituições: o ISCTE concedeu-me uma dispensa de serviço docente, que me permitiu
uma dedicação exclusiva à investigação; no Departamento de Antropologia devo
agradecer em particular ao Professor Robert Rowland, que tendo herdado a
coordenação da cadeira que lecciono, sempre fez tudo o que estava ao seu alcance para
que eu pudesse usufruir dessa dispensa, e à Dr.ª Ana Cristina Castro pelo seu incansável
apoio; a JNICT/FCT financiou a investigação com o projecto PCSH/C/ANT/851/95;
o ICS e o CEAS acolheram o referido projecto; a FLAD concedeu-me uma bolsa de
curta duração para pesquisa bibliográfica na Universidade de Berkeley, Califórnia.
A minha maior gratidão é, no entanto, para com as pessoas que se
disponibilizaram a falar sobre as suas vidas, familiares e profissionais, dispensando-me o
seu tempo e a sua atenção. Sem estas o trabalho nunca teria sido feito. Em particular
devo agradecer ao Dr. José Manuel Espírito Santo, à Sra. D. Mary Espírito Santo
Salgado, a Marta Mello Breyner (infelizmente
desaparecida entretanto), à Sra. D. Mathilde Mello Breyner, ao Comandante Ricciardi,
ao Dr. Manuel Fernando Espírito Santo, à Sra. D. Nina Espírito Santo, ao Sr Pedro
Queirós Pereira, à Sra. D. Isabel Juzarte Rolo, ao Dr. Bernardo, ao Dr. José Luis
D’Orey, ao Sr. Eng. João Vaz Guedes, ao Dr. Diogo Vaz Guedes, à Dra. Maria Amália
Vaz Guedes, ao Dr. Carlos Bobone, ao Dr. Bruno Bobone, ao Dr. Manuel Mourão, ao
Dr. José Maria Mendes Godinho, ao Eng. António Queiroz e Melo, à Sra. D. Maria de
Lurdes Soares dos Santos, ao Sr. Alexandre Soares dos Santos, a Isabel Santos e ao Dr.
Carlos Damas. Sem o apoio inicial do Professor José Maria Brandão de Brito e do Sr.
Engenheiro José Manuel Consiglieri Pedroso os contactos iniciais para esta investigação
não teriam sido possíveis.
Devo um agradecimento particular a algumas pessoas que leram versões
anteriores de partes desta tese e cujos comentários em muito contribuíram para
melhorar o resultado final: Sylvia Yanagisako, Jean Lave, George Marcus, José Manuel
Sobral, Purificación Ruíz, Cristina Lobo, Clara Carvalho, João Leal, António Luis
Pedroso de Lima, José Manuel Consiglieri Pedroso. A Catarina Mira agradeço a
cuidadosa revisão final do manuscrito. Mas, sobretudo, devo agradecer a Manuel
Pedroso de Lima que, com o rigor e a atenção que lhe conheço desde que nasci, leu as
várias versões que este texto teve durante o seu processo de crescimento, fazendo
sugestões, críticas e revisões fundamentais para a versão que agora apresento.
Agradeço também as críticas, comentários e sugestões de Susana Matos Viegas,
Filipe Verde, Luís Quintais, Miguel Vale de Almeida, Sandra Xavier e Nuno Porto – um
grupo de amigos/colegas, que de há vários anos para cá, debate “work in progress” –
que me ajudaram a redireccionar algumas questões.
Os apoios necessários à realização de uma tese ultrapassam largamente o âmbito
académico. Os amigos tornam-se durante este período um ponto de apoio sem o qual
dificilmente se sobreviveria. Não posso aqui agradecer a todos por manifesta falta de
espaço. Alguns, pela importância que têm, merecem uma referência especial, porque, no
fundo, esta tese também é deles: os meus pais, Luísa e Manuel, cuja amizade e apoio
constantes foram “uma enorme almofada”
que amorteceu este longo caminho, confortando nos momentos mais duros e
colaborando em várias frentes; a Susana com quem a partilha de trabalhos e amizades
tem ajudado a aumentar o prazer de uns e outros; a Marzia e a Cristina que de
companheiras de tese e de gabinete se tornaram grandes amigas; a Adriana Piscitelli que
do outro lado do oceano foi uma interlocutora insubstituível; a Ana e o Miguel que
cresceram com “o trabalho grande da mãe” e que, para além de encherem o coração e
preencherem os momentos de lazer, me ensinaram que as teses são uma espécie de
Pokemons, com evoluções, involuções, vidas, fraquezas e poderes; o meu último e
maior agradecimento vai para o Luís, que tendo sido obrigado a viver com a produção
desta tese, foi uma ajuda preciosa para a sua realização, libertando-me das tarefas
domésticas sempre que precisei e mantendo o bom humor para levar esta “empresa
familiar” até ao fim. Como se isso não bastasse, não se poupou a esforços, horas e
desesperos para fazer os quadros e mapas genealógicos que acompanham a tese.
Por último gostaria de dedicar esta tese ao Paulo Valverde, amigo e companheiro
de percursos académicos. Começámos ao mesmo tempo e devíamos estar a acabar ao
mesmo tempo. O vazio deixado pelo seu súbito desaparecimento continua a encher o
nosso apertado gabinete.
INTRODUÇÃO
1. A construção de um objecto de estudo
O presente trabalho é o resultado de uma investigação empírica que realizei entre
1994 e 1997, junto de sete grandes famílias, detentoras de grandes empresas com
sede na área de Lisboa. O objectivo inicial desta pesquisa era o de analisar a forma
como a sobreposição das relações familiares e económicas que se verifica no
contexto destes dois universos sociais – empresas e famílias – cria, por um lado,
condições para a formação de relações familiares específicas e, por outro,
promove o desenvolvimento de estruturas organizacionais próprias das grandes
empresas familiares.
A escolha deste tema decorreu, em grande medida, da vontade de
aprofundar algumas das questões que discuti na minha tese de mestrado. Ao
analisar as práticas e estratégias da organização e composição doméstica no bairro
da Madragoa, em Lisboa, verifiquei que, em momentos de crise económica, social
ou política, um número considerável de unidades domésticas se constituíam
informalmente em “pequenas empresas” para fazer face às precárias condições de
existência. Nessas situações, as relações domésticas reorganizavam-se com base e
em função das actividades económicas desempenhadas por cada um dos seus
membros (cf. Lima 1992). O desafio que assumi, ao escolher um novo tema de
pesquisa, foi o de tentar compreender a forma como, num outro contexto social,
o da elite social e económica lisboeta, as famílias se constituem e organizam
enquanto empresas; como é que os seus membros gerem a sobreposição das
relações familiares e empresariais; quais as especificidades que essa situação cria
numa e noutra esfera de acção: na família e na empresa.
Ao definir o meu universo de análise, escolhi, exclusivamente, famílias e
empresas de Lisboa. Desde logo, porque as empresas familiares de dimensão
nacional mais importantes e mais antigas têm a sua origem nessa zona do país
2 Introdução
(Robinson 1979: 146). Depois, porque, circunscrevendo a investigação a uma
única região do país, pude delimitar o contexto de acção quotidiana do grupo de
pessoas que fazem parte do universo de análise escolhido, o que me permitiu
identificar as redes de relações interpessoais em que estes se integram e verificar
que muitos membros das famílias estudadas faziam parte das mesmas redes de
sociabilidade. Chegar a esta conclusão, que teria passado despercebida numa
análise de âmbito nacional, teve um peso decisivo no delinear do argumento desta
dissertação.
É certo que, se tivesse optado por privilegiar um universo de famílias
empresariais alargado ao âmbito nacional, poderia ter ganho uma perspectiva
comparativa mais representativa. Todavia, teria perdido a possibilidade de
apreender as relações existentes entre as famílias de uma mesma região
socioeconómica e a forma como elas se constituem como um grupo social, o que,
afinal, me parece constituir a mais importante mais-valia da análise que efectuei.
O tipo de pesquisa etnográfica que delineei, baseado no conhecimento
aprofundado das dinâmicas que caracterizam as relações entre os membros destas
famílias que detêm empresas há várias gerações –, não podia ser aplicado nem a
um grande número de empresas, nem a uma grande dispersão geográfica, por
impossibilidades de ordem prática. Assim, as grandes famílias que constituíram o
universo de análise foram escolhidas com base em três requisitos fundamentais: 1)
as famílias tinham de ser titulares de empresas, ou de grupos de empresas; 2) as
empresas tinham de existir há, pelo menos, três gerações dentro da mesma
família; 3) tinham de pertencer, ou já ter pertencido, à lista das cem maiores
empresas portuguesas.
Dentro destes critérios, seleccionei os seguintes grupos económicos de base
familiar: Grupo Espírito Santo (da família Espírito Santo), Grupo Orey Antunes
(da família D’Orey), Grupo Semapa (da família Queiroz Pereira), Grupo Somague
(da família Vaz Guedes), Grupo Jerónimo Martins (da família Santos), Vista
Alegre/Casa E. Pinto Basto (da família Pinto Basto) e Fábricas Mendes Godinho
(da família Mendes Godinho). Este universo não foi definido a priori. Ele é
resultado de um conjunto de sortes e azares, de circunstâncias que envolveram as
Introdução 3
possibilidades de acesso a pessoas dos grupos económicos que me interessava
estudar e a sua disponibilidade para colaborar neste projecto.
As empresas que serviram de base a este trabalho são grandes organizações
económicas, poderosas e complexas, cuja gestão está a cargo de um conjunto de
profissionais competentes. No entanto, elas são construídas sobre uma rede de
relações familiares que une os seus accionistas e muitos dos seus trabalhadores.
Esta conjugação cria uma situação particular resultante da sobreposição de dois
tipos de relações sociais que têm sido considerados muitas vezes pelas ciências
sociais como distintos e por vezes opostos:
– a família: o universo privado dos indivíduos, no seio do qual se está junto
daqueles que “partilham o nosso sangue”; o domínio, por excelência, das
relações baseadas nas emoções e na afectividade;
– a empresa: o universo público de acção dos indivíduos, no interior do
qual se estabelecem “relações de trabalho”; o domínio, por excelência,
das relações económicas baseadas numa lógica de lucro e competição.
A minha hipótese de partida era a de que, a relação entre estes dois
domínios de acção, é central para a organização deste grupo de famílias e é o que
garante a longa duração da empresa. Neste sentido, um dos meus objectivos
centrais foi compreender a forma como os indivíduos articulam, tanto no seio da
família como no interior da empresa, as lógicas de funcionamento de ambos os
contextos e as relações sociais que se estabelecem, em cada um deles.
O facto de algumas das mais importantes empresas, ou grupos empresariais
existentes em Portugal serem sociedades familiares, tanto antes de 1974 como
actualmente,1 foi uma das razões que me levou a estabelecer a hipótese de o
1 A preponderância das empresas familiares na economia portuguesa pode verificar-se
através de dados apresentados por vários autores. No trabalho pioneiro que Makler realizou sobre os empresários portugueses, os dados apresentados mostram que sessenta e oito por cento das empresas portuguesas eram dirigidas pelos seus fundadores ou pelos seus herdeiros (cf. Makler 1969). Num estudo feito em 1989 pela revista Exame vemos que quarenta por cento das duzentas sociedades cotadas na bolsa de Lisboa, portanto, as grandes empresas portuguesas, são controladas pelas famílias que originalmente as fundaram (cf. Exame Set. 1989). Este número aumenta exponencialmente no quadro das pequenas e médias empresas (cf. Guerreiro 1996).
4 Introdução
sucesso económico destas empresas e o prestígio social das famílias que as detém,
estarem directamente relacionados com a articulação destas duas lógicas de
organização social. A análise destes grandes grupos empresariais mostrou a
importância da história da família dos seus titulares para perceber o processo de
evolução da empresa. Mais ainda, fez-me ver que os acontecimentos no interior
da empresa influenciam as relações que os parentes estabelecem entre si,
conduzindo àquilo que Fruin define como “the family as a firm, and the firm as a
family” (cf. Fruin 1980). Na verdade, as posições que os membros da família
ocupam na hierarquia da empresa são, muitas vezes, resultantes de relações de
poder e autoridade que se estabelecem no universo familiar.
As grandes empresas familiares constituem, assim, um objecto de análise
duplo, no sentido em que são concebidas, tanto pelo investigador como pelas
pessoas que as constituem, através de duas perspectivas: a das grandes empresas
familiares e a das grandes famílias suas proprietárias. Consequentemente, tanto
podemos pensar as empresas familiares como estruturas simbólicas fundamentais
para a construção da identidade de grupo familiar, como vê-las enquanto
estruturas organizacionais – onde se desenvolve uma actividade económica de
interesse nacional –, das quais os membros da família são accionistas e os que nela
trabalham e delas retiram os seus rendimentos pessoais. A empresa familiar é,
portanto, simultaneamente, um projecto económico e um projecto familiar e o seu
sucesso é, também, a legitimação do prestígio social da família.
Uma das questões que, no meu entender, torna particularmente interessante
este objecto de análise é o facto de cada um destes universos não ser
exclusivamente ele próprio: empresa e família simbolizam-se mutuamente, sem
que nem uma nem outra tenham total autonomia. Cada uma delas é,
simultaneamente, uma e a outra, interligando-se na sua existência: a empresa
familiar é um símbolo da família e a família é um símbolo central da empresa.
Neste sentido, o meu objecto de análise não pode ser definido como sendo
exclusivamente a família ou exclusivamente a empresa. É um universo de acção
duplo e indivisível onde família e empresa são indissociáveis. São dois universos
interligados e sempre presentes na vida dos seus protagonistas. Geersick, um
Introdução 5
consultor americano especialista em empresas familiares, salientou este facto ao
afirmar que
para a maior parte das pessoas a família e o trabalho são o que têm de mais
importante, pelo que a instituição que junta estas duas coisas se torna
extremamente poderosa e extraordinariamente interessante para reflectir
(Geersick et al 1997: 2).
As empresas familiares fornecem, assim, um contexto particularmente rico e
interessante para estudar a integração de duas dimensões fundamentais da vida
social: o trabalho e a família.
Aqueles que estão à frente da gestão e dos destinos destes poderosos grupos
económicos – posicionados entre os mais importantes a nível nacional – gerem e
zelam, simultaneamente, pelo sucesso de um projecto empresarial e pela
continuidade da sua família. Por isso, a análise das relações familiares neste
contexto social deve articular-se permanentemente com a reflexão sobre as
relações económicas que os seus membros mantêm. Colocar assim a questão
conduz ao debate teórico lançado por Jaber Gubrium sobre os limites sociais da
família enquanto unidade social, sobre os espaços de actuação dos seus membros
e sobre a natureza dos laços que unem as pessoas (Gubrium 1987). A forma
pluridimensional como actuam os proprietários das grandes empresas familiares
no âmbito da família e da empresa revelou-se um contexto particularmente
estimulante para questionar esses limites. A relação entre os indivíduos que
compõem este duplo universo de acção estrutura-se, portanto, a diversos níveis
que devem ser compreendidos de uma forma interligada e de entre os quais se
destacam a afectividade, a racionalidade económica e as diferentes posições na
hierarquia da família e da empresa.
O resultado da minha investigação não é, portanto, nem exclusivamente um
estudo sobre a família e as suas formas de organização, nem uma análise sobre os
processos de organização económica de grandes grupos empresariais. O ponto de
partida da análise é a forma como os elementos constitutivos das identidades
familiares e da sua transmissão ao longo de gerações se tornam visíveis, no âmbito
da intersecção entre o mundo da família e o mundo empresarial. Aliás, e de
6 Introdução
acordo com esta perspectiva, não faria sentido fazer uma abordagem da família
em termos puramente organizacionais – pensando-a na sua composição enquanto
grupo – ou em termos funcionais – analisando as funções que desempenha
enquanto instituição.
Estruturar a análise das relações familiares nos diversos domínios de acção
em que se desenvolvem obrigou-me a repensar a relação entre família e empresa.
Neste sentido, procurei analisar os fenómenos de natureza económica de um
ponto de vista multidimensional, tendo presentes as diversas dimensões de acção
e de valores que influenciam as tomadas de decisão dos gestores empresariais que,
como mostrarei, não se baseiam exclusivamente numa lógica puramente
económica. Simultaneamente, ao reflectir sobre as relações familiares tomando em
conta a importância que estas podem ter no sucesso económico da empresa, pude
compreender melhor a natureza das relações familiares em contextos de
modernidade..2
Com este trabalho, procuro expor esse lado das relações económicas que
não é visível habitualmente – aquele que é tecido pelas pessoas concretas, nas suas
redes sociais particulares, resultantes de escolhas feita no seu dia-a-dia. Creio,
assim, poder contribuir para tapar lacunas existentes ao nível dos trabalhos sobre
as camadas mais altas das sociedades urbanas e sobre a família em contexto da
elite económica nacional.
2 Numa recente análise sobre a importância dos estudos de parentesco, Joan Bestard
(1998) salienta-os, precisamente, como centrais para perceber a modernidade, contrariando a ideia geralmente veiculada na história das ciências sociais, que tendia a associar parentesco a tradicionalismo e a continuidade. Este autor defende que “o parentesco põe em perspectiva os símbolos da modernidade: os indivíduos e a sociedade, da mesma maneira que a modernidade põe em perspectiva os símbolos do parentesco: a natureza e a cultura” (Bestard 1998: 14).
Introdução 7
2. Objectivos e organização do texto
As principais questões que pretendo desenvolver ao longo desta dissertação são as
seguintes:
a) analisar as formas através das quais estas grandes famílias se organizam e
estruturam a sua continuidade, em redor de um projecto económico
comum, que une os seus membros ao longo de gerações sucessivas – a
empresa;
b) compreender a articulação permanente entre família e empresa, entre
interesses e afectos, entre “racionalidade económica” e “voz do sangue”,
algo que está sempre presente na vida dos membros das famílias ligadas a
empresas;
c) analisar os processos de sucessão que visam assegurar a continuidade da
família e do grupo empresarial; e os processos através dos quais as novas
gerações adquirem o desejo e a vocação para continuar o projecto
económico dos seus antepassados;
d) perceber os valores sociais e os modelos culturais que estruturam o agir
quotidiano neste contexto social; a forma como são transmitidos à geração
seguinte, e a forma como os membros desta os apreendem e integram no
processo através do qual se constituem como pessoas, dando continuidade à
comunidade de práticas das gerações anteriores;
e) compreender as dinâmicas através das quais estas grandes famílias ligadas a
projectos económicos de sucesso se constituem enquanto comunidades de
acção onde se consolidam fortes redes de socialidade;
f) compreender os processos de reconstituição dos grandes grupos financeiros
portugueses, após a ruptura criada pela revolução de Abril de 1974, e
analisar as transformações e desenvolvimentos por que passaram ao longo
8 Introdução
deste século, de forma a conseguirem manter-se na linha da frente da
economia portuguesa;
g) analisar as transformações visíveis nas mudanças das práticas económicas,
sociais e familiares ocorridas neste contexto social nos últimos vinte anos.
Ao longo dos capítulos que se seguem procurarei dar conta destas questões.
No Capítulo I, após uma apresentação dos estudos sobre empresas familiares,
descreverei os principais grupos económicos de base familiar em Portugal,
apresentando as sete grandes empresas familiares escolhidas para o presente
estudo. O Capítulo II é dedicado às formas de construção de continuidade destes
grupos familiares e aos processos através dos quais o conjunto destas famílias se
constitui e se reproduz como uma comunidade de interesses e práticas
identificável na sociedade portuguesa. Em particular, analiso o facto de estas
famílias apoiarem a imagem do seu prestígio social em formas de competência
legitimadas pelo tempo longo que as associam a um modelo de organização
aristocrático e conservador. No Capítulo III discutirei uma das mais importantes
contradições vividas pelos membros destas famílias: a contradição entre negócios
e relações familiares. Através da análise desta questão, mostrarei a forma como a
família se torna um importante elemento para a manutenção da existência da
empresa ao longo do tempo e como, consequentemente, a grande empresa de
sucesso se torna um elemento fundamental para a continuidade da manutenção da
unidade da grande família, chegando mesmo a tornar-se um símbolo desta.
No Capítulo IV abordarei os elementos de ancoramento da memória
familiar – entre os quais os apelidos, os nomes, as histórias de família. Trata-se de
elementos centrais na produção de uma identidade familiar continuada, visível ao
longo de gerações de descendentes da família. A centralidade do estabelecimento
de alianças matrimoniais entre estas famílias é o tema do Capítulo V. A articulação
destes casamentos com os ideais e valores definidos e praticados por estas famílias
será discutida, assim como o facto de a existência de um elevado número de
divórcios não os pôr em causa. No Capítulo VI procurarei mostrar que é na
complementaridade da agencialidade de cada género que sobressaem as
Introdução 9
características definicionais da identidade de uns e outras, através da qual
contribuem para a realização do seu projecto comum.
Uma das questões centrais desta tese – a forma como se estruturam os
processos de sucessão nas grandes empresas familiares portuguesas ao longo deste
século – será discutida no Capítulo VII. Neste será discutido o difícil equilíbrio
entre herdar ou conquistar a sucessão nas posições de liderança das empresas
familiares em momentos sociais e em condições económicas historicamente
distintas. Nomeadamente, abordo a forma como o nepotismo não era
considerado uma prática estranha num sistema económico pré-capitalista, pouco
desenvolvido e pouco internacionalizado e se torna um critério dificilmente
aceitável num sistema económico moderno onde os critérios da competência
individual na gestão se sobrepõem aos da herança de títulos de propriedade.
Assim, tendo partido da hipótese de que existia uma relação entre o êxito
destas grandes empresas familiares e o destaque das posições sociais que os seus
membros adquirem, a investigação empírica que realizei permitiu-me concluir que
essa relação não só existe, como as suas variáveis são interdependentes. Tal como
tinha verificado no bairro da Madragoa – num grupo social com características
bem distintas – a forma como as famílias se organizam em empresas cria
condições de adesão a um projecto económico colectivo que promove condições
vantajosas tanto para o prestígio social da família como para o sucesso económico
da empresa.
A investigação empírica permitiu mostrar que a separação entre família e
negócios é um elemento simbólico cultural. Apesar de este elemento estar
presente na forma como os indivíduos organizam a sua vida quotidiana e os seus
projectos de futuro, ao nível das práticas observadas as relações familiares
entrelaçam-se constantemente com relações económicas, que se influenciam e
fortalecem mutuamente. A relação que a antropologia mantém com os modelos
dominantes na modernidade produziu um espaço que nos permite ver para lá dos
modelos hegemónicos que os grupos sociais nos apresentam. Ora, apesar de as
relações familiares e as relações económicas não serem a mesma coisa, também
10 Introdução
não podemos apresentá-los como se fossem realmente separados e há casos, tais
como os que estudei, em que a estreita relação entre ambas se revela fundamental.
Em suma, estudos futuros da organização social urbana, que normalmente
focam aspectos associados ao que cada grupo social constrói para existir e se
reproduzir, deverão compreender que tudo depende também de como cada um
desses grupos se integra num conjunto de relações de poder e diferenciação com
os outros. O caso que estudei mostra que, neste processo de diferenciação
socioeconómica, a maneira como se usa essa articulação neste caso entre família e
negócios, é um poderoso elemento diferenciador.
3. Trabalho de campo com grandes famílias
empresariais de Lisboa
Pelo menos desde finais do século XIX, a produção da teoria antropológica
baseou-se na prática de viajar para outros locais, de preferência para um
outro local distante geográfica, moral e socialmente da metrópole teórica e
cultural do antropólogo. A ciência do outro tem estado inevitavelmente
ligada à viagem para outros lugares. Mas a questão de que tipo de outro
lugar está sempre ligada, e de uma forma complexa, à história da expansão
europeia (Appadurai 1986a: 337).
Ao longo dos anos setenta e oitenta, e como resultado da crescente apetência dos
antropólogos para fazerem investigação etnográfica no seu país de origem, assiste-
se a um debate sobre a legitimidade, vantagens e desvantagens do chamado
“trabalho de campo em casa” (cf. Jackson 1989; Strathern 1989; Okely 1996; Pina
Cabral 1991). Na base dessa polémica estava a ideia de que o trabalho de campo,
Introdução 11
levado a cabo num lugar longínquo e exótico, seria uma condição indispensável
para o antropólogo ter a distância cultural necessária para compreender as
especificidades sociais e culturais do contexto que estuda (cf. Crapanzano 1980,
Appadurai 1986b, Clifford 1990). Como corolário deste pressuposto, atribuía-se
ao antropólogo que trabalha “em casa” um nível intrínseco de familiaridade com
o seu objecto de análise.
Marylin Strathern chama a atenção para os perigos deste pressuposto e do
seu corolário, num estimulante artigo sobre “antropologia em casa”, onde defende
que não se podem medir níveis de familiaridade com base na metáfora “em casa”.
Na verdade, a própria ideia de que o antropólogo está “em casa” contribui para
criar a ilusão de que existe um continuum entre o investigador e o contexto que
procura compreender, facto que, na sua opinião, obscurece o hiato conceptual
existente entre ambos (cf. Strathern 1989: 16).
Efectivamente, os dados pessoais do antropólogo nada nos dizem sobre o
facto de estar ou não “em casa”, no sentido de haver “uma continuidade cultural
entre os produtos dos seus trabalhos e as coisas que as pessoas da sociedade que
estudamos produzem como descrições de si próprios” (Strathern 1989: 17). Para
evitar a ideia implícita de um território familiar, usarei a expressão “trabalho de
campo ao pé de casa”, proposta por João de Pina Cabral (1991: 52).
Fazer trabalho de campo no contexto em que vivemos, crescemos e que nos
é familiar pode ter, e tem certamente, muitas vantagens. Todavia, não me parece
que uma delas seja o conhecimento prévio do terreno. Muitas vezes este
conhecimento acaba, afinal, por ser uma ilusão que conduz a interpretações
perdidas em lugares-comuns. Porém, o trabalho de campo “ao pé de casa” coloca
problemas surpreendentes a quem o pratica e que são, com frequência, difíceis de
identificar e superar. Num primeiro momento, o antropólogo pode sentir-se mais
ou menos "em casa" ao fazer investigação no seu contexto de pertença, mas,
devido aos próprios objectivos da sua tarefa, estará motivado para procurar as
características específicas do contexto que analisa.
12 Introdução
Os antropólogos que trabalham “ao pé de casa” devem estar preparados
para superar um problema distinto e que raramente tem sido identificado na
literatura antropológica: para as pessoas com quem interage, o antropólogo é
alguém com quem se tem muitas coisas em comum.3
As relações que estabeleci com os sujeitos de análise durante o trabalho de
campo foram caracterizadas por dificuldades derivadas da assimetria de estatuto,
de posição social e de poder económico. As pessoas que fazem parte de um grupo
de elite têm uma consciência muito clara do seu poder – económico, social,
político e mesmo, por vezes, académico – e controlam, de uma forma consciente
e sistemática, o acesso de estranhos ao seu grupo social e familiar, garantindo,
assim, a sua privacidade. Situações semelhantes, sobre dificuldades no acesso aos
sujeitos de análise, são relatadas pela maioria dos antropólogos que trabalharam
com grupos de elite em sociedades ocidentais.4 O trabalho de Gary McDonogh
(1989) sobre as famílias da elite de Barcelona é particularmente revelador. Devido
à dificuldade em estabelecer contactos pessoais com os sujeitos que pretendia
estudar, a maior parte das informações etnográficas foram recolhidas em situações
de observação distante: nos espectáculos realizados na Ópera de Barcelona – o
Liceu –, na distribuição das campas no cemitério da cidade e em fontes históricas.
Quando iniciei este projecto não conhecia ninguém que fizesse parte do
universo das grandes famílias empresariais de Lisboa e que me pudesse introduzir
no meio. Assim, um dos primeiros desafios que enfrentei foi a dificuldade em
estabelecer um contacto directo com as pessoas com quem me interessava falar.
3 Todos aqueles que optámos por conduzir as nossas investigações “em casa” já
ouvimos frases que nos pretendem integrar constantemente no seu mundo do tipo: “como sabe...”; “você sabe, já viu certamente, também é de Lisboa...” Uma outra questão que se coloca frequentemente a quem trabalha “ao pé de casa”, é o déficit de imersão no terreno em que se encontra (cf. Pina Cabral 1991). Estando “ao pé de casa” pode viver na sua casa, mantendo mais ou menos inalteráveis as suas relações familiares, os contactos com os seus amigos e as suas obrigações sociais. Se, de um ponto de vista humano, isto pode ser uma vantagem, do ponto de vista do trabalho de investigação constitui um enorme entrave à maneira e à disponibilidade para o antropólogo se envolver com o seu terreno. Desta forma, os imponderáveis da nossa vida quotidiana interferem, constantemente, na relação que estabelecemos com o terreno que procuramos compreender.
4 Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Susan Ostrander 1984, Lisa Douglass 1992, George Marcus 1992, José Manuel Sobral 1993 e Gary McDonogh 1996.
Introdução 13
As famílias de elite vivem resguardadas dos olhares do mundo, nas suas casas
particulares, situadas em diferentes zonas da cidade, ou mesmo em cidades
limítrofes de Lisboa. Movimentam-se em territórios fechados e inacessíveis a
quem deles não faz parte. O acesso de outras pessoas a estes territórios relacionais
circunscritos só é possível mediante intermediários, pelo que, apresentar-me à
porta da casa de alguém, por exemplo, seria totalmente infrutífero. As barreiras
que constituem “secretárias” – na empresa – e “empregadas” – em casa – revelar-
se-iam totalmente intransponíveis para contactos sem marcação prévia e sem
conhecimento do assunto ou da pessoa que o solicita.
Assim, foi recorrendo aos conhecimentos de amigos, de amigos de amigos,
e conhecidos de amigos ou conhecidos de conhecidos que fui estabelecendo os
meus primeiros contactos. Comecei a tentar estabelecer contactos com possíveis
informantes em Junho de 1994. No entanto, só em Janeiro de 1995 iniciei
realmente o trabalho de terreno. Conseguir as primeiras entrevistas foi um
processo demorado. Quando conseguia um contacto, revelava-se difícil encontrar
tempo disponível na agenda dos grandes senhores da alta finança portuguesa. No
dia em que, finalmente, consegui marcar a primeira entrevista e senti que alguma
coisa estava a começar a acontecer, falei com outro possível informante que me
marcou uma entrevista exactamente para o mesmo dia. De repente, começaram a
aceder todos ao mesmo tempo. O segundo destes primeiros contactos ficou tão
entusiasmado com o trabalho, que me marcava entrevistas de um dia para o outro,
quase não me dando tempo para organizar e analisar o material recolhido e
preparar a conversa seguinte. E, dadas as dificuldades em marcar estes encontros,
eu não podia, obviamente, dizer que nesse dia “não me dava jeito”. Mais tarde,
alguns dos novos contactos começaram a ser indicados pelas pessoas que já
conhecia, dando origem à prática do conhecido sistema da “bola de neve” (cf.
Pujadas 1992 e Bertaux 1991).
As dificuldades de acesso a estas famílias de elite são algo que é referido por
todos aqueles que se dedicaram ao seu estudo, sendo também frequentemente
apontadas como razão para a escassez de trabalhos no âmbito deste contexto
social. Para citar alguns exemplos, podemos ver como George Marcus descreve,
14 Introdução
detalhadamente, a forma como foi impossível falar pessoalmente com os mais
altos dirigentes das empresas com que trabalhou (Marcus 1979: 136 e
comunicação pessoal).
Por seu turno, Alexandra Ouroussoff, que trabalha com grandes
corporações multinacionais, iniciou desta forma a sua comunicação à conferência
da reunião anual da associação inglesa de antropologia social (Association of Social
Anthropology, ASA), sobre elites:
Esta comunicação é o resultado do meu repetido fracasso no acesso aos
sujeitos etnográficos que quis estudar – os proprietários e dirigentes de grandes
empresas multinacionais ocidentais (Ouroussoff 1999: 1).
Tendo partido com essa expectativa, nunca deixei de me sentir surpreendida
com a forma, razoavelmente rápida, como os elementos destas famílias acederam
em falar comigo. Parece-me importante salientar este ponto, pois creio que a
investigação que agora apresento é um caso relativamente isolado nos trabalhos
sobre elites económicas no ocidente. Penso, no entanto, que, há uns anos atrás,
não teria sido possível levar a cabo esta investigação, pois as grandes empresas
familiares adoptavam ainda uma postura muito defensiva quanto à sua visibilidade
pública, por terem estado fortemente conotadas com o Estado Novo e serem
acusadas de ter beneficiado de grandes privilégios.5 Acidentalmente, este foi o
momento certo para esta pesquisa: os grupos económicos estavam já
suficientemente estabilizados em Portugal para se poderem mostrar publicamente;
5 Um facto que revela bem o zelo com que os elementos destas famílias defendem a sua
privacidade é a sua quase total ausência das colunas sociais e das chamadas revistas de sociedade. É muito interessante notar a evolução histórica verificada. Numa análise das revistas de sociedade portuguesas, verifiquei que a sua presença era constante até ao 25 de Abril de 1974, tendo-se interrompido nessa altura. O que me parece mais interessante é o facto de a re-entrada nas revistas não ter ocorrido no momento do seu regresso a Portugal, em meados dos anos oitenta. Só a partir de meados dos anos noventa começam a aparecer de uma forma sistemática, o que revela que a re-entrada em cena na vida social pública portuguesa não coincidiu com a sua re-entrada no mundo financeiro. Esta décalage revela uma estratégia de invisibilidade social que este grupo de elite procurou manter na altura do seu regresso a Portugal, tentando não repetir os erros de “excesso de exposição pública” que os tornavam mais vulneráveis no período anterior à revolução.
Introdução 15
a situação social e política estabilizou-se; os meados dos anos noventa revelaram-
se uma boa altura para estas grandes famílias tentarem demonstrar que a posição
de líderes da economia portuguesa, que detinham antes de 1974, se devia ao seu
mérito e não à sua relação com o poder, como seria confirmado pela sua actual
posição no mercado económico nacional e internacional.
A concretização dos encontros com os membros deste grupo social ao
longo de três anos, nunca dependeu exclusivamente de mim, ou da minha
vontade, mas da deles: da sua disponibilidade e apetência. Eles é que decidiam se
iam ou não encontrar-se comigo, onde, quando e durante quanto tempo. A maior
parte da interacção foi conduzida nos termos por eles definidos e no seu
território.6 Durante o meu trabalho de campo, senti, claramente, que os
mecanismos que dificultam a etnografia sobre grupos de elite são, em grande
parte, os mesmos que contribuem para a manutenção do poder deste grupo social:
a aura de inacessibilidade que constróem à sua volta torna-se uma importante
forma de manutenção de poder. O privilégio da privacidade, de que gozam é, em
si mesmo, uma demonstração do seu poder: controlar o acesso ao seu mundo –
tanto no sentido físico como no sentido do controlo da informação disponível
sobre eles é uma parte do poder da classe alta.
Em consequência deste facto, e desta atitude, a manutenção da privacidade
das pessoas que gentilmente acederam a falar comigo foi uma questão essencial na
elaboração desta dissertação. Optei por usar os nomes reais das famílias, das
empresas e dos grupos económicos, devido ao amplo conhecimento que o
“público em geral” tem das famílias com que trabalhei, das actividades
profissionais dos seus membros, e dos montantes das suas fortunas.7 O uso de
6 Na sua monografia sobre famílias da elite jamaicana, Lisa Douglass refere várias vezes
o facto de ter sofrido este mesmo tipo de constrangimento durante o seu trabalho de campo (1992: 48-9).
7 Veja-se, por exemplo, a quantidade de artigos em revistas da especialidade que se debruçam sobre os principais gestores das mais prestigiadas e rentáveis empresas portuguesas, e o facto de, a par da publicação da lista das 500 maiores empresas portuguesas que teve início no princípio dos anos oitenta, desde 1994 se publicar anualmente a lista das maiores fortunas de Portugal, esgotando-se sistematicamente as suas edições. Antes de 1974 não havia revistas que se dedicassem a este tema. Havia apenas um conjunto reduzido de revistas de sociedade com pouca circulação e vocacionadas, sobretudo, para as grandes estrelas do mundo do espectáculo. A
16 Introdução
pseudónimos tornar-se-ia um exercício sem qualquer proveito, pois todo o leitor
atento e conhecedor da realidade económica portuguesa identificaria facilmente a
verdadeira identidade destes grupos. No entanto, se uma parte do material que
utilizo é pública e poderia ser compilada através de uma pesquisa bibliográfica,
outra é do foro da vida privada das pessoas com quem falei durante a pesquisa e
só foi possível consegui-la através de um longo e intenso trabalho de recolha
etnográfica no qual os membros destas famílias depositaram em mim a sua
confiança, pelo que tive sempre em conta a necessidade de preservar a sua
identidade. Neste sentido, sempre que ao longo do texto me refiro a depoimentos
de pessoas concretas, utilizarei apenas iniciais.
Na maior parte dos casos, o primeiro encontro com cada pessoa que
entrevistei foi marcado por uma certa “apreensão” em relação à minha pessoa e
aos meus objectivos. Quem é? Será jornalista? Economista? Porque insiste em
misturar assuntos de família e de negócios nas conversas? Mesmo mais tarde,
quando as pessoas adquiriam confiança em mim, quando se habituavam à minha
presença e às minhas questões, nunca consegui ter o à-vontade e a liberdade de
acesso aos indivíduos e aos espaços onde estes circulam, como acontece nos meus
anteriores trabalhos de campo. Eu não podia simplesmente aparecer em casa das
pessoas ou nas suas empresas. Era preciso telefonar, marcar um dia, a hora exacta,
escolher o local. Isto significa que o elemento surpresa não existe e que, quando
me encontrava com as pessoas com quem ia falar, estas estavam sempre
preparadas para o acontecimento e muitas vezes já sabiam qual ia ser o tema da
conversa desse dia.
Os contactos que mantive decorreram, fundamentalmente, em dois espaços:
na empresa e nas casas da família. As excepções foram convites para almoçar ou
explosão da importância e da fama dos bons gestores, visível não apenas na proliferação das revistas dedicadas ao sector, como também no enorme aumento da procura de cursos de Gestão de Empresas a que assistimos a partir da segunda metade dos anos oitenta, é resultado de duas ordens de razão. Por um lado, só a partir de meados dessa década se viveram os primeiros anos de estabilidade e crescimento económico do regime democrático (cf. Lopes 1996: 243-5) e, por outro, nesse momento estavam já mais calmos os entusiasmos do período pós-revolucionário, durante o qual os sinais exteriores de riqueza eram marca de uma clara ligação ao
Introdução 17
lanchar – normalmente no seguimento de entrevistas – e algumas tardes nas
quintas de duas das famílias com quem trabalhei. Todo o trabalho de campo se
desenvolveu em espaços onde o meu acesso era estritamente condicionado ao
convite e onde não tinha possibilidade de me deslocar livremente, ou de estar
simplesmente a observar.
De uma maneira geral, todas as situações de interacção que mantive com os
membros destas famílias podem ser definidas como encontros formais de
entrevista, marcadas normalmente com antecedência e por vezes, marcadas,
desmarcadas e reagendadas devido à complicada e apertada agenda das pessoas
com que trabalhei.8 Mesmo quando era convidada para ir a casa das pessoas ou
estava presente em situações mais informais – almoços, lanches, ou tardes na
quinta –, a minha presença era sempre sentida como “uma visita”, “uma pessoa
que quer saber coisas sobre nós”.
Quando me encontrava com alguém, havia um objectivo claro: eu queria
saber coisas sobre a sua família e sobre as empresas que esta possuía, e eles
tinham-se disponibilizado a dar-me essa informação. A minha presença era bem
aceite, mas tinha um propósito definido. Quando se cumpria esse objectivo, era
suposto eu sair.
Fazer trabalho de campo nestas circunstâncias foi particularmente
perturbante no início da investigação. Confrontada com as minhas anteriores
experiências de trabalho de terreno, tive sempre a sensação de que me escapava
regime fascista, ao sistema capitalista e ao reduzido grupo de famílias que dominou a economia do país durante meio século.
8 Uma situação particularmente reveladora deste facto foi o caso de uma entrevista com o vice-presidente do conselho de administração de um importante banco privado português, que tinha sido marcada e desmarcada várias vezes. Quando por fim cheguei ao banco na data combinada, o entrevistado informou-me que tinha de partir para Londres com urgência e a secretária não me tinha conseguido encontrar para desmarcar. Claro que eu disse que não tinha importância e que ficava para outro dia, mas ele não aceitou e, depois de conversarmos durante cerca de quinze minutos na sede do banco, sugeriu-me que o acompanhasse ao aeroporto pois assim poderíamos conversar no carro. Assim foi, e com isso ganhei mais meia hora do seu tempo ou talvez fosse melhor dizer que ele perdeu menos meia hora comigo.
18 Introdução
algo de fundamental sobre o contexto social que queria compreender. Foi-me
difícil fugir ao ideal da observação participante, à ideia de que, para podermos
compreender um grupo social, temos de passar pela experiência de estar no centro
da interacção dos seus membros, porque os actos não verbalizados estão cheios
de prática cultural. A pouco e pouco fui adoptando uma atitude metodológica
mais ecléctica. No fundo, estas pessoas estavam apenas a assumir de uma forma
mais clara – porque têm o poder e a legitimidade para o fazer – aquilo que
acontece em todas as situações de trabalho de campo, mas que normalmente não
se revela de uma forma tão evidente: as pessoas só se envolvem numa pesquisa
deste tipo se quiserem e da maneira que lhes parece mais adequada.
Habituados às investidas dos jornais e revistas sociais e tendo já sofrido os
efeitos negativos de algumas publicações, os meus entrevistados nunca quiseram
gravar as entrevistas que fizeram comigo. De tal forma a questão os incomodava
que, depois das três primeiras solicitações para gravar as nossas conversas, e de
igual número de polidas recusas, decidi prescindir desse auxiliar de recolha de
informação e socorrer-me exclusivamente de anotações escritas durante a
entrevista e das notas que, depois desta terminada, me apressava a escrever.
Porém, estas dificuldades não foram prejudiciais ao desenvolvimento do meu
trabalho. Cada contexto social impõe constrangimentos específicos à investigação,
cuja compreensão e posterior superação são, em si mesmos, momentos decisivos
para a forma como o antropólogo apreende o terreno. Também neste caso, as
diversas tentativas de superação das dificuldades com que me deparei foram de
uma grande utilidade para a compreensão do contexto social em si mesmo.
A necessidade de modificar as estratégias de investigação e de adoptar uma
aproximação mais adequada ao contexto social que estava a estudar é, em si
mesmo, um motivo de reflexão interessante. Na verdade, tal necessidade mostrou
que, aplicar o método tradicional de recolha de informação em antropologia a um
contexto não tradicional no âmbito desta disciplina, revela que o próprio método
é produto de um tipo específico de encontro etnográfico9 – oriundo da prática de
9 Mary Bouquet chama a atenção para esta mesma questão como resultado de uma
tentativa de aplicar o método genealógico ao estudo das relações familiares em Portugal (cf. Bouquet 1993).
Introdução 19
investigação antropológica num contexto colonial –, no qual se desenvolve uma
relação de poder desigual entre investigador e sujeitos de análise, em que o
primeiro se sobrepõe ao segundo. No caso dos estudos das camadas de topo da
sociedade, onde o estatuto social do antropólogo é, de alguma forma, considerado
como sendo “inferior” ao dos sujeitos que analisa, a limitação da sua presença no
contexto de acção onde se pretende integrar a um acordo prévio é feita de uma
forma muito explícita, obrigando, assim, a alterações no recurso à metodologia
clássica da antropologia.
Em última análise, a questão da dificuldade de realizar estudos etnográficos,
no âmbito de grupos de elites, deve colocar-se ao nível da própria história da
disciplina. O facto de este contexto social estar ausente de grande parte da
literatura antropológica torna-o um objecto pouco familiar, para o qual não há
uma grelha etnográfica comparativa.10
Estudar um grupo de famílias de elite situa a reflexão no âmbito do que
Arjun Appadurai denominou de “etnopaisagem global, um núcleo essencial do
mundo que afecta as políticas das e entre as pessoas e as nações” (1991: 192).
Segundo Appadurai, estes “espaços etnográficos globais” opõem-se às
“comunidades relativamente estáveis, baseadas em redes de parentesco, de
amizade, de trabalho e de lazer, de nascimento, residência e outras formas de
filiação” (1991: 192). No entanto, ao estudar estas famílias da elite portuguesa,
tornou-se claro que a oposição entre essas duas dimensões não faz sentido, na
medida em que elas aparecem constantemente associadas, e essa é, precisamente,
uma das suas características definidoras.
Por um lado, o conjunto de famílias que analisei constitui uma comunidade
“baseada em redes de parentesco, de amizade, de trabalho, de lazer, de
nascimento, residência e outras formas de filiação” mas, por outro lado, os
indivíduos que a constituem movimentam-se nessas “etnopaisagens globais”: as
suas vidas pessoais são extraordinariamente cosmopolitas nos seus hábitos e
práticas; muito frequentemente viajam quer em turismo quer em trabalho, uma
20 Introdução
vez que as suas empresas têm filiais espalhadas pelo mundo; têm casas nas mais
importantes cidades do mundo – Londres, Paris, Nova Iorque ou Lausanne –;
estudaram no estrangeiro – tal como fizeram os seus pais e os seus filhos; as suas
redes de amizade englobam estrangeiros, e não é raro encontrarmos alianças
matrimoniais internacionais. Este conjunto de factores mostra-nos que estas
grandes famílias empresariais de Lisboa fazem também parte da etnopaisagem
global. Para as analisar não devemos, portanto, basear-nos em oposições e
exclusões, como as sugeridas por Appadurai, mas sim, seguir os caminhos a que
nos conduzem as relações sociais que analisamos.
Ora, o estudo destas famílias empresariais lisboetas mostrou que as relações
sociais, pessoais e profissionais, mantidas por este grupo restrito de pessoas têm
uma importante palavra a dizer na economia nacional e, por vezes, internacional.
As suas relações pessoais tornam-se, então, uma dimensão importante para
compreender alguns fenómenos económicos e sociais de amplitude mais vasta,
dando conta, em particular, da importância que as relações familiares assumem ao
mais alto nível da sociedade portuguesa e o seu peso na reprodução de certas
formas de hegemonia.
Por último, saliento que as relações sociais do meu universo de análise não
se delimitam a um espaço geográfico ou social exclusivo. As vivências familiares e
as relações empresariais ocorrem em locais diversificados, estruturam-se e
activam-se em diversos contextos de acção e referência. Para dar conta dessa
multiplicidade etnograficamente, conduzi a investigação através de uma
abordagem multisituada (cf. Appadurai 1986b e Marcus 1995). Os múltiplos sítios
em que a minha etnografia se localizou foram as casas, as quintas, as empresas, as
festas, alguns restaurantes, bancos e empresas – os distintos contextos em que se
desenvolvem os percursos de vida dos membros das famílias com quem trabalhei.
Esta dispersão dos espaços de acção dos sujeitos da análise por múltiplos
territórios privados, espalhados por diversas zonas da cidade e arredores,
10 Num estimulante artigo sobre o problema da “tradução” em antropologia, João de
Pina Cabral alerta-nos para o facto de a ausência de comparação constituir um problema central à interpretação (cf. Pina Cabral 1991).
Introdução 21
reflectiu-se na minha capacidade para me sentir “dentro” do meu contexto de
análise, dificultando-a sistematicamente.
4. Opções metodológicas e conceitos centrais
A dupla perspectiva que caracteriza o meu sujeito de análise – universo familiar e
universo empresarial – tem consequências a nível metodológico, na medida em
que, de certa forma, institui como unidade de análise algo que é concebido pelos
seus actores como constituindo dois universos de acção, de valores e com
expectativas distintas. Para poder dar conta deste contexto bidimensional, optei
por iniciar todos os meus contactos através da empresa e só depois passar aos
contactos directos com os restantes membros destas famílias. Estou convencida
de que o contrário teria condenado a investigação ao fracasso. Ao começar os
contactos pelo universo das empresas – um universo analítico aceite como
legítimo, dada a sua importância na economia nacional –, tornei a posterior
passagem para a família, sua proprietária, um passo expectável e natural.11
De uma maneira geral, as primeiras pessoas que falaram comigo foram os
presidentes ou outro membro do conselho de administração das empresas.
Queriam perceber quais os objectivos do meu trabalho, serem eles a fornecer-me
a primeira versão genérica da história da empresa e da família e decidir se os
outros elementos da família deveriam, ou não, colaborar no projecto. Creio que o
que os fez decidirem-se a falar comigo foi o interesse pessoal na história da
11 O facto de ter uma filiação institucional com o ISCTE - Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa - constituiu um elemento particularmente favorável para conferir legitimidade ao meu interesse sobre as empresas da família.
22 Introdução
família, da empresa e o empenho em divulgar os sucessos e os méritos de ambas,
dos quais tanto se orgulham.
O passo seguinte – recolher informação mais detalhada sobre os processos
históricos de desenvolvimento da família e da empresa – foi remetido para outros
elementos da família a trabalhar na empresa e para as pessoas da família que se
ocupam, sobretudo, da gestão da vida familiar: as mulheres. O meu percurso da
empresa para a família foi, simultaneamente, marcado por uma mudança nos
meus interlocutores preferenciais, tendo passado dos homens para as mulheres. A
separação destes dois universos de acção, associada a uma distinção entre grupos
de género, será analisada detalhadamente no Capítulo VII.
A construção da continuidade do contexto familiar envolve várias
dimensões sociais. Os diversos indivíduos que fazem parte de uma família
constróem várias versões da história familiar, a partir das suas diferentes
experiências e perspectivas. Neste sentido, as famílias são identidades
multiconstruídas onde encontramos uma diversidade de vozes. Por esta razão,
tive a preocupação de entrevistar diversos membros de cada uma das sete famílias
com que trabalhei, de forma a poder conhecer e identificar o maior número
possível de pontos de vista sobre a organização e a história de cada uma destas
famílias e empresas. Este conjunto diversificado de pessoas, que inclui os
presidentes das empresas, os principais quadros executivos, os patriarcas,
pequenos accionistas, membros da família que não possuem acções, mulheres,
jovens a começar a sua carreira profissional, permitiu-me ter acesso a um número
considerável de diferentes experiências de vida num mesmo contexto social. Para
além disso, esta estratégia permitiu-me compreender a forma como diferentes
membros da família atribuem significados distintos e fazem investimentos
específicos na empresa e na família. Ao cruzar a informação recolhida com
pessoas que vivem no centro da empresa familiar e com pessoas que vivem nas
suas margens, pude construir uma imagem mais correcta deste grupo social como
um todo.
Não quero deixar de salientar que há uma clara desigualdade na informação
que pude recolher sobre cada uma das famílias com que trabalhei. Essas
Introdução 23
diferenças, tanto de ordem quantitativa como qualitativa, são, por um lado,
resultado da diferente relação que mantive com os elementos particulares de cada
uma e, por outro, da forma como cada família guarda os seus arquivos pessoais e
da empresa. As disparidades existentes a este nível são muito grandes. A título de
exemplo posso referir que uma das famílias tem um historiador a trabalhar a
tempo inteiro no arquivo histórico na sua empresa, enquanto outras nem o
arquivo da empresa têm organizado.
Foi com base na informação recolhida durante as entrevistas que elaborei a
história de cada uma destas famílias12 e construí o seu mapa genealógico13 – desde,
pelo menos, o fundador da empresa até aos nossos dias. Foi, também, com base
nessas entrevistas, que elaborei a história da constituição e do desenvolvimento da
empresa, ou grupo de empresas, de que a família é titular e identifiquei os
membros da família que nela têm, ou tiveram, participação activa. Apesar de a
elaboração de histórias de família não constituir um dos objectivos do trabalho,
12 O método de recolha de histórias de família foi proposto por Daniel Bertaux como
alternativa à recolha de histórias de vida. Esta mudança na perspectiva de análise das narrativas resulta, sobretudo, de aceitar que as trajectórias individuais devem ser explicadas pelo enquadramento dos indivíduos nas suas famílias de origem e nos diversos capitais que estas lhes transmitem (cf. Bertaux 1981, Bertaux e Bertaux-Wiame 1988).
Para além das inúmeras vantagens de acesso a informação que a elaboração de histórias de família me proporcionou na pesquisa sobre as grandes famílias empresariais de Lisboa, a mais-valia deste método tem-me sido amplamente confirmada no âmbito da disciplina de Antropologia Social II que lecciono na licenciatura de Antropologia no ISCTE. Desde 1989 e por sugestão do Professor João de Pina Cabral, então coordenador da referida cadeira, os alunos realizam um pequeno trabalho empírico de recolha de uma história de família. A quantidade de informação qualitativa sobre a construção de trajectórias sociais que cada aluno consegue descrever nos seus ensaios tem provado anualmente as potencialidades desta perspectiva de recolha de informação. Gostaria de agradecer ao Professor Robert Rowland, novo coordenador da cadeira desde 1997, ter aceite continuar este projecto.
13 Os mapas genealógicos foram de grande utilidade neste trabalho, pois, dada a extensão dos universos familiares com que trabalhei e a enorme quantidade de informação de que dispunha cada família, teria sido difícil “entender-me dentro delas” sem o apoio desta grelha. De notar, no entanto, que os mapas genealógicos não tiveram, em si mesmos, utilidade analítica. O seu valor heurístico decorre exclusivamente das questões que construímos a partir deles (Bourdieu 1986, Bouquet 1996). Para tornar estes mapas de representação de redes de parentesco mais úteis e para os distinguir das meras genealogias tradicionais, Daniel Bertaux propõe a utilização de genealogias sociais - mapas genealógicos com informação sobre as trajectórias sociais dos indivíduos que representam (cf. Bertaux 1991).
24 Introdução
ela revelou-se um instrumento metodológico fundamental ao longo de todo o
processo de investigação, na medida em que a organização e continuidade destes
grupos se baseia, em primeiro lugar, na família. Conhecer a história de cada uma
destas famílias e analisá-la em paralelo com a história da sua empresa, permitiu-me
compreender melhor a forma como as estratégias familiares se estruturam de
acordo com o projecto empresarial e, também, as múltiplas maneiras pelas quais
este condiciona o contexto familiar.
A análise da forma como a história nacional influencia o desenvolvimento
destas grandes famílias e destas grandes empresas ao longo deste século foi uma
preocupação constante ao longo do meu trabalho, dado que os processos de
desenvolvimento da família e da empresa não podem ser compreendidos sem
estarem integrados no contexto socioeconómico nacional onde ocorrem. Da
mesma forma, analisam-se as múltiplas influências que os projectos empresariais e
as relações familiares e sociais deste universo empírico tiveram na história recente
do país, pois eles mostram o fazer, desfazer e refazer de relações de naturezas
diversas, mas com implicações decisivas, não apenas para essas famílias, e suas
empresas, mas para todo o país. Em resultado destas opções, o limite temporal da
investigação foi definido pelo próprio período em que se desenvolve a história
destas empresas, desde o momento da sua fundação até ao presente. Esta análise
processual da relação entre família e empresa permite contribuir para uma melhor
compreensão do desenvolvimento das grandes famílias e das grandes empresas
portuguesas e da articulação entre ambas ao longo deste século. Por outro lado, a
adopção de uma perspectiva diacrónica para a análise destas grandes famílias foi
fundamental para perceber a dinâmica interna dos processos familiares que se
encontram em permanente mudança e reequilíbrio. A importância atribuída à
preparação das gerações seguintes, para que estas possam manter a família e o seu
grupo económico no topo da hierarquia económica e social sublinha, também, a
importância da análise no tempo longo da família.
A perspectiva processual em que se estruturam todas as narrativas de
histórias de família que recolhi demonstra a importância desta questão. Ao
relatarem os percursos de vida dos seus elementos, as histórias de construção de
Introdução 25
alianças, das decisões tomadas ao longo de gerações – fundamentais para a
sobrevivência, ou não, desses grupos – as histórias de família fornecem-nos uma
dimensão temporal, pois cada relação surge inserida no seu contexto
sociohistórico. Desta forma, as histórias de família fornecem-nos uma visão
dinâmica das relações entre os indivíduos que permite compreender melhor as
relações particulares que os parentes específicos estabelecem entre si, a construção
de redes sociais e os processos de construção de identidades familiares continuadas14,
em paralelo com a história da empresa. Este tipo de conhecimento da vida das
pessoas que constituem estas famílias, transmitido através das histórias de família,
possibilita uma visão global da forma como se articulam, interpenetram e
influenciam essas duas realidades em que se move o mesmo universo de agentes
sociais. A recolha das histórias de família mostrou particularmente bem a
importância das relações familiares para a compreensão dos processos subjacentes
ao desenvolvimento de alguns dos grandes grupos económicos portugueses e
designadamente que os períodos de sucessão nos postos de liderança das
empresas são momentos decisivos para perceber tanto a história das empresas,
como a das relações familiares e sociais dos principais titulares do seu capital.
Para a análise desta dimensão processual, sem a qual não podemos perceber
estas organizações complexas que são as empresas familiares, recorri a dois
conceitos fundamentais: processo em constituição e gerações.
As estratégias familiares que garantem a manutenção das relações entre os
seus membros, assegurando ao mesmo tempo a continuidade do seu projecto
económico comum, dependem da transmissão de um conjunto de valores que
levem as novas gerações a empenhar-se activamente na reprodução dos projectos
das gerações anteriores e, posteriormente, a transmiti-los às gerações que lhes
seguirão. Estamos, portanto, perante um processo de continuidade familiar que está
em permanente constituição. Ao usar o conceito constituting process proposto por
14 Utilizo o conceito identidade continuada, proposto por João Pina Cabral para descrever
processos de construção de identidade que resultam da influência de unidades de identificação anteriores nos sentimentos de união e partilha de interesses em unidades posteriores. São processos de construção identitária em que elementos de identificação passados são uma fonte de identificação do presente (Pina Cabral 1991: 178-181).
26 Introdução
Christina Toren (1999) quero chamar a atenção para o facto de ser através da
agencialidade quotidiana (cf. Giddens 1996) dos diversos membros destas famílias
que se vão tecendo as negociações e adaptações que permitem a continuidade,
apesar das permanentes transformações, da unidade familiar associada a um
projecto colectivo.
Para dar conta da forma como as diferentes pessoas se integram de
maneiras distintas no tempo longo das famílias empresariais a que pertencem,
utilizo o conceito de geração, tal como ele é formulado por Lisón-Tolosana.
Segundo este autor,
Uma geração, no sentido sociológico, compreende um grupo etário de homens
e mulheres que levam uma forma de existência semelhante, ou que partilham
de um mesmo conceito de vida: que julgam os acontecimentos que lhes
ocorrem em dado momento em termos de um fundo comum de convenções e
aspirações. Há assim três características que distinguem uma geração: a
primeira e a mais importante é a aceitação e/ou criação parcial de atitudes e
valores – o facto de os seus membros partilharem de uma mesma imagem do
mundo ou da vida. A segunda deriva da primeira: a aceitação conjunta de
atitudes e valores implica uma coincidência temporal – o facto de os membros
da geração estarem activa ou passivamente interessados nos acontecimentos
que lhes ocorrem ou que eles causam e/ou tentam controlar. A terceira, é a
existência de um fundo comum de aspirações e tarefas a levar a cabo. Estas três
características sugerem dois corolários: em primeiro lugar, as ideias e atitudes
que constituem o núcleo fundamental de uma geração condicionam o
indivíduo que a ela pertence, ou, caso ele pertença a uma elite inovadora, são
impostas por ele. Ele só pertence ao grupo, na medida em que é condicionado
ou é criador destas ideias e atitudes. Do que se segue o segundo corolário:
qualquer indivíduo, seja qual for a sua idade biológica, que aderir a essa forma
de vida – a esse modo de existência – é membro dessa geração. (…) Os
mundos respectivos de cada geração, embora coincidam no tempo, são
diferentes (Lisón-Tolosana 1983:180-1).
Esta noção de geração foi particularmente útil para construir uma
perspectiva processual dos processos de desenvolvimento das famílias e das suas
Introdução 27
empresas que analisei. Os diversos elementos de cada família estão sempre em
fases diferenciadas do seu “crescimento como pessoas” e, consequentemente, em
situações diversas nas suas relações com a empresa, com os seus familiares e com
o contexto histórico em que se inserem – factos que em conjunto os afectam
diferenciadamente. O resultado das diferentes formas de reagir a estas relações
produz o desenvolvimento das empresas nos processos de continuidade e
mudança que os constituem.
São estes diferentes posicionamentos e percursos que analisarei ao longo
dos capítulos que se seguem.
CAPÍTULO I
GRANDES EMPRESAS FAMILIARES
1. As grandes empresas familiares como
objecto de estudo
O universo de empresas familiares com que trabalho é, como já afirmei,
constituído por empresas, ou grupos de empresas11 de grande dimensão, de
grande importância económica e que ocupam uma posição importante no seu
sector de actividade. Todas elas são empresas de grande prestígio, com projecção
internacional, com múltiplos accionistas, que podem ser da família do seu
fundador ou não, mas onde a soma das acções dos membros da família garante o
controlo dos destinos da empresa ou do grupo.
Uso, assim, o conceito de “empresa familiar” para denominar estas grandes
empresas em que, pelo menos durante três gerações, os sucessores do elemento
que as funda têm mantido a titularidade da maioria do capital e o controlo da
gestão. O facto de me referir a estas grandes empresas através do conceito de
“empresas familiares” pode parecer estranho, na medida em que elas não fazem,
normalmente, parte do universo definido por este conceito. No entanto, faço-o
porque creio que a frequente associação entre a ideia de empresa familiar e
11 Quando se fala em “grupo de sociedades” “grupo económico” ou “grupo de
empresas” referimo-nos, em geral, a um conjunto de empresas juridicamente distintas, que se subordinam à direcção ou ao controlo de um centro comum. No entanto, a aparente simplicidade desta ideia é desmentida quando procuramos definir quais as situações em que se deve entender que existe o apontado poder por parte do referido centro comum, ou seja, quais os critérios para delimitar o âmbito do “grupo de empresas”. De acordo com a lei comercial portuguesa, o referido conceito de “grupo” corresponde às “sociedades em relação de grupo” (os casos em que uma sociedade é a única sociedade titular das acções de uma sociedade comercial anónima, os casos em que duas ou mais sociedades independentes aceitam subordinar-se por contrato a uma direcção unitária e comum e os casos em que uma sociedade aceita subordinar a gestão da sua actividade à direcção de outra) e às “sociedades em relação de domínio” (os casos, mais numerosos, em que o controlo de uma sociedade é assegurado por uma participação maioritária no capital social ou através da participação nos órgãos de gestão) (cf. Código das Sociedades Comerciais art.º 486º e 488º).
32 Grandes empresas familiares
pequenas estruturas económicas, decorre mais da verificação da superioridade
estatística destas, por relação às grandes empresas familiares, que de razões
definicionais. Vejamos porquê.
De uma maneira geral, a definição de empresa familiar reporta-nos ao
universo das pequenas empresas, a situações empresariais em que um indivíduo
dinâmico e empreendedor montou, sozinho ou em conjunto com outros
familiares, um negócio com algum sucesso, no qual a família é proprietária da
totalidade da empresa e onde empregados e dirigentes são maioritariamente
membros da família (cf. Jones e Rose 1993, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997).12
Esta associação entre empresa familiar e pequena empresa não é apenas
uma ideia do senso comum. Ela é, surpreendentemente, veiculada por
compêndios e dicionários de economia. Se tomarmos em conta, a título de
exemplo, o Dicionário de Economia organizado por Bannock, o item “empresa
familiar” remete-nos para o item “pequena empresa” (Bannock 1987: 154), por
sua vez definida como “uma empresa gerida de um modo pessoal pelos seus
proprietários ou sócios e que detém apenas uma pequena quota do mercado em
que se encontra” (Bannock 1987: 314).
O termo empresa familiar é, mesmo, usado frequentemente num sentido
algo pejorativo, para significar que os gestores dessas empresas não estão bem
preparados para os cargos que ocupam, em resultado das suas relações de
parentesco. Associa-se com frequência o termo “empresa familiar” à prática do
nepotismo – entendido como a promoção dentro da empresa com base na
pertença à família e não com base na competência profissional –, considerado um
critério de selecção que coloca a empresa em desvantagem no mercado
económico. Um bom exemplo desta associação ao nepotismo e da dificuldade em
separar a definição de empresa familiar da conotação de pequena ou média
empresa foi-me claramente revelado durante a investigação pelo presidente de
12 De acordo com economistas e sociólogos, a distinção entre os vários tipos de
empresas – micro, pequena, média e grande – não se baseia apenas em indicadores quantitativos (facturação, capital e número de trabalhadores), mas inclui também o tipo de organização da empresa, das suas funções, sistemas de produção e tipo de trabalho de gestão e de execução (cf. Gersick et al 1997 e Guerreiro 1996).
Grandes empresas familiares 33
uma conhecida grande empresa portuguesa, que me disse que não valia a pena ter
uma entrevista comigo porque a sua empresa não era uma empresa familiar mas
“uma empresa moderna cotada em Bolsa”.
As empresas familiares existem em todo o mundo e a variedade das suas
organizações e do seu êxito é enorme. Numa amplitude que pode ir desde a
mercearia de esquina até às grandes corporações multinacionais, há uma longa,
rica e variada tradição de propriedade e envolvimento familiar nos negócios.
Porém, a importância das empresas familiares a nível mundial não se comprova
apenas em termos estatísticos. Na verdade, elas assumem um papel central na
economia de diferentes países. Tal é o caso da importância deste tipo de empresas
no crescimento e desenvolvimento do sistema americano de livre iniciativa, onde
elas são, por isso mesmo, consideradas o tipo de empresa americana por
excelência (Rose 1983: 1). Noventa e cinco por cento das empresas americanas
são, pelo menos em parte, de propriedade familiar (Donnelley 1964: 96, Buchholz
e Crane 1989: 15/24 e Goody 1996: 203). A predominância estatística das
empresas familiares no quadro da economia norte-americana pode explicar a
impressionante quantidade de trabalhos publicados sobre empresas familiares nos
EUA, sobretudo na área da economia e da gestão de empresas, tendo também
dado origem a um grande desenvolvimento de empresas de consultoria nesta
área.13
Outros elementos demonstram, também, a importância das empresas
familiares. Algumas das maiores e mais importantes empresas dos países
capitalistas industrializados foram, precisamente, fundadas como empresas
familiares. Em 1993, a lista das quinhentas maiores empresas dos Estados Unidos
publicada pela Revista Fortune chamava a atenção para o facto de um terço destas
serem de propriedade familiar. Na lista que a mesma revista apresenta das grandes
13 A grande maioria destes serviços de consultoria tem como objectivo ajudar as famílias
proprietárias de empresas a definir as estratégias de desenvolvimento e organização, de forma a não sofrerem as consequências dos problemas de sucessão que, em muitos casos, promovem rupturas irreversíveis na empresa, podendo mesmo dar origem à sua extinção. Há também uma vasta literatura de aconselhamento aos profissionais que trabalham com estas empresas, revistas dedicadas exclusivamente aos negócios familiares – como a Family Business Review –, congressos e seminários regulares para as pessoas que trabalham ou detêm empresas familiares.
34 Grandes empresas familiares
sociedades europeias deste tipo estavam incluídas empresas como a Michelin (a
maior indústria de pneus a nível mundial), a Mars (o gigante da indústria de
chocolates), o C & A (uma rede de armazéns ingleses de roupa com uma
significativa implantação internacional) e a Caterpillar Inc. É evidente que as
grandes empresas familiares não são a regra no mundo empresarial. Mas, por
outro lado, funcionam também como exemplos de viabilidade e sucesso para a
generalidade das empresas familiares.
A diversidade deste tipo de empresas é, portanto, enorme. Porém, todas
partilham de uma característica comum: estão ligadas a uma família e esta ligação
torna-as um tipo particular de empresa. Da mesma forma, estas empresas
vinculadas a um universo familiar têm uma clara influência na organização e na
vida dessas famílias. Assim, as empresas familiares são constituídas por dois
subsistemas interligados e por vezes sobrepostos: a família e a empresa, facto que
as torna instituições particularmente complexas. Cada um deles tem os seus
próprios valores, regras de pertença e estruturas organizacionais e alguns dos seus
membros têm obrigações nos dois círculos. Encontrar maneiras de satisfazer os
dois subsistemas é um desafio central para todas as empresas familiares, pois a sua
continuidade depende, em grande parte, do sucesso dessa articulação.
De acordo com este argumento, considero que o principal elemento de
definição das empresas familiares é a articulação entre os referidos sistemas e não
a dimensão da sua estrutura organizacional. Claro que a dimensão da empresa é
um elemento importante, a ter em conta no processo de investigação, pois analisar
estas grandes empresas, com centenas de empregados e dotadas de complexas
estruturas organizacionais, implica, necessariamente, uma perspectiva distinta da
que se adoptaria para pequenas empresas. No entanto, essa distinção decorre das
exigências específicas da organização de cada um desses contextos empresariais e
não do facto de a sua diferente dimensão imprimir uma natureza essencialmente
diferente à empresa.
Vejamos, através de uma das grandes famílias empresariais que estudei,
como a definição de empresa familiar se pode aplicar a empresas integradas num
grande grupo económico que, apesar de grandes mudanças na sua dimensão, ao
Grandes empresas familiares 35
longo de mais de dois séculos de existência, enraíza nesse critério uma parte
importante da caracterização identitária da instituição.
A casa Jerónimo Martins foi fundada, em 1792 no Chiado, por um jovem e
empreendedor galego. A longa existência da Jerónimo Martins é exaltada, em 1989,
numa brochura publicitária da seguinte forma: “Vivemos cinco regimes políticos,
as invasões francesas, duas guerras mundiais, quatro revoluções e o incêndio do
Chiado”. Das inúmeras vissicitudes dos seus duzentos anos de existência, as mais
significativas verificaram-se, no entanto, nos últimos cinquenta anos, durante os
quais o pequeno estabelecimento comercial se transformou numa empresa de
distribuição de produtos alimentares com participações na indústria e,
posteriormente, num dos maiores e mais poderosos grupos económicos
nacionais.
Hoje em dia, o Grupo Jerónimo Martins domina diversas grandes empresas
em três sectores de actividade: indústria (Lever, Fima, Iglo, Melgaço, Vidago e Pedras
Salgadas), distribuição (JM Distribuição) e comércio (supermercados Pingo Doce, Cash
& Carry Recheio, Hipermercados Feira Nova, uma cadeia de supermercados na
Polónia, e outra no Brasil). Para cada um dos ramos de actividade em que estão
envolvidos, as empresas do grupo têm joint ventures com prestigiadas empresas
nacionais e internacionais.
A melhoria dos serviços prestados no âmbito do seu sector de actividade
tem estado sempre associada ao desenvolvimento das empresas desta família.
Prova disto foi o seu lançamento, em 1996, em conjunto com o Grupo
BCP/Atlântico, numa nova aposta: os bancos Expresso Atlântico que funcionam
dentro das lojas dos supermercados, em horário alargado, sete dias por semana,
para irem ao encontro das necessidades dos clientes. A modernização e a procura
de novos investimentos nas suas áreas tradicionais de acção são as linhas de
orientação do crescimento deste grande grupo económico.
A Jerónimo Martins SGPS, SA, é uma sociedade gestora de participações
sociais, detida em sessenta por cento pela holding familiar Francisco Manuel dos
Santos, cujo quadro de administradores é composto maioritariamente por
membros da mesma família. O actual presidente do conselho de administração da
36 Grandes empresas familiares
Jerónimo Martins, SGPS – que é também o maior accionista individual da holding
familiar, da qual detém quarenta por cento –, pertence à terceira geração da família
Santos que, em 1921, adquiriu a Jerónimo Martins & Filhos. Três dos seus quatro
filhos varões já integram esse conselho e o quarto está a receber formação
especializada para poder, em breve, ser admitido no referido órgão, sem escapar
aos apertados níveis de competência e experiência exigidos para tal. É de prever
que, tal como o seu pai sucedeu ao seu avô, também um dos filhos do actual
presidente venha a ocupar a presidência do Grupo. Para além dos membros do
conselho de administração, numerosas pessoas da família trabalham nas empresas
do grupo, numa diversidade de lugares que vão desde o secretariado, passando
por chefes de publicidade, marketing, distribuição e administração.
Os próprios elementos da família Santos definem desta forma o seu grupo
económico:
A Jerónimo Martins é uma empresa familiar. Está nas mãos da família há cem
anos e antes de nós esteve nas mãos de outra família ao longo de três gerações.
Como vê, desde a origem que a estrutura familiar acompanha a evolução da
nossa empresa e ela é uma parte fundamental da nossa cultura de empresa e do
nosso sucesso (IS).
As características organizacionais da Jerónimo Martins, a quantidade de
membros da família que trabalham nas diversas empresas do grupo e que nelas
ocupam os principais lugares de decisão, permitem-me afirmar que este grupo
económico de grande dimensão – que em 1999 empregava mais de 15000
trabalhadores e facturava 654 milhões de contos (cf. Relatório e contas 1999) –
assenta numa base fortemente familiar. Consequentemente, podemos integrar este
poderoso grupo económico na categoria “empresas familiares”.
O êxito e a continuidade de muitas empresas familiares – sejam elas
pequenas, médias ou grandes empresas –, indica claramente que a participação
familiar não é, em si mesma, um factor decisivo no sucesso ou no fracasso desse
projecto económico. O seu êxito ou falência depende mais da forma como se
Grandes empresas familiares 37
concretiza essa participação e, sobretudo, a qualidade do empenho e da
competência profissional que os diversos membros da família investem nesse
projecto comum.
Um dos factores decisivos para a consolidação de uma grande empresa
familiar decorre da transmissão, pelo fundador do negócio aos seus descendentes,
da ideia de que o legado empresarial – e não meramente económico – que lhes vai
deixar é algo importante, algo que deve ser continuado. Conseguir criar nos
descendentes a vontade e a vocação de virem a ser empresários, dando
continuidade aos projectos económicos do fundador, é uma mais-valia decisiva
para o sucesso deste tipo de empresas.14
Para perceber melhor a importância do fundador na história do
desenvolvimento das empresas familiares, usarei como exemplo uma outra das
famílias com que trabalhei: a família Espírito Santo, cuja história descreverei em
pormenor mais adiante. O fundador, José Maria Espírito Santo Silva, criou uma
fortuna muito considerável para a sua época. Em 1897, fundou a casa bancária a
partir da qual os seus filhos viriam a constituir o Banco Espírito Santo e criou uma
excelente rede de relações sociais em Lisboa, no seio da qual os seus filhos foram
educados, cresceram e casaram, aumentando posteriormente o património – tanto
a nível material e económico como a nível relacional – deixado por seu pai. Desde
cedo, os filhos começaram a trabalhar com o pai no banco e, após a sua morte,
souberam aproveitar os seus ensinamentos e expandir a actividade bancária de tal
maneira que, em 1955, eram já considerados o primeiro banco português (cf.
Magalhães 1996: 199) e são, hoje em dia, considerados por vários autores como a
única dinastia de banqueiros portugueses (Resener 1991). José Maria Espírito
Santo e Silva não transmitiu aos filhos apenas uma fortuna considerável e um
bom negócio. O seu maior trunfo foi ter conseguido transmitir-lhes a ideia de que
14 No seu trabalho sobre grandes empresas familiares no Texas, EUA, George Marcus
salienta também a importância deste elemento na formação e desenvolvimento do projecto de continuidade familiar. Na sua opinião, as grandes formações empresariais de base familiar só se desenvolvem nos casos em que o fundador consegue transmitir aos membros da segunda geração, de uma forma integrada, três coisas: uma organização empresarial de sucesso, uma família e uma fortuna pessoal (cf. Marcus 1992: 21).
38 Grandes empresas familiares
lhes estava a deixar algo que era importante continuar, preservar e, se possível,
expandir: tarefas que os filhos cumpriram com o êxito que actualmente
conhecemos.
O caso da família Cupertino de Miranda é também um claro exemplo,
embora pela negativa, da importância do papel do fundador na continuidade da
empresa familiar. Cupertino de Miranda fundou o Banco Português do Atlântico
(BPA) e desenvolveu-o de uma forma tão hábil que rapidamente o transformou
no primeiro banco português. No entanto, não conseguiu produzir sucessores à
altura do seu projecto económico, tendo os seus descendentes acabado por
vender as suas participações.
Tenho pena de não ter seguidores. O meu filho não tem vontade e o meu
genro é engenheiro químico. As minhas filhas são raparigas e são as únicas que
me deram netos, mas também não servem. Sabe, têm outros nomes que não o
meu (Arthur Cupertino de Miranda 1987 in Fernandes 1999).
O exemplo do destino do empório de um dos mais importantes empresários
portugueses até aos anos setenta mostra bem que uma grande fortuna empresarial
não se consegue transmitir se os descendentes não a quiserem continuar ou se não
se mostrarem aptos a recebê-la.
Em redor da figura do fundador das grandes empresas familiares
portuguesas criam-se, frequentemente, uma série de lendas, de histórias que se
repetem com orgulho, de pais para filhos, de avós para netos, alimentando a
memória familiar das gerações actuais e, assim, consolidando a união entre os
descendentes. Encontrei exemplos da importância simbólica do fundador em
todas as famílias que estudei.
O Avô José é o fundador, é o ponto de identificação da família. Todos lhe
chamamos avô apesar das gerações que nos separam dele. A clara apetência
pelos negócios que existe na família foi herdada dele. É por isso que todos
sentimos esta profunda ligação a ele, como sendo a nossa origem (BB).
Grandes empresas familiares 39
O Banco era do meu avô e por isso eu tenho imenso orgulho de estar aqui e
participar neste projecto (Ma).
Se não fosse a coragem dos avós e dinamismo dos D’Orey velhos que
mantiveram unidas várias gerações da família na Orey Antunes, isto nunca
aconteceria, nunca teríamos esta festa tão bonita que reúne toda a família [1160
elementos] (IR).
O avô era um homem de vontade de ferro. Quando, com oitenta e dois anos,
lhe cortaram a perna, reagiu logo no dia seguinte, pedindo que lhe levassem a
correspondência do escritório. Dois anos depois, quando a KLM ofereceu um
voo inaugural da carreira Amsterdão-Lisboa, apesar da idade e de andar de
muletas, não quis deixar de experimentar a nova era dos transportes que então
começava, na Companhia que a sua empresa representava em Portugal (ML).
Eu acompanhei o meu pai toda a sua vida. Mais ou menos da mesma maneira
que ele acompanhou o pai dele. E assim vamos aprendendo os meandros dos
negócios, de pais para filhos, na prática, que é onde aprendemos as melhores
lições (ZM).
Grupo numeroso [a família Pinto Basto] (…) apresenta uma colecção bem
recheada de talentos individuais unidos por uma coesão fora do comum. Daqui
resulta a formação de um corpo social com forte consciência da sua
individualidade, quase com consciência de formar uma classe à parte,
praticando o “culto do fundador”, obedecendo a uma chefia bem definida
(Bobone 1998: 21).
Através destas lendas que “correm” na família, transforma-se o antepassado
empreendedor e dinâmico num herói fundador da grande família.
Apresentemos uma outra das famílias estudadas. A família Pinto Basto é um
caso particular entre as grandes famílias com que trabalhei. É de todas a maior –
são mais de dois mil os Pinto Bastos identificados no livro da família (cf. Bobone
1998 e mapa genealógico nº 7) –, e a mais antiga – quando se referem ao avô Pinto
Basto, referem-se a José Ferreira Pinto um dinâmico empresário, nascido em 1774.
Esta grande família é um excelente exemplo do êxito de uma boa transmissão da
40 Grandes empresas familiares
ideia de um projecto económico colectivamente conduzido pela família ao longo
de dez gerações.
O dinamismo empresarial dos descendentes do fundador é bastante
revelador. José Ferreira Pinto foi contador geral dos Tabacos e das Reais Saboarias
do Reino, Ilhas Adjacentes e Macau, construiu um cais no Tejo para os seus
navios, foi um dos fundadores daquilo que viria a ser a Associação Comercial de
Lisboa, foi provedor da Casa Pia de Lisboa, fundou uma fábrica de moagem em
Aveiro e a Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, que se encontra hoje nas mãos da
sétima geração de membros da família Pinto Basto, numa situação única no país.
Na geração seguinte, os seus filhos iniciaram-se no sector da navegação criando a
Casa E. Pinto Basto que, tal como a Vista Alegre, ainda hoje se mantém nas mãos da
família. A família Pinto Basto foi, também, aquela que, de uma forma mais
evidente e continuada, teve uma participação activa na política do país tendo
atravessado vários regimes políticos, marcando com a sua presença a cena política,
tanto a nível local como nacional, ao longo de dois séculos. Efectivamente,
durante um longo período, que vai de meados do século XIX até cerca de 1965, a
família tinha uma representação política quase tão grande como um partido
político: a nível de Câmaras e de representação no Parlamento e, durante a
monarquia, como Cavaleiros da Casa Real.15
Nas duas principais empresas da família – Fábrica de Porcelanas da Vista
Alegre e Casa E. Pinto Basto – ocorreram grandes alterações no panorama
accionista e de gestão que se verificaram nos últimos dez anos que visam,
15 A preponderância de elementos da família Pinto Basto na vida política portuguesa,
pode verificar-se na seguinte listagem. José Ferreira Pinto Basto (1774-1839) foi Senador, tal como os seus dois filhos mais velhos: Alberto foi membro da Junta do Governo de Aveiro; Augusto esteve na junta do Governo de Coimbra; Justino (que aos dezassete anos era Coronel da GNR) foi presidente da Associação Comercial do Porto e Ministro de Marinha; vários filhos das irmãs também foram deputados; Gustavo (Filho de Augusto) foi duas vezes presidente da Câmara da Junta do Comércio, e do Teatro Municipal de Aveiro; os filhos de Teodoro, Eduardo (vice presidente da CML, presidente da Associação Comercial de Lisboa, presidente da Companhia dos Telefones e da Companhia dos Tabacos) e Teodoro (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e vice-presidente da Associação do Comércio de Lisboa). Actualmente, alguns descendentes desta família continuam a marcar a vida política nacional como, por exemplo, Teresa Patrício Gouveia, Maria José Nogueira Pinto e Mota Torres.
Grandes empresas familiares 41
conscientemente, modernizar as empresas e retirar-lhes o peso excessivo que, no
seu entender, a família continuava a ter nos seus órgãos de gestão. Ainda em
1985, por exemplo, continuava a estar expresso nos estatutos destas empresas que
só podia ser administrador alguém com o apelido Pinto Basto. Apesar disso, os
corpos de gestão das empresas continuam a ser ocupados por membros da família
que são ainda, no seu conjunto, accionistas maioritários. Para além das empresas,
os membros da família possuem ainda em comum e sem sócios exteriores um
vasto património imobiliário, composto por diversos edifícios, terrenos e prédios
rústicos.
Em síntese, os exemplos de empresas familiares que tenho vindo a
apresentar mostram claramente que não podemos usar o critério da dimensão
para definir as empresas familiares. Elas podem ser grandes ou pequenas. Porém,
o que as define enquanto empresas familiares, é o facto de estarem vinculadas a
uma família, é a distribuição da sua propriedade e o facto de a ocupação dos seus
cargos de gestão ser garantida por descendentes do fundador da empresa.
2. Estudos sobre empresas familiares nas
ciências sociais
As pequenas empresas familiares têm sido um tema muito frequente de
investigação em sociologia, em economia e em história. Existe sobre ele uma vasta
bibliografia que, no entanto, se circunscreve fundamentalmente ao papel que as
pequenas empresas familiares tiveram no processo de industrialização nos países
42 Grandes empresas familiares
ocidentais.16 A maior parte destes trabalhos é predominantemente elaborada a
partir de duas perspectivas: a) enaltecer o carácter empreendedor, dinâmico e
exemplar dos seus fundadores ou de algum dos seus sucessores17; b) fornecer
ferramentas que sirvam de “manual de sobrevivência” a essas empresas e a essas
famílias e que são, normalmente, publicadas pelas empresas de consultoria
especializadas nesta área empresarial.18
O elevado número de publicações sobre empresas familiares conduz a uma
interrogação óbvia: porquê uma tão grande dedicação a este tema, se este tipo de
empresas é normalmente remetido pelos analistas para uma segunda ordem de
importância no âmbito da economia actual? Será que o facto de serem de
propriedade familiar faz com que estas empresas sejam diferentes das outras?
Porque, então, partir do princípio que a gestão familiar promove,
necessariamente, fragilidades na continuidade e no crescimento da empresa, que
pode ser evitada pela gestão profissional? Será que a sobreposição de relações de
natureza distinta mina, de facto, as relações familiares e constitui,
simultaneamente, um impedimento real ao desenvolvimento económico das
empresas? Se tal fosse verdade, como poderíamos explicar, então, a enorme
proliferação e o aparente sucesso de empresas familiares em todo o mundo?19
Não será que estamos, simplesmente, perante a necessidade de explicar a
contradição encerrada num modelo cultural que afirma a separação e a
16 A centralidade deste tema é bem ilustrada na preponderância do lugar que ocupa nas
colectâneas organizadas por Giddens e Stanworth 1974, Jones e Rose 1993, e nas obras de Rubinstein (1987) e Jaher (1973) em que se defende que as empresas familiares não só eram compatíveis com o rápido progresso económico na Europa do século XIX, como foram o seu principal agente.
17 Vejam-se, por exemplo, os casos das inúmeras biografias publicadas sobre os mais dinâmicos e bem sucedidos homens de negócios. De entre estas podemos destacar Aldrich (1996), Attali (1985), Norrington (1983) e Ferguson (1998 e 1999).
18 De entre a vasta literatura existente sobre formas de apoio à sobrevivência de empresas familiares vejam-se, por exemplo, as obras de Rosenblatt (1985), Dyer (1986), Buchholz e Crane (1989), Gersick et al (1997) e pelas revistas norte-americanas Family Business e Nation’s Business.
19 Vejam-se, por exemplo, os casos do Japão (Fruin 1980 e Hamabata 1991) das Seyschelles (Benedict sd), da China e da Índia (Goody 1996), dos Estados Unidos da América (Dyer 1986) e de Portugal (Guerreiro 1996) onde se mostra a amplitude do sucesso económico deste tipo de empresas.
Grandes empresas familiares 43
incompatibilidade entre empresa e família? Entre racionalidade económica e
solidariedade familiar?
Para debater estas questões é útil tomar como referência um texto de Jack
Goody, do seu livro The East in the West (1996), onde o autor discute o
etnocentrismo subjacente à ideia de o sistema capitalista se ter desenvolvido, no
Ocidente e não no Oriente, devido às diferentes formas de organização familiar e
ao peso distinto que as relações de parentesco têm num e noutro contexto.
Seguindo Goody, o facto de o sistema capitalista se ter desenvolvido primeiro no
Ocidente, onde predomina a família nuclear, serviu de base para a formulação da
ideia de que este sistema económico não se poderia desenvolver em contextos
onde o parentesco tivesse um peso excessivo, pois este implicaria que as empresas
familiares fossem a forma predominante de organização empresarial. Neste
estimulante texto, Goody demonstra a importância das empresas familiares no
desenvolvimento económico da Índia e na sua passagem para um sistema de
produção industrial moderno. A propósito do material indiano, o autor interroga-
se sobre a possibilidade de as empresas familiares e o sistema de castas impedirem
o desenvolvimento económico do capitalismo na Índia, uma vez que, como
podemos constatar em Londres e Nova Iorque – e podemos acrescentar em
Lisboa –, os “indianos” estabelecem com grande sucesso os seus negócios no
mundo ocidental (Goody 1996: 150).
O artigo de Goody contribui de forma decisiva para refutar a ideia que
associa empresa familiar a pequenas empresas, a lógicas de organização
económica pouco desenvolvidas e, em última análise, a sociedades não ocidentais.
Ao analisar as grandes empresas familiares, no âmbito das sociedades capitalistas,
verificamos que, pelo contrário, as redes familiares são elementos decisivos no
centro das suas actividades económicas, mesmo nas sociedades mais
desenvolvidas. As grandes empresas de base familiar que existem nas sociedades
ocidentais constituem, paradoxalmente, um exemplo da modernidade
organizacional e económica, apesar de assentarem em valores familiares.
Neste sentido, é importante reter uma das principais conclusões que Marvin
Dunn tira da sua análise sobre grandes grupos económicos na Nicarágua: a fusão
44 Grandes empresas familiares
da propriedade e do parentesco não pode ser pensada como um mero vestígio de
estádios anteriores de capitalismo, na medida em que ela é, pelo contrário, um
mecanismo central da continuidade inter-geracional da estrutura de classes das
sociedades capitalistas mais avançadas (Dunn 1980: 18).
Mesmo nos casos, pouco frequentes, em que os especialistas da gestão e da
economia não relacionam a capacidade de êxito da empresa com a sua dimensão e
com o facto de a sua propriedade e gestão serem familiares, tendem a considerar
que a longevidade dos negócios familiares é curta:
Misturar família e negócios sempre foi algo precário. A maior parte das
empresas familiares neste país caem mais depressa que o índice Dow Jones em
segundas-feiras negras. Elas têm uma esperança de vida de menos de vinte e
cinco anos. Apenas trinta por cento sobrevivem à segunda geração. De entre as
que o conseguem, apenas metade conseguirá chegar à terceira geração. As
quartas, quintas e sextas gerações são praticamente inexistentes nas empresas
familiares (Buchholz e Crane 1989: 15).
De acordo com os dados apresentados por Goody, só vinte e quatro por
cento das empresas familiares atingem a segunda geração e só catorze por cento
delas sobrevivem à terceira geração (Goody 1996: 201). A curta duração
geralmente atribuída às empresas familiares é justificada, pelos economistas, pela
falta de preparação dos membros da família na área de gestão, que tem como
consequência a adopção de estratégias de gestão baseadas em critérios de
afectividade o que, num mundo de competitividade económica, reduz as
possibilidades de sobrevivência da empresa. É a partir deste argumento que vários
especialistas sobre este tema, entre os quais Chandler, defendem que o
crescimento e eficiência dos negócios familiares só poderá acontecer nas situações
em que a gestão for atribuída a técnicos especializados que substituem o controlo
familiar (cf. Chandler 1977). A curta duração e o insucesso das empresas
familiares resultaria, de acordo com estes autores, do facto de as organizações
juntarem dois domínios que deveriam permanecer separados: família e negócios.
Aliás, é por esta razão que, as empresas familiares são apresentadas como um
primeiro estádio da evolução organizacional, veiculando a ideia de formas
Grandes empresas familiares 45
empresariais pouco evoluídas e que, mais cedo ou mais tarde, serão substituídas
por outras mais complexas e burocráticas.
Como referem Giddens e Stanworth, durante as primeiras fases do
desenvolvimento capitalista a concentração de propriedade e administração de
empresas nas mãos de uma família é considerada adequada. No entanto, à medida
que a economia capitalista se desenvolve a sua separação torna-se necessária (cf.
Giddens e Stanworth 1974).20 De acordo com esta ideia, à medida que as
empresas crescem e se desenvolvem, tornar-se-ia necessário reorganizar a sua
administração em moldes mais profissionais e menos pessoais pois, num estádio
mais complexo, a concentração da propriedade e da administração nas mãos de
uma família torna-se um obstáculo ao seu desenvolvimento (cf. Gersick 1997).
Ao contrário de algumas teorias da gestão empresarial que consideram os
interesses da família incompatíveis com os do trabalho, como a eficiência e a
racionalidade, vários estudos demonstraram que a mobilização de recursos
humanos e ideológicos da família poderá trazer vantagens para as empresas.
Como afirma Maria das Dores Guerreiro, a propósito das PME's (Pequenas e
Médias Empresas) portuguesas:
Aspectos das relações constituídas na esfera da família, tais como sentimentos
de confiança e lealdade, interesses e projectos de vida partilhados, estatutos de
autoridade associados ao parentesco, são mobilizados para gerir as questões
relativas à propriedade e direcção das empresas (Guerreiro 1994: 53).
20 Adriana Piscitelli mostra que, no Brasil, economistas e sociólogos, seguindo esta
mesma linha de argumentação, construíram uma linha sequencial de fases político-económicas do desenvolvimento do país, às quais está associada uma progressão de tipos de empresas predominantes. Num primeiro momento da era capitalista, na década de 1920, surgem empresários no sentido schumpeteriano do termo – noção de empresário baseada na iniciativa individual no processo de desenvolvimento económico – que deram um contributo fundamental para o desenvolvimento industrial do país. Nesta fase, a concentração entre propriedade e administração das empresas numa mesma família é considerada adequada. Na década de cinquenta, entrar-se-ia numa fase de expansão e burocratização das empresas, em que o desenvolvimento económico implica a profissionalização dos agentes tornando desadequada a sua associação a famílias (Piscitelli 1999: 12-4).
46 Grandes empresas familiares
As empresas familiares têm a vantagem de dar aos membros da família um
emprego e estes poderem, assim, construir uma carreira rapidamente, trabalhando
em algo que também lhes pertence. Neste tipo de empresas as pessoas podem
dedicar-se ao mesmo tempo à sua carreira e à sua família, investindo na
continuidade do seu nome e na melhoria da sua situação económica. Isto faz com
que possam investir mais e melhor na empresa, sem preocupações comuns à
generalidade dos trabalhadores: horário e salário.
Um caso exemplar do êxito da articulação entre empresas e famílias é o das
empresas japonesas, onde a analogia entre empresa familiar e família – no sentido
de grupo de descendentes e não de família nuclear – e, simultaneamente, a
analogia entre família e empresa dá origem a empresas familiares com grande
continuidade temporal e grande êxito económico (cf. Fruin 1980 e Hamabata
1990).21 O trabalho recente de Roger Goodman mostra como a metáfora
organizativa da família nas empresas japonesas está a ser levada até às últimas
consequências por algumas empresas que se estão a organizar como se fossem
famílias (cf. Goodman 1999). Vários outros trabalhos de investigação, realizados
noutros contextos sociais e geográficos, têm também mostrado como a
articulação entre família e empresa não só é benéfica como chega até a ser um
factor essencial para o seu sucesso.22
Do grupo de sete famílias empresariais que analisei, todas elas existindo há
mais de três gerações familiares, apenas uma, a família Mendes Godinho, não
consegue manter actualmente o seu sucesso empresarial. Mesmo assim, o seu
último presidente representa a quarta geração da família do fundador e vários
representantes da quinta geração trabalham em empresas do Grupo.
21 Hamabata leva mais longe esta ideia ao defender que, na indústria japonesa, existe uma
rede de parentesco estabelecida através das mulheres (1990: 29).
22 Neste âmbito, lembro o trabalho de Joana Afonso sobre as famílias de circo em Portugal, onde a autora defende que o facto de os circos portugueses serem empresas familiares é um elemento decisivo para a sua continuidade (cf. Afonso 1998).
Grandes empresas familiares 47
A Sociedade Mendes Godinho & Filhos foi fundada em 1917, por um dinâmico
agricultor e comerciante da cidade de Tomar. Em 1930 a sociedade tinha
alcançado uma importância local considerável e, por volta dos anos sessenta, tinha
lançado em Portugal empresas industriais que se tornaram líderes do mercado
nacional e internacional nos seus respectivos ramos de actividade: cerâmicas
vermelhas, transformação de oleaginosas e aglomerados de madeira. O conselho
de administração da sociedade familiar sempre foi constituído exclusivamente por
membros da família. Quando morreu o fundador, a presidência foi assumida pelo
seu filho mais velho. Como resultado da repentina morte deste, foi o seu filho
mais velho que assumiu o comando do grupo de empresas. Mais tarde, um
sobrinho assumiu a liderança do Grupo e, depois um outro sobrinho ocupou esse
cargo (ver quadro 1).
Hoje em dia, a empresa principal do grupo (a Tagol) foi retirada pelo banco
BPA, que era o seu maior credor, no culminar de uma série de problemas
financeiros que se tinham vindo a arrastar desde 1975, altura em que a casa
bancária da família foi integrada no banco que representava.23 Este insucesso tem
sido atribuído pelos especialistas a um excesso de espírito de família que
estipulava que apenas membros da família podiam assumir lugares de direcção
nos negócios familiares. Este ideal estava tão fortemente enraizado que não era
abandonado nem em momentos em que conduzia claramente à ruptura da
empresa e das relações familiares.
23 Uma história que os membros da família contam frequentemente remonta ao
princípio do século quando Manuel Mendes Godinho emprestou dinheiro ao seu amigo José Maria Espírito Santo Silva para lhe resolver um problema de liquidez financeira. As boas relações com o banqueiro, e posteriormente com os filhos deste, são seladas em 1934 com a abertura em Tomar de uma casa bancária, representante do Banco Espírito Santo. Para a família Mendes Godinho é, portanto, irónico que, após o 25 de Abril, o Banco Espírito Santo os tenha integrado em cumprimento de uma medida estatal e que tenha tentado retirar-lhes a titularidade das outras empresas que possuíam e controlavam. Esta situação resultou do facto de os familiares que estavam à frente dos destinos da empresa nunca terem feito a autonomização jurídica (imposta pelo Estado em 1960) da Sociedade Fábrica Mendes Godinho e da casa bancária e que atribuía setenta e cinco por cento de Fábrica Mendes Godinho à Casa Bancária. Assim, ao perder esta última, perderam também o controlo dos restantes negócios.
48 Grandes empresas familiares
Grandes empresas familiares 49
A propósito deste exemplo, vale a pena lembrar que, na história do mundo
ocidental, a empresa e a família estão imbricadas. Ao nível do desenvolvimento
dos grandes negócios na Europa medieval, eram precisamente os grandes grupos
económicos familiares, como os Medicis ou os Fugger, que dominavam. De facto,
os mais destacados exemplos históricos no sector da banca estiveram desde
sempre ligados a famílias, como as já referidas famílias italianas, mas também os
Warbourg, os Rothschild ou os Rockfeller. Quanto ao caso português, verifica-se
que, no final do século passado, as sociedades anónimas de capital disperso eram
ainda praticamente inexistentes, sendo a maior parte das empresas de base familiar
(cf. Castro 1971: 51). A tentativa de promover uma separação ideal entre ambas
só se produziu recentemente. No entanto, como mostro nesta tese, esse ideal de
separação não se verifica na prática.
Assim, dizer que família e empresa são entidades separadas é considerar,
apenas, uma realidade que caracteriza o presente da sociedade ocidental
industrializada, cuja ideologia hegemónica as define como instituições separadas e
onde, na maior parte dos casos, o são efectivamente. Fazê-lo significa esquecer
um passado, não muito longínquo, onde a empresa era a família.
O êxito das grandes empresas familiares actuais representa,
consequentemente, um desafio permanente à ideia de insucesso, precariedade e
falta de profissionalismo que a racionalidade capitalista, hegemónica no mundo
ocidental, associa às empresas familiares. Foi, portanto, com surpresa que
verifiquei a existência de tão poucos trabalhos publicados sobre esta questão.
Na verdade, as análises dos grandes grupos económicos de base familiar
têm estado arredadas das ciências sociais. As poucas que existem são orientadas
para uma análise organizacional que procura explicar o funcionamento e a história
da instituição. Pelo seu lado, os economistas tendem a analisar a empresa como
uma unidade de produção que compete no mercado, pelo que a eficácia dos seus
desempenhos é o seu objectivo central. Pela sua vez, os sociólogos têm analisado
as empresas enquanto organizações, retomando, de maneira geral, as categorias
analíticas definidas pelos economistas. Michel Bauer foi um dos primeiros
sociólogos a identificar o centro da questão ao afirmar que o problema das
50 Grandes empresas familiares
análises produzidas, tanto por sociólogos como por economistas, resulta do facto
de ignorarem que os gestores proprietários de empresas são também pais de
família, pelo que as suas preocupações empresariais são muito influenciadas pelas
suas preocupações patrimoniais (Bauer 1991: 23-5). De destacar, em Portugal, o
trabalho da socióloga Maria das Dores Guerreiro (1996) sobre empresas
familiares, em que a autora se debruça sobre a relação entre família e empresa, no
âmbito das Pequenas e Médias Empresas (PME).
No que diz respeito ao contexto específico da produção antropológica, a
análise das grandes empresas familiares é um tema praticamente inexistente.
Podemos destacar o trabalho de George Marcus nos Estados Unidos da América
(1988 e 1992), o de Sylvia Yanagisako em Itália (1991) e o de Adriana Piscitelli no
Brasil (1999).
Sobre grandes empresas familiares em Portugal não existe nenhum trabalho,
nem do ponto de vista económico nem do ponto de vista sociológico. Existem
alguns trabalhos sobre os sete grandes grupos económicos de base familiar que
dominaram o panorama da economia portuguesa antes do 25 de Abril de 1974,
entre os quais se devem destacar os de Martins 1973, Santos 1977 e Pintado e
Mendonça 1989. No entanto, estes trabalhos visaram, sobretudo, identificar as
diversas empresas que constituíam cada um dos grupos e as suas ligações a cada
uma das famílias que os detinham. Nunca foi realizada uma análise detalhada
sobre o significado da relação entre empresa e família, que me parece estar no
centro do sucesso desses gigantes, no âmbito da pequena dimensão da economia
portuguesa. Na verdade, é estranho que os investigadores do desenvolvimento
económico e político tenham negligenciado o estudo deste universo. Estes grupos
tinham uma grande importância a nível nacional, controlaram sectores-chaves da
actividade económica e dominaram, pelo menos durante cinquenta anos, a
economia e o desenvolvimento do país, pelo que parece óbvia a importância que a
sua análise terá para uma melhor compreensão do nosso passado recente.
Se nos basearmos nos exemplos das famílias do meu universo de análise,
podemos ver a forma como elas se cruzam nas suas actividades. Já referi a relação
entre o Grupo Espírito Santo e o Grupo Mendes Godinho. Nessa mesma altura o
Grandes empresas familiares 51
Grupo Espírito Santo mantinha também relações com a empresa Orey Antunes.
Em 1906, José Maria Espírito Santo era sócio dos irmãos D’Orey na Companhia
Colonial do Buzi – uma empresa açucareira de Moçambique.
A Orey Antunes é uma empresa que actua nos sectores de transportes
marítimos e armazenistas de ferro, carros e máquinas, foi fundada em 1886 por
Ruy e Waldemar Orey. Em 1900, a empresa fundiu-se com a Casa José Antunes
dos Santos dando origem à Orey Antunes & Cª, de que todos os irmãos
Albuquerque D’Orey eram sócios. A partir de 1920, começaram a representar
automóveis – Pacard, Nash e Peugeot e, em 1939, tornaram-se agentes da KLM em
Portugal. Nos anos trinta, compraram uma companhia marítima de transportes e
pescas – a Empresa de Pescas de Viana – e, no final da II Guerra Mundial,
construíram os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Nos anos sessenta, tentaram a
sua sorte na construção turística no Algarve – Hotel da Balaia, em parceria com o
Konin Klipke Rotterdamshe Lloyd –, fundaram um serviço particular de contentores
tendo como sócio o BPA e depois a Kilom, uma empresa de agro-pecuária. Em
1972 entram na bolsa. Nalguns negócios tinham como sócios a Sonasim e Manuel
Bulhosa, com quem constituíram, em 1974, duas sociedades: o Credito Predial
Português e a Soponata.
O Grupo Orey Antunes é constituído por várias empresas de navegação,
transportes, viagens e seguros, participadas a cem por cento, nas quais se encontra
sempre alguém da família em cargos de gestão: Sociedade Comercial Orey Antunes;
Orey Antunes Transportes e Navegação; Orey técnica Naval e industrial; Orey Viagens e
Turismo; Orseg – mediadora de seguros; Orey Angola, Lda; Agência de Navegação, em
Luanda; Casa Marítima Agência de Navegação; Agência de Transportes e Navegação.
Detêm ainda participações noutras empresas de navegação, NedLloyd Portugal
Navegação Lda, e armadores, Portwal.
Um outro grupo económico de base familiar com que trabalhei pode
também ser apresentado a propósito das suas ligações com o Grupo Espírito
Santo: o Grupo Semapa, da família Queiroz Pereira, virado fundamentalmente
para as áreas dos cimentos, automóveis e imobiliária. A colaboração entre as duas
52 Grandes empresas familiares
famílias é muito forte desde, pelo menos, os anos quarenta. O avô do actual
presidente do Grupo era um importante accionista e administrador da Companhia
das Águas de Lisboa. Desde cedo foi desmultiplicando as suas participações em
empresas e estava ligado à banca através do Banco Comercial de Lisboa. Foi o filho,
Manuel Queiroz Pereira quem, em conjunto com Ricardo Espírito Santo,
concretizou a fusão com o Banco Espírito Santo. Assim, em 1937 surgiu o Banco
Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL). Têm participações na Sorel, na Licar,
no Hotel Ritz e em diversas empresas na área da indústria cimenteira – Secil, a
Cimianto e a Cimenteira de Maceira e Pataias e a Compta – nalgumas das quais detêm o
controlo.
Os exemplos apresentados nesta secção permitem verificar que o sucesso
das empresas familiares é evidente, mesmo a nível das grandes empresas, pelo que
se torna surpreendente o facto de haver tão poucos estudos sobre estas
organizações em Portugal, onde a sua incidência e impacto a nível da economia
nacional é tão forte.
3. Grandes grupos económicos de base familiar
em Portugal: uma perspectiva histórica
A presença de grandes empresas familiares tem sido um elemento marcante na
economia portuguesa deste século. A política económica do Estado Novo
privilegiou a concentração do investimento, favorecendo, dessa forma, a criação e
o desenvolvimento de grandes grupos económicos, a que muitos autores
chamaram “núcleo monopolista” da economia portuguesa (cf. Santos 1977 e
Grandes empresas familiares 53
Pintado e Mendonça 1989). O período Marcelista – de 1968 a 1974 – representou
o culminar desta situação, tendo-se então desenvolvido consideravelmente o
poder e a influência dos sete grupos económicos que dominavam a economia
nacional. Curiosamente, todos estes grandes grupos económicos tinham uma
ampla base familiar. Eram eles: o grupo CUF, o Grupo Espírito Santo, o Grupo
Champalimaud, o Banco Português do Atlântico, o Banco Borges e Irmão, o Banco Nacional
Ultramarino e o Banco Fonsecas e Burnay (cf. Martins 1973, Santos 1977, Pintado e
Mendonça 1989). Para além do seu imenso poder económico, as famílias que
dominavam estes grupos24 gozavam de um enorme prestígio social e de uma
intervenção significativa, ainda que indirecta, na política portuguesa.
Estes poderosos grupos económicos de base familiar começaram a sua
implantação em Portugal no final do século passado e projectaram-se durante a
Primeira República. No entanto, o insucesso da Primeira República na
reconstrução material, política e social do país fez com que durante este período a
situação económica se degradasse progressivamente, tanto mais que os efeitos da
Primeira Grande Guerra foram desastrosos para a economia portuguesa. Na
altura do golpe militar de 1926, o problema mais grave do país era económico e
não político. Portugal era, então, um país maioritariamente agrícola, onde o
desenvolvimento industrial era incipiente e atrasado, o sistema de comunicações
deficiente e a iliteracia predominava entre a população. Para piorar a situação, os
sectores mais desenvolvidos – entre os quais se encontrava a extracção mineira, os
transportes, os telefones e a electricidade – estavam nas mãos de capital
estrangeiro (cf. Robinson 1976: 35-43).
Quando Salazar ocupou pela primeira vez a pasta das Finanças em 1926, o
seu objectivo era equilibrar as finanças e estabilizar a economia. Por razões de
natureza ideológica, Salazar optou por travar e controlar o desenvolvimento da
industrialização, retardando o crescimento dos grupos económicos dominantes na
cena nacional, sobretudo até ao final da Segunda Guerra Mundial (cf. Santos
24 “São apenas catorze as famílias que dominam os sete grandes grupos financeiros
portugueses durante o Estado Novo: Espírito Santo, Mello, Champalimaud, Burnay, Cupertino de Miranda, Pinto de Magalhães, Quinas, Mendes de Almeida, Queirós Pereira, Figueiredo, Feteiras, Vinhas, Albano de Magalhães e Domingos Barreiro” (Martins 1973: 123-4 e Santos 1977: 72).
54 Grandes empresas familiares
1977: 80). O seu projecto de recuperação económica assentava na criação de
infra-estruturas que permitissem promover o desenvolvimento do país a longo
prazo. Para a concretização desses objectivos foram essenciais os diversos Planos
de Fomento25 com que Salazar controlou o desenvolvimento do país.
O primeiro Plano de Fomento, aprovado em 1953, investiu
fundamentalmente na dotação do país de infra-estruturas, entre as quais se
destacaram os caminhos-de-ferro, estradas, portos, aeroportos, telefones,
hidroeléctricas e escolas. Estes investimentos foram o principal factor de
aceleramento do crescimento industrial a que assistimos em Portugal a partir,
sobretudo, de finais dos anos cinquenta. Com a entrada de Portugal na EFTA26,
que tem lugar em 1959, a economia portuguesa abre-se, ainda que só
relativamente, aos mercados internacionais, facto que contribui de forma decisiva
para a sua dinamização. O segundo Plano de Fomento, iniciado em 1959, visava o
desenvolvimento das citadas infra-estruturas e o aumento da produção e do
consumo, de forma a contribuir para uma melhoria das condições de vida da
população portuguesa. Estes objectivos foram continuados tanto no Plano
Intercalar (1964-67), que procurava também estimular as relações económicas e os
investimentos nas ex-colónias; como ainda no terceiro Plano de Fomento,
iniciado em 1968, que pretendia simultaneamente corrigir progressivamente os
desvios regionais e favorecer uma repartição mais equilibrada do rendimento.27
25 Os Planos de Fomento eram planos globais de orientação da política económica e
social. Foram elaborados quatro planos de Fomento: o primeiro para aplicar no período compreendido entre 1953 e 1958; o segundo de 1959 a 1964; o terceiro de 1968 a 1974 e o quarto de 1974 a 1979 que nunca foi implementado. Para o período de 1965 a 1967 foi elaborado um Plano Intercalar (cf. Santos 1996a).
26 EFTA: sigla inglesa de Associação Europeia do Comércio Livre. O acordo de Salazar sobre a adesão de Portugal à EFTA surpreendeu a comunidade internacional. No entanto, esta só implicava um acordo comercial, ao contrário da CEE, que implicava também um acordo político, e onde só eram admitidos países democráticos. A abertura da economia portuguesa aos mercados internacionais e a liberalização do investimento estrangeiro em Portugal, que se verificou na mesma altura, aceleraram significativamente a economia portuguesa (cf. Lopes 1996: 73).
27 Para informações mais detalhadas sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Brandão de Brito 1996 e Santos 1996.
Grandes empresas familiares 55
Porém, estes planos de desenvolvimento da economia nacional e as
preocupações em dotar o país de infra-estruturas foram sempre implementados
com parcimónia e sem grande vigor, atitude para a qual contribuiu decisivamente
a política do condicionamento industrial.28 De acordo com o actual presidente do
conselho de administração de uma das empresas com que trabalhei,
O condicionamento industrial talvez tenha tido razão de existir à época. Mas,
depois, foi completamente distorcido. Constituía uma arma nas mãos de alguns
grupos para transformarem o país numa quinta, entravando o
desenvolvimento. Nós fomos muito afectados. Estivemos anos e anos a lutar
para obter a licença de hidrogenação, um processo necessário para alterar o
ponto de fusão, de forma a tornar as margarinas mais duras. Até 1960, a Fima
não conseguiu essa autorização, fundamentalmente devido à oposição da CUF.
No princípio da década de 1960, essa autorização foi, por fim, dada. Mas
sempre que queríamos aumentar a capacidade da refinaria também não nos
davam licença. Só já muito para o fim dos anos sessenta é que as coisas
melhoraram (EA).
Estas observações mostram bem os entraves colocados pela política de
desenvolvimento económico de Salazar à livre iniciativa na criação, expansão ou
modernização da indústria e das actividades económicas em geral. Esta orientação
do regime, apoiada nos ideais corporativistas, familistas e tradicionalistas, bem
expressos na ideologia subjacente ao condicionalismo industrial impediram, não
apenas o desenvolvimento económico do país, como a própria criação das infra-
estruturas de base que os Planos de Fomento pareciam defender, contribuindo
para a consolidação de um enorme atraso de Portugal em relação a todos os
outros países do mundo industrializado.
O grande desenvolvimento que um reduzido grupo de empresas
portuguesas teve durante o Estado Novo deve-se, em grande medida, à aplicação
do regime do condicionamento industrial. Este regime permitia que, na prática, só
28 O condicionamento industrial foi o modelo de desenvolvimento industrial adoptado
durante o Estado Novo, que se baseava numa política proteccionista e nacionalista que, na prática, impediu o crescimento da livre iniciativa e incentivou o crescimento dos grupos monopolistas (cf. Brandão de Brito 1989).
56 Grandes empresas familiares
os grandes grupos obtivessem autorização para novos projectos e dispusessem de
capital para os realizar, acabando frequentemente por se estenderem por diversos
ramos de actividade. Daí que se assista a partir dos anos cinquenta em Portugal a
uma situação muito particular. Como resultado de necessidades de auto-
financiamento, os grupos preferencialmente industriais viraram-se para as áreas
financeiras e seguradoras. Tal se passou, por exemplo, com o grupo CUF. Por
seu turno, os grandes grupos financeiros, como o Grupo Espírito Santo,
expandiram os seus investimentos para a área industrial.
O Grupo Espírito Santo foi, até 1974, o segundo maior grupo económico
português sendo, no entanto, aquele que tinha uma maior projecção internacional,
com excelentes contactos com poderosos grupos internacionais. José Maria
Espírito Santo e Silva que, no final do século passado, fundou a casa bancária que
viria a dar origem ao primeiro banco da família – o Banco Espírito Santo – começou
a sua vida em Lisboa como um modesto mas dinâmico revendedor de lotaria
espanhola. Fez uma fortuna considerável em apenas duas décadas. Adquiriu ainda
relações sociais importantes e ganhou uma notável consideração pública. Teve
cinco filhos, três rapazes e duas raparigas e, através das suas bem sucedidas
actividades económicas, pai e filhos construíram uma rede internacional de
relações profissionais e pessoais. O grupo tinha uma raiz eminentemente
financeira: detinha um dos mais importantes bancos portugueses que, a partir de
meados dos anos quarenta, após a sua fusão com o Banco Comercial de Lisboa passa
a denominar-se BESCL (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa) e se torna o
maior dos grandes bancos portugueses (Pintado e Mendonça 1989: 18) e
representava o Chase Manhattan Bank. Juntamente com o First National City Bank
(também norte-americano) tinham constituído o Banco Interunido de Angola. O
grupo dominava também a Companhia de Seguros Tranquilidade que era a segunda
mais importante do país, e a Tranquilidade Moçambique. A partir dos anos trinta, as
colónias portuguesas tornam-se o mercado preferencial das actividades do Grupo
Espírito Santo, sendo nesse contexto que o grupo diversifica a sua área de
actuação económica para o sector agrícola29, industrial30 e imobiliário31. Antes de
29 O GES liderava o mercado nacional do açúcar (com a Sociedade Agrícola do Cassequel,
em Angola, a Sociedade Agrícola do Incomati, em Moçambique e a refinaria Sores, no
Grandes empresas familiares 57
Abril de 1974, eram mais de sessenta as grandes empresas portuguesas que eram
participadas pelo Grupo Espírito Santo ou que com ele mantinham relações
directas (cf. Martins 1973: 27-31, 135-177 e Pintado e Mendonça 1989: 18-20,
63-69).
Os processos de nacionalização dos bancos e companhias de seguros que
ocorreram em 1975 forçaram muitos membros da família a partir para o Brasil,
Inglaterra e Suíça. No estrangeiro, construíram um novo grupo económico que
rapidamente se desenvolveu, baseado de novo na conjugação de áreas financeiras
(bancos, sociedades de investimento e companhias de seguros no Luxemburgo,
Brasil, EUA, Bahamas e França) e não financeiras (empresas imobiliárias e
hoteleiras nos EUA e Brasil, unidades agrícolas no Brasil e Paraguai). Apesar de
este novo projecto económico da família Espírito Santo se ter desenvolvido em
conjunto com sócios estrangeiros, foi sempre mantido o controlo da família. A
rede de relações sociais dos elementos desta família e o elevado prestígio da sua
reputação na finança internacional foram elementos centrais para a sua nova
entrada no mundo dos negócios, na medida em que dependeu de um crédito
financeiro considerável e da angariação de sócios poderosos. Em meados dos
anos oitenta, iniciaram um lento regresso a Portugal. Quando começaram os
processos de privatização, compraram as suas antigas empresas ao Estado. Em
meados dos anos noventa, o Grupo Espírito Santo tinha já reconquistado a sua
antiga posição de destaque na vida económica portuguesa. Actualmente, a sua
influente actividade nacional e internacional é, de novo, extremamente
Continente) e do café (com as plantações de café da Companhia Angola de Agricultura e a indústria de torrefacção Tofa, em Lisboa); explorava uma das maiores herdades do Continente (a Herdade da Comporta) e em Angola era dono da Sociedade Agrícola do Quanza Sul, com largos milhares de hectares de culturas diversificadas; e detinham uma importante posição na exploração de petróleo (em Angola é um dos principais sócios da Petrangol e da Purfina e na metrópole participa nas duas refinarias de capital nacional – Sacor e Sopa).
30 No campo industrial, o GES participa na Companhia Portuguesa de Celulose, na Socel, na INAPA, na Firestone portuguesa, na Gás Cidla, na Marconi, na Central de Cervejas, na Tabaqueira Intar, na têxtil angolana Siga, nas Cervejas da Angola, é o maior accionista da Companhia Portuguesa de Electricidade e participa no importante Grupo Amoníaco Português.
31 O Grupo controla a Sodim – proprietária do Hotel Ritz de Lisboa – e participa na Sociedade que controla o Hotel Sheraton.
58 Grandes empresas familiares
diversificada: seis bancos (dois em Portugal, um no Luxemburgo, um no Brasil,
um nas Bahamas e um na Florida), duas grandes companhias de seguros (em
Portugal e no Brasil), participações em empresas industriais, em telecomunicações,
na televisão, no ramo imobiliário, na hotelaria, na agricultura e na criação de gado.
O enorme crescimento e expansão das actividades do GES a partir dos anos
cinquenta não é, apesar do carácter excepcional da sua dimensão, um exemplo
único de desenvolvimento de um grande grupo económico, a coberto do regime
proteccionista então vigente e que assim dinamizava a economia portuguesa.
Disso é exemplo um dos casos de empresas familiares que analisei: a Mague
e a Somague, pertencentes à família Vaz Guedes. A empresa que está na origem
do grupo Somague, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia, Duarte & Vaz Guedes,
foi criada em 1947 por dois engenheiros civis, Ernesto Moniz da Maia e José Vaz
Guedes, para poderem participar no concurso público, que ganham, para a
construção da barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere. Segundo contam os
seus descendentes, o que deu ânimo a José Vaz Guedes para avançar na
constituição de uma sociedade própria, aos trinta e nove anos, foi a autonomia
financeira que adquiriu com a construção da auto-estrada Lisboa-Caxias, e os
generosos apoios pessoais e financeiros que daí resultaram.
A pouco e pouco, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia & Vaz Guedes,
Lda adquire uma posição destacada na construção de barragens em Portugal, das
quais se destacam as de Ceira, Arade e Cabril, do Pocinho no Douro e da
barragem do Limpopo, em Moçambique. Desde então, a empresa não parou de
crescer, tendo-se tornado um marco fundamental no sector das obras públicas em
Portugal – construíram a doca seca da Lisnave e da Setenave, fizeram as obras do
Porto de Aveiro e o terminal de carvão do Porto de Sines. Paralelamente,
constituíram a Mague com o objectivo de aproveitar o equipamento que detinham.
Transformaram o seu estaleiro de reparações numa metalomecânica pesada que
fabricava turbinas hidráulicas, turbo-grupos para centrais térmicas e aparelhos de
elevação e movimentação, em colaboração com a empresa suíça Brown Boweri. Em
poucos anos, a Mague impôs-se como uma das maiores empresas de
Grandes empresas familiares 59
metalomecânica portuguesas, tendo como única concorrente a empresa estatal
Sorefame.
A política de dinamização económica conduzida a partir de meados da
década de cinquenta teve repercussões claras na economia do nosso país,
demonstradas pelo valor anual médio de crescimento do sector industrial entre
1953 e 1970 que foi de oito por cento, valor que deve, no entanto, ser relativizado
pelo baixo índice deste crescimento até à década de cinquenta (cf. Santos 1977 e
1998). Os incentivos promovidos pelo Estado não foram, no entanto,
aproveitados pela média burguesia, mas sim pelos grupos económicos já
estabelecidos, dando origem a uma situação em que os já referidos sete grandes
grupos económicos controlavam todos os sectores básicos da economia
portuguesa, quer a nível da esfera produtiva, quer ao nível dos sectores da banca,
seguros e transportes (cf. Robinson 1979, Martins 1973, Santos 1996 e Lopes
1996).
Maria Belmira Martins caracteriza a economia portuguesa desse período
como tendo “um baixo grau de desenvolvimento e um elevado grau de
concentração” (Martins 1973: 11). Segundo esta autora, tal situação decorria
fundamentalmente do facto de “as transformações estruturais em Portugal não
resultarem apenas do desenvolvimento das forças produtivas, mas serem
provocadas pela intervenção estatal” (Martins 1973: 12), permitida pela situação
política do nosso país. Na sua opinião, foi a política seguida por Salazar –
condicionalismo industrial, benefícios e incentivos fiscais, leis do Fomento
Industrial com uma política selectiva de crédito e apoios aos empreendimentos
considerados chaves – que acelerou o processo de concentração e permitiu que
um pequeno número de grupos adquirisse uma enorme dimensão.
Dando uma ideia muito clara da dimensão da concentração no panorama
económico português, Américo Ramos dos Santos refere que “em 1973, das
quatrocentas e onze empresas que vendiam mais de trinta mil contos por ano,
cerca de trezentas são dominadas pelos sete grandes grupos nacionais” (Santos
1977: 78).
60 Grandes empresas familiares
A partir de 1960 há uma centralização e concentração crescentes
excepcionalmente intensas nos últimos oito anos do regime. Será neste período
que os grandes grupos económicos irão evidenciar uma dimensão
verdadeiramente anormal para um país tão pequeno. (…) Em 1973, 2,4% das
sociedades detém 75,4% do capital social total da economia portuguesa. É a
partir de 1959 e sobretudo a partir de 1968 que o desenvolvimento
monopolista vai eliminando a pequena empresa (Santos 1977: 80-1).
Todavia, após a conjuntura favorável que se viveu durante os anos sessenta,
no final da década a economia portuguesa entrou em dificuldades, no momento
em que Marcelo Caetano substituía Oliveira Salazar na chefia do governo, em
1968, na linha da grande crise da economia internacional. A aceleração da
inflação, o agravamento do défice comercial, a dispendiosa guerra colonial e o
crescimento muito rápido da emigração marcaram a fase final do Estado Novo
(1969-1973).
A partir da década de cinquenta e, apesar de manter um enorme atraso em
relação ao resto da Europa, Portugal passou de país agrícola a um país
relativamente industrializado, tendo aumentado grandemente a importância de um
pequeno número de industriais capitalistas. No entanto, e como lembra Hermínio
Martins, não se devem exagerar as mudanças na composição e no aspecto das
classes altas e na elite governante portuguesas. Segundo este sociólogo, num país
pequeno como Portugal a elite governante e a classe alta32 eram facilmente
identificáveis e estavam, frequentemente, interligadas por casamentos
sobrepostos. Para além disso, partilhavam uma educação comum, os seus valores
e estilos de vida eram convergentes e “tendiam mais para um consumo
aristocrático do que para uma racionalidade burguesa” (Martins 1998: 105).
32 Hermínio Martins definiu a classe alta portuguesa como sendo composta por:
“latifundiários, financeiros, grandes industriais e outros homens de negócios; os mais altos escalões dos corpos oficiais e do professorado, o episcopado católico e os mais prestigiados profissionais liberais” (Martins 1998: 105).
Grandes empresas familiares 61
Este panorama foi radicalmente alterado com a revolução democrática de
Abril de 1974. A nova orientação da política económica, claramente visível no
processo das nacionalizações, promoveu uma ruptura total no processo de
crescimento e desenvolvimento dos grandes grupos económicos então existentes
em Portugal. A 14 de Março de 1975, como reacção ao golpe militar frustrado do
dia 11 desse mês, foram nacionalizados os sectores financeiros (bancos e
companhias de seguros nacionais), industriais mais importantes (cimentos,
siderurgia, adubos, petróleos, tabacos, cervejas, construção e reparação naval) e
outros sectores de interesse público, como a electricidade, gás, água, transportes
colectivos. Os processos de nacionalização de empresas privadas tiraram às
famílias que constituíam o denominado “núcleo monopolista” do Estado Novo o
controlo sobre os seus negócios e sobre os destinos económicos do país, ao
mesmo tempo que fizeram desaparecer as condições privilegiadas em que viviam
antes da revolução.
Concomitantemente, a nova ordem social e as novas condições políticas do
período revolucionário, sobretudo as que resultaram dos acontecimentos do 11 de
Março de 1975, forçaram uma parte significativa dos membros destas famílias a
sair do país – a maior parte para o Brasil, Grã-Bretanha e Suíça – deixando para
trás os seus antigos impérios económicos nas mãos do Estado. No estrangeiro,
reiniciaram as suas actividades económicas e reconstruíram os seus impérios
económicos com grande rapidez. Para obtenção do crédito e dos sócios
capitalistas que lhes permitiram este segundo começo na vida empresarial foram
decisivos a boa reputação e as excelentes relações sociais e profissionais que os
membros destas grandes famílias empresariais portuguesas mantinham no mundo
da finança internacional.
A partir da segunda metade dos anos oitenta, com os três governos
sucessivos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Cavaco Silva, a
economia portuguesa entrou numa nova fase, com características marcadamente
diferentes das dos dez anos anteriores. Estes tinham sido caracterizados por uma
62 Grandes empresas familiares
marcada crise económica que, apesar de coincidente com a mudança de regime
político, não lhe deve ser atribuída em exclusivo.33
Ironicamente, foram aqueles que tentaram instituir uma democracia e iniciar
um processo articulado de desenvolvimento económico que receberam a pesada
herança de um regime totalitário que tinha retardado o desenvolvimento
industrial, onde a agricultura era demasiado atrasada e insuficiente e o sector
terciário muito incipiente. Simultaneamente, a nacionalização de sectores chave da
economia portuguesa não cumpriu o seu objectivo de proporcionar o
desenvolvimento do sistema económico. Depois de quarenta e oito anos de um
crescimento e desenvolvimento económico limitado, os resultados pouco visíveis
dos primeiros dez anos de regime democrático, as oscilações político-económicas
num ambiente pós-revolucionário de tendências socializantes – acompanhados
por movimentos sociais mais ou menos radicais –, não contribuíram para a
estabilidade e para o desenvolvimento social e económico do país. Um dos
principais elementos de limitação da transição aberta pelo 25 de Abril resulta,
precisamente, do fosso existente entre as urgentes necessidades de transformação
da sociedade portuguesa e as capacidades internas disponíveis para o fazer.
Segundo Augusto Mateus isto é particularmente identificável
no terreno das realidades económicas: dez anos depois, o desenvolvimento
económico português continua à espera de uma estratégia e de uma realidade
prática capazes de responder quer aos anseios internos quer aos desafios
colocados pelas mutações que atravessam a própria economia mundial (Mateus
1985: 285).
Apesar de a transição política imposta pelo 25 de Abril ter promovido
importantes transformações institucionais, o facto de, em 1974, a economia
portuguesa se encontrar numa situação incipiente e precária, levou a que o
33 De acordo com José da Silva Lopes, a verdadeira explicação para essa crise deve
procurar-se na influência conjugada de três factores preponderantes: 1) os choques petrolíferos de 1974 – o preço do crude passou de três para doze dólares por barril – e de 1979 – o preço duplicou; 2) o choque da descolonização – que causou um aumento de cerca de sete por cento da população portuguesa durante os anos de 1975 e 1976; 3) o choque das perturbações revolucionárias que se seguiram à mudança de regime político (Lopes 1996: 240).
Grandes empresas familiares 63
processo de desenvolvimento e modernização económica do país fosse muito
lento. Como lembra Augusto Mateus no artigo citado anteriormente, não
devemos esquecer que as transformações económicas estruturais não podem ser
induzidas apenas por mudanças institucionais, é necessária uma alteração de
comportamentos.
Em 1986, a entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu reforçou os
efeitos da tendência para um enquadramento económico mais liberal, mais assente
nas forças de mercado e na iniciativa privada, tendo os primeiros apoios dentro
do quadro comunitário (iniciados em 1987) e a descida do dólar e do petróleo
contribuído largamente para a consolidação da estabilidade social34, política35 e
económica36 que se atingiu nesse período. No decorrer destas legislaturas o
governo promoveu reformas estruturais nas instituições, regulamentações e
mecanismos de funcionamento da economia com vista a reduzir os obstáculos
que se opunham à livre actuação das forças de mercado e da iniciativa privada.
Um dos aspectos centrais destas reformas foi a privatização de uma boa parte das
empresas nacionalizadas a partir de 1987.37
34 Os movimentos sociais de carácter mais radical que marcaram o período pós-1974,
como as greves, as ocupações de empresas, casas e terras, as manifestações e alguns, felizmente poucos, actos de violência, tinham já acalmado por esta altura. A viragem à direita que resultou na vitória do PSD nas eleições de 1985 e que teve a sua confirmação nas maiorias parlamentares que este partido alcançou nas eleições de 1987 e 1991 revelam que a população portuguesa procurava recuperar alguma estabilidade.
35 Pela primeira vez desde 1974 assistia-se a um governo de longa duração: entre 1985 e 1995 sucederam-se três governos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Aníbal Cavaco Silva.
36 Marcada pela estabilização da inflação e a diminuição da divida externa para as quais muito contribuíram a estabilidade do mercado internacional e dos preços do petróleo (cf. Lopes 1996).
37 “A possibilidade legal para promover as privatizações foi aberta pela revisão constitucional de 1989 e em 5 de Abril de 1990 publica-se a lei quadro das privatizações, que enunciava como objectivos da reprivatização de empresas do sector publico a modernização e o aumento da competitividade das unidades económicas, o reforço da capacidade empresarial nacional, o desenvolvimento do mercado de capitais (…) e a redução da dívida pública. Várias privatizações parciais tinham, porém, já sido efectuadas (até 49% do capital, como foi o caso do Totta & Açores e da Unicer) antes da publicação da lei” (Lopes 1996: 356).
64 Grandes empresas familiares
O contexto global de estabilidade que se começa a sentir nos anos oitenta,
fortemente marcado pela reconstituição da classe média e do seu nível de vida,
transmitiu àqueles que tinham saído do país a ideia de que estavam reunidas as
condições necessárias para poderem regressar a Portugal. Mas foi, sobretudo, o
início do processo de privatizações e a possibilidade de readquirirem as suas
antigas empresas que permitiu às grandes famílias retomar as suas actividades e
relações económicas, sociais e políticas no contexto nacional. Desde então,
assistimos ao rápido crescimento destas empresas, o que reflecte o grande
dinamismo das novas gerações das antigas famílias que dominavam a economia
portuguesa antes da revolução democrática que, desta forma, conseguiram
readquirir a importante posição que tinham perdido. Efectivamente, foram
principalmente os elementos das gerações mais novas que levaram a cabo este
processo de reconstituição dos grupos económicos das suas famílias, recuperando
as suas prestigiadas posições no mundo económico português e internacional.
Actualmente, alguns dos antigos grupos de base familiar que se
desenvolveram e cresceram ao longo deste século voltaram a ter um peso
importante no panorama económico nacional e, embora com características e
dimensões diferentes, ocupam de novo um lugar de destaque na sociedade
portuguesa.38 Simultaneamente, neste período de expansão da economia
portuguesa, em grande parte resultante do estímulo à iniciativa privada,
começaram a desenvolver-se outros grupos económicos de grande dimensão, de
entre os quais podemos destacar a SONAE, o grupo Amorim e o grupo BCP.
A mudança de regime político em 1974 implicou transformações radicais na
economia portuguesa. O impacte destas não teve, no entanto, resultados idênticos
nas diversas empresas portuguesas. As diferenças desses impactes devem-se,
fundamentalmente, ao facto de umas terem sido nacionalizadas e outras, apesar de
na altura terem passado por algumas dificuldades, terem continuado nas mãos dos
seus donos.
38 A série de artigos publicados por Helena Garrido no Diário de Notícias em 1995 sobre
este assunto intitulava-se, significativamente, “O regresso das grandes famílias”.
Grandes empresas familiares 65
Para o conjunto de empresas que estudei, o 25 de Abril teve efeitos e
consequências muito diferentes. Por exemplo, as empresas da família Mendes
Godinho foram muito afectadas pelo processo de nacionalizações, pois foi-lhes
nacionalizada a Casa Bancária que tinham em Tomar. Como já se disse, o facto de
esta ter sido posteriormente integrada no BESCL foi fatal para a família, pois as
restantes empresas que detinham eram propriedade da sociedade que detinha a
Casa Bancária. Durante um primeiro período a Tagol, sendo uma empresa muito
rentável, permitiu a sobrevivência económica da família e do seu grupo
económico.39 Porém, este período de sucesso não durou muito tempo. O grupo
não conseguiu recompor-se e reestruturar-se de forma a superar as alterações
promovidas no sistema económico português após 1974.
Por seu lado, as empresas da família Espírito Santo foram, na sua grande
maioria, nacionalizadas em 1975. A saída para o estrangeiro obrigou os membros
desta família a dar um salto muito grande a nível da organização da gestão e
planificação dos seus investimentos, que não se vislumbrava num futuro próximo,
caso Portugal tivesse continuado sob um governo que defendesse a ideologia e a
política económica do Estado Novo. O espírito nacionalista de Salazar era
aplicado também aos mercados de concretização dos negócios, pelo que as
empresas portuguesas investiam fundamentalmente em Portugal e nas Províncias
Ultramarinas. Os empresários mais ligados ao regime aceitavam as regras do jogo.
Num depoimento à revista Exame, Manuel Ricardo Espírito Santo relata a
resposta que o seu pai, então presidente do Conselho de Administração do
BESCL, lhe dava sempre que ele insistia na ideia de que era oportuno o Grupo e a
família fazerem alguns investimentos no estrangeiro:
39 A Tagol era, aliás, uma importante referência económica nacional (em 1990 facturou
vinte e três milhões de contos) tendo o presidente do seu conselho de administração sido considerado por Filomena Mónica um dos grandes patrões da indústria portuguesa (Mónica 1990).
66 Grandes empresas familiares
Portugal é grande demais para que nos possamos dar a esse luxo; não se
esqueça de que o País não é apenas um canto da Europa mas também as
Províncias de Além-Mar; e os elevados investimentos que lá temos feito, como
bons portugueses, não nos permitem encarar outras alternativas além das
nacionais (in Manuel Ricardo Espírito Santo 1989: 44).
No caso do Grupo Espírito Santo, foi o exílio forçado dos seus membros e
a necessidade de recomeçar, no estrangeiro, as suas actividades económicas “a
partir do zero”, como gostam de lembrar, que transformou o que era um grande
grupo financeiro de âmbito nacional num grupo internacional de grande
envergadura. Neste momento, o grupo que é aparentemente o mesmo de há vinte
e cinco anos, nada tem a ver com o Grupo Espírito Santo anterior a 1974. Já não
são uma tradicional família de grandes banqueiros portugueses. São, nas palavras
de Manuel Ricardo, “uma partnership, um grupo com parceiros internacionais
poderosos” – de entre os quais se destacam o Crédit Agricole (francês), o grupo
Agnelli (Italiano) e o Chase Manhathan Bank (norte-americano) – com uma
estrutura muito complexa de holdings e sub-holdings que são ramificações das duas
holdings maiores: a Espírito Santo Financial Holding e a Espírito Santo Resources,
dependentes da Espírito Santo International Holding.
Para as famílias D’Orey, Soares dos Santos, Pinto Basto e Queirós Pereira,
os efeitos do novo sistema económico instalado em Portugal no pós-25 de Abril
não se fizeram sentir de uma forma tão dramática como para as famílias Mendes
Godinho e Espírito Santo. Apesar de algumas delas terem também visto as suas
empresas nacionalizadas – como o caso da família Queirós Pereira –, como não
tinham uma grande visibilidade social no âmbito da sociedade portuguesa, não
foram tão afectadas. No caso da família Pinto Basto as dificuldades que se
sentiram despois deste período tiveram a ver, sobretudo, com as grandes
mudanças no âmbito dos seus negócios tradicionais. A decadência da
popularidade dos navios de passageiros e a sua substituição progressiva pelos
aviões afectou o núcleo central da actividade da Casa E. Pinto Basto. Depois de
passados os momentos de reivindicação sindical mais activos dos primeiros anos
do regime democrático, a participação deste conjunto de famílias nas empresas
Grandes empresas familiares 67
não foi alterada. Por outro lado, os efeitos da internacionalização da economia
portuguesa no período pós-1974, da liberalização do desenvolvimento industrial
e, sobretudo, do estímulo dado pela integração de Portugal no Mercado Comum
Europeu, foram decisivos para o seu desenvolvimento posterior.
Desde 1974 a posição, a importância e o destaque das empresas familiares
na economia portuguesa sofreu uma grande alteração. Deixando de ser
beneficiadas – tanto a nível legislativo pelo condicionalismo industrial como a
nível ideológico pela importância do ideal de família do Estado Novo –, as
grandes empresas familiares portuguesas estão actualmente em situação de
igualdade com as empresas que têm uma estrutura accionista diferente. Aquelas
que conseguem manter a sua importância no actual panorama empresarial
português tiveram de adaptar a estrutura da sua organização, gestão e processos
de recrutamento de pessoal às exigências da economia moderna. Sobre estas
transformações falarei ao longo dos próximos capítulos.
CAPÍTULO II
GRANDES FAMÍLIAS EMPRESARIAIS DE LISBOA
1. As grandes famílias de Lisboa formam uma
comunidade de práticas
As famílias com que trabalhei constituem grupos familiares coesos que estão na
base da formação de poderosos grupos económicos. Logo no início da
investigação, levantou-se a questão de saber se este conjunto de famílias constituía
um grupo social com consciência de si próprio, cujos membros partilhassem
valores, representações e práticas. Podia tratar-se, simplesmente, de um conjunto
de famílias cujo único elemento unificador fosse a natureza e a preponderância da
sua intervenção económica e social em Portugal.
Desde as primeiras entrevistas, porém, foi-se tornando claro que as
pessoas que constituem estas famílias empresariais partilham muito mais do que
um lugar no topo da hierarquia das empresas nacionais e que estes grupos
familiares apenas aparentemente são independentes. Para além de possuírem um
elevado estatuto social, os membros destes grupos familiares partilham um
conjunto de interesses, ideais, um modo de vida, atitudes, formas de
comportamento, formas de ser, fazer e vestir. As práticas que desempenham em
comum remetem para a partilha de algo mais abrangente e significativo que o
simples êxito empresarial; para um “estilo de vida de grupo”, que é, afinal, aquilo
a que Abner Cohen denominou “mística da elitilidade”.
A “elitilidade” é o conjunto de qualidades de excelência, que só pode ser
aprendido informalmente, na “alta sociedade”. Esta mística não é só uma
fórmula ideológica, é também uma forma de vida, que se manifesta em padrões
de comportamento simbólico. A ideologia é objectivada, desenvolvida e
mantida por um corpo de símbolos e de performances dramáticas: maneiras,
etiqueta, estilo de vestir, acento, padrões de actividades recreativas, regras de
casamento e um conjunto de outros traços que fazem o estilo de vida de um
grupo. É um culto muito elaborado e que se adquire durante longos períodos
em contextos sociais informais como a família, o clube e nas actividades
extracurriculares de escolas exclusivas (Cohen 1981: 2-3).
72 Grandes famílias
Para além de um estilo de vida em comum, verifiquei que as pessoas deste
grupo social formam uma rede estreita de relações, nas quais é difícil um estranho
entrar.40 Quando no decorrer de uma entrevista acontece falar de alguém que não
está aparentemente relacionado com a pessoa com quem estou a falar, as
respostas são, frequentemente, do tipo: “Conheço lindamente, é filho de uma
amiga íntima da mãe”, ou “é super meu amigo, andámos juntos na escola”, ou “o
meu irmão andou com ele no colégio”, ou “o pai caçava sempre com ele”.
Os membros destas famílias conhecem-se em situações diversas e
sobrepostas. Partilham relações de amizade, relações profissionais, andam nos
mesmos colégios, têm amigos comuns, frequentam os mesmos clubes, são
convidados para as mesmas festas, têm casas próximas umas das outras. Estes
diversos espaços de sociabilidade e interconhecimento promovem redes de
relações mais ou menos fechadas que se tendem a reproduzir no tempo e através
das gerações criando, assim, barreiras informais à entrada de novos membros. Há
um conjunto de elementos exteriores que mostram a pertença a uma elite que
podem ser adquiridos ou aprendidos – como sejam, a pronúncia, as escolas que
frequentam os seus filhos, as profissões escolhidas, os locais onde residem, os
estilos de roupa que vestem. Porém, uma pessoa só será reconhecida como um
verdadeiro membro da elite se fizer parte dessa densa rede de solidariedades
primárias que liga os membros do grupo. São estas redes extensas, complexas e
exclusivistas que fornecem as bases da identidade colectiva destas famílias. As
relações que este colectivo de homens e mulheres mantém e o estilo de vida e
interesses económicos, sociais e políticos que partilham derivam de um processo
cultural relacional que os transforma numa comunidade de práticas.
40 O exercício do controlo sobre quem pode, ou não, entrar na densa rede de relações
que constitui a elite e a garantia de que os seus descendentes lhe continuem a pertencer constituem a chave para a manutenção do estatuto de elite ao longo de gerações familiares. A “exclusividade” que caracteriza o grupo de elite, claramente visível na dificuldade de admissão de novos membros no seu interior, é apontada pela maior parte dos autores que se debruçam sobre este tema como sendo uma importante característica das elites (cf. Cohen 1981; Bottomore 1965; Mills 1956; Nadel 1990; McDonogh 1989). Esta é a principal base para a formação da ideia de que a elite é um grupo conspiratório. Segundo Meisel a elite desenvolve três cês: Consciência, Coesão, Conspiração (cf. Cohen 1981: xvi-xvii).
Grandes famílias 73
No entanto, estas famílias não constituem propriamente um grupo social,
pois a sua constituição não se baseia nas suas fronteiras, mas sim em laços de
conhecimento pessoal de longa data, no cruzamento de factores identitários
comuns, na partilha de projectos de vida e de uma certa visão do mundo que,
desta forma, tem continuidade nas gerações seguintes. Constituem aquilo a que
Jean Lave e Wenger (1991: 29, 42) designaram por uma comunidade de acção: um
conjunto de indivíduos, de famílias que se relacionam e partilham um mesmo
conjunto de valores e ideais, que promovem, consequentemente, sentimentos de
identificação mútua e asseguram a unidade do grupo, permitindo-nos pensá-las
como um grupo social perfeitamente identificável na sociedade portuguesa. A
comunidade de acção que formam não deve, portanto, ser descrita em termos de
processos formais de integração, mas sim através do que Abner Cohen denomina
por redes de “amity” (1981: 222) – redes de relações sociais que englobam as
pessoas com as quais um indivíduo pode contar e que incluem parentes e amigos.
Estas redes de identificação interpessoal unem pessoas com base, sobretudo, em
formas de intersubjectividade.41
A comunidade que estas grandes famílias de Lisboa constituem não tem
uma correspondência territorial, não representa nenhum lugar particular. É uma
comunidade de práticas, de representações e de valores, que une pessoas que
partilham um conjunto de relações próximas e que se reconhecem como
membros de um colectivo sempre activado, que partilham um passado comum e
que, no presente, dão continuidade aos laços de afinidade, aos hábitos e valores
que têm em comum, reproduzindo a rede de solidariedade que os une. As pessoas
que pertencem a um grupo dessa natureza tendem também a integrar os seus
filhos na rede de sociabilidades em que estão inseridas. Através das suas
solidariedades primárias, os indivíduos criam uma comunidade de acção que
41 Entre este conjunto de famílias de elite de Lisboa encontrei apenas um espaço onde a
sua existência como grupo assume uma dimensão formalizada: a pertença ao único clube social português – o Turf Club. O Turf era frequentado pelas mais importantes famílias da sociedade lisboeta e pelas famílias reais europeias que passavam pela cidade (cf. Langhans 1973). O limite do número de sócios, exclusivamente homens, era em 1973 de duzentos. Entre os sócios encontramos um grande número de membros das famílias que estudei, sendo de destacar a família Espírito Santo e a família Pinto Basto, cujos membros masculinos eram todos sócios.
74 Grandes famílias
estabelece, simultaneamente, as bases que permitem a sua continuidade nas
gerações seguintes, pois os seus filhos, para além de estarem juntos em momentos
de lazer, tenderão a frequentar as mesmas escolas e os mesmos lugares de
sociabilidade. Desta forma, lançam as bases sobre as quais reproduzirão ao longo
de sucessivas gerações, o conjunto de valores e ideais que partilham,
consolidando, assim, uma densa rede de relações sociais. No âmbito destas
relações partilhadas quotidianamente constrói-se um certo sentido de vida em
comunidade.42
Mas, será o facto de partilharem um elevado estatuto social e económico o
suficiente para se concluir que constituem uma elite? Será que esta comunidade,
que domina economicamente a nossa sociedade e que tanta importância social e
política tem a nível nacional, forma uma classe na sociedade portuguesa? Já em
1965, num dos textos mais influentes sobre a teoria das elites, Bottomore
afirmava que “uma das questões mais problemáticas de todas as doutrinas sobre
as elites é a assunção de que os homens com poder constituem um grupo coeso”
(Bottomore 1965: 35). Na verdade, se assim fosse, qualquer grupo de pessoas
poderia constituir uma elite, exclusivamente devido ao facto de os elementos que
o compõem serem ricos. Porém, a riqueza, só por si, não define a pertença social
dos indivíduos e o dinheiro tem diferentes significados dependendo das suas
origens e de quem o controla. Há, por exemplo, diferenças no desempenho social
das famílias, que opõem old money a novos ricos.
Embora o termo elite seja claro no que significa – descreve situações de
qualquer tipo de superioridade social –, é ambíguo quanto aos seus referentes
precisos pois, apesar de implicar uma imagem de desigualdade na gestão do poder
nas relações interpessoais, nada nos diz sobre o grupo social a que se refere. São
42 São vários os autores que propuseram definições de comunidade neste sentido
desterritorializado. De acordo com esta perspectiva defende-se que as relações sociais que os indivíduos estabelecem entre si são a base sobre a qual se produz, verdadeiramente, a comunidade. Sobre a forma como a socialidade deixou de ser pensada como resultado directo de processos de agregação passando a ser vista como o centro da constituição das comunidades sociais, vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Calhoum 1980; Worsley 1983, Strathern 1988, Lave e Wenger 1991, Sobral 1993 e Pina Cabral sd).
Grandes famílias 75
duas as principais vantagens da utilização deste conceito que remetem, porém,
para esta relativa ambiguidade definicional:
1) o conceito de elite é mais útil do que outros conceitos frequentemente
usados para descrever situações de superioridade social – tais como os conceitos
de “classe governante”, “aristocracia”, “ricos”, “classe alta” ou “privilegiados”. A
vantagem da categoria “elite” sobre estes últimos é que, sendo uma categoria
abstracta e abrangente, permite significar tudo isto;43
2) o conceito é útil porque nos remete para a empiria. O conceito elite
implica colocar a agencialidade no âmbito dos pequenos grupos e não em
entidades impessoais – tais como organizações formais e colectividades de massas.
Através da sua utilização torna-se, portanto, mais fácil atribuir a responsabilidade
das mudanças sociais a pessoas concretas – que cooperam e tomam decisões, que
produzem efeitos, que condicionam os acontecimentos que os outros vivem – e
não a colectivos abstractos e imprecisos, como acontece, por exemplo, quando
falamos de “classes sociais”. Ao promover a descrição empírica, o conceito de
elite adquire uma utilidade heurística mais vasta do que, por exemplo, o conceito
de classe, categoria definida em termos de critérios formais partilhados por
indivíduos – rendimentos, qualificações, posses, posição na hierarquia
administrativa, residência – que têm pouco valor antropológico.44
A escassez de reflexões sobre a questão das classes sociais na literatura
antropológica é debatida por Raymond Smith no artigo “Anthropology and the
concept of class” (1984), onde defende que, apesar de a antropologia não ter
realizado um debate profundo sobre o tema das classes sociais adoptando, na
maior parte das vezes, as definições das outras ciências sociais, a disciplina
contribuiu decisivamente para o debate, pois as análises antropológicas mostram
43 Sobre a defesa da utilização de conceitos tão abstractos que evitem a prisão a
determinados contextos empíricos e/ou a modelos teóricos veja-se Needham 1971 e 1971a.
44 Estes critérios não contribuem para a compreensão das classes altas porque apenas permitem produzir uma mera categorização e descrição, que seria, nas palavras de Leach, como “coleccionar borboletas” (cf. Leach 1961).
76 Grandes famílias
que as dimensões culturais e ideológicas das relações de classe são fundamentais
para perceber qualquer contexto social (cf. Smith 1984: 467).
Num recente artigo em que debate a ausência da categoria cultural de
“classe” no discurso americano, Sherry Ortner levanta uma questão importante e
que coloca a reflexão sobre as diferenças de estatuto social na ordem do dia da
agenda da antropologia:
Antigamente procurávamos um conhecimento de outros universos culturais
como sendo representações coerentes e valiosos sistemas de significado e
ordem para aqueles que neles vivem. Tomávamos as culturas como expressões
autenticas de formas particulares de vida em tempos e espaços particulares.
Mas, agora reconhecemos que as culturas estão cheias de desigualdade, de
diferentes conhecimentos e interpretações e com vantagens diferenciadas para
as diferentes pessoas (…) Ao estudarmos as formas como as culturas de
grupos dominantes e subordinados se moldam uns aos outros, (...) temos, ao
mesmo tempo, que trabalhar contra a negação da autenticidade cultural que
isto implica e, simultaneamente, contra o facto decorrente de a etnografia dos
mundos culturais significantes já não ser, em si mesma, uma empresa
significativa (Ortner 1991: 187).
A fatia mais relevante dos estudos sobre elites nas ciências sociais debruça-
se sobre as elites de poder, sobre as classes governantes (cf. Mosca 1939, Pareto
1950, Mills 1956, Chandler 1977 e Domhoff 1980a). Desde os pioneiros da
reflexão sobre o tema – Mosca e Pareto –, numa altura em que importava
defender as linhas ideológicas de um sistema democrático contra os princípios do
socialismo (cf. Bottomore 1965), que as linhas de desenvolvimento mais
abundantes sobre elites sociais se inscrevem no quadro da sociologia política, da
ciência política e da economia política (Giddens 1974 e Mills 1956).45
45 Gaetano Mosca foi o primeiro autor a elaborar teoricamente a distinção entre a elite e
as massas, propondo-se elaborar uma nova ciência política, a partir desse fundamento (Mosca 1939). Também Vilfred Pareto (1950) concebeu a elite como um grupo de pessoas que exercem o poder político ou que estão em condições de influir sobre o seu exercício. O contributo mais importante da reflexão destes autores sobre as questões das desigualdades na sociedade moderna e liberal, pelo menos do ponto de vista da antropologia, é a ideia de que no centro da organização dos grupos de elite se encontram as famílias. Segundo estes autores, a acumulação de capital e as redes de
Grandes famílias 77
A reflexão sobre as elites coloca uma contradição no seio das sociedades
democráticas. Numa sociedade democrática, baseada na igualdade, onde a
competência torna os profissionais iguais, independentemente da sua origem
familiar, não deveria, teoricamente, haver distinções nem clivagens sociais
(Bottomore 1965: 17-19, Giddens 1974: 2-4, Cohen 1981: xvi e Marcus 1983: 8-
13). Neste sentido, vale a pena citar de novo, apesar de longamente, Abner
Cohen:
Nas sociedades liberais do Ocidente as elites não são reconhecidas como tal,
isto é, como fazendo parte da estrutura social. Os membros dessas elites não
são reconhecidos como um grupo, mas apenas como uma categoria de pessoas
que adquiriram o seu estatuto por mérito, dentro de um sistema altamente
competitivo. No entanto, mesmo nos casos em que isto eventualmente
acontece, aqueles que adquirem o seu estatuto de elite começam rapidamente a
coordenar as suas acções de uma forma cada vez mais sistemática e consistente.
Eles procuram também perpetuar o seu estatuto e privilégios através da
socialização e treino dos seus filhos, de forma a que estes os possam suceder.
Assim, a categoria evolui no tempo para um grupo de interesses corporados.
Estes interesses são incompatíveis com o princípio da igualdade de
oportunidades defendido pela sociedade, pelo que não pode ser defendido em
nenhuma associação formal (Cohen 1981: xvi).
Nas sociedades democráticas não deveriam, pois, existir elites. Porém, as
diferenças sociais e económicas existem. É por isso que os indivíduos que vivem
em condições materiais, culturais, políticas e sociais obviamente privilegiadas,
apesar de terem consciência desse facto, negam que pertencem a uma elite,
tentando diluir-se na paisagem social. Mostrando isto mesmo, a maior parte dos
elementos das famílias com que trabalhei afirmam frequentemente que “somos
todos iguais” e toda a gente deve ser tratada como igual, “devemos respeito a
todos”. Em geral não ostentam formas exteriores de riqueza. Por exemplo, no
dia-a-dia não usam muitas jóias, nem peças de adorno ou vestuário exuberantes.
Pelo contrário, vestem-se com descrição, exibindo o charme discreto do seu bom
alianças sociais são elementos centrais para a manutenção dos grupos de elites (cf. Hansen e Parish 1983: 265).
78 Grandes famílias
gosto, apesar de tanto as instalações das suas empresas – muito bem decoradas e
repletas de obras de arte valiosas – como as casas em que vivem – ricamente
mobiladas e situadas em locais prestigiados – revelarem claramente o valor do
património económico, artístico, cultural e social da família.
Apesar de, a um nível discursivo, defenderem a ideia de que todas as
pessoas são iguais, as práticas quotidianas e os ambientes onde vivem mostram o
contrário: mostram que há uns que fazem parte do seu grupo social e outros que
não. A oposição entre o discurso e a prática é resultado do facto de aqueles que
pertencem a este grupo de estatuto terem de “ser visíveis uns para os outros mas
invisíveis enquanto grupo para o público” (Cohen 1981: 217). Tal decorre da
referida contradição que enforma as elites nos regimes democráticos.
Os trabalhos mais frequentes sobre as camadas de topo da sociedade
ocidental têm sido levados a cabo no sentido da análise das classes dirigentes, por
sociólogos e historiadores que se têm debruçado, sobretudo, sobre a organização
da elite, sobre o seu lugar no sistema social mais vasto e têm elaborado uma
análise da cultura e das práticas deste grupo social. Neste sentido, sociólogos
como Giddens e Stanworth defendem que o uso do termo “grupo de elite” deve
limitar-se apenas à designação de indivíduos que ocupem formalmente posições
de autoridade à cabeça de uma organização ou instituição social (cf. 1974: 4).
Defendem uma definição operacional do conceito de elite que permita definir as
elites económicas na acção, na medida em que as elites económicas são aquelas
que controlam a atribuição do capital e não aquelas que possuem, simplesmente,
capital.46
46 Num interessante artigo sobre a constituição e a definição de grupos de “elites”, Nadel
discute as condições e as características que permitem a transformação de um grupo de pessoas que partilha o mesmo estatuto social elevado numa elite. Na sua opinião: “As elites (...) devem ter um certo grau de corporacidade, características de grupo e exclusividade. Deve haver barreiras para a admissão de pessoas de fora. (...) devem formar uma unidade mais ou menos consciente de si própria dentro da sociedade, com os seus direitos, deveres e regras de conduta particulares” (1990: 33). De acordo com esta ideia, Nadel defende que o termo elite só deve ser aplicado a grupos propriamente ditos: um corpo organizado de pessoas, com direitos e obrigações corporativos, com uma admissão seleccionada e que estejam unidos por uma identidade colectiva.
Grandes famílias 79
É a este nível que a antropologia pode dar um contributo decisivo para a
compreensão deste tema. Se, através do conceito de elite, nos referimos não
apenas à categoria de pessoas que partilham esses critérios, mas também aos
interesses, às formas de cooperação e coordenação de actividades corporadas,
através de relações comuns desses mesmos indivíduos, então, para definirmos
empiricamente o conceito, teremos de dar conta do modo de vida dos membros
desse grupo, dos significados e códigos de conduta que partilham, que os une e
lhes confere alguma identidade colectiva.
Decorrente da utilização do método etnográfico de pesquisa, através da
análise do particularismo de pequenos grupos de poder, a antropologia pode
fornecer uma nova perspectiva aos estudos sobre as várias formas de poder na
sociedade ocidental. A acumulação de capital por parte da elite é um fenómeno
transgeracional: as fortunas iniciais são geradas numa vida, mas os objectivos
partilhados pelos descendentes dos dinâmicos indivíduos que constituem essas
fortunas são direccionados para a sua perpetuação. Sendo as elite entidades
familistas, cujas estratégias de defesa dos seus capitais acumulados ao longo do
tempo assentam justamente em processos de mobilização de parentes, a
antropologia está particularmente bem colocada para as analisar. Na medida em
que os métodos tradicionais da antropologia examinam formas de poder que não
estão claramente formalizadas ou institucionalizadas, podem ser muito úteis para
examinar relações entre aspectos da vida social que outras disciplinas separam
para elaborar a análise.
A organização de elites baseadas na família não desapareceu. Pelo contrário,
as formas como as elites organizam a sua existência demonstram que a família e o
parentesco continuam a figurar de uma forma importante nas sociedades
capitalistas, estando associados, ou mesmo, servindo de base para o
desenvolvimento e manutenção de outras formas de poder. Neste sentido,
Hansen e Parrish defendem que as classes altas da sociedade capitalista colocam
um paradoxo à antropologia: sendo as elites consideradas como o núcleo social
que perpetua e dinamiza o desenvolvimento da ordem social moderna, é
surpreendente que o parentesco desempenhe funções de tal forma importantes na
80 Grandes famílias
estruturação das relações primárias entre os membros dessas elites e que, mais
ainda, seja um elemento central na manutenção da organização destes enquanto
grupo (Hansen e Parrish 1983: 276).
2. Estudos sobre elites na antropologia
A análise de grupos de elites foi sempre uma prática comum nos trabalhos
antropológicos sobre sociedades exóticas, apesar de muito poucos antropólogos
se terem debruçado explicitamente sobre esse tema. Na verdade, os antropólogos
apoiavam-se com frequência nas elites locais para serem aceites pelo resto da
comunidade. Neste sentido, a investigação etnográfica evidenciava
frequentemente a perspectiva que as elites ofereciam enquanto anfitriãs dos
antropólogos.
Deve notar-se também que a reflexão sobre relações de poder, estrutura
social e organização social, que atravessa grande parte da literatura antropológica
deste século, sobretudo no âmbito do estrutural-funcionalismo britânico, assenta
no estudo dos grupos dominantes social, religiosa ou politicamente. No entanto,
estes temas nunca deram azo a uma reflexão mais aprofundada ou comparativa
sobre elites sociais, provavelmente devido ao contexto social “não moderno” a
que se circunscreviam.47
47 Excepção a esta situação foi Edmund Leach que, em Abril de 1968 organizou no St.
John’s College em Cambridge um seminário sobre elites na antiga colónia britânica da Índia intitulado Elites in South Asia, que deu origem a um volume com o mesmo nome (Leach e Soumendra 1970), no qual se debatia a formação de elites sociais locais após a independência da Índia.
Grandes famílias 81
Na origem deste afastamento estão as ideias de Talcott Parsons sobre a
forma como a importância conferida às relações de parentesco diminui à medida
que se avança na escala social (cf. Parsons 1949). Talcott Parsons foi o grande
precursor da ideia, com muitos seguidores durante os anos quarenta e cinquenta,
de que a família nuclear neolocal, desligada das demais relações de parentesco, é
um traço distintivo das sociedades ocidentais, industriais e urbanas. A sua
concepção funcionalista da família ignora os trabalhos dos historiadores que há
muito mostravam a existência de uma situação exactamente inversa entre as elites
aristocráticas ocidentais48 e relaciona a coesão familiar com as necessidades de
sobrevivência. Daqui o corolário segundo o qual os pobres, mais que os ricos,
têm redes familiares fortes.
É dentro desta perspectiva que devemos compreender o facto de os
trabalhos de investigação etnográfica em contextos ocidentais se terem começado
a desenvolver no âmbito das sociedades camponesas, na Europa do sul e nos
bairros de emigrantes das grandes cidades. Na verdade, estas eram as áreas
consideradas menos “evoluídas” e, portanto, as zonas mais evidentemente
“exoticizáveis” das nossas cidades modernas, constituindo agrupamentos
facilmente identificáveis com as comunidades tradicionalmente estudadas pela
antropologia. A chamada “antropologia das sociedades complexas”
metamorfoseou os contextos sociais em que se desenvolveu, tornando-os
semelhantes aos que inicialmente constituíam os terrenos exóticos de reflexão da
disciplina.
Desde finais dos anos cinquenta que os trabalhos sobre bairros de classes
médias – como os de Firth (1956), Young e Wilmott (1957) e Bott (1956) – e a
proposta de John Davis no sentido de levar a cabo uma antropologia da
administração em Itália (cf. Davis 1974) contribuíram para o alargamento da
antropologia urbana a sectores da população das quais estava até então arredada.
No entanto, são poucos os trabalhos antropológicos sobre as camadas mais altas
das sociedades ocidentais.
48 Sobre este assunto vejam-se, por exemplo, os trabalhos de LaDurie 1980 e de Georges
Duby 1981.
82 Grandes famílias
Curiosamente, proliferam um pouco por todo o mundo ocidental relatos
“jornalísticos” sobre a vida de famílias social, económica e politicamente
proeminentes. O fascínio que o tema exerce sobre o grande público é claramente
comprovado pela quantidade de publicações a ele dedicadas, entre as quais
podemos destacar a !Hola!, Hello, Olá Semanário ou Paris Match, e pelo
impressionante número das suas tiragens.49 Este fascínio pára, no entanto, à porta
da universidade, como bem o demonstra a raridade com que se realizam trabalhos
sobre as classes altas no âmbito disciplinar da antropologia. Esta situação não pode
deixar de surpreender. Se queremos compreender melhor uma determinada
sociedade, não faz sentido excluir, à partida, os elementos que constituem o topo
da sua hierarquia e que dominam importantes centros de decisão.
No âmbito disciplinar da antropologia, foi Laura Nader quem chamou a
atenção pela primeira vez, em 1969, para a necessidade de os antropólogos
fazerem o que denomina de study up. Na sua opinião, o estudo do Homem
encontrava-se, na altura, numa situação sem precedentes, pois “nunca
anteriormente tão poucas pessoas tiveram, pelas suas acções e inacções, poder
sobre a vida e a morte de tantos membros da espécie” (1969: 285). Nader defende
que “estudando para cima” os antropólogos poderiam compreender, sob novas
perspectivas, alguns vectores das sociedades contemporâneas. Segundo esta
autora, a antropologia estaria particularmente vocacionada para uma reflexão
deste tipo, uma vez que poderia fornecer uma nova perspectiva aos estudos sobre
o poder debruçando-se sobre as dinâmicas específicas das famílias e das redes
sociais de elite que têm estado arredadas do debate académico, mais preocupado
em saber se há ou não uma classe governante (cf. Mills 1956, Pareto 1950, Mosca
1939, Domhoff 1980, Chandler 1977).
Desde então, temos assistido a um lento desenvolvimento de trabalhos
antropológicos sobre as camadas sociais mais elevadas da hierarquia da sociedade
Ocidental, através dos quais diversos autores têm mostrado a existência e a
49 Os impressionantes números das tiragens semanais da revista !Hola! são disto uma bom
exemplo: setecentos e cinquenta mil exemplares por semana, dos quais vinte e cinco mil são vendidos em Portugal. A versão inglesa, a Hello!, tem uma tiragem de quinhentos mil exemplares semanais, esgotando normalmente as suas edições.
Grandes famílias 83
importância de densas redes de parentesco nos mais altos níveis da hierarquia
social. De entre estes, destaco o estudo pioneiro de Richard Sennet (1980) sobre
as diferenças das relações sociais num bairro de Chicago, quando é ocupado
maioritariamente por famílias aristocráticas e quando, posteriormente, é ocupado
por famílias de classes médias. Posteriormente, são de destacar os trabalhos de
Susan Ostrander, que estudou as mulheres da classe alta em Boston, baseando a
sua investigação nas actividades de beneficência e serviço social que estas
desempenham (1984 e 1989); de Gary McDonogh sobre as “Boas Famílias” que
constituem a elite de Barcelona durante o século XIX e XX, em que o autor
analisou os processos de composição e manutenção da elite da capital catalã
enquanto comunidade (1989); de Larissa Lomnitz e Marisol Perez-Lizaur sobre
uma família da elite mexicana (1987); de Leonore Davidoff e Catherine Hall sobre
fortunas familiares inglesas (1987); de George Marcus sobre famílias dinásticas do
Texas (1988 e 1992); de Sylvia Yanagisako sobre famílias de industriais no Norte
da Itália (1991); de Lisa Douglas sobre as formas como a linguagem do amor, da
família e do parentesco servem de base para a constituição da elite crioula em
Livingston, na Jamaica (1992); de Beatrix Le Wita sobre a constituição do
prestígio social entre famílias burguesas de Paris (1985 e 1988); e de Betty Farrel
sobre famílias da elite de Boston (1993).
A produção antropológica sobre elites em Portugal é, tal como no
panorama internacional, muito escassa. São de destacar um pequeno trabalho de
investigação, sem continuidade, de João de Pina Cabral sobre famílias da
burguesia do Porto (1991) e a realização de uma investigação sobre as mais
importantes famílias inglesas do Porto que estão envolvidas na produção e
comércio de vinho do Porto (Lave 1998 e sd). Vale a pena salientar, no entanto, o
importante e significativo trabalho dos historiadores portugueses sobre esta
questão (cf. Mónica 1990, Costa Pinto 1992, Monteiro 1998 e Sobral sd).
84 Grandes famílias
3. A importância da família na formação e
na continuidade das grandes empresas
A área das relações domésticas é o contexto primário de produção das formas de
intersubjectividade que unem os membros destas grandes famílias numa
comunidade de acção. A aprendizagem, incorporação de hábitos, códigos, valores,
saberes, atitudes e relações de solidariedade que os indivíduos utilizarão mais
tarde, ao longo da sua vida, faz-se diariamente na intimidade da vida em família.
É, portanto, no âmbito da família que se adquire o conjunto de elementos que
promove a distinção dos seus membros (cf. Bourdieu 1979). Os relatos dos
membros destas grandes famílias são ricos em exemplos ilustrativos desta questão.
O avô queria que, de manhã, os filhos falassem com ele em Inglês (à Segunda,
à Quarta e à Sexta) ou em Francês (à Terça, à Quinta e ao Sábado). Uma vez,
era o tio R. pequenino e estava com o pai quando começou um tremor de terra
e, assustado, disse “O que é isto paizinho? A terra está a tremer” e o pai disse-
lhe serenamente “dit-le en Français mon enfant” (MaJ).
Nós não podíamos andar a olhar para o chão. Tínhamos de olhar sempre em
frente, direitas e com um ar assim … altivo. Como eu tinha este problema na
vista era horrível porque estava sempre a cair. Mas tinha de ser. Portanto, lá ia
eu, caindo. Andava sempre toda negra. No dia do meu debute, quando ia a
descer as escadas com o meu pai, se ele não me segurasse com força no braço
eu tinha caído por ali a baixo, à frente de toda aquela gente. Ia ser uma
vergonha (Me).
Através do hábito – no sentido de habitus proposto por Bourdieu (1980:
109) – e da vivência familiar, os jovens interiorizam e treinam valores, regras e
práticas que, parecendo pequenos pormenores, terão uma importância
Grandes famílias 85
fundamental na orientação da sua vida futura. São “esses pequenos nadas” que
definem e legitimam a pertença destes indivíduos a um grupo social particular.
Como resultado do processo de crescimento, as crianças e os jovens vão
adquirindo, ou melhor dizendo incorporando, de uma maneira natural e
inconsciente, como que por contágio, os elementos fundamentais da existência da
sua unidade social primária50, da sua vida futura na família e na comunidade a que
pertencem. O que se aprende com a experiência de viver em família durante o
período de crescimento, de formação dos indivíduos, não pode, portanto, ser
contabilizado apenas em conhecimentos quantificáveis, pois é algo bem mais
profundo. O que se aprende, ou talvez seja melhor dizer se apreende, é o material a
partir do qual cada um se irá constituir como pessoa: um conjunto de valores, de
formas de comportamento, de gestos, de gostos, um acesso a redes de relações
sociais e uma certa maneira de se relacionar com os outros.
Christina Toren defende que este processo, através do qual os indivíduos se
tornam no que são, não é correctamente caracterizado pelo conceito de
“socialização” que implica, de acordo com a autora, a ideia de um processo
unívoco e estático de transmissão e recepção de regras e valores entre gerações.
Para evitar esta imagem unívoca, Toren propõe que se utilize o conceito de processo
em constituição, pois a formação das pessoas faz-se através de um processo de
autopoiesis.51 De acordo com a autora, à medida que os indivíduos crescem entram
em relações com outros e, ao fazê-lo, atribuem um determinado sentido às coisas,
construindo assim um tipo de conhecimentos que é retirado da sua experiência no
mundo. Claro que as pessoas que os rodeiam, fundamentalmente familiares e
amigos, têm um papel importante tanto na estruturação das suas condições de
50 João de Pina Cabral propõe a utilização do conceito de unidade social primária, em vez
de família nuclear, para evitar atribuir significados pré-definidos a unidades de pertença dos indivíduos que só podem ser definidas pela descrição das relações estabelecidas no seu interior (1991: 135-143). No caso que analiso, esta distinção tem uma grande importância heurística, na medida em que a unidade social primária a que pertencem os membros destas famílias engloba o conjunto de relações com outros parentes próximos. Sem este conjunto de relações, a primeira não adquire o seu sentido global, pois perde elementos identitários que lhe são centrais.
51 Este conceito foi proposto pelos neurobiólogos Maturana e Varela para referir sistemas vivos que são auto-suficientes para se produzirem a si próprios, ainda que envolvam, no entanto, outros no processo de se construírem (cf. Toren 1999: 6-8).
86 Grandes famílias
existência como por lhes terem ensinado muitas das coisas que sabem sobre o
mundo. Mas, em última análise, são os próprios indivíduos que produzem o
sentido que atribuem às coisas e às relações a partir dos significados que lhes
apresentaram (Toren 1999: 7-8). O conceito proposto por Christina Toren dá
conta, de uma forma dinâmica, do permanente processo de crescimento e
formação das pessoas. Não retirando peso e importância à família este conceito
evita um certo determinismo subjacente ao conceito de socialização.
Ao mesmo tempo que se vai formando como pessoa, a criança vai-se
integrando, progressivamente, num conjunto de solidariedades primárias “que são
formativas da própria pessoa e expandem-se para além das relações
exclusivamente familiares, integrando-as numa dada concepção do mundo” (Pina
Cabral e Lourenço 1993: 42). Noutras palavras, as relações que os indivíduos
mantêm com os outros no decorrer da sua vida quotidiana, desde que nascem até
que morrem, enformam os processos pelos quais constróem, ao longo do tempo,
as suas relações sociais, as suas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas que os
rodeiam. Este processo duplo de produção de pessoas – enquanto indivíduos e
enquanto pessoas familiares – é o que conduz a que os filhos sucedam aos seus
pais nas suas práticas, nas suas relações sociais e nas suas empresas e ao
nascimento da vocação de empresários, nas novas gerações destas famílias.
As relações de sociabilidade que se estabelecem entre os elementos deste
conjunto de famílias resultam, portanto, de relações de intersubjectividade
anteriores. Isto é, foram passadas de geração em geração, reproduzindo no tempo
processos de solidariedades primárias de longo prazo e dando origem a um amplo
e poderoso capital relacional. Nas palavras de Bourdieu:
Os descendentes das velhas famílias, quando nascem, já possuem a antiguidade
da sua família. E este capital estatutário de origem redobra-se nas vantagens
que atribui, em matéria de aprendizagens culturais, das maneiras à mesa, à arte
de conversação, à cultura musical, ao sentido das conveniências, à prática de
ténis ou à pronúncia. Essa antiguidade, fornece-lhes uma precocidade da
aprendizagem da cultura legítima: o capital cultural incorporado das gerações
anteriores funciona como um avanço, pois o exemplo da cultura praticada no
Grandes famílias 87
seio dos modelos familiares permite, aos que nele entram de novo, começar
desde a sua origem, da maneira mais inconsciente e insensível, a aquisição dos
elementos fundamentais da cultura legítima (Bourdieu 1979: 77).
Sendo um contexto fundamental de constituição de pessoas e de redes de
solidariedade social, a família constitui, então, um contexto privilegiado para a
análise das relações estabelecidas nestas grandes famílias e nestas grandes
empresas familiares.
Esta não é, no entanto, a única razão para que a família assuma um papel
central neste trabalho. A centralidade que a família ocupa nas vidas dos indivíduos
com que contactei durante a investigação é claramente visível ao nível das suas
práticas quotidianas. O líder de uma destas grandes empresas familiares resume
este princípio de uma forma que não deixa margem para dúvidas: “A minha vida é
apenas dedicada a duas coisas: à empresa e à minha família” (EA).
Todas as pessoas com quem falei afirmaram fazer um investimento
consciente nas suas relações familiares. Vivem juntos, trabalham juntos e passam
os tempos livres e momentos de sociabilidade juntos. Vivem imersos numa densa
rede de parentes com um fortíssimo grau de trocas diárias e interdependência.
Falo com a mãe aí umas três ou quatro vezes por dia. Como os meus irmãos
me vão telefonando eu depois ligo à mãe a dar notícias de todos. Agora, na
minha hora de almoço, antes de ir à ginástica, vou comprar umas coisas que a
mãe precisa para um jantar no fim-de-semana. Como eu não sou casada e não
tenho filhos sou a moça de recados e a mensageira. A To é a confidente e os
meus irmãos, sobretudo os mais velhos, os conselheiros (Ma).
A minha família é muito grande e muito unida. Ajudamo-nos sempre uns aos
outros, e andamos sempre atrás uns dos outros. Se um faz anos lá vamos
todos. (…) Como trabalhamos em diferentes sectores do grupo estamos muitas
vezes em contacto, quer pela família quer pelo Grupo. Assim, a unidade
mantém-se. Há imenso jogo de equipa e a base é essa relação humana e
profissional (Ma).
88 Grandes famílias
Todos os anos alugo uma casa na quinta do Lago para mim e mais seis à volta
para ter os meus filhos e netos todos ao pé de mim nas férias (EA).
À quinta-feira vêm cá os meus filhos e netos todos jantar. É para os ver,
porque, desde que cresceram e foram para a escola, esta casa onde antes
ficavam todos os dias parece tão vazia (ML).
Esta densidade de relações no contexto da rede familiar tem por corolário a
consolidação de um forte espírito de família que assegura a coesão do conjunto,
baseado em referências históricas comuns que são um elemento de união e
traduzem a consciência de pertencer a uma rede familiar e social com contornos
claros e com origem num tempo passado.52
À semelhança do que encontramos entre as famílias aristocráticas, a origem
familiar é, para estas pessoas, um capital social muito importante. Da mesma
forma que nenhum aristocrata pode ser aristocrata só por si – pois tanto o seu
poder como o seu prestígio vêm da sua família de pertença – também a grande
família não se pode constituir apenas numa geração. Para que tal seja possível, os
descendentes do fundador da família terão de reforçar as relações que mantêm
entre si, ao mesmo tempo que enriquecem a sua rede de alianças sociais.
Enquanto sistema de relações e de acumulação de capital social, a grande família
só poderá tornar-se uma realidade ao longo das segundas e terceiras gerações.
Neste sentido, a transmissão para as gerações seguintes dos elementos que, no seu
conjunto, simbolizam a identidade da família – como sejam, o nome de família, a
memória dos seus antepassados e os seus bens patrimoniais adquire uma
importância central, tanto para a existência da grande família como para a sua
52 As trocas e entre-ajudas familiares são uma prática muito frequente em Portugal. Este
facto é anualmente confirmado no âmbito da disciplina que lecciono no ISCTE, onde os alunos fazem uma história de família. Da análise do arquivo acumulado ao longo dos últimos dez anos, com uma enorme diversidade de origem geográfica e social, é clara a importância das entre-ajudas entre familiares, tanto ao nível da organização da vida quotidiana das unidades domésticas – guarda de crianças e refeições – como a nível das necessidades menos frequentes – cuidados de saúde, ou necessidades económicas. Porém, o sentimento de pertença familiar apresenta-se mais difundido e com maior peso no âmbito das famílias de elite do que em grupos sociais de menos estatuto, na medida em que estes dependem mais da existência de redes colaterais de solidariedade e dependência do que de sentimentos de unificação passados.
Grandes famílias 89
continuidade. Na medida em que a identidade social destes indivíduos se apoia
fortemente nesse critério, o sentimento de pertença familiar torna-se,
consequentemente, importante para este grupo de estatuto.
Em síntese, a família premeia a existência dos elementos deste grupo social
de uma forma tão intensa que cria e reforça um forte sentimento: os seus
membros partilham algo em comum – um nome de família, uma história,
antepassados, casas de família e quintas, títulos nobiliárquicos, brasões, uma rede
de empresas. Todavia, partilham também um objectivo comum: perpetuar tudo
isto. Para me referir a este conjunto de bens identitários partilhados utilizarei o
conceito de património familiar, para dar conta simultaneamente das dimensões
económica, simbólica, social e cultural que caracterizam os seus múltiplos
componentes.53
4. A importância do passado e da tradição:
a adesão ao ideal aristocrático
Tenho vindo a defender que preservar a família como unidade de identificação
para os membros das novas gerações é um factor central para a continuidade da
grande família, pois permite a perpetuação das relações entre os seus membros, e
reproduz a legitimidade da sua já longa existência. Em consequência, estas
grandes famílias constróem uma imagem de si próprias baseada na ideia de uma
53 Este conjunto de bens identitários foi definido, de uma forma bastante descritiva por
Allen como “a herdade simbólica da família” (the symbolic family estate, Allen 1990: 102).
90 Grandes famílias
linhagem familiar, apelando para um sistema de criação e legitimação de laços de
identificação continuada.54 A importância que estas famílias atribuem ao grupo
familiar e à sua continuidade baseia-se num modelo em que o nascimento é um
importante classificador social e a antiguidade um bem fundamental, o que as
distingue na sociedade actual que valoriza a mudança e o novo.
Nalgumas ocasiões, o objectivo de continuidade do êxito social e
empresarial destas famílias faz desenvolver aquilo que George Marcus designou
por sentimento dinástico: o desejo de assegurar a continuidade dos símbolos visíveis
da unidade de um grupo familiar, da sua identidade social, normalmente associada
a um projecto económico sob o controlo dos membros da família (cf. Marcus
1992: 8-10). Nem sempre as empresas que adquirem um sucesso considerável têm
continuidade numa segunda geração da família, como mostrei anteriormente a
propósito do caso das empresas da família Cupertino de Miranda. Podem ser
compradas por terceiros ou, simplesmente, desaparecer.
Porém, também não é o mero facto de uma família conseguir transmitir
propriedade, terra e dinheiro, ao longo de várias gerações, que faz dela uma
grande família. Para se tornarem uma grande família, mais do que um grupo de
parentesco extenso, as suas actividades têm de ser modeladas por uma tentação de
imortalidade simbólica, que ganha força na prática progressiva de um destino
familiar colectivo. Neste sentido, ela torna-se uma entidade que transcende os
54 A identificação de uma situação semelhante nos EUA levou George Marcus a
caracterizar estas famílias dinásticas muito ricas como um fenómeno semelhante ao tribal (Marcus 1992: 4): “Estas famílias adquiriram durabilidade enquanto grupos de descendência numa sociedade burocratizada, porque assimilaram, em vez de lhes resistirem, características de organização formal que são normalmente concebidas como antitéticas aos grupos baseados no parentesco” (idem: 15). Apesar de ser muito interessante encontrar este tipo de ocorrência no topo da hierarquia social das sociedades ocidentais, não me parece de grande utilidade introduzir o conceito de linhagem para pensar fenómenos de organização de grupos de parentesco em sistemas sociais onde não existem fenómenos do tipo linhageiro. De facto, estas formações dinásticas desenvolvem-se através de processos de sucessão complexos, baseados na manipulação de critérios económicos, políticos e familiares e não exclusivamente por critérios de descendência que se atribuíam às linhagens e que estudos menos funcionalistas sobre o parentesco mostraram que não descrevem nem os próprios sistemas sociais a que o modelo se aplica (cf. por exemplo, Kuper 1988). Por esta razão, mesmo que estas famílias dinásticas pareçam tribos, que não são, não as devemos tratar como se fossem.
Grandes famílias 91
indivíduos, assegurando-lhes uma certa perenidade, enquanto um grupo de
identificação social. A vontade de transmitir a empresa familiar aos descendentes é
um dos dispositivos dinásticos mais importantes que encontramos nestas famílias:
a continuidade das empresas que condensam interesses comuns dota-as de um
valor simbólico que assenta, em grande medida, na possibilidade de aqueles que
estão à frente dos seus destinos num determinado momento, poderem referir-se
às gerações que os precederam, às marcas do sucesso dos seus familiares no
passado.
De forma a preservar a propriedade e o controlo das suas grandes empresas
familiares no futuro55, as gerações mais velhas não podem, assim, limitar-se a
procurar garantir que as posições executivas de topo sejam ocupadas por
membros da família. Têm, também, de garantir que os descendentes partilhem os
laços identitários que uniam os seus antepassados, esse amor pelo passado familiar
onde cresce o investimento pessoal para o seu desenvolvimento futuro. O esforço
no sentido de criar laços de identificação simbólica é um importante contributo
para a preservação da coesão familiar.
A formação de uma grande família não é, portanto, simplesmente uma
questão de continuidade biológica associada a um objectivo comum. A sua
formação corresponde a um ideal de continuidade da família, enquanto unidade
colectiva, enraizada nos símbolos mais visíveis, prestigiantes e antigos da sua
identidade.
Na prossecução deste ideal, as heranças ideológicas de uma tradição
aristocrática apresentam-se, no âmbito das ferramentas ideológicas existentes na
cultura portuguesa, como um modelo a seguir para garantir a continuidade
identitária destas famílias. O ideal aristocrático atribui especial importância à
55 Uma característica comum a estas grandes famílias ligadas a empresas é a tentativa de
manter a propriedade conjunta dos seus bens de maior relevância económica. Este ideal é difícil de conseguir pois, à medida que a família cresce e se desenvolve, aumentam as diferenças entre os diversos membros e diluem-se os sentimentos de solidariedade que os unem. Esta situação coloca problemas à continuidade deste projecto colectivo. O aumento de herdeiros potenciais e a proliferação de interesses que podem promover a diminuição do investimento no projecto colectivo são perigos que as novas gerações enfrentam.
92 Grandes famílias
recordação dos laços de parentesco, sendo a identidade familiar representada
pelos antepassados. Enfatiza ainda um ideal de varonia, que confere um
importante valor simbólico à transmissão agnática de elementos identitários,
como por exemplo o nome de família e os títulos nobiliárquicos. Ao fazer reviver
a linguagem da tradição aristocrática estas grandes famílias adaptam-na ao seu
interesse em privilegiar o grupo familiar continuado, em detrimento do indivíduo.
O facto de recorrerem a esta forma de organização menos “individualista” e,
portanto, menos “moderna”, confere a estas famílias uma imagem conservadora
no âmbito da sociedade portuguesa, pois apoiam-se em valores familiares cuja
importância tem vindo a diminuir significativamente entre os outros grupos
sociais portugueses, apesar de ser ainda relevante.56
Nem todas as famílias que estudei têm ligações directas à aristocracia. No
entanto, é notória a aproximação que a maior parte delas faz a formas de
organização aristocrática, através da valorização positiva de certos valores, ideais e
práticas, centrais a esse modelo.57 De entre estes saliento a importância atribuída à
organização patriarcal da família; à primogenitura; ao casamento com elementos
de famílias aristocratas; à antiguidade da família, que confere e legitima, o prestígio
e o estatuto social destas famílias – tornados visíveis, publicamente, através da
exibição de símbolos de nobreza, como o brasão de família, colocado num lugar
bem visível da casa; na utilização do título; na utilização do apelido; e a
importância atribuída à transmissão destes símbolos por linha varonil.
56 Em Portugal, apesar de actualmente serem pouco visíveis, os princípios de
organização aristocrática continuam a ter uma importância considerável nos meios de actuação dos descendentes das famílias nobres, ou daquelas que aspiram a sê-lo. José Manuel Sobral (sd) mostrou como estes valores estão claramente presentes nas relações de poder das aldeias da Beira interior. Outro exemplo desta situação pode ser encontrado no projecto de investigação que George Marcus está presentemente a realizar sobre a aristocracia portuguesa. A experiência do seu trabalho de campo com estas famílias e nas casas que representam, mostrou claramente que o modelo de família e de sociedade aristocráticas continua bem presente no seio da sociedade portuguesa igualitária, democrática e laica, onde a ideologia hegemónica é abertamente contrária a um sistema baseado na transmissão de cargos e estatutos por herança e filiação. Agradeço a George Marcus, Diana Hill e a Fernando Mascarenhas a gentileza de terem partilhado comigo o material da sua investigação.
57 Já Hermínio Martins tinha notado que os capitalistas portugueses” tendem mais a um consumo aristocrático que para uma racionalidade burguesa” (1998: 105).
Grandes famílias 93
Na verdade, não é necessário deter laços formais com a aristocracia
portuguesa para, como se verifica nestas famílias, se recorrer à utilização dos
valores culturais e das práticas centrais daquele grupo. Através da utilização dos
valores e ideais de organização aristocrática poder-se-á, a la longue, vir a ser
identificado com esse grupo. A família Espírito Santo é disto um bom exemplo.
Apesar de alguns dos seus membros se terem casado com elementos da antiga
nobreza portuguesa, a família não tem, por via do seu fundador, uma origem
aristocrática. No entanto, a distinção que caracteriza os percursos sociais dos seus
elementos, numa actividade pública já com um século de méritos reconhecidos ao
nível das suas actividades empresariais e sociais, que se desenrolam nas mais altas
esferas nacionais e internacionais, faz com que muitos elementos da aristocracia
portuguesa se refiram a eles como uma das famílias “mais aristocratas do nosso
país”.58 Por outro, a imprensa nacional e internacional refere-se a esta família
como “os únicos banqueiros aristocráticos portugueses”, comparando-os
frequentemente aos Rothschild, tanto nos seus percursos como na distinção que
caracteriza a vida dos membros destas duas famílias (cf Resener 1991).
Uma das famílias que estudei, fornece-nos um excelente exemplo para
melhor compreender a importância atribuída ao estabelecimento de laços de
descendência com famílias aristocráticas. O fundador da empresa familiar era
filho de pais incógnitos. Já depois da sua morte, um dos seus filhos tentou provar
que o pai do seu pai era um importante conde português, tarefa que não
conseguiu levar a cabo porque faleceu precocemente. Mais de quarenta anos mais
tarde, um neto do fundador retoma esse objectivo, pondo à disposição de um
historiador que se especializara sobre a história desta família, os meios financeiros
e logísticos necessários para tentar documentar a origem familiar do fundador da
empresa. As motivações deste neto do fundador não são exclusivamente pessoais,
pois as suas próprias origens aristocráticas estão claramente asseguradas pela
família de origem de sua mãe. No entanto, seria simbolicamente importante
conseguir estabelecer uma origem aristocrática para a linha varonil da família,
58 De novo, devo agradecer esta informação a George Marcus e Diana Hill.
94 Grandes famílias
aquela que representa o passado da empresa e que permitiria “aristocratizar” o seu
fundador e toda a sua descendência.
Ao usarem a linguagem da aristocracia portuguesa, estas grandes famílias
empresariais não manipulam exclusivamente relações sociais. Manipulam também
conceitos e valores que fazem parte do “aparelho ideológico geral” que é o legado
cultural histórico português, que define um modelo cultural ideal sobre o que é
preciso guardar, conservar de tempos sociais anteriores, de forma a garantir o
presente e o futuro de acordo com os seus modelos de organização. Os valores
que legitimam o modelo de ordem social e familiar destas grandes famílias
enraíza-se no passado.
Em resultado das grandes alterações que se verificaram na sociedade
portuguesa desde 1974, o facto de estas famílias continuarem a reproduzir esse
mesmo modelo de identificação, conduz a que sejam associadas a modelos
ideológicos que constituíram no passado a hegemonia instituída. Em particular,
essa associação é feita com o Estado Novo, cujo modelo ideológico se enraíza,
também, na manutenção da tradição, da unidade da família e na harmonia familiar
e na “não mudança”. No entanto, devo notar que este regime político – em geral,
apoiado por estas famílias – não fez mais que legitimar institucionalmente os
valores sociais e morais já defendidos por estas famílias e que, sendo anteriores à
constituição do regime salazarista, contribuíram para que este impusesse o seu
modelo corporativo de sociedade como modelo hegemónico durante meio século.
António de Oliveira Salazar foi um ditador conservador59 e católico que
tentou moldar todos os níveis da sociedade civil portuguesa de acordo com a sua
concepção do mundo e do homem, baseada numa moral nacionalista,
corporativista e católica (cf. Salazar 1966, Martins 1971 e Lucena 1976). Foi com
59 O carácter conservador de Salazar é exemplarmente assumido na carta que enviou ao
representante da Coca-Cola na Europa recusando a entrada do produto em Portugal. “Portugal é um país conservador, paternalista e – Deus seja Louvado – ‘atrasado’, termo que considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo, ou seja, o modernismo e a sua famosa ‘efficiency’. Estremeço perante a ideia dos vossos camiões a percorrer, a toda a velocidade, as ruas das nossas velhas cidades, acelerando, à medida que passam, o ritmo dos nossos hábitos seculares.” (Salazar in Mónica 1996: 221)
Grandes famílias 95
base nesse modelo que estruturou a política nacional, controlando a sua aplicação
a todos os níveis da sociedade portuguesa: económico, social, político, laboral,
familiar, educacional e cultural em geral.
A concepção profundamente católica e corporativa da sociedade defendida
por Salazar, conferia uma enorme importância aos laços familiares, tanto para a
vida doméstica dos indivíduos como para a própria manutenção da ordem social
da Nação. Sublinhando esta ideia Salazar escreveu num dos seus discursos:
Eis na base a família – a célula social irredutível, núcleo originário da freguesia,
do município e, portanto, da Nação: é, por natureza, o primeiro dos elementos
políticos orgânicos do Estado constitucional (Salazar 1966: 181).
Não discutimos a Família. Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se
forma o pequeno mundo de afectos sem os quais o homem dificilmente pode
viver. Quando a família se desfaz, desfaz-se a casa, desfaz-se o lar, desatam-se
os laços de parentesco, para ficarem os homens diante do Estado, isolados,
estranhos, sem arrimo e despidos moralmente de mais de metade de si
mesmos; perde-se um nome, adquire-se um número – a vida social toma logo
uma feição diferente (Salazar 1966: 185).
A importância que atribuía à família era tal que Salazar a instituiu como a
metáfora da Nação, concebida, por sua vez, como uma grande família. “A Pátria é
uma grande família. Como todas as famílias tem um chefe. O chefe que é o pai, é
querido, respeitado e obedecido pelo filho” (cit. in Almeida 1991: 255). Tal como
os homens são os chefes das suas famílias, também Salazar era o chefe, o pai, da
Nação portuguesa. E, tal como dentro da família, os filhos e as mulheres
respeitam e obedecem ao seu pai/marido, também os filhos da Nação deviam
respeitar e obedecer a Salazar. Desta forma, Salazar não só “assegurava” o
respeito e a obediência da Nação ao chefe, mas impunha também um modelo de
família, definindo a sua estrutura de autoridade e a divisão de papéis dentro desta.
Controlando as famílias podia-se controlar a Nação. E, educando orientadamente
as famílias, garantia-se a obediência do povo.
96 Grandes famílias
Queremos que a família e a escola imprimam nas almas em formação, de modo
que não mais se apaguem, aqueles altos e nobres sentimentos que distinguem a
nossa civilização: a autoridade do pai e o respeito dos filhos, a honra e o pudor
da mulher – cujo trabalho fora do lar devia ser evitado –, o profundo amor à
Pátria, como o dos que a fizeram e que pelos séculos a engrandeceram. Eis
outros tantos valores tradicionais que necessitam da família para se imporem na
sociedade. A família será, por isso, a garantia da moral, consistência e coesão
do todo social (Salazar 1966: 134).
A importância da célula familiar para o Estado Novo é bem visível nas
diversas instituições criadas especificamente para moldar a organização das
famílias e para as educar segundo uma determinada orientação, que reproduz o
modelo moral e de autoridade defendido pelo estado. De entre estas instituições,
foram de particular importância a Obra das Mães para a Educação Nacional e a
Mocidade Portuguesa Feminina que tinham como função educar as jovens “no amor
de Deus, da Pátria e da Família”. “A educação moral era a mais importante e
nesta, a elevação da vida do lar – o amor da família e a aceitação dos deveres que
ela impõe”. O fundamental da formação destas jovens, como mulheres, futuras
esposas e mães, era constituído por noções de economia doméstica, higiene e
enfermagem e pela “ciência das mães” – “a mais útil das ciências para a família e
para a Pátria” (Cova e Costa Pinto 1997: 83).
As grandes famílias empresariais com que trabalhei organizam-se e regem-se
pelos ideais da antiga tradição religiosa e aristocrática, pelo que estão ligadas a um
modelo de vida profundamente católico e fortemente enraizado num ideal de vida
familiar. No entanto, a ligação, por um lado, entre o modelo de vida e a
concepção do mundo destas famílias e, por outro, o modelo ideológico defendido
por Salazar deve ser colocada de forma a ultrapassar a mera colagem ao regime.
Na verdade, este último entronca na ideologia tradicional cristã, que estas famílias
de elite com perfil aristocrático seguem antes, durante e após a presença de
Salazar no poder. Isto é, este modelo não foi “inventado” ou proposto por
Salazar: ele apenas o impõe como modelo nacional, garantindo assim, talvez, o
apoio destas grandes famílias ao seu regime.
Grandes famílias 97
Se o ideal da aristocracia portuguesa estava de acordo com o modelo
ideológico sobre a organização familiar e social que caracterizava a sociedade
portuguesa antes de 1974, o mesmo já não acontece actualmente. Na sociedade
portuguesa moderna o peso da instituição familiar, na forma como os indivíduos
estruturam a sua identidade e organizam os seus percursos de vida, diminui
consideravelmente no âmbito das relações sociais e profissionais. As pessoas são
cada vez mais avaliadas pelos seus desempenhos e não pelas suas origens
familiares. Passamos, portanto, de um momento histórico em que estas grandes
famílias empresariais estavam em sintonia com o modelo hegemónico português,
para uma situação em que estas famílias se colocam nas margens dos modelos
hegemónicos da sociedade portuguesa, devido ao facto de continuarem a
defender e a organizar-se de acordo com os seus antigos valores, agora
considerados como correspondentes a uma ordem social passada. Por esta razão,
estas famílias são agora consideradas conservadoras e pouco modernas, o que
contrasta obviamente com a imagem de líderes de grandes empresas de sucesso
no âmbito do universo internacional de uma economia de mercado competitiva,
onde a modernização é um elemento fundamental do sucesso.
Porém, é fundamental deixar bem claro que o “conservadorismo”
aristocrático, defendido e praticado por estas Grandes famílias ligadas a empresas,
não se pode comparar ao conservadorismo de Salazar para quem – como mostrei
atrás em relação à questão da entrada da Coca Cola em Portugal – era sinónimo
de “atraso”, como ele próprio diz – de uma atitude de resistência à inovação, à
abertura, ao desenvolvimento e à modernidade.60 Estas famílias, tal como outras
que são representantes daquilo a que poderíamos chamar uma “aristocracia
empresarial” – como os Rothschild, os Warbourg ou os Rockefeller – podem ser
caracterizadas como conservadoras, apenas na medida em que, os elementos que
estruturam os seus projectos identitários e as suas famílias, se enraízam em valores
e tradições que remontam a tempos históricos passados. Contudo, os seus
60 Um bom exemplo deste conservadorismo excessivo e “atrasado” de Salazar é relatado
pelo próprio “A lei impede as mulheres casadas de serem enfermeiras (...) Insisti para que se aplicasse a mesma lei noutros serviços, mas não o consegui. As teorias e os factos falam contra mim e até a igreja me reprova” (Salazar in Catálogo da exposição Liberdade e cidadania 1999: 80).
98 Grandes famílias
membros são extraordinariamente cosmopolitas e as instituições que lideram são,
em muitos aspectos, muito inovadoras e modernas. As empresas que gerem
destacam-se das suas concorrentes pela inovação dos seus projectos, pela
criatividade e visão de futuro que os anima, enraizadas, em grande parte, nas suas
vivências cosmopolitas. Num certo sentido, no âmbito da vida económica
nacional, estas famílias “conservadoras” desempenham um papel dinamizador e
inovador decisivo para a modernização do país.61
5. A formação das novas gerações
Cada geração contribui para a formação e continuação da grande família. Estas
grandes famílias empresariais inscrevem-se num tempo familiar, sincopado pelo
ritmo dos ciclos de desenvolvimento das empresas, associado normalmente aos
processos de passagem de liderança de uma geração a outra, dentro de uma
mesma família. Esta ideia é bem visível na descrição que um membro destas
famílias fez do desenvolvimento da sua empresa.
Ao fundador sucederam-se os seus três filhos pela ordem natural: 1) José, que
consolidou a participação familiar na casa bancária, que transformou no Banco
Espírito Santo, desenvolveu a Tranquilidade e a Bonança e arrancou com as
actividades em Angola, criando a Sociedade Agrícola do Cassequel; 2) Ricardo foi o
obreiro da grande expansão da rede comercial do banco, da fusão com o Banco
Comercial de Lisboa (BCL) e do consolidar da posição de prestígio nacional e
internacional; 3) Manuel consolidou a obra dos seus antecessores e deu o
61 O importante papel destas famílias na dinamização do desenvolvimento de certas áreas
da vida nacional, pode também ser visto a nível das artes ou do desporto, como mostrarei mais à frente.
Grandes famílias 99
primeiro passo na presença do banco no plano internacional; 4) a Manuel
sucedeu o filho mais velho, Manuel Ricardo, o estratega da recuperação das
posições da família em Portugal (CR).
Mesmo as pessoas que pertencem a um mesmo grupo social, que partilham
uma mesma concepção do mundo e vivem um mesmo tempo familiar, se
integram nele de maneiras diversas, em resultado dos seus processos individuais
de constituição como pessoa e das suas experiências de vida. A posição relativa
dos indivíduos neste tempo familiar, o momento na história da família e da
empresa em que entram como agentes activos, na produção da continuidade de
ambas, condiciona a sua forma de actuação. Por outro lado, a geração a que
pertencem molda fortemente a maneira de equacionar e responder aos mesmos
acontecimentos, e terá uma influência diferente sobre os seus processos futuros.
Neste sentido, o tempo familiar é condicionado pelo contexto mais abrangente da
sociedade em que está inserido.
Como lembra Lisón-Tolosana, cada geração constrói a sua identidade por
referência à conjuntura que a cria de acordo com três elementos: a) o legado das
gerações anteriores; b) as experiências formativas dessa geração e; c) as
contribuições inovadoras dos seus membros (1983: 181). A noção de processo em
constituição ganha aqui de novo valor analítico, pois permite equacionar o
entrecruzar dos três elementos que enformam a constituição dos indivíduos como
pessoas, de uma forma mais descritiva que os conceitos de reprodução social e de
socialização. Os indivíduos que nascem nestas famílias são socializados de acordo
com os valores tradicionais caros aos seus membros. No entanto, a cada geração
que passa, a forma como esses valores são utilizados é diferente pois, para além
do processo educativo desenvolvido pela família, os jovens contactam com os
valores do seu tempo e integram-nos no modelo familiar, inscrevendo sinais de
mudança na continuidade do grupo.
Para descrever a forma como os diversos membros da comunidade se
posicionavam face aos cargos de exercício de poder, Lisón-Tolosana define três
grupos geracionais: i) a geração declinante – inclui as pessoas que estão agora a
deixar os lugares de poder; ii) a geração controlante – que compreende as pessoas
100 Grandes famílias
que estão actualmente a exercer os lugares de liderança; iii) a geração emergente –
composta pelos jovens que se preparam para a vida adulta.
Esta forma de definir posicionalmente a relação dos indivíduos com as
posições de tomada de poder é particularmente útil no contexto das grandes
empresas familiares, pois é dessa maneira que os seus membros se concebem na
sua estrutura de poder: i) aqueles que já fizeram o seu percurso profissional e que
têm como tarefa fundamental assegurar a integração dos mais novos no sistema;
ii) aqueles que atingiram os lugares de poder depois de se terem formado (como
profissionais, como pessoas, como membros da família e do grupo); iii) a aqueles
que “estão a ser produzidos” como futuros continuadores do projecto familiar.62
Neste contexto social, a valorização positiva da família e da sua
continuidade é um factor fundamental na educação das crianças a que é dada uma
importância decisiva. Não me refiro exclusivamente à formação escolar dos
jovens, mas sim à sua educação num sentido mais amplo: a aprendizagem de um
conjunto de valores, interesses e comportamentos que os integrem numa
determinada rede de relações sociais onde a partilha de um conjunto de
significados promove uma comunidade de intersubjectividades. Os membros das
novas gerações destas famílias constituem-se como pessoas no âmbito de um
projecto educativo que procura imbuí-los deste espírito e torná-los nos futuros
reprodutores da comunidade em que estão inseridos.
É neste sentido que podemos entender que estas famílias escolham para os
seus filhos um conjunto, relativamente restrito de instituições escolares,
privilegiando colégios religiosos que, aliados à escolarização, lhes dêem uma
“boa” formação moral, “boas maneiras” e “bons costumes”. Porém, onde essa
valorização se expressa de uma forma mais evidente é, na prática, frequente até
meados do nosso século, de os primeiros anos de escolaridade serem feitos em
casa, garantindo assim a conjugação do ideal do espírito de vida em família, dos
62 Um excelente exemplo deste processo é a forma como se têm alterado, ao longo deste
século, os critérios exigidos aos membros da família para trabalharem nas suas empresas sem que tenham, no entanto, mudado os valores simbólicos que lhe estão subjacentes. A análise deste ponto será desenvolvida no capítulos VII.
Grandes famílias 101
valores, maneiras e ideais que orientam a sua visão do mundo e do que se espera
da aprendizagem escolar.
Quando éramos mais novinhos tínhamos professoras em casa. Tivemos
professoras inglesas, francesas e alemãs que nos ensinavam línguas e música.
Quando chegava a altura íamos fazer os exames ao liceu. E mais tarde, aí por
volta dos onze ou doze anos, íamos então para os colégios. Rapazes para um
lado e raparigas para outro (MC).
Durante os meses que estávamos na quinta, o Sr. Lopes (da escola oficial da
Ajuda) ia dar-nos lições. Coitado, ia de barco, depois de camioneta até Azeitão
e depois vinha na charrete dos P até à quinta. Ao fim do dia regressava pelo
mesmo processo (Me).
Às vezes a nossa casa era uma confusão. Tínhamos de falar em português com
o pai e com a mãe, em francês com a Mademoiselle Hélene e em Inglês com a
Miss Daisy (Mi).
Ter professores em casa era, efectivamente, a forma ideal de conjugar a
aprendizagem escolar com a aprendizagem dos hábitos e valores familiares, sem
perder esse ambiente envolvente da casa de família, sem se separarem das imagens
dos seus familiares que decoram as suas casas. Fazer a escolaridade sem deixar o
ambiente familiar era particularmente importante no caso das raparigas, tanto no
sentido de as proteger mais dos “perigos do mundo exterior” como para se
integrarem mais precocemente e de uma forma mais profundamente enraizada na
vida diária da casa de família.
A frequência com que encontramos professores estrangeiros trazidos para
Portugal propositadamente para educar os filhos, revela a grande importância
dada por estas famílias à aprendizagem precoce de línguas estrangeiras. O
domínio de diversas línguas estrangeiras, sobretudo do inglês e do francês, é
considerado um sinal inequívoco de uma boa educação, de uma educação virada
para uma vida cosmopolita.
102 Grandes famílias
Nas férias de Verão, eu e os meus irmãos íamos sempre para o estrangeiro
aprender línguas. Íamos sobretudo para a Suíça, mas fomos alguns anos para
Inglaterra (Pq).
A mãe herdou do avô o gosto de que os filhos aprendessem línguas pelo que
mandou todos os filhos para colégios no estrangeiro. O tio J foi para um
colégio na Escócia e o tio M para Inglaterra. Eu fui para Londres, para uma
abadia beneditina onde só havia noviças. Aos quinze anos fiz a admissão a
Cambridge mas acabei por voltar para Portugal e fazer cá o sétimo ano. Depois
debutei e casei (MaJ).
Nós, os rapazes, estivemos dois anos internos em Inglaterra e depois sete ou
oito anos internos no Colégio Infante de Sagres em Lisboa, que ficava numa
quinta pegada à nossa casa na Quinta do Pinheiro (onde é actualmente a
embaixada dos EUA). As minhas irmãs estiveram seis anos internas num
colégio de freiras em Farmborough (Hampshire, Inglaterra). Depois foram para
Florença para um colégio estudar história de arte e escultura (Dt).
Quando eu vivia no Restelo, os meus filhos andaram no Colégio Avé Maria.
Mais tarde as raparigas foram educadas em Newall (Inglaterra). Os rapazes
estudaram em Rosée (na Suíça) e depois foram para França fazer o Bac (N).
Para além da aprendizagem da língua, ir estudar para um colégio estrangeiro,
sobretudo para Inglaterra, era uma aposta na educação completa do filhos, na sua
formação como pessoas. Efectivamente, a boa reputação dos colégios ingleses
não se limitava apenas à qualidade do ensino académico que ministravam. Era
resultado, sobretudo, da forma como conjugavam o ensino escolar com o ensino
das “boas maneiras”, e com o incentivo da prática de desporto. Em suma, uma
educação completa que forma pessoas cultas, educadas e saudáveis.63
63 Estas famílias conferem uma grande importância ao desporto. Nas palavras de Mi,
“uma coisa que eu devo às freiras inglesas é o gosto pelo desporto que é uma coisa a que os portugueses não ligam nenhuma. Ainda hoje com cinquenta e sete anos faço ginástica quase todos os dias”. Na verdade, a forma regular e intensa com que estas famílias se dedicam a práticas desportivas – entre as quais se destacam o ténis, a vela, o automobilismo, o Golf e, até aos anos sessenta, a esgrima – é uma característica comum a todas elas. Vários membros destas famílias foram campeões nacionais de ténis, esgrima e vela. Mas, mais do que estas performances notáveis, é de salientar o papel de algumas destas pessoas no desenvolvimento do desporto nacional. Por exemplo, o
Grandes famílias 103
No entanto, é preciso ter em conta que, apesar de se verificar uma certa
homogeneidade na escolha das escolas para os filhos, a situação diverge de família
para família e, dentro de cada uma delas, varia temporalmente. Por exemplo,
encontrei vários elementos destas famílias que frequentaram escolas primárias
públicas durante os anos cinquenta, coisa que nem os seus pais nem os seus filhos
fizeram. Assim, o actual presidente de um grande grupo económico, frequentou
uma escola primária pública de Lisboa, seguidamente foi para o liceu de D. Pedro
V e depois a Faculdade de Economia de Lisboa. Só depois de licenciado fez uma
pós-graduação em Inglaterra. Não terá sido nem por falta de posses, nem por falta
de interesse na educação deste jovem que os seus pais tomaram esta opção, ao
mesmo tempo que mandavam para Inglaterra as filhas com onze e treze anos para
serem educadas num colégio religioso, onde já tinham andado a sua mãe, tias e
avó.
A ideia da necessidade de dar uma educação diferenciada a rapazes e a
raparigas é claramente comprovada nas opções desta família, que teve sempre em
casa perceptoras para os filhos – uma inglesa e uma francesa.
Os meus dois irmãos mais novos já não tiveram de ir para Santo Tirso como os
mais velhos. Foram para o S. João de Brito quando abriu (IR).
Os meus irmãos estiveram em Santo Tirso no colégio jesuíta La Guardia.
Quando foi da revolta contra a igreja, vieram para Lisboa para casa do padre
Gabriel Ribeiro que dava casa a rapazes de família que estivessem a estudar. Eu
e a minha irmã estivemos dois anos num Colégio no Porto, o Coração de
Maria. Depois, viemos para Lisboa. Ficámos numa casa de Freiras do Coração
de Maria, pois tinha de ser uma casa que tivesse Santíssimo. Fiz o exame de
solfejo para admissão ao conservatório com o Viana da Mota e entrei. (…). Os
futebol foi trazido para Portugal por jovens destas famílias de elite que estudavam em Inglaterra e a maneira como este desporto se impôs na sociedade portuguesa deve muito à acção de Guilherme Pinto Basto que tomou a iniciativa de o apresentar, em 1888, numa exibição pública em Cascais, nos terrenos da Parada, com equipas que reuniam elementos das melhores famílias da época. Em Janeiro de 1889, organizou o primeiro jogo de futebol realizado em Lisboa, no Campo Pequeno, entre uma equipa portuguesa – composta por “uma elite da nossa melhor sociedade, rapazes das chamadas famílias de bem” (Parreirão 1996: 769) – e uma de ingleses que trabalhavam
104 Grandes famílias
meus filhos andaram no S. João de Brito. Foi muito bom quando o colégio
abriu porque, assim, já não tínhamos que mandar os rapazes para Santo Tirso.
Todas as famílias católicas puseram lá os filhos. Era muito bom e tinha muito
bom ambiente (MC).
Hoje em dia a situação é bastante diferente. Por um lado, o panorama do
ensino em Portugal melhorou consideravelmente. A oferta de colégios de
qualidade, nos quais se inclui um número razoável de escolas estrangeiras, é agora
bastante maior. Por outro lado, a mudança de costumes e mentalidades fez
diminuir consideravelmente, ainda que não totalmente, a procura de colégios
estrangeiros para a frequência dos níveis do liceu e mesmo de níveis de ensino
superior. De facto, já não é frequente encontrar jovens destas famílias a irem
estudar internos para um colégio no estrangeiro. A situação mais frequente é
fazerem o liceu e a licenciatura em Portugal e depois uma pós-graduação numa
universidade estrangeira de prestígio.
Apesar de já não ser muito frequente, a escolha de escolas estrangeiras –
sobretudo, inglesas, francesas, alemã e americana, por esta ordem de preferência –
continua a ser uma opção para estas famílias.
Os meus filhos andam no St. Julian’s. Fizemos essa opção porque quisemos
dar-lhes a possibilidade de verem desde pequenos que vivem num mundo
plural e cosmopolita e poderem aprender inglês como uma segunda língua
materna (D).
Há uma grande distinção entre os percursos de escolaridade de rapazes e
raparigas que, apesar de ao longo do século se ter vindo a esbater, só na década de
noventa se encontra praticamente diluída. De todas as famílias que analisei, no
âmbito das quais se incluem pelo menos duas centenas de mulheres, apenas duas
se licenciaram antes de 1974. No entanto, nenhuma delas exerceu a sua profissão.
Casaram, tiveram filhos e dedicaram-se à sua família.
A educação nestas famílias é algo mais amplo e mais importante do que a
formação escolar dos membros das gerações mais novas. Deve ser vista como um
no cabo submarino de Carcavelos. A este encontro assistiu a fina flor da sociedade
Grandes famílias 105
processo completo e complexo de constituição de pessoas familiares, de
aprendizagem de um modo de vida, de uma concepção do mundo que as novas
gerações devem aprender, de forma a poderem fazer parte da comunidade e
poderem assegurar a sua continuidade.
Uma situação em que se revela bem este “projecto educativo” é o facto de
em todas estas famílias encontrarmos em todas um grande sentido de
responsabilidade cívica e cristã que, sendo praticada diariamente, é também
transmitida de uma forma muito consciente às gerações seguintes.
Na nossa família há uma constante referência à benemerência. Temos sempre
presente a ideia de que os ricos são privilegiados e, portanto, devem ajudar,
proteger e formar quem não tem possibilidades. Os meus tios tinham todos
este espírito de criar condições para dar ensino a quem não tinha acesso. O
mais velho, o tio J deixou donativos para fazer um orfanato escola em
Albarraque. O tio M fundou o orfanato escola Santa Isabel e o tio R a
Fundação e a escola de artes (MaJ).
Este espírito de ajuda foi-lhes transmitido pelo pai que, desde que teve uma
situação económica estável, fez da caridade “um modo de vida”. Uma indiscutível
prova deste “modo de vida”, como lhe chamou uma das suas bisnetas, pode
encontrar-se numa das muitas notícias que os jornais da capital publicaram no dia
a seguir à sua morte:
José Maria Espírito Santo Silva era o maior benemérito da freguesia do Lumiar.
Pagava a renda de casa de muitas famílias que aqui vivem, ajudava o asilo da
Infância desvalida do Lumiar e a Sociedade de Instrução e beneficência José
Estêvão. Que será deles no futuro? (Diário de Notícias 28.12.1915).
A prática da caridade faz parte dos deveres do cristão. Mas ela inscreve-se de uma
forma particularmente marcante na tradição destas famílias.
O pai dizia sempre: seja generoso com a igreja e com os pobres. O mais
importante é a família, dar sempre o exemplo e estar pronto a ajudar quem
precisa (JM).
lisboeta, incluindo o Rei D. Carlos, um grande entusiasta da modalidade.
106 Grandes famílias
Na sua obra intitulada Charity begins at Home, Teresa Odenthal (1990)
descreve de uma forma muito interessante a produção de uma “cultura nacional
de filantropia” entre as famílias ricas dos Estados Unidos da América que
promovem e/ou apoiam organizações voluntárias. O grande investimento que as
famílias muito ricas fazem, um pouco por todo o mundo ocidental, em acções e
instituições filantrópicas revela, nas palavras de Mension-Rigau, que a caridade é o
contraponto moral da riqueza (1994) .
A primeira medida que o pai tomou depois de ter comprado a Herdade da
Comporta foi mandar construir casas para as famílias dos trabalhadores que
formaram bairros e que deram origem às actuais povoações onde vivem
actualmente cerca de sete mil pessoas. Posteriormente, mandou construir
escolas e mandou vir professoras primárias – chegaram a ter dez professoras
dentro da herdade: quatro no Carvalhal, quatro na Comporta e dois na
Carrasqueira. A mãe mandou logo trazer um padre para a aldeia, começaram
logo a dar catequese e baptizaram toda a gente. Tiveram que lhes ensinar tudo:
a comer, a cumprimentar e a vestir-se. Em 1964, como o pessoal ainda estava
muito mal instalado MR elaborou um plano de entrega de dez hectares a cada
família pelos quais estas se tinham de responsabilizar. A empresa fornecia os
adubos, máquinas e as sementes. Eles forneciam o trabalho. Conseguiram
assim melhorar muito a produção (passaram de 2.500 Kg de arroz por hectare
para 6.000 kg) e aumentar grandemente os rendimentos das famílias (as
mulheres passaram de 18$00 por dia e os homens de 20$00 para 50$00) (B).
Este sentimento de responsabilidade cívica e cristã é também utilizado
como pano de fundo para a inserção destas famílias na vida da comunidade em
que estão inseridas.
Em Ílhavo há ruas e carros de bombeiros com o nome do meu bisavô Carlos
Ferreira Pinto. Ele deu um contributo decisivo para o desenvolvimento da
terra e, inclusivamente, foi ele que deu o dinheiro necessário para a construção
da escola primária (CB).
Apesar de estas actividades beneméritas serem praticadas, de uma maneira
geral, por todos os elementos destas famílias, elas têm um maior relevo no âmbito
Grandes famílias 107
da vida social das mulheres. Estas actividades são vistas como uma contribuição
fundamental que as mulheres destas “boas famílias” podem dar às suas paróquias
ou para ajudar a resolver problemas graves da sociedade em que estão inseridas.
A minha mãe sempre esteve ligada às obras de caridade e chegou a fazer parte
do Conselho Supremo da Cruz Vermelha. Eu sempre aprendi com ela a ajudar
os outros. Para além de ser catequista, toda a vida estive na Caritas.
Actualmente faço as visitas a casa dos doentes da paróquia da Basílica da
Estrela (MaJ).
A minha mãe sempre ensinou catecismo na nossa paróquia (IR).
Actualmente estou envolvida num projecto muito interessante naquele bairro
dos realojados do Casal Ventoso. Temos conseguido um conjunto de coisas
verdadeiramente impressionante – tanto a nível de aquisições materiais como
de ajudas humanas. E tudo com base no voluntariado. Temos tido algumas
ideias que se revelaram incrivelmente eficazes. Por exemplo, a última foi pôr
em todos os hotéis (primeiro nos que estavam ligados ao Grupo do meu
marido e depois a muitos outros), caixas onde os estrangeiros podem deixar
aqueles trocos em escudos que nunca mais vão usar. Tiveram um enorme
sucesso e os portugueses também aderiram massivamente (Mjs).
No ramo dos Q tenho um primo que é padre e que há uns anos fundou uma
associação em Vale de Acor para ajudar toxicodependentes. Há algumas
pessoas da família que trabalham lá como voluntárias. E todos os anos fazem
um jantar de recolha de fundos onde vão muitos elementos da família e que
deixam importantes contribuições monetárias (BB).
Encontramos muitos dos membros destas famílias condecorados pelo
Estado português por terem sido importantes beneméritos. Tanto na família Pinto
Basto, como na família Espírito Santo, como na família D’Orey.
As inúmeras actividades de intervenção na vida pública da comunidade em
que estas grandes famílias estão envolvidas, mostram bem a importância que
atribuem à sua relação com o mundo em que vivem, não se fechando no seu
espaço de actuação mais restrito. Procuram dar uma imagem pública de si como
elementos importantes na vida social e não apenas no desenvolvimento
108 Grandes famílias
económico do país. A forma como esta imagem é construída revela, também, a
importância dos valores da família, da tradição, valores cristãos que guiam as
diversas dimensões da vida dos elementos das famílias que compõem este grupo
social.
De forma a conseguirem apresentar as relações familiares como “um valor
positivo” e de alguma forma legítimo, os membros destas famílias elaboram uma
série de instrumentos simbólicos que, ao permitirem a transmissão de estruturas de
poder, são também mecanismos ideológicos, tornando, assim, o parentesco num
“valor positivo”. O investimento nesta valorização é muito importante para que o
apoio à utilização de laços de parentesco, não seja visto como algo negativo, por
ser excessivamente “particularista”, no sentido atribuído por Abner Cohen (1981).
Para o evitar, há que realizar um percurso simbólico de superação desta potencial
contradição. Assim, para que estas famílias adquiram legitimação pública para o
seu elevado estatuto, os seus membros têm de assumir funções universalistas:
fornecer um serviço para o público. Mas, para o fazer têm de se organizar de uma
forma particularista, para garantir a sua existência e a sua imagem. Como lembra
Abner Cohen:
Uma elite é um grupo de interesses, e a sua cultura desenvolve-se como um
meio de coordenação das actividades corporadas que realizam para manter e
aumentar o seu poder. Nesta medida, a sua cultura é particularista. Mas, porque
os seus membros são ao mesmo tempo chefes de diferentes instituições
públicas e lideres de grupos nacionais, ao articularem as suas diferentes
actividades eles conseguem coordenar essas instituições e grupos, tornando-se
universalistas (Cohen 1981: 126-7).
O parentesco de âmbito particularista não seria outra coisa senão familismo,
nepotismo, e favoritismo, usado em proveito exclusivo da família, da continuação
do seu bom nome e da legitimidade do prestígio familiar. Para além da
acumulação de fortuna para benefício próprio, os membros destas grandes
famílias empresariais realizam obras de impacto suprafamiliar – como sejam
fábricas, instituições de ajuda, obras de caridade, alfabetização –, que conferem
Grandes famílias 109
uma certa estatura moral à sua riqueza.64 Através das actividades de benemerência,
feitas em nome de uma moral cristã, o recurso às relações de parentesco passa a
ser também um valor universalista: algo que é bom para mais pessoas do que
simplesmente para os membros da família. As actividades de intervenção social,
empenhada e intensa, que os membros destas famílias têm levado a cabo ao longo
das gerações, torna visível e legítima, a sua posição de destaque na vida social do
país, aumentando o seu prestígio e reforçando a sua inserção numa elite nacional.
64 Um dos fundadores e actual dirigente do Banco Alimentar Contra a Fome, é precisamente
um membro destas Grandes famílias ligadas a empresas que se dedica actualmente, em exclusividade a esta actividade de benemerência.
CAPÍTULO III
SÓCIOS E PARENTES
1. Sócios e parentes: dois jogos no mesmo
tabuleiro
A história destas famílias empresariais constrói-se de forma entretecida com a das
suas empresas. Os acontecimentos marcantes dos ciclos de vida familiar e as fases
evolutivas da empresa têm implicações em ambas as esferas de acção,
condicionando as respectivas dinâmicas. As relações entre a família e a empresa
não se circunscrevem, portanto, simplesmente a relações de titularidade de capital.
É neste sentido que Maria das Dores Guerreiro sugere que as empresas familiares
envolvem também uma constante articulação entre a actividade empresarial e a
vida doméstica, as trajectórias profissionais e a formação de disposições
empresariais, a transmissão de recursos e a sucessão de dirigentes, o
enlaçamento das estratégias familiares e profissionais (Guerreiro 1996: 54).
No entanto, os diversos interesses, valores e âmbitos de acção quotidiana
que se inter-relacionam inevitavelmente no âmbito de um negócio familiar, são
frequentemente concebidos como opostos pelas pessoas que nele estão
envolvidas. Ao levantar esta questão não pretendo reavivar fronteiras cristalizadas
entre o que David Schneider chamou de “o quarteto do parentesco, do
económico, da política e da religião na teoria antropológica” (1987: 181),
alertando a comunidade antropológica para os problemas que a sua separação
causou no desenvolvimento da disciplina. Antes, chamo a atenção para este facto
porque, neste caso etnográfico particular, a separação entre o domínio da
economia e o do parentesco é um problema émico fundamental e que está sempre
presente. Analisemos o que dizem os altos dirigentes destes grupos económicos
de base familiar:
114 Sócios e parentes
Agora, na era da globalização, já não há empresas familiares. Não se pode estar
à espera das pessoas da família para os quadros da empresa. Se eles forem
competentes, então entrarão para lugares médios e, depois de provas dadas,
podem chegar a assumir lugares de topo, mas o verdadeiro critério é a
competência e não a família (MF).
No mundo actual, as empresas não podem manter o controlo familiar. No
GES está hoje representado um largo número de interesses que transcende a
tradicional noção de grupo familiar. Isto sem prejuízo da representação da
família no órgão de comando superior do grupo (CR).
É preferível ter uma gestão profissional do que uma gestão familiar. O
envolvimento da família deve ser um referencial de valores, mas a sua gestão
deve ser profissional (Pq).
A ideia de que os negócios não devem ser misturadas com as relações
familiares é geralmente aceite em Portugal, aplicando-se aos parentes o provérbio
“amigos, amigos, negócios à parte”. Os dois tipos de relações que negócios e
relações familiares implicam são muito diferentes nas suas essências – interesse
económico e substância comum, respectivamente –, mas também nos seus
objectivos – lucro e solidariedade desinteressada, respectivamente. A defesa deste
ideal de separação entre negócios e relações de grande proximidade, tais como o
parentesco e a amizade, é obviamente contraditória com o elevado número de
empresas familiares que encontramos em Portugal. Neste sentido, parece-me
interessante analisar a contradição entre este discurso ideal e as práticas familiares
a que os indivíduos recorrem para produzir os seus descendentes como futuros
gestores e líderes das empresas que possuem.
Este é um dos aspectos que tornam as famílias ligadas a grupos empresariais
um universo de análise interessante, pois condensa as tensões decorrentes da
interpenetração e confronto entre relações familiares e económicas, que tornam
particularmente visíveis as tensões entre uma lógica individualista da sociedade
moderna e uma lógica grupal associada às sociedades pré-modernas (cf. Schneider
1987, Marcus 1992, Bestard 1998 e Piscitelli 1999).
Sócios e parentes 115
No âmbito das pequenas empresas familiares, esta sobreposição não se
torna um problema difícil de ultrapassar. Aliás, como mostrou Maria das Dores
Guerreiro para o caso português, o papel da família nas pequenas empresas é
ainda hoje avaliado de uma forma positiva. O êxito e o empenho individual num
projecto de independência económica bem sucedido são elementos tão
valorizados simbolicamente que esbatem as possíveis implicações da referida
contradição ideal.
Porém, no domínio das grandes empresas, essa sobreposição causa uma
certa forma de desconforto cognitivo entre as famílias abastadas da elite. Esta
ideia de contradição, associada à imbricação de relações familiares e económicas,
foi verificada em vários contextos da sociedade capitalista ocidental onde se
fizeram investigações sobre grupos análogos. Vejam-se em particular os casos dos
Estados Unidos (Marcus 1992), Itália (Yanagisako 1995), e Brasil (Piscitelli 1999).
A necessidade de diluir a importância da sobreposição entre negócios e
família é bem visível na frequência com que, ao longo destes três anos, várias
pessoas das famílias com quem falei fizeram afirmações do tipo: “somos uma
empresa familiar, mas funcionamos a um nível estritamente profissional e os
elementos da família que cá trabalham têm uma preparação profissional
adequada” (D). A adopção dos critérios hegemónicos do mundo dos negócios
por parte daqueles que controlam os destinos destas empresas, liga-se à
necessidade de tornar publicamente evidente que, no âmbito da empresa, os
interesses desta têm prioridade sobre os da família.
Claro que é importante ter elementos da família à frente da empresa, para dar o
exemplo e garantir a marca da família. Mas têm de ser bons e mostrar
resultados, se não mais vale porem um bom gestor à frente da empresa e
receber os dividendos ao fim do ano. Das duas uma: ou trabalham, ou põem lá
quem trabalhe. Se não fizerem nem uma nem outra coisa, ficam sem o lugar na
presidência, sem os dividendos e sem a empresa (BB).
A forma como este empresário fala da participação de membros da família
nas actividades de gestão das suas empresas familiares é bastante reveladora da
ambiguidade gerada pela sobreposição das esferas do trabalho e das relações
116 Sócios e parentes
familiares. Por um lado, defende a importância de manter membros da família à
frente dos destinos da empresa, de forma a não perderem o seu controlo. Por
outro lado, afirma a exigência de excelentes qualidades profissionais às pessoas
que gerem a empresa, de forma a garantir os bons resultados económicos desta.
Mas, para além destas questões, surge uma outra, que considero ser mais
relevante: o facto de alguns dos membros da família poderem assegurar as duas
condições fundamentais – a pertença familiar e a competência – permite garantir,
da forma que todos consideram mais prestigiante, que a continuidade do projecto
empresarial da família se efective sob o comando dos seus proprietários. Há,
portanto, uma clara divisão entre a propriedade das empresas e a sua gestão,
sintetizada de uma forma muito clara por um dos entrevistados:
A família é accionista e nada mais do que isso. O que há, são elementos da
família que desempenham funções na companhia, mas pelo seu mérito próprio
e não por serem membros da família (EA).
Os próprios membros destas famílias dedicam tempo e atenção à reflexão
sobre esta questão das empresas familiares, pois ela coloca-lhes problemas de
ordem prática, teórica e simbólica. Aliás, é interessante notar que os líderes destas
empresas estão, em geral, bem informados sobre a literatura respeitante às
empresas familiares. Em diversas entrevistas os meus interlocutores orientaram a
conversa para determinadas teorias sobre empresas familiares e para alguns
autores que são especialistas conhecidos sobre este tema, revelando assim que é
um assunto que os preocupa, sobre o qual estão bem informados.
Simultaneamente, testavam os meus conhecimentos.
Nos anos setenta, alguns teóricos defendiam que as empresas têm que ser
geridas com uma direcção objectiva, logo, não familiar. Depois da febre dos
take-overs dos anos oitenta, uma outra teoria veio rebater a anterior e dizer que
uma empresa familiar tem a vantagem de permitir consolidar e estabilizar a sua
estrutura, defendendo-a dos raiders e dos quadros superiores que procuram
maximizar ganhos pela liquidação de empresas, através da venda dos seus
activos. Se houver uma tradição familiar, a probabilidade de uma organização
ser destruída é incomparavelmente menor (Rs).
Sócios e parentes 117
Quando vemos um grande economista como o Jacques Attali escrever sobre
um grande homem como o Warbourg (não sei se conhece o livro mas se não
tiver eu posso arranjar-lho) e o vemos defender a possibilidade de grandes
empresas familiares vingarem durante séculos na alta finança mundial,
percebemos que se deitaram por terra décadas de teoria económica que
defendia a incompatibilidade de termos dos negócios familiares (AE).
A demonstração sistemática e quotidiana da competência profissional dos
familiares que gerem estas grandes empresas, verificável nos êxitos económicos
destas, é o argumento prático que permite aos membros da família superar a
contradição ideal entre os dois universos de acção e legitimar o seu estatuto de
profissionais competentes.
Esta contradição ideal entre sócios e parentes faz parte do modelo cultural
ocidental que separa família e trabalho, parentesco e economia, bem visível na
forma como a ciência económica tem relegado as empresas familiares para
segundo plano, em resultado da imposição de um modelo hegemónico de uma
racionalidade económica de mercado (cf. Weber 1984 e Goody 1996). O carácter
aparentemente paradoxal que sobressai, de múltiplas maneiras, da forma como
estes empresários se vêm a si próprios – como sócios e parentes, como
administradores e herdeiros – é um dos pontos que torna interessante a análise
destas situações organizacionais.
Analisar a relação entre trabalho e família, no âmbito deste universo
empírico, mostra que a empresa une o que o ideal separa. A empresa familiar,
enquanto projecto comum a diversos elementos de uma mesma família, ao longo
de várias gerações, produz um sentimento de colectivo. A união de esforços que
assegura a continuidade assenta, sobretudo, no valor simbólico do sucesso
económico e social, ultrapassando-se, assim, o ideal cultural que separa trabalho e
família. A análise desta contradição é um bom terreno para pensar os valores que
estão por trás das práticas destas grandes famílias empresariais, pois estas nem
sempre correspondem à transposição desses valores.
Apesar de os membros destas famílias defenderem idealmente a separação
da família e do trabalho, os seus percursos de vida e a história das suas empresas
118 Sócios e parentes
revelam uma total interligação e inseparabilidade entre ambos. Em primeiro lugar,
a grande família só existe, na forma como se apresenta no presente momento,
devido à existência da empresa familiar – como resultado do trabalho do
fundador e dos seus descendentes que deram continuidade aos seus projectos. Por
outro lado, essa indissociabilidade é revelada no facto de um número significativo
de membros destas famílias trabalharem nas empresas que possuem e no facto de
recrutarem para os seus quadros aqueles que entram para a família por casamento.
As grandes empresas familiares mostram que as relações familiares não
podem ser analisadas como se as relações de parentesco fossem dissociáveis das
suas implicações económicas, políticas e das diversas esferas de acção em que se
movem os indivíduos que nelas estão envolvidos.65 Neste sentido, tornam-se um
65 Esta pluridimensionalidade das relações de parentesco tem vindo a ser defendida na
antropologia pelo menos desde o trabalho de Evans-Pritchard sobre os Nuer (1940), onde o autor mostra a existência de uma estreita inter-relação entre as relações de parentesco e o contexto económico em que se movem os sujeitos. Mais tarde, Edmund Leach, no seu trabalho sobre Pul Elyia, defende que o parentesco é simplesmente um código para falar de relações económicas (Leach 1971: 299-305).
No âmbito das sociedades camponesas, a discussão das relações de parentesco e sobretudo das escolhas matrimoniais estrutura-se, também, em redor das estratégias de maximização dos recursos (vejam-se por exemplo os trabalhos de Brian O’Neill 1984, José Sobral sd, Martine Segalén 1985 e Françoise Heritier 1981). Todavia, é curioso notar que só bem mais tarde estas reflexões foram incorporadas nos estudos sobre contextos urbanos, onde esta relação é também muito evidente (como mostram, por exemplo, os trabalhos de Comas et al 1987, Lima 1992 e Cordeiro 1997). No entanto, apesar de a antropologia chamar a atenção para esta questão há tanto tempo, a economia e a sociologia continuaram a pensá-las, até há pouco, como duas esferas de acção social separadas. Exemplos claros desta situação são, por exemplo, a forma subalterna como a teoria económica tem considerado as empresas familiares e a institucionalização da separação família e trabalho nos sub-ramos disciplinares da sociologia da família e da sociologia do trabalho. Apesar da demonstração evidente, feita por vários autores destas disciplinas, da necessidade de abandonar essa separação (cf. Almeida 1985, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997) ela parece continuar bem viva no senso comum.
Foi no âmbito da reflexão sobre a construção das categorias de género e, sobretudo, no quadro dos chamados “estudos feministas”, que se produziram as críticas mais eficazes à separação das esferas do trabalho e da família. Estas vieram demostrar que os padrões e os tipos de trabalho desempenhados pelas mulheres sempre foram fortemente influenciados pela posição que estas ocupam no seio da família e pelos papéis que lhes são culturalmente atribuídos (cf. Yanagisako e Collier 1991 e Holiday e Ram 1993) os estudos feministas revelam a falsidade da separação entre trabalho e família. Não se pode compreender a integração dos indivíduos no mercado de trabalho sem conhecer o seu universo familiar, as suas necessidades, as estratégias que cada unidade familiar desenvolve para maximizar os seus recursos – incluindo aqui os recursos materiais, culturais, educacionais e valores sociais.
Sócios e parentes 119
contexto particularmente interessante para a reflexão antropológica sobre o
parentesco e as relações familiares nas sociedades ocidentais, pois força-nos a “ler
através das fronteiras” (Yanagisako e Delaney 1995: 12).
Apoiemo-nos, de novo, num exemplo empírico. A vida das empresas
sempre fez parte integrante da vida familiar dos Orey. Esta presença é visível em
várias dimensões:
Mesmo aos Domingos, o pai e o avô iam ao escritório abrir o correio e “ver se
havia alguma novidade”. Depois voltavam os dois de comboio para a quinta
para almoçar com toda a família. A avó ia lá ter sozinha, de carro, com o
motorista (IR).
A quinta onde viviam era um espaço de família, mas muitas vezes era
invadido pela empresa, unificando espacialmente as relações entre indivíduos que
também nas suas acções, decisões e vivências quotidianas não separavam negócios
e família. Usar o tempo de estar em casa para dar continuidade aos afazeres da
empresa é uma prática comum, aprendida desde pequeninos a observar o pai que
todos os dias “trazia uns dossiers com ele para estudar em casa” (ZL). No Verão,
quando os dias eram grandes e toda a família dava uma volta pela quinta, o
passeio era aproveitado para introduzir os rapazes mais velhos nalguns negócios.
O pai ia mais à frente connosco explicando, pedindo opiniões sobre o assunto,
ensinando-nos a ver todas as possibilidades. Acho que foi nesses passeios que
aprendemos a discutir sempre com os outros elementos da família as decisões a
tomar (ZL).
De acordo com o que contam os descendentes dos vários ramos D’Orey, as
decisões dos negócios mais arriscados eram tomadas com o apoio de toda família
e não apenas dos elementos que participavam nos negócios. Antes de Ruy D’Orey
investir na compra dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo – que viriam a tornar-se
uma das principais empresas da família – reuniu com a mulher e os filhos mais
velhos. Disse-lhes que ia fazer um negócio arriscado. Podiam ganhar muito, mas
também podiam ter que ir lavar pratos. Todos o apoiaram. Correram o risco,
porque confiavam nele. Tudo correu bem, mas o risco foi assumido por todos. O
120 Sócios e parentes
envolvimento da família na vida desta empresa foi inscrito de uma forma
indelével nos nomes dados aos primeiros lugres construídos na Companhia de Pescas
de Viana: Santa Manuela e São Rui – “até o cardeal patriarca dizia que só o Vasco
D’Orey é que podia descobrir um São Rui” (IR).
São muitos os descendentes dos fundadores que trabalham, ou trabalharam,
na Orey Antunes, tentando manter o espírito de família e de unidade que fez com
que se referissem à empresa como “a Casa”. Esta empresa funciona, de facto,
como uma casa de família, como um lugar onde se encontram muitos parentes,
como uma instituição que reforça os laços entre diversos membros da grande
família. Um exemplo muito curioso desta situação era repetido todos os dias de
manhã, no comboio das nove horas e vinte minutos que efectua a ligação de
Cascais ao Cais do Sodré, onde iam entrando ao longo das estações os muitos
elementos da família que moravam na linha. Reuniam-se todos no combóio e
depois saiam juntos no Cais do Sodré chegando sempre juntos e ao mesmo tempo
à Casa, para começar a trabalhar no seu projecto económico comum.
A tentativa de integrar todos os membros da família nos negócios
correspondia a um esforço para envolver todos nesse projecto familiar. O caso de
IR é particularmente revelador desta estratégia de inclusão dos parentes nas
empresas da família.
O meu marido era médico mas, como tinha muito bom senso, foi nomeado
para o Conselho Fiscal da Companhia de Pescas de Viana do Castelo pelo
marido da minha irmã, que já lá trabalhava (IR).
A mera posse de acções não constitui um elo de ligação tão forte como a
participação efectiva na vida das empresas. É o envolvimento no dia-a-dia das
empresas e a mística que rodeia as memórias sobre os feitos empresariais dos seus
antepassados comuns que os incentiva a dar continuidade ao esforço do seus
antecessores e que cria um sentimento da empresa como um projecto familiar
colectivo. Envolver os diversos membros da família nesta teia de práticas e
significados torna-se, assim, um passo importante para a continuidade da
empresa.
Sócios e parentes 121
Uma outra dimensão onde se revela claramente o envolvimento e a
sobreposição entre as relações e os espaços familiares e as relações e os espaços
dos negócios é a frequência com que os estrangeiros que tinham negócios com a
Orey Antunes iam jantar à quinta, sempre que estavam em Lisboa.
Eram jantares de muita cerimónia e só os filhos mais velhos é que podiam
jantar à mesa. Havia muito boa relação entre as famílias que faziam negócios
juntas durante muito tempo. Estes convívios em família eram prova disso (Br).
Levar as relações comerciais para o espaço privado da casa cria uma maior
proximidade entre os parceiros, selando a confiança entre eles numa base de
intimidade e de familiaridade. Estender este tipo de relações ao longo de linhas de
várias gerações de famílias empresariais exponencia largamente a eficácia da
transposição do modelo familiar, reforçando linhas de identificação e
solidariedades. Neste caso particular são os próprios gestores que usam a família
como elemento fundamental para as relações empresariais.
A história da constituição e do crescimento destas grandes empresas
familiares mostra que as decisões empresariais não se baseiam apenas numa
racionalidade estritamente económica. Neste âmbito empresarial, as relações
familiares são construídas sobre uma rede de interesses que unem pessoas em
volta de um projecto comum, que não é exclusivamente económico.
Todavia, não podemos deixar de salientar que o contrário também é
verdade. Neste universo social os valores familiares – como as maneiras de viver
em família e de promover a sua continuação através de gerações sucessivas – são
elementos cruciais para a definição das formas através das quais o grupo
económico se organiza e garante a sua continuidade no tempo. Entre a elite
empresarial, as relações familiares são acrescidas de uma série de conteúdos só
aparentemente exteriores à família, como sejam a organização do trabalho, o
poder económico e a propriedade. Consequentemente, as relações económicas
que unem estes indivíduos são mediadas pelas suas relações familiares e pela sua
posição na família. A motivação, o empenho pessoal e profissional que os
indivíduos investem nas suas empresas familiares é constantemente
complexificado por considerações não financeiras, como sejam o estatuto, a
122 Sócios e parentes
posição genealógica e a reputação de cada indivíduo na família. É, portanto, difícil
definir onde umas começam e outras acabam. As relações entre as pessoas são
marcadas pela sobreposição dos conteúdos da relação, resultantes da coexistência
de vários contextos de interacção entre as mesmas pessoas. Estamos, assim,
perante aquilo que Gluckman denominou “multiplexidade” (multiplexity): um
contexto relacional onde existe uma justaposição dos campos de actividade que
modelam as relações sociais (Gluckman 1973: 19 e 164).
Através destes múltiplos processos que se sobrepõem constantemente, há
um certo sentido em que a família e a empresa passam a constituir apenas uma
unidade e não duas. As empresas familiares criam um universo de acção duplo e
indivisível onde família e empresa são indissociáveis, na medida em que
constituem dimensões de acção e domínios de significado predominantes e
sempre presentes na vida destes indivíduos.
Os negócios familiares retiram, efectivamente, uma força particular da
família, dos seus símbolos e da identidade partilhada pelos seus membros.
Quando os gestores são parentes, as suas tradições, valores e prioridades
emergem de uma fonte comum: a sua identidade familiar. O crescimento e o
sucesso de uma empresa familiar dependem largamente da existência de uma
família cooperante que partilhe uma lealdade ao projecto colectivo. Quando se
juntam os ingredientes do profissionalismo com os da solidariedade familiar,
produz-se uma situação ideal para a continuidade das empresas nas mãos da
família.
À medida que uma família empresarial avança geracionalmente, que a
empresa se desenvolve e o seu poder cresce, a família vai aumentando a sua
riqueza e o seu prestígio. Com o passar do tempo, a sua fama e boa reputação
consolida-se na comunidade, legitimando o seu estatuto de riqueza antiga. A
sucessão geracional e o tempo longo do exercício das suas actividades
empresariais permite-lhe enraizar a identidade social no passado, numa tradição
familiar que a distingue dos novos ricos e impõe a sua longa experiência –
herdada dos seus antepassados – como mais-valia e garantia do seu bom
desempenho.
Sócios e parentes 123
A inscrição da actividade empresarial na temporalidade de uma grande
família é um importante elemento simbólico na legitimação da riqueza como
factor de prestígio social. Evidenciar a continuidade da família como uma linha de
excelência é uma forma de mostrar a sua perenidade, como família
tradicionalmente ligada aos negócios há várias gerações, onde as memórias
familiares se misturam com as memórias empresariais. Apesar de todas as pessoas
com que falei se referirem com grande respeito aos grandes empresários que
recentemente se impuseram na cena económica portuguesa, estes são colocados
num patamar social bem distinto do ocupado pelas famílias antigas a que aqueles
pertencem.
A diferença que este enraizamento no passado promove entre estas famílias
empresariais e os novos empresários de sucesso demonstra que o capital
económico só produz uma pertença à elite quando está associado a um capital
simbólico e cultural, como bem mostra Bourdieu no seu trabalho sobre a
produção da distinção (cf. Bourdieu 1979).
O uso de metáforas economicistas – como a noção de capitais sociais
proposta por Bourdieu (1972 e 1980a) ou de dividendos do parentesco avançada por
Peter Schweitzer (1999) – ganha operacionalidade no âmbito deste contexto
social, o que revela a inseparabilidade entre a família e os negócios. Ao fazerem
referência a acções que não se limitam à procura de interesses económicos e que
vão para além dos pressupostos da teoria da escolha racional, estas metáforas
adquirem um importante valor heurístico. Enquanto os benefícios económicos
são os dividendos mais visíveis das empresas familiares, estas produzem também
dividendos a nível das relações de parentesco que unem os seus proprietários e
que se tornam evidentes num amplo “pacote” que inclui a coesão do grande
universo familiar, um elevado prestígio social, detenção de poder e uma
identidade colectiva.
2. A empresa familiar como elemento do parentesco
124 Sócios e parentes
No capítulo anterior referi que a família Mendes Godinho perdeu recentemente o
controlo das suas empresas. No entanto, os descendentes de Manuel Mendes
Godinho têm-se mantido razoavelmente unidos, continuando a identificar-se
como sendo uma família, ideia que reiteram quando apresentam a sua genealogia.
A maior parte dos membros insistem sobre esse aspecto, mesmo em relação
àqueles com quem dizem não manter relações.
Desde sempre que as pessoas da minha família se dão mal. É uma família
muito grande. São muitos ramos e todos com muitos filhos, pelo que as quotas
que cada um tem da empresa hoje em dia, representam percentagens muito
reduzidas. O que tem mantido as pessoas da família ligadas é a permanente
expectativa de negócios, pois o grupo, apesar de falido, detém um património
que representa um bom valor e ninguém quer prescindir disso (Ml).
Se não fosse o facto de o projecto empresarial se manter, há muito que as
pessoas desta família teriam perdido o contacto umas com as outras. Mesmo que
as suas relações pessoais não sejam as melhores, a qualidade de sócios comum a
todos eles faz com que se mantenham ainda parentes activos. Em última instância,
é a própria existência da empresa que cria as condições para a continuidade dos
laços familiares activos no universo familiar mais vasto. Esta situação é ainda mais
visível nas famílias em que o êxito das empresas se prolonga no tempo.
Tal como as casas de família, os nomes e todos os objectos que passam de
geração em geração, as empresas familiares constituem, também, uma parte
central dos bens comuns, que simbolizam a família e que garantem a continuidade
da sua identidade. Como consequência da participação num projecto empresarial
comum, entre os accionistas existem parentes muito afastados. A existência da
empresa une-os. Dá continuidade à grande família, à sua existência enquanto
grupo de partilha de uma substância, de um património, que se torna fundamental
preservar. Quer se queira quer não, a herança das acções da empresa implica a
transmissão das relações com os outros familiares da grande família, que também
Sócios e parentes 125
herdaram acções. A transmissão da grande empresa, ao trazer consigo a
continuidade dessas relações, transmite também a grande família.
É neste sentido que defendo que a empresa se torna uma componente
central da identidade da família, promovendo um desejo de continuidade,
demonstrado pelos sinais exteriores de perpetuação do seu sucesso. À medida que
o êxito do negócio familiar se mantém e aumenta, torna-se o elemento que
garante a continuidade das relações entre os parentes e da unidade simbólica dos
diversos ramos da família.66
À medida que as empresas crescem em tamanho e as famílias proliferam em
gerações, torna-se cada vez mais difícil manter a intensidade do convívio dentro
da grande família. Devido à multiplicação dos seus ramos e sub-ramos, eles
passam a ser constituídos por um grande grupo de pessoas, algumas delas tão
distantes que, se não fosse pelo facto de partilharem algo em comum,
provavelmente nem se conheceriam. Nas gerações actuais, as relações
genealógicas entre os membros de cada um destes ramos são na realidade muito
distantes, como nos mostram alguns dos mapas genealógicos destas famílias (ver,
a título de exemplo os mapas genealógicos nº 1, 3 e 7). Apesar dos laços comuns,
por relação aos antepassados fundadores, o sentido da empresa familiar, enquanto
projecto unido é, quando se entra na quarta geração, atenuado pelo facto de a
titularidade ser dividida entre primos e segundos primos e não exclusivamente
entre um grupo de irmãos, que partilham em geral uma maior intimidade.
Um exemplo claro deste processo de crescimento e afastamento
genealógico é o da família Pinto Basto (ver mapa genealógico nº 7). Actualmente,
encontram-se à frente dos destinos das empresas membros da sexta e da sétima
66 Encontramos um processo muito semelhante entre as famílias da aristocracia rural
portuguesa, para quem as terras e as casas que possuem simbolizam e reproduzem o prestígio das famílias e a legitimidade da sua posição social. Para dar conta da importância da utilização de um bem patrimonial no processo de construção da identidade social das grandes famílias, José Manuel Sobral cita Tocqueville: “Nos povos em que a lei das sucessões é baseada no direito do primogénito, as propriedades passam, em geral, intactas de geração para geração. Daí resulta que o espírito de família se materializa, de certo modo, na terra. A família representa a terra e a terra representa a família. A terra perpetua o nome da família, as suas origens, a sua glória as suas virtudes. É um testemunho indestrutível do passado e um penhor precioso do futuro” (Tocqueville in Sobral sd: 270).
126 Sócios e parentes
geração de descendentes do fundador, que se esforçam por promover o contacto
entre pessoas que, apesar de serem parentes, estão muito afastadas
genealogicamente e alguns deles nem se conhecem.
Testemunhei sempre uma clara tendência para que os vários ramos de
descendentes do fundador do negócio mantenham as suas relações vivas ao longo
das gerações. As pessoas partilham uma ligação a uma coisa comum que não
querem perder: a empresa familiar, a sua fonte de riqueza e prestígio social. O
grupo económico de base familiar adquire, assim, o estatuto de um património de
grande valor simbólico. Sendo uma parte importante da identidade do grupo
familiar, a empresa torna-se a própria razão de ser da família, pois esta é sentida
como um grupo de partilha, o que garante a sua continuidade no tempo. Sendo
uma parte integrante da família, a empresa torna-se a reificação da sua unidade, o
símbolo da sua identidade.
Em última análise, nestas grandes famílias empresariais é a empresa que
possuem em comum, e não os laços de parentesco que partilham, que garante a
existência de relações activas entre parentes afastados. Os ramos da família que se
afastaram dos negócios são perdidos para a família. Mas, inversamente, os mais
afastados podem tornar-se muito próximos se se mantiverem envolvidos nos
negócios. Tal como mostram os casos das famílias Mendes Godinho, Pinto Basto
e Espírito Santo, a existência e continuidade da empresa é a razão primordial para
a manutenção de relações efectivas de parentesco no âmbito do universo total dos
descendentes daquele que é considerado o fundador da família, por ter fundado o
elemento que simboliza a sua identidade: a empresa.67
Vejamos um novo exemplo. O grupo que actualmente se identifica como
sendo a “Família Espírito Santo” está dividido em quatro grandes ramos, agora na
sexta geração, e é composto por cerca de quatrocentas e cinquenta pessoas (ver
mapa genealógico nº 1). Apesar de a maior parte dos membros da família
67 Segundo Bourdieu, para compreender o verdadeiro significado das relações de
parentesco vividas pelos sujeitos sociais, deve distinguir-se entre parentes ideais e parentes efectivos (cf. 1980). Peter Worsley propõe uma distinção semelhante entre ligações de interacção – as relações efectivas existentes entre parentes – e ligações reconhecidas – aquelas cuja existência é reconhecida mas raramente estimulada (1983: 172).
Sócios e parentes 127
conseguir reconstruir as suas extensas e complexas relações genealógicas de cor,
nem todos, sobretudo os que não se encontram regularmente na empresa,
mantêm contactos regulares entre si. Raramente se encontram todos.
Não é vulgar juntarmo-nos todos. Só nos funerais. Nos casamentos é
complicado porque é tanta gente que não dá. O último que me lembro foi o da
VS – em 1996 ou 1997 – que convidou toda a gente. Também nos juntámos
todos na reabertura da Fundação. Aí sim, foi com muita alegria, muito
satisfeitos por o museu abrir de novo e tão bonito. Estavam toda a família e
muitos responsáveis estrangeiros (MJB).
A importância da grande família como metáfora de legitimação de uma
identidade colectiva verifica-se no facto de ela não desaparecer pela simples
ausência de contacto. Desde que seja lembrado pelos seus membros, o universo
alargado de parentesco continua a existir, mesmo quando não é tornado efectivo.
No âmbito destas grandes famílias empresariais que traçam as suas raízes até aos
fundadores da empresa, os diferentes ramos da família e os seus numerosos
primos poderão não ser tão íntimos como os pais foram. Se calhar apenas alguns
deles se mantêm como participantes activos nos negócios. Até podem viver longe
e só se juntarem ocasionalmente em reuniões do “clã”. Mas, se a história da
família for rememorada através do “culto dos seus antepassados” e dos símbolos
que constituem a sua identidade – as casas, os apelidos e nomes, as fotografias, as
histórias, as jóias, as empresas –, ela fornece uma sólida rede de relações de
parentesco que pode ser reactivada sempre que necessário, pois mesmo quando é
pouco usada é lembrada pelos membros do universo familiar.
Tive um exemplo da possibilidade de iniciar um processo de reactivação de
redes de solidariedade familiar através de um simples convite para um jantar
importante. FM organizou um jantar para um amigo estrangeiro a quem quer
apresentar Rs, presidente de um poderoso grupo económico português. FM não
via, nem tinha qualquer contacto com Rs, há cerca de dezassete anos. Quando
telefonou para fazer o convite a este último, não o encontrou, pois estava no
estrangeiro em trabalho, pelo que FM deixou recado à secretária. Como dois dias
antes do jantar Rs ainda não tinha dado resposta, FM telefonou de novo e foi
128 Sócios e parentes
com alguma preocupação que percebe que a secretária não tinha dado o recado a
Rs, um homem extremamente ocupado. No entanto, apesar de já ter um outro
compromisso social marcado para o mesmo dia do jantar, do qual só teve
conhecimento dois dias antes, Rs desmarcou o primeiro compromisso e acedeu
ao convite de FM, cuja mãe era muito amiga de sua mãe.
Dentro deste grupo social, uma das principais razões para a constituição de
grandes formações familiares – o seu elemento agregador – é o facto de os
parentes serem sócios e não tanto os valores culturais constituintes da família –
como o sangue, os afectos e um passado comum – ou o facto de partilharem uma
fortuna familiar, como defendia George Marcus, para quem
não há nenhuma outra razão para os descendentes manterem relações que não
sejam exclusivamente casuais, a não ser o facto de a sua fortuna colectiva
reificada se intrometer constantemente nas suas relações mútuas e nas suas
vidas individuais (Marcus 1992: 56).
Os inúmeros casos de famílias ricas que consumiram as suas fortunas e, em
virtude de terem perdido o interesse na continuidade dos seus símbolos
identitários comuns, deixaram de ser grandes famílias da sociedade portuguesa,
mostram-nos que a mera existência da fortuna não produz laços eficazes de união
familiar.
Em Portugal, é a própria empresa que promove nestas famílias um certo
sentimento dinástico, no sentido atribuído por George Marcus. No contexto
destas famílias empresariais, o que sustenta as relações activas entre os parentes
não são exclusivamente os laços de parentesco que têm em comum. Eles estão
ligados por uma identidade familiar continuada –compostas por elementos
diversos e entre os quais se encontram os elos de sucessão a lugares na empresa –
e pela propriedade de acções em empresas. O êxito da empresa familiar fornece as
bases para a continuidade da família como grupo de identificação e,
consequentemente, é um factor importante para que os elementos das futuras
Sócios e parentes 129
gerações da família se mantenham unidos através de um modelo de cooperação
intra-familiar.
O facto de a empresa ser propriedade da família e ser, simultaneamente, um
projecto colectivo dos seus membros garante a continuação tanto do universo
alargado da família como da empresa. Trabalhar conjuntamente para a grande
empresa familiar une os membros destas grandes famílias, mantendo-os como
uma unidade social identificável. No entanto, sem a transmissão do ideal que
institui a empresa familiar como um projecto económico comum, a sua
reprodução seria impossível. Neste sentido, não podemos deixar de relembrar os
casos em que, apesar de existirem todos estes elementos, a família não conseguiu
reproduzir-se, não construiu essa formação família/empresa que se perpetua num
tempo, mais ou menos longo, da história económica e social do nosso país. Já
referi o caso de Cupertino de Miranda, que não conseguiu manter o seu próspero
negócio nas mãos da família. Todavia, mesmo dentro dos casos de sucesso na
transmissão do negócio ao longo de gerações familiares, encontramos esta
situação entre os descendentes do primogénito do fundador do Banco Espírito
Santo.
Tal como Cupertino de Miranda, J não conseguiu produzir sucessores que
continuassem o seu importante papel no desenvolvimento do grupo económico
familiar. J era o primeiro filho varão do fundador da Casa Bancária da qual se
tornou presidente, após a morte de seu pai. No entanto a sua presidência não
durou muito tempo. Em resultado de um casamento infeliz, J separou-se em
1931, casando-se posteriormente com uma irmã da sua cunhada (irmã da mulher
do seu irmão R). Para tentar evitar o escândalo social provocado por esta situação
na conservadora sociedade lisboeta do início dos anos trinta, foi viver para Paris
com a sua nova mulher. A presidência do banco foi então assumida pelo seu
irmão R, que até então ocupava o cargo de Secretário Geral.
O afastamento de J dos lugares cimeiros dos destinos do banco – apesar de
se ter mantido sempre em contacto diário com os irmãos, que ficaram à frente do
banco – foi também acompanhado pela separação da partilha da vida quotidiana
130 Sócios e parentes
com os seus filhos, que ficaram a residir em Lisboa. Esta é, talvez, a causa onde
podemos enraizar a incapacidade que este extraordinário “homem de negócios”
teve de tornar os seus dois filhos em sucessores potenciais. O seu filho mais
velho, JMa, foi um elemento importante no conselho de administração do banco,
era vice-presidente, até à nacionalização em Março de 1975. Depois da família ter
perdido, nessa data, o controlo dos destinos do banco, JMa afastou-se, não tendo
actualmente qualquer participação, nem profissional nem accionista, nas
actividades do grupo. Os seus filhos não têm, nem nunca tiveram qualquer
participação no grupo. O seu irmão Dt foi responsável pelo sector de obras do
Banco até à nacionalização. Tal como o irmão, Dt não teve qualquer participação
activa na reconstrução do grupo Espírito Santo no estrangeiro nem no regresso
do grupo à vida económica portuguesa. No entanto, mantém uma posição
accionista no grupo e participa nas reuniões anuais da Holding familiar. Um dos
seus filhos trabalha numa empresa de grupo, num lugar de pouco destaque, pois
não tem qualificações académicas que lhe permitam subir mais na estrutura
altamente competitiva que o grupo tem na sua organização actual.
Curiosamente, hoje em dia, é a filha mais nova de J que mantém a posição
accionista de maior relevo deste grupo de irmãos. Não só recebeu por herança de
seu pai uma destacada posição accionista como, por morte do seu marido, que
também trabalhava no Grupo, ficou com as suas acções, aumentando assim a sua
posição. Actualmente, um dos seus filhos e o marido da sua filha mais velha
ocupam cargos destacados em empresas do grupo, o que confere, no conjunto,
uma posição importante a este “ramo familiar” dentro da estrutura global do
Grupo Espírito Santo.
Como se conclui destes exemplos, a existência das grandes empresas
familiares durante várias gerações contribui para a preservação de relações
regulares entre membros genealogicamente distantes do universo alargado de
parentesco ao qual pertence a sua família. Esta base especial sobre a qual se
tornam activas as relações de parentesco neste grupo social, faz com que elas
sejam de um tipo, de uma densidade e de uma natureza particular, dando origem a
Sócios e parentes 131
uma situação relativamente invulgar na sociedade portuguesa: a existência de um
universo familiar alargado, onde parentes afastados partilham símbolos de
identificação social e mantêm relações próximas a par de um projecto económico
e familiar colectivo que querem continuar e fazer progredir.
A união à volta de um projecto económico comum, a propriedade familiar
da empresa e as tentativas para manter indivisa a propriedade familiar constituem
uma base sólida para a consciente manutenção de relações familiares activas num
universo alargado de parentesco: o das grandes famílias.
Nas grandes famílias empresariais portuguesas a empresa torna-se, portanto,
um importante símbolo cultural do parentesco. A sua eficácia na manutenção da
união entre os familiares accionistas, atribui-lhe um poder mais efectivo na
manutenção das relações de parentesco do que a própria partilha de uma
substância comum – “o sangue” – que é um dos símbolos culturais mais
importantes da família em Portugal.68 Neste sentido de símbolo de uma
consubstancialidade familiar partilhada, o “sangue” torna-se uma questão
importante, pois a centralidade simbólica do sangue para estas famílias é
indissociável do ideal segundo o qual a identidade social dos seus membros está
enraizada nos símbolos identitários de uma unidade familiar que vem desde um
68 Já Pitt-Rivers, no seu texto de referência sobre o parentesco, The Kith and the Kin,
defendia também a importância do sangue como veículo do “princípio de parecença entre aqueles que estão ligados biologicamente, fornecendo sempre as mais fortes manifestações do que eu gostaria de chamar de consubstancialidade: o elo primário entre indivíduos na extensão do seu self. Isto é, o material de que é feito o parentesco” (1973: 92). Sobre este assunto veja-se também Pina Cabral 1991: 128-134.
No seu trabalho sobre o parentesco americano, David Schneider mostrou que a importância do “sangue” neste sistema cultural não decorria de ser um facto biológico. No sistema cultural de parentesco americano o sangue é um símbolo central, pois é através dele que se cria um campo social de “solidariedade difusa e duradoura”. A importância deste símbolo do parentesco estende-se a toda a cultura Ocidental onde, como sugere, “o sangue é mais denso do que a água” (cf. Schneider 1987: 165-174). Com base numa análise histórica dos símbolos do parentesco europeu, Joan Bestard mostra que o sistema de parentesco cognático ocidental se desenvolveu numa estreita relação com a ideia do sangue como suporte das relações de filiação. Os textos da antiguidade clássica veiculam este tipo de concepção hematogénica, segundo a qual a transmissão do sangue, entendido como o elemento que proporciona aos indivíduos a sua identidade social, é levada a cabo exclusivamente através de linhas masculinas: “ser do mesmo sangue” é descender do mesmo pai (Bestard 1998: 197-200).
132 Sócios e parentes
tempo passado, num culto da família antiga. Este enraizamento torna a
reivindicação da hereditariedade – da continuidade do “sangue” dos membros da
família – um processo importante na legitimação da sua identidade social.
Entre estas famílias que detêm um vasto e valioso património para
transmitir às gerações futuras, verificamos uma clara tendência para a perpetuação
linear da identidade, isto é, para as gerações mais novas continuarem a reclamar
sinais de pertença e de identificação social com os antepassados que fundaram ou
deram continuidade a esses elementos valiosos que constituem o seu património
familiar. Esta pode ser uma das razões que permitem explicar a frequência com
que encontramos, neste contexto social, relações de parentesco relativamente
densas e coesas, unindo pessoas dos diversos ramos da família. Como afirma
Bourdieu “os ricos têm de ter grandes famílias, pois eles têm interesses específicos
na manutenção das relações com a sua família extensa” (1994: 196). A riqueza não
exclusivamente material do património familiar confere um elemento importante
à constituição destas identidades continuadas ao longo de linhas familiares.
Não quero dizer que, nestas famílias, as relações entre todos os indivíduos
sejam excepcionalmente afáveis ou desprovidas de conflitos, pois os casos de
desentendimentos existem como em qualquer outra. Porém, o facto de os
membros destas famílias se darem bem ou mal é sociologicamente irrelevante. O
que importa é o facto de terem sido capazes de produzir mecanismos que lhes
permitem existir enquanto grande família, superando possíveis desentendimentos
entre os seus membros, em nome da garantia da continuidade do projecto e dos
elementos identitários que mantêm em comum. O sucesso das empresas que
estudei e a notável duração da sua existência como propriedade de uma mesma
família mostram a eficácia deste mecanismo.
A forma como as grandes famílias associadas a grandes empresas
promovem o desenvolvimento de tipos de relações familiares particularmente
duradouras leva-me a defender que estamos perante um fenómeno social
relevante, que pode contribuir para a produção de novos olhares sobre a
importância das relações de parentesco nas sociedades ocidentais. Na verdade,
para além de grandes empresas familiares de Lisboa, estas grandes organizações
Sócios e parentes 133
económicas de base familiar encontram-se noutros contextos sociais. Tal é, por
exemplo, o caso das “casas agrícolas” da elite agrária portuguesa, onde as famílias
dos grandes lavradores se constituem em “empresa”, por forma a evitar dividir o
património, o que lhe retiraria a rentabilidade (cf. Sobral 1993 e Vasconcelos
1995). Mas podemos, também, encontrá-los em Itália (cf. Yanagisako 1991 e
1997), no Brasil (cf. Piscitelli 1999) ou no Japão (cf. Hamabata 1990).
Posso, portanto, concluir que, sempre que um projecto económico
possuído e gerido por membros de uma família se consegue reproduzir ao longo
de várias décadas com um sucesso considerável, tanto a nível económico como
social, promove a manutenção de laços de parentesco em universos familiares
muito amplos e abre o caminho à existência de grandes famílias dinásticas.
3. Empresa e Família simbolizam-se mutuamente
Passar às gerações seguintes a noção da importância do património familiar –
como propriedade comum – e da sua continuidade – como projecto colectivo –, é
fundamental para o sucesso da preservação das fontes de identificação e prestígio
familiares e das relações entre os seus membros.
Desde que nasci sabia que ia ser banqueiro. Fui educado para isso. Foi nessa
direcção que eu sempre estudei. Desde pequeno o meu pai pegava em mim e
no meu irmão e íamos dar passeios a pé pela quinta com o avô e o tio A. Eles
conversavam das coisas do banco, das estratégias a seguir, como reagir a tal
eventualidade... E nós ouvíamos. Nunca conversei sobre isto com os meus
primos, mas tenho a certeza que eles, tal como nós, que desde que nascemos
134 Sócios e parentes
fomos metidos dentro do espírito da empresa, sabem que, agora que temos
posições importantes no grupo, o nosso dever não é só para connosco e para
com as nossas famílias. É para com os pais e para com os avós. Eu sei sempre
que foi o pai que me ensinou tudo e que lhe devo sempre retribuir com o meu
melhor (MF).
Como salienta MF, de uma forma particularmente clara, o que se recebe
deve ser posteriormente transmitido pois só assim se poderá continuar, na
legitimidade conferida pelo tempo longo, o património familiar. Mas, para que a
herança seja transmitida, é preciso acreditar neste projecto familiar colectivo. A
ideia de uma substância e de uma identidade comuns, que devem ser continuadas
através das gerações, é fundamental para o êxito de um projecto de sucessão, cujo
verdadeiro sentido é passar o património à geração seguinte e não usufruir do
trabalho das gerações anteriores. É de acordo com esta ideia que podemos
compreender o sentimento transmitido por MF, quando afirma não se sentir o
verdadeiro proprietário da empresa que herdará, mas sim o responsável pela sua
continuidade. A transmissão da noção de projecto familiar tem associada a si uma
espécie de relação contratual entre as gerações destas famílias. Receber o
património familiar é uma responsabilidade, é receber também o dever de
assegurar a sua passagem para as gerações vindouras: é ter chegado a sua vez de
garantir que a família sobreviva, numa aparente imortalidade do seu património
material e simbólico.
Esta ideia de projecto familiar é frequentemente salientada por diversas
pessoas de todas as famílias que entrevistei. No entanto, cada membro da família
deposita nesse projecto colectivo diferentes expectativas e atribui-lhe diferentes
significados e diferentes investimentos pessoais. Na verdade, nem todos os
elementos da família querem, ou podem, estar directa e activamente envolvidos na
empresa familiar.
Eu nunca tive muito jeito para os negócios. Fui presidente da Assembleia Geral
durante seis anos. Mas o meu grande contributo para a família é dado agora
com o livro. É isso que eu sei fazer. E é com isso que eu posso contribuir para
a família (CB).
Sócios e parentes 135
Alguns decidiram desde o princípio que esta não era uma opção razoável
para eles e assumiram outros papéis na vida familiar. Outros, que gostariam de ter
um papel activo na empresa, não puderam tê-lo devido à sua pertença de género.
APL: Quem são os accionistas do Grupo?
Me: Todos da família. Todos temos acções.
APL: Todos como? De todos os ramos?
Me: Todos os netos e bisnetos do Avô JoMa. Mas os manos e os primos é
que governam tudo. Eles é que sabem. Depois, nas Assembleias, dizem-nos:
“olhem, este ano, os lucros são tanto” e dividem por todos.
APL: Então as senhoras nunca participam directamente?
Me: (risos) Não, isso é tudo com eles. Nós só vamos às Assembleias e eles
explicam o que vão fazer.
A importância que cada pessoa atribui ao projecto económico colectivo da
sua família varia. Esta variação depende, em primeiro lugar, do facto de
possuírem, ou não, acções da empresa e do facto de nela trabalharem ou não. Para
aqueles que são apenas accionistas, a continuidade dos negócios poderá ser mais
ou menos importante para a manutenção dos seus rendimentos e, é claro, do seu
estatuto social. Para os que nela trabalham, é também óbvia a importância do
sucesso da empresa para a estabilidade e eventual melhoria dos seus rendimentos
económicos e prestígio social.
Porém, mesmo para aqueles que não possuem acções, nem trabalham na
empresa, o sucesso da empresa é vital, devido ao que Maria das Dores Guerreiro
denominou de “alastramento do efeito de propriedade” (Guerreiro 1996: 186).
Através deste conceito, a autora salienta que, para além dos titulares formais do
capital, existe um conjunto mais alargado de parentes cujo modo de vida e
estatuto social dependem da continuidade da associação da família à empresa e
dos rendimentos desta. O facto de a sua identidade social estar associada à da
família através de símbolos bem visíveis – como, por exemplo, o apelido que
usam e o estilo de vida que praticam – garante-lhes um prestígio social
considerável. Mesmo para os membros não accionistas, a associação da empresa à
família torna-se, também, algo importante.
136 Sócios e parentes
Apesar de a família e a empresa não terem a mesma importância e
significado para todos os indivíduos que nela estão envolvidos, a maior parte dos
membros da família investe algo na continuidade e desenvolvimento da empresa,
pois esperam dela receber, mais tarde ou mais cedo, alguns dividendos, sejam eles
de ordem económica ou social. No âmbito deste universo de famílias, a empresa é
um património valorizado por todos, pelo que se torna num importante símbolo
da identidade familiar. O êxito da empresa é um estímulo necessário à
continuidade das relações familiares. A própria natureza do regime de propriedade
das empresas familiares,69 reproduz a ligação das várias gerações à empresa.
Família e empresa são, portanto, duas unidades sociais totalmente imbricadas. A
densidade desta torna-se evidente tanto na análise das trajectórias da vida destas
pessoas como das narrativas da história da empresa produzidas pelos seus
proprietários. As narrativas da família e as narrativas da empresa misturam-se e
relacionam-se de tal forma entre si, que é difícil distingui-las. Tal é particularmente
visível no facto de, nas grandes famílias empresariais, os rituais colectivos mais
importantes para a manutenção da unidade dos elementos da família ao longo do
tempo e das gerações serem os rituais da própria empresa – como as Assembleias
Gerais – e não os da família – como o Natal, os casamentos e os aniversários.
Veja-se o exemplo da família Espírito Santo.
Os rituais familiares – como o Natal, a Páscoa, casamentos ou aniversários –
são celebrados dentro de cada um dos cinco ramos da família. Mesmo dentro de
cada um destes ramos, que já atingem uma dimensão muito grande (ver mapa
genealógico nº 1), começam a institucionalizar-se as celebrações dentro do grupo
dos descendentes dos filhos.
O Natal é sempre em casa da tia M. Este ano éramos p’rái uns cento e
cinquenta. Só da minha geração somos vinte e cinco netos. Como nós já temos
filhos casados e alguns já têm netos somos uma multidão. São quatro gerações
que se juntam (MJB).
69 Marcus refere ter encontrado uma situação muito semelhante nas grandes famílias
empresarias do Texas (1992: 297). Sobre este assunto veja-se também Gersick et al. 1997: 165.
Sócios e parentes 137
O Natal era sempre em casa da avó. Mesmo depois de a avó ter morrido
continuámos a fazer lá na casa, que passou para o tio MR. Agora é a tia Nn
que faz, porque o tio morreu. Somos muitos, é uma grande confusão, mas é
assim mesmo. É a família (Ma).
Os rituais institucionais das diversas empresas do grupo têm vindo, a pouco
e pouco, a assumir o papel de momentos de união de toda a família.
Dantes as Senhoras não participavam, mas, agora, desde que fizemos a holding
familiar, elas vão sempre. A reunião anual da holding é uma assembleia
totalmente informal onde se informam as pessoas do que se está a passar, mas
tem o caracter de reunião de toda a família. As Senhoras ouvem os projectos e
é uma forma de estarem informadas e de participarem na vida das empresas
que também são delas (D).
Mesmo nos casos das famílias menos unidas, os rituais da empresa revelam-
se fundamentais para a reunião de toda a grande família:
A minha família não se junta no Natal, nem em casamentos. Talvez apenas nos
funerais (...) mas os grandes rituais familiares são as assembleias gerais da
sociedade familiar. Aí juntamo-nos todos (ZM).
Também no caso da família Espírito Santo, a Assembleia Geral da holding do
Grupo, que se realiza anualmente em Lausanne, na Suíça, é um momento
privilegiado para os membros da família alargada de todos os descendentes de
José Maria Espírito Santo e Silva, que possuem acções do Grupo, se reunirem.
A reunião anual do Grupo (...) é a verdadeira reunião da família, e a única onde
vão as Senhoras. É muito social e vão os partners todos. É aí que se decidem as
linhas estratégicas do Grupo e se dá conta do que se tem passado (MF).
Actualmente só há mais um tipo de acontecimento que reúne estes grandes
universos familiares: os funerais. Em Dezembro de 1997, morreu
inesperadamente uma senhora com quem eu tive muito contacto ao longo do
processo da minha investigação. Não fui ao funeral, por desconhecimento, mas
fui à missa de sétimo dia, celebrada na Igreja Matriz de Cascais. A missa iniciava-
138 Sócios e parentes
se às oito horas da noite, depois de acabarem as missas normais de todos os dias.
Eis um extracto das minhas notas tiradas na altura:
Era uma missa privada, facto que só percebi quando estava fora da igreja à
espera que a missa anterior acabasse, juntamente com os diversos membros da
família que iam chegando e ficavam por ali. Uma senhora que saía disse bem
alto e em tom de reprovação "agora é a missa dos ricos". Só nesse momento me
dei conta do que se passava à minha volta. Da distinção que irradiava daquele
grupo de pessoas vestidas de preto, com um ar sério e consternado. Dentro da
igreja, onde contei aproximadamente quinhentas pessoas, a distinção continuou.
Aquela missa em nada se parecia com qualquer missa de sétimo dia que tivesse
presenciado antes. Era uma missa só por alma de Ma. O celebrante era o
"padre da família" – o padre que os casou a todos, que os confessa e com
quem fizeram a primeira comunhão; o padre que diz a missa na capela da
família na quinta, por alturas da Páscoa e do Natal. A homilia foi dirigida
exclusivamente a Ma e à sua família. Foi tudo tão diferente das missas de
sétimo dia em que o padre apenas lê uma lista de nomes por alma de quem se
reza naquela missa! Os irmãos da Ma falaram, os seus sobrinhos e primos
cantaram e no final a mãe e os irmãos estavam na sacristia a receber os
pêsames de todos os presentes que formaram uma longa fila para o fazer; eu
estava quase no final da fila e demorei cerca de quarenta e cinco minutos para
chegar à sacristia (Diário de Campo 6/1/98).
Este exemplo ilustra particularmente bem a ideia que tenho vindo a
defender. As quase quinhentas pessoas da família de Ma que assistiram à sua
missa de sétimo dia constituíam o seu universo familiar alargado, toda a grande
família a que pertencia. Muitas das pessoas que ali se reuniram não se viam à
muito tempo e não estavam todas juntas há quase quatro anos – desde a
inauguração da Fundação da família. No entanto, a consciência de pertença ao
grupo familiar, de que são uma família, reactiva-se sempre que necessário. Ou
seja, as relações entre as pessoas que compõem o universo familiar alargado não
precisam de estar sempre activadas para que exista um forte sentimento de
pertença a esse grupo. Desde que os elementos de construção identitária os
liguem a um determinado conjunto de pessoas, que partilham os mesmos
Sócios e parentes 139
símbolos de identificação, um conjunto de memórias familiares e de antepassados
em comum, os sentimentos de pertença ao grupo existirão, permitindo assim que
as relações entre aqueles que o constituem se activem a qualquer momento.
As empresas da família fazem parte de um conjunto de elementos que
simbolizam a família e que garantem a continuidade da sua unidade. Os possíveis
efeitos centrífugos e desmembradores dos interesses individuais, que crescem à
medida que a família aumenta, são minimizados pelo investimento que estes
indivíduos fazem no culto da família, na criação de uma identificação colectiva,
enraizada num passado comum que se quer continuar no futuro, na transmissão
da memória dos sentimentos de uniões passadas que enformam estas identidades
familiares continuadas.
Há, no entanto, outro tipo de estratégias que são usadas para manter o
controlo familiar sobre a grande empresa, cuja propriedade é muitas vezes
partilhada com um conjunto muito vasto de pequenos accionistas anónimos e
investidores exteriores. A mais frequente – e uma das mais eficazes – consiste em
alterar o quadro jurídico de actuação do grupo.
A SOFIP é a holding familiar que fundámos em 1987, com o objectivo de
concentrar os investimentos fora das áreas tradicionais e, sobretudo, para
garantir a estabilidade accionista das nossas empresas durante as passagens de
acções entre as gerações, de forma a prevenir eventuais tentativas de venda de
acções para fora da família (Jg).
A transformação dos detentores particulares e individuais das grandes
empresas familiares em diferentes sociedades holding, faz com que passem a ser
estas que controlam a maioria de acções das diversas empresas do grupo e facilita
soluções tendentes a evitar a venda de acções a elementos exteriores à família.70
70 As vantagens jurídico-fiscais das sociedades holding são grandes. Por um lado, as
sociedades holding permitem controlar um vasto conjunto de sociedades através de montantes modestos de capital. Para tal basta controlar a maioria do capital da holding que as detém. Por outro lado, a sociedade holding permite aumentar as possibilidades de actuação das empresas no mercado bolsista, pois a holding é representante de todas
140 Sócios e parentes
Desta forma, garantem a continuidade da propriedade da empresa no universo da
família e impedem a sua desagregação.
Na família Mendes Godinho é tradição oferecer duas acções da empresa aos
jovens da família na altura em que fazem dezoito anos. É uma maneira simbólica
de ritualizar a passagem destes jovens para um estádio da vida familiar em que
podem passar a ter uma participação activa na vida e nos destinos das empresas
que detêm. Com estas duas acções podem começar a participar nas assembleias
gerais do grupo familiarizando-se, assim, gradualmente com as questões mais
importantes das empresas.
É difícil dizer quando é que comecei a participar na vida das empresas, porque
tenho a sensação que sempre participei. Quando era miúdo passava os dias na
fábrica. Era lá que brincávamos a maior parte do tempo. Em casa falava-se das
fábricas, quando acompanhava o meu pai era para tratar assuntos das fábricas.
Está a ver? Eu cresci nesses espaços, nessas andanças, nesses problemas. Por
isso é difícil distinguir. Mas um marco importante foi quando recebi as minhas
primeiras acções, quando fiz dezoito anos. Nesse altura comecei a ir às
Assembleias Gerais. Podemos dizer que foi nessa altura que passei a fazer
parte. Pelo menos formalmente. Mas foi um momento importante. Criou-se
um vínculo, uma responsabilidade. Quando os meus filhos fizeram dezoito
anos, também lhes dei duas acções para eles passarem a fazer formalmente
parte das empresas. Apesar de a situação agora ser bastante diferente, achei que
era importante (ZM).
Estamos, portanto, perante um conjunto de acções desenvolvidas pela
família com o objectivo de fazer com que a empresa continue nas suas mãos e,
simultaneamente, perante um conjunto de estratégias levadas a cabo pela empresa
no mesmo sentido.
Porém, este exemplo chama também a nossa atenção para um novo
elemento. No âmbito deste contexto social, há um nível em que podemos
as empresas do grupo que individualmente poderiam não ter a dimensão mínima para se apresentarem perante o mercado bolsista (cf. Reizinho sd).
Sócios e parentes 141
considerar que é a empresa que herda os membros da família e não apenas o
contrário. Isto é, a estrutura organizativa e o significado particular destas empresas
precisam de ser alimentados com novos membros da família, para que a empresa
possa continuar a ser um projecto familiar colectivamente investido. É preciso,
portanto, inscrever os membros mais jovens da família na vida da empresa, de
forma a que não possam desvincular-se dela facilmente. Neste sentido, antes de os
mais jovens herdarem posições accionistas mais ou menos importantes, é
necessário criar neles vínculos que os prendam à continuidade do projecto
empresarial da família, é importante fazer com que eles se queiram tornar os
continuadores desse projecto. A forma eficaz da transmissão desses valores e
sentimentos no seio da (con)vivência familiar, ao longo do processo de
crescimento pelo qual os jovens se tornam adultos, consolida o sentimento de que
aquele projecto é dos descendentes, fortalecendo, simultaneamente, as amarras
com que a empresa os envolverá.71
Em suma, estamos perante processos empresariais continuados, onde a
importância dos indivíduos que neles desempenham funções vitais em cada
geração se esbate nos interesses colectivos do grupo. Pela permanente referência
aos antepassados fundadores e pela omnipresença das gerações futuras, os
herdeiros, os continuadores do projecto colectivo, tornam-se membros do grupo
familiar que os transcende. Para além de serem herdeiras de um poderoso império
71 No âmbito da literatura antropológica clássica encontramos uma situação semelhante
na descrição feita por Leach sobre a forma como em Pul Elyia é a terra que herda os homens e não o contrário. Nesta comunidade pertencente ao actual Sri Lanka, os homens devem ter o melhor desempenho possível nas terras que trabalham, porque, caso contrário, perderão o direito de nelas trabalhar. Mais, é o trabalho árduo e dedicado que investem nas terras que permitirá garantir que os seus filhos venham, mais tarde, a ter acesso a elas. Tal como entre as grandes empresas familiares portuguesas, Leach demonstra como em Pul Elyia, a continuidade de um projecto familiar depende, sobretudo, do sucesso da transmissão desse ideal à geração seguinte (cf. Leach 1961).
142 Sócios e parentes
empresarial, as gerações mais novas destas famílias são herdadas pela empresa,
enredadas no dever de assumirem a sua continuidade, da qual obviamente
beneficiarão, mas ficando obrigados a assegurar a sua integridade, expansão e
transmissão às gerações futuras.
Mas, tal como a empresa é um importante símbolo da família, também a
família é um símbolo fundamental da empresa. De facto, nestas grandes empresas
a família é, de uma forma recorrente, o modelo organizacional de muitas das
esferas de acção empresarial. A sua estética, os seus códigos e os seus valores
enformam o ambiente simbólico escolhido para desenvolver as suas actividades,
contribuindo para a criação de um sentimento de ubiquidade da família. Entre as
grandes famílias da elite empresarial lisboeta existe um verdadeiro culto da família
que é expresso em variadíssimas situações: na utilização da família como ambiente
ideal de referência para toda uma série de outras esferas de acção; na importância
que é dada às transmissões dos nomes; na forma como se transmitem
cuidadosamente as histórias, as tradições e os bens familiares; nas intensas trocas
diárias de entre-ajudas ou de simples conversa e na forma como a família permeia,
a diversos níveis, a existência destes indivíduos.
É também neste sentido que devemos entender as situações em que o
espaço privado da casa é perpassado pelas actividades das empresas – em jantares,
caçadas na quinta e pequenas recepções oferecidas a clientes. Estes
acontecimentos fazem parte de um certo tipo de negócios que, sendo feitos ao
mais alto nível, assentam numa relação de confiança “entre cavalheiros”,
adquirindo maior legitimidade se forem levadas à cabo num ambiente familiar.
Os clientes gostam de se sentir em família. Quando vem um cliente
importante faz-se um jantar na casa da família. São as mulheres que criam o
ambiente e tratam de tudo. Petit commité, low profile e ambiente familiar, com o
gosto da nossa casa. Fazem tudo de uma maneira muito simples: em casa, sem
alarde nem publicidade. Aliás você nunca ouve falar dessas coisas. As pessoas
que têm fortunas são mais velhas, têm princípios e são educadas, pelo que não
precisam de grandes ostentações nem de publicidades, que só estragam os
Sócios e parentes 143
negócios. Por isso, os grandes negócios fazem-se em casa, à mesa do jantar,
com as mulheres (Ma).
Dávamos muitas caçadas na quinta. Iam reis, príncipes, embaixadores e
ministros. Às vezes os filhos protestavam e o pai respondia “Oh filha, tem que
ser, é pelo país” (Me).
Outro espaço onde podemos encontrar uma associação muito clara entre
estas duas esferas de acção é nas próprias sedes das empresas. De uma maneira
geral, as sedes destas grandes empresas familiares são decoradas com um
ambiente bastante familiar, com móveis de estilo, semelhantes aos “de casa”,
chamando a atenção para o facto de as empresas estarem inequivocamente ligadas
à família. Da mesma forma, os quadros nas paredes representando os diversos
membros da família que passaram pela administração da empresa não só lembram
o vínculo da empresa à família como também a sua antiguidade. Só para dar um
exemplo, a sala de reuniões da sede da E. Pinto Basto tem as quatro paredes
cobertas de quadros a óleo representando, por ordem cronológica, todos os
membros da família que passaram pela direcção da empresa, desde o seu fundador
em 1847, até aos dias de hoje.
Em síntese, no universo das grandes empresas familiares, a família é algo
mais que a rede de parentes que a constitui. A família torna-se um modelo ideal de
acção, amplamente visível em múltiplas dimensões do universo dos negócios. Um
conjunto de valores que se devem seguir e que expressam uma ideia de confiança
e honestidade que, por sua vez, é transposta do universo das solidariedades
primárias para o mundo dos negócios. É isto que distingue “positivamente” estes
grupos económicos daqueles que se formaram recentemente. Estas famílias, que
enraízam a sua identidade num tempo longo, que desde há muito gerem os
destinos de grandes empresas, afirmam a sua diferença, a sua distinção (no sentido
bourdieusiano do termo), no facto de se basearem em valores tradicionais e em
princípios que estão associados ao nome da sua família, à legitimidade que lhes é
garantida pela antiguidade da sua boa e correcta performance. Nas palavras de
Buchholz e Crane
144 Sócios e parentes
As empresas familiares estão a capitalizar a viragem a que assistimos
actualmente no Ocidente para um regresso aos valores do altruísmo e da
família, através do uso que fazem das tradições para demonstrarem a qualidade,
competência e harmonia dos seus serviços (Buchholz e Crane 1989: 26).
CAPÍTULO IV
A CONTINUIDADE COMO IDEAL
DA FAMÍLIA E DO GRUPO SOCIAL
1. De que falamos quando falamos de família
Já salientei a importância das questões ligadas à família, tanto no processo de
formação de indivíduos como continuadores de um projecto familiar e
empresarial, como na produção como do projecto colectivo que os une. No
entanto, a complexidade destas questões é, neste caso, ampliada pela
multiplicidade de significados atribuídos pelos meus entrevistados ao próprio
conceito de família. De que falamos quando falamos de família é uma pergunta
que temos de nos fazer, constantemente, num contexto social onde é difícil
estabelecer uma fronteira clara para o grupo a que os sujeitos chamam “a minha
família”.
Família é aqui, como em tantos outros contextos sociais, um conceito émico
e polissémico (Pina Cabral 1991: 113-4 e Bestard 1998: 38-40), pelo que pode ser
usado, pelas mesmas pessoas, para definir coisas distintas em circunstâncias
diferentes e, por pessoas diferentes que, nas mesmas situações, podem atribuir-lhe
significados distintos. De facto, ao usar a expressão “a minha família”, os sujeitos
tanto podem estar a referir-se à família conjugal, como a um ramo da família,
como ainda a todo o universo familiar, que inclui os diversos ramos da família.
Esta polissemia tornou-se muito evidente no decurso das entrevistas que realizei.
Vejamos alguns exemplos.
No decorrer da mesma entrevista, Ma utilizou o conceito de família de três
maneiras distintas querendo, com cada uma delas, referir-se a grupos de pessoas a
que atribui significados diferentes, que encerram práticas relacionais particulares
na sua intensidade, na sua frequência ou mesmo no tipo de relação estabelecida:
148 O ideal de continuidade da família
1) Este mês é a minha família que está na casa de Sta. M. – diz, referindo-se ao seu
sub-ramo do universo total de descendentes do fundador do grupo familiar
em que se insere, constituído pelos pais, irmãos, cunhados e sobrinhos;
Quadro 2
Primeira definição de família usada por Ma
2) É a nossa casa de família – referindo-se à casa comprada pelo avô e que agora é
dos descendentes deste: seus pais, tios, irmãos, primos, sobrinhos e
segundos primos (ver Quadro 3);
3) Na reabertura da Fundação estávamos todos. Foi muito bonito, a família ali toda
reunida – referindo-se aqui a todos os descendentes dos diversos ramos do
bisavô, o fundador da empresa da família: todos os descendentes do seu
bisavô paterno (ver Quadro 4)
O ideal de continuidade da família 149
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150 O ideal de continuidade da família
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or
Ma
O ideal de continuidade da família 151
Pelo facto de Ma não ser casada, a polissemia que atribuí ao conceito de
família não se complexifica, ainda mais, com a sua própria família conjugal – um
nível normalmente presente de forma muito preponderante nos discursos e nas
práticas diárias dos indivíduos, como podemos ver através de alguns
depoimentos:
Quando nasceram os meus filhos, a mãe quis que nós fossemos viver para a
casa da família uma grande vivenda onde vive a avó num piso, três filhos em
cada um dos outros pisos independentes. Outro filho vive numa casa
recuperada nos jardins da moradia. Mas eu não quis. Quero viver só com a
minha família (MP).
Quadro 5
Quarta definição de família
Por vezes, estas várias dimensões da família aparecem misturadas e
sobrepostas ao longo do mesmo depoimento, como mostra o exemplo seguinte.
O Natal é sempre passado em casa da minha mãe. Vai só a nossa família os
pais, os irmãos, cunhados e sobrinhos. (...) No Verão vou para o Algarve, mas
só com a minha família marido e filhos. Uma vez por ano reunimos a família
toda num pic-nic os membros do seu ramo da família (...) Só uma vez é que
se juntou a família toda num grande almoço na Estufa Fria. Éramos mais de
mil pessoas (Br).
152 O ideal de continuidade da família
A definição do grupo de pessoas específico a que um indivíduo se refere
quando fala da sua família, depende do contexto em que se utiliza a expressão e
da pessoa que o faz, como se vê nos exemplos acima apresentados. Não há,
portanto, uma definição única para o conceito de família, pelo que, quando o
utilizamos, será necessário fazer referência à pessoa que o utiliza e ao conjunto
particular de pessoas a que se refere.
Abner Cohen encontrou uma situação semelhante no seu trabalho sobre a
Serra Leoa. Para resolver esta sobreposição conceptual, sugere que o tamanho real
da família “é limitado em termos práticos pelas obrigações de reciprocidade que
uma pessoa desenvolve e mantém na selecção dos seus parentes” (Cohen 1981:
64-5). Através desta proposta, Cohen defende a ideia de que o significado de
família para uma determinada pessoa, num dado momento, é algo relativo às suas
relações pessoais e à sua inserção numa determinada rede de parentesco.
Nas grandes empresas familiares portuguesas, esta polissemia do conceito
de família decorre também do carácter relativo da sua definição. Nos casos que
estudei, os limites da família são definidos pelo universo dos descendentes do
fundador da empresa, aqueles que mantêm algum tipo de interesse na sua
perpetuação.
Para facilitar a descrição utilizo a expressão “grande família” – o “universo
familiar alargado” – para designar o conjunto de parentes dos diversos ramos que
descendem do casal fundador. Proponho a utilização deste termo para evitar o
conceito de “família extensa” que, tal como foi definido por Peter Laslett e
Richard Wall, está fortemente ligado à ideia de unidades de residência (Laslett e
Wall 1978: ix). Por universo alargado da família, entendo o conjunto de famílias
conjugais e descendentes originado pelo fundador da empresa e da grande família.
Apesar de cada uma das famílias conjugais ter uma residência separada,
independente e autónoma, a densidade das relações que mantêm entre si contribui
para que este conjunto de famílias conjugais continue a existir enquanto um grupo
de parentesco, que partilha colectivamente elementos de constituição identitária.
Neste âmbito alargado de reivindicação da pertença familiar, a família tem uma
identidade colectiva e uma existência enquanto grupo. O que define os seus
O ideal de continuidade da família 153
membros é o facto de descenderem todos de um mesmo antepassado e de terem
também em comum o apelido e a empresa.
No entanto, o significado mais frequentemente atribuído à noção de família
é aquele que faz sentido nas práticas quotidianas dos indivíduos: é o que se atribui
ao nível da família conjugal e parental, normalmente coincidente com a unidade
doméstica a que pertencem e onde a residência comum revela e promove a
partilha das vivências mais significativas para os indivíduos.
Se aceitarmos a sugestão de não considerar a família como uma unidade
definida a priori, mas sim “um domínio de relações sociais criado no interior de
solidariedades primárias” (cf. Pina Cabral 1993: 42), é mais fácil entender as várias
esferas de inclusão familiar que estes indivíduos usam nos seus discursos e
“praticam” no seu dia a dia. A noção de famílias como “comunidades de prática”,
proposta por Jean Lave e Paul Wenger revela-se, de novo, útil para a presente
reflexão. De acordo com estes autores, as famílias
constituem um sistema de actividades onde os membros têm uma
compreensão comum das suas acções e das implicações que estas têm na sua
vida pessoal e na da comunidade (Lave e Wenger 1991: 98).
Neste sentido, a importância da família – nas múltiplas configurações que esta
pode assumir no âmbito das grandes famílias empresariais –, encontra-se nas
práticas estabelecidas diariamente entre indivíduos que se consideram pertencer a
uma mesma unidade de identificação familiar.
A “construção” e a continuidade das unidades sociais a que chamei universos
familiares alargados dependem da agencialidade dos sujeitos. É pela acção dinâmica
e empreendedora do fundador da empresa que os seus descendentes podem ou
não vir a investir na continuidade das suas relações. Nos casos em que o fundador
consegue transmitir à geração seguinte a noção da importância de continuar o seu
projecto económico, mantendo a sua propriedade e gestão no seio da família, a
continuidade efectiva das relações entre os seus descendentes é viabilizada pelas
práticas de gestão deste complexo património de relações familiares. Mais ainda, é
pela acção dos membros da família, por um “julgamento” colectivo sobre a forma
154 O ideal de continuidade da família
e a importância da participação de cada um no projecto familiar, que os
indivíduos se tornam membros mais ou menos prestigiados e influentes na
família. O valor ideal da importância da família e da preservação dos laços que cria
não perdura se não tiver uma correspondência nas práticas dos indivíduos. Estas
grandes famílias, cuja continuidade se enraíza na memória de um passado
colectivamente partilhado, que constituem identidades continuadas ao longo de
diversas gerações, alimentam-se, portanto, das práticas quotidianas dos membros
que as constituem.
Estes processos de produção de identidade familiar que se desenvolvem
simultaneamente em diferentes níveis de acção levantam uma questão, a meu ver,
muito interessante. Estas grandes famílias empresariais lisboetas contêm diversos
níveis de comunidade de práticas e de significado identitário que se enfatizam e
diluem de acordo com os contextos de actuação dos indivíduos. Neste sentido,
são estruturas familiares polissémicas e polimórficas que fazem lembrar a
definição, hoje em dia clássica na literatura antropológica, dos sistemas de
organização segmentares (cf. Evans-Pritchard 1977 e Kuper 1988). A grande família
a que os indivíduos pertencem é o universo em relação ao qual fazem uma
reivindicação identitária mais ampla, no âmbito das relações de parentesco.
Quotidianamente, porém, nem sempre se reivindica a pertença à grande família,
na medida em que as relações de intersubjectividade que se estabelecem no
âmbito da família conjugal ou num sub-ramo da família, tendem a ser mais densas
e com uma presença mais marcante na vida dos indivíduos.
O ideal de continuidade da família 155
2. Somos uma família antiga: a importância
do passado na organização do presente e na
construção do futuro
O passado foi sempre um tema muito presente na minha educação (...)
Era o peso da história acumulada e o seu tremendo determinismo. A
“originalidade”, como dizia o meu avô, (…) “é apenas uma falha de
memória (Aldrich 1996: 5).
Vimos como as relações familiares e o seu universo de acção são centrais, tanto
para a vida quotidiana dos membros destas grandes famílias empresariais, como
para a construção dos projectos de vida. As diversas dimensões que constituem a
identidade dos indivíduos – pessoal, familiar, social e profissional – enraízam-se
profundamente na história da família e apoiam-se no que poderíamos chamar um
culto da família.
A construção de uma identidade colectiva que une os membros destas
famílias fortemente dinásticas apoia-se na elaboração e transmissão de lendas
familiares72, bem como na exibição de símbolos que atestam a antiguidade e a
unidade das várias gerações da família – como as casas, os brasões, as quintas, os
nomes, os apelidos, as jóias. Estas lendas familiares e os símbolos da família
tornam-se, então, poderosos factores de consolidação de sentimentos de pertença
dos indivíduos ao grupo familiar, contribuindo, simultaneamente, para o
fortalecimento dos laços que os unem.
Este conjunto de lendas, tradições, objectos e valores centrais ao projecto de
identificação familiar vai-se tornando cada vez mais importante no tempo longo
72 A expressão lendas familiares foi proposta por João Pina Cabral para descrever as
narrativas mitificadas que as pessoas constróem sobre a história da sua família evocando pessoas, coisas, acontecimentos e lugares que foram importantes em algum momento para a produção de elementos identitários do grupo (cf. Pina Cabral 1995).
156 O ideal de continuidade da família
da existência da família. Ancorar a identidade no passado torna-se, então, um
elemento de legitimação da imagem pública de “famílias antigas”, por oposição
aos “novos ricos” que não têm, ainda, um passado familiar que legitime a sua
riqueza como base de uma posição social de prestígio.73 A distinção característica
destas famílias resulta da antiguidade e da acumulação de prestígio e riqueza
através das gerações, não podendo ser construída rapidamente: é necessário ser
suficientemente poderoso para escapar à erosão do tempo. Neste sentido, a
atitude conservadora, de que falei anteriormente, é também uma maneira de
escapar à erosão do tempo, fazendo da continuidade um elemento do projecto
identitário.
Os processos de produção identitária nestas grandes famílias são, portanto,
inseparáveis de uma reivindicação hereditária. Por isso, o “sangue” – enquanto
substância familiar partilhada – torna-se um elemento simbólico fundamental,
pois é através dele que os indivíduos legitimam a pertença à unidade social que
lhes confere identidade: a grande família que lhes dá o nome. Vale a pena lembrar
a opinião lapidar de Alexandre Herculano:
O valor de uma aristocracia de sangue assenta n’uma ordem d’ideias estranha
ao direito; procede do sentimento e todas as sociedades teem a sua poesia. A
esta luz nada é mais legitimo que a fidalguia, porque o senso esthetico é uma
condição natural da sociedade civil e o orgulho pelas tradições gloriosas do
passado constitui uma parte da sua vida moral (cit. in Mello Breyner 1934).
O património acumulado ao longo das gerações não se pode medir
simplesmente em termos financeiros e materiais, pois inclui também memória,
prestígio, relações e capital simbólico. A riqueza que as famílias possuem
colectivamente tem, portanto, um significado social que ultrapassa largamente o
seu valor económico. A qualidade de vida e a existência quotidiana das pessoas
destas famílias demonstram a multidimensionalidade da sua fortuna, onde se
conjugam dimensões económicas, culturais, sociais e académicas. Pela ideia de
73 Nelson Aldrich Jr, um destacado membro das denominadas old money families
americanas editou um interessante livro autobiográfico, onde reflecte precisamente sobre a importância simbólica, mas com inúmeras consequências práticas, desta distinção entre “riqueza antiga” e “novos ricos” (cf. Aldrich 1996).
O ideal de continuidade da família 157
permanência que instala, o tempo longo alia-se à ideia de projecto familiar
transmitido pelos sucessivos portadores do mesmo nome de família, dos
habitantes dos mesmos espaços, dos consumidores das mesmas relações, dos que
partilham as mesmas memórias. No âmbito das grandes empresas familiares, os
projectos de vida dos donos são constantemente associados ao projecto familiar.74
O longo processo de acumulação de várias formas de capital que constituem
o património familiar, é um percurso fundamental para que as famílias conjugais
deixem de ser exclusivamente uma família e se tornem um grupo familiar, cuja
existência e significado se prolongam pelas gerações. Ancorar a identidade do
grupo familiar no passado torna-se, portanto, um passo decisivo, na medida em
que essa referência temporal evoca uma dimensão de existência social que faz
parte do seu presente. Garantir a continuidade da unidade familiar e a passagem
dos elementos – materiais e simbólicos – que a representam será, então, um
objectivo dos elementos das sucessivas gerações da família.
Uma vez que a identidade social dos indivíduos se constrói com base na sua
pertença a um grupo familiar, a genealogia torna-se um importante elemento de
legitimação. É neste sentido que podemos compreender o facto de a maior parte
das pessoas com quem falei ao longo da investigação conseguir reproduzir de cor
extensas e complexas genealogias das suas famílias que constituem uma matriz
fundamental para os densos relatos que sobre estas elaboram.75 Veja-se, a título de
exemplo, como os mapas genealógicos 1, 3 e 7 revelam aquilo que Segalen e
Michelat denominam por “paixão pela genealogia” (cf. Segalen e Michelat 1991).
Este vasto conhecimento não é fruto de um acaso, mas o resultado de um
cuidado e permanente investimento colectivo no conhecimento genealógico e na
74 Utilizo a noção de projecto familiar no sentido proposto por Jaber Gubrium. De
acordo com este autor, família “é um projecto no sentido em que aqueles que nele estão envolvidos trabalham para fazer com que esse envolvimento seja classificado enquanto membros da mesma família ou grupo de parentesco. (...) Enquanto projecto a família cria um sentimento de identidade colectiva, no âmbito social os seus membros actuam como um grupo e usam a família na sua vida quotidiana” (Gubrium 1988: 275).
75 A comparação entre memória familiar e memória genealógica mostra que existe uma relação entre a capacidade de os indivíduos se recordarem dos seus dados genealógicos e a utilidade social destes (cf. Le Wita 1988).
158 O ideal de continuidade da família
transmissão de informações. Esse investimento torna-se necessário porque a
continuidade da identidade do grupo familiar e a legitimação do estatuto social
dos seus membros se enraízam no prestígio do seu passado familiar, demonstrado
pela genealogia e reproduzido no presente pelo destaque social e profissional dos
seus membros.
Como salientam Segalen e Michelat, “a aristocracia afirma a especificidade
do seu corpo através do sangue” (1991: 195), mostrando a antiguidade das suas
alianças, pelo que “a genealogia é um signo distintivo do grupo social” (ibidem).
No seio destas famílias, a genealogia é vivida quotidianamente, no seio do espaço
doméstico, pois a memória dos antepassados está viva nos múltiplos objectos que
existem na casa que já foi deles e agora é dos seus descendentes.
Ao transmitir a história da família através de episódios e objectos presentes
no quotidiano e que conferem uma certa “ilusão de convivialidade” entre as
gerações, os membros da geração controlante e da geração declinante criam, nas
gerações ascendentes, uma base de vivências partilhadas, onde estas poderão
inscrever a sua pertença identitária.
Uma ocasião particularmente importante da sociabilidade familiar é o
período das férias nas casas de família. Estes momentos de intenso convívio
reúnem um número alargado de membros da família por um período mais ou
menos longo, numa partilha do quotidiano que, por não ocorrer nos períodos de
trabalho, assume aspectos de excepção.
Todos os anos no Verão nos juntávamos com toda a família em Ílhavo, na
Fábrica da Vista Alegre. Havia uma festa da Nossa Senhora da Penha de França
que era um fim de semana de convívio em que se juntavam todos os primos, ia
toda a gente. Havia feira, um desafio de futebol, corridas de tabuleiros com
loiça, jogo da corda, tiro aos pratos. Era muito divertido e acho que era a única
altura em que estávamos realmente todos juntos, porque naquelas ocasiões
tradicionais, como o Natal, só se juntam os membros de cada ramo (CB).
O local tradicional de férias da família é a quinta da F. Mas agora já só vai um
ramo da família de cada vez. Seria totalmente impossível estarmos lá todos ao
mesmo tempo (BB).
O ideal de continuidade da família 159
O meu pai tem uma casa em VNO. É lá que nos reunimos todos no Natal, na
Páscoa e nos aniversários das pessoas da família. Tem de ser lá porque já
somos muitos e não cabemos em mais lado nenhum. No Verão vamos todos
para o Algarve. O meu pai aluga sempre uma casa na Quinta do Lago e mais
cinco lá ao pé para cada um dos filhos, porque gosta de nos ter ao pé e assim
podemos estar todos juntos durante as férias. É óptimo (PS).
Estes momentos de reunião proporcionam encontros particularmente
propícios à transmissão de lendas familiares e, portanto, à constituição da
memória familiar. São momentos de consolidação de laços de intersubjectividade
que unem os membros da família. Momentos de lazer em que se fortalecem
solidariedades e cumplicidades, não apenas entre as gerações adultas, mas também
entre as mais novas, incluindo os primos mais ou menos afastados. Desta forma,
os mais novos crescem no seio destas sociabilidades familiares que, através das
lendas que as famílias constróem sobre si próprias, incluem também os
antepassados. Estes momentos de proximidade familiar adquirem um peso e uma
eficácia redobrada quando ocorrem na casa da família, que é símbolo da sua
identidade colectiva e do seu prestígio.
Numa das famílias estudadas, as férias de Verão constituem um importante
momento de reunião familiar na quinta de família, onde se juntam cerca de cento
e cinquenta parentes, divididos por nove casas, uma de cada ramo de
descendentes do fundador.
Como estávamos sempre todos na quinta durante todo o Verão às vezes era
uma grande confusão. Já não distinguíamos os miúdos ao longe, não sabíamos
quem era quem. Então inventámos uma maneira muito prática que ainda hoje
usamos. Cada família tinha uma cor de boné para podermos ver e distinguir os
nossos ao longe. A minha era vermelha. Quando víamos algum dizíamos: “olha
aquele é teu” (Me).
As férias nas casas de família não consolidam apenas as relações entre os
seus membros: contribuem para inscrever nos mais novos a imagem da família
160 O ideal de continuidade da família
como projecto colectivo, materializado em espaços e objectos que a simbolizam e
a enraízam num passado legitimador, veiculando, simultaneamente, a ideia de que
esses espaços e objectos devem ser preservados e respeitados para, mais tarde,
poderem ser transmitidos aos seus futuros descendentes.
Os momentos de lazer são passados a (re)contar velhas histórias, que
apelam a sentimentos partilhados, fazem-se relatos sobre objectos famosos na
família, ou mostram-se fotografias aos mais novos. Estes momentos são uma
forma poderosa de incorporar nestes jovens membros uma base sobre a qual se
poderá construir um sentimento de pertença, onde a identidade familiar se poderá
enraizar. Ao partilhar essas histórias, os membros das gerações mais novas são,
simultaneamente, incorporados na família.
Os mais novos vêm sempre ouvir quando os mais velhos estão a contar
histórias. Uma das que faz mais sucesso junto dos mais novos é a de um jantar
de muita cerimónia em que os pais recebiam os Condes de P. Os meus irmãos
mais velhos vestiram-se de criados e foram servir à mesa, enquanto que os mais
novos atravessavam a sala passando por baixo da mesa durante o jantar. Os
pais olhavam para estes “criados” sem poderem dizer nada. Está a ver, não
podiam dizer aos convidados que eram os filhos que estavam a servir à mesa.
Foi uma grande risota (JMe).
Histórias como esta são contadas tantas vezes que acabam por adquirir o
caracter de lendas familiares, histórias incorporadas na memória de todos, mesmo
daqueles que as não viveram e que mais tarde as reproduzirão aos mais novos,
integrando-os, por sua vez, nessas vivências transmitidas de geração em geração
que permitem a continuação de sua identidade colectiva.
Num texto que publicou no livro da família, uma neta de um dos
fundadores da Orey Antunes, descreve exemplarmente este sentimento de
continuidade intergeracional, do compromisso subjacente às relações entre as
gerações, de prolongar a família e a memória dos seus membros num tempo
longo:
O ideal de continuidade da família 161
Que saudades! (...) Éramos tantos, hoje somos tão poucos. O que vale é que
não falta quem nos suceda!! Mas se foi bom nesta festa fazer reviver os que a
Deus foram chamados, foi bom, através da sua evocação, saber quem somos.
É destes ilustres antepassados, destes primeiros filhos e netos de G e L que
descendemos. Somos a sua família. Penso que só temos de nos alegrar de
saber que, por causa deles, estamos aqui hoje. É a sua mensagem de união, de
trabalho e de honestidade que eles nos deixaram, que temos de transmitir aos
que nos vão seguir. Aos novos de hoje é que fica o encargo de manter aceso o
facho desta tradição, com a ajuda de Deus (ML).
Os percursos pessoais e profissionais dos membros destas famílias são
inscritos neste projecto de continuidade pois, desde pequenos, sabem que vão
herdar os bens da família e ter de garantir a sua continuidade para as gerações
futuras. Nestas grandes famílias empresariais, a educação dos mais jovens é
direccionada para a ideia da importância da transmissão de um capital colectivo
entre as sucessivas gerações da família. Uma vez que há muito para passar, tanto
económica como simbolicamente, é importante garantir que o que se transmite é
bem recebido: que aqueles que recebem irão posteriormente transmitir o
património familiar às gerações seguintes, dando assim continuidade à família e ao
património que a acompanha e simboliza.
O “lastro do passado” tem, portanto, um grande peso no processo de
desenvolvimento destas famílias que, por isso, dedicam grande atenção à
reconstituição da memória familiar, de forma a salientar os princípios
organizacionais mais valorizados no seu projecto de continuidade.
Todas as famílias constróem algum tipo de memória familiar. No entanto,
como demonstram vários autores que têm trabalhado sobre este tema – Segalen
(1980), Le Wita (1985), Comas (1988) e Bertaux (1981) – as formas de
constituição da memória familiar variam de acordo com os modos de vida,
dependem dos projectos, das especificidades das práticas e da concepção do
mundo do grupo social que as produz. Neste sentido, a memória familiar de
162 O ideal de continuidade da família
diferentes “famílias de classe”76 não se estrutura da mesma forma, nem se baseia
nos mesmos elementos. Utilizando e valorizando signos distintos, são estes
elementos particulares que transmitem às gerações vindouras. O tipo de estrutura
que se privilegia – maior profundidade do conhecimento genealógico ou maior
extensão colateral – e o conteúdo dos discursos que produzem sobre a família
estão indissociavelmente ligados às práticas das pessoas que os constróem, às suas
vivências particulares, ao investimento que fazem na transmissão dessa memória e
aos objectivos com que ela é transmitida.77 Num trabalho pioneiro sobre as
famílias da grande burguesia de Paris, Beatrix Le Wita defendeu que a memória
familiar tem uma grande importância para as famílias burguesas:
Para os burgueses, a memória funciona como um capital acumulado e
transmissível ao longo de várias gerações. No interior das famílias a genealogia
circula de maneira inata. Não se procuram as raízes pois elas estão, por assim
dizer, incorporadas. O nascimento substitui-se à função como forma de se
demarcarem das classes médias. Os filhos que nascem nestas famílias são
burgueses porque já o são há várias gerações. A genealogia apenas consagra
um estatuto social já reconhecido pelos outros (Le Wita 1985: 23).
76 Daniel Bertaux propõe a utilização do conceito de família de classe para dar conta das
diferentes formas como as famílias se integram no mercado de trabalho e nas relações de produção, e para analisar as repercussões que estas têm nos processos de reprodução das famílias (Bertaux 1978: 67-70).
77 Para dar um exemplo destas diferenças podemos comparar os resultados dos trabalhos de Martine Segalén e de Beatrix Le Wita, realizados em diferentes contextos da hierarquia social francesa. Entre os camponeses do Pays Bigouden, Segalen encontrou uma clara predominância de uma vasta memória colateral que, no seu entender, resulta das intensas trocas de ajudas entre essa rede de parentes e de uma clara preferência pelo estabelecimento de alianças matrimoniais na colateralidade afastada, devido à aplicação de um conjunto de estratégias de transmissão e manutenção de património. De acordo com a autora, foi a análise da memória familiar que lhe permitiu descobrir a existência destas preferências matrimoniais ao longo de quinze gerações nesta região (cf. Segalen 1985). De forma diferente, entre os burgueses parisienses Le Wita encontra predominantemente um tipo de memória familiar que se estende linearmente, na profundidade geracional. Este facto resultaria da necessidade de legitimar e fazer reconhecer o prestígio familiar num passado identificável e comprovável genealogicamente (cf. Le Wita 1985). A comparação entre estes dois exemplos mostra que os diferentes valores, práticas sociais e critérios de avaliação em que assentam as concepções do mundo dos indivíduos promovem variações na forma como se estruturam as memórias genealógicas e familiares de diferentes grupos sociais.
O ideal de continuidade da família 163
Nestas famílias, que se apoiam num ideal aristocrático de constituição de
linhas de descendência, ter uma memória genealógica profunda é um elemento
decisivo para mostrar a antiguidade da família, do poder e prestígio social que
detém. Mais do que isso, a genealogia familiar constitui para eles uma espécie de
prova da legitimidade desse prestígio, uma vez que demonstra a sua existência
desde antepassados remotos. Em conclusão, a memória genealógica e familiar não
tem, para estas grandes famílias, apenas uma função simbólica: ela serve,
sobretudo, para perpetuar e reafirmar um estatuto previamente adquirido e
reconhecido pelos outros.
3. Elementos de ancoramento da memória
familiar
Para a consolidação da memória familiar como um património colectivo que pode
ser usado, partilhado, visitado por todos os membros da grande família, recorre-se
ao uso simbólico e prático de alguns elementos que, simbolizando particularmente
bem a identidade da família, servem de âncora à memória de todos. De entre estes
elementos, destacam-se as casas de família, as fotografias ou quadros dos
antepassados, as jóias de família, cartas, livros, festas e nomes. Estes elementos de
ancoramento da memória familiar serão o fio condutor das secções seguintes.
Cada uma das sete famílias com que trabalhei é, presentemente, constituída
por um universo relativamente grande de parentes. Apesar de cada uma das
famílias conjugais viver, regra geral, na sua própria casa, cada uma destas grandes
famílias tem uma casa que é identificada como “casa da família” e que é um
importante símbolo dela e do seu prestígio: é o local onde se enraíza espacial e
164 O ideal de continuidade da família
temporalmente a sua identidade e a unidade dos seus membros ao longo do
tempo:
Depois dos pais morrerem fizemos as divisões da quinta. A casa grande ficou
para o meu irmão mais velho. Nós sempre continuámos a ir lá fazer as grandes
festas da família. Mesmo desde que o meu irmão morreu (…) a minha
cunhada, tem sido impecável. Fez sempre com que a casa continuasse sempre
aberta para quem lá quiser ir. Eu às vezes vou lá, entro, dou uma volta pela
casa toda e venho-me embora. É só para respirar aquele ar, pisar aqueles
tapetes. Faz-me falta (Me).
Estas grandes casas de família são uma espécie de “santuário do passado
familiar”, onde se preservam as memórias, as colecções, os livros, as peças de
mobiliário, as jóias, os quadros de família, as obras de arte. É nestas casas que
estes objectos ganham sentido, porque é aí que se inscreve a sua história.
A casa do meu avô é um marco. É onde nos reunimos todos quando há
grandes reuniões de família, ou festas, e onde passamos os tempos livres. (…)
É o sítio onde os nossos pais e os tios cresceram e onde os da minha geração
passavam os três meses de férias de Verão, mais os quinze dias de Natal e os
quinze dias da Páscoa e todos os fins-de-semana, juntos com todos os primos,
tios e avós. Todos [os filhos] foram fazendo as suas casinhas, uma para cada
um, mas andam sempre em casa uns dos outros. As casas estão sempre abertas
para todos. Janta-se num lado, toma-se café noutro e em sítios diferentes
daquele onde se almoçou. É este o espírito, e isto só funciona com muita
amizade, muita união e muito boa relação. Toda a gente tem um carinho muito
especial pela quinta. Já há uns sobrinhos que dizem, “o pai não vai, mas a gente
vai”. É este espírito que é a base de tudo. Os pais e os tios conseguiram
transmitir isso à minha geração e nós também temos conseguido transmitir isso
aos sobrinhos. E isto é que é o máximo. A grande herança é essa união, esse
espírito (Ma).
Sempre que íamos para a quinta, primeiro tínhamos de ir à casa grande dar um
beijinho à avó e só depois é que íamos brincar ou para as outras casas, fazer
O ideal de continuidade da família 165
outra coisa qualquer. Ainda hoje, mesmo depois de a avó já ter morrido há
tanto tempo, os mais novos sabem que não podem entrar na casa da avó com
os pés sujos e pisar os tapetes da avó (T).
Estas casas têm, efectivamente, um passado que conta a história dos
antecessores e são indissociáveis do prestígio da família. São verdadeiras casas de
família. Casas por onde passam as sucessivas gerações, dando continuidade aos
seus fundadores e imprimindo um sentimento de continuidade ao projecto
familiar. Estas casas mostram, melhor que qualquer outro elemento do
património familiar, a multidimensionalidade da riqueza da família. Sendo um
elemento de valor cultural, económico e afectivo, as casas de família têm uma
característica que as distingue dos outros: têm uma utilização prática e diária. O
próprio recheio destas casas – móveis, quadros, objectos de arte, fotografias –
transmite a quem as habita – aqueles que mais tarde terão de o transmitir – um
conjunto de conhecimentos que se torna “projecto familiar incorporado”. Os
descendentes que vivem imersos no património familiar, em comum com as
pessoas e os objectos que constituem a sua fonte de constituição identitária,
incorporam o projecto familiar, adquirem os conhecimentos e os sentimentos que
farão deles sucessores.
Através da história destas casas podem contar-se, também, as histórias das
famílias. As fotografias de família são uma das formas mais frequentes de o fazer.
Os espaços públicos das casas, aqueles onde é aceite a presença das visitas78 –
como sejam as salas de estar e as salas de jantar –, estão repletos de fotografias de
ascendentes e descendentes da família. Através deste vasto conjunto de
78 Estes espaços públicos da casa não são públicos no sentido de que qualquer pessoa os
pode frequentar, pois qualquer casa, de qualquer grupo social é, obviamente, um espaço privado. Quando se admite a entrada em casa de alguém que não faz parte dela, mas que está de alguma forma relacionados com os seus membros, os espaços onde poderá entrar estão, em geral, bem definidos e circunscrevem-se àqueles que foram construídos para dar uma imagem da família para o exterior, aos espaços organizados com o objectivo de serem os locais para receber quem vem de fora.
166 O ideal de continuidade da família
fotografias, impõe-se permanentemente a presença do grande universo familiar
em que estão integrados os indivíduos que vivem naquela casa.79
A forma como as fotografias constróem uma apresentação pública do
universo familiar é algo que merece ser analisado. Os amplos conjuntos de
fotografias que representam o universo familiar mais importante para os membros
de uma determinada casa são colocados nos espaços onde serão vistos por todos
os seus eventuais visitantes. Os espaços potencialmente públicos das casas não
são, portanto, espaços inocentes. São espaços teatralizados, onde os seus
membros apresentam a imagem de si e da família que querem fazer passar para o
exterior. A forte presença de fotografias de família nestes “espaços privados
virados para o exterior” revela que a vida destes indivíduos é perpassada
constantemente pela dos seus familiares e que os membros da casa querem dar
uma imagem de si próprios como pessoas de família, pessoas que fazem parte de
um grande universo familiar cuja presença é permanente e fundamental nas suas
vidas.
A presença recorrente de fotografias dos parentes mais próximos e dos
antepassados mais marcantes dos habitantes das casas é uma metáfora da
importância que estes lhes atribuem e, simultaneamente, no primeiro caso, da
densidade das relações que estabelecem quotidianamente entre si. A partir das
fotografias dos diversos membros da família expostas nos locais públicos das
casas, poderia elaborar-se uma genealogia ilustrada da família, ou melhor, uma
genealogia dos elementos da família aos quais se atribui maior relevância.
As fotografias expostas ajudam, ainda, a compreender as relações sociais
mais alargadas em que estão envolvidos os membros da família, ou melhor
dizendo, aquelas com que desejam mostrar estar envolvidos. De facto, é frequente
encontrar, ao lado das fotografias de família, fotografias de algum parente ao lado
de um chefe de Estado ou de alguma figura pública importante. É muito
frequente encontrar fotografias de António de Oliveira Salazar, de Américo
79 Beatrix Le Wita ilustrou largamente a importância das fotografias de família nas casas
da alta burguesia francesa como suportes de memória familiar (cf. 1988: 133-160). Sobre este assunto veja-se também o trabalho de Nuno Porto sobre os álbuns de fotografias de família numa aldeia da Beira Alta (cf. Porto 1993: 148-156).
O ideal de continuidade da família 167
Thomaz e de membros de importantes famílias aristocráticas europeias, lado a
lado com as fotografias da família.
Todavia, a utilização das fotografias de família, como símbolo de uma
identidade que se quer continuada, como demonstração exterior do percurso
genealógico dessa identidade, não se limita ao espaço da casa e estende-se aos
espaços das empresas. As fotografias e os retratos pintados dos diversos membros
da família que passaram pelos lugares de chefia das empresas ocupam lugares de
destaque nos gabinetes dos principais executivos, nos corredores e nas salas de
reunião, onde se recebem pessoas de fora.
A amplitude dos significados da exposição de fotografias de família nos
espaços visíveis das casas e das empresas representa algo mais do que uma simples
forma de decoração, pois contribui para a construção de uma imagem de
antiguidade da empresa associada à antiguidade da família. Através dessa
exposição, associam-se pessoas concretas a um percurso empresarial caracterizado
por valores particulares: os das famílias antigas, tradicionais, unidas e com uma
reputação empresarial comprovada por longos anos de existência. Desta forma,
expor na empresa retratos dos vários elementos da família que passaram pelos
lugares de topo, evoca a continuidade da participação das várias gerações nesse
projecto, revelando linhas familiares de transmissão de poder nas empresas.
A memória familiar apoia-se, portanto, nos bens e símbolos que constituem
a identidade da família, em lugares e objectos que a representam, em elementos de
uma tradição que se continua e confere agencialidade às recordações. O nome de
família e o conjunto de nomes próprios, as casas, as empresas, as jóias e os
brasões, constituem aquilo a que chamo património familiar e que serve de âncora
à memória familiar. São símbolos de uma substância partilhada que une a família e
a tornam visível publicamente. A posse deste património determina, em grande
medida, a pertença a uma grande família.
Neste contexto social, os espaços e os objectos onde se enraíza a memória
da família são extremamente valiosos. Não apenas em resultado do seu valor
comercial, mas pelo valor simbólico e afectivo que adquirem ao passar de geração
em geração. Em The Philosophy of Money , Simmel chama a atenção para o facto de
168 O ideal de continuidade da família
o valor dos objectos não ser uma característica que lhes é intrínseca, mas o
resultado de um julgamento que os sujeitos sociais que o usam ou desejam, fazem
sobre ele (cf. Simmel 1982: 73).
Estes objectos familiares transportam com eles uma “história de vida” que,
tal como a dos seus proprietários, pode ajudar a contar a história destas famílias.
Seguindo a linha de argumentação de Simmel, Appadurai chama a atenção para o
facto de os objectos – no sentido atribuído a commodities, objectos com valor
económico – terem uma vida social, tal como as pessoas (cf. 1986: 3). Neste
sentido, o autor defende que a importância de um objecto não decorre apenas do
facto de ser um bem valioso em termos de mercado. O objecto que se possui,
sobretudo se está na posse da família há muito tempo, faz parte da familiaridade
quotidiana daqueles que o possuem: tem uma vida social. Quando se trata de
objectos que passam de geração em geração, para além de serem importantes
marcas do passado, tornam-se também símbolos da família e da continuidade
familiar. Independentemente do seu valor económico, são elementos de um
património colectivo e têm um valor social insubstituível, pois comprovam a sua
antiguidade.
No trabalho que realizou sobre grandes empresas familiares no Brasil,
Adriana Piscitelli toma como centro de análise as jóias de família que circulam
entre as mulheres, criando vínculos e identidades em torno do grupo familiar (cf.
Piscitelli 1999). As jóias que circulam nas famílias empresariais são símbolos de
um património marcado pelo valor sentimental que flui em sentido descendente
ao longo das gerações. A posse continuada desses objectos expressa a
permanência de elementos importantes na estruturação da identidade familiar.
Nas histórias em que as sucessões empresariais seguem linhas exclusivamente
masculinas, as jóias evocam a dimensão feminina da riqueza.
Esses objectos de valor aludem ao lugar “precioso” que as mulheres têm na
família e à maneira das marcas do género que hierarquizam as distinções entre
actividades empresariais, à localização secundária a elas outorgada nas empresas
(Piscitelli 1999: 266).
O ideal de continuidade da família 169
Ao chamar a atenção para a existência de diferentes dimensões da riqueza, a
autora mostra também como, nestas grandes famílias empresariais, coexistem
estilos diversos de transmissão de diferentes bens, ao longo de linhas familiares
diferenciadas, com base em critérios de género.
A transmissão destes objectos particularmente valiosos – material, simbólica
e afectivamente –, ao longo das gerações, foi-me várias vezes relatada.
As alianças dos avós ainda hoje são conservadas e utilizadas! R usou a de seu
pai quando casou. Resgatou a de sua mãe por morte dela, e passou a ser usada
por sua mulher que, mais tarde, a deu a sua neta ML, que era a filha mais
velha do seu filho mais velho. Quando R morreu deixou a aliança de seu pai
ao seu filho V e então, sua neta ML, num gesto de grande nobreza, entregou a
aliança da Bisavó à sua tia, mulher de V, pois considerava que as alianças
deviam estar nas mãos do mesmo casal. Quando V morreu, deixou a aliança
de seu avô a seu filho G e depois a sua mulher entregou a da avó à mulher de
G. É este casal que actualmente detém e usa essas alianças (ML).
170 O ideal de continuidade da família
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O ideal de continuidade da família 171
Para uma destas grandes famílias um objecto que tem uma importância
simbólica muito especial é um pequeno bule de doente em barro de
Estremoz, que está na posse da família desde1885, aproximadamente. O
bule foi comprado por IN para ajudar às melhoras da sua filha La.
Muitos anos depois IN adoeceu e a sua filha IS, lembrando-se do bule,
serviu-se dele para ajudar a sua mãe. Eis como a história é relatada por
uma das netas:
Devia estar guardado em qualquer armário. Encontrou-o, segurou-o com
carinho, até o acariciou, reviveu a sua juventude (...). O bulezinho não era a
bola de cristal que faz ver o futuro, era um objecto também gordo e
rechonchudo, mas de barro fino e vidrado com florzinhas pintadas que, ao
contrário, fazia reviver o passado. E era num misto de passado e presente que
ela dele se servia para ajudar a sua mãe. (...) Há uns vinte anos, IR (...),
acompanhou a uns tratamentos o filho de IS [que era o depositário do bule
nessa altura]. Com muita amizade e gratidão, ele ofereceu-lhe o bule. Será que
ele sabia que as memórias da sua família podiam ser lembradas com muita
saudade e ternura no pequeno bule de Estremoz da feira do Gaivão? (LGV)
Quadro 7
Linhas de transmissão do bule de doente
172 O ideal de continuidade da família
Como podemos verificar através desta pequena história, o percurso genealógico
de determinados objectos segue linhas de identificação familiar e, demonstra,
muitas vezes, a relevância de outros critérios de identificação. Neste caso
concreto, as linhas de transmissão do objecto são, simultaneamente, linhas de
transmissão de nomes próprios ao longo de gerações familiares que reforçam
laços de identificação continuada.80
Em suma, os ambientes domésticos em que vivem estas famílias são
valiosíssimos em termos de valor de mercado. Mas, as casas, os tapetes, os
objectos, as peças de mobiliário, os quadros que decoram as suas residências, não
podem ser reduzidos à sua importância económica. São bens culturais que fazem
parte da memória familiar, do prestígio e do estatuto social da família. O valor
atribuído a estes objectos familiares deve, portanto, ser encontrado na sua própria
história, ou seja, na história da sua relação com os indivíduos que vivem com eles
e lhes atribuem um determinado valor material e simbólico. A
multidimensionalidade do valor que estes objectos adquirem para os membros da
família é resultado de um processo de investimento emotivo e cognitivo que
desenvolvem no contexto da sua comunidade de práticas.
Tomemos de novo um caso concreto para reflectir sobre esta questão.
Mi é a neta mais velha de um importante empresário português que foi
simultaneamente um grande apaixonado e divulgador de arte em Portugal. Desde
pequenina, Mi habituou-se a acompanhar o avô pelos antiquários e pelas casas
particulares, onde este via e comprava novas peças. Nos anos que viveu em
Inglaterra e nos passeios pela Europa que fez com a família, o contacto com os
expoentes máximos da arte europeia consolidaram o seu apurado gosto estético e
os seus profundos conhecimentos sobre história de arte, que marcaram desde
cedo a sua educação e que, mais tarde, viria a aprofundar num curso em Florença.
As antiguidades e os objectos de arte valiosos fazem parte da sua vida quotidiana
desde que nasceu. A cama onde dormia em menina, na casa dos seus pais, está
hoje num museu. Actualmente Mi é restauradora de porcelanas, dá aulas de
80 Mais à frente, neste capítulo, discutirei a importância da transmissão dos nomes de
família em pormenor.
O ideal de continuidade da família 173
história de arte e de restauro numa destacada escola profissional de artes em
Lisboa e foi Comissária de uma importante exposição durante a EXPO 98, em
Lisboa.
Vários aspectos da vida quotidiana de Mi foram, simultaneamente,
importantes elementos culturais. A imersão da sua vida num mundo onde a arte é
uma parte fundamental, refinou-lhe o sentido estético, que é hoje resultado de
“um gosto cultivado” desde que nasceu, que não vem apenas de uma
aprendizagem académica ou de uma paixão de autodidacta. O percurso pessoal e
profissional de Mi mostra bem como, no âmbito destas famílias, o contacto com
a arte, com a Alta Cultura, feito nas suas próprias casas, num espaço de grande
familiaridade, no mesmo espaço onde se constróem as identidades individuais,
adquire uma eficácia poderosa, marcando de uma forma indelével a sua distinção.
O viver nestes espaços habitacionais distintos (no sentido usado por
Bourdieu em La Distinction, 1979), promove uma proximidade material, um
contacto íntimo com a arte e com a Alta Cultura, que proporciona uma forma de
aprendizagem, de orientação do gosto, do sentido estético que é apreendida pelos
mais novos e incorporada da mesma maneira que as boas maneiras ou um certo
tipo de linguagem. A familiarização com a arte, com conhecimentos técnicos e
históricos, com a educação do gosto, faz-se através da subtil familiarização
quotidiana que é, em si mesmo, um dos maiores privilégios deste grupo social.
Uma parte substancial da eficácia destes conhecimentos é adquirida
“naturalmente” em casa, decorre do facto de a identidade familiar se enraizar
nesses mesmos objectos. A incorporação bem sucedida destes conhecimentos,
através da familiaridade com eles, faz com que mais tarde possam parecer uma
qualidade inata da pessoa. Mas não são. São resultantes do lento passar do tempo,
da acumulação dos diversos capitais familiares que, ao transformar as aquisições
sociais em diferenças na natureza dos processos de constituição das pessoas,
permite que os espaços onde se desenrolam as suas relações familiares se
transformem em poderosos contextos de incorporação de distinção social.
174 O ideal de continuidade da família
Como se tornou claro através da análise do exemplo do percurso de Mi, o
valor simbólico, cultural e estético dos bens raros e antigos, que recheiam as casas
onde viveu, constitui a base material sobre a qual se transmite uma parte essencial
da sua herança, desempenhando um papel central na inculcação de
conhecimentos e na formação de gostos que constituem o habitus do grupo.
4. Produzir a história da família
Dado o peso que a história da família tem no universo em análise, não é de
estranhar ter encontrado, no âmbito destas grandes famílias, descendentes que se
preocupam apaixonadamente com temas das tradições familiares. Esta paixão
contribui para dar aos descendentes um forte sentido da família, como unidade de
existência partilhada ao longo de gerações – como uma identidade continuada
que, por sua vez, irá alimentar essa paixão. Os interesses partilhados e a posse
comum de objectos que transportam consigo a identidade familiar produzem uma
certa mutualidade.
As identidades familiares continuadas que se constróem desta forma estão
em permanente adaptação, inovação e alteração, pelo que têm também de ser
constantemente alimentadas. É o que acontece através das celebrações e rituais
realizados nos diversos níveis da família e ao nível da empresa. Estas celebrações
fazem parte de um processo de invenção de uma tradição familiar que tem de ser
suficientemente poderosa para afectar a vida de várias gerações de descendentes
que se mantêm unidas por sua causa. O peso do património familiar na vida de
cada um contribui para a consolidação do ideal que visa a sua continuidade. No
O ideal de continuidade da família 175
caso das famílias dinásticas, esse ideal é perseguido de uma forma tão consciente
que, ao longo do tempo, se vai transformando em tradição.81
Entre outros exemplos, destaco o da família Albuquerque D’Orey. Desde
1989, um ramo desta grande família, os Jara D’Orey, organiza anualmente um pic-
nic que reúne muitos dos seus elementos numa herdade de um dos seus membros
perto de Alcácer do Sal. “Da primeira vez éramos só setenta, mas no ano passado
já éramos duzentos” (MJo). O espírito de família criado por estas reuniões faz
com que, de ano para ano, mais participantes se juntem a esta organização.
Esta tradição iniciou-se na sequência de um grande almoço que, em 1985,
reuniu na Estufa Fria a maior parte dos descendentes dos fundadores da família:
Guilherme Aquiles D’Orey e Maria Luísa Albuquerque. Essa grande festa familiar
foi cuidadosamente produzida por um conjunto de dezassete pessoas que
responderam à iniciativa de um bisneto dos fundadores e de sua mulher. A adesão
da família foi total. Estiveram presentes mil cento e sessenta e oito pessoas, entre
as quais se contavam diversos membros da família que residem no estrangeiro –
Brasil, França, Alemanha, Suíça, Venezuela e Espanha – e que vieram a Portugal
propositadamente para estar presentes neste grande encontro familiar.
A festa começou com uma missa, celebrada pelo Padre Feitor Pinto82,
acolitado por vários membros da família. Os mais novos fizeram o peditório. Um
coro constituído por cinquenta D’Oreys acompanhou a missa e cantou as janeiras
aos elementos mais velhos com uma letra especialmente escrita para a ocasião.
Seguiu-se um almoço que se prolongou pela tarde fora.
Para essa reunião, alguns elementos da família organizaram um livro com a
história da família, com depoimentos sobre acontecimentos marcantes na história
dos fundadores e dos seus filhos, sobre a própria festa, com uma descrição
81 Neste sentido, é curioso notar que as grandes redes familiares e as grandes festas de
família que reagrupam todos os descendentes de um mesmo antepassado estão hoje em plena expansão, comprovando a vontade de ter o passado partilhado pelos seus antepassados como princípio que alimenta a união familiar no presente. Mas isto será material para ser usado noutro trabalho.
82 A família pediu, e recebeu, da Nunciatura Apostólica de Lisboa, uma Bênção Apostólica de João Paulo II “para a sua reunião de união da família numa elevada demonstração de Fé”.
176 O ideal de continuidade da família
pormenorizada de quem colaborou nos diversos passos da sua organização e
muitas fotografias dos fundadores da família Albuquerque D’Orey e dos seus
filhos e das várias casas que pertenceram à família. Este livro comemorativo, os
ensaios do coro, as tarefas de organização, a contabilidade, os cinzeiros pintados
para a ocasião, tudo isto foi o resultado de imenso trabalho e dedicação, revelando
a importância de que esta reunião familiar se revestiu.
Como este exemplo demonstra, o processo de gestão do património
cultural, simbólico e material é um elemento central na construção da unidade de
cada uma destas grandes famílias, compostas por muitos descendentes, divididos
em muitos ramos. Cada um destes produz, por sua vez, marcas de identificação
comum, como pudemos verificar através do exemplo do ramo Jara D’Orey que
organiza momentos próprios de reforço do seu processo identitário,
paralelamente aos momentos de construção de uma identidade familiar mais
ampla. Vale a pena deixar claro que, ao mesmo tempo, há também processos de
identificação familiar mais restritos nas subdivisões deste ramo da família, que
correspondem às redes de solidariedades primárias criadas no âmbito das várias
famílias conjugais.
Este processo de gestão da tradição familiar torna-se, então, uma forma de
promover relações entre os parentes do seu universo familiar mais alargado. As
relações neste âmbito mantêm-se activas, devido à memória colectiva
constantemente transmitida e frequentemente recriada. Os trabalhos de
investigação de diversos autores têm mostrado que este tipo de estratégias é
amplamente usado em contextos de elites sociais (cf. Bourdieu 1979,
Mension-Rigau 1994 e Le Witta 1988).
No caso das famílias empresariais lisboetas, a tradição familiar é
complementada por uma forte interdependência entre a estrutura de
administração dos negócios familiares e o domínio das relações familiares
alargadas. No capítulo anterior mostrei que a empresa familiar é um importante
símbolo da família e contribui de uma forma decisiva para que a grande família –
composta por todos os descendentes do fundador – se mantenha unida ao longo
das várias gerações. Porém, a grande empresa familiar torna-se também uma
O ideal de continuidade da família 177
estrutura de autoridade e um local de ancoramento da tradição da família que, por
sua vez, compromete os descendentes com o projecto colectivo garantindo,
assim, a sua continuidade. Desta forma, o grupo económico familiar – a fonte de
produção dessa riqueza colectiva – torna-se o principal incentivo tanto para a
reprodução da tradição familiar, como para a manutenção da coesão entre os
membros da família.
Um exemplo revelador do investimento na família e na ligação desta à
empresa, é o facto de quase todas as famílias com que trabalhei estarem a
elaborar, ou já terem elaborado, uma história da sua família ou das suas
empresas.83 A importância da história de família foi apresentada de uma maneira
particularmente interessante por um elemento de uma das famílias da elite texana
analisadas por George Marcus:
Comecei a ver a história de família como algo de certa forma semelhante à
arquitectura. Tal como a arquitectura, ela é silenciosa. Ela envolve mas requere,
necessariamente, atenção. Até podemos nem reparar que ela está lá. Tal como
acontece com a arquitectura, podemos de repente tomar consciência da
presença da história de família. Por exemplo, podemos estar sentados na
biblioteca pública de Nova Iorque, na rua quarenta e dois – desenhada por
Carriere e Hastings e talvez o melhor edifício de Nova Iorque – com o nariz
dentro de um livro ou a consultar o catálogo, afastados do esplêndido interior
que nos rodeia. Podemos esquecê-lo ou não reparar nele nesse dia e, de
repente, casualmente ao olhar para cima, ficar espantados ou mesmo
momentaneamente desorientados pelo que vemos. É assim com a história de
família. Podemos levar a nossa vida sem pensar no passado e, de repente,
como se acordássemos de um sonho, ficamos espantados por ver que vivemos
neste ambiente. Eu já tinha trinta anos quando comecei a perceber que a minha
vida estava envolvida desta forma. Ao princípio pareceu-me uma forma de
83 Adriana Piscitelli mostra, para o caso brasileiro, a importância da publicação de
histórias sobre as empresas e seus fundadores para os membros das grandes famílias empresariais. Na sua estimulante análise sobre estes relatos, mostra-nos como, através deles, se pode identificar os valores que próprios actores consideram fundamentais na prossecução da continuidade do seu projecto económico familiar e que, através das narrativas, são convertidos em “património genético”, transmitido ao longo de linhas de descendentes da família (Piscitelli 1999: 55).
178 O ideal de continuidade da família
prisão, mas depois revelou-se ser uma dádiva e parece-me que toda a história
de família é uma dádiva (Susan Lessard cit. in Marcus sd: 13).
A elaboração de histórias de família e de histórias de empresa tem, de facto, uma
enorme importância, pois cria uma espécie de versão oficial dos acontecimentos
mais marcantes, contribuindo assim, decisivamente, para a consolidação do
projecto dinástico das famílias.
A única excepção que encontrei foi o Grupo Mendes Godinho. O facto de
esta família não ter elaborado nenhuma história da empresa deve-se, na minha
opinião, à sua recente situação de falência. Uma vez que a empresa familiar já não
funciona como um elemento agregador dos diversos ramos da família, não faria
sentido celebrar um dos símbolos da sua união. Neste caso concreto, assistimos a
um processo de desmembramento do universo familiar alargado e ao
encerramento das relações familiares ao nível das unidades familiares mais
restritas.
Os percursos através dos quais cada uma das famílias com que trabalhei
elaborou a história das suas empresas são diversos. No caso das famílias Pinto
Basto, D’Orey e Vaz Guedes, foram membros da própria família que elaboraram
as suas histórias e as genealogias que as acompanham, destacando as pessoas e os
factos que consideram mais importantes para a identidade do grupo. No entanto,
há uma distinção de fundo entre a forma como a família Pinto Basto elaborou e
divulgou a história que produziu sobre si própria e a seguida pelas outras famílias.
O mais recente livro sobre a família Pinto Basto é uma obra exaustiva e
rigorosa. Em primeiro lugar, apresenta uma descrição geral sobre a história da
família, desde finais do século XVIII até aos nossos dias, destacando a
intervenção dos seus membros na vida social, económica e política nacionais. Os
acontecimentos mais marcantes são organizados numa cronologia da família que
abarca o período de 1741 a 1995. Em seguida, apresenta uma genealogia muito
completa dos diversos ramos do universo familiar, desde os pais dos fundadores
das empresas (em 1774) até ao presente, contando o percurso pessoal e
profissional da maior parte dos indivíduos. É uma obra em dois volumes,
impressa em tipografia e em papel de boa qualidade, que se destina tanto ao
O ideal de continuidade da família 179
universo familiar como ao público em geral, encontrando-se à venda nas livrarias.
Como me explicou o autor do livro,
As pessoas davam muita importância à ideia de haver um livro de família.
Inclusivamente, pessoas que tinham perdido o apelido há sete gerações sabiam
de cor todas as histórias da família, qual era o ramo deles e tinham o primeiro
livro escrito sobre a história da família. Há realmente entre nós um enorme
culto da família e da sua história. Neste sentido, o livro que compila a história e
as genealogias de todos os ramos da família torna-se um elemento
extraordinariamente importante (CB).
O lançamento deste livro foi feito por altura do segundo centenário da Casa
E. Pinto Basto (1997), numa grande festa organizada na Quinta do Patiño, para a
qual foram convidados todos os membros da família, os amigos mais próximos e
os principais colaboradores das empresas. Esta não era, no entanto, a primeira vez
que a família Pinto Basto se empenhava em elaborar um livro sobre a sua história.
Já em 1957, por altura da celebração dos cento e cinquenta anos da empresa,
tinham editado um livro com a história da empresa e da família que circulou
amplamente entre os seus membros.
No caso da família D’Orey, o livro de família foi elaborado exclusivamente
para consumo interno e foi editado com meios amadores – processamento de
texto feito em computador e fotocópias –, depois da grande festa de celebração da
família, a que me referi anteriormente. Cada família conjugal recebeu um livro e
aqueles que quiseram, e foram muitos, tiraram posteriormente novas fotocópias.
No caso da família Vaz Guedes encontramos uma situação bem diferente.
Uma das filhas do fundador da empresa elaborou a genealogia da família – que
começa na Rainha D. Carlota Joaquina. Não foi elaborada nenhuma história da
família. No entanto, o grupo económico de que a família é proprietária editou um
livro sobre a história das suas empresas para celebrar os cinquenta anos de
existência. Nele se relata, em pormenor, o passado, o presente e o futuro das
empresas. Aliás, o livro intitula-se A Tradição de Construir o Futuro, remetendo o
leitor para a antiguidade destas como uma característica importante para uma
180 O ideal de continuidade da família
correcta e eficaz construção do futuro. Nele descreve-se, com cuidado, o papel
dos diversos membros da família no desenvolvimento da empresa e incluem-se
fotografias daqueles que a fundaram, a desenvolveram e dos que nela trabalham
actualmente. As frases que surgem em destaque corroboram a ideia que se quer
passar para os leitores: “Nasce uma cultura empresarial fortemente familiar,
reflexo da personalidade do fundador” (A Tradição de Construir o Futuro sd: 29). Os
diversos capítulos do livro alternam a descrição do desenvolvimento das empresas
e fotografias das suas obras mais significativas, com a descrição da “Saga da
Família” e com “O Percurso das Três Gerações” ilustrado com várias fotografias dos
elementos da família que estiveram e estão envolvidos neste projecto empresarial.
Quando o meu Pai e nosso Avô meteu mãos à obra e resolveu construir a
SOMAGUE, acreditava piamente que o seu futuro estava comprometido com
o desenvolvimento de Portugal. Saltando de estaleiro em estaleiro, foi
tornando realidade o que a maioria insistia em chamar sonho. Nos sítios onde
o aço e o betão davam corpo à obra, José Vaz Guedes estabeleceu um
relacionamento e uma cumplicidade com cada trabalhador que levou à criação
do que chamamos cultura SOMAGUE. É nestes valores que nos apoiamos
para continuar a construir o futuro. Há três gerações que nos empenhamos,
dia após dia, para prosseguir a obra de meu Pai e nosso Avô. Uma obra
intimamente ligada à história das Obras Públicas em Portugal e de que nos
orgulhamos de geração em geração. (...) Habituámo-nos a construir o futuro
pedra a pedra, com rigor, seriedade e segurança. É esta a nossa herança. E é
acreditando nestes princípios que esperamos passar o testemunho para a
quarta geração. A nossa tradição é construir o futuro (sd: 18).
A reivindicação do prestígio da empresa e dos seus representantes está neste
excerto claramente associada a uma inscrição num percurso, numa história que se
continua do passado para o presente dentro da mesma família, como que
garantindo biologicamente a legitimidade dos seus actuais representantes. Para
além da performance, o passado torna-se um elemento que garante a qualidade.
O ideal de continuidade da família 181
Tal como a família Vaz Guedes, também a família Espírito Santo e a família
Soares dos Santos recorreram a especialistas externos para a elaboração da história
das suas empresas. Para tal, os dois primeiros contrataram conhecidos
historiadores e o último um jornalista. Esta estratégia não se revelou muito eficaz
em nenhum dos casos. No caso da família Espírito Santo, o historiador não foi de
encontro aos objectivos da família: elaborar a história do banco entrecruzada com
a história da família. Consequentemente, foi chamado um antigo colaborador do
banco e velho amigo da família para se encarregar desse projecto, em estreita
colaboração com o responsável pelo Arquivo Histórico do Banco Espírito Santo.84
Este livro ainda não está publicado. Outros livros editados por instituições desta
família relacionam com frequência a qualidade dos seus serviços com o percurso e
a antiguidade da família. Numa publicação publicitária, um administrador
apresenta os serviços do banco da seguinte forma:
Há quatro gerações que os membros da família Espírito Santo seguem a
profissão de banqueiros observando os princípios de qualidade, criatividade e
prudência na gestão dos bens dos nossos clientes, sempre vigilantes na
procura de soluções particulares e feitas à medida dos seus problemas, usando
as taxas e mecanismos legais apropriados para obter o melhor rendimento
para os investimentos dos nossos clientes. Na esperança de passar para os
nossos clientes alguma da experiência que adquirimos ao longo de mais de
cem anos apresentamos alguns dos nossos produtos e serviços.
No caso da família Soares dos Santos, o manuscrito apresentado pelo
jornalista contratado para escrever a história do grupo Jerónimo Martins, para ser
editada no ano em que a casa Jerónimo Martins completava duzentos anos, foi
recusado pelo Conselho de Administração. A versão apresentada era, segundo um
membro da família,
84 A própria constituição deste arquivo histórico, em 1994, promovida por um elemento
da família Espírito Santo, um importante administrador do banco e do Grupo, é reveladora da importância que a família atribui à sua história e à necessidade da sua compilação e transmissão.
182 O ideal de continuidade da família
demasiado romanesca para servir os objectivos de divulgação dos grandes
feitos dos membros da família que desenvolveram a empresa até à sua
situação actual, não dando também conta da grandiosidade e importância
internacional atingida pelas empresas do grupo Jerónimo Martins nos nossos
dias (L).
No entanto, é de notar que esta não era a primeira vez que a Jerónimo Martins
editava um livro com a sua história. Tal já tinha acontecido quando o grupo
completou cento e cinquenta anos de existência, em 1942.
Na maioria destas publicações, o percurso dos fundadores e dos
descendentes que deram continuidade e desenvolvimento aos seus projectos
económicos são apresentados como exemplos de vida e de trabalho: homens de
capacidades notáveis, que inspiram os seus descendentes continuando assim o seu
espírito empreendedor. Estas narrativas mitificadas da história das empresas
salientam o êxito dos empreendimentos destes homens e, a par do valor das suas
iniciativas, exacerbam o espírito de família e a unidade familiar como valores
centrais. Todos os autores destes livros apresentam histórias de empresas
contadas através dos percursos dos membros da família que assumem, ao longo
de linhas de descendentes, o controlo dos destinos empresariais. Estas histórias
relatam o êxito obtido através do trabalho intenso e empenhado e apresentam a
transmissão desses valores – dedicação e trabalho árduo – de geração em geração,
como factor essencial para promover a consolidação de uma certa cultura
empresarial na família e um espírito de dedicação e harmonia na empresa. A ideia
de continuidade e antiguidade destas empresas, inescapavelmente ligadas a
famílias, é evocada através de imagens que nos remetem para o parentesco. Este
último surge como valor associado à noção de continuidade.
Nestes relatos, sobressai o “espírito patriarcal” e uma certa tendência de
organização clânica das empresas a que estão associados. Estas características
transpõem o âmbito exclusivamente familiar, associando às empresas um certo
tradicionalismo que, contradizendo os modelos hegemónicos que imperam no
O ideal de continuidade da família 183
mundo contemporâneo dos negócios, correm o risco de lhes colar a imagem de
uma sobrevivência do passado da história económica das sociedades capitalistas.85
A produção destes livros comemorativos e a organização dos encontros de
família representam processos de produção de identidade familiar que se
desenvolvem, simultaneamente, em diferentes níveis de acção e influência,
resultando em formas, mais ou menos conscientes, de transmissão da memória
familiar. A construção social deste tipo de lendas familiares não serve apenas para
reforçar a imagem pública. Serve também um objectivo unificador no seio da
família. A história construída nos rituais e celebrações familiares, as memórias e os
objectos partilhados, ajudam a construir uma identidade colectiva por detrás dos
interesses materiais e económicos. Sendo produto dessa história, estes itens
mnemónicos são igualmente os seus produtores, na medida em que são eles que
enformam as novas pessoas e as renovadas entidades colectivas que prolongam
no tempo o ímpeto de criação original.
5. A importância de ter o nome de família
Defendi no capítulo anterior que os descendentes são elementos centrais nos
projectos dinásticos destas famílias empresariais, em que a identidade se consolida
na reconstituição do seu passado e na previsão do seu futuro. A importância dos
descendentes é decisiva na garantia da continuidade da família, mas também da
continuidade da empresa. Todavia, não podemos esquecer que, apesar de as novas
gerações serem fundamentais para a continuidade da família, nem todos os seus
membros têm o mesmo valor enquanto potenciais perpetuadores dessa complexa
85 Discutirei este assunto em pormenor no Capítulo VII.
184 O ideal de continuidade da família
organização, pois nem todos podem transmitir às gerações seguintes os símbolos
da unidade e da identidade familiar.
Um dos mais importantes desses símbolos é o nome de família, o apelido.
São vários os autores que têm defendido a importância do nome de família e que
salientam o seu papel decisivo de classificador social, conferindo uma imagem ao
seu portador, um estatuto social, uma posição no seio da hierarquia local (cf.
Zonnabend 1977: 257-8 e 1980: 7 e Severi 1980: 110-1).
Reflectir sobre a forma de transmissão do nome de família permitirá
compreender como ele é um factor significativo de ancoragem dos indivíduos a
um modo de se conceptualizarem a si e à sua família e um poderoso símbolo de
identificação social.
Apesar das relações de parentesco em Portugal serem marcadamente
bilaterais, as famílias tendem a enfatizar os seus laços de identificação social com
um lado da família. Em consequência desta tendência, verifica-se em Portugal a
existência de práticas de transmissão de nomes familiares que favorecem a
continuidade agnática. Esta é resultado da aplicação do ideal de varonia, de uma
predominância simbólica do género masculino. Como resultado desta hegemonia
masculina, defende-se que a continuidade do apelido, da própria família e dos
títulos nobiliárquicos deve ser garantida através dos homens. Idealmente,
nenhuma filha ou genro o poderá fazer. Se a continuidade simbólica da família
depende da transmissão do nome, a sua sobrevivência dependerá, também, da
existência de descendentes masculinos em todas as gerações. Esta questão é
importante, na medida em que revela a eficácia do poder simbólico conferido ao
nome de família no contexto das famílias que estudei e que atribui, assim, um
estatuto totalmente diferente a rapazes e a raparigas no contexto familiar.
As formas de nomeação são, desta forma, um poderoso instrumento de
diferenciação entre homens e mulheres. A eficácia deste mecanismo tornou-se
clara para mim em duas situações particulares da pesquisa. A primeira sucedeu
quando um dos meus entrevistados estava a fazer uma lista, a meu pedido, dos
seus irmãos e irmãs, referindo-se a estas últimas sempre pelo apelido dos seus
maridos, como se elas já não fizessem parte da sua família. O que sobressai da
O ideal de continuidade da família 185
análise desta forma de classificação de irmãos, é uma ideia, bem sedimentada
nestas famílias, segundo a qual as mulheres, quando casadas, são pensadas como
pertencentes a unidades conjugais que irão dar continuidade a outros
patronímicos, a outras identidades familiares.
A importância da linha agnática foi particularmente bem ilustrada durante
uma conversa que tive com uma entrevistada sobre transmissão de nomes. Com o
seu mapa genealógico na mão ela disse:
Vê Maria Antónia, aqui é muito evidente. O sangue passa pelos homens, por
isso é que as casas e os títulos têm que ir para os filhos, mesmo que as filhas
sejam mais velhas (Ma).
Ao construírem a sua identidade familiar com base na persecução de um
ideal de varonia, estas famílias criam importantes linhas de filiação agnática que
não se reduzem à transmissão do patronímico. Há várias linhas agnáticas de
transmissão patrimonial associadas à transmissão do nome de família. Estas linhas
de descendentes, ou melhor de herdeiros por via masculina, constróem-se,
sobretudo, em relação aos bens que simbolizam melhor, que tornam mais visível a
identidade familiar. Um bom exemplo desta situação é o facto de as mulheres não
herdarem, de uma maneira geral, as principais casas de família. Como vimos no
capítulo anterior, estas são importantes símbolos da família, pelo que devem
permanecer nas mãos de quem também detenha os outros, como o apelido e o
brasão, que maioritariamente são passados ao filho varão mais velho.
Me: A casa grande da quinta ficou para o meu irmão mais velho…
APL: Mas, a mais velha era a Senhora. Não deveria ter ficado para si?
Me: Não, não. Claro que não. Quando o pai nos faltou o MR é que ficou o
chefe de família. Claro que a casa era para ele.
Nas famílias com que trabalhei, é através dos homens que se transmite à
geração seguinte os símbolos mais importantes da família de elite – apelido, casas,
títulos, gestão da empresa familiar – que ajudam a estabelecer um sentido de
posição na hierarquia social. A constituição destas linhas agnáticas de transmissão
de símbolos fundamentais à família de elite é referida por vários autores como um
186 O ideal de continuidade da família
elemento característico das narrativas familiares em contextos de elites sociais –
vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Le Witta 1985, Lomnitz e Perez-Lizaur
1987 e Douglass 1992.
Esta forma de transmissão de símbolos de família revela uma clara
influencia dos valores ideológicos aristocráticos, segundo os quais só homens
podem garantir a continuidade da família, através da transmissão do nome de
família ao longo de gerações de herdeiros legítimos. Este processo de transmitir
nomes de família remete-nos também para um modelo de conceptualização da
família, da sua hierarquização interna e dos ideais que orientam a sua
continuidade.
Todavia, apesar de haver em Portugal uma clara tendência agnática na
transmissão dos apelidos, a lei portuguesa é muito pouco restritiva sobre esta
matéria, abrindo caminho a um número diversificado de combinações nos
apelidos portugueses. João de Pina Cabral mostrou que, neste contexto legal
flexível, a escolha do nome de família que as pessoas usam na sua vida quotidiana
não corresponde, necessariamente, a todos os que lhe foram atribuídos pelos pais
quando nascem, dependendo sobretudo do prestígio social atribuído ao apelido
da família do pai ou ao da família da mãe (Pina Cabral 1991: 123-4 e 174-6).86 A
escolha do apelido que se usa revela que se privilegia o lado que adquiriu o maior
prestígio social, a mais alta posição social e a maior fortuna. A forma de
referenciação familiar que os indivíduos decidem utilizar no seu dia-a-dia não é,
portanto, prescrita, mas sim escolhida. E, o que o sentido dessa escolha revela é a
direcção que se quer dar à continuidade desse colectivo familiar.
A flexibilidade que a lei permite na atribuição de apelidos significa que, se os
membros destas grandes famílias empresariais não estivessem interessados em
reproduzir o ideal de “varonia familiar” – um termo central da sucessão
aristocrática –, poderiam perfeitamente transmitir o apelido que quisessem, tanto
através das mulheres como dos homens. No entanto, transmitir o patronímico
86 Esta flexibilidade legal e o consequente uso frequente do apelido da família da mãe
serviram de base para alguns autores classificarem erroneamente o sistema português de transmissão de nomes como sendo matrilinear (cf. Bouquet 1993).
O ideal de continuidade da família 187
através de gerações sucessivas de descendentes masculinos cria, à volta do nome,
uma mística de antiguidade familiar que é muito valorizada. Vale a pena lembrar,
de novo, a maneira como Alexandre Herculano colocava a questão:
O influxo moral de um nome ilustre, herdado dos antepassados, é também
uma força social. Este influxo constitui a nobreza, a qual, não sendo um facto
indestrutível é, todavia, uma realidade. A democracia que o condemna, ou nega,
engana-se (cit. in Mello Breyner 1934).
Os casos em que o apelido perdura no tempo e, associado a ele, um
conjunto de sentimentos de identificação simbólica dos membros da família
mostram, também, que esta se manteve unida ao longo desse tempo. Quando os
apelidos de outrora continuam a ser símbolos de identificação importantes no
presente e aqueles que os usam levam a cabo esforços conscientes para que
continuem a ser elementos de união para as gerações seguintes, o passar do
tempo, a antiguidade torna-se, em si mesma, um elemento prestigiante e
legitimador do seu estatuto social.87
A importância destes apelidos com história na identificação social e na
legitimação do estatuto dos indivíduos está bem patente nalguns casos concretos.
O caso da senhora Ma é disto um bom exemplo. Ao contrário dos seus irmãos,
Ma tinha apenas o apelido do pai. Curiosamente, ninguém parece saber porque é
que tal tinha ocorrido. No entanto, e apesar disso, toda a sua vida usou o apelido
da família da mãe, uma família com longas tradições na vida financeira de Lisboa.
Aos trinta e oito anos, Ma iniciou um processo formal na Conservatória do
Registo Civil para inclusão no nome do apelido da família da mãe. Passados seis
87 A importância do nome para a aristocracia é bem revelada pelo discurso do actual
Marquês de Fronteira e Alorna ao seu sucessor. “O mais importante é saber que somos homens exactamente iguais aos outros e que nada temos a mais, a não ser um nome sonante e uma tradição. (...) O nosso nome apenas permite que saibamos quem foram os nossos avôs e avós. O nome que uns tiveram capacidade de ganhar pelos seus feitos, pelo serviço à Pátria e ao Rei, e que outros tiveram a capacidade de conservar pela sua sabedoria e pelo seu continuado serviço à comunidade. Isto quer dizer que o respeito e a consideração que muitas vezes o nosso nome ajuda a alcançar (...) é paga ao longo da nossa vida e geração após geração. É justo que assim seja” (Mascarenhas 1994: 17, 19-20).
188 O ideal de continuidade da família
meses o pedido foi deferido. Ma passou então a poder exibir o símbolo da sua
família no seu Bilhete de Identidade.
As grandes famílias empresariais privilegiam, idealmente, a construção de
linhas de continuidade agnática no uso do patronímico. Porém, nem todas as
pessoas usam o apelido de família do pai, o que mostra que não estamos perante
um sistema fechado de sucessão agnática dos nomes de família. De facto,
encontramos, com frequência, situações em que tal não acontece, sendo o apelido
transmitido através das mulheres. Estes casos, em que se aproveita a flexibilidade
legal para conseguir pôr em prática formas de recurso que permitam a reprodução
das identidades familiares, têm um objectivo concreto: passar o apelido através
das gerações dando uma imagem patriarcal da família.88
O idioma do apelido, neste caso do patronímico é, desta forma, um
instrumento elástico de manipulação de símbolos de identificação social. É
importante assegurar que os homens das gerações futuras possam usar o apelido
pelo qual ficou conhecida a família e a empresa. Então, através de uma gestão
cuidada dos processos de transmissão de nomes, as famílias portuguesas
conseguem transmitir os seus apelidos aos seus filhos, mesmo que o façam através
de uma linha feminina.
Tal não significa, todavia, que estejamos perante dois sistemas de
transmissão de nomes que funcionam lado a lado. Pelo contrário, estamos perante
um mesmo sistema que privilegia a transmissão agnática dos nomes de família,
mas que pode ser levado a cabo de duas maneiras que, apesar de distintas, são
complementares:
a) o apelido passa de pai para filho – a forma processual mais forte e mais
prestigiante;
88 Um tipo de estratégia negativa semelhante pode encontrar-se nas comunidades
piscatórias que desenvolvem sistemas de relações matrifocais como forma de resolver contradições nas suas duras condições de existência (vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Saly Cole 1994 e de Pina Cabral 1989).
O ideal de continuidade da família 189
b) o apelido passa de avô para neto varão uterino – esta forma, sendo
menos segura e menos prestigiante, é muito útil, enquanto recurso nas
situações em que não há filhos varões que assegurem a continuidade da
identidade da família, simbolizada através do seu nome. Mesmo da
perspectiva de quem recebe o nome, esta forma de recurso apresenta-se
também como uma vantagem. Em virtude de ainda terem o nome de
família, os descendentes uterinos, apesar de estarem em desvantagem,
podem ainda ser considerados sucessores potenciais.
Ambas as formas de passagem dos apelidos ao longo das gerações familiares
são apenas variantes do mesmo princípio, a saber: um esforço de transmissão
identitária marcada pela hegemonia masculina que caracteriza este grupo social. A
primeira é sinónimo de uma forma de sucessão agnática directa. A segunda é uma
forma de transmissão agnática mediada dos nomes de família (avô neto) que,
apesar de utilizada como recurso, se pode tornar muito útil.
O recurso a esta forma alternativa de manipulação do sistema não o põe em
causa. Pelo contrário, revela de novo que a continuidade da identidade familiar é
marcada pelos ideais de hegemonia masculina. Se não fosse assim, o neto
receberia simplesmente o apelido do pai e tal não constituiria qualquer problema.
O facto de o patronímico poder ser transmitido por via uterina confirma e reforça
a hegemonia masculina, mediando-a. Simbolicamente, é mais prestigiante se o
nome de família passar através dos membros masculinos da família mas, quando
não existem filhos varões, também se pode passar o apelido à geração seguinte
através das mulheres que, posteriormente, o passarão aos seus filhos varões. Não
sendo a forma mais prestigiante de transmitir os nomes de família, passar o
apelido para os netos varões uterinos permite, no entanto, manter o essencial do
ideal que confere importância simbólica à hegemonia masculina.
No caso das grandes empresas familiares estudadas por Adriana Piscitelli no
Brasil, encontramos um interessante exemplo de transmissão do patronímico por
via feminina. Num momento da história da família em que não havia um sucessor
masculino adequado para assumir a presidência da empresa, é a filha do segundo
presidente do “Império Matarazzo” quem assume a liderança. Esta alteração no
190 O ideal de continuidade da família
ideal de transmissão da presidência do grupo económico por via masculina
promove, simultaneamente, a necessidade de estabelecer explicitamente, em
testamento, que esta filha poderia transmitir o nome de família, “um dos símbolos
mais poderosos da consanguinidade”, segundo a autora (1999: 171). Desta forma,
a herdeira torna-se a sucessora empresarial da família, mas torna-se também a
transmissora da substância familiar, reificada no nome de família que no futuro
transmitirá aos seus filhos varões.
No contexto das grandes famílias empresariais que estudei, a importância do
patronímico não se circunscreve apenas ao âmbito da acção pessoal, familiar e
social dos indivíduos que o usam. A sua importância estende-se, também, à acção
empresarial onde, na maior parte dos casos, o nome da empresa é o nome de
família do fundador: Grupo Espírito Santo, Orey Antunes, Casa Pinto Basto,
Fábricas Mendes Godinho. A identificação entre o apelido dos dirigentes e o
nome da empresa exprime, de novo, uma ideia que defendi no capítulo anterior: a
diferenciação entre empresa e família está longe de ser total.
A sobreposição recorrente entre o nome de família e o nome da empresa
reforça a partilha identitária entre uma e outra, de tal forma que o valor e o
prestígio do nome de família é, frequentemente, a dimensão mais duradoura
destas formações família/empresa.89 Analisemos de novo alguns exemplos.
No início dos anos noventa, a Somague desenvolveu um importante processo
de restruturação. Nessa altura as actividades do grupo expandiram-se e
diversificaram-se grandemente, sendo criada uma holding para melhor gerir as
participações do grupo nos diversos sectores de actividade em que estava
envolvido. De forma a poder assumir o papel de gestor estratégico do Grupo, o
presidente da empresa aproveitou este projecto de reorganização para delegar a
parte executiva da gestão. Com este objectivo, foram admitidos profissionais
89 A comunidade onde se insere a família empresarial pode atribuir um prestígio e um
poder ao nome de família muito mais elevado do que esta tem realmente. O nome de família, cuja utilização e transmissão os descendentes podem negociar de diversas formas, é um recurso muito adaptável e manipulável da família empresarial, pois ele sustenta a sua imagem pública e revivaliza-se nos sucessos posteriores dos descendentes da família. Sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Marcus 1992, Mension-Rigau 1994 e Pina Cabral 1995.
O ideal de continuidade da família 191
exteriores à família. Esperava-se que a competência profissional destes gestores
fosse uma base sólida para a nova fase de expansão do grupo em novos terrenos
de investimentos. No entanto, a experiência não resultou, pois, e de acordo com
vários elementos da família, esses profissionais exteriores à família não se
conseguiram impor como líderes legítimos à frente dos destinos da empresa.
O facto de esses excelentes profissionais não serem da família fez com que os
quadros superiores da empresa nunca aceitassem totalmente a sua autoridade,
não lhes conferindo legitimidade para comandar. Tornou-se muito óbvio para
mim que era preciso pôr alguém da família nesses lugares, alguém que tivesse o
nome da família (Jg).
A importância de assegurar que as pessoas nos lugares de chefia das
empresas familiares possuem o nome da família – o apelido do fundador da
empresa – é também muito evidente no caso dos processos de sucessão do Grupo
Espírito Santo. Os três filhos varões do fundador sucederam-lhe, por ordem de
nascimento, na presidência do banco. Mas, quando morreu o último, não era
muito claro quem lhe devia suceder. O filho mais velho do primogénito do
fundador JM era então vice-presidente do banco, facto que o tornava o mais
provável sucessor à presidência. No entanto, JM não tinha o apoio dos outros
ramos da família, que tinham outras preferências para a presidência. Nessa altura,
a pessoa mais antiga do grupo, o único representante da terceira geração, era CR,
marido da filha do quarto filho do fundador. No entanto, CR não tinha o nome
de família pelo que não devia ascender ao cargo de presidente:
Sabe, as pessoas confiam no nosso banco, na nossa família. Pôr alguém de fora
da família na posição de liderança do grupo, mesmo um sócio tão antigo e
importante como CR, separaria a imagem do banco da confiança depositada na
nossa família. Isso trairia a confiança dos nossos clientes (JM).
Por este motivo, foi escolhido MR, o filho mais velho do presidente
cessante – que era o mais novo dos filhos varões do fundador. MR conjugava,
simultaneamente, as condições profissionais, o perfil, o prestígio, a qualidade do
192 O ideal de continuidade da família
seu desempenho e o nome de família. Segundo afirmam vários elementos da
família, tinha sido treinado pelo seu pai para assumir a presidência do banco.
Nesta situação sucessória em que era preciso escolher entre dois homens
que, de um ponto de vista estritamente profissional, estavam igualmente
habilitados para o lugar, o facto de um deles não trazer consigo o símbolo do
grupo familiar constituiu um importante factor de diferenciação. CR não podia
ser um líder em todas as dimensões da palavra. Apesar de ter dedicado toda a sua
vida profissional ao Grupo, tendo mesmo trocado a sua carreira militar pelas
empresas do seu sogro, faltava a CR a marca da família: o apelido. Esta situação
sucessória mostra também que, entre dois profissionais competentes, a pertença
ao grupo familiar – atestada pela partilha da substância que une os membros da
família (o sangue) e pelo símbolo que os identifica como grupo (o apelido) – é um
critério mais importante do que a senioridade nas empresas.
Para poder vir a aceder à presidência da empresa, neste contexto
empresarial, não é suficiente ser um bom profissional. Ser portador do símbolo da
empresa – do patronímico da família – é um trunfo importante, dada a
importância simbólica atribuída ao facto de os lugares de comando serem
ocupados por membros da família. Como me disse J numa entrevista “o pé do
dono é o adubo da terra”, chamando a atenção para o facto de os donos, mais do
que qualquer outra pessoa, terem o empenho e o amor à causa que são a base do
trabalho árduo e da dedicação necessários para garantir o sucesso destes grandes
impérios económicos. Porém, apesar de o nome de família ser um trunfo
importante para aceder aos lugares de topo destas empresas, detê-lo não é
condição necessária nem suficiente para os atingir. O apelido faz parte de uma
gama de trunfos importantes de entre os quais não podemos esquecer a
competência profissional, a dedicação ao trabalho, o respeito e o prestígio que
cada indivíduo consegue adquirir na sua vida profissional e familiar.
A análise destas situações de sucessão na liderança de duas grandes
empresas familiares lisboetas, demonstra a importância do apelido como símbolo
de integração dos indivíduos num grupo de pessoas que partilham uma identidade
familiar, através de linhas de descendentes. Neste contexto social, o apelido cria,
O ideal de continuidade da família 193
naqueles que o usam, uma certa disponibilidade no acesso a determinados lugares
de importância social ou empresarial. A possibilidade de tal acontecer é, em si
mesma, resultado do poder simbólico e social do patronímico. Esta capacidade de
o nome de família abrir um campo de possibilidades àqueles que o usam, é
resultado do facto de este grupo social apoiar e legitimar o seu poder na família de
pertença dos indivíduos – portadora de um passado prestigiado que se quer
continuar ao longo de gerações futuras. A importância do nome de família como
símbolo de prestígio social, reside no facto de nele se condensarem várias formas
de capital acumulado pela família ao longo de gerações. Enquanto símbolo de um
conjunto de pessoas que partilham um objectivo, o apelido identifica e revela o
que dá prestígio à família, pois traz consigo um capital simbólico que é um
elemento importante para estabelecer a excelência social de uma pessoa.
6. Os nomes próprios como património familiar
Não é exclusivamente a nível da atribuição dos apelidos, como marcas públicas de
identificação da família, que a transmissão dos nomes se revelou um importante
factor de construção e continuidade da identidade familiar.
O meu irmão Francisco tem a mania que é desligado dessas coisas e quebrou
uma das tradições mais bonitas da família do lado do meu pai. Desde sempre
que os Condes de M eram "Thomazes" e “Franciscos”. Uma vez um e depois
o outro. Agora ele acabou com isso. Foi chamar ao filho Miguel e ao outro
Frederico. A minha mãe está desolada e o meu pai, se estivesse vivo
“passava-se" (…) e eu também não acho nada bem. (Ma)
A reacção da família à opção de Francisco percebe-se melhor se tivermos
em conta que, há nove gerações consecutivas, se mantinha esta forma de atribuir
194 O ideal de continuidade da família
nomes próprios aos primogénitos varões. Quebrar esta tradição familiar significou
também quebrar a visibilidade das linhas de inscrição de continuidade de uma
substância familiar, simbolizada na repetição alternada geracionalmente, dos
mesmos nomes próprios.
Os nomes próprios atribuídos às crianças reforçam também as formas de
identificação familiar através da escolha repetida dos nomes dos antepassados que
mais marcaram a história da família. A análise das genealogias destas famílias
mostra que tal prática é extraordinariamente frequente. Idealmente, espera-se que
os filhos mais velhos sigam as pisadas do pai. Por isso, os primogénitos são, com
frequência, baptizados com o nome próprio do pai, tornando assim mais visível a
continuidade das gerações sucessivas de membros de uma mesma família,
prosseguindo um mesmo projecto identitário. Não é raro, portanto, encontrarmos
um homem que partilha o nome de seu pai, do seu avô e do seu bisavô.
Quadro 8
Transmissão de nomes masculinos ao longo de cinco gerações de homens
José Maria
José
José Maria
José
(este não tem relação profissional com o Grupo e quebra a tradição)
Marco
O ideal de continuidade da família 195
Quadro 9
Transmissão de nomes masculinos ao longo de quatro gerações mistas
Ricardo
(Não teve filhos pelo que a mais velha recebeu o nome da mãe)
Mary
Ricardo
Ricardo
Este último caso, mostra-nos que, tal como vimos acontecer com a
transmissão dos apelidos, também a transmissão dos nomes próprios pode ser
feita de uma forma mediada por gerações onde só existem descendentes
femininos. De novo, a utilização desta estratégia negativa mostra que o
importante é assegurar a manutenção visível da continuidade das linhas
masculinas. Esse é o objectivo a atingir, nem que seja através de um processo
menos “ideal” que inclua, no meio das linhas masculinas, mulheres que serão
intermediárias dessa transmissão.
A transmissão dos nomes próprios cria laços de identificação colectiva que
podem ser expressos de várias maneiras. Para além das que já mostrei, encontrei
também situações em que um casal dá aos seus filhos os nomes de vários parentes
próximos, que podem incluir os do pai, avós, tios ou irmãos.
196 O ideal de continuidade da família
Quadro 10
Continuidade dos laços de identificação através da transmissão
de nomes masculinos de familiares próximos
Manuel
Manuel Ricardo
(nome do pai e do irmão)
Manuel Fernando e Fernando Manuel
(nome dos avós materno e paterno, ambos poderosos accionistas no grupo económico familiar)
Entre os D'Orey, por exemplo, esta prática é recorrente. Os nomes dos
irmãos que fundaram a grande família, tal como ela é concebida actualmente, e
que constituíram as empresas a que os D'Orey estão ligados desde há três
gerações – aqueles a quem carinhosamente chamam os “D'Oreys velhos” –, são
dados sistematicamente aos filhos e aos netos. Assim, temos uma sistemática
repetição dos nomes Rui, Guilherme, Waldemar, Luís, Frederico, José Diogo,
Maria Luísa, tanto na mesma como ao longo das várias gerações, criando, por
vezes, dificuldades na distinção entre indivíduos particulares que são superadas
por uma abundante e sistemática utilização de diminutivos.
O ideal de continuidade da família 197
Quadro 11
Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos
José Diogo
Luís = Ana
Guilherme = Mª Luiza
Mª Luiza Rui Frederico Guilherme Luis Ana Luiza Waldemar Guilherme José Diogo
Rui Frederico Guilherme José Diogo Luís Luiza José Diogo
Waldemar Luís Guilherme Luís José Diogo Mª Luiza Guilherme José Diogo Guilherme
A transmissão dos nomes próprios permite recuperar a bilateralidade
característica dos sistemas de parentesco europeus e atenuar a acentuação
patrilinear promovida pelo nome de família que identifica o indivíduo apenas com
uma linha familiar. Através dos nomes próprios, criam-se linhas de continuidade
simbólica para os quatro grupos familiares de que descendem os indivíduos.
Quadro 12
Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos
Vera Mary Rita = José Maria
Mary = Ricardo
Mary Vera Rita Ana Maria
Ricardo Mary Rita Ana Ricardo Vera José Maria
Ricardo Maria
198 O ideal de continuidade da família
Os complexos e variados processos de transmissão de nomes próprios às
novas gerações de descendentes, criam também linhas de identificação femininas,
algo que, devido ao ideal da varonia, é evitado no âmbito dos processos de
transmissão dos apelidos. Efectivamente, é possível verificar nestas famílias uma
notável regularidade na transmissão dos nomes femininos.
Quadro 13
Nomes próprios masculinos transmitidos por famílias
Total de nomes
masculinos atribuídos a
descendentes
Número de indivíduos que têm o mesmo nome que
outros parentes
%
Família Espírito Santo
64
26
40
Família D’Orey
52
42
80,8
Família Vaz Guedes
27
14
51,9
Família Pinto Basto
719
322
44,8
Família Santos
26
11
42,3
Família Mendes Godinho
42
21
50
Família Queiroz Pereira
14
9
64,3
O ideal de continuidade da família 199
Quadro 14
Nomes próprios femininos transmitidos por famílias
Total de nomes
femininos atribuídos a
descendentes
Número de indivíduos que têm o mesmo nome que
outros parentes
%
Família Espírito Santo
88
28
31,8
Família D’Orey
77
37
48
Família Vaz Guedes
25
6
4
Família Pinto Basto
760
210
27,6
Família Santos
38
9
23,4
Família Mendes Godinho
35
10
28,6
Família Queiroz Pereira
12
4
33,3
Quadro 15
Total de nomes próprios transmitidos por famílias
Total de nomes próprios atribuídos
a descendentes
Total de nomes
próprios repetidos
%
Total
Família Espírito Santo
152
54
58,6
Família D’Orey
129
79
61,2
Família Vaz Guedes
52
20
38,5
Família Pinto Basto
1479
532
36
Família Santos
64
20
31,3
Família Mendes Godinho
52
31
59,6
Família Queiroz Pereira
26
13
50
200 O ideal de continuidade da família
Os dados estatísticos mostram que, independentemente do género dos
transmissores e receptores, há, ao longo das gerações, uma regularidade de
transmissão dos nomes dos antepassados mais queridos. Pelo valor simbólico e
afectivo que se lhes atribui, estes nomes constituem uma parte importante do
património familiar. Tal como no processo de transmissão do apelido, o
importante é assegurar que as gerações seguintes dão continuidade a um dos mais
importantes símbolos do grupo familiar – mesmo que seja através de formas de
recurso. Também no caso das transmissões dos nomes próprios se verifica uma
flexibilidade formal na persecução do objectivo de dar continuidade aos nomes
dos antepassados cuja lembrança se quer perpetuar.
No entanto, o investimento simbólico que os indivíduos dizem depositar na
transmissão dos nomes próprios de antepassados difere conforme se transmitirem
nomes de homens ou de mulheres.
Eu dei o nome da minha mãe à minha filha. Foi uma espécie de homenagem à
mãe. Eu gostava muito dela e toda a gente tinha imenso respeito [por ela]. Era
uma lutadora e uma excelente chefe de família. Quis homenageá-la e mostrar-
lhe a minha admiração. Os meus filhos têm o nome do meu pai, dos meus tios
e do avô. É a tradição da família. Os meus primos e sobrinhos também têm
todos esses nomes, todos fazemos o mesmo para tentar continuar os mais
velhos, que foram tão importantes (…) (IR).
Como mostra o depoimento de IR, atribuir o nome da mãe às filhas é
considerado uma homenagem. Atribuir o nome do pai, ou do avô ou dos tios, aos
filhos é continuar o espírito da família, é fazer perpetuar, simbolicamente, os
antepassados que desempenharam um papel importante na formação da unidade
família/empresa. Veja-se também, por exemplo, a afirmação de Ma que atrás
referi, sobre o desagrado sentido colectivamente pelo facto de o seu irmão,
detentor do titulo nobiliárquico da família do pai, não ter seguido a tradição
familiar respeitante à atribuição de nomes próprios aos seus filhos, futuros
portadores desse título.
O ideal de continuidade da família 201
As diferenças no significado simbólico atribuído na transmissão de nomes
femininos e masculinos deve-se, de novo, à centralidade simbólica atribuída aos
homens na continuidade da unidade familiar e da sua identidade.
A análise estatística das práticas nominativas (ver Quadros 13 e 14) mostra
que apesar de tanto os nomes próprios masculinos e femininos da família se
repetirem sistematicamente ao longo das gerações há uma maior frequência para a
transmissão de nomes masculinos em todas as famílias.
Os exemplos retirados da literatura antropológica clássica podem, de novo,
ser de grande utilidade comparativa para a discussão deste argumento. Em The
Critique of the Study of Kinship, David Schneider descreve a forma como, entre os
Yap, a legitimidade da pertença dos indivíduos ao grupo social não decorre do seu
nascimento no seio de uma determinada linhagem, mas sim do facto de os seus
pais lhe atribuírem um nome escolhido de entre o conjunto limitado de nomes
que são propriedade do Tabinau – comunidade – a que pertencem. Mas, para que
os pais o possam fazer, tiveram eles próprios de provar a legitimidade da sua
pertença ao tabinau; que a sua conduta social esteve de acordo com os valores
hegemónicos de respeito e obediência aos mais velhos e que o seu trabalho nas
terras da comunidade foi árduo e empenhado (Schneider 1985: 21-3). Se, por
acaso, os pais atribuíssem ao filho um nome que fosse propriedade de outro
tabinau, estariam a conferir-lhe direitos de pertença a essa outra comunidade.
No caso dos Yap, só os indivíduos que estão integrados no grupo e,
portanto, interessados na sua perpetuação podem, querem reproduzir o
património onomástico que o grupo detém colectivamente. No caso das famílias
empresariais portuguesas, o interesse em reproduzir o património simbólico,
social e material que detêm colectivamente decorre do facto de a manutenção da
identidade social dos seus membros assentar em grande parte na continuidade
desse património familiar, pois é ele que torna reconhecíveis os elementos da
família ao longo de várias gerações. Se nem todos retiram do património familiar
os nomes que escolhem atribuir aos seus filhos, é porque nem todos estão
igualmente interessados em investir na continuidade do projecto familiar
colectivo. Aliás, é interessante notar que aqueles que cortaram mais radicalmente
202 O ideal de continuidade da família
com a tradição de repetir os nomes próprios dos seus antepassados foram aqueles
que já não têm uma participação activa nas empresas da família, como são os
casos, acima referidos, do irmão de Ma e do filho de JM.
Os nomes dos homens e mulheres da família cuja memória se quer
perpetuar são, como mostram os quadros anteriores e os mapas genealógicos (ver
anexos) transmitidos para a geração seguinte, seja por via masculina, seja por via
feminina. Isto é, tanto verificamos a regularidade da transmissão:
a) dos nomes masculinos
– através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e avôs
(maternos e paternos) filhos filhos
– como através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e
avós (maternos e paternos) filha filho.
b) dos nomes femininos
– através da fórmula: nome da mãe, tias (maternas e paternas) e avós
(maternas e paternas) filhos filhos
– como através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e
avós (paternos e paternos) filha filho.
O conjunto dos nomes próprios que se transmitem e repetem de geração
em geração faz parte de um património familiar comum, ao qual pertence também
o apelido da família. Quem partilha os símbolos desse património partilha
também algo de maior, algo de envolvente e unificador: o espírito da família. O
grupo de descendentes de um antepassado comum não partilha apenas uma certa
forma de consubstancialidade, que lhes é transmitida através do “sangue”.
Partilham também um património familiar onde se enraíza e alimenta o seu
projecto identitário.
O património familiar é, assim, constituído por elementos de natureza
diversa. São elementos que muitas vezes não têm força em si mesmos, mas cuja
importância resulta da acumulação com outros factores. São elementos
simbólicos, ou materiais, valiosos – tanto em termos económicos como em
termos de valor sentimental. De entre o conjunto de elementos, o nome de
O ideal de continuidade da família 203
família e um conjunto restrito de nomes próprios são aqueles que adquirem
particular visibilidade.
O conjunto de nomes próprios que fazem parte do património de cada
família remete-nos, também, para um passado familiar mitificado. Repetir os
mesmos nomes próprios, de geração em geração, contraria a individualidade e
inscreve os indivíduos no grupo, o que normalmente é marcado, precisamente,
pela atribuição de um nome próprio (Zonnabend 1977: 257). No entanto, e apesar
da transmissão de nomes próprios e de apelidos ser semelhante nalguns aspectos,
os primeiros revelam a pertença do indivíduo ao grupo de uma forma diferente da
que é promovida pelos últimos. Os nomes próprios inscrevem os indivíduos no
passado familiar de uma forma personalizada, pois a sua atribuição repetida segue
um ideal que procura reproduzir nas gerações seguintes o papel do antepassado
que detinha o mesmo nome. Como afirma Zonnabend:
dar a uma criança o nome próprio de um parente não é apenas um acto de
piedade filial, é predestinar a criança a perpetuar o seu antepassado homónimo
e, através disso, proteger uma linhagem (Zonnabend 1980: 13).
O objectivo da atribuição de um nome próprio é, portanto, perpetuar a
importância – afectiva e/ou social – que se atribui aos antepassados que marcam
de uma forma particular a memória familiar dos indivíduos. Ao repetirem-se ao
longo das gerações, os nomes próprios dos membros da família ancoram a
identidade de um indivíduo no seu passado familiar e marcam a sua pertença a um
grupo. A sistematicidade na transmissão dos nomes próprios revela, de novo, a
importância que o passado familiar tem na vida destes indivíduos. A verdadeira
importância da repetição dos nomes próprios está, portanto, no interesse em
repetir os símbolos da identidade familiar, através da repetição dos elementos que
melhor a mostraram, que melhor a desenvolveram e que mais investiram na sua
continuidade. O valor não está no nome, mas no interesse que se investe na
pessoa que o usa.
É interessante notar que, nas famílias menos dinásticas com que trabalhei,
esta preocupação de transmitir os nomes próprios e o nome de família não é tão
visível, na medida em que não existe uma identidade familiar alargada forte que
204 O ideal de continuidade da família
queiram continuar. Este é o caso tanto da família Santos, proprietários da Jerónimo
Martins, como da família Mendes Godinho. Tanto num caso como noutro
verificamos uma transmissão dos apelidos vulgar na sociedade portuguesa – nome
próprio + apelido da mãe + apelido do pai –, sem manipulações e com uma
atribuição de nomes próprios decorrente do gosto dos pais e não claramente
enraizada num património familiar de nomes próprios.
A diferença entre as práticas nominativas das famílias com um maior
sentido dinástico e das famílias que não têm esse desejo tão acentuado confirma o
argumento que tenho vindo a desenvolver. Sem ter por base uma “lenda familiar”,
a transmissão do nome não poderia assumir a importância simbólica que
encontramos nestas famílias. É por isto que as famílias pouco dinásticas não
investem tanto nos símbolos da sua identidade colectiva. Consequentemente,
aqueles que nestas famílias poderiam ser potenciais símbolos identitários também
não adquirem um significado colectivo muito forte.
Através das transmissões dos nomes que fazem parte do seu património –
nomes próprios e patronímico –, a família leva a cabo um duplo processo de
subordinação da individualidade a formas de identificação colectivas e de
atribuição de vantagens simbólicas em compensação. Nomes e apelidos são
passados ao longo das gerações como partes de património familiar. São bens
simbólicos de grande importância, pois relembram e legitimam a pertença à
grande família. A importância do passado como elemento legitimador do prestígio
da grande família faz com que, através da repetição de nomes próprios e apelidos,
se construa uma imagem de continuidade, em que aqueles que partilham os
mesmos nomes são vistos como os perpetuadores do projecto identitário familiar.
Em suma, as práticas de transmissão de nomes próprios revelam que, desde
a nascença, as crianças são integradas na família de uma forma socialmente
produzida: ao receber o nome a criança está também a receber um símbolo da sua
identificação social. Este processo mostra o empenho com que, no contexto
destas famílias, se produzem “pessoas familiares”, isto é, pessoas cuja
identificação social se encontra claramente inscrita numa unidade familiar, numa
O ideal de continuidade da família 205
unidade de identificação, que são supostas continuar. Não nos devemos, portanto,
surpreender quando verificamos os inequívocos traços de continuidades dentro
de uma unidade familiar mais ou menos extensa. Eles foram cuidadosamente
produzidos pelas gerações controlante e declinante. E o facto de as gerações
ascendentes crescerem nesse ambiente marcadamente familiar, ouvirem as
“lendas” que ilustram a memória da sua família, viverem as constantes ajudas,
trocas e festas que unem recorrentemente os seus membros, ajuda a perceber
porque é que se pensam a si próprios como pessoas familiares, como
continuadores no presente e no futuro desses laços de identificação passados.
CAPÍTULO V
CASAMENTO E DESCENDENTES
1. Casamento: aliança entre indivíduos e
relações entre famílias
Nos capítulos anteriores, mostrei que a intensidade das relações sociais que unem
os membros destas famílias empresariais resulta, em grande medida, do facto de
partilharem os mesmos projectos de vida, valores e concepções do mundo.
Mostrei, também, que a rede de solidariedades primárias que liga estas pessoas
numa comunidade de práticas se reafirma, quotidianamente, nas relações de
sociabilidade, de trabalho e em momentos rituais.
Há, porém, uma outra dimensão em que estas redes de solidariedes
primárias se revelam importantes na estruturação das relações sociais futuras dos
indivíduos. Refiro-me à frequência com que se verificam alianças matrimoniais
entre membros desta comunidade.
Eu já conhecia o meu sogro há muito tempo, desde pequeno, pois as nossas
famílias estavam sempre juntas em Cascais, onde passavam os quatro meses do
Verão. Para além da amizade que unia as nossas famílias, eu costumava jogar
ténis com o meu sogro, mesmo antes de sequer pensar que casaria com a filha
dele (CR).
O F era filho do maior amigo do avô. Naqueles meses em que vínhamos viver
para Cascais as nossas famílias estavam sempre juntas. Ele estava sempre em
casa de R, porque era uma casa muito animada. Era lá que nos reuníamos
todos. Ele chegou a namorar a Ms. Ao fim de pouco tempo o namoro acabou,
mas ele acabou por ficar na família. Casou com Me (MaJ).
Como bem exemplificam os casos de CR e de F, as alianças matrimoniais
estabelecem-se, preferencialmente, entre o grupo de pessoas com quem se
mantém relações próximas de intersubjectividade, com quem se partilha uma
comunidade de práticas, um modo de vida. A realização de casamentos com
210 Casamentos e descendentes
pessoas próximas tem sido referido por diversos antropólogos e historiadores
como uma característica do contexto europeu (cf. Pitt-Rivers 1973, Goody 1973 e
1976, Davis 1972, Heritier 1981, Zonnabend 1981, Pina Cabral 1991 e Bestard
1998). Jack Goody defende mesmo que os casamentos entre indivíduos de
riquezas e estatutos semelhantes – que designa por in marriage – constituem um
pré-requisito fundamental para a continuidade dos grupos sociais (Goody 1976:
11).
Clarifiquemos esta ideia através de alguns exemplos empíricos.
A tendência para o estabelecimento de alianças matrimoniais dentro do
universo da grande família é, claramente, identificável na família Pinto Basto e,
muitos dos seus elementos, definem-na como uma característica do seu universo
familiar.
Há muitos casamentos entre primos, de tal forma que na terceira geração há
pessoas que são quatro vezes Pinto Basto. Ainda hoje se consideram parentes
pessoas muito afastadas: desde que tenham o tetravô em comum, tudo bem.
Há um grande culto dos antepassados e acho que é isso que explica esta nossa
atitude: convidamo-nos para tudo e, assim, continuamos a ser uma grande
família (MT).
Os frequentes in marriages têm como principal consequência a constituição
de uma dupla base de relacionamento entre diferentes ramos da família. Através
da adição de relações de afinidade às relações de parentesco consanguíneo que os
uniam anteriormente, estes casamentos recriam novas formas de identificação e
aproximação. O passado familiar partilhado em comum e que forma um conjunto
de referências importantes à constituição da identidade social destes indivíduos,
reforça-se com a produção da dupla consubstancialidade que estas alianças
originam. As redes de intersubjectividade partilhadas no passado ganham nova
força no seu projecto de futuro.
Casamentos e descendentes 211
Este tipo de alianças é também reencontrável na família D’Orey. Foram
vários os membros desta família que me disseram, com grande ênfase, “nós
casamos todos entre primos”. Apesar do óbvio exagero em que cai a
generalização, existe efectivamente uma grande frequência de casamentos entre
primos dentro desta família (ver mapa genealógico nº 3). O enorme orgulho de
ser D’Orey, é expresso nestas alianças matrimoniais dentro da família. Casar com
um primo é, neste âmbito, casar com alguém que é simbólica, social e
relacionalmente muito próximo, alguém que estará também empenhado em dar
continuidade aos símbolos identitários da família.
Na família Espírito Santo verificamos, também, dois casos de duas irmãs
que casam com dois irmãos, o que revela a proximidade relacional entre as duas
famílias envolvidas, factor que está também presente nos casamentos
estabelecidos entre primos (ver quadro 16).
No caso da família Espírito Santo, um destes casamentos entre primos é
particularmente interessante pelas consequências significativas que tem nos
destinos do grupo económico. A neta do primeiro casamento de José Maria
Espírito Santo e Silva, filha única e herdeira universal da irmã do seu pai –
considerada na altura do seu casamento uma das maiores fortunas individuais
portuguesas (cf. Fonseca 1991) –,une-se em matrimónio com o filho mais velho
do benjamim de José Maria Espírito Santo e Silva, sucessor na presidência do
banco e que, sendo o filho varão mais velho, era o principal herdeiro de seu pai
(ver quadro 4). Através deste casamento unem-se as duas maiores participações
individuais do grupo. Este facto terá importantes consequências na forma como
se vieram, posteriormente, a organizar as estratégias de sucessão dentro da grande
família, pois esta aliança promoveu uma concentração accionista que conferiu a
este ramo da família uma posição muito especial dentro do Grupo.
212 Casamentos e descendentes
Quadro 16: Casamentos importantes para a família Espírito Santo
Casamentos e descendentes 213
Através do casamento constróem-se laços de união entre as famílias de
origem dos noivos e fortalecem-se os laços de solidariedade, social ou
profissional, que, já anteriormente, uniam os seus membros através do mais
sagrado dos compromissos: o casamento. Para perceber o amplo significado deste
tipo de união para estas famílias, não nos devemos esquecer da importância do
catolicismo na construção da sua concepção do mundo. Para as famílias católicas,
o casamento tem uma enorme importância simbólica, na medida em que é
considerado um acto sagrado e não exclusivamente um contrato formal.
O casamento não é um facto meramente cultural imposto pela lei: é algo bem
mais fundamental, que medeia entre a natureza e a cultura. A associação que
Deus cria quando une um homem e uma mulher não é apenas indissolúvel, ela
corresponde à criação de consubstancialidade (Pina Cabral 1991: 207).
As histórias destas famílias e os seus mapas genealógicos mostram que os
casamentos entre elementos de um grupo restrito de famílias são uma prática
muito frequente.
Quadro 17
Alianças matrimoniais por famílias
casamentos com
membros
da mesma família
casamentos com
membros de
famílias
de elite
outros
casamentos
Total de
casamento
s
Nº % Nº % Nº %
Família Espírito Santo
4 4,8
64 78
14 17
82
Família D’Orey
12 11,8
39 38,2
63 62
102
Família Vaz Guedes
0 0
19 76
6 24
25
Família Pinto Basto
46 7
267 40,1
302 45,4
665
Família Santos
1 2,8
5 14,3
30 85,7
35
Família Mendes Godinho
1 4,8
4 44
44 76,1
49
Família Queiroz Pereira
0 0
10 66,6
5 33,3
15
214 Casamentos e descendentes
Estas alianças são, simultaneamente, resultado e condição para a
consolidação da rede de relações sociais, económicas e de amizade que envolvem
os seus membros destas grandes famílias. Ao casarem entre si reforçam o poder
dos diversos capitais que constituem o seu património familiar, pois
circunscrevem a sua circulação, restringindo, consequentemente, a exclusividade
da sua distinção a este grupo de famílias. À medida que as gerações vão passando e
que os casamentos se vão sucedendo, estende-se e consolida-se uma densa rede
de alianças entre um grupo restrito de famílias. Esta rede de alianças torna-se,
assim, um poderoso capital social desta comunidade..
Um exemplo da concretização deste ideal de casamento entre membros de
famílias próximas e de igual riqueza e estatuto, é o das irmãs de Jorge e José
Manuel de Mello (Grupo CUF). Uma delas casou com o primogénito de José
Maria Espírito Santo Silva e a outra casou com António Champalimaud. Desta
forma, através do casamento, de uma aliança sagrada, este grupo de irmãos uniu
os três maiores grupos económicos portugueses antes de 1974. Este caso,
certamente maximal, mostra de uma forma particularmente clara que a
importância das alianças matrimoniais não deve ser vista exclusivamente do ponto
de vista da continuidade de cada uma das grandes famílias envolvidas. As alianças
matrimoniais têm um papel decisivo na própria continuidade do grupo social, do
conjunto de famílias que constituem a elite empresarial lisboeta.
Encontramos uma situação análoga entre outra destas grandes famílias. Os
filhos de dois dos três principais sócios iniciais de José Maria Espírito Santo e
Silva na constituição da sua casa bancária, casaram-se com mulheres da família
Espírito Santo (ver Quadro 18).
Aos laços de amizade e de investimento económico que uniam os sócios
junta-se, assim, um elemento de ordem afectiva que une através de um
sacramento os filhos dos sócios, agora tornados compadres. Os netos que
nascerem desta aliança serão símbolos da continuidade do sangue da família de
cada um, mas serão, também, a personificação consubstanciada da continuidade
das estreitas relações mantidas por esses homens de negócios.
Casamentos e descendentes 215
Quadro 26: Casamentos importantes para a família Espírito Santo
216 Casamentos e descendentes
A quantidade e a frequência com que se estabelecem alianças matrimoniais
entre um grupo restrito de famílias tem, necessariamente, repercussões no âmbito
mais vasto da comunidade a que pertencem, reproduzindo o seu estatuto social,
mas também a exclusão de potenciais novos membros desta teia de relações de
intersubjectividade. Estas repercussões são relevantes tanto a nível social como a
económico, pois fortalecem laços de solidariedade dentro da comunidade de
práticas que se estenderão às gerações seguintes. A análise das alianças
matrimoniais contribui para compreender melhor as relações sociais que estas
famílias mantêm entre si, mas pode, também, ajudar-nos a perceber melhor os
investimentos que os seus membros fazem para a construção das redes sociais que
querem vir a ter no futuro.90
Num recente artigo publicado sobre a família Espírito Santo, a jornalista
Inês Dentinho descreve, com uma certa crueza, a cuidadosa gestão dos
casamentos dos elementos desta família na primeira metade do século:
Depois dos estudos feitos em Edimburgo, Ricardo casara em 1918 com Mary
Cohen, filha de um conhecido judeu sefardita, financeiro de Gibraltar. José
Espírito Santo, pelo seu lado apaixonara-se pela irmã Vera Cohen. Mas Maria –
a irmã mais velha dos Espírito Santo – não aprova o namoro, que repete as
famílias, e programa um casamento mais pensado: Maria José Borges
Coutinho, Marquesa da Praia e Monforte, seria a mulher ideal para José
Espírito Santo. (...) Explique-se que há uma vontade de ligar a família, burguesa
na sua essência, à aristocracia lusitana (...) (Dentinho sd).
A pronta intervenção da irmã mais velha dos filhos de José Maria Espírito
Santo, demonstra a preocupação com a escolha dos parceiros matrimoniais dos
membros da família. Não basta cumprir o ideal de casar dentro de um
determinado grupo de famílias. É preciso também assegurar o alargamento das
relações sociais, sobretudo se, através destas, se puderem integrar elementos da
velha aristocracia portuguesa que tragam para a família os símbolos da antiguidade
90 Não posso, no entanto, deixar de referir que existem alguns casamentos estabelecidos
com pessoas que não se adequam aeste ideal. Nas conversas que tive com os meus informantes sobre este tema, as referências a essas alianças eram sistematicamente evitadas.
Casamentos e descendentes 217
ilustre, com que se legitima o prestígio, o elevado estatuto social, a pertença a um
grupo de elite. A gestão dos afectos é um interesse de todo o grupo familiar e não
apenas uma opção tomada individualmente.
A atenção dedicada à escolha dos parceiros conjugais dos membros mais
novos da família é bem descrita por uma senhora da família D’Orey.
A mãe via crescer os filhos. Preocupava-se com o seu futuro, sobretudo moral.
Evitar a tentação ... Eis a questão! E tratava de os empurrar para o casamento
na boa altura, escolhendo ela, se possível, as noivas! Penso que todos, excepto
o tio Ri foram casados sem dar por isso, ou dando mas gostando, pelas
manobras discretas e hábeis da mãe... Eis como a avó procedia. Quando
entendia que um dos filhos estava pronto para o matrimónio, convidava umas
meninas que ela já devia ter debaixo de vista, alugava uma ou mais “calèches” e
partia tudo: as meninas, os filhos, grandes cestos de pic-nic, para um alegre
almoço ao ar livre. Depois da refeição, o bem-estar ajudando, os corações
encontravam-se e ... meu Deus ... o resultado está à vista. Foram óptimos
casamentos!! (ML)
Este depoimento mostra bem a importância que é reconhecida aos
casamentos dos mais novos para a continuidade do grupo familiar. Nestas famílias
dinásticas, que têm um projecto de continuidade que implica a unidade e a
colaboração dos seus membros, a escolha de um parceiro conjugal adequado é um
facto decisivo para todos e não apenas para as duas pessoas que contraem
matrimónio. Por isso, esta questão não pode ser deixada ao acaso.
Uma vez que é no seio da família que se consolidam as bases da
continuidade cultural, económica e social entre as gerações familiares, o
casamento torna-se um passo decisivo para a continuidade da grande família, cuja
importância está longe de poder ser considerada individualmente. É neste sentido
que autores como Bourdieu (1972 e 1980) e Bertaux (1978) falam em estratégias
matrimoniais: processos de decisão que desempenham um papel importante no
funcionamento e na organização do grupo para garantir a manutenção ou o
aumento dos seus poderes e privilégios herdados.
218 Casamentos e descendentes
No entanto, é necessário ter algum cuidado, ao falar em estratégias
familiares, para não correr o risco de reificar demasiado a família – como unidade
dotada de vontade e consciência própria –,nem cair no reducionismo de afirmar
que o estabelecimento de alianças dentro de um universo relativamente reduzido
de potenciais parceiros matrimoniais é constrangido por estratégias expressamente
produzidas para o efeito. Apesar de haver situações em que tal se verifica, como
mostram os exemplos anteriores, creio que elas são uma excepção. De uma
maneira geral, as coisas não se passam de uma forma tão explícita. Aliás, nem tal
seria necessário. Não esqueçamos que os nossos projectos de vida, as nossas
escolhas individuais e os nossos afectos não são exclusivamente pessoais. Eles são
largamente condicionados pelos contextos socioculturais em que vivemos e dos
quais são um reflexo.
A eficácia dos processos de continuidade do projecto familiar vê-se,
sobretudo, na forma como os membros mais novos da família se constituem
como pessoas adultas, adoptando para si os valores, princípios e opções que são
as do seu grupo de pertença. A forma como estas escolhas se apresentam como
uma actividade electiva, escondendo os elementos que as condicionam e moldam,
é, para mim, uma maneira mais enriquecedora de colocar esta questão, pois essas
escolhas do coração são enformadas pelos valores culturais que ilustram as
expectativas do seu modo de vida, da sua comunidade de pertença. Como afirma
Joan Bestard,
estas escolhas livres e por amor produzem-se sempre entre casais do mesmo
grupo de estatuto, da mesma classe social, da mesma educação e do mesmo
grupo étnico. A homogamia foi efectivamente um dos elementos
característicos desta estrutura matrimonial baseada no amor individual. Não
parece, portanto, que as asas do Cupido tenham voado com muito vigor
através das afinidades electivas do casamento ocidental (Bestard 1998: 94).
Pierre Bourdieu sugere uma interpretação semelhante, ao defender que os
casamentos tendem a fazer-se entre famílias do mesmo estatuto económico (cf.
Bourdieu 1980). Para este autor, se o sistema funciona na grande maioria dos
casos é porque a educação familiar tende a assegurar uma correlação muito
Casamentos e descendentes 219
estreita entre critérios fundamentais do ponto de vista do sistema e as
características primordiais aos olhos dos agentes. A educação, reforçada por todas
as experiências sociais, tende a impor esquemas de percepção e de apreciação, que
se aplicam também aos potenciais parceiros conjugais. Nas suas palavras,
o amor socialmente aprovado, portanto predisposto ao sucesso, não é outra
coisa que o amor do seu destino social, que reúne os parceiros socialmente
predestinados pelas vias aparentemente casuais e arbitrárias de uma eleição
livre (Bourdieu 1980: 269).
Se admitirmos, como Bourdieu, que uma das principais funções do
casamento é reproduzir as relações sociais das quais ele é um produto, vemos
também que as alianças matrimoniais que os indivíduos escolhem, correspondem
estreitamente às características das relações sociais que as tornam possíveis e que
elas tendem a reproduzir: “a homogeneidade do modo de produção do habitus (as
condições materiais de existência e de acção pedagógica) produzem uma
homogeneidade de disposições e de interesses” (1980: 320). Este argumento é, no
entanto, teleológico, pois presume a existência de uma vida cultural e social
íntegra e consistente, que precede a própria existência dos indivíduos: isto é, uma
vida social que não é construída social e culturalmente através das acções dos
sujeitos sociais. Levando a ideia de Bourdieu até às últimas consequências,
teríamos um sistema endogâmico de alianças num sistema social que se
reproduziria sem transformação geracional.
Devemos, portanto, procurar outros modos de formular esta tendência para
o estabelecimento de alianças matrimoniais entre indivíduos que partilham uma
mesma visão do mundo e um estatuto social mais ou menos equivalente. Defendi
anteriormente que a identidade reivindicada pelos indivíduos, e os projectos de
vida que estes constróem, estão fortemente ligados à rede de solidariedades
primárias em que estão inscritos. Neste sentido, a escolha homogâmica de
parceiros matrimoniais enquadra-se nesta identificação de projectos e de
identidades sociais que permitirá a continuidade da própria comunidade.
220 Casamentos e descendentes
Proponho, então, que a questão seja colocada a partir da análise das formas
como os indivíduos escolhem os seus parceiros matrimoniais, orientados pela sua
pertença a um determinado contexto familiar e social, pois, como dizia Joan
Bestard, “as pessoas não flutuam na sociedade, mas estão encravadas em relações
com outras pessoas” (idem: 229). Uma formulação que adopte uma perspectiva
construtivista da pessoa permite fugir a uma concepção funcionalista e reificante
da unidade familiar. Parte-se de uma perspectiva que pensa os indivíduos como
sujeitos sociais activos, independentes e coerentes, mas integrados num
determinado contexto social em cujos valores e orientações se constróem como
pessoas, num intercâmbio dialéctico entre auto-identificação e alter-identificação.
Assim, se, por um lado, o contexto social em que os indivíduos se formam como
pessoas condiciona a sua acção e as suas escolhas, por outro, ele pode ser, e é,
também, manipulado pelas opções particulares que orientam a conduta social de
cada indivíduo particular.
Seguindo esta perspectiva, os arranjos matrimoniais devem, então, ser
pensados como escolhas pessoais, resultantes das disposições culturais que os
indivíduos incorporam através das suas condições de existência. Se somos
construídos à imagem da nossa família, porque é que não iríamos reproduzir, se
bem que sempre só parcialmente, as expectativas da nossa família? Desta forma,
poderemos dar uma maior ênfase à maneira como os agentes obedecem aos seus
sentimentos, não deixando de ter em conta que, ao fazê-lo, os indivíduos se
aproximam do sistema de constrangimentos do qual são produto as suas
disposições éticas, valorativas e afectivas.
À medida que o tempo corre, as pessoas do mesmo grupo conhecem-se, ou
conhecem alguém que conhece alguém ou conhece aquela pessoa; não há
nenhum local na América onde a “consciência de classe” seja maior que entre a
elite; em nenhum local o grupo é tão organizado como entre a elite do poder
(Mills 1956: 283).
Não estamos, portanto, perante nenhum fenómeno específico a este grupo
de pessoas, nem tão-pouco a Portugal, mas sim perante uma situação que é
comum, pelo menos, a toda a Europa mediterrânica (cf. Goody 1976, e Bestard
Casamentos e descendentes 221
1998: 162). Seguindo a sugestiva reflexão de Joan Bestard, torna-se claro que, para
perceber o significado social do casamento, temos de analisar esta aliança na sua
relação com o processo de reprodução social mais amplo em que as pessoas estão
envolvidas: tanto a nível da continuidade da sua unidade familiar de origem como
da continuidade da comunidade a que pertencem. O cumprimento do ideal social
que privilegia o estabelecimento de alianças matrimoniais com indivíduos que não
se encontrem “nem demasiado próximos” – em termos de parentesco – “nem
demasiado distantes” – em termos sociais – (cf. Heritier 1981 e Zonnabend 1981),
torna-se a expressão simbólica do ideal homogâmico de casar dentro do mesmo
grupo de estatuto social.
É precisamente neste sentido que Joan Bestard apresenta o casamento
como “uma forma de relacionar a identidade com o passado; pois apesar de o
casamento implicar descontinuidade, os bens familiares que herdam criam
continuidade social” (1998: 160). O autor defende que os efeitos mais importantes
do casamento dentro do grupo de pertença do indivíduo são “a protecção
patrimonial” e “a consolidação de redes familiares estáveis” (idem: 147).
Consequentemente, com o passar do tempo, a regularidade da repetição da prática
de as pessoas se casarem com indivíduos com um estatuto social equivalente ao
seu promove coesão e exclusividade no grupo.
A propósito desta questão vale a pena analisar o trabalho de Lisa Douglass
sobre famílias de elite na Jamaica (1992). Douglass mostra como a família e os
valores familiares são utilizados na sociedade jamaicana para construir e legitimar
as relações de poder que caracterizam todos os níveis de acção da comunidade.
Ao longo da sua interessante monografia, a autora mostra-nos como as práticas e
os valores familiares têm efeitos decisivos na hierarquia social de Livingston. A
grande ênfase que os jamaicanos colocam na afirmação de que casam por amor
mostra, segundo Douglass, que as emoções são enformadas por um significado
cultural particular e que o poder dos sentimentos – cuja importância empírica é
reforçada no título da monografia The Power of Sentiments – é uma das formas
culturais mais operativas na estruturação da hierarquia social na Jamaica, uma
sociedade onde a importância dos valores da família e do parentesco faz com que
222 Casamentos e descendentes
poder e sentimento andem de mãos dadas. Com base numa análise cuidada das
redes de relações de amizade de jovens e nas estratégias educativas das famílias,
Douglass mostra-nos como grupos de amigos se formam com base em exclusões
de relações de raça, preparação académica e acesso a determinadas profissões, que
constituem importantes marcas de diferenciação na hierarquização social dos
jamaicanos. Estas divisões são, mais tarde, seladas através de casamentos dentro
de um grupo muito reduzido de famílias, que defendem, assim, a sua posição
isolada no topo da hierarquia social de Livingston e no controlo das principais
instituições públicas e empresas da capital (cf. Douglass 1992).
Lisa Douglass defende que, entre as famílias da elite jamaicana, se encontra
um tipo de casamento endogâmico (idem: 125). Todavia, o conceito de
endogamia remete-nos para uma obrigatoriedade de escolha dos parceiros
matrimoniais dentro da comunidade de existência dos indivíduos. Neste sentido,
não me parece adequado o argumento da existência de casamentos endogâmicos,
nem em Livingston, nem entre as grandes famílias empresariais de Lisboa, onde
verificámos uma situação semelhante de recorrência de alianças entre famílias de
elevado estatuto social. Por um lado, estas famílias não constituem exactamente
um grupo social, com uma existência claramente definida e delimitada. Por outro
lado, as suas escolhas de parceiros conjugais não seguem regras explícitas nem
obrigações definidas. Elas são resultado de opções individuais, enformadas pelos
valores culturais que ilustram as expectativas do seu modo de vida, da sua
comunidade de pertença.
Estamos, portanto, perante um tipo de casamento homogâmico e não
endogâmico. Este conceito tem a vantagem analítica de se referir a alianças
estabelecidas entre pessoas que partilham um estatuto social semelhante, sem
presumir que existe um grupo particular dentro do qual se devem escolher os
parceiros conjugais, e que estas escolhas obedecem a regras explicitamente
definidas (cf. Bourdieu 1980: 269 e Bestard 1998: 94).
Para perceber melhor a importância da distinção analítica operada pela
utilização de um ou outro conceito podemos tomar como exemplo o trabalho de
Gary McDonogh sobre as “Boas famílias de Barcelona” (1989). Nesta análise, o
Casamentos e descendentes 223
autor defende que as alianças matrimoniais são decisivas para a continuidade, não
apenas da família enquanto unidade social, como símbolos de identificação
colectiva, mas também para a continuidade do grupo de elite social de que fazem
parte. Mostrou como os casamentos sistemáticos entre famílias aristocráticas –
possuidoras de títulos e de símbolos de nobreza, mas economicamente
desprovidas – e famílias da nova burguesia ascendente – muito rica mas sem
símbolos de prestígio social – foram fundamentais para a fusão destes dois grupos
sociais, dando assim continuidade às antigas “boas famílias” catalãs. No entanto,
apesar de os dados etnográficos que apresenta mostrarem que há um
entrecruzamento estratégico entre as famílias que estabelecem alianças
matrimoniais, Gary McDonogh afirma que estamos perante um tipo de
casamento endogâmico (cf. idem: 215), remetendo-nos para uma realidade
contraditória com a que procura mostrar através do argumento das alianças
estabelecidas entre as famílias dos dois grupos sociais.
Uma das consequências da recorrência de casamentos entre membros da
mesma rede de solidariedades primárias é o prolongamento no tempo da unidade
e da “exclusividade” deste grupo social, pois a frequência e a intensidade das
solidariedades primárias estabelecidas no seu interior aumenta consideravelmente
e a entrada de elementos novos no grupo é, desta forma, necessariamente
restringida.
São vários os contextos etnográficos onde podemos encontrar situações
semelhantes a esta. De entre estes, parece-me interessante destacar, novamente, o
trabalho de Abner Cohen sobre a elite crioula da Serra Leoa, onde o autor
descreve a forma como este grupo se torna uma comunidade fechada devido,
sobretudo, à grande densidade das alianças matrimoniais entre as famílias que a
constituem e a um conjunto de práticas exclusivas aos seus membros. A
frequência com que na Serra Leoa se estabelecem casamentos entre membros da
comunidade crioula é resultado de um conjunto bem definido de ideais sobre
quem são os parceiros conjugais adequados – devem ser crioulos – mas é,
também, consequência da forma como
224 Casamentos e descendentes
o envolvimento em relações primárias múltiplas e sobrepostas dá pouca
oportunidade aos homens e mulheres crioulos para desenvolver idênticas
relações com não crioulos. Apesar de esta exclusividade não ser pretendida, ela
é o resultado da natureza das coisas (Cohen 1981:38).
Os casamentos adquirem uma função social muito importante, pois, ao
interligar pelo menos quatro grandes redes familiares, a nova família constrói um
novo nódulo social, dando origem a um dos principais patrimónios da elite
crioula: a sua rede de relações interpessoais, a grande rede de amity. Abner Cohen
considera o casamento uma instituição fundamental para perceber a dramaturgia
do poder da elite crioula na Serra Leoa, na medida em que a aliança que define é
um elemento decisivo no estabelecimento e na manutenção da hierarquia social
(cf. Cohen 1981: 76). A rede de relações interpessoais dos membros deste grupo
de elite é o instrumento através do qual se coordenam, de uma forma informal e
invisível, vários sectores especializados da vida pública: conseguem empregos,
favores, influência e acesso a determinadas instituições através das suas redes de
amizade e parentesco. Noutras palavras, Cohen mostra-nos como os membros da
elite crioula usam as suas relações pessoais privadas para coordenar as funções
públicas da comunidade (1981: 128), trespassando assim as práticas exclusivistas
que lhes conferem prestígio social e assumindo um papel universalista que
legitima o seu estatuto.
Corroborando este mesmo argumento, o recente estudo de Niall Ferguson
sobre a família Rothschild mostra, de uma forma sem paralelo nos outros
trabalhos existentes sobre esta destacada família de banqueiros, a importância dos
casamentos dentro da família na manutenção das relações entre os vários ramos
da família ao longo dos séculos (cf. Ferguson 1998 e 1999). O autor documenta a
notável realização de cinquenta e dois casamentos entre descendentes directos do
fundador, durante o período compreendido entre 1824 e 1997. Ferguson aponta,
como motivo crucial para a realização destes casamentos, a necessidade de manter
laços fortes entre as cinco sucursais nacionais do banco. Com base nestes dados,
o autor defende que um dos segredos do extraordinário êxito da continuidade
familiar dos Rothschild deve ser, portanto, os casamentos intra-familiares, que
Casamentos e descendentes 225
constituem uma peça mestra na transmissão do projecto desta grande família (cf.
idem).
Vale a pena analisar a recorrência dos casamentos entre membros deste
conjunto restrito de famílias da elite empresarial lisboeta a partir de um outro
ponto de vista, para não correr o risco de ficar prisioneira de uma noção
monolítica deste processo de reprodução das redes de relações sociais. Das
alianças matrimoniais realizadas resultam novas unidades sociais, novas famílias,
que não reproduzem as relações e os modelos culturais que receberam da geração
anterior. Pelo contrário, a cada momento, os novos casais promovem as redes de
solidariedades que acham mais adequadas, seja por motivos sociais, afectivos ou
profissionais. Cada novo casal, pela posição geracional que ocupa, tem uma
relação particular com as estruturas de poder familiar e social, que está de acordo
com os valores culturais, estéticos, políticos e morais da época.
À medida que as novas gerações se vão casando, vão aparecendo novas
famílias conjugais. Cada nova família que se forma com base na conjugalidade é,
preferencialmente, neolocal, pelo que tenderá a construir a sua própria identidade.
Neste sentido, a cada casamento, a constelação das relações entre famílias e o
projecto identitário a que os seus membros pretendem dar continuidade são
ameaçados por este processo de separação que decorre do aparecimento de novas
unidades conjugais, de novas casas. Porém, os sentimentos de coesão e de
interesses que partilhavam nas suas famílias de origem e que são revitalizados pela
participação em projectos familiares comuns – entre os quais as empresas têm um
peso destacado – reflectem-se nesta nova fase da sua vida. Através da manutenção
de “formas extra domésticas de associação familiar” (Pina Cabral 1991) criam-se
bases de partilha identitária que permitem a continuidade das famílias de origem.
Tendo-se constituído como pessoas familiares, no sentido definido por
Toren (1999), num contexto sociohistórico diferente do dos seus pais, os
elementos destas novas famílias organizarão a sua vida e os seus projectos de uma
forma relativamente original, articulando os sinais do seu tempo com os valores,
compromissos, relações e projectos familiares em que estão integrados, e que, por
isso mesmo, também fazem parte do seu projecto individual. Todavia, as relações
226 Casamentos e descendentes
sociais em que os indivíduos se inserem, não dão apenas continuidade à rede de
solidariedades em que estavam integrados pelas suas famílias de origem. Ao longo
do tempo, cada nova família conjugal cria também novas relações, alargando
assim a sua comunidade de práticas, na qual os filhos serão posteriormente
integrados e que, mais tarde, reivindicarão como sua, ao tornarem-se adultos no
seu seio, partilhando dos seus afectos, modos de vida e projectos. Desta forma, os
filhos reproduzirão esta tendência homogâmica para estabelecerem alianças com
membros de famílias com quem partilham um conjunto de afinidades – morais,
económicas, de modos de vida, de estatuto social e de projectos de futuro –
contribuindo para a continuidade do grupo; restabelecendo, alargando e
redefinindo a cada geração as redes de relações sociais em que os seus membros
estão integrados.
Quando regressei a casa recebi uma carta do meu futuro marido a declarar-se.
Mas eu só gostava de música e não queria saber de namoros e disse à minha
mãe que não queria saber de nada daquilo. Mas a mãe disse-me assim: “de
todas as famílias que conhecemos esta é a mais parecida connosco, também
têm capela com Santíssimo. Não digas já que não. Escreve-lhe para o
conheceres melhor e depois logo decides.” Afinal a mãe tinha razão. Acabei
por me casar com ele (MC).
Este relato chama a atenção para a existência de um ideal de parceiro
conjugal que, neste caso particular, é explicitado de uma forma muito clara:
alguém que partilhe os mesmo interesses, as mesmas crenças e o mesmo modo de
vida. Neste caso particular, a questão da adesão ao catolicismo surge como
elemento importante na definição da identidade familiar. Assim, estabelecer
alianças com alguém que cumpra este ideal, mesmo sem fazer parte das relações
directas da família de origem, é importante para alargar a rede de relações dos seus
membros ainda que dentro do mesmo grupo exclusivo.
O ideal de identificação de formas e projectos de vida, subjacente ao
cuidado com que a mãe de MC analisava as potencialidades do estabelecimento
de uma relação com um elemento daquela família, é bastante evidente e ilustra
particularmente bem a afirmação de Pierre Bourdieu: “as estratégias matrimoniais
Casamentos e descendentes 227
visam sempre, pelo menos nas famílias mais favorecidas, fazer ‘um bom
casamento’ e não apenas um casamento” (1972: 1109). Quando certas famílias
têm uma posição social privilegiada – que em parte mantêm através de um
conjunto de práticas e valores familiares – torna-se fundamental manter e
preservar relações próximas entre elas, para defender um mesmo modo de vida e
partilhar uma mesma concepção do mundo.
Na sociedade portuguesa têm ocorrido grandes mudanças no que diz
respeito a esta questão. A ideologia oficial do Estado Novo, concebia o
casamento como algo particularmente importante na vida dos indivíduos, pois era
através desta aliança que se constituíam as células fundamentais da sociedade.
Aliás, de acordo com esse modelo ideológico, o próprio estatuto de indivíduo
adulto estava associado ao matrimónio e à procriação. De acordo com este
modelo ideológico, os homens adultos eram definidos como chefes de família,
garantes da subsistência de uma unidade familiar. Pelo seu lado, o destino e a
função das mulheres era dar à luz, criar os filhos, ser boa dona de casa, boa mãe e
boa esposa vinculando, inescapavelmente, a mulher adulta a uma existência social
associada a uma unidade doméstica: a uma unidade conjugal.91
Actualmente, não se encontra na sociedade portuguesa uma associação entre
estado adulto e matrimónio explicitada de uma forma tão evidente e normativa.
De uma maneira geral, a intervenção dos membros mais velhos da família nas
escolhas afectivas dos mais novos é, também, cada vez menos visível e menos
aceite num contexto social onde as relações matrimoniais são, cada vez mais,
concebidas como fonte de realização pessoal e afectiva que podem terminar
quando deixam de ser satisfatórias (cf. Strathern 1997, Giddens 1996 e Bestard
1998). Esta nova concepção do casamento, associada ao número crescente de
ligações conjugais sem casamento, contraria na prática a ideia de indissolubilidade
veiculada pelo ideal católico e tradicional.
91 Aliás, de acordo com o Direito Eleitoral português vigente durante o Estado Novo, as
mulheres só podiam votar em situações especiais, como nos casos em que eram chefes de família.
228 Casamentos e descendentes
No entanto, para as famílias empresariais que estudei, o casamento continua
a ser concebido hoje em dia como um valor supremo, associado ao ideal católico
que define o matrimónio como um sacramento. Nesta formulação encontramos,
também, e de uma forma perfeitamente articulada, um ideal retirado da tradição
aristocrática: o casamento cria o espaço certo, legítimo para produzir a
continuidade da família. De novo, encontro neste contexto social uma articulação
entre os valores hegemónicos da sociedade portuguesa moderna e os ideais
“aristocratizantes” da continuidade da família e de uma forte presença da religião
nas suas vidas. Estes ideais transformam o modelo da indissolubilidade do
casamento numa demonstração perpétua do amor entre duas pessoas que
escolheram viver juntas para sempre. Como resultado da eficácia desta articulação,
verificamos ainda que, actualmente, os membros mais novos destas famílias
continuam a casar-se preferencialmente com pessoas com quem partilhem a
mesma concepção do mundo e projectos de vida semelhantes. Sendo assim, não
é, de facto, necessária uma intervenção directa por parte das gerações controlante
e declinante nas escolhas matrimoniais da geração ascendente, na medida em que
os seus processos de constituição como pessoas são uma base suficientemente
forte e eficaz para orientar as suas opções electivas.
Para além do importante papel que desempenha ao estabelecer uma união
sagrada entre duas pessoas, entre duas famílias, a aliança matrimonial constitui,
também, a condição necessária para a procriação tornando-se, assim, a base da
perpetuação da família, da sua identidade e do seu nome. Marido e mulher
formam uma unidade de procriação, mas esta nova unidade social só se concretiza
totalmente quando nascem os filhos. Assim, a importância do casamento como
unidade de produção de descendentes não decorre, apenas, do facto de este ser
socialmente considerado o contexto ideal para produzir indivíduos, mas decorre
sobretudo do facto de as alianças matrimoniais permitirem (re)produzir relações
entre indivíduos. Os novos casais são núcleos reprodutivos, tornam-se elementos
importantes para a continuidade do grupo familiar.
Casamentos e descendentes 229
O casamento converte-se no centro de produção da continuidade da grande
família, pois, sendo o locus da produção de descendentes, a aliança condensa os
símbolos da solidariedade, da identidade e da continuidade que são fundamentais
à grande família. Uma família empresarial sem descendência não tem sentido, por
significar ausência de continuidade.
2. Filhos, descendentes e sucessores
Não é apenas no âmbito da religião católica que a procriação surge como a mais
importante contribuição do casamento. O nascimento dos filhos no interior do
matrimónio simboliza a produção de uma substância comum que cria uma forma
de consubstancialidade entre as famílias de ambos os cônjuges, assegurando
também a continuidade da família no tempo. Sendo resultado de uma aliança
entre membros de grupos familiares que fazem parte de uma mesma comunidade
de práticas, o nascimento de filhos e netos comuns corresponde a um acto
fundamental de reprodução social que cria, para as novas gerações, condições
para dar continuidade às relações e projectos de vida existentes. Neste sentido, o
casamento torna-se um elemento de integração entre a reprodução biológica e a
reprodução social, dois processos necessários à continuidade dos grupos sociais.
O facto de o casamento constituir o locus legítimo da reprodução biológica
faz com que vários autores o apontem como um dos mais importantes elementos
do parentesco – vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Leach 1961, Goody 1973
e 1976, Heritier 1980, Schneider 1980, Pina Cabral 1991 e Bestard 1998. A forma
como cada sociedade produz uma forma ideal para o estabelecimento das alianças
matrimoniais entre os indivíduos condiciona as maneiras de levar a cabo a
230 Casamentos e descendentes
reprodução biológica e define, simultaneamente, a organização particular das suas
condições domésticas.92
No contexto das grandes famílias empresariais, a produção de descendentes
legítimos é um elemento decisivo na concretização dos ideais de continuidade
familiar que defendem: a continuação da substância familiar, representada através
de gerações sucessivas, é um símbolo da antiguidade da família. Mas, ao garantir a
continuidade da família no tempo, os descendentes garantem algo mais. Garantem
também a possibilidade de manter o controlo da empresa nas mãos de membros
da família. Concomitantemente, a importância da procriação para a continuidade
destas famílias está também associada ao espírito católico que orienta as vidas dos
seus membros. A conjunção destes dois factores permite compreender o elevado
número de filhos que encontramos na maior parte destas famílias (vejam-se, a
título de exemplo, as genealogias das famílias Pinto Basto, Espírito Santo e
D’Orey.
As alianças matrimoniais tornam-se, assim, um factor decisivo para as
grandes empresas familiares, pois será através delas que a grande família se poderá
manter ao longo do tempo como um referente de constituição de identidade
social para os seus membros. Sem um processo de transmissão de elementos
identitários e substâncias familiares para a geração seguinte, a família dinástica não
pode sobreviver. Este é um processo longo que se faz ao longo da vida
coexistente de várias gerações, na interacção de membros da família com idades e
experiências diferentes. Sem descendentes não haveria continuidade familiar. Por
esta razão, à medida que os novos membros da família vão nascendo, vão sendo
incorporados pelos símbolos identitários do grupo.
92 Por condições domésticas devemos entender as formas através das quais se definem as
condições de subsistência e de estabelecimento de relações de longo prazo entre pais e filhos que permitem a transmissão de conhecimentos culturais fundamentais ao contexto social em que vivem (cf. Pina Cabral 1991).
Casamentos e descendentes 231
A forma como estas linhas familiares se constróem, apoiando-se nos
mesmos símbolos, vivendo nos mesmos espaços e recorrendo aos mesmos
artefactos, produz modos continuados de reivindicação identitária que integram,
lentamente, os novos descendentes na família. Os percursos das heranças e dos
nomes que analisaremos em seguida ilustram a importância dos descendentes,
enquanto continuadores do sistema. A forma como eles se transformam de
herdeiros em sucessores, aptos a continuar a grande família, será também aqui
analisada.
3. Casamento e herança: a devolução promove a
continuidade
A relação entre as formas de organização dos sistemas de herança e os tipos de
sistema de casamento tem sido amplamente documentada do ponto de vista do
seu desenvolvimento histórico no contexto europeu (cf. Augustins 1982, Goody
1976 e 1983, Pina Cabral 1991 e Bestard 1998).
Sendo o sistema de herança – entendido como a forma através da qual a
propriedade é transmitida entre as gerações (Goody 1976: 1) – parte do processo
mais vasto, através do qual as relações de propriedade se reproduzem no tempo –
resultantes da forma como se estruturam as relações interpessoais –, o casamento
torna-se uma instituição fundamental para perceber a reprodução social, na
medida em que é no seio da unidade conjugal que se constróem os critérios de
acesso aos direitos sobre a propriedade.
232 Casamentos e descendentes
Os elos entre padrões de herança e padrões de organização doméstica são uma
questão que não é apenas de números e formações, mas de atitudes e emoções.
A maneira de dividir a propriedade é uma maneira de dividir as pessoas (Goody
1976: 3).
Os laços da aliança são uma parte fundamental da reprodução da família pelo que
existe, necessariamente, uma correlação entre o sistema familiar e as preferências e
as proibições relativas às transmissões de propriedade.
Dois modelos sobressaem na divisão clássica da relação entre sistemas de
herança e a produção da continuidade das unidades familiares – a discussão dos
modos de reprodução dos grupos domésticos. Por um lado, o que define um
herdeiro único; por outro, o que se baseia na distribuição igualitária da heranças
entre os germanos (cf. Augustins 1982). Ao distinguir entre herança e sucessão,
George Augustins contribui de uma forma fundamental para compreendermos a
lógica de continuidade das unidades domésticas, baseando-a nos tipos de
transmissão patrimonial entre as gerações que a constituem. No entanto, a
utilidade da tipologia que propõe é bastante reduzida, na medida em que se aplica
apenas ao mundo rural que define como estando isolado dos outros estratos da
sociedade, não permitindo, por isso, descrever uma parte significativa das
situações etnográficas concretas.
A análise de Jack Goody sobre sistemas de herança na Europa é útil para
pensar o contexto das grandes famílias empresariais de Lisboa. Ao contrário do
que acontece nas sociedades africanas, na Europa, mesmo quando um certo tipo
de propriedade é associada exclusivamente a homens, as mulheres são vistas
como herdeiras residuais. Isto é, em situações de recurso, e para garantir a
continuidade dos bens patrimoniais que se querem preservar, estes podem ser
transmitidos a uma mulher que, na geração seguinte, os transmitirá a um homem
que, por sua vez, dará continuidade à linha agnática. Neste sistema, que Goody
designa por devolução divergente (1976: 10), o modo de devolução do património da
Casamentos e descendentes 233
unidade familiar às gerações vindouras93 contribui para a forma como se
configuram as relações entre as gerações de parentes mais próximos e para o
estabelecimento das alianças matrimoniais.
Nas grandes famílias empresariais lisboetas encontramos uma situação
peculiar, onde as duas formas de transmissão se articulam com os ideais de
família. Em certos momentos, encontramos indícios claros da importância de
instituir um herdeiro único, expressos na manutenção da tradição aristocrática de
transmitir, de uma forma indivisa, a parte essencial do património ao filho varão
mais velho – nome, casa de família, brasão e título nobiliárquico. Noutros
momentos, encontramos transmissões patrimoniais que procuram ser igualitárias
entre o grupo de germanos, conseguidas através de dotes, doações, tornas e
compras. O ideal aristocrático de concentrar a riqueza patrimonial da família nos
seus aspectos materiais e simbólicos, aliado ao princípio de prevalência da varonia,
está na origem da formação de linhas agnáticas de herdeiros, nas quais a
primogenitura tem uma grande eficácia simbólica.
Contudo, a lei portuguesa, a partir do Código Civil de 1867, aplicou os
princípios do Código Napoleónico, criando um evidente foco de tensão na
família.
Desde 1863 não se pode falar, em termos estritamente jurídicos, de
primogenitura em Portugal. Mais, se a definirmos como a transmissão integral
de um património e do papel de chefe do agregado ao filho mais velho nem
socialmente podemos falar da existência desta prática no século XX, pois não
há evidências etnográficas. Desde o Código Civil de 1867 esse processo de
transmissão integral deixa de ser possível. O que não significa que não haja
tentativas de aproximação a esse ideal (O’Neill 1997: 127-8).
No entanto, o facto de há muito não ser legalmente possível um processo
de transmissão integral dos bens familiares ao primogénito, não significa que não
haja tentativas para o fazer e não sejam realizados esforços para pôr em prática
93 Jack Goody utiliza o conceito de processo de devolução para se referir ao “processo mais
vasto através do qual as relações de propriedade se reproduzem no tempo (...) entre os
234 Casamentos e descendentes
esse ideal. Para manter os ideais familiares sobre papéis e transmissão de
propriedade compatíveis com a lei em vigor, as famílias de elite portuguesa
desenvolvem diversas estratégias, que lhes permitem aproximarem-se do seu ideal.
Apesar de o primogénito não poder herdar tudo, não é por isso que deixam de o
preparar para assumir as posições de liderança nas empresas.
Há muitas estratégias para viabilizar o ideal da primogenitura e a sua eficácia
depende essencialmente das alianças familiares existentes e do respeito, confiança
e formação profissional que cada pessoa consegue adquirir. Estas famílias tentam,
portanto, conjugar as suas tradições familiares – nomeadamente, o ideal da
primogenitura – com as exigências legais do sistema de herança igualitário
hegemónico em Portugal.
Este ideal de transmissão agnática, que valoriza o primogénito, é de difícil
aplicação. A possibilidade de ter disponível uma quota de um terço – ou um meio
no caso dos filhos únicos – para deixar a um só filho é, nestes casos em que
estamos perante heranças de um valor muito significativo, um importantíssimo
elemento diferenciador. Por outro lado, há também que ter em conta a
diversidade patrimonial da família que é, consequentemente, transmitida
diferentemente aos vários filhos, tendo em atenção as expectativas para o futuro
de cada um e o cumprimento da equitatividade.
Esta dupla estratégia permite perpetuar a linha de descendência do
antepassado fundador da casa, da empresa e do património que os rodeia, num
equilíbrio em que as novas famílias conjugais, que se vão constituindo ao longo
das gerações, desenvolverão os patrimónios que herdam e os transmitirão aos
seus descendentes. Estamos perante um modelo de reprodução da identidade
familiar que mantém algumas tendências de linearidade, que procura manter
intactos alguns bens familiares ao longo das gerações – como as casas de família –
,num sistema de distribuição igualitária dos bens patrimoniais pelas diversas
unidades conjugais que deles descendem. No Capítulo VI retomarei a análise
destas questões da divisão da propriedade por géneros.
detentores dos direitos sobre a propriedade e aqueles que têm interesses de continuidade sobre esses direitos” (Goody 1976: 1).
Casamentos e descendentes 235
No âmbito destas grandes famílias o sistema de transmissão patrimonial
entre gerações articula duas lógicas contraditórias: um ideal igualitário num
sistema de devolução divergente e a necessidade de reproduzir a identidade
cultural e financeira das unidades sociais através de linhas de descendentes
masculinos. É possível encontrar esta articulação entre duas formas ideais de
transmissão noutros locais socio-históricos. Tal é, por exemplo, o caso do sistema
de reprodução das casas no Minho rural face às exigências de uma herança
igualitária (cf. Pina Cabral 1989). O paradoxo que estes exemplos põem em
evidência mostra que não há modelos rígidos e que devemos analisar as
manipulações locais, contextualizadas, das normas veiculadas pelos sistema legais.
A realidade de cada organização social não é nunca o resultado directo da
aplicação destas normas, mas sim da manipulação que os sujeitos sociais que a
constituem fazem delas, tentando adequá-las aos seus ideais de organização, aos
seus projectos e desejos pessoais.94 É por esta razão que encontramos com muita
frequência sistemas de reprodução mistos, que se baseiam na articulação
simultânea de diferentes forças relativas à constituição de identidade ao longo de
gerações, promovendo assim formas de continuidade que não podem ser
definidas exclusivamente por um modelo.
Esta dimensão patrimonial remete-nos para uma questão que referi
anteriormente – sobre as escolhas de parceiros matrimoniais – mas que vale a
pena analisar sob uma nova perspectiva. Apesar do evidente peso do património –
entendido na multidimensionalidade dos seus aspectos materiais e sociais, como
prestígio, valores, símbolos – nas escolhas de potenciais cônjuges, é preciso ter
cuidado para não cair num certo determinismo mecânico decorrente das
necessidades de reprodução da família e da comunidade.
94 Veja-se, a título de exemplo, o fascinante trabalho de Charles Stafford sobre o
parentesco chinês, em que se mostra que, na prática quotidiana, as relações de parentesco na China são resultado de uma articulação permanente entre relações centradas nas mulheres e não da aplicação dos princípios androcêntricos, que desde Freedman têm caracterizado o trabalho dos sinólogos (cf. Stafford sd).
236 Casamentos e descendentes
As alianças económicas entre famílias unidas matrimonialmente são uma
recorrência empírica inescapável e as consequências económicas que resultam das
tendências para o estabelecimento de casamentos homogâmicos nas classes altas
são evidentes. Quando os membros destas famílias empresariais casam entre si
reforçam, de uma forma muito evidente, as alianças económicas que tinham
anteriormente. Estes casamentos não são, no entanto, necessariamente
programados com vista a obter proveitos económicos.95
Na verdade, estas alianças matrimoniais derivam da totalidade de um amplo
conjunto de acções diversificadas – resultantes da forma como as pessoas
cresceram no âmbito de um círculo de socialidades particular, tomando para si os
valores, as atitudes e as relações da comunidade de práticas em que estão inseridas
– das quais os indivíduos e os grupos familiares a que pertencem, retiram uma
maior força social e económica. Este facto remete, também, para a conveniência
de os elementos que entram na família partilharem os mesmos valores que os seus
membros acerca da sua organização e do papel que os indivíduos nela devem
desempenhar.
Entre as famílias da elite empresarial encontramos uma situação em que a
reprodução das relações de natureza emocional, estabelecidas por um grupo de
pessoas que constituem uma comunidade de práticas, é muito visível em termos
patrimoniais. Colocar a questão em termos da discussão que opõe matrimónio e
património96 remeter-nos-ia, de novo, para o debate que opõe “razões afectivas” e
“razões económicas” que, no meu entender, não ajuda a iluminar melhor a
complexidade destas situações. Incorrer num excesso de patrimonialismo pode
fazer-nos esquecer que os valores culturais, os princípios morais e os projectos
95 Lisa Douglass defende que, uma vez que os informantes vêm o casamento como sendo
uma questão de amor – pois vêm os assuntos de família como questões de sentimentos e não assuntos sociais – então é dessa forma que o devemos analisar (1992: 264). Os valores morais que motivam a acção social não são puramente pragmáticos, são também formados por ideais que nos permitem compreender os valores que subjazem ao processo social.
96 Na sequência das análises históricas que mostraram a existência de uma clara relação entre os tipos de casamentos e os sistemas de herança, antropólogos e historiadores utilizaram abundantemente a oposição das expressões “matrimónio / património”
Casamentos e descendentes 237
que envolvem as práticas quotidianas dos indivíduos – e que estão subjacentes aos
processos através dos quais se constituem as opções afectivas e económicas –
fazem parte de uma mesma visão do mundo: a que caracteriza o grupo social a
que pertencem.
A grande visibilidade dos patrimónios materiais, simbólicos e sociais destas
famílias torna muito notório que a sua circulação se limita a um grupo restrito de
famílias. Desta forma, é evidente a relação entre as escolhas de alianças
matrimoniais e os ideais de distribuição patrimonial. No entanto, não devemos
deixar-nos iludir por esta “evidência” na interpretação destas escolhas e da
formação de redes de relacionamento entre famílias, pois tal levar-nos-ia a uma
análise tendencialmente funcionalista. O limitar da circulação do património às
famílias que fazem parte de uma mesma comunidade de práticas, da sua rede de
relações de intersubjectividade, é consequência do facto de as afinidades electivas,
no âmbito deste grupo de estatuto, tenderem a reproduzir-se através de
casamentos homogâmicos ao longo das gerações.
4. Afins: os novos membros da família
Sem casamentos que produzam descendentes, os negócios não poderiam
continuar nas mãos da família. Mas os casamentos podem conduzir a problemas
com os afins e, consequentemente, a conflitos na empresa potencialmente
ameaçadores da sua própria continuidade; podem conduzir a divórcios e, também,
para dar conta etnograficamente desta questão. Vejam-se por exemplo os trabalhos de Bourdieu 1972, Augustins 1982, Goody 1983, O’Neil 1984, e Sobral 1993.
238 Casamentos e descendentes
a re-casamentos. Para a continuidade das empresas familiares, o casamento dos
seus membros tanto pode ser uma bênção como uma maldição.
Quando casei o meu irmão veio logo convidar o meu marido para entrar para a
sociedade e para ir gerir a casa bancária de Tomar. O meu irmão era
extraordinário. Nunca o poderei esquecer. Sempre fez tudo pelo bem da
família, queria que todos estivessem unidos e que trabalhassem juntos (MC).
Através do casamento cria-se a possibilidade de integrar no projecto
empresarial da família as herdeiras, accionistas que, por serem mulheres, não têm
forma de participação activa nas empresas fundadas pelos seus antepassados. Este
é também o caso de CR que, sendo oficial de Marinha, abandonou a sua carreira
porque o seu sogro só tinha filhas. Para que o seu ramo familiar não perdesse o
controlo sobre os negócios da grande família, eram os genros que tinham de
assegurar a continuidade da sua participação.
No caso dos casamentos com mulheres de outras famílias proprietárias de
grandes empresas familiares, os homens ficam a trabalhar nas suas próprias
empresas. Só se a família das mulheres não tiver nessa geração homens para
assegurar os cargos de gestão é que ocuparão uma posição activa nas empresas
delas.
A aliança conjugal promove, em determinadas circunstâncias, a entrada dos
maridos das filhas, das irmãs ou das primas para a empresa. Esta situação assenta
numa lógica semelhante à da devolução divergente, na medida em que os laços de
afinidade que a aliança cria serão transformados em consanguinidade através do
futuro nascimento dos filhos.
Segundo Adriana Piscitelli, que encontra nas grandes empresas familiares
brasileiras uma situação semelhante, o facto de os genros serem incorporados “em
representação” das herdeiras inscreve-se na desvalorização da afinidade apontada
por Dumont, para quem as “relações de afinidade são passageiras, no sentido de
que os afins se convertem em consanguíneos dos descendentes” (Piscitelli 1999:
132). Através da incorporação da afinidade na empresa, implementa-se aquilo que
Casamentos e descendentes 239
Piscitelli designou por uma “sucessão colectiva” (idem: 133). De acordo com o
seu argumento, a presença dos maridos das accionistas na gestão diária das
empresas resulta da conjugação de dois importantes ideais: a) todos os
descendentes recebem acções e b) o mundo dos negócios é estritamente
masculino, pelo que a participação das mulheres terá de ser feita por
representação.
Porém, todo o casamento faz ameaças à propriedade e, consequentemente,
a todo o grupo familiar que a detém, pelo que é necessário tomar precauções para
que a entrada de novos elementos para a família seja algo de positivo e não uma
fonte de problemas. A ideia da desvalorização da afinidade surge nalgumas das
famílias com que trabalhei. Analisemos o seguinte caso.
Uma das coisas que D combinou com o tio foi que ninguém que não seja da
família por sangue (cunhados ou genros) poderá entrar para trabalhar nas
empresas: “da família só está quem é do sangue e merecer, quem mostrar que é
capaz de cumprir o seu papel e enfrentar os desafios” (D). Tal atitude decorre, em
parte, dos maus resultados que a incorporação de afins teve numa empresa da
família. Todavia, esta atitude tem sobretudo a ver com a associação simbólica
entre solidariedade, confiança e dedicação familiar e a consubstancialidade que
decorre da partilha de sangue e que é vista como garantia do reconhecimento
público da legitimidade que os membros da família detêm para estar à frente dos
destinos das suas empresas.
Outro caso exemplifica bem esta necessidade sentida por algumas famílias
de ter, com os afins, uma atitude diferente da que têm com os consanguíneos. N
era casada desde 1957 com AS, antigo administrador do Banco de Angola e muito
amigo do primo de N, que exercia então o cargo de presidente do grupo
económico da família. Depois do seu casamento, AS começou a trabalhar
nalgumas empresas do Grupo da família da sua mulher, mas nunca em áreas
directamente relacionadas com a actividade profissional do sogro, segundo N
“para que ele não adulasse o pai”.
Esta definição de regras claras, em relação à entrada de parentes por
afinidade nos quadros das empresas, remete precisamente para essa ideia de
240 Casamentos e descendentes
tensão entre o projecto colectivo da família e os projectos individuais daqueles
que entram no seio das suas relações.
Outra das precauções que encontrei com frequência entre as famílias
empresariais que estudei foi um número significativo de casamentos realizados
com “acordos ante-nupciais”. Na sociedade portuguesa a maior parte dos
casamentos adoptam o regime de comunhão geral de bens (até 1966) e a partir
dessa data o regime de comunhão de adquiridos. Porém, entre as grandes famílias
que estudei, a prática mais frequente é seguir o “regime de separação total de
bens”. De acordo com um especialista na matéria, “o acordo pré-nupcial ajuda a
proteger o negócio de ser influenciado pelas dimensões pessoais dos indivíduos”
(Nelton 1989: 46). Cada vez que se celebra um casamento com um acordo
ante-nupcial reafirma-se o perigo potencial de a intervenção dos afins poder
provocar momentos de tensão entre o grupo de parentes.
O volume e o valor dos bens que os noivos possuem e dos quais são
herdeiros permite-nos compreender a recorrência a esta prática. O acordo
ante-nupcial tem, portanto, como objectivo proteger a empresa familiar das
pessoas que entram de novo para a família e que não partilham os símbolos de
identificação com o projecto colectivo dos seus antepassados. A falta de
identificação afectiva com o projecto familiar poderia fazer com que os indivíduos
que entram na família por laços de aliança encarassem a empresa como sendo
exclusivamente um investimento económico. Como tenho vindo a mostrar, tal
não corresponde à forma como aqueles que cresceram no meio desse projecto
familiar a concebem. Para estes, a empresa familiar é tanto um investimento
simbólico como económico. É, sobretudo, um projecto colectivo do qual as
pessoas fazem parte mas que nenhuma detém na totalidade. Os exemplos das
famílias com que trabalhei mostram que, em muitos casos, o peso e a importância
deste projecto colectivo é tão forte que faz com que os afins sejam integrados de
uma forma eficaz nas suas múltiplas dimensões, abdicando com frequência das
suas anteriores carreiras para se dedicarem integralmente a este projecto em que
são integrados pela afinidade.
Casamentos e descendentes 241
5. Divórcios: de como as práticas sociais não
correspondem aos modelos culturais
Um olhar atento sobre os diversos mapas genealógicos destas famílias permite-
nos constatar uma grande frequência de divórcios, não apenas nas gerações mais
recentes, como é tendência geral da sociedade portuguesa e das sociedades
urbanas ocidentais97, mas também nas gerações mais antigas.
Quadro 19
Número de divórcios nas grandes famílias
número de casamentos
número de divórcios
percentagem de divórcios
Família Espírito Santo
82
25
30,4
Família D’Orey
102
11
10,7
Família Vaz Guedes
25
1
4
Família Pinto Basto
665
33
5
Família Santos
35
6
17,1
Família Mendes Godinho
49
6
12,2
Família Queiroz Pereira
15
5
33,3
97 Para compreender o aumento das taxas de divórcio nos últimos trinta anos é preciso
perceber um vasto conjunto de transformações sociais: mudanças nas práticas e concepções da vida familiar, transformações na forma de conceber o casamento, as escolhas individuais e as práticas sexuais, o estatuto social das mulheres e a sua entrada massiva no mercado de trabalho (cf. Torres 1996). Uma das razões pelas quais o divórcio se tornou mais frequente decorre de transformações na própria forma de encarar o casamento. Afastando-se dos antigos critérios de segurança e continuidade das relações familiares, na actual concepção da conjugalidade a escolha do cônjuge valoriza os critérios amorosos e a satisfação pessoal. Mas, mais do que isto, esta nova concepção torna esses critérios os fundamentos da relação. Assim, esta só durará enquanto se mantiver compensadora para quem nela está envolvida (cf. Strathern 1997 e Giddens 1994).
242 Casamentos e descendentes
A surpresa suscitada por um primeiro olhar sobre o grande número de
divórcios nestas famílias exige uma análise detalhada. De acordo com os dados
fornecidos por Anália Torres no seu trabalho sobre o divórcio em Portugal, o
número de divórcios posterior à aprovação da lei do divórcio pelo governo
republicano em 1910 não é muito expressivo, quando comparado com o de
outros países com legislação próxima da nossa. Os protagonistas dos poucos
casos de divórcio nesta época pertenciam, essencialmente, a grupos bem definidos
da população portuguesa que tinham uma ocupação profissional que supunha
escolaridades altas.
Trata-se sobretudo dos sectores intermédios, mais escolarizados e sem grandes
problemas económicos, das zonas urbanas, pertencentes a grupos profissionais
como o dos comerciantes, a administração pública e os profissionais liberais
(Torres 1996: 33).
No entanto, depois deste sinal de defesa da liberdade de escolha dos
cidadãos, dado pela I República, a lei do divórcio volta a ser alterada pelo Estado
Novo, de acordo com os valores e os modelos de família que se pretendiam
veicular e impor como modelo à sociedade portuguesa. O ideal da família
harmoniosa, do casamento como um sacramento que une duas pessoas para toda
a vida é o que justifica a imposição legal da indissolubilidade dos casamentos
católicos decorrente da assinatura da Concordata entre o Estado português e a
Santa Sé, em 1940.98 Da Concordata decorre um modelo legal específico de
organização familiar que é reactualizado em 1966 com a aprovação do novo
Código Civil. Porém, este diploma, em vez de modernizar a legislação de acordo
com as exigências sociais dos tempos modernos, restringe ainda mais o divórcio,
ao acrescentar o impedimento aos que se casavam apenas pelo Registo Civil de se
divorciarem directamente por mútuo consentimento, possibilidade que se
mantinha em vigor desde a I República. Só em 27 de Maio de 1975 é publicado
um Decreto Lei que legaliza o divórcio por mútuo consentimento, mesmo para os
98 Criam-se assim dois regimes matrimoniais, adequando cada um deles à forma de
celebração do casamento. Para os que queriam quebrar os laços restava apenas a possibilidade da separação judicial de pessoas e bens que, não dissolvendo o casamento, eliminava alguns deveres dos cônjuges, como o da coabitação.
Casamentos e descendentes 243
casamentos católicos, após a renegociação com a Santa Sé do texto da
Concordata.
A frequência dos divórcios nestas grandes famílias empresariais num
período anterior a 1975 – altura em que se legalizou de novo o divórcio em
Portugal – reveste-se de um interesse particular por duas ordens de factores. Por
um lado, porque o divórcio é, claramente, uma prática que contraria os valores
tradicionais que estes indivíduos atribuem à família. Por outro, porque a
frequência desta prática tem repercussões no desenvolvimento do grupo
empresarial que a família constitui.
Ao longo deste capítulo mostrei que as alianças matrimoniais constituem
uma importante base de estabelecimento e/ou consolidação de relações entre as
famílias da elite lisboeta ao longo deste século. Resultando em grande medida de
laços anteriores de solidariedade, os casamentos selam ligações futuras entre
famílias, e não exclusivamente entre os cônjuges. Quebrar estas ligações não é,
portanto, um assunto estritamente individual, pois terá repercussões mais vastas
ao nível da totalidade do universo familiar. Todavia, estas rupturas matrimoniais
têm, também, implicações ao nível da estabilidade, organização e
desenvolvimento do grupo económico familiar.
Vejamos, de novo, um exemplo.
A separação de J da sua primeira mulher, (Marquesa da Y), para se juntar
com VC, com quem viria mais tarde a casar, teve implicações directas no
posterior percurso de desenvolvimento do Banco Espírito Santo. Fora J quem, em
1920, transformaria em banco a casa bancária fundada por seu pai. As excelentes
capacidades de gestão deste homem fizeram com que, em pouco tempo, o Banco
Espírito Santo se tornasse numa instituição bem cotada na praça financeira lisboeta
e se colocasse entre as três mais importantes instituições bancárias portuguesas. J
foi o impulsionador da expansão territorial do Banco Espírito Santo através de uma
intensa política de abertura de filiais por todo o país e é também a ele que se deve
o forte investimento na vertente seguradora do grupo, com a compra e expansão
da Companhia de Seguros Tranquilidade.
244 Casamentos e descendentes
Em 1932, J separou-se da sua mulher, um episódio que foi muito mal visto
socialmente na época, tendo também sido muito criticado no seio da sua própria
família. Os ideias da moral católica, que guiavam a família e a maioria da
sociedade portuguesa da época, não permitiam aceitar a dissolução de laços
sacramentados pela Igreja. Tal dissolução fazia perigar a tradição, os bons
costumes e a ordem familiar conservadora, defendida pela elite católica. Mas, para
além disso, a dissolução do seu casamento teve importantes implicações nos
destinos do grupo. Depois da separação, J foi viver para Paris com a sua nova
mulher, tendo abdicado da presidência do Banco Espírito Santo, que foi então
ocupada pelo seu irmão R. As implicações desta decisão pessoal nos destinos do
grupo económico familiar não se resumiram à mudança das chefias e à precoce
passagem do seu irmão para a presidência do banco. Como já referi
anteriormente, elas fizeram-se sentir na produção de sucessores nesse ramo da
família. O afastamento do convívio diário entre J e os seus filhos foi, no meu
entender, um dos factores que contribuiu para que estes nunca tivessem assumido
posições de clara liderança dentro do Grupo, apesar de ocuparem lugares
importantes.
Como vimos, o projecto de vida familiar e empresarial destes indivíduos
assenta num ideal de continuidade e os divórcios impõem uma ruptura num
sistema de relações que é suposto continuar. De facto, o casamento estabelece um
conjunto de condições e relações que se enquadram numa lógica de reprodução
social, onde os ideais da continuidade são mais valorizados que as lógicas do
rompimento. No âmbito das grandes famílias empresariais, o divórcio surge como
uma opção individual que entra em rota de colisão com as estratégias familiares.
Ele implica, portanto, uma ruptura cujas consequências se estendem a todo o
sistema. Todavia, os potenciais problemas dos divórcios são mais amplos que
aqueles que decorrem da própria ruptura, pois o divórcio não quebra apenas a
aliança – e no caso de haver crianças nem esses laços quebra. O divórcio
estabelece novas alianças com elementos potencialmente ainda mais estranhos à
família.
Casamentos e descendentes 245
O caso de T mostra como o divórcio não promove necessariamente uma
quebra nos laços de relacionamento entre as pessoas. O pai de T pertence a uma
das grandes famílias empresariais que analisei e apesar de os pais estarem
separados já há muito tempo sempre foi a sua mãe quem lhe contou as histórias
da família do pai e do grupo económico que aquela detém. De acordo com T, a
mãe fazia-o para
dar continuidade à mística que envolve a família e o grupo. É a minha mãe que
insiste no meu envolvimento e no do meu irmão nessa mística porque o pai,
apesar de trabalhar numa empresa do grupo, não gosta nada de ter de o fazer e
não quer saber de nada do grupo. Ele tem um bar e um restaurante em Lisboa
e é disso que ele gosta (T).
Devido à separação dos pais, T e o irmão só vão às casas da família em
ocasiões especiais, nomeadamente quando a tia (irmã do pai) que vive no Porto
ou os tios do Brasil (irmão do pai) vêm a Lisboa, porque o pai não gosta muito de
lá ir sem ter uma “boa” razão para o fazer. No entanto, e seguindo de novo o
depoimento de T,
mesmo estando a viver com a minha mãe, ela nunca deixou que nós nos
afastássemos da família do pai. Nem o avô deixaria. Ele gostava muito da
minha mãe e, mesmo depois do divórcio, continuou a estar muitas vezes com
ela (T).
Como este caso mostra, mesmo após a separação da unidade conjugal, os laços
entre os elementos das famílias anteriormente unidas continuam a existir e a ter
um papel importante, sobretudo quando estão em causa elementos familiares tão
importantes e valiosos para a constituição da identidade social dos indivíduos.
A frequência de divórcios entre estas famílias colide com as concepções
morais do catolicismo e com o ideal aristocrático de continuidade defendido pelos
seus membros. Entre a concepção da família e do casamento que defendem – os
valores e ideais que atribuem a essa união sagrada – e as suas práticas e opções
reais há, frequentemente, deslizes e incoerências. Estas revelam que a utilização
que é feita dos valores nas práticas nem sempre é coerente com o modelo moral
246 Casamentos e descendentes
que se constrói como ideal. A norma e o ideal cultural não são rígidos e não são
necessariamente aplicados nas práticas sociais quotidianas dos indivíduos que os
defendem. Num capítulo anterior, discuti esta questão a propósito do facto de o
ideal de separação de famílias e negócios não se traduzir nas práticas de gestão das
empresas familiares.
Devemos, então, pensar estes ideais de organização das relações sociais,
como a separação entre trabalho e família e a indissolubilidade dos casamentos,
como disposições culturais que se usam estrategicamente, de acordo com a
maneira que se considera mais adequada a cada situação. Assim, elas podem ser, e
são, manipuladas da maneira que parece mais adequada aos interessados. É por
isso que há tantos divórcios num universo familiar e social onde tal prática
contraria claramente os valores e ideias religiosos e morais que praticamente todos
aceitam. E é por esta razão que os parentes são sócios e trabalham juntos num
projecto económico familiar num contexto onde trabalho e família são universos
e valores que, em princípio deveriam estar cuidadosamente separados. Esta
manipulação do valores ideais permitir-me-á explicar, nos Capítulos VI e VII,
outros elementos relacionais centrais para o êxito e a continuidade destas grandes
famílias.
CAPÍTULO VI
HOMENS DE NEGÓCIOS E
GESTORAS FAMILIARES
1. Produzir diferenças num sistema igualitário:
distinções de género entre a elite lisboeta
No âmbito destas grandes famílias de Lisboa, homens e mulheres têm uma
participação substancialmente diferente nas empresas familiares que possuem em
comum. Os negócios são, claramente, assuntos de homens. Paralelamente, a
família é assumida como assunto de mulheres. Na sua maioria, as mulheres destas
famílias de elite não trabalham nas empresas: dedicam-se à casa, à família e às
relações familiares. Pelo seu lado, os homens – os responsáveis pelas empresas –
estão afastados das decisões relativas à gestão diária do universo de acção familiar.
A separação entre o tipo de participação de uns e outras neste projecto
colectivo é, em grande medida, resultado dos ideais e valores que estas famílias
defendem sobre a sua própria organização. Ora, como tenho vindo a mostrar,
estas têm uma ênfase simbólica marcadamente agnática. Estando maioritariamente
arredadas de uma participação activa na vida profissional das empresas, as
mulheres desempenham um papel fundamental na manutenção das relações
familiares o que, como veremos, é também central para a continuidade do
projecto familiar. Através de uma permanente e hábil articulação entre relações
familiares e relações empresariais, que uns e outras desempenham
preferencialmente, homens e mulheres colaboram num projecto que é, afinal, o
mesmo.
Em termos ideais e simbólicos, a associação dos homens aos negócios e das
mulheres à família continua a ser algo bastante valorizado, sobretudo no âmbito
das gerações controlante e declinante. Na geração ascendente verifica-se, todavia,
uma tendência para uma utilização mediada desse ideal que esbate essa separação,
abrindo, a pouco e pouco, espaço para a participação das mulheres na vida das
suas empresas. Assim, encontramos um número significativo de casos de
250 Homens de negócios e gestoras familiares
mulheres a trabalhar nas empresas, revelando as alterações históricas no conteúdo
da categoria social de mulher no âmbito destas grandes famílias.
É, portanto, necessário ter em conta que, independentemente do ideal
cultural veiculado em cada contexto social, não podemos pensar as categorias de
género como homogéneas na sua composição ou historicamente imutáveis.
Efectivamente, outras categorias como a idade, o estatuto social, o poder
económico, o grupo social de pertença, o local de residência e o momento
histórico da sua existência, por exemplo, promovem enormes diferenças entre
pessoas do mesmo género.99 Ser homem e mulher nestas famílias ligadas a
grandes empresas e pertencentes a este grupo de estatuto não é o mesmo que ser
homem ou mulher noutro grupo de estatuto. Da mesma maneira, não podemos
deixar de ter em conta que os conteúdos culturais das categorias sociais estão em
permanente transformação, reformulando-se através da acção social dos sujeitos
que os usam e ao longo do tempo. Assim, ser homem e mulher nestas famílias,
hoje em dia, não é a mesma coisa que tê-lo sido em meados deste século ou nos
anos setenta.
A diferente participação na vida familiar e profissional que encontrei entre
homens e mulheres destas famílias verifica-se na maioria dos contextos sociais de
elite (cf. Abner Cohen 1981, Ostrander 1984, Mcdonogh 1986, Marcus e Hall
1992, Douglass 1992, e Lave sd). Em todos os trabalhos etnográficos sobre elites,
antropólogos, sociólogos e historiadores têm encontrado uma divisão
relativamente mais rígida na diferenciação de categorias de género que afasta as
mulheres do mundo do trabalho profissional.
A ligação quase exclusiva das mulheres às actividades domésticas e
familiares está, todavia, longe de ser um valor específico deste grupo de estatuto.
99 Sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Ana Nunes de Almeida (1985) sobre
mulheres do Norte residentes em bairros clandestinos nos subúrbios de Lisboa, que trabalhavam às escondidas dos maridos para ajudar a sustentar a casa. Para não porem em causa o bom desempenho da tarefa dos seus homens, enquanto sustentadores da família, afirmam sistematicamente que não trabalham; Antónia Lima (1992) sobre a valorização simbólica atribuída na Madragoa às varinas que fazem um trabalho duro, e com características associadas à masculinidade; e de Miguel Vale de Almeida (1995) sobre a produção da masculinidade no contexto de uma vila alentejana.
Homens de negócios e gestoras familiares 251
Até há bem pouco tempo, esse princípio era reencontrável um pouco por toda a
sociedade ocidental. Só no final do século XIX e nos princípios do século XX se
iniciam, em Inglaterra e nos Estados Unidos da América, os primeiros
movimentos de reivindicação da participação das mulheres na vida política e da
igualdade de direitos entre homens e mulheres. Inicialmente, estes movimentos
circunscreveram-se a franjas muito restritas da sociedade. Só a partir da década de
sessenta tiveram uma adesão mais generalizada. Em Portugal, a expressão e o
impacto destes movimentos foi, até muito tarde particularmente reduzida,
sobretudo devido ao modelo de sociedade defendido e imposto pelo Estado
Novo.100
A divisão do trabalho por géneros, que define os homens como os
provedores do sustento da família e as mulheres como as responsáveis pelas
tarefas do lar, determina a conceptualização dicotómica da sociedade e inscreve as
mulheres no espaço privado, do familiar, do emocional e do natural – os laços
genealógicos – e os homens no espaço público, do trabalho, da racionalidade, do
interesse. A separação espacial, física e temporal da permanência dos indivíduos
nestes dois mundos, concebidos como separados, contribuiu para consolidar as
imagens culturais construídas socialmente sobre trabalho e família e que decalcam
a sexização destas dimensões da vida social – família e trabalho – para as
representações que se atribuem a cada uma destas categorias sociais de género.101
As primeiras e mais eficazes críticas à separação das esferas do trabalho e da
família surgiram a propósito da construção das categorias sociais de género e,
sobretudo, no quadro dos chamados "estudos feministas" que mostram a relação
entre ambas, chamando a atenção para o facto de os padrões e os tipos de
trabalho desempenhados pelas mulheres terem sido sempre fortemente
influenciados pela posição que estas ocupam no seio da família e pelos papéis que
100 As já referidas organizações para a educação moral, cívica e cristã das mulheres
portuguesas como boas mães – entre as quais se destacam a OMEN e a MFP – e as limitações das mulheres casadas ao exercício de determinadas profissões são disso um exemplo evidente (cf. Capítulo IV).
101 A afirmação de ramos disciplinares como a sociologia da família e a sociologia do trabalho tiveram também um papel decisivo no reforço da separação destas categorias com base em conteúdos sexuais.
252 Homens de negócios e gestoras familiares
lhes são culturalmente atribuídos (cf. Yanagisako e Collier 1991 e Holiday e Ram
1993). Sylvia Yanagisako e Jane Collier, num volume onde lançam as bases de
uma nova era de estudos, em que parentesco e género constituem um domínio
único de reflexão, defendem que o primeiro objectivo a ultrapassar é a falsa
dicotomia analítica entre os domínios "doméstico" e "político-jurídico" proposto
por Meyer Fortes, e retomado por Parsons, na divisão que promove entre família
e trabalho (cf. Yanagisako e Collier 1991).
As críticas em relação ao próprio conceito de trabalho são fundamentais para
perceber melhor as implicações deste problema na compreensão do contexto
social que analiso. As definições de trabalho são, frequentemente, demasiado
economicistas. Isto é: só se considera trabalho o conjunto de actividades
profissionais cujo desempenho é recompensado com um salário, excluindo todo o
tipo de actividades não remuneradas. Entre estas, encontramos tanto o
desempenho das tarefas domésticas – razão pela qual a grande maioria das
mulheres que não exercem nenhuma profissão dizem que “não trabalham” –
como as actividades de solidariedade social, ou de beneficência, desenvolvidas, em
particular, pelas mulheres destas grandes famílias.102 O que está em causa é,
102 Um exemplo dos efeitos do processo de imposição de conteúdos culturais das
categorias sociais de género, em Portugal, é dado por Sally Cole, no seu trabalho sobre uma aldeia de pescadores do Norte do país (1994). Na segunda metade dos anos sessenta, verificou-se uma entrada massiva de mulheres no mundo do trabalho fabril, abandonando o sector da pesca, onde até então concentravam as suas actividades diárias. Este movimento provocou inúmeras alterações na organização social da comunidade, nas suas unidades domésticas e no próprio conteúdo ideológico da categoria de género feminino. Apesar de, em termos reais, se basear numa perda de poder e autonomia por parte das mulheres, ao nível da sua participação na casa e na comunidade, e de acarretar para elas uma dupla jornada de trabalho até aí inexistente, esta mudança profissional significou, em termos simbólicos, um aumento do estatuto da mulher. Paradoxalmente, as mulheres que trabalham na fábrica definem-se como “donas de casa”, o que as coloca, em termos conceptuais, em igualdade com as mulheres da burguesia rural da região. A clara descoincidência entre a realidade (um duplo dia de trabalho assalariado e doméstico de umas e a dedicação exclusiva aos trabalhos domésticos de outras) e as categorias sociais ideologicamente construídas que aqui se verificam, revela-nos a importância das representações sociais na valorização e classificação da acção dos sujeitos. Até meados dos anos sessenta, as mulheres de Vila da Praia definiam-se como “trabalhadeiras” e tinham uma grande autonomia e poder de decisão e gestão no âmbito da sua unidade doméstica. A importância do seu estatuto no contexto da comunidade de pescadores era considerável e este era valorizado pelo trabalho que desenvolviam. Ao entrarem para o contexto industrial, as mulheres de Vila da Praia
Homens de negócios e gestoras familiares 253
portanto, o facto de essa definição de trabalho – que é em si mesmo uma palavra
polissémica – não permitir dar conta do empenho, investimento e, efectivamente,
do trabalho desenvolvido pelas pessoas que exercem estas actividades, em
particular, as actividades das mulheres das famílias estudadas.
Associado ao enviezamento que a utilização do conceito de trabalho
promove na análise das actividades realizadas pelas mulheres destas famílias,
devemos também ter em linha de conta os valores culturais através dos quais se
definem as categorias sociais de género. Na verdade, a valorização do ideal
agnático destas famílias empresariais, que defende que os homens da família
devem ser os sucessores nos principais lugares de gestão das empresas, origina
algumas tensões no âmbito do universo familiar, na medida em que a lei
portuguesa estabelece um tratamento igualitário entre homens e mulheres no que
respeita às transmissões intergeracionais. Assim, para agir de acordo com o ideal
de transmissão varonil nas empresas, as gerações controlante e declinante
deveriam transmitir um património familiar diferenciado a homens e mulheres das
gerações ascendentes. Porém, eles têm de garantir, simultaneamente, que ambos
recebem um património material de igual valor económico.
No entanto, não devemos circunscrever a reflexão a uma análise das
diferenças dos patrimónios que homens e mulheres recebem em termos
quantitativos. A forma como estas famílias conjugam as exigências legais e os seus
ideais de continuidade familiar, de modo a que só os homens se tornem
sucessores na liderança da empresa, leva a que as gerações controlante e
declinante consigam diferenciar os membros da geração ascendente. Tal
diferenciação é feita com base em transmissões patrimoniais distintas em termos
culturais e educacionais, mas equivalentes em termos económicos. Como defendi
anteriormente, só o facto de ocupar posições de destaque nas empresas já faz os
adoptam as categorias ideológicas adscritas ao sistema ideológico vigente do Estado Novo – a mulher como dona de casa e mãe – e percepcionam a troca de uma autonomia de facto por uma dependência construída como um aumento de estatuto que as equipara às donas de casa. Este exemplo remete-nos, de novo, para as implicações ideológicas, empiricamente enraizadas, do conceito de trabalho como algo que se refere exclusivamente ao exercício de actividades remuneradas.
254 Homens de negócios e gestoras familiares
homens mais ricos e mais poderosos que as mulheres, mesmo que estas tenham
recebido o mesmo capital que os primeiros. Ao contrário destes, as mulheres não
gerem o seu poder accionista nas empresas, pelo que também não têm condições
para o aumentar. Este é o mais significativo factor de distinção entre homens e
mulheres, pois é aquele que permite e aumenta a assimetria de poder entre ambos,
separando as suas esferas de acção social.
Uma parte significativa das diferenças entre as heranças que recebem os
homens e as mulheres destas grandes famílias resulta, sobretudo, dos processos
através dos quais uns e outras se constituem como pessoas – processos esses que
são claramente influenciados por uma grande variedade de bens e capitais não
materiais, transmitidos no âmbito da cumplicidade familiar do relacionamento
intergeracional. Isto é, a transmissão entre gerações dos bens que adquirem mais
peso na distinção entre os membros da geração ascendente ocorre em vida dos
seus progenitores e não depois da sua morte.103
De entre estes bens é de destacar a educação dos mais novos. Num
contexto social que assenta em valores e expectativas diferentes para homens e
mulheres, a educação de rapazes e raparigas é orientada de forma diferenciada, o
que tem óbvias consequências na forma como uns e outras se constituem como
pessoas (cf. Capítulo II). Estas diferenças verificam-se, por um lado, no âmbito da
educação “informal”: o ambiente familiar e social em que as crianças crescem e se
formam como pessoas, incorporando os valores, gostos, regras e relações de
intersubjectividade que predominam na comunidade a que pertencem. Por outro
103 Num trabalho de investigação sobre formas de herança na sociedade inglesa
contemporânea, Janet Finch mostra que, num momento histórico em que a esperança de vida dos indivíduos é muito elevada, não é esperável que as heranças patrimoniais que se possam receber por morte dos pais tenham muita influência na alteração das condições de vida daqueles que as recebem (cf. Finch 1996). Seguindo esta mesma linha de argumentação, George Marcus salienta a importância das transmissões inter vivos na formação dos membros mais jovens das famílias da elite americana, na sua diferenciação dos outros membros da sua geração (Marcus sd).
Esta questão pode, também, ser ilustrada através do caso dos camponeses do Alto Minho, em que as mulheres, aquelas que tomam conta dos pais na velhice, herdam os bens de maior peso identitário e valor representacional, pois são elas que ficam com as casas. O peso das transmissões inter vivos levadas a cabo no âmbito da convivência diária ao longo da vida familiar são aqui decisivos para a consolidação de uma identidade familiar nos homens (João Pina Cabral 1989).
Homens de negócios e gestoras familiares 255
lado, elas encontram-se também ao nível da educação “formal”: baseado na
selecção de escolas cujos projectos educativos e de formação moral sejam
considerados adequados para a família. Assim, educar jovens raparigas nos valores
culturais que associam homens aos negócios e mulheres à família é de central
importância para este grupo de estatuto, pois constituirá a base sobre a qual uns e
outros aceitarão os papéis que se espera que desempenhem no projecto colectivo
do grupo familiar.
Excluir as mulheres da possibilidade de aceder a uma participação activa nas
empresas é, portanto, uma das formas mais eficazes de reproduzir a diferenciação
entre grupos de género no âmbito destas famílias. De entre os vários bens e
símbolos que as gerações mais novas recebem dos seus familiares, a herança mais
importante é aquela que liga à propriedade a autoridade sobre a empresa. Ou seja,
aquela que permite estar integrado na vida activa das empresas e ocupar os seus
lugares de topo. Isto é, se um grupo de irmãos recebe uma herança de
participações na empresa quantitativamente igual, mas uns estão ligados à sua
gestão e outros não, estes últimos terão menos probabilidade de reproduzir e
aumentar o património familiar que herdaram que os primeiros. Quanto mais
sucesso tiver a empresa mais renderão as acções de ambos. Mas, com o êxito da
firma maiores serão, também, os salários, regalias e investimentos daqueles que
nela trabalham. Por seu lado, os outros apenas recebem os rendimentos da sua
participação herdada. No fim da vida os filhos de uns e outros receberão
consequentemente heranças muito desiguais. Os filhos dos primeiros receberão o
capital herdado inicialmente mais todo o que o seu pai acumulou enquanto gestor
de sucesso das empresas. Os filhos dos últimos receberam o capital inicial e
apenas os lucros dele. Em suma, a herança, que é um acontecimento sincrónico,
pode ser quantitativamente igualitária, mas as formas diversas como se produz
têm efeitos altamente diferenciadores a nível dos processos de sucessão, que são
diacrónicos.
Por outro lado, não podemos esquecer que, como referi anteriormente, há
formas absolutamente legais de promover distinções quantitativas entre o que
cada herdeiro recebe. A utilização da quota disponível é uma estratégia possível
256 Homens de negócios e gestoras familiares
para beneficiar uns em detrimento de outros. Este foi o caso de R, que deixou
todas as acções aos netos, saltando a geração das filhas. Assim, os netos a partir
dos vinte e um anos começaram a receber os dividendos das acções. Mi, uma das
suas netas contou-me que foi com esse dinheiro que pode não trabalhar até 1974,
estando já casada e com quatro filhos pequenos. Viviam com esta renda e com o
ordenado do marido – que trabalhava numa empresa do grupo económico da
família, que tinha como presidente do conselho de administração o pai de Mi.
JoMa utilizou outra estratégia de diferenciação. Em detrimento das filhas,
JoMa alienou uma valiosa propriedade imobiliária à empresa, gerida e detida
maioritariamente pelos seus filhos varões. Assim, ao excluir a propriedade do
acervo dos seus bens pessoais, JoMa reduziu significativamente a herança a que
teriam direito as suas filhas, promovendo, de uma forma absolutamente legal, uma
desigualdade significativa entre os seus herdeiros varões e femininos.
Em resultado do investimento numa educação diferenciada, a distinção de
percursos de vida e de actividades quotidianas entre homens e mulheres destas
grandes famílias é muito óbvia desde a infância. Tal foi-me recorrentemente
revelado nas entrevistas que realizei durante o trabalho de campo. Um tema
frequentemente abordado pelas mulheres era a forma como, quando eram novas,
ajudavam as suas mães ou avós a organizar chás ou jantares importantes,
aprendendo, assim, que loiças usar em cada momento, que toalha é mais
apropriada para a ocasião ou onde se devem sentar as pessoas à mesa.
A centralidade que os temas sobre a vida da família e dos seus membros
ocupam nas conversas destas mulheres está relacionada com a importância que
essa dimensão tem nas suas vidas.104 Por esta razão, os meus esforços para
conduzir as conversas com as senhoras destas grandes famílias para a vida das
empresas de que são accionistas foram, na maior parte das vezes, desviados de
104 A propósito desta questão, vale a pena deixar claro que o facto de eu ser mulher fez
de mim um interlocutor aceitável para falar sobre “coisas de família”, pois recolher genealogias e histórias de família é visto como uma actividade própria de uma mulher. Tendo contribuído para legitimar o meu interesse sobre o tema, creio que o facto de eu ser mulher foi, também, importante para a relativa facilidade com que estabeleci contactos com as mulheres das diversas famílias e para ter conseguido falar com elas sobre esta dimensão tão importante das suas vidas.
Homens de negócios e gestoras familiares 257
forma hábil para outras direcções. A vida das empresas faz parte de um mundo do
qual estão arredadas e sobre o qual não queriam conversar comigo. Algo de
paralelo ocorre nas conversas com os homens, cujas entrevistas se centraram,
quase exclusivamente, em torno de assuntos relacionados com a história da
empresa, estando ausentes as questões sobre a família.
O facto de durante as entrevistas os homens falarem preferencialmente da
história da empresa e de as mulheres dedicarem mais tempo a falar sobre questões
familiares é, em si mesmo, algo que revela as expectativas que este grupo social
investe numa e outra categoria de género.105 Devemos, pois analisar com cuidado
a afirmação que os negócios são uma coisa de homens e as mulheres nada têm
que ver com a empresa.
Os meus interlocutores masculinos e femininos falavam
predominantemente sobre determinados temas. Tal não tem que ver,
exclusivamente, com o facto de não os conhecerem. Na verdade, por várias vezes
pude verificar que estas mulheres sabiam contar a história da empresa, pelo
menos dos seus momentos mais importantes, tão bem como os homens: Da
mesma forma, verifiquei várias vezes que estes sabiam, tão bem quanto as
primeiras contar os episódios fulcrais da história da sua família.
Tanto as mulheres como os homens com quem falei mostram deter um
amplo conjunto de conhecimentos sobre o universo de acção da categoria de
género ao qual não pertencem. Contudo, nem umas nem outros se mostravam
dispostos a falar sobre esse assunto. Esta situação significa que estamos perante
algo muito mais relevante que um conjunto de saberes específico a cada categoria
de género e que tem que ver com a constituição da pessoa como um todo. O que
está ausente em cada um deles é a disposição para agir sobre esse saber específico.
Fazê-lo significaria pôr em causa a sua própria identidade social. Uma senhora a
falar sobre assuntos da empresa iria contra a forma ideal como a agencialidade
quotidiana das mulheres deve expressar e simbolizar a sua identidade social. Da
105 O próprio local onde decorrem os encontros ilustrava bem esta diferença,
reificando-a. As entrevistas com os homens foram sempre realizadas nas empresas ou em restaurantes. As entrevistas com as mulheres tiveram lugar nas suas próprias casas, num ambiente familiar mais íntimo.
258 Homens de negócios e gestoras familiares
mesma forma, os homens não poderiam falar sobre organização de jantares,
toalhas e receitas, sem pôr em causa as suas formas mais essenciais de ser pessoa
social.
Os tema falados e os assuntos silenciados mostram, portanto, que estamos
perante diferenças que correspondem à legitimação de conhecimentos e práticas
específicas, que dão azo à constituição de pessoas diferentes que terão disposições
para distintos tipos de agencialidade. As diferenças que encontramos entre
homens e mulheres destas grandes famílias empresariais não estão, portanto, nos
saberes que cada um detém. Elas encontram-se, sobretudo, na forma como as
diferentes naturezas destes sujeitos sociais fundamentam práticas distintas que
criam saberes corporizados – embodied – associados a categorias de género.
É por essa razão que rapazes e raparigas são, desde pequenos, tratados de
forma diferente, pois os seus familiares estão empenhados em que eles venham a
desempenhar papéis diferentes nos destinos das suas famílias e das suas empresas.
Se trabalhar na empresa é o primeiro passo para poder, eventualmente, chegar a
posições de liderança na empresa familiar, excluir as mulheres da possibilidade de
o fazer – através dos processos pelos quais se constituirão como pessoas – é a
forma mais eficaz de garantir que elas não serão potenciais sucessores na liderança
das empresas.
O caso de N é ilustrativo desta questão. Numa entrevista em que falávamos
sobre esta questão, N afirmou:
Este é um país de machistas, pelo que o meu contributo para o Grupo é
exclusivamente como relações públicas, e apenas a um nível informal. O pai
adorava-me e como eu era a filha mais próxima dele, preparou-me para lhe
suceder, de tal maneira que, em Paris, obrigava-me a assistir às conversas que
tinha com os banqueiros com quem trabalhava. Eu não percebia nada mas
fiquei a conhecer toda a gente, o que foi muito útil a seguir ao 25 de Abril (N).
Esta afirmação de N ilustra claramente o argumento que tenho vindo a
defender. Efectivamente, se num primeiro momento se destaca a tentativa feita
pelo pai de N para contrariar a expectativa de uma vida marcadamente familiar
para a sua filha, um segundo olhar sobre este depoimento mostra que, mesmo
Homens de negócios e gestoras familiares 259
quando se tenta alterar essa participação através de uma diferente preparação dos
elementos femininos das novas gerações, o ambiente predominantemente
masculino do dia-a-dia dos negócios acaba por se sobrepor, condicionando a
participação das mulheres. Apesar de deter um conjunto de conhecimentos
específicos que lhe permitiriam uma participação activa na vida das empresas, as
disposições culturais que definem o seu género de pertença em nada favoreciam a
entrada de N nesse universo de acção. Como este caso mostra, a distinção entre
percursos sociais de homens e mulheres neste contexto social tem mais a ver com
a possibilidade de concretizar determinadas práticas do que com os saberes que as
enformam. Tem a ver com um embodiment dos saberes que, essencializando-se nas
categorias de género, produz uma diferenciação profunda entre homens e
mulheres.
Note-se, porém, que uma situação como a de N ocorria, sobretudo, no
período a que se reporta esta afirmação: Portugal antes de 1974. Mais à frente
neste capítulo retomarei esta questão para analisar as alterações verificadas no
âmbito destas famílias no período posterior à revolução de 1974.
A separação de papéis e expectativas entre homens e mulheres corresponde
a diferentes conteúdos das categorias de género predominantes nesta comunidade.
Estas têm, no entanto, significados diferentes num e outro período. Neste
sentido, posso adiantar desde já que o facto de as mulheres destas famílias
continuarem, actualmente, a definir a sua identidade e os seus projectos de vida
sobretudo por relação à sua família coloca-as, no quadro da sociedade portuguesa,
numa situação minoritária, o que, por sua vez, confirma, reproduz e legitima a sua
pertença a um grupo de estatuto particular.
260 Homens de negócios e gestoras familiares
2. Formar homens como gestores:
produzir a liderança
As formas de relacionamento familiar que orientam os rapazes para virem a
assumir participações activas na vida das empresas são activadas desde muito
cedo.
Quando o meu pai construiu os depósitos do Porto Brandão, nós [eu e o meu
irmão] íamos todos os fins-de-semana com ele visitar a obra. Íamos de barco.
Para nós era uma festa. Para ele era uma maneira de nos ter ao pé dele, a ver o
crescimento da Sonapa (Pq).
A partir dos meus treze anos passava um mês de cada período de férias de
Verão a trabalhar na serralharia do estaleiro ou na carpintaria, enquanto durou
a obra de construção da barragem de Castelo de Bode (J).
Quando éramos pequenos, durante os três meses de férias de Verão, eu e os
meus irmãos íamos para África trabalhar nas empresas da família (B).
Durante as férias brincávamos nas fábricas e passávamos a vida a fazer
patuscadas nas empresas. Estávamos muito envolvidos na vida quotidiana das
empresas (ZM).
Como mostram estes excertos de entrevistas, os momentos informais de
aprendizagem contribuíam de uma forma decisiva para criar laços entre os jovens
e as empresas da família, iniciando, assim, o processo através do qual eles serão
“herdados pela empresa” (vide Capítulo III): captados para assegurar a
continuidade da organização. A sua inserção progressiva e silenciosa enreda-os
quase inevitavelmente, à medida que vão crescendo. As transmissões de
qualidades familiares que estimulam as aptidões empresariais são, como podemos
ver, accionadas num mundo onde a participação das mulheres é muito reduzida.
O progressivo envolvimento dos rapazes na vida das empresas culmina
frequentemente com a admissão de muitos deles como trabalhadores, dando
início a percursos que conduzirão alguns a lugares de topo da organização e, um
Homens de negócios e gestoras familiares 261
deles, à presidência. Tal significa, portanto, que nestas famílias e nestas empresas,
nem todos os homens são iguais. Um de entre eles será o líder do grupo
económico.
No âmbito deste grupo social, verifica-se uma tendência para que o filho
mais velho suceda ao seu pai na presidência, o que não é exclusivo de Portugal. A
propósito das principais formas de promover a sucessão aos cargos mais
importantes das empresas familiares americanas, Gersick afirma o seguinte:
Historicamente, as famílias com empresas que têm tradições fortes têm-se
apoiado na primogenitura, na hierarquia natural da idade. Na escolha dos
líderes da geração seguinte, a primogenitura é o pressuposto mais comum. Isto
tem um poderoso efeito nas dinâmicas familiares. Mas a primogenitura é uma
regra arbitrária, baseada em valores familiares sobre género e idade (Gersick et
al. 1997: 78).
Mostrei anteriormente que, em consequência da adopção de um modo
aristocrático de organização familiar, os membros destas famílias defendem que o
“sangue” é um critério importante para estabelecer a pertença à família, pela
partilha de uma “essência” comum. E é através desta substância que se adquire o
direito a aceder às posições de topo, tanto na família como na empresa.
No entanto, este critério de estabelecimento de uma pertença natural ao
grupo não é suficiente. Para além deles, outros factores assumem importância,
pois apenas alguns dos que partilham a substância conseguirão chegar a posições
de liderança. De entre estes factores destacam-se as alianças familiares, o respeito
e a confiança que cada pessoa adquire, a formação profissional e a competência
que demonstram nas suas actividades empresariais. Para assumir uma posição de
liderança na empresa familiar os homens têm de se distinguir entre os seus
parentes, que estão igualmente habilitados a ocupar esses lugares – por via da sua
pertença familiar –, através de uma cuidadosa gestão das suas relações pessoais no
contexto familiar e, o que é mais importante, pela sua competência profissional.
Vejamos como se concretizaram estas transmissões no âmbito das famílias
com que trabalhei.
262 Homens de negócios e gestoras familiares
Quadro 20: Sucessão na presidência das empresas da família Espírito Santo
Homens de negócios e gestoras familiares 263
264 Homens de negócios e gestoras familiares
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Homens de negócios e gestoras familiares 265
266 Homens de negócios e gestoras familiares
Homens de negócios e gestoras familiares 267
Quadro 26
Sucessão na presidência no Grupo da família Vaz Guedes
Quadro 25 Sucessão na presidência das empresas da família Queiroz Pereira
268 Homens de negócios e gestoras familiares
A análise das linhas de sucessão na presidência das empresas, ilustrada nos
quadros anteriores, torna visíveis, em primeiro lugar, as diferenças nos conteúdos
das categorias de género. Por sua vez, estas revelam a dimensão prática da
aplicação do ideal segundo o qual a sucessão nos cargos de topo deve ter lugar
por via de relações agnáticas.
Como podemos ver, em todos os casos estudados, há uma tendência
generalizada para que membros da família próxima, sobretudo os filhos,
privilegiando a ordem de nascimento, sucedam na presidência destas grandes
empresa familiares em Portugal. Apesar de estar sempre presente, o ideal da
primogenitura não é vinculativo. Neste sentido, ele é utilizado de acordo com as
situações concretas em que a família se encontra nos momentos em que ocorre a
sucessão. Assim, são os potenciais sucessores disponíveis nesse momento que
condicionam a forma como tal ideal se pode, ou não, aplicar. O que as diversas
situações apresentadas nos mostram é que a sucessão no âmbito destas grandes
empresas familiares é sempre agnática e que, apesar de os residentes tentarem
tornar os seus filhos sucessores mais habilitados que os outros, o elemento
masculino mais bem preparado e que reúna apoios entre os principais accionistas
ocupará o lugar.
Estas famílias tentam, portanto, conjugar as suas tradições familiares –
nomeadamente a valorização simbólica das relações agnáticas e o ideal da
primogenitura – com as condições de existência de um sistema social que defende
a igualdade de oportunidades e as exigências legais de um sistema de herança
tendencialmente igualitário.
Como preparar, então, os filhos varões, e em particular o filho mais velho,
para assumir posições de liderança nas empresas? São seguidas diversas estratégias
que criam um conjunto significativo de diferenças entre iguais de forma a, por um
lado, preservar os ideais familiares sobre disposições de acção e transmissões
patrimoniais associadas a categorias de género e, por outro, agir em conformidade
com a lei em vigor. Este processo é decisivo na prossecução dos ideais de
sucessão no âmbito destas grandes famílias ligadas a empresas.
Homens de negócios e gestoras familiares 269
Não estamos perante um simples processo de transmissão de acções,
posições e fortunas para uma pessoa particular da geração seguinte, onde a
continuidade é a reprodução do passado. Trata-se de um processo complexo,
onde as personagens mais importantes pertencem à geração emergente e que se
estão a preparar para aceder a importantes posições na empresa. Estamos, pois,
perante um processo em constituição, onde a nova conjuntura é construída por
alguns membros desta geração emergente. As suas acções e as estratégias que
desenvolvem utilizam referências e valores do passado no contexto de novas
necessidades e exigência, articulando-os com valores do presente. Aqueles que
conseguem fazê-lo com a aprovação e confiança da família irão tornar-se os
sucessores na liderança da empresa e da família.
Há uma outra importante fonte de diferenciação entre parentes masculinos
no âmbito destas grandes empresas familiares e que tem um significado
particularmente relevante para o presente trabalho. Em consequência das
imposições ideológicas que afastam as mulheres accionistas das actividades das
suas empresas, verifica-se, com frequência, que estas entregam os seus bens aos
maridos, ou irmãos – no caso de não serem casadas – para que estes os possam
gerir da maneira que acharem mais adequada.
A mãe nunca se envolveu nos negócios da família. Sempre foi o pai que tratou
de tudo, mesmo das coisas que eram só dela. A mãe só foi a algumas
assembleias gerais da S [a holding das empresas da família dela] depois de o pai
ter morrido e, desde então, vai também à reunião anual do Grupo [da família
do pai]. Essa é que é a verdadeira reunião de família. É a única a que vão as
senhoras (MF).
A verdade é que as mulheres são as pessoas que estão mais dependentes dos
rendimentos. Antes, tudo isto era muito paternalista, as mulheres iam às
Assembleias Gerais pelo espírito familiar. E no fim do ano recebiam os
rendimentos das suas acções como uma espécie de prémio (BB).
Como fica bem expresso nesta última afirmação, através da transferência de
poderes das mulheres accionistas para os homens, estes aumentam o seu poder
270 Homens de negócios e gestoras familiares
nas empresas, excluindo-as cada vez mais desta esfera de acção. Mas, como afirma
Sherry Ortner:
as noções culturais e as práticas relacionadas com o “prestígio” parecem
fornecer as mais poderosas chaves interpretativas para compreender a
ordenação social e cultural do género. Há uma única razão para isto: o género
é, essencialmente, um sistema de prestígio. O género é um sistema de discursos
e práticas que constrói o feminino e o masculino não apenas em termos de
papéis e significados diferenciados, mas em termos de valor e prestígio
distintos (Ortner 1990: 41).
Assim, esta prática torna, simultaneamente, as mulheres ainda mais dependentes
dos homens na definição da sua posição e identidade social.106
Quando não há herdeiros masculinos na família para dar continuidade aos
negócios, coloca-se um problema ao ramo da família confrontado com essa
situação, devido ao peso atribuído à valorização simbólica da transmissão por via
agnática. A solução mais frequentemente adoptada é semelhante à que
encontramos para a transmissão dos nomes de família. Numa situação de recurso,
quando as participações no capital social são herdadas por mulheres, os seus
maridos poderão assumir o papel activo na empresa, em representação desse
poder accionista. Nalgumas famílias, a incorporação dos afins não constitui um
problema sendo até algo desejável, como mostrei anteriormente. Um elemento da
terceira geração que só tinha filhas recorreu aos seus genros para manter controlo
sobre lugares centrais das empresas da família.
Esta é também a situação nas empresas da família Mendes Godinho. Tanto
a presidência como todos os cargos de gestão e decisão sempre foram ocupados
por membros da família. Não deixa de ser curioso verificar que esses cargos
106 Segundo Susan Ostrander, o elemento central que permite a continuidade da
subordinação e deferência das mulheres em relação aos homens deste grupo de estatuto é a posição económica e política que ambos ocupam. Neste momento histórico, para que as mulheres conseguissem alterar a sua posição teriam de desafiar o poder destes homens que dominam os assuntos políticos e económicos de toda a sociedade. Eles sabem como governar e são especialistas no exercício do poder e não querem ser desafiados, nem como chefes de família nem nas suas posições de chefes das instituições económicas da sociedade (Ostrander 1984: 151).
Homens de negócios e gestoras familiares 271
foram sempre desempenhados por homens, apesar de, ao longo da história deste
grupo, uma parte significativa das acções ter sido propriedade das mulheres da
família. Apesar de as mulheres serem as accionistas, eram os homens, seus irmãos,
tios, maridos ou cunhados, que assumiam o papel activo nas empresas.
Dos quarenta e oito homens que constituem o universo total desta família,
trinta e um trabalharam em empresas do grupo (ver quadro 27).
Se tomarmos em conta apenas as duas primeiras gerações, os dados são
ainda mais impressionantes. Dos vinte homens da família, quinze trabalharam nas
empresas do grupo. Dos que faltam, cinco são maridos de sócias, pelo que não
tinham originariamente um vínculo à empresa. Os únicos membros masculinos da
família que não tiveram qualquer participação na empresa venderam as suas
quotas logo após a morte de seu pai – o fundador da sociedade. Por seu lado, as
mulheres desta família estão excluídas da gestão e do controlo dos destinos desta
empresa.
272 Homens de negócios e gestoras familiares
Homens de negócios e gestoras familiares 273
Noutras famílias, porém, encontrei situações bastante diferentes, casos em que a
integração dos parentes por afinidade era algo que se queria evitar para não correr
riscos de surgirem eventuais problemas (cf. Capítulo V). É o caso do actual
presidente de uma destas empresas que combinou com o presidente da holding
familiar que só entrariam para o grupo parentes que pertencessem à família por
laços de sangue.
No entanto, vale a pena notar que, em qualquer caso, estes afins masculinos
têm sempre um estatuto diferente dos herdeiros “legítimos” – daqueles que
partilham a substância da família simbolizada no seu apelido. Apesar de poderem
ocupar os cargos importantes das empresas, em resultado das competências
profissionais demonstradas e do poder accionista que representam, é difícil que
cheguem a ocupar o lugar máximo da empresa, a presidência. Veja-se, por
exemplo, o caso de CR que apresentei anteriormente. Estes afins ingressam nas
empresas, como solução de recurso nas situações em que não há descendentes
varões, em virtude das restrições impostas pelas categorias sociais de género que
impedem as mulheres de trabalharem, pelo que não terão, em regra, um estatuto
muito diferente dos consanguíneos.
No entanto, no âmbito das grandes empresas familiares os homens não são
todos iguais. A propósito do caso da família Vaz Guedes, vale a pena ir um pouco
mais longe na análise, para evitar cair em deslizes a-historicistas que enviesem a
compreensão dos factos. Até finais dos anos oitenta, vários membros por
afinidade desta família tiveram uma participação activa nos negócios (ver Quadro
29).
A restrição aos afins só foi “imposta” nesta família num momento social e
histórico em que algumas mulheres da família começam a trabalhar nas empresas
do grupo. No entanto, as mudanças que entretanto ocorreram ao nível da
sociedade portuguesa tiveram um efeito visível na participação dos membros
desta família nas empresas, sobretudo, ao nível da participação dos afins. Hoje em
dia, as mulheres desta família começam a trabalhar nas empresas, desde que
cumpram os critérios de competência profissional exigidos aos homens. Neste
sentido, tanto homens como mulheres poderão cumprir o ideal primordial da
274 Homens de negócios e gestoras familiares
família: a continuidade da empresa ser assegurada por membros legítimos da
família, que partilham a sua substância e os símbolos da sua identidade. Pode-se
agora deixar de recorrer aos afins, usados como substitutos das accionistas em
situações em que estas não podiam trabalhar nas empresas.107
Quadro 29
Participação dos familiares nas empresas do Grupo Somague
Este exemplo chama atenção para algo sobre o que vale a pena reflectir. No
momento histórico em que as diferenças em termos de preparação e desempenho
profissional entre homens e mulheres tende a esbater-se no âmbito da sociedade
107 Adriana Piscitelli mostra que, no Brasil, esta lógica de parentesco serve precisamente
de base para legitimar a ascensão de algumas mulheres aos mais altos e cobiçados lugares das empresas familiares. A presença de mulheres na gestão das empresas desafia a lógica agnática predominante nestas empresas. No entanto, a transformação que a entrada destas mulheres implica está associada à selecção de sucessores baseada no mérito. Independentemente do seu género, estas mulheres devem possuir o conjunto de atributos necessários ao desempenho dos cargos (Piscitelli 1999: 233). A inclusão de mulheres na alta administração das empresas é uma expressão de modernização “análoga à profissionalização”, pois nenhuma delas elimina a importância dos laços de sangue nessas empresas, embora ambas remetam para a introdução de elementos de modernidade, para a introdução de critérios racionais, ligados ao mérito, no universo das famílias empresariais. No seu entender, os conteúdos culturais associados a uma boa gestão são andrógenos: assentam nas capacidades de desempenho profissional dos indivíduos, pelo que podem ser corporizados por homens ou mulheres (idem: 228 e 232).
Homens de negócios e gestoras familiares 275
portuguesa, esta família aproveita essa situação com vista à concretização do seu
ideal de continuidade e unidade familiar, mesmo que para tal tenha de pôr de lado
a aplicação dos princípios agnáticos que defendia. Tal como mostrei no caso da
transmissão de nomes de família, quando o objectivo primordial é cumprir a
continuidade podem usar-se estratégias de mediação simbólica de recurso que
servirão para o atingir.
3. Ser uma Senhora: a formação de
“gestoras familiares”
Ainda hoje poucas são as mulheres destas famílias que exercem uma profissão. O
principal contributo das mulheres para o projecto empresarial familiar é a sua
dedicação à família, à educação dos filhos, à manutenção das relações familiares
mais alargadas, à preparação dos acontecimentos sociais em que estão envolvidos
profissional ou pessoalmente, os elementos da família.
“Não, eu não trabalho. Eu sou gestora familiar” (To). Foi desta forma que
uma senhora de quarenta e dois anos, mãe de quatro filhos, se apresentou quando
a conheci em casa de sua mãe. Esta categoria de “gestora familiar” é, de facto, um
termo muito apropriado para caracterizar as mulheres destas famílias que se
dedicam em exclusividade à causa familiar. Muito mais adequado que os termos
“doméstica” ou “dona de casa”, habitualmente usados para descrever a situação,
porque não tem implícita a ideia que estas mulheres não trabalham, ou que têm uma
vida de lazer. Pelo contrário, através da categoria de gestora familiar fica claro que
estas mulheres desempenham, efectivamente, actividades importantes na
organização da vida das suas famílias.
276 Homens de negócios e gestoras familiares
Uma vez que, na idade adulta, as mulheres destas grandes famílias tenderão
a estar arredadas de uma participação activa na vida das empresas de que são
accionistas, a sua educação escolar não era, pelo menos até 1974, muito
prolongada. A escolarização da maioria das raparigas destas famílias terminava no
liceu, não incluindo um nível de ensino superior. A educação era completada –
normalmente em casa e com professores particulares de línguas e piano – com a
aprendizagem dos saberes que os seus pais julgavam necessários para que elas
viessem a ser Senhoras de sociedade, que casassem e tivessem filhos.
As minhas irmãs não estudaram muito. Fizeram o liceu e depois casaram-se e,
como era natural na época, assumiram as suas funções e actividades de
mulheres casadas de sociedade. Só depois do pai morrer, em 1991, é que me
vieram pedir ao irmão mais velho para terem alguma actividade nas empresas
da família. Deram-lhes um lugar na administração da S a holding da família que
engloba as várias empresas que detém maioritariamente onde fazem sobretudo
gestão de prédios e das coisas imobiliárias. Tivemos de lhes arranjar actividades
que não fossem muito especializadas, onde elas pudessem entrar sem grande
dificuldade (MF).
O exemplo do percurso escolar de IR revela, particularmente bem, as
expectativas em relação ao percurso de vida das mulheres destas famílias de elite,
afastando-as do mundo dos negócios familiares. IR fez o curso de economia no
Instituto Superior de Economia e Finanças de Lisboa – foi, aliás, das primeiras
mulheres portuguesas a fazê-lo –, tal como os seus irmãos que presidem
actualmente à empresa da família. No entanto, IR nunca exerceu uma profissão
ligada à licenciatura que tirou, nem nunca participou na vida das várias empresas
de que é sócia. Casou e sempre acompanhou o marido, médico, nas suas várias
colocações no país. Mais tarde, o marido começou a trabalhar nas empresas do pai
de IR, tendo mesmo chegado a presidir a uma das mais importantes. Na família
de IR, a separação das tarefas masculinas e femininas no projecto familiar em que
todos estão envolvidos era muito clara.
Homens de negócios e gestoras familiares 277
Só a partir de finais dos anos setenta começamos a encontrar mulheres
accionistas a trabalhar nas empresas da sua família. Normalmente, no entanto,
ocupam posições de pouca responsabilidade. O percurso escolar de Mi enquadra-
se, também, no ideal de educação dos elementos femininos destas famílias.
Quando era nova, Mi queria estudar e ir para a universidade, mas os seus pais
tinham ideias muito claras sobre o que deviam aprender as raparigas da sua
condição social. Ela devia preparar-se para ser uma boa esposa, com um vasto e
sólido background cultural, para ser uma anfitriã interessante e educada para as
necessidades sociais do seu futuro marido. Assim, foi com as suas irmãs fazer o
liceu para um colégio de freiras, em Brighton, onde já tinham andado a sua mãe e
as suas tias. Perante a sua insistência em prosseguir os estudos, conseguiu
autorização para ir para Florença estudar história de arte num colégio onde
conheceu muitas raparigas da sua idade, que pertenciam à elite financeira e social
europeia e com as quais ainda hoje mantém boas relações.
Esta senhora é, no entanto, uma excepção. A maior parte das mulheres
destas famílias não evidencia qualquer desejo por adquirir conhecimentos
profissionais, ou de ter uma ocupação remunerada nas empresas familiares. Sendo
socializadas no meio de valores centrados no patriarcalismo e na autoridade
masculina108, elas acabam por ser as primeiras a defender a importância do seu
papel exclusivamente familiar, pois “os seus desejos são moldados pelas
representações ideológicas dominantes sobre o género” (Yanagisako 1991: 334).
Enquanto dos homens se espera um bom desempenho profissional, uma boa
gestão das suas empresas, o principal e fundamental contributo destas mulheres é
manter a sua família “saudável”, tanto a sua família conjugal como o seu universo
de parentes próximos e tomar conta das suas casas, a imagem pública e visível do
seu prestígio colectivo, onde mantêm contactos sociais com as mais prestigiadas
108 Veja-se, a título de exemplo, a afirmação que uma entrevistada fez a este respeito:
“Antigamente todos nos aconselhávamos com o pai. Quando ele morreu foi o meu irmão MR que ficou a substituí-lo. Depois de ele ter morrido, e havia de ver o desgosto que todos tiveram, até os sobrinhos, mesmo os mais novinhos, todos a chorar tanto. Quando o MR morreu, foi o A que passou a desempenhar esse papel, quase de “pai”. Toda a gente ia ter com ele. Agora é com o Z, apesar de ele ser muito mais novo que eu. Lá vamos todos. Agora ele é que nos aconselha a todos. É ele que sabe” (Me).
278 Homens de negócios e gestoras familiares
famílias do mundo financeiro nacional e internacional. Neste grupo social, as
mulheres que adquirem prestígio são aquelas que conseguem formar famílias
perfeitas, as que são cultas, simpáticas e boas anfitriãs. Estes são os elementos que
definem o que é ser “uma Senhora”.
A importância da formação das mulheres destas famílias como “senhoras”
pode ver-se na atenção e no cuidado que é dedicado à entrada das raparigas na
vida social das suas famílias, celebrada através de faustosos bailes de “debute”,
quando fazem dezasseis anos. Trata-se de um momento altamente ritualizado,
sem correspondência na vida dos rapazes.
Os bailes de debute foram, até 1974, importantíssimos momentos na vida
social do conjunto das “boas famílias” que constituiam a elite lisboeta. Por
ocasião da apresentação das suas filhas debutantes à sociedade – ao grupo das
famílias que constituíam a sua comunidade de pertença –, as famílias mais
prestigiadas de Lisboa organizavam grandes bailes, grandes acontecimentos
sociais em que abriam as suas casas às outras famílias. O baile do debute era o
momento em que as famílias apresentavam à sociedade um novo elemento.
Simultaneamente, era o momento ritual em que a sociedade aceitava a nova
Senhora, como um elemento de pleno direito da comunidade de práticas e valores
que constitui.
Primeiro debutei em casa do Alfredo da Silva com a neta, a Titina, que era da
minha idade. Mas, depois debutei em casa dos meus pais no Paço do Lumiar
com a Md (irmã) e a Mc (prima). Estavam aí umas quatrocentas pessoas.
Ainda gostei mais desta festa do que da primeira (MaJ).
O meu primeiro baile, o meu baile de debute foi na quinta. Quem tinha casas
grandes para dar o baile organizava e nele debutavam todas as meninas de
dezasseis anos, filhas de famílias amigas. Para o meu debute vieram os condes
de Paris, que nessa altura viviam em Sintra e eram muito amigos da nossa
família. A filha mais velha deles também debutou comigo, tal como as filhas
dos embaixadores da Bélgica, debutou também a MeC, a MaJL, a TaS.
Estavam também presentes os condes de Barcelona e o Rei de Itália. Para o
baile havia uma decoração especial. As debutantes entravam depois do baile já
Homens de negócios e gestoras familiares 279
ter começado. Descíamos as escadas de braço dado com os pais, com passos
ensaiados previamente. Depois tocava uma valsa que era só para nós, para
dançarmos com os pais (Me).
Para além de apresentarem à sociedade os novos elementos deste grupo
social, os bailes de “debute” eram, também, momentos fundamentais de
reactualização das relações sociais destas famílias e da sua reprodução enquanto
grupo social. Estes bailes foram interrompidos a seguir a 1974. Porém, de há uns
anos a esta data, voltaram a realizar-se.
Há, portanto, um longo processo de aprendizagem para se ser “uma
Senhora”, que decorre, sobretudo, no âmbito das vivências familiares. Para se ser
considerada uma “verdadeira Senhora”, há que ser fiel aos símbolos culturais que
assim a definem neste contexto e não àqueles que valorizam os homens. Ser uma
boa profissional não seria a característica mais adequada para valorizar uma
verdadeira senhora. Pelo contrário, as qualidades femininas valorizadas
positivamente estão associadas à manutenção e fortalecimento dos laços
familiares, reafirmando assim o seu afastamento do mundo dos negócios. Nas
diversas conversas que com elas mantive percebi que algumas quase se ofendiam,
quando eu perguntava se alguma vez tinham querido trabalhar nas suas empresas.
O seu trabalho é cuidar da família, garantir o seu bom funcionamento e garantir o
seu futuro. Sem isto, a grande família não poderia continuar a existir.
Note-se, porém, que o facto de as mulheres destas famílias estarem isentas
da necessidade de trabalhar – no sentido de ter uma profissão e ganhar um salário
– não é meramente uma questão económica, mas sim uma decisão que decorre,
sobretudo, da aplicação de valores culturais que atribuem papéis e expectativas
sociais diferentes a homens e mulheres.
A mãe nunca trabalhou. Acompanhava sempre o pai dela, viajava com ele, ia a
todo o lado: às recepções sociais, aos acontecimentos culturais, aos
acontecimentos do banco. Agora só quer é tratar dos netos. Diz que já fez
muito, agora que façam as mais novas (To).
280 Homens de negócios e gestoras familiares
Vemos, portanto, como o trabalho não pode ser entendido no seu sentido
estrito de profissão que gera dinheiro, pois este conceito polissémico significa
bem mais do que isto. É verdade que a mãe de To nunca exerceu uma profissão.
Contudo, também é verdade que as tarefas que desempenhou ao lado de seu pai,
em representação do grupo económico da família – e muitas vezes em
representação do País – tiveram importância para o êxito desses acontecimentos.
O seu trabalho era outro, diferente do desempenhado pelos homens, mas existia
efectivamente.
Só recentemente algumas mulheres, e apenas nalgumas famílias, começaram
a trabalhar nas empresas de que são accionistas. Não me foi possível estabelecer
com rigor o momento a partir do qual esta situação se passou a verificar, na
medida em que há casos particulares em todas as famílias. No entanto, até 1974
essa participação era praticamente nula, tornando-se mais frequente e sistemática
depois dessa data, mas sobretudo a partir dos anos oitenta. Os percursos de vida
das mulheres revelam bem as transformações operadas ao longo do século XX.
Retomemos de novo o caso da família Mendes Godinho para reflectir sobre
a forma como se enquadra, de um ponto de vista normativo e ideológico, a
participação das mulheres nas empresas familiares em Portugal, durante o Estado
Novo.
Nos quase setenta anos de actividade da sociedade Manuel Mendes Godinho &
Filhos, nunca uma mulher da família exerceu qualquer cargo importante, para além
de alguns lugares de secretariado ou de participação na Assembleia Geral anual da
sociedade. Mesmo nesta assembleia, supostamente o local onde todos os
accionistas podem expressar publicamente a sua opinião em relação aos assuntos
da sociedade, a participação das mulheres era, por força dos estatutos, muito
limitada. Nestes, datados de 1960, pode ler-se:
Qualquer senhora accionista é admitida a votar na assembleia geral, desde que
o marido não esteja presente. No caso de o marido estar presente, a este
competirá o voto, quer pelas acções em seu nome, ou da mulher, quer de
ambos conjuntamente. (…) Os maridos das fundadoras dão às suas respectivas
Homens de negócios e gestoras familiares 281
consortes o necessário consentimento para fundarem com os restantes a
presente sociedade (Estatutos da Sociedade Fábricas Mendes Godinho).
Os impedimentos à participação das mulheres casadas na vida das empresas
não são, no entanto, específicos dos estatutos da referida sociedade. Encontram-
se em todas as empresas familiares com que trabalhei, na medida em que resultam
da aplicação do princípio geral então vigente sobre “a incapacidade da mulher
casada sob o ponto de vista patrimonial” tal como era expresso no artigo 1193º
do Código Civil de 1867, só reformulado em 1966. Este artigo estabelece que “a
mulher não pode, sem autorização do marido, adquirir, ou alienar bens, nem
contrair obrigações, excepto nos casos em que a lei especialmente o permita”
(Varela 1955: 192). Como comentário a este artigo, Antunes Varela apresenta, em
nota de roda pé, a forma como José Tavares “justifica, com vigor e convicção”
esta restrição de capacidade da mulher, dizendo que “o casamento impõe
restrições ao exercício da capacidade dos cônjuges, no interesse comum deles, e
para garantir a unidade e harmonia no seio da família” (Varela 1955: 192-3).
Até à aprovação do novo Código Civil, em 1966, a lei portuguesa impunha
restrições tão extensas e rigorosas à capacidade jurídica da mulher casada, que
mais propriamente se deveria dizer que esta era afectada por uma incapacidade
geral, relativa a quase todos os seus actos jurídicos, embora seja dito que
esta incapacidade é estabelecida com o fim de salvaguardar o princípio da
unidade e harmonia do organismo familiar. Na verdade, só por este princípio
se pode justificar tão ampla incapacidade, mas nunca pelo pretendido intuito de
proteger a mulher contra os perigos da sua própria inexperiência, porque
realmente a mulher casada é tão inexperiente como a viúva, e muito mais do
que a solteira, as quais gozam de capacidade jurídica plena. (…) O instituto da
autorização marital não é um poder de força e tirania dado ao homem para
dominar a mulher; mas é, pelo contrário, uma prevenção engenhosa da lei,
destinada, por um lado, a garantir o princípio fundamental da organização da
família, e, por outro, evitar que a mulher se desvie do seu papel sagrado de
senhora da vida interna do lar doméstico, para se entregar, com prejuízo da sua
própria tranquilidade, à administração espinhosa e ingrata dos negócios
externos (…) (Varela 1955: 192-3).
282 Homens de negócios e gestoras familiares
Mesmo com o novo Código Civil de 1966, a situação pouco se alterou: o
marido continuou a ter de dar o seu consentimento para que a mulher pudesse
exercer actividades comerciais (artigo 1686º) podendo, sem penalizações, rescindir
qualquer contrato de trabalho assinado pela mulher sem o seu consentimento
prévio (artigo 1676º). Estes aspectos só foram substancialmente alterados na
legislação portuguesa após a reformulação do Código Civil aprovada em 1977.
As restrições da lei portuguesa à participação das mulheres na vida
económica nacional reflecte, portanto, uma visão mais global da sociedade tal
como ela era pensada pelos ideólogos do Estado Novo que se articula com os
princípios morais subjacentes à legislação sobre o casamento, que analisei no
Capítulo V. Efectivamente, estes impedimentos legais constróem-se com base
numa concepção da mulher e do homem como cidadãos “naturalmente”
diferenciados. No fundo, o que a lei consagra é a associação ideológica do papel
social da mulher às funções inerentes à sua natureza – a reprodução biológica, os
cuidados da família e, por extensão, os trabalhos da casa.
De facto, apesar da primeira Constituição aprovada pelo Estado Novo, em
1933, proclamar a igualdade dos cidadão perante a lei e, como consequência, “a
negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo
ou condição social”, o texto constitucional ressalva no seu artigo quinto “quanto à
mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família”. Desta
forma, o Salazarismo fazia a proeza legal de, simultaneamente, defender a
igualdade entre homens e mulheres e negá-la, com base na definição de uma
“natureza” diferente para homens e mulheres. Assim, foi a própria Constituição
de 1933 que legitimou o marido como chefe da família, detentor da autoridade,
enquanto conferia à mulher o papel de mãe, consagrada ao seu lar e àquele
subordinada.
Desta forma o Estado Novo mantém-se fiel às mensagens da Igreja Católica
nas encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo anno (1931) em que a
“natureza” predispõe as mulheres a ficarem em casa a fim de educarem os seus
filhos e de se consagrarem às tarefas domésticas. A mulher foi concebida para
ser mãe, foi a “natureza” que assim o decidiu. O Salazarismo acrescentou que
Homens de negócios e gestoras familiares 283
deve ser uma mãe devota à Pátria e ocupar-se do “governo doméstico” (Cova e
Costa Pinto 1997: 71).
Ora, em rigor, a não participação destas mulheres na vida económica das
empresas nunca decorreu principalmente de impedimentos legais, mas sim do
conjunto de valores sociais, religiosos e culturais que este grupo de estatuto usava
na época para definir os conteúdos culturais da categoria social de género
feminino. Valores que se enquadram num modelo ideológico independente do
quadro legal em que se inscreve. É por esta razão que, ainda hoje, num contexto
de plena igualdade jurídica de direitos entre homens e mulheres e, num contexto
em que uma elevada percentagem de mulheres portuguesas trabalham (as
mulheres constituíam em 1991 44,6% da população activa em Portugal, cf.
Machado e Firmino da Costa 1998: 30), grande parte das mulheres destas grandes
famílias continua a não exercer uma actividade profissional.
Consequentemente, o afastamento das mulheres destas famílias do mercado
de trabalho assalariado deve ser pensado na conformidade que revela em relação
aos valores culturais, expectativas de papéis e comportamentos femininos que o
seu grupo social defende e não como um produto, ou uma sobrevivência, de
regimes políticos ou legais. São questões de natureza ideológica, religiosa e
cultural que estão na base dessa opção. Este processo ideológico que associa a
mulher à família torna “naturais” as suas obrigações domésticas: isto é, transforma
a imposição de um modelo cultural numa característica da própria essência do ser
feminino, da natureza da mulher.109 É por fazerem parte de uma dada visão do
mundo, muito enraizada na religião católica e num ideal aristocrático e, portanto,
tradicional de organização familiar, que os membros destas famílias dão
continuidade a este modelo que separa actividades profissionais da vida familiar,
associando cada uma delas a homens e mulheres, respectivamente.
Se, até 1974, aproximadamente, este modelo ideológico – que afastava as
mulheres do mercado de trabalho, considerado um universo masculino, por
109 Este processo de naturalização das diferenças atribuídas a categorias sociais de género
tem sido amplamente analisado na literatura antropológica, sendo de destacar os trabalhos de Yanagisako 1988 e 1995, Stolke 1996, Howell e Melhuus 1996.
284 Homens de negócios e gestoras familiares
excelência – era hegemónico na sociedade portuguesa, tal já não se verifica
actualmente. A revolução de 1974 abriu caminho para o desenvolvimento de
processos democráticos, não apenas na vida económica e política mas em todos
os domínios da vida social. O aumento das liberdades individuais – de escolha, de
discurso, de acção, e de modos de vida –, respeito pelo indivíduo, a possibilidade
do divórcio, mesmo nos casamentos católicos e o desenvolvimento económico,
contribuíram para uma alteração na estrutura católica e conservadora da família e
das relações familiares em Portugal.
Como resultado das mudanças verificadas, os valores familiares
hegemónicos do Estado Novo, têm vindo a perder peso entre os outros grupos
sociais portugueses. No entanto, e como foi discutido no capítulo anterior, a
preservação destes valores conservadores constitui para estas grandes famílias um
factor primordial na perpetuação das relações familiares, que constitui, por sua
vez, um elemento fundamental para a continuidade destas grandes empresas
familiares. Assim, o investimento ideológico e simbólico na continuidade da
utilização desse modelo remete a imagem pública destas famílias para
características conservadoras, porque adscritas a uma ordem social passada, como
já referi a propósito dos valores simbólicos que estão subjacentes à sua
organização.
No entanto, o conjunto destes valores não é imune às profundas
transformações operadas na sociedade portuguesa nos últimos tempos, como se
vê, por exemplo, ao nível da maior participação das mulheres na vida das
empresas. Cada vez mais, as mulheres das novas gerações destas grandes famílias
têm uma formação escolar mais completa que, ao contrário do que faziam as
mulheres das gerações anteriores da sua família, utilizam para construir a sua vida
profissional, tanto nas empresas da sua família como fora.
Apesar de verificarmos um aumento na participação das mulheres nas
empresas, esta é remetida, maioritariamente, para cargos de pouca
responsabilidade, que não lhes conferem poder de decisão sobre os destinos das
empresas de que são accionistas. Esta atitude sobressai subtilmente da forma
orgulhosa com que o presidente do Conselho de Administração de uma destas
Homens de negócios e gestoras familiares 285
empresas me “mostrava” que havia muitas mulheres da família a trabalhar na
empresa.
Sim, trabalharam cá muitas senhoras da família: Is, L (foi secretária muito
tempo); MaI esteve uns tempos na Agência de Viagens; a Ib ainda foi
secretária do pai durante um mês e o seu filho foi executivo; a prima Il esteve
no Turismo; S esteve cá a trabalhar quatro anos até se casar e depois
convidámos o marido; a F também cá esteve, tal como D. Há ainda uma filha
da prima Ul que está no Turismo (B).
Esta listagem não só é pequena, dado o número de mulheres desta família
(ver mapa genealógico nº 3), como revela bem o tipo de funções para que são
remetidas as mulheres que chegam eventualmente a trabalhar nas suas empresas.
Uma jovem de dezoito anos começou assim uma entrevista comigo:
Sabe, a minha família é muito machista. Têm a mania que só os homens é que
são bons profissionalmente e que as mulheres ficam em casa a apoiá-los. Eu
sou óptima aluna e quero ser economista e ocupar o lugar do meu avô no
Grupo. Mas todos me dizem “sim, minha filha, claro que podes ter um lugar
importante e ajudar o teu irmão”. Já viu? Eu adoro o meu irmão. Somos super
amigos. Ele é super inteligente e bom aluno. Mas eu também sou, e ainda por
cima sou mais velha. Eu não lhes vou dar o prazer de entrar para o grupo
quando acabar o curso. Vou para África, que é a minha paixão, como era a do
meu avô. Vou ganhar experiência. E quando voltar, entro para o grupo mas
por cima. Directamente para o lugar do meu avô (T).
Àparte uma certa ingenuidade e a enorme determinação reveladas por esta
jovem, os seus comentários chamam-nos a atenção para algumas questões
interessantes. Em primeiro lugar, não podemos deixar de notar, ainda hoje, a
presença de valores familiares que atribuem uma primazia simbólica ao homens
na continuidade e preservação do projecto identitário familiar, que promovem e
legitimam, sobretudo por parte das gerações controlante e declinante, um
conjunto de representações sobre a separação de papéis entre homens e mulheres
e expectativas sobre a sua participação nos projectos familiares, continuando a
adscrever homens a negócios e mulheres à família. As poucas mulheres que
286 Homens de negócios e gestoras familiares
participam nos assuntos empresariais da família são confrontadas
permanentemente com a hierarquia das categorias sexuais associadas a papéis
profissionais. Esta hierarquia é explicitamente assumida na integração de homens
e mulheres nos quadros da empresa. O caso descrito mostra particularmente bem
que, independentemente da qualidade dos seus desempenhos profissionais, está
claramente definido pela família – e todos têm disso consciência – que o irmão é
um potencial candidato mais provável aos lugares de topo do grupo, enquanto T
está afastada dessa competição pelo facto de ser rapariga.
Este caso chama ainda a nossa atenção para o facto de, actualmente, estas
grandes empresas procurarem impor o desempenho profissional como o principal
critério de selecção dos seus quadros superiores. Este critério tem sido aplicado
cada vez mais frequentemente aos descendentes que são candidatos aos principais
lugares do Grupo. Esta nova forma de recrutamento que, como veremos em
pormenor no próximo capítulo, visa não só assegurar uma maior eficiência na
gestão, como erradicar a ideia de falta de profissionalismo dos gestores das
empresas familiares, num momento em que o mercado nacional e internacional se
caracteriza por uma grande competição. As empresas familiares têm de impor
uma imagem pública de extrema competência dos seus profissionais. Estes devem
ser então avaliados pela sua competência e não pelo facto de serem ou não
membros da família que detém a maioria do capital da empresa. A importância
que a defesa deste ideal assume na imagem pública da empresa é precisamente o
único pólo de entrada possível para a T no Grupo. Apesar de ser mulher, ela
afirma querer impôr-se através das mesmas qualidades que são exigidas aos outros
potenciais “candidatos” – o seu irmão, os seus primos, e os seus tios: a sua
competência profissional. Mas, como conhece bem os preconceitos de género que
enformam os julgamentos e as avaliações dos seus parentes, decidiu,
estrategicamente, tentar impôr a sua competência profissional fora do grupo
familiar. Desta forma, T quer ser avaliada externa e publicamente com base
exclusivamente nos seus desempenhos profissionais, sem que esse julgamento seja
distorcido por valores e expectativas apriorísticos, baseados em atribuições pré-
definidas de papéis familiares associados à pertença de uma categoria de género.
Homens de negócios e gestoras familiares 287
Não obstante estas importantes alterações, continuamos a poder encontrar
diferenças fundamentais na forma como rapazes e raparigas licenciados entram
nas empresas da família.
Fiz o curso de direito por opção. Tinha boas notas e, naquela altura, os bons
alunos iam para direito, para economia ou para medicina. Depois de acabar o
curso, não arranjei logo sítio para fazer o estágio porque, sabe como é, os filhos
dos advogados também são advogados e entram logo para os escritórios dos
pais. Como na família não havia advogados tive dificuldade em arranjar
colocação para o estágio. Estive no B uma empresa da família como
secretária em part-time para ganhar uns dinherinhos e só depois é que pedi à
mãe para falar com o tio Rs para me arranjar alguma coisa. Fui para o E outra
empresa da família. Como era uma pessoa da família foi fácil meter-me lá, fui
para o departamento jurídico. Como gostaram do meu trabalho, ao fim de um
ano como prestadora de serviços, entrei para os quadros (Mp).
Fiz o curso de Económicas e, logo que acabei, entrei para o banco. (...) Era o
percurso que todos esperavam de mim; seguir as pegadas do meu pai, dos tios
e do avô [e do bisavô] (r).
Apesar de assistirmos presentemente ao aumento do número de mulheres
que ocupam lugares de topo em importantes e dinâmicas empresas nacionais, no
caso das empresas familiares mais antigas, a possibilidade de ocupar cargos
semelhantes continua vedada às mulheres. As mulheres destas famílias continuam
a definir-se, sobretudo, pela sua associação à maternidade e à conjugalidade, à
manutenção da unidade familiar. De novo, vemos aqui como os critérios
agnáticos, aristocráticos e católicos continuam a lançar as bases que legitimam e
reproduzem uma separação entre os destinos empresariais dos grupos de género
nestas famílias, reafirmando, assim, a imagem de universos familiares organizados,
“geridos” e continuados fundamentalmente por mulheres e de universos de
negócios constituídos, essencialmente, por homens.
4. Homens de negócios e gestoras familiares:
288 Homens de negócios e gestoras familiares
a construção da complementaridade
Durante uma entrevista em que Ma me estava a enumerar os membros da família
que tinham uma participação activa nas diversas empresas, olhei para a lista que
tínhamos elaborado e disse que as mulheres da família não participavam
profissionalmente no grupo. Ela respondeu da seguinte forma:
Não, não. Pelo contrário, as mulheres estão sempre presentes nas ocasiões
oficiais. Elas podem não participar profissionalmente, mas estão sempre lá. As
que são accionistas têm sempre alguém que as represente. Os clientes gostam,
sabe. As mulheres são boas para isso. Quando vem um cliente importante faz-
se um jantar na casa de família. Fazem tudo muito simples em casa sem alarde
nem publicidade (Ma).
Ao reagir tão prontamente, Ma abriu uma nova dimensão que se veio a
tornar central no meu argumento sobre a participação de homens e mulheres no
projecto familiar. Na verdade, as mulheres também garantem actividades
fundamentais para o próprio funcionamento das empresas, como seja a
organização de acontecimentos sociais que suportam os encontros de negócios
dos seus maridos, pais e irmãos. Através destas actividades podemos ver como as
mulheres têm, efectivamente, um papel fundamental no desenvolvimento dos
negócios da família. A elas cabe a tarefa de criar uma atmosfera de familiaridade e
até de intimidade nestes momentos particulares de estabelecimento de relações
empresariais privilegiadas. Do êxito do seu desempenho depende a promoção ou
a intensificação de relações pessoais entre parceiros económicos que facilitam os
negócios, pois permitem aumentar a confiança entre as partes num ambiente que
procura ser mutuamente agradável. Convidar parceiros de negócios para casa é, à
partida, uma demonstração de confiança. Honrar a outra parte com a partilha da
intimidade da família pode ser um elemento importante para o relacionamento
entre ambos.
Homens de negócios e gestoras familiares 289
Este ambiente de alguma intimidade, a que já me referi anteriormente no
âmbito das empresas da família D’Orey, fornece as bases para a constituição de
relações de grande continuidade entre parceiros económicos.
Há empresas com que o avô trabalhava com os avós dos actuais
representantes. Depois os meus pais e tios trabalharam como os filhos deles e
agora os meus filhos e sobrinhos tratam com os netos. É geração de cá,
geração de lá (IR).
Estes percursos de relações familiares dentro de empresas que se relacionam
institucionalmente contribuem para criar um tipo de relação muito próxima entre
parceiros comerciais. A proximidade e a confiança que acompanham estes
trajectos constrói-se, em grande medida, no âmbito de encontros que se
estabelecem num ambiente familiar, onde as mulheres assumem um papel activo e
decisivo. A não participação das mulheres no mundo dos negócios é, portanto,
apenas aparente. É diferente da que caracteriza os homens. É menos visível e
desenvolve-se no espaço a que estão associadas as suas características
definicionais de pessoa: a casa e a família. O papel das mulheres na organização
dos acontecimentos que contribuem para a proximidade e a confiança entre
parceiros económicos é fundamental, revelando estar em perfeita articulação com
as actividades desempenhadas pelos homens da família.
Com base nestes exemplos, torna-se claro que a dedicação destas mulheres à
família, à educação dos filhos e à organização do lar conjugal não significa que
elas não trabalhem ou que estejam arredadas de uma participação activa e
fundamental no projecto familiar. As actividades por elas desempenhadas
implicam formas de trabalho, investimento pessoal, dedicação e um conjunto de
saberes e disposições práticas que são fundamentais ao seu cumprimento.
Podemos ver, portanto, que elas têm uma participação constante nas actividades
que contribuem para o êxito e para a continuidade do projecto da grande família
empresarial, ainda que, na maior parte das vezes, o façam numa dimensão da
acção que é pouco visível.
290 Homens de negócios e gestoras familiares
Para além destas actividades, as mulheres desempenham uma outra que tem
um peso fulcral na continuidade das relações no seio da grande família. São elas
que mantêm informações actualizadas sobre os parentes dos vários ramos da
família, mantendo as relações entre eles. As relações uxorilaterais frequentes e
intensas que unem diariamente mães e filhas, irmãs e avós, criam-se laços
familiares muito sólidos que lançam as bases através das quais os homens se
relacionam uns com os outros.
A importância que as mulheres adquirem na vida das grandes famílias é tal
que algumas chegam a ser potentes símbolos do grupo.
A avó é que foi fantástica nessa altura. Andou sempre de cabeça erguida. Viu
os filhos na prisão mas não ficou parada. Mexeu-se como pôde para os tirar de
lá. Passou dificuldades, mas sempre muito digna, como ela sempre foi. Não nos
tiraram a quinta. Era o que faltava, com tudo o que o avô sempre fez por
aquela gente. Andavam lá os copcons locais para nos tirarem as armas. Mas lá em
casa só tinham armas de caça. Agora todos nos rimos disso mas na altura foi
muito difícil, mas a avó aguentou tudo isso. Viu os filhos presos mas não se foi
abaixo. Foi à luta para os tirar de lá. E foi ela que o conseguiu (To).
A avó era uma grande senhora. Não havia outra como ela. Ela acompanhava
muitas vezes o marido e quando não podia ir – por estar de esperanças ou por
causa dos mais pequenos – ia a minha mãe, que era a filha mais velha, em sua
representação. Era uma verdadeira Senhora. Todos a respeitavam. Tratava
todos como iguais e todos a estimavam. Continua a ser um marco importante
na nossa vida. Sempre que íamos para a quinta, íamos primeiro à casa grande
dar um beijinho à avó e só depois é que íamos brincar ou íamos para as outras
casas. Ainda hoje, apesar de ela já ter morrido há tanto tempo, os mais novos
sabem que não podem entrar na casa da avó com os pés sujos e pisar os tapetes
da avó. Falamos muito dela aos mais novos e eles vêm sempre ouvir, quando
os mais velhos estão a contar histórias. Ainda hoje a avó é um marco na
família. Houve coisas que se mudaram por causa dela e que ainda agora se
mantêm. Por exemplo, a missa de Natal era à meia noite e quando a avó
começou a ficar velhinha passou a ser às dez e meia da noite e hoje ainda é
assim. Ela ia sempre à Via Sacra na Quinta-Feira Santa e ainda hoje vamos
Homens de negócios e gestoras familiares 291
todos, mesmo sem ela, até os mais novos vão. Ela gostava de ir e que nós
fôssemos com ela. E, portanto, nós continuamos a ir. E transmitimos isso aos
mais novos (Ma).
Através da conjugação de um amplo conjunto de actividades no seio do seu
universo familiar, as mulheres conseguem algo de fundamental: assegurar a
continuidade da unidade familiar indispensável para a perpetuação do projecto
económico que os une. Assim, apesar de os valores ideais da família apontarem
para uma predominância simbólica masculina, no dia-a-dia a grande família
apresenta-se como uma estrutura fortemente centrada em relações uxorilaterais.
Colocar esta questão obriga a remeter a análise para uma outra dimensão da
importância da diferenciação de género no contexto da elite portuguesa. Os
padrões e símbolos culturais hegemónicos identificam os homens portugueses
como chefes de família, em particular nesse ambiente conservador e católico,
onde está presente um ideal patriarcal de família. No entanto, as relações
uxorilaterais têm uma influência significativa nas práticas familiares quotidianas
destas famílias.110 Estamos, portanto, num contexto social em que, apesar de os
seus membros atribuírem uma predominância simbólica às relações agnáticas, as
mulheres desempenham um papel fundamental na manutenção e continuidade
das relações familiares e das relações extra domésticas.
Esta é, novamente, uma situação em que emerge uma contradição entre
representações de ideais de organização e continuidade familiar e práticas
individuais. É uma situação idêntica à que encontrei no caso dos divórcios – que
não devem existir mas ocorrem –, no caso das transmissões dos apelidos – que
devem ser feitos por via masculina mas que também podem ser passados através
de mulheres – e, como vimos, no caso do sucesso das empresas familiares que
contrariam o ideal que defende a inexistência da relação entre trabalho e família.
Também aqui – no referente ao papel desenvolvido pelas mulheres na vida da
110 Esta situação é, aliás, reencontrável em Portugal através das diferenças regionais e de
classes sociais. João de Pina Cabral chama a atenção para este fenómeno entre as famílias burguesas do Porto e entre as famílias camponesas do Alto Minho (1989, 1991 e 1996). Sally Cole identifica-o no âmbito de comunidades piscatórias do Norte de Portugal (cf. Cole 1994).
292 Homens de negócios e gestoras familiares
grande família – as sua práticas quotidianas não correspondem ao modelo que as
descreve e enforma. Vale a pena, portanto, analisar as implicações desta situação.
Neste contexto de elite, as mulheres dedicam quase todo o seu tempo ao
projecto familiar. As redes de relações sociais extra-domésticas têm um
enraizamento fortemente uxorilateral pelo que, se não prestarmos atenção às
práticas e significados que elas produzem, dificilmente compreenderemos as
relações familiares portuguesas. Através de um certo número de práticas
quotidianas – como sejam as ajudas mútuas entre parentes femininas, por
exemplo, no cuidar das crianças – as mulheres constituem uma rede informal de
relações que se torna uma parte central da vida familiar, mas que é difícil de
identificar, porque não tem uma ideologia ou uma estrutura formal associada a
ela. Apesar das relações uxorilaterais não constituírem padrões culturais
hegemónicos na nossa cultura, a sua extrema frequência e a importância prática
que adquirem diariamente, têm um efeito estruturante evidente nas formas como
as famílias portuguesas se organizam e como os seus projectos se definem. Estes
aspectos não-hegemónicos constituem, assim, uma parte integrante da vida destas
famílias.111
Vários trabalhos etnográficos sobre elites têm mostrado, precisamente,
múltiplas maneiras através das quais as actividades desempenhadas por mulheres
são fundamentais para a preservação do prestígio e estatuto elevado das suas
famílias, permitindo a continuidade do grupo enquanto uma elite social. A título
de exemplo, o trabalho de Susan Ostrander sobre as mulheres de classe alta de
Boston mostra a forma como os papéis por elas desempenhados, tanto a nível da
família como da comunidade, contribui para manter a sua posição na comunidade
111 Para explicar esta questão podemos seguir a sugestão de João Pina Cabral segundo a
qual a vida social e cultural “é composta de aspectos diurnos, legitimados pela operação do poder simbólico, e por aspectos nocturnos, que existem na penumbra das margens” (Pina Cabral 1997: 40). Sendo “aspectos nocturnos da acção” (cf. ibidem), as relações uxorilaterais não deixam de ser elementos centrais para compreender as relações familiares portuguesas.
No seu trabalho sobre a China, Charles Stafford alerta para uma situação semelhante que, na sua opinião, decorre da prisão excessiva aos modelos formulados idealmente sem dar a devida atenção às maneiras diversas através das quais eles são postos em prática pelas pessoas, nas situações concretas das suas vidas quotidianas (cf. Stafford sd).
Homens de negócios e gestoras familiares 293
(cf. Ostrander 1980 e 1995). As razões que estas mulheres apresentam para o seu
trabalho voluntário na comunidade são de dois níveis. Por um lado, apresentam
razões pessoais – continuar o noblesse oblige das tradições familiares e poderem
desempenhar algumas funções de tomada de decisões; por outro lado, razões de
ordem política: manter o poder de decisão dos dinheiros públicos em mãos
privadas. Segundo Ostrander há uma notável “congruência entre significados
pessoais e consequências societais neste grupo social dotado de uma grande
consciência de classe” (1980: 86). O que aquelas mulheres faziam para se
realizarem como pessoas era, ao mesmo tempo, o melhor para a manutenção da
posição social do grupo e para os interesses da sua classe. Segundo Ostrander, ao
desenvolverem serviços para a comunidade, as mulheres adoptaram uma forma de
agradecimento pelos privilégios familiares herdados, mantendo para si posições de
poder que dessa forma se legitimam, e garantindo assim a continuidade do seu
grupo como uma elite (cf. idem 86-90).112
Algo de semelhante se passa em Portugal. Os trabalhos que as mulheres
destas famílias de elite económica realizam ao nível da intervenção social – que
apresentei no Capítulo IV – conferem-lhes um papel de destaque na comunidade
em que se inserem, pela dedicação à causa dos mais desfavorecidos pelo altruísmo
que assim revelam. Novamente o ano de 1974 estabelece uma fronteira na forma
como é levada a cabo essa intervenção comunitária. Até essa data, a participação
das mulheres neste domínio era conduzida maioritariamente no âmbito da igreja
ou de instituições religiosas: muitas destas senhoras eram responsáveis pela
catequese nas suas paróquias; eram voluntárias da Cruz Vermelha, chegando a ter
posições de destaque nesta organização; no âmbito das suas empresas eram elas
quem normalmente tinham um papel decisivo na obtenção de apoio médico para
os trabalhadores.
Não tenho informação sobre a existência de actividades desta natureza
realizadas por membros destas famílias nos anos que se seguiram à revolução
democrática. Tal facto decorre, certamente, do ambiente vivido na altura, que
112 Veja-se também a análise de Domhoff sobre “A metade feminina da classe alta”, na
qual o autor mostra o papel desempenhado pelas mulheres de classe alta no controlo das instituições da sua comunidade (cf. Domhoff 1970).
294 Homens de negócios e gestoras familiares
colocava estas famílias do lado do regime social e político que se procurava
alterar. Porém, depois deste interregno, a partir de meados dos anos oitenta, com
a estabilização social, política e económica, e com a posição de destaque que estas
famílias começam de novo a ocupar, reinicia-se também a participação dos seus
membros em actividades de intervenção social.
O conjunto dos actos beneméritos, integrados no espírito cristão que
defendem e cultivam, desempenha um importante papel na imagem pública dos
membros destas famílias e na forma como os seus actos adquirem um carácter
universalista que contribui para dar continuidade ao seu prestígio. Assim se
legitima a elevada posição social que ocupam na comunidade. Neste sentido, as
mulheres destas famílias têm uma participação considerável na forma como estas
grandes famílias transformam o seu estatuto de elite económica – conquistado
através do êxito das empresas, resultante das actividades profissionais dos
membros masculinos da família – numa posição social de dominação simbólica e
de grande prestígio.
Os homens e as mulheres destas famílias constituem-se, portanto, na relação
que estabelecem entre si. Aliás, já há algum tempo que as mais interessantes
reflexões sobre o género enquanto categoria de diferenciação social têm chamado
a atenção para o facto de estas serem sempre categorias relacionais (cf. Howel e
Melhuus 1996: 39). Mas, o que nos mostra a agencialidade quotidiana de homens
e mulheres da elite lisboeta é mais do que isso. Quando reflectimos sobre a forma
como uns e outras se definem de acordo com certos valores e assumem
determinadas tarefas – que são comuns ao conjunto de indivíduos que constituem
a sua comunidade de práticas – e analisamos o investimento que cada um faz no
cumprimento do projecto de vida que partilham, vemos que as categorias de
género não são apenas relacionais. Elas são complementares. O papel
aparentemente invisível das mulheres destas grandes famílias é afinal parte
essencial do trabalho colectivo da afirmação e da continuidade do projecto
familiar.
Homens de negócios e gestoras familiares 295
Esta complementaridade está presente nos processos variados que visam
pôr em prática o ideal que privilegia a sucessão e as transmissões familiares por
via varonil. Se as mulheres não partilhassem esse mesmo modelo ideal – a
transmissão agnática dos elementos que simbolizam a identidade e o prestígio
familiar – este dificilmente seria posto em prática. Mais ainda, a referida
complementaridade revela-se também na forma como as mulheres, no seu papel
de mães educadoras, reproduzem diariamente esse ideal, ao criarem diferenças
entre os seus filhos e filhas e na forma como desempenham o seu papel de
Senhoras de sociedade, ao receberem em casa os parceiros de negócios dos seus
maridos, pais ou irmãos.
Esta forma de interligação entre agencialidades femininas e masculinas não
é, no entanto, específica a este contexto. Ela encontra-se, necessariamente, em
todos os contextos sociais. Podemos percebê-la nas entrelinhas do trabalho de
Susan Ostrander sobre as mulheres da elite de Boston a que me referi
anteriormente (cf. Ostrander 1980 e 1995).
No seu trabalho sobre sociedades amazónicas, por exemplo, Peter Gow
coloca a ênfase na ideia de complementaridade entre os géneros. As tarefas
socialmente adscritas a homens e mulheres – e que são elementos definicionais da
identidade de cada um deles – dependem de relações que os interligam
continuamente. Assim, Gow mostra que, apesar de serem definidos como
categorias sociais claramente diferenciadas e quase antagónicas nas suas
actividades diárias, só se pode compreender a forma como homens e mulheres
levam a cabo as suas obrigações e os significados sociais que estas adquirem
quando se analisa complementarmente as acções de uns e outras (cf. Gow
1991).113
113 De uma forma diferente, Marilyn Strathern chama a atenção para esta mesma questão.
A autora alerta para o facto de a divisão retórica entre homens e mulheres obscurecer a divisão de género, entre relações estabelecidas entre pessoas do mesmo sexo e relações estabelecidas entre sexos diferentes (same-sex and cross-sex alignments, Strathern 1997: 128). As acções de homens e mulheres estão ambas sujeitas à alternância de género, pois se, num momento dado, interagem com um elemento do mesmo sexo, logo depois entretêm relações com elementos do sexo oposto. São os critérios que definem as relações que se devem manter numa e outra situação que são diferentes, pressupondo cada um deles modos alternativos de relacionamento.
296 Homens de negócios e gestoras familiares
Assim, família e género são valores culturais que, associados a práticas de
transmissão de conhecimentos, conduzem à formação de sucessores masculinos e
excluem as mulheres como sucessoras potenciais na liderança destas grandes
empresas.
Neste capítulo mostrei que, neste contexto social, verifica-se a existência de
uma grande frequência e intensidade de relações uxorilaterais que adquirem uma
importância significativa na concretização do projecto de continuidade
empresarial e familiar. Este facto coloca, aparentemente, uma contradição no
quadro de uma organização familiar cuja identidade social é construída
simbolicamente através de uma valorização da varonia e de um amplo conjunto de
continuidades estabelecidas por via agnática. Contudo, esta contradição expressa
na separação entre homens e mulheres, entre trabalho e família pode ser superada
se abdicarmos da utilização de um conceito de trabalho definido de uma forma
excessivamente economicista.
Em síntese, é em grande parte através do trabalho das mulheres que este
modelo patriarcal de família viabiliza a sua reprodução. Porém, só podemos
perceber a importância que as relações uxorilaterais adquirem neste contexto
social através de uma reformulação do conceito de trabalho. Só analisando o
trabalho das mulheres podemos realmente compreender como se justificam
simultaneamente um conjunto de ideias centrais à continuidade destas grandes
famílias e destas grandes empresas. A saber: 1) a ideia de que as mulheres estão
arredadas do trabalho e se dedicam exclusivamente à família; 2) a ideia de que as
mulheres desenvolvem outras actividades; 3) a ideia de que consegue levar a cabo
uma sucessão agnática através da complementaridade das representações e
disposições práticas entre homens e mulheres; ou seja uma sucessão agnática
mediada por vidas familiares predominantemente uxorilaterais.
Se tomarmos em linha de conta a polissemia intrínseca ao conceito de
trabalho e nos libertarmos do enviesamento economicista, podemos então
mostrar que as mulheres destas famílias trabalham e muito, no espaço do universo
familiar. Defender esta ideia não promove nenhum tipo de incompatibilidade com
Homens de negócios e gestoras familiares 297
o facto de elas não terem uma vida profissional activa e remunerada ligada às suas
empresas. Na verdade, os trabalhos que desenvolvem, para além de serem
fundamentais para a continuidade das relações dentro da grande família são,
também, frequentemente decisivos para a continuidade do prestígio das empresas
da sua família. Em suma, elas contribuem, portanto, de uma forma importante
para as actividades universalistas das suas famílias e para o sucesso do projecto
familiar.
Ao concluir que as mulheres contribuem muito para o projecto colectivo –
chegando algumas a ter um poder considerável – e que elas constituem laços
reprodutivos centrais para a continuidade familiar, podemos ver como funciona a
hegemonia masculina neste contexto social. Apesar do contributo que as
mulheres, tal como os homens, dão para o projecto que partilham, os ideais
hegemónicos deste grupo social enfatizam a primazia simbólica masculina. Ao
classificarem as mulheres como “não trabalhadoras” remetem-nas para a posição
de consumidoras e de dependentes, como se fossem elementos marginais à
reprodução do projecto colectivo. Sendo este o modelo hegemónico os
“dominados” não se sentem prejudicados mas sim, a cumprir o seu próprio ideal
de vida. Porém, a hegemonia não é inflexível pelo que há, por vezes, uma certa
margem de negociação, como bem mostra a criação da categoria “gestoras
familiares”. A invenção desta categoria mostra que as mulheres têm noção da
importância do seu contributo para o projecto colectivo mas, como também
partilham e defendem os ideais da hegemonia do seu grupo social, contribuem de
bom grado para a sua reprodução.
CAPÍTULO VII
O PÉ DO DONO É O ADUBO DA TERRA
1. O pé do dono é o adubo da terra.
A importância de uma sucessão bem sucedida
Tenho vindo a mostrar que a continuidade é um valor fundamental nas
práticas e nas concepções do mundo destas famílias empresariais. A empresa
familiar é um destes símbolos de identidade colectiva da grande família e da sua
continuidade. Assim, os processos de escolha de sucessores para os mais altos
cargos da empresa são, necessariamente, um factor central na prossecução destes
objectivos de continuidade, tanto ao nível da família como da empresa. Dito de
outra maneira, a escolha de um bom sucessor é um passo fundamental para
garantir a existência e a continuidade dos dois contextos de acção entrecruzados
em que vivem estes indivíduos.
A forma como essa escolha é feita no seio de cada uma destas famílias
revela, uma vez mais, a permanente e complexa articulação de lógicas, valores e
princípios, subjacentes à acção. Tomemos novamente os casos empíricos como
ponto de partida da análise. O caso de CR, que apresentei anteriormente, mostrou
que, para ser um sucessor credível nos lugares de liderança no Grupo Espírito
Santo, é conveniente ser legal detentor do nome da família, isto é, possuir os
elementos que constituem a substância da família: o sangue, simbolizado e
tornado visível no apelido.
A importância atribuída a esta mesma questão é comum a todas as famílias
que estudei. Todavia não é exclusivamente desta maneira que ela se revela. O caso
da família Vaz Guedes mostra-nos uma outra dimensão deste processo.
302 O pé do dono é o adubo da terra
Nós tentámos introduzir uma gestão profissional na empresa, mas não tivemos
bons resultados, porque os nossos clientes estavam habituados a trabalhar com
pessoas da nossa família e não confiavam em pessoas que não tivessem o
nosso nome. Por isso, tivemos de encontrar dentro da família a pessoa com as
melhores capacidades profissionais para desempenhar o cargo e que detivesse,
simultaneamente, a autoridade que está associada ao nome de família. Aquele
que preenchia todos estes requisitos era o meu sobrinho D, que tinha uma boa
formação em gestão de empresas e já tinha alguma experiência profissional. Só
depois de D ter assumido a presidência da Somague conseguimos impor o
nosso plano de reestruturação. Sabe, o pé do dono é o adubo da terra (Jg).
É desta forma que Jg, o presidente da holding familiar, define a necessidade
de ter um membro da família no topo da administração, num grupo de dimensão
internacional. Curiosamente, este exemplo mostra que, num dado momento, a
família estava pronta a prescindir de um dos símbolos fundamentais da sua
identidade, tendo sido os trabalhadores e os parceiros de negócios a reclamar que
fosse posto à frente dos destinos da empresa um elemento que simbolizasse a
competência profissional reconhecida aos membros da família do fundador. O
que este episódio mostra é a forma como os valores que a família empresarial
refere como centrais, são construídos relacionalmente entre as diversas partes
envolvidas no processo. Isto é, para eles, os membros não familiares da empresa
escolheram-nos para continuar à frente da gestão. Assim, o que poderia ser
apenas um ideal acaba por ser um facto, reafirmando a hegemonia instaurada. É
neste sentido que se deve interpretar a ideia de Jg, o actual presidente da holding
familiar que controla este grupo económico, segundo o qual só os familiares que
demonstrem maior capacidade poderão chegar aos lugares de topo na gestão
executiva das empresas do grupo. Foi esta a razão que esteve na base da sua
escolha de um sobrinho, e não de um filho, para seu sucessor na presidência do
grupo.
Pertencer à família, partilhar a sua “substância” é uma condição importante,
embora não suficiente, para um membro da família poder ocupar uma posição de
liderança nas suas empresas. Neste caso particular, os membros da família que
ocuparam posições executivas de topo nas suas empresas investiram na qualidade
O pé do dono é o adubo da terra 303
da sua preparação académica, com o objectivo de se tornarem bons profissionais.
A equilibrada articulação entre os ideais familiares de sucessão na empresa e as
rigorosas exigências de formação profissional que se verifica nos processos de
selecção para posições de topo na hierarquia, é um dos elementos centrais do
êxito deste grupo económico. Sem essa articulação não seria possível garantir a
sucessão no âmbito da família, o que teria como consequência inevitável o fim do
carácter familiar deste grupo económico.
Na literatura sobre empresas familiares, a sucessão aparece como um tema
crítico e problemático para a continuidade dessas organizações, constituindo o
tema central da bibliografia publicada pelas diversas áreas disciplinares que se têm
debruçado sobre este tema.114 É bastante significativo que o conselho dado mais
frequentemente pelos consultores para o bom êxito da continuidade das empresas
familiares seja, precisamente, a necessidade de produzir dentro da família um
sucessor que seja competente e bem aceite por todos.
Para podermos compreender os longos e complexos processos de sucessão
que fazem parte da história das empresas familiares, temos de entender também
os contextos centrais da sua produção e as motivações que lhes estão subjacentes.
Deve ter-se em conta que as empresas familiares não conseguem garantir a sua
continuidade apenas por estarem ligadas a uma família. Na verdade, a empresa só
continuará a ser familiar, na sua propriedade e na sua gestão, se as novas gerações
tiverem interesse nisso, se tiverem motivações para continuar a investir
económica, profissional e afectivamente nesse projecto que herdam dos seus
antepassados. Caso contrário, ou vendem as suas participações accionistas ou
contratam profissionais exteriores à família para gerir a empresa.
Quando a propriedade e o controlo das empresas têm uma base familiar,
fazer a sucessão entre membros da família tem, efectivamente, a grande vantagem
de promover a continuidade dos sentimentos corporativos e objectivos
identitários entre os sócios. Mas, para que os sócios que ocupam os cargos
114 Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Calder 1961, Donelly 1964, Bucholz e Crane
1989, Paré 1990, Jain 1991, Gersick et al. 1997, Guerreiro 1994, Bauer 1991 e Goody 1996.
304 O pé do dono é o adubo da terra
dirigentes continuem a ser parentes – mantendo a liderança familiar na empresa –,
é necessário atrair os elementos da família que se afigurem mais competentes para
as posições de maior responsabilidade.
Quando é preciso entrarem pessoas novas privilegiamos os membros da
família por uma questão de confiança. Às vezes, as pessoas da família até
ganham menos que os outros, para não se criarem situações em que se possa
dizer que há privilégios. É por isto que alguns acabam por se ir embora. Mas a
maior parte acaba por escolher ficar cá porque, apesar de ganharem mal ao
princípio, sabem que estão a continuar o que os nossos avós e os nossos pais
nos deixaram. E esse é um sentimento muito reconfortante, que dá um sentido
muito especial ao nosso esforço (BB).
É mais ou menos óbvio que um bom gestor poderá desempenhar bem o
seu trabalho em qualquer empresa. No entanto, se a empresa fôr da sua família, se
a história dos êxitos dessa organização estiver ligada ao esforço e ao mérito dos
seus antepassados, o investimento no trabalho será certamente diferente, pois
estará imbuído de uma forte carga simbólica e afectiva.
A primeira questão a colocar para analisar os processos de continuidade das
empresas familiares ao longo de várias gerações deverá, então, ser a seguinte:
como é que as gerações mais novas adquirem interesse em continuar a empresa
fundada pelos seus antepassados tornando-se eles próprios empresários? Dito de
outra forma, para compreender os processos de sucessão é necessário analisar
como nasce essa vocação empresarial nas gerações mais novas, quais são as
condições nas quais se formou o seu desejo e a sua determinação para continuar a
sociedade familiar. Os processos de constituição de pessoas, que se desenvolvem
no contexto familiar desde que as crianças nascem, tornam-se, portanto, uma
dimensão central da reflexão sobre este processo de constituição de novos
sucessores. Ao longo deste capítulo procurarei dar conta destes processos.
Estes itens centrais da produção da sucessão – aqueles que permitem
produzir uma vocação empresarial na nova geração – são uma preocupação
constante e importante, que se coloca sobretudo no âmbito da família e não no
contexto da empresa, apesar de os seus resultados terem, posteriormente, um
O pé do dono é o adubo da terra 305
peso decisivo no futuro desta última. Na verdade, o desenvolvimento futuro da
empresa familiar depende bastante mais do sucesso dos processos de constituição
de pessoas, levados a cabo no seio da família, do que de iniciativas tomadas num
âmbito de acção exclusivamente empresarial.
Este argumento tem, a meu ver, uma importância particular numa reflexão
sobre a sucessão, na medida em que permite evitar algumas das armadilhas
conceptuais que nos coloca a reflexão antropológica sobre este tema. As análises
mais recorrentes sobre a sucessão no contexto disciplinar da antropologia
baseiam-se na ideia funcionalista segundo a qual todos os grupos sociais –
concebidos como sendo necessariamente corpóreos – procuram garantir a sua
reprodução. Na introdução a um dos mais importantes trabalhos sobre esta
questão – Succession to High Office –, Jack Goody afirma que
todos os grupos com algum significado e dimensão tomam providências para
assegurar a sua continuidade (…) A não ser que estejam destinados a
desaparecer simplesmente da cena social, todas as organizações (…) tomam
medidas para a transição da propriedade corpórea e para a sucessão nos cargos
mais importantes (Goody 1968: 1).
Não me parece correcto, no entanto, presumir que essa tomada de medidas
sobre a sucessão nos cargos tenha necessariamente de existir. Na verdade, ela só
se verifica nos casos em que os indivíduos envolvidos sentem um impulso de
identificação com uma entidade supra-pessoal que garanta a continuidade da
existência do sistema social em que actuam. Os projectos de sucessão só existem
quando se enraízam numa visão colectiva do futuro: um projecto de continuidade
baseado na identidade colectiva enraizada num passado partilhado que enforma
um desejo de construir um futuro comum. Neste sentido, em vez de procurar
regras de transmissão e sucessão, parece-me mais adequado tentar compreender
os processos através dos quais certas pessoas reclamam ser zs mais habilitadas
para promover a continuidade do grupo, sendo-lhes para tal reconhecida
autoridade sobre a gestão dos recursos colectivos. Estes processos permitirão
revelar a visão do mundo desse grupo, os seus ideais de organização colectiva e os
306 O pé do dono é o adubo da terra
projectos de futuro que unem aquele conjunto de pessoas em redor de um líder,
considerado como um legítimo representante dos seus interesses.
Esta vontade de promover a continuidade do grupo, do seu projecto
colectivo no tempo e das formas através das quais ela se põe em prática, torna-se,
assim, a questão que mais interessa analisar. Para o fazer devemos compreender as
estratégias desenvolvidas por aqueles que querem ser, e podem ser, sucessores.
Isto é, devemos analisar os processos pelos quais alguns indivíduos se produzem a
si próprios como sucessores mais habilitados que outros que, à partida, estão em
condições idênticas às suas. Estes processos de produção de continuidade de
projectos sociais particulares são resultado da acção consciente dos sujeitos
sociais, de homens e mulheres movidos pela sua vontade, desejos e ambições.
Neste sentido, chamo a atenção para o facto de estarmos, de novo, perante um
processo em constituição (cf. Toren 1999), um processo levado a cabo por
indivíduos que se constituem como pessoas sociais numa comunidade de acção
que querem continuar.
À semelhança do que defendi no Capítulo II, a propósito dos processos que
asseguram a continuidade dos grandes universos familiares, a utilização do
conceito de processo em constituição teve, novamente, um importante valor heurístico
na forma como desenvolvi a análise sobre os processos de sucessão no âmbito
das grandes empresas familiares. Foi a partir da utilização deste conceito que
percebi melhor as vantagens de usar também uma perspectiva ascendente na
discussão dos processos de sucessão, frequentemente pensados exclusivamente
através de uma perspectiva descendente. Pensar a sucessão com base no conceito
de reprodução social (cf. Bourdieu 1972 e Iturra 1987) orienta necessariamente a
reflexão para a análise do processo de transmissão de um conjunto de bens –
económicos, materiais, relacionais e simbólicos – de uma geração para a seguinte.
Contudo, não podemos esquecer que nestes processos sucessórios existem, pelo
menos, duas gerações envolvidas, pelo que é fundamental, na análise da questão,
ter em linha de conta as perspectivas particulares a cada uma delas e a forma
como elas se articulam e desafiam mutuamente:
O pé do dono é o adubo da terra 307
a) a perspectiva daqueles que transmitem valores e formas de acção que
querem ver continuadas; e
b) a perspectiva daqueles que querem construir o seu próprio percurso
social, de acordo com os valores do seu tempo, sem que tal signifique
abdicar totalmente do modelo dos seus antecessores.
Em consequência, os processos de sucessão não devem ser pensados como
se fossem, simplesmente, uma parte de um processo de reprodução. É necessário
olhar para os diversos processos que a viabilizam e que assentam em várias
formas de produzir diferenças entre descendentes. Efectivamente, nem todos os
filhos de grandes empresários se tornam, eles próprios, grandes empresários.
Apesar de todos serem herdeiros, nem todos serão sucessores.115 De entre o
conjunto de todos os herdeiros – constituído por todos os descendentes – só
alguns se diferenciam e se tornam potenciais sucessores.
Uma reflexão sobre a sucessão não deve centrar-se, portanto, apenas nas
estratégias desenvolvidas pela geração controlante para transmitir bens e
diferentes tipos de saberes aos membros da geração seguinte. Não basta, portanto,
criar condições para a sucessão dentro do universo da grande família para garantir
a continuidade da grande empresa familiar. É preciso que a sucessão seja bem
sucedida. É fundamental que o herdeiro que vai ocupar o lugar esteja motivado
para o desempenhar de acordo com o espírito de continuidade que animou os
seus antecessores.
115 A propósito da diferenciação entre herança e sucessão veja-se o artigo de O’Neill,
onde o autor defende que “podemos separar os actos de receber um legado ou herdar bens (herança) do processo mais sinuoso, complexo e mal documentado, da preparação de uma pessoa para suceder à administração dum património (sucessão). Duas gerações ou mais estão envolvidas e temos de analisar o problema dos diversos pontos de vista, de ambos estes lados. A sucessão pode estender-se a vários momentos de transmissão dos bens dos pais, de tios ou de outros. Pode também envolver compras e vendas, trocas e bens emprazados e/ou sub-arrendados” (O’Neill 1997: 123-4).
308 O pé do dono é o adubo da terra
2. A formação da vocação empresarial
Para percebermos o processo através do qual se consegue uma produção de
sucessores bem sucedida é importante analisar o posicionamento das gerações
emergentes face ao modelo de vida da geração controlante e declinante, tentando
compreender as motivações e as estratégias através das quais querem, ou não,
continuar os modelos defendidos pelos seus ascendentes.
Porém, nem todos os elementos da novas gerações destas famílias
constróem os seus projectos de vida por relação ao projecto económico que têm
em comum com os seus parentes. Assim, deveremos analisar também a forma
através da qual as pessoas constróem o seu percurso pessoal e profissional de
maneira a poderem vir, ou não, a participar na continuidade da empresa familiar.
Isto é, devemos debruçar-nos sobre a maneira como alguns destes herdeiros
constróem a sua vocação pessoal de empresários a partir dos legados simbólicos e
materiais que recebem da sua grande família.
Os percursos profissionais dos empresários com que trabalhei são, na sua
maioria, moldados pelas necessidades específicas ao desenvolvimento das
empresas das suas famílias. Este princípio foi-me apresentado de uma maneira
muito evidente por uma informante:
O avô formou os filhos de forma a estar um em cada lado onde fosse
necessário. Se era preciso alguém em Évora, lá ia um filho, se era necessário
outro no Porto, lá ia o outro. Era assim que se iam orientando as carreiras de
cada um (Ma).
Esta articulação dos desejos pessoais – construídos no percurso da constituição
dos indivíduos – às “necessidades” das empresas e da grande família são bem
visíveis no percurso profissional dos filhos de um dos presidentes do BES.
O pé do dono é o adubo da terra 309
MR, o filho mais velho de M, licenciou-se em economia em Lisboa. Desde
cedo, começou a ser preparado pelo pai para assumir o comando dos
investimentos financeiros e industriais do grupo familiar, o que veio a acontecer
logo que o seu pai morreu. A vida profissional de MR começou numa
dependência do banco em Lisboa e foi subindo na hierarquia e nas
responsabilidades, à medida que estava preparado para isso. No entanto, a sua
vocação profissional e o seu processo de aprendizagem para ser “banqueiro”
começou bem mais cedo e noutro lugar. Começou praticamente desde que nasceu
em casa, ao colo do pai, a ouvi-lo conversar com clientes, familiares e amigos, que
frequentavam a casa da família. Consolidou-se nos passeios que dava com o pai e
os irmãos durante os quais o pai discutia alguns assuntos do banco com os seus
jovens herdeiros.
Estes momentos familiares foram pelo menos tão decisivos para a formação
da vocação de MR como grande banqueiro, quanto a sua formação profissional.
A sua vida familiar constituiu, efectivamente, um processo de aprendizagem de
saberes através das suas práticas quotidianas, através das suas relações com as
outras pessoas com quem estava envolvido. Saber agir e relacionar-se no espaço
social particular em que vive significa que partilha com os outros que o
constituem um conjunto de significados e valores. As aprendizagens de que MR
precisava para se tornar o excelente banqueiro que veio a ser foram levadas a cabo
muito mais a este nível informal, e através da sua actividade prática no banco, ao
lado do pai, do que num espaço formal de ensino. Jean Lave chama a atenção
para esta questão ao afirmar que
Os saberes e a aprendizagem estão distribuídos por estruturas complexas de
pessoas que actuam em contextos particulares. Não podem ser metidos na
cabeça dos indivíduos, pois encontram-se nas relações que estes estabelecem
entre si. A aprendizagem não é um processo separado do fim a que se destina.
Está sempre presente, apesar de ser invisível (1996: 9-10).
Algo de semelhante aconteceu com um irmão de MR. A seguiu as pisadas
do seu irmão mais velho no curso de económicas, mas o seu destino foi o Porto,
onde se licenciou e onde permaneceu dezassete anos na filial do banco da família.
310 O pé do dono é o adubo da terra
Ao mesmo tempo que exercia as suas funções directivas no banco, foi também
administrador da Companhia de Seguros Tranquilidade, que pertencia à família. Mais
tarde, quando foi necessário um representante da família em África, o conselho de
família escolheu A para assumir o desafio, pois já tinha estado por três vezes em
Angola, durante o serviço militar. Em Angola, para além das suas funções de
presidente do Conselho de Administração do Banco Interunido de Luanda (uma joint
venture do BESCL com o City Bank de Nova York), A assumiu também a
presidência de duas sociedades agrícolas que a família detinha em Angola
(Companhia de Açúcar de Angola) e em Moçambique (Sociedade Agrícola do Cassequel).
Foi no cumprimento desta tarefa que A descobriu a sua grande vocação e a sua
grande paixão empresarial: a participação e gestão de investimentos agrícolas. Até
Setembro de 1975, A mantém-se como responsável do Grupo em África, de onde
segue – após a independência de Angola – directamente para o Brasil onde se
mantém com a família até 1990. No Brasil, A foi encarregado do lançamento de
dois grandes investimentos na área da agro-pecuária na América Latina (Brasil e
Paraguai), mas nunca deixa de colaborar com os seus irmãos, primos e tios na
reorganização das actividades financeiras da família, nomeadamente no arranque
do Banco Inter-Atlântico e da Companhia de Seguros Inter-Atlântica. 116
O grande sonho de juventude de B, irmão mais novo de A e MR, era
trabalhar numa das empresas agrícolas que a família do pai possuía em África,
juntando-se ao seu irmão. Este gosto por terras de África vinha-lhe dos tempos
em que aí passava os três meses de férias de Verão a trabalhar nas empresas da
família. Porém, quando chegou o momento de definir o seu percurso profissional,
o seu pai tinha outros projectos. Explicou-lhe que já havia um membro da família
em África e que, por outro lado, ele tinha uma África à porta de casa,
mandando-o para uma grande propriedade da família no Alentejo. Aí teria
oportunidade de viver no meio da natureza gerindo uma parte importante dos
116 Um outro exemplo do espírito de família que caracteriza as empresas do Grupo
Espírito Santo pode ser encontrado no facto de terem levado um número considerável de colaboradores (cerca de cento e oitenta) para o Brasil, quando para lá fugiram após a independência de Angola e Moçambique. Estes colaboradores recolocados no Brasil, foram fundamentais para o desenvolvimento das actividades
O pé do dono é o adubo da terra 311
investimentos agrícolas e industriais da família. B comandou a gestão desta
propriedade desde o princípio dos anos sessenta até falecer em 1998. O único
período que esteve afastado deste projecto foram os dez anos que se seguiram ao
25 de Abril, durante os quais a propriedade esteve ocupada pelos trabalhadores.
De acordo com os relatos feitos por várias pessoas desta família, também
JMe, um outro dos irmãos mais novos, foi “criado” pelo pai para ser o homem
das relações directas com os clientes. JMe fez o curso de económicas entre 1964 e
1969, no Instituto de Estudos Superiores em Évora. Após a licenciatura, entrou
para o gabinete de estudos económicos da filial do banco da família nesta cidade,
onde permaneceu cerca de três anos. Depois veio para Lisboa, para gerir o balcão
da praça do Chile, tendo posteriormente passado para o departamento
internacional. Hoje em dia, para além das funções de destaque que desempenha
no Conselho de Administração do BES e do GES, JMe é responsável pelo Private
Banking, revelando na concretização da sua vocação profissional as orientações
que o pai tinha para ele traçado desde pequeno.
O caso deste grupo de irmãos demonstra algo que encontrei em todas as
famílias empresariais que estudei: os esforços da geração controlante para orientar
o futuro profissional dos seus descendentes para as necessidades das empresas
que possuem. Ou seja, existe um planeamento, mais ou menos consciente, de
estratégias que visam a continuidade destes projectos económicos e que assentam
desde muito cedo na orientação – formação – das vocações profissionais dos
jovens de forma a assegurar da maneira mais adequada as necessidades do grupo.
A este nível não podemos, portanto, falar em vocações profissionais como
algo de pessoal, como uma aptidão inata dos indivíduos. Estamos, efectivamente,
perante vocações orientadamente construídas pelos elementos mais velhos da
família que procuram, dessa forma, assegurar a perpetuação dos projectos em que
estão envolvidos. Os esforços que a geração controlante e declinante levam a cabo
com o objectivo de sedimentar as bases de um projecto familiar têm como
consequência a consolidação dos alicerces sobre os quais se desenvolvem linhas
do GES neste país, pois constituíam uma equipa forte e de confiança, dotada do know-how necessário para construir e desenvolver um projecto económico de sucesso.
312 O pé do dono é o adubo da terra
filiais de vocações profissionais. Tal como afirma BB “Há uma certa apetência
para os negócios que tem que ver com a essência da nossa família”. Esta apetência
que BB evoca foi, todavia, claramente construída ao longo de dois séculos de
actividades económicas do seu grupo familiar.
BB é descendente da família Pinto Basto – tanto pelo lado da mãe como
pelo lado do pai. Mesmo analisando exclusivamente o seu caso vemos que, o lugar
de presidente do Conselho de Administração da Casa E. Pinto Basto que ocupa
actualmente, é o culminar de um longo percurso de trabalho nas empresas da
família, onde começou a trabalhar aos catorze anos e que o levaram a fazer o
curso de Gestão de Empresas na Universidade Livre de Lisboa. A sua vocação
profissional cresceu e consolidou-se claramente ao sabor das actividades
profissionais dos membros da sua família. A sua apetência construiu-se a partir de,
e em conformidade com, as apetências dos seus antepassados.
Conseguir transmitir a vocação empresarial às novas gerações é, portanto,
um passo decisivo para o êxito da continuidade da empresa nas mãos da família e,
consequentemente, para a manutenção do projecto dinástico. Como sintetiza o
continuador de um destes projectos bem sucedidos de permanência da empresa
nas mãos de uma mesma família:
Há realmente um modus vivendus na sucessão. Eu acho que se eu e o meu irmão
não tivéssemos querido entrar neste processo nos negócios da família talvez
o pai não tivesse o incentivo necessário para continuar os seus projectos
empresariais. Nós começámos a interessar-nos pelos negócios desde muito
cedo. E foi desde sempre muito claro que o pai nos preparava para mais tarde
o podermos substituir. O meu irmão mais velho, M foi preparado pelo meu pai
para ser o líder do Grupo. Formou-se em Económicas em Genève, na Suíça, e
entrou logo para as empresas da família. Eu tive uma formação sobretudo
prática, em bancos e nas empresas do meu pai, sempre visando assumir
posições de responsabilidade executiva dentro do grupo (Pq).
A vocação empresarial dos jovens destas famílias ligadas a empresas é,
portanto, algo que se aprende no seio da família, tal como a apetência e gostos
O pé do dono é o adubo da terra 313
pela arte ou como as boas maneiras.117 O facto de um mesmo universo familiar
conseguir produzir vários homens de negócios de sucesso é, necessariamente,
resultado de um processo que conjuga uma determinada história familiar com
práticas quotidianas particulares, permitindo, assim, que as potencialidades
individuais se “revelem” e se potenciem. Como sugere Goffman (1986) a
construção das carreiras profissionais não se circunscreve à participação dos
agentes no mundo do trabalho, mas sim a toda a experiência ao longo da vida.
Assim, a experiência adquirida antes da entrada na empresa é essencial para a
construção da posterior trajectória dentro desta.
Porém, a forma como essa vocação se adequa às exigências dos valores
hegemónicos, que condicionam as relações económicas em cada um dos diversos
períodos históricos que estas empresas familiares atravessaram, têm-se alterado de
uma forma muito significativa. Ao longo deste século verificou-se em Portugal
uma profunda alteração nos processos de entrada dos membros destas grandes
famílias como trabalhadores das suas empresas e nas formas de subir na sua
hierarquia. No sentido de mostrar essas transformações irei, de seguida, analisar
estes processos nas diversas empresas com que trabalhei, procurando articular a
exposição com as alterações que se verificaram no âmbito mais vasto da sociedade
portuguesa e da economia internacional, nas quais estas famílias empresariais
estão envolvidas.
117 No seu trabalho sobre a Indústria portuguesa e os seus dirigentes, Manuel Lisboa
(1998) comprovou estatisticamente esta mesma tendência através de um questionário aplicado a nível nacional aos empresários.
314 O pé do dono é o adubo da terra
3. A escola do trabalho: a valorização da
aprendizagem pela prática
Em Portugal, até 1974, verificavam-se elevados níveis de analfabetismo e
reduzidos níveis de ensino superior e a formação profissional era praticamente
inexistente (cf. Mónica 1978 e Ribeiro et al 1987), predominando a aprendizagem
pela prática.118 A transmissão de conhecimentos e técnicas fundamentais para o
desempenho de uma determinada profissão era feita essencialmente na “escola
prática do trabalho”.
De acordo com este modelo, a entrada de um novo funcionário na empresa
era, de uma maneira geral, feita para os sectores mais baixos da hierarquia. Só
depois, à medida que iam dando provas das suas capacidades, iam subindo. Em
todas as grandes empresas familiares que analisei, encontrei este modelo de
formação profissional e de progressão na carreira, a ser seguido tanto pelos
empregados como pelos familiares que nelas trabalhavam. Todos eram obrigados
a fazer um percurso que mostrasse que a sua ascensão profissional era feita de
acordo com os mesmo critérios que se aplicavam aos outros trabalhadores.
Simultaneamente, a aplicação deste modelo tinha, também, como vantagem dar
aos funcionários um bom conhecimento sobre os diversos sectores da empresa
em que trabalhavam.
Passei pelos vários serviços do banco e pelas suas hierarquias. Comecei por
estar ao balcão na delegação de Évora. Depois vim para a Praça do Chile e só
depois é que vim para a Administração, aqui para a sede. Este percurso deu-me
118 O baixo nível de escolarização e de formação profissional dos empresários
portugueses era ainda muito visível nos finais da década de oitenta, como mostra o inquérito nacional organizado por Manuela Silva sobre as atitudes dos empresários portugueses face à mudança e inovação tecnológica (cf. Silva et al. 1989).
O pé do dono é o adubo da terra 315
um conhecimento profundo da cultura BES, sem o qual muito dificilmente
teria a visão de conjunto que tenho hoje em dia (JM).
Comecei por baixo, como toda a gente. Iniciei-me pela contabilidade e depois
fui passando pelos vários níveis da hierarquia, à medida que ia aprendendo. Eu,
pela minha parte, fui-me adaptando e desempenhando o melhor que pude os
meus papéis no Grupo. Estive na Companhia de Petróleos de Angola e na Fina, que
eram clientes do banco em Angola. Quando o meu sogro morreu, em 1954, eu
já era director do banco e fui então convidado para integrar a administração.
Mais tarde, quando morreu M, e MR foi a presidente, passei a vice-presidente.
Nessa altura a questão do nome era muito importante: era fundamental que à
frente do grupo estivesse alguém com o nome Espírito Santo. Por esta razão,
apesar de eu ser mais antigo no banco não poderia ir a presidente. Agora é
diferente, o nome já não é tão importante pois o grupo é agora uma estrutura
organizacional diferente (CR).
Sendo o dia a dia-da-vida das empresas a escola de aprendizagem, todos
tinham de passar por ela. Mesmo os filhos dos presidentes tinham de passar por
um número considerável de postos de trabalho dentro das suas empresas, ficando,
assim, a conhecer a fundo o seu funcionamento e os problemas particulares de
cada sector. Era na prática quotidiana, através da experiência, que se aprendia a
ser um bom profissional e se consolidavam os conhecimentos que permitiriam vir
a ser um sucessor credível aos lugares de topo das empresas.
Os que entram para o banco ou para a Tranquilidade não entram por cima.
Fazem estágio em todas as secções e só depois é que chegam aos lugares de
topo, e é quando chegam. A ideia é essa, simples e correcta. Todos têm que se
esforçar e merecer os seus postos, respeitando toda a gente. Não é por serem
da família que são melhores (JM).
Todos os percursos profissionais que recolhi corroboram a utilização deste
modelo até 1974. Para além da aprendizagem que este processo possibilita, ele
trazia também a enorme vantagem de permitir mostrar publicamente que os
membros da família tinham “feito a tarimba” e mereciam subir na hierarquia da
empresa.
316 O pé do dono é o adubo da terra
Havia uma regra na família que ainda hoje se mantém que é a de que os
elementos da família que têm mais facilidade em entrar para os negócios do
grupo têm de entrar e começar por baixo. Só sobe quem der provas de que o
merece. Se não, vão-se mantendo nos seus lugares pouco importantes mas a
fazer bem o seu papel (JM).
Este modelo de aprendizagem pela prática tinha como resultado que só os
herdeiros que tivessem dado provas suficientes da sua competência podiam
ocupar esses lugares. A utilização deste modelo tem três consequências decisivas
para a continuidade das empresas familiares. Por um lado, condiciona a
progressão dos “aprendizes” vindos de fora, excluídos em detrimento dos
herdeiros, que são vistos como sucessores naturais nos lugares dos seus familiares.
Estes não só transmitem às novas gerações a propriedade das empresas como
também são os principais mestres na sua formação como empresários.
Por outro lado, este método tinha também o benefício de camuflar o
privilégio, pois, ao mostrar que havia uma progressão na carreira dos membros da
família na estrutura da empresa, legítimava esse mesmo percurso ascendente. O
que é de salientar é que se esse empregado não fosse da família não teria tido tão
rapidamente acesso a níveis cada vez mais elevados na estrutura da empresa.
Por último, este modelo de formação legitima os processos de sucessão
familiar nas empresas. Se são os herdeiros que aprendem, na prática da sua vida
familiar e profissional, as “artes de ser um bom empresário”, então é legítimo que
sejam eles, e não outros, que sucedam aos seus familiares no comando dos
destinos das empresas.
Vejamos, através da análise de percursos profissionais concretos, como é
que, até 1974, se efectuava a entrada na empresa e a progressão na carreira dos
membros destas famílias que iam trabalhar para as suas empresas.
O caso de Jg é um bom exemplo da forma como se estruturou o processo
de entrada, progressão e chegada à presidência da empresa de um filho de um
presidente de uma grande empresa familiar. Jg passava um mês das suas férias de
Verão a trabalhar na serralharia ou na carpintaria do estaleiro da obra em que o
seu pai estivesse envolvido na altura. Começou com treze anos na obra de
O pé do dono é o adubo da terra 317
construção da barragem de Castelo de Bode. Desde essa idade, Jg vive no meio
da construção de grandes obras. Nos seus depoimentos deixou claro que quando
era mais novo não imaginava sequer que iria estar trinta anos a liderar o grupo
empresarial fundado pelo pai. Mas o certo é que, quando ingressou no curso de
engenharia no Instituto Superior Técnico, de Lisboa, já sabia o que queria. O
resultado seria, quase inevitavelmente, uma vida profissional na Somague.
Poucos dias depois de se ter licenciado, em 1961, foi para Cambambe, em
Angola, onde a empresa estava a construir outra barragem.
O meu pai achou que seria um bom princípio de carreira para mim. Estive lá
durante um ano a dirigir os trabalhos de construção do turno da noite. Nessa
altura já havia terrorismo em Angola e aquelas pessoas trabalhavam num
terreno rodeado por arame farpado com uma carga de dez mil watts. Era
preciso haver alguém da família para dar o exemplo de trabalhar arduamente
naquelas condições horríveis e dificilmente suportáveis. Foi o meu primeiro
contacto com a vida profissional num projecto apaixonante. Foi um enorme
desafio. Ganhava oito contos por mês. Tinha a meu cargo a exploração da
pedreira e o fabrico de betão para todo o projecto. Depois, andei de obra em
obra até “sentar o rabo” no escritório. Antes do meu pai morrer, eu era na
empresa um engenheiro como os outros, sem qualquer intervenção na gestão.
(...) Só quando assumi a presidência é que comecei a ter uma intervenção
directa na empresa (Jg).
Dt, primo de A, fez também a licenciatura de economia mas no ISCEF, em
Lisboa. Logo que acabou o curso, Dt foi trabalhar para o banco da família, na
altura liderado pelo seu tio M, onde percorreu várias secções. Como era hábito no
grupo, subiu na hierarquia, de degrau em degrau, de acordo com as capacidades
que ia demonstrando. Começou por estar cinco anos como gerente do balcão do
Conde Barão. Em seguida foi para a sede, onde esteve na administração do banco
até “ao glorioso 25”. Durante esse período, cerca de dez anos, foi responsável pelo
departamento de obras. O seu braço direito era DRP (marido da filha mais velha
do seu irmão JMa) que, por sua vez, era irmão de outro quadro superior do
318 O pé do dono é o adubo da terra
banco, SRP (por sua vez, casado com a segunda filha de JMa). Depois do 11 de
Março de 1975, Dt esteve dois anos a viver na Áustria, ao fim dos quais voltou
para Portugal. Reformou-se logo de seguida, por não querer envolver-se “com
aquilo em que o banco se tinha transformado”. Mesmo depois de a família ter
recuperado a sua participação maioritária no banco, não tem a este nenhuma
ligação activa, limitando-se a participar como accionista nas reuniões anuais do
grupo na Suíça.
O actual presidente da Jerónimo Martins começou a trabalhar na empresa da
família aos vinte e três anos, abandonando o terceiro ano do curso de Direito, que
nunca chegaria a terminar. “Ele entrou por ser filho de quem era, claro, mas
depois deu todas as provas necessárias”, garante um antigo colega, que conclui da
seguinte forma: “Teve um pai excepcional. Era um grande homem e teve a visão
acertada de o pôr a fazer o mesmo que fazem os estagiários”. A formação
profissional de EA foi feita, sobretudo, com base na experiência e na prática.
Depois de um ano na Alemanha numa empresa associada da Jerónimo Martins, EA
foi para a Irlanda, como assistente do director de marketing, cargo que assumiu
também em França antes de regressar a Portugal para ocupar a direcção do
marketing de detergentes da Lever. Esteve apenas três anos no cargo, que trocou
pelo de director de marketing das indústrias Gessay-Lever Brasil. Dois anos depois,
aos trinta e quatro anos de idade, e em resultado da morte de seu pai, EA regressa
definitivamente a Portugal para ser nomeado administrador dos Estabelecimentos
Jerónimo Martins & Filhos e, por inerência do cargo, membro da administração do
Grupo Fima/Lever/Iglo.
Em vez da universidade de direito eu frequentei a universidade prática da
UniLever, com óptimo aproveitamento e com muito mais utilidade para os
negócios da família (EA).
Efectivamente, EA foi o grande artífice da transformação da Jerónimo Martins
& Filhos de um estabelecimento comercial e de distribuição de produtos
alimentares, com participações industriais, num dos maiores e mais poderosos
grupos económicos portugueses, que tem actualmente um peso internacional
O pé do dono é o adubo da terra 319
considerável – com importantes empresas no Reino Unido, Polónia, EUA e
América Latina.
O percurso da formação profissional de AE, feito no âmbito das empresas
da família Mendes Godinho, é em tudo semelhante aos que apresentei
anteriormente.
Comecei a trabalhar nas empresas da família em part-time porque ainda estava
no Técnico. Ao fim dos primeiros três meses passei a trabalhar a tempo inteiro
e o resultado foi que nem cheguei a acabar o curso (AE).
Foi através da prática, do contacto diário com a vida das empresas que se
foi formando como gestor. A participação activa de AE na vida das empresas da
família começou quando fez dezoito anos e recebeu dos seus pais duas acções da
Sociedade familiar, tal como era tradição na família Mendes Godinho. No
entanto, desde pequeno que os seus dias – sobretudo de férias – eram passados
nos espaços das empresas a brincar com os primos, seus futuros sócios e colegas
de trabalho. As suas actividades profissionais nas empresas iniciaram-se ao nível
da gestão corrente. No entanto, AM e o seu primo Ml foram os responsáveis pela
organização e desenvolvimento de uma das empresas mais rentáveis deste grupo
familiar. Foi no culminar desse percurso que atingiu o mais alto cargo do grupo
sendo o presidente do Conselho de Administração de Fábricas Mendes Godinho.
Como demonstram estes exemplos, praticamente até 1974, as qualidades
mais importantes para a vida empresarial dos grandes patrões portugueses foram
desenvolvidas e consolidadas na “escola do trabalho”, aprendendo pela prática e
pela partilha da experiência dos mais velhos, dos mais experientes.
Só aqueles que trabalham nas empresas podem ter acesso a este lento
processo de incorporação dos valores – dos conhecimentos fundamentais ao
mundo dos negócios – e à continuidade da empresa. A utilização desta forma de
incorporação e promoção do pessoal estende a lógica do projecto corporativista
320 O pé do dono é o adubo da terra
do Estado Novo ao próprio funcionamento das empresas, o que é visível na
ideologia subjacente à selecção dos quadros superiores da economia portuguesa.
Dada a importância deste processo de formação profissional, é curioso
notar o facto de os especialistas sobre empresas familiares não darem grande
importância a estas aprendizagens que se promovem no âmbito familiar e que
transmitem conhecimentos, relações e apetências fundamentais para a
continuidade dos negócios familiares ao longo de gerações sucessivas. A meu ver,
esta atitude decorre, como expus nos Capítulos I e II, do facto de estes
especialistas estarem presos à ideia de que a sucessão empresarial dentro da
família assenta num princípio de nepotismo desligado do critério fundamental do
mérito, concentrando os problemas decorrentes da intersecção de duas lógicas
que consideram opostas: sangue e mérito, dito de outra forma, razão e emoção. A
análise das práticas de aprendizagem levada a cabo por antropólogos em diversos
contextos sociais pode dar um importante contributo para mostrar a forma como
as experiências relacionais da vida quotidiana dos indivíduos é um elemento
central nos processos de aprendizagem (cf. Lave e Chaiklin 1996).
A aprendizagem através da prática, que se verificava na maior parte destas
grandes empresas familiares, dava origem a uma “cultura de empresa” específica,
lembrada com saudade por várias pessoas com quem falei, das várias empresas e
de diversos níveis hierárquicos. Na verdade, aquela forma de progressão
profissional criava uma certa ilusão de proximidade entre patrões e empregados
que, durante um curto espaço de tempo, trabalhavam lado a lado numa aparente
igualdade de oportunidades. Este processo de subir na hierarquia das empresas,
degrau a degrau, criava uma imagem de uma progressão merecida por parte dos
herdeiros que atingiam os lugares de topo na empresa. Aqueles que ficavam pelos
níveis intermédios eram, em geral, os membros da família mais novos ou os
menos competentes, facto que contribuía para justificar o modelo.
De acordo com este modelo de formação profissional era, portanto,
considerado legítimo que os filhos sucedessem aos pais na liderança dos negócios.
Essa sucessão filial, não levantava, na altura, grandes problemas ideológicos ou de
ordem moral à avaliação do funcionamento das empresas. Tal era resultado de os
O pé do dono é o adubo da terra 321
membros da família que se apresentavam como sucessores serem sujeitos a
processos de formação profissional que, em grande parte dos casos se revelava
eficaz. Pelo contrário, era um critério absolutamente adequado ao modelo
familista de organização empresarial que predominava no âmbito do sistema
económico português – fechado, corporativista e paternalista, como demonstrei
nos Capítulos I e II. Numa sociedade como Portugal do Estado Novo, onde a
família constituía a principal metáfora da organização social (cf. Lucena 1976,
Martins 1968 e Rosas 1992), não só era aceitável, como era até legítimo que a
empresa seguisse o modelo de organização familiar.
Este sistema familista, verificava-se, aliás, em toda a estrutura organizacional
destas empresas e não apenas ao nível da sucessão dos membros da família nos
diversos cargos da empresa, mas também na própria organização desta. Como me
disse um funcionário que trabalha há trinta anos numa destas empresas familiares:
O banco não só tinha uma estrutura familiar a nível dos órgãos de gestão mas
também a nível dos empregados. Há várias gerações familiares entre os
empregados que se mantêm no banco desde a sua fundação. Há cerca de um
ano, o actual presidente decidiu alterar esta estrutura excessivamente familiar e
admitiu cerca de duas centenas de licenciados. Isto talvez faça parte da
alteração operada pelo actual presidente, pois ele próprio alterou a prática
familiar de passar a presidência da administração para o filho mais velho (CD).
Outro antigo trabalhador do banco reforça esta imagem da seguinte
maneira:
Todo o banco era como uma grande família. Todos os empregados defendiam
“a camisola”. Aliás, para mostrar bem isso à administração, há uns anos os
trabalhadores mais antigos fizeram uma camisola pequenina que penduraram
nos gabinetes dos administradores. Ainda se mantém um certo espírito de que
na equipa somos todos uma família (jm).
É dentro deste contexto ideológico que devemos entender a importância da
sucessão filial masculina como ideal de continuidade para estas famílias ligadas a
empresas. Ter os descendentes masculinos como sucessores significa que estes
322 O pé do dono é o adubo da terra
fizeram um conjunto de aprendizagens que os habilitam a ocupar determinados
lugares nas empresas. Com base nesse conjunto de saberes adquiridos poderão,
mais tarde, transmitir os símbolos de identidade familiar aos seus descendentes
que, se os apreenderem correctamente, se poderão tornar, por sua vez, sucessores
do projecto colectivo.
Saliente-se que o conjunto de saberes que cada pessoa deve adquirir não é
igual para todos. Depende da posição de cada um na família, das suas expectativas
e projectos de vida, da sua idade, da categoria de género a que pertence. O
conjunto de saberes que se espera que os potenciais futuros herdeiros aprendam,
as práticas e as relações sociais em que são envolvidos, não são os mesmos que as
das suas irmãs. Como vimos no capítulo anterior, as mulheres não são sucessoras
credíveis, na medida em que os seus descendentes directos serão,
preferencialmente, portadores dos símbolos identitários da família dos seus
maridos. Neste sentido, não precisam de aprender a gerir um grande negócio.
Devem concentrar-se em aprender a “gerir” a sua família e a grande família a que
pertencem. Não há, portanto, homogeneidade no que os diversos indivíduos
devem aprender, nem nos processos através dos quais cada um deles fará as suas
aprendizagens, na medida em que se espera que cada um tenha um papel distinto
na continuidade do grupo.
Recorrer a formas de transmissão de propriedade, de saberes e de acesso a
cargos baseadas em mecanismos de selecção dos elementos que terão um papel
decisivo na continuidade do projecto empresarial familiar traduz, novamente, o
recurso à metáfora da aristocracia como modelo legitimador da estrutura da
organização. O expoente máximo desse ideal aristocrático de continuidade na
grande empresa familiar é, como já referi, a primogenitura. A aplicação prática do
ideal da primogenitura dá azo a um modelo de transmissão de bens e cargos que
pretende naturalizar o processo de escolha entre herdeiros – algo que,
obviamente, não é natural. Como defendem vários dos meus interlocutores,
a primogenitura tem a vantagem de todos saberem desde pequenos quem é que
vai receber a presidência, pelo que as escolhas dos pais são vistas como um fait
accomplit e não como uma demonstração de favoritismo (Pq).
O pé do dono é o adubo da terra 323
Ora, nem sempre é possível concretizar este ideal de sucessão, tanto devido
à aplicação da lei portuguesa como à existência de circunstancialidades da própria
família – por exemplo, não haver um varão ou este não ser apropriado para o
cargo. Nestes casos, a estratégia seguida é semelhante àquela que identifiquei nos
processos de transmissão de nomes de família quando não havia um descendente
masculino para dar continuidade ao patronímico. Pode passar-se a liderança a um
filho mais novo, a um sobrinho ou a um neto. O que importa é garantir a
transmissão do cargo dentro da família, mesmo que tal seja feito através de linhas
sucessórias de recurso que servem de mediação simbólica para a concretização do
objectivo central.
Desta forma, as famílias recriam, no âmbito empresarial, uma passagem da
identidade por via masculina, validando uma vez mais, a hegemonia masculina que
liga as várias gerações da propriedade e legitima a importância da identidade
agnática. As linhas de descendentes masculinos que assim se formam, criam as
bases estruturais de uma ordem de organização varonil que enforma e dota de
sentido a concepção do mundo partilhada por estas famílias.
Dos vários exemplos de que disponho, o da família Vaz Guedes é
particularmente elucidativo sobre a utilização em concreto deste ideal. Como
veremos mais à frente, este exemplo permitir-me-á mostrar como os critérios de
selecção de sucessores se alteram historicamente em sintonia com as
transformações dos ideais hegemónicos de funcionamento da economia
internacional.
Quando o meu pai já estava muito doente chamou-me e, à minha frente,
limpou a sua secretária e mandou-me sentar. Disse-me que tinha chegado a
altura de eu tomar conta dos destinos da firma. Morreu pouco tempo depois e
a sua morte foi um grande choque para todos. Suceder ao meu pai foi uma
grande responsabilidade, e só fui bem sucedido pela confiança que os meus
irmãos depositaram em mim. (…) Eu sou o resultado de uma estranha mistura
de caracteres: de um avô sindicalista, outro avô que foi Ministro da I República,
nas pastas do Comércio e do Trabalho; uma avó aristocrática e um pai
humanista e liberal, para quem o respeito pelos outros e os princípios morais
eram os principais valores. Mas eu só consegui fazer o que fiz com as empresas
324 O pé do dono é o adubo da terra
com a ajuda de todos. A união e a total confiança entre os irmãos foi o grande
trunfo do sucesso da Somague (Jg).
Neste caso não há qualquer tipo de hesitação. É o filho mais velho, que
trabalha nas empresas já há tempo e que está por dentro dos seus assuntos e do
seu funcionamento, que assumirá a presidência – sem nenhum tipo de concurso
ou de consulta aos co-herdeiros. O líder escolhe o seu sucessor e o processo está
concluído.
A forma como, alguns anos mais tarde, Jg escolheu o seu sobrinho para ser
o seu sucessor foi substancialmente diferente. A análise mais detalhada deste caso,
que farei no início da próxima secção, permitirá mostrar as alterações da situação
social, económica e política que ocorreram em Portugal nas últimas décadas.
Aliás, qualquer estudo sobre processos de escolha de sucessores para cargos de
topo em empresas familiares deveria considerar os processos de desenvolvimento
das empresas como parte integrante do contexto socioeconómico nacional em
que estão inseridos.
4. A importância da formação profissional
na produção de sucessores
Só recentemente se começa a verificar em Portugal a existência de uma
preparação profissional formal por parte dos quadros de topo das grandes
empresas (cf. Makler 1969, Ribeiro et al. 1987 e Silva et al. 1989). Mesmo assim, é
interessante notar que, dos sete presidentes das grandes empresas com que
trabalhei, quatro não são licenciados. Fazem ainda parte de uma última geração de
O pé do dono é o adubo da terra 325
grandes empresários portugueses para quem a experiência e o conhecimento
prático valiam mais para a sua formação profissional do que os diplomas
académicos. No entanto, os seus descendentes que estão já a trabalhar nas
empresas têm, na sua maioria, graus de licenciatura e, alguns deles, até
pós-graduações.
Vejamos como ocorreu este processo através da continuação da
apresentação da sucessão nas empresas da família Vaz Guedes.
Quando D acabou o segundo ano do curso de gestão da Universidade
Católica, em 1984, foi pedir emprego ao tio na Somague para começar a trabalhar
em part-time. Aí trabalhou durante três anos, até acabar o curso. Depois de
licenciado foi trabalhar para uma outra empresa, que nada tinha a ver com a sua
família, onde esteve dois anos. No final deste período, que no seu entender foi
fundamental para se afirmar como um profissional competente fora da influência
da família, o tio chamou-o para ele regressar à Somague (1989/90). Nessa altura, D
tornou-se o único elemento da terceira geração da família a trabalhar na empresa
fundada pelo seu avô. No entanto, a pouco e pouco, os seus primos e o seu irmão
têm vindo a ocupar lugares de destaque nas diversas empresas da família. Todos
eles têm feito especializações que lhes permitem adquirir o know-how para se
afirmarem neste contexto profissional competitivo.
O convite feito a D, para liderar o executivo do Grupo, ocupando o cargo
de presidente do Conselho de Administração da Somague, foi explicado assim pelo
tio:
Eu quis preparar com cuidado a minha sucessão na empresa, porque a minha
maneira de estar na vida é retirar-me enquanto estou bem. Para não ficar “com o
rabo colado à cadeira”. (…) Agora tenho muito melhor qualidade de vida. Não
estou ocupado com os detalhes do dia-a-dia das empresas e tenho uma maior
visão global do Grupo. Não fazer isto é a melhor maneira de arruinar uma
empresa. É o caso típico do tema que lhe interessa – do sucesso ou do fracasso
das empresas familiares. Foi por isso que, com tempo, escolhi o meu sobrinho
D para liderar o executivo do grupo, enquanto eu ainda cá ando, com saúde e
com capacidades para o apoiar no que ele precisar.
326 O pé do dono é o adubo da terra
Toda a gente me pergunta por que o escolhi a ele e não a um dos meus
filhos. É por isso que as empresas familiares não vão para a frente mais vezes,
porque as pessoas acham que os filhos devem suceder aos pais. Eu acho que
dentro da família se deve escolher o melhor. Não é preciso ser filho. Desde que
seja do mesmo sangue é a família que continua à frente da empresa. Escolhi o
D por ele ser o elemento da geração seguinte que tinha, na altura, maior
experiência empresarial, a melhor preparação académica e um bom senso que é
comum a todos os meus filhos e meus sobrinhos. Actualmente, todos estes
ocupam lugares importantes em empresas onde a família tem interesses, de
acordo com os perfis de cada um. O meu filho Jo, o mais velho, é
administrador da Sofip, da Somague, Sgps e da Imolusa, Sarl. A é administrador da
Mague. GP, e F irão em breve trabalhar numa empresa onde temos
participação. O que eu peço a todos é que se empenhem do mesmo modo que
eu me empenho há mais de trinta anos (Jg).
A nova geração da família Vaz Guedes que está agora à frente dos projectos
económicos da família não passou pela tarimba da obra, como os da geração
anterior. Após a sua formação profissional escolar ocuparam directamente os seus
postos e, só então, experienciaram a vida quotidiana das suas empresas.
As mudanças nos critérios de exigência no recrutamento dos mais altos
funcionários das empresas tem que ver com alterações de maior amplitude
ocorridas no âmbito da sociedade em que estão integrados. O progressivo
abandono do recurso sistemático a critérios familistas na contratação de pessoal
para as empresas familiares, a que assistimos a partir de 1974, não resulta
exclusivamente da adesão a uma lógica moderna de mercado. Significa, também,
um afastamento dos princípios ideológicos subjacentes ao modelo de sociedade e
de economia salazaristas e a adesão aos ideais de uma economia moderna, aberta e
competitiva. Recrutar pessoal com base em critérios familiares é, assim, associado
a métodos tradicionais e não modernos, típicos de uma economia fechada,
condicionada e controlada pelo Estado.119
119 Mary Bouquet chamou a atenção para esta atitude negativa dos portugueses na década
que se seguiu à revolução a propósito da falta de interesse que estes mostravam por questões relacionadas com a família (cf. Bouquet 1993).
O pé do dono é o adubo da terra 327
De acordo com os ideais da moderna economia de mercado, a única forma
legítima de ocupar os lugares superiores das empresas é a competência
profissional demonstrada publicamente. As grandes empresas familiares actuam
num domínio empresarial onde a racionalidade económica – que simboliza a
legitimidade pública do prestígio, do estatuto e da riqueza – colide com o ideal
que defendem de passar filialmente o testemunho da liderança. Neste sentido,
para que os valores e os ideais das grandes famílias ligadas a empresas – que,
como vimos anteriormente, defendem ideais aristocráticos de continuidade
familiar120 – possam sobreviver nesta nova era social e empresarial, têm de se
ajustar aos ideais hegemónicos da actual economia de mercado. Ora, estes exigem
àqueles que nela estão envolvidos uma sólida formação profissional. Uma vez que
este contexto profissional tende a ser, actualmente, governado por critérios de
competência profissional, os líderes destas empresas têm de defender princípios
claros e rigorosos de igualdade de oportunidades e de meritocracia121 nos
processos de recrutamento de pessoal, não podendo, de forma alguma, basear-se
em ideais de descendência linear, sob pena de perderem credibilidade e não
garantirem o bom desempenho dos seus profissionais.
O exemplo que apresentei anteriormente sobre alguns momentos de
sucessão na liderança do Grupo Espírito Santo demonstra a importância que, no
início dos anos setenta, os membros desta família atribuíam ao facto de os
potenciais sucessores à presidência das suas empresas serem portadores dos
principais símbolos da identidade familiar. Ser portador do apelido significa
partilhar a substância da família – o “sangue”. Tal era considerado uma condição
básica para aceder a posições de liderança nas grandes empresas familiares.
Efectivamente, o caso da sucessão de 1972 mostrou que, na altura, ser um bom
profissional não chegava para aceder aos lugares de topo da hierarquia dessa
120 Devo lembrar, no entanto, que não é apenas neste contexto que os valores familiares
tiveram de ter presentes as condições de sucesso da empresa. Efectivamente, se não os tivessem constantemente presentes, a família não teria o seu carácter dinástico.
121 Utilizo o conceito de meritocracia para referir a situação em que o mérito do desempenho profissional é o critério de recrutamento dos profissionais.
328 O pé do dono é o adubo da terra
organização. Os sucessores deveriam trazer, também, consigo o apelido: a
substância da família, simbolizada, no nome da empresa.
Em Agosto de 1995 foi necessário escolher um novo presidente para o
Conselho de Administração do GES. Desta vez a presidência foi atribuída a CR,
que previamente tinha sido preterido nessa escolha. O que é que mudou? Que
critérios de selecção foram alterados? Em 1995, quando MR morreu, o longo
período de permanência no estrangeiro tinha alterado a relação de forças dentro
da família. Dois outros factores, no entanto, têm uma importância central. Em
primeiro lugar, a nova ordem democrática instalada em Portugal depois da
revolução de 1974, e, em segundo lugar, o facto de o Grupo Espírito Santo já não
ser agora exclusivamente familiar, na medida em que quando se restabeleceu em
Portugal, comprando o BIC e posteriormente a Tranquilidade e o BESCL, tinha
dois importantes partners financeiros: o Crédit Agricole (francês) e os Agnelli
(italianos). Assim, em 1995, apesar de não ter o nome de família, a presidência foi
atribuída ao único membro vivo da segunda geração do grupo – CR – num acto
simbólico, para garantir a continuidade do velho projecto familiar, fazendo
também justiça ao critério de senioridade como algo de importante na cultura
empresarial do grupo.
Este é o argumento tal como ele é apresentado pelos membros da família.
Descobri, no entanto, que na altura da crise sucessória de 1972, o ramo familiar a
que estava ligado CR não tinha sido suficientemente forte para competir pela
presidência. Este ramo era formado apenas pelas quatro filhas de R e pelos seus
maridos. O facto de os descendentes deste ramo serem exclusivamente mulheres
era sentido como uma desqualificação. Por isso, R – sogro de CR – determinou
em testamento que a propriedade das suas acções do banco seriam para os seus
netos, deixando às suas filhas apenas o usufruto até ao momento em que os netos
atingissem a maioridade. Em 1995, porém, o ramo de CR tinha já adquirido
poder suficiente para recuperar a presidência do grupo. Investindo na
profissionalização dos seus membros – que são agora a quarta geração da família a
trabalhar em empresas do grupo – provaram ter excelentes qualidades de gestão e
liderança, dando ainda uma contribuição fundamental na reconstrução do grupo
O pé do dono é o adubo da terra 329
económico no estrangeiro e na recuperação do antigo negócio familiar em
Portugal. Actualmente CR é o presidente do Grupo e o sobrinho mais velho do
seu ramo, acumula os cargos de presidente executivo do Grupo e de presidente
do banco.
Porém, devemos notar que, na maior parte destas empresas, a pertença à
família também não é, por si só, um critério suficiente para recrutar novos
membros para ocupar lugares importantes. Eles devem ser, acima de tudo,
profissionalmente competentes. Os membros destas famílias empresariais têm
clara consciência da amplitude das consequências de eventuais más decisões e
sabem que o seu futuro, o futuro das suas famílias e dos seus sócios, dependem
de boas escolhas. Como sintetiza BO,
O meu pai dizia sempre “se eu fizer um mau negócio é mau para trezentas
famílias, não é apenas para a minha” (BO).
Em virtude das graves consequências económicas de possíveis decisões menos
acertadas, os líderes das grandes empresas familiares têm de garantir,
constantemente, um nível elevado de competência profissional para os gestores
em todos os níveis da sua organização. De facto, se querem garantir o
crescimento económico das suas empresas, a sua credibilidade financeira e a
confiança dos seus investidores públicos, têm de assegurar, em primeiro lugar,
que possuem os melhores gestores nas posições executivas centrais.
A família Mendes Godinho é um bom exemplo das consequências de não
investir na formação profissional das novas gerações. A administração das
empresas desta sociedade familiar foi sempre constituída exclusivamente por
membros da família. Na altura da morte do fundador, a presidência foi assumida
pelo seu filho mais velho. Este morreu repentinamente e foi também substituído
pelo filho mais velho. Quando, mais tarde, este se retirou, foi substituído por um
cunhado a quem sucedeu, posteriormente, um sobrinho. Estas empresas sempre
recorreram aos membros da família para ocupar os corpos dirigentes. Alguns
observadores têm atribuído a situação em que se encontram os negócios desta
família a um excesso de espírito familiar que obrigava a que apenas membros da
família pudessem assumir cargos de chefia nos negócios familiares. Este ideal
330 O pé do dono é o adubo da terra
estava tão fortemente enraizado na cultura da empresa e validado nos estatutos da
firma, que não era abandonado, nem mesmo em momentos indiciadores de
colapso financeiro. Nesta família empresarial sempre se defendeu que
as pessoas da família tinham sempre de ter lugar nas empresas. Já aí vinha a
quarta geração e era preciso diversificar os negócios para os integrar. Não era
preciso fazer provas para entrar nas empresas e isso foi muito prejudicial (AE).
A política de dar emprego a todas as pessoas da família foi, segundo um
antigo presidente da sociedade, muito prejudicial. Por um lado, contratavam
pessoas só pelo facto de serem da família, sem terem em conta se as suas
competências profissionais eram adequadas ao lugar que iam ocupar nas
empresas. Por outro, este critério de contratação dava origem a situações de
conflito.
Muitas das mulheres da família queriam empregos como secretárias. Isto criava
muitos problemas com os outros empregados porque, às horas da Assembleias
Gerais da sociedade, elas levantavam-se e também iam decidir o futuro da
empresa. Outras vezes, elas simplesmente não aceitavam ordens dos seus
superiores hierárquicos na empresa porque, como eram accionistas, achavam
que não tinham obrigação de o fazer. Pelo facto de acharem que tinham
privilégios por serem accionistas, queriam ir de férias quando lhes dava mais
jeito e não na sua vez do turno. Realmente, era muito complicado gerir esta
sobreposição de papéis (AE).
Este exemplo chama a atenção para uma outra questão. Estas empresas não
necessitam apenas de líderes, de pessoas para ocupar os lugares de topo. Precisam
também de pessoas a todos os níveis da sua organização – secretárias, quadros
médios, administrativos, chefes de secção, etc. O acesso a estes patamares
intermédios é conseguido de uma forma menos exigente em termos de
competição exterior, permitindo uma entrada mais facilitada para os familiares
menos preparados profissionalmente. É precisamente nestes níveis intermédios
que encontramos o maior número de mulheres destas famílias a trabalhar nas
empresas.
O pé do dono é o adubo da terra 331
Como vimos, EA tem vindo a integrar os filhos na direcção dos negócios.
Os três mais velhos já fazem parte do Conselho de Administração da Jerónimo
Martins e o mais novo está a receber formação no estrangeiro para poder vir a ser
admitido. A escolha dos membros do Conselho de Administração é feita por
consenso de todos os membros em funções e com base na análise da performance
desse candidato nos últimos anos. Os três filhos mais velhos foram sujeitos a um
apertado processo de selecção, antes de ingressarem nesse órgão ao lado do pai.
Tal como todos aqueles que ocupam lugares de chefia no grupo, também eles
tiveram primeiro de concluir um curso universitário e iniciar uma carreira como
management trainee percorrendo depois todos os escalões da hierarquia. O mais
velho é licenciado em gestão e tem um MBA do Insead, em França.
O processo de entrada de um quadro superior nas empresas do Grupo
Jerónimo Martins é bastante complexo e revelador da permanência de critérios de
experiência prática de gestão da “casa”, articulados com as novas exigências de
formação profissional. Depois de uma apurada selecção, os candidatos escolhidos
ficam durante um ano a estagiar “para que após cinco belíssimos anos na
universidade percebam o que é a vida real”. Só aqueles que atingem o primeiro
lugar nas provas de selecção feitas no final desse ano seguem uma carreira dentro
da empresa onde, actualmente, noventa por cento dos quadros são licenciados. O
investimento feito por este Grupo na formação profissional dos seus funcionários
é claramente assumido como um investimento estratégico no seu futuro. Para
cumprir este objectivo, o Conselho de Administração estabeleceu acordos com
prestigiadas universidades – Universidade Nova e a Universidade Católica (em Lisboa),
Stanford e Harvard (nos Estados Unidos da América) e INSEAD (França)122 – a
fim de melhorar a formação dos seus quadros.
122 O INSEAD foi analisado pela socióloga Jane Marceau em A Family Business? Nesta
obra a autora mostra como se constitui uma elite empresarial internacional e como ela se reproduz através de uma cuidadosa escolha da escola para onde enviar os filhos para fazerem as suas pós-graduações em gestão de empresas. A autora analisa a carreira de dois mil graduados do INSEAD (Fointainbleau, França) entre 1959 e 1979. O objectivo do estudo de Marceau foi compreender como é que os filhos da burguesia tradicional europeia se tornam uma elite empresarial internacional,
332 O pé do dono é o adubo da terra
Nesta nova era da economia de mercado, os sucessores têm de se formar
enquanto tais. Já não há lugar para sucessores naturais. É por esta razão que estas
grandes famílias empresariais fazem hoje em dia um grande investimento na
formação académica dos seus descendentes masculinos, de forma a fornecer-lhes
a melhor preparação profissional possível. Se estiverem bem preparados
profissionalmente, mesmo numa situação de competição aberta, eles podem
sempre provar que são os profissionais mais aptos para ocupar os principais
lugares de decisão nas empresas da família.
A análise histórica dos casos que estudei leva-me a concluir que, para
continuarem a colocar os herdeiros com vocação empresarial no topo da
hierarquia, estas famílias tiveram de alterar consideravelmente as suas estratégias.
Até 1974, integravam-se os familiares na empresa e só depois se procedia à sua
preparação, fazendo posteriormente a selecção daquele que iria suceder ao antigo
líder. Actualmente, os herdeiros que se quiserem assumir como potenciais
sucessores têm de se preparar academicamente para poderem aceder ao primeiro
patamar desse longo processo: ser recrutado como trabalhador da sua empresa. O
ideal aristocratizante de privilegiar o primogénito permanece como princípio
orientador. No entanto, ele só funciona se o visado desenvolver estratégias
pessoais que lhe permitam adequar as suas competências ao ideal familiar, se der
provas práticas de merecer a efectivação do ideal. É de novo a prática dos
indivíduos que permite alcançar, ou não, a credibilidade, tornando o ideal efectivo.
Cada um destes dois grandes períodos da história económica portuguesa
recorre a modelos diferenciados de recrutamento de parentes para os lugares mais
importantes das grandes empresas familiares. Todavia, em ambos, e apesar de os
modelos seguidos por cada um serem baseados em critérios diferentes,
verificamos que se cumpre um dos objectivos primordiais destas famílias:
conseguir recrutar membros das novas gerações para continuar a empresa.
Os dirigentes de empresas que chamam para seus colaboradores filhos e
sobrinhos estão à procura de pessoas próximas em quem possam, à partida,
consciente de si própria, para a formação da qual o INSEAD tem um papel fundamental.
O pé do dono é o adubo da terra 333
depositar a sua confiança. Esta confiança decorre do simples facto de serem
parentes – aquilo que Schneider designava por solidariedade desinteressada difusa
(1980: 324) –, de partilharem uma identidade familiar, de terem em comum
interesses de várias ordens, que defendem e tentam reproduzir. Apesar do
recrutamento de membros da família ser uma prática recorrente em todas estas
empresas familiares e, como vimos, nos seus diversos níveis hierárquicos, a tónica
é sempre colocada sobre a necessidade de recrutar colaboradores de absoluta
confiança. O que está em causa não é, portanto, a transmissão de cargos de pais
para filhos, mas sim a transmissão do vínculo sentimental ao projecto económico,
a partilha dos símbolos que o identificam e que legitimam a autoridade do
exercício dos cargos.
Este complexo processo de sucessão familiar na empresa é também um
indicador de que existe, actualmente, uma consciente preocupação de evitar
acusações de nepotismo. De forma a evitá-las, os parentes que ocuparem lugares
nas empresas familiares, têm de conseguir mostrar publicamente que cumprem
critérios meritocráticos: que têm os conhecimentos, a capacidade e o interesse
para contribuir para o desenvolvimento da empresa.
Devemos, no entanto, notar que, na maioria dos casos, os filhos destas
famílias sucedem nos cargos dos seus pais. Tal é resultado dos investimentos
desta nova geração que se quer envolver e participar no projecto familiar, mas é
também uma prova de que a vocação empresarial foi transmitida com êxito.
Apesar de os herdeiros estarem bem posicionados para ocupar os cargos mais
importantes das suas empresas – uma vez que o ideal aristocrático de organização
destas famílias os coloca numa posição simbólica privilegiada –, eles só ocuparão
esses cargos se provarem ser os profissionais mais competentes e melhor
preparados para o fazer. A formação profissional é um legado muito importante
que estas famílias proporcionam às suas gerações futuras. É esse factor que
promove a diferenciação entre os diversos profissionais que se candidatam a um
lugar, permitindo também estabelecer diferenças nas aptidões profissionais entre
herdeiros. Uma boa preparação académica e um bom desempenho profissional
são, portanto, os elementos que, actualmente, permitem transformar um ou dois
334 O pé do dono é o adubo da terra
herdeiros em sucessores potenciais ao lugar de patriarca da família ou líder da
empresa. Simultaneamente, o processo de produção da distinção entre os
parentes, feito através deste investimento na formação profissional, é o que
garante a reprodução deste grupo social como uma elite.
Em suma, a capacidade das famílias de elite de produzirem com alguma
frequência lideranças de sucesso é resultado deste conjunto de transmissões e
aprendizagens multifacetadas que são feitas quotidianamente, ao longo da vida
dos indivíduos.
5. A transmissão de um capital compósito:
o legado mais importante na produção de
sucessores
O elevado poder económico das pessoas deste grupo social permite-lhes aceder às
melhores escolas do mundo, onde podem garantir o melhor capital cultural e
profissional para os seus filhos. Os filhos destas famílias vão com frequência para
as mesmas escolas. A concentração dos membros mais jovens destas famílias
ligadas a empresas em certas escolas e em certas universidades pressupõe,
também, a restrição dos seus círculos sociais no referente a actividades de lazer.
Dessa forma, tornam-se colegas e amigos, dando continuidade à rede de relações
económicas e sociais dos seus pais. O facto de, teoricamente, as escolas por eles
frequentadas serem abertas, cria a ilusão de que todo o sistema se baseia na
meritocracia.
Mas não devemos esquecer que estes jovens da elite lisboeta, tal como
aqueles que Jean Marceau estudou, têm acesso a um tipo de conhecimentos que
não é possível aprender nas escolas, por melhores que estas sejam. Os factores
O pé do dono é o adubo da terra 335
verdadeiramente determinantes do sucesso da educação formal encontram-se fora
da instituição escolar: eles estão relacionados com a sua existência privilegiada do
ponto de vista económico, social e cultural. O tipo de conhecimentos, valores,
formas de estar, sentido estético, motivações e objectivos que as suas experiências
de vida lhes fornecem, são aprendidos no seio da família e nas relações sociais
informais estabelecidas no âmbito do seu meio social. Mais do que uma boa
preparação profissional, o que distingue os jovens destas famílias empresariais dos
outros profissionais competentes – mas originários de famílias de outros grupos
de estatuto – é o seu capital social, o capital relacional das suas famílias e o
ambiente social privilegiado em que vivem. Estes bens são exclusivos a este grupo
de elite financeira e não podem ser comprados ou aprendidos por pessoas de fora.
Transmitidos no seio da família, estes bens não são apenas materiais. Como
dizia Bertaux, “o que estabelece a instituição da herança é a transmissão de um
sistema de relações: ela é a relação de transmissão de relações” (1976: 72). Ao
restringir o acesso a estes capitais – sociais e relacionais – aos elementos do seu
próprio grupo, ao longo de várias gerações, estes indivíduos garantem o acesso
dos seus membros às mais importantes posições de gestão nas empresas das suas
famílias e, simultaneamente, impedem informalmente a entrada de estranhos.
Neste contexto profissional e social, a meritocracia é, acima de tudo, resultado do
estatuto socioeconómico destas famílias: do seu poder económico, das suas
influentes relações sociais e do seu elevado prestígio social.
Na medida em que, através desse processo, se consegue fechar
informalmente as fronteiras do grupo social, está-se a reproduzir a desigualdade
no âmbito do sistema social mais vasto e formalmente aberto. Desta forma, é
possível recrutar exclusivamente indivíduos do grupo, sob a aparência de
princípios estritos de igualdade de oportunidades, o que, segundo Abner Cohen,
são duas das mais importantes características dos grupos de elite (Cohen 1981:
220).123
123 No seu trabalho sobre a elite Crioula na Serra Leoa, Abner Cohen mostrou como é
através de relações informais de parentesco e amizade que este grupo de elite fecha as suas fronteiras e consegue, portanto, reproduzir a sua condição social privilegiada. Cohen dá-nos, também, um excelente exemplo de como esse mesmo grupo cria um
336 O pé do dono é o adubo da terra
Não se trata, portanto, de uma situação em que através de um grande capital
económico se faz um investimento particular na formação profissional das novas
gerações da família. As transmissões patrimoniais e monetárias, feitas de uma
geração para a seguinte, são decisivas para a forma como as novas gerações se
integram na vida da sociedade de que fazem parte. Todavia, as heranças que
recebem não podem ser medidas, exclusivamente, em termos dos seus benefícios
financeiros. Há numerosas vantagens que não são estritamente económicas, como
sejam os privilégios conferidos pela educação, estilos de vida, relações sociais e
contactos.
Dos pais não se herdam apenas os bens. Herdam-se conhecimentos que,
por serem aprendidos, repetidos e exemplificados no quotidiano, se convertem
em hábitos e em regras implícitas, constituindo o conjunto de saberes necessários
para se construir com sucesso um percurso social. A qualidade de vida que lhes
proporciona a sua existência quotidiana permite-lhes, também, inserirem-se num
conjunto particular de relações sociais. Assim, uma parte importante da
constituição dos membros das novas gerações como empresários é levada a cabo
no âmbito da intimidade familiar (intimacy, cf. Herzfeld 1997), na partilha das
práticas desses exemplos que, mais tarde, os seus descendentes aprenderão com
eles.
A sucessão empresarial bem sucedida pressupõe, portanto, a transmissão de
formas múltiplas de heranças: materiais, financeiras, culturais, relacionais, morais e
simbólicas. A transmissão deste conjunto de dotes informais, que se faz ao longo
das várias gerações da família, é um legado tanto ou mais importante para o êxito
da sua continuidade do que os legados materiais contabilizáveis que a ela estão
associados. Chamo de novo a atenção para o facto de os especialistas sobre
sistema formalmente meritocrático sobre um sistema informal de recrutamento do seus próprios membros. Para que as condições de dominação do grupo se reproduzam, é fundamental produzir herdeiros capazes de levar a bom termo a herança. Apesar de essa ser uma responsabilidade da família, ela afecta todo o grupo. Neste sentido, Cohen defende que a reprodução social das elites deve muito à transmissão de diferentes formas de capitais que não se limitam à riqueza material. O capital económico, o capital cultural e o capital social são os fundamentos da riqueza que perdura, e são transmitidos no seio da família, que se torna, assim, uma instância decisiva neste processo.
O pé do dono é o adubo da terra 337
empresas familiares não darem atenção a este aspecto, que me parece fundamental
no assegurar da continuidade deste tipo de empresas. Creio que o próprio facto de
levantar esta questão mostra, uma vez mais, que a antropologia abre novas
perspectivas neste campo de estudos, ao mostrar a importância das relações
interpessoais nos processos de construção e transmissão de um conjunto
particular de conhecimentos.
Nem tudo o que implicam estes legados acumulados e transmitidos
geracionalmente pode ser objectivamente quantificável, o que demonstra a
multidimensionalidade da riqueza destas grandes famílias. Assim, quando falamos
de herança neste caso, devemos referir-nos à transmissão tanto de um património,
simultaneamente, material, económico e financeiro, como de um património
moral, relacional e cultural. Esta acepção compósita da herança evidencia-se
quando vemos que os processos de transmissões entre as gerações de famílias
ligadas a empresas envolvem, não apenas as quotas de propriedade das empresas,
mas também as qualidades individuais necessárias para a continuidade. Um bom
sucessor – aquele que se revela mais apto de entre os seus pares – é, então, aquele
que consegue reunir essa multiplicidade de critérios da herança. Como mostrei
mais atrás, não basta ser um excelente profissional, pois pode haver outros entre
os seus familiares. Um sucessor de sucesso tem de se impôr também como aquele
que melhor consegue dar continuidade à unidade da família e ao seu projecto
identitário, continuando no futuro as relações de intersubjectividade anteriores
que lhes conferiram um forte prestígio social. O que têm os sucessores de mais
êxito é um carisma – no sentido Weberiano do termo124 (cf. 1984) – que se produz
na educação, no apuramento do gosto, nos conhecimentos.
O meu irmão não era só um banqueiro extraordinariamente competente (...)
MR respeitava as opções de cada um e, devido à sua atitude consensual, era
cada vez mais requisitado a ouvir e a dar conselhos sobre os problemas que, de
124 A atenção que Weber dedica a esta questão liga-se, a meu ver, com a inovadora
distinção que opera na sua conceptualização de classe enquanto dimensão económica – reveladora das desigualdades do poder – e enquanto estatuto ou prestígio – reveladora de uma dimensão social e/ou política, onde se evidencia o carisma (cf. Weber 1984).
338 O pé do dono é o adubo da terra
vez em quando, surgiam não só entre os seus familiares como mesmo entre
outras famílias. Era como se tivesse um papel de árbitro. (...) É difícil falar do
meu irmão porque era uma pessoa a todos os títulos fora do vulgar, quer pelo
seu equilíbrio e maneira de ser, quer pelo seu bom senso. Ele tinha qualidades
de chefia naturais. As pessoas sentiam naturalmente que ele era o chefe, além
de que ele nunca batalhou pelo poder (A in O Independente 28.3.91).
Em síntese, pode afirmar-se que este grupo de famílias empresariais detém
um poderoso capital compósito, sobreposto e complexo, onde os capitais
económicos, relacionais, sociais, culturais e políticos da família – sendo cada um
deles um elemento diferenciador muito poderoso – formam um continuum e são
inseparáveis. Ou seja, o que distingue estas famílias da elite empresarial
portuguesa é o facto de a sua herança material ser inseparável da sua herança
social. Juntamente com os bens financeiros e materiais, as gerações controlante e
declinante transmitem às suas novas gerações qualidades, conhecimentos, relações
e maneiras de estar que a família adquiriu ao longo do tempo. Estes diferentes
tipos de dotes – materiais, sociais e humanos – reforçam-se mutuamente e são
indispensáveis uns aos outros, para conferir a distinção e a elitilidade a estas
famílias, sem abandonar o pano de fundo cultural.
Se pensarmos nos trabalhos de outros autores sobre elites sociais (cf.
Bourdieu 1972, Le Wita 1984, Douglass 1992, Ostrander 1989, Marcus 1992 e sd
e Lave sd), podemos concluir que esta forma compósita de capital é um elemento
específico às classes dominantes. As diferentes formas de capital que estas famílias
de elite possuem encontram-se tão fortemente interligadas que passamos
imperceptivelmente de aspectos que promovem um tipo de dominação simbólica
para aspectos claros de dominação económica.
O processo de actuação económica, através do qual os indivíduos e os
grupos familiares a que pertencem adquirem poder económico, determina um
grau considerável de dominação simbólica no âmbito da comunidade em que se
integram. Isto é, passamos de uma dominação fundada materialmente a uma
dominação ancorada também nas representações e nas mentalidades – e, por isso,
O pé do dono é o adubo da terra 339
mais sólida. Esta metamorfose das relações de dominação é essencial à
reprodução destas famílias enquanto elite, pois faz com que os dominados
interiorizem as razões que assistem aos dominadores. Sem esquecer a importância
da riqueza como fundamento de pertença à elite, é preciso lembrar que o trabalho
de acumulação de formas múltiplas de capital – cultural, social, relacional,
educacional, simbólico e material – é o elemento fundamental para deixarem de
ser grupos exclusivamente económicos e passarem a constituir um grupo de elite.
6. Herdar ou ganhar? Sangue e mérito como
critérios de sucessão na empresa e na família
Ao longo deste capítulo tenho defendido que a garantia da manutenção do
controlo familiar sobre a empresa é uma questão importante para a “geração
controlante”. Todavia qualquer empresa, seja ela familiar ou não, que queira hoje
em dia liderar o mercado onde actua não tem outra alternativa que não seja a de
colocar os profissionais mais talentosos nas posições-chave da sua gestão.
Como vimos, no âmbito destas grandes empresas familiares a escolha de
gestores não passa pela incorporação de executivos estranhos à família, antes
assenta na preparação de membros da família que queiram trabalhar nas suas
empresas para que atinjam os níveis necessários de competência e mérito. Ao
recorrer a esta estratégia, as famílias ligadas a empresas conseguem amenizar a
tensão entre a lógica de continuidade familiar e a racionalidade empresarial.
No entanto, os processos que promovem a manutenção do controlo
familiar nestas grandes empresas envolvem, presentemente, uma tensão
considerável. Por um lado, o facto de um membro da família suceder nos cargos
de chefia na empresa tem uma importância simbólica central para a própria
340 O pé do dono é o adubo da terra
continuidade do projecto económico colectivo. Mas, por outro lado, actualmente,
os ideais hegemónicos sobre quem deve ocupar esses lugares assentam numa
racionalidade predominantemente económica, que defende a competência
profissional como a forma mais legítima de ocupar cargos.
Entre os critérios do mérito e da herança, há, evidentemente, uma
contradição. O modelo meritocrático põe em causa as linhas de descendentes, que
se tornam cada vez mais frágeis de geração em geração. O nascimento já não é
visto como o único processo, nem o mais valorizado, de receber direitos
excepcionais. Esta relação entre “conhecimento” e “sucessão” promove uma
tensão entre uma noção de privilégio enquanto algo adquirido e uma noção de
privilégio enquanto algo imanente. Para conseguir o direito ao domínio da
empresa – a cuja propriedade se tem acesso pelo nascimento – o herdeiro tem de
provar os seus méritos profissionais. O herdeiro dinástico encontra no
nascimento uma justificação suficiente para ser quem é, a sua legitimidade provém
de uma entidade que o transcende: a sua família. O herdeiro meritocrático tem de
ser capaz de mostrar que merece o privilégio que recebe, através das provas que
presta. Enquanto a legitimidade da continuidade das dinastias se funda num ideal
de imortalidade simbólica, os sistemas meritocráticos exigem, pelo contrário, que
essa legitimidade seja construída por cada pessoa.
Ser filho do presidente da empresa não é um critério suficiente para a
sucessão. É necessário que os jovens se sintam vocacionados para investirem
numa formação profissional que lhes permita tornarem-se sucessores credíveis.
Mas esta vocação não se tem simplesmente; não é inata. Tal como a aquisição do
know-how, a vocação forma-se. Em suma, o facto de os jovens membros da família
que querem participar activamente na vida das suas empresas investirem na
formação profissional é, em si mesmo, resultado do grande investimento que estas
famílias fazem na formação dos seus descendentes enquanto indivíduos
familiares.
O tipo de vida em família que levam, o peso que a identidade familiar
adquire nas suas vidas pessoais, o significado do sucesso da empresa para o seu
prestígio social, são elementos de grande peso no nascimento da vocação destes
O pé do dono é o adubo da terra 341
herdeiros. Neste processo não basta, portanto, que as gerações declinante e
controlante façam, e fazem de facto, um elevado investimento na formação
académica e profissional dos elementos das novas gerações. É preciso que estes se
tenham constituído como pessoas familiares, para quem a apetência empresarial é
sentida como uma vocação profissional. Mas, por outro lado, é preciso também
que estes jovens cumpram a sua parte, fazendo um grande investimento pessoal
no sentido da sua própria formação profissional. Se tal não for feito, todo o
esforço familiar será em vão, pois as grandes empresas familiares não podem
arriscar não serem altamente profissionais.
O que é verdade, porém, é que continuamos a assistir à constituição de
linhas sucessórias dentro das empresas destas famílias. Não devemos, todavia,
considerar que estamos perante meras estratégias de manipulação de
competências e direitos sucessórios. O êxito da sucessão empresarial revela que os
herdeiros estavam habilitados a herdar a herança, que estavam bem preparados
para receber o património acumulado pelas gerações anteriores da sua família. As
duas coisas estão interligadas de uma forma bastante complexa. A herança
também tem de ser merecida. Aprender a ser um herdeiro, merecedor do nome da
família, é também aprender a transmiti-lo. Os herdeiros destas famílias partilham
um sentimento de que não são os verdadeiros proprietários dos seus bens, mas
apenas os agentes responsáveis pela sua continuidade. Tal convicção, é-lhes
inculcada desde cedo.125 Têm de ser capazes de gerir bem a herança, para poder
cumprir as expectativas do seu estatuto social e para o poderem transmitir. A
transmissão de saberes, conhecimentos, objectivos e desejos é, como vimos,
central nos processos de sucessão, pois envolvem mais do que um processo de
transmissão de capitais entre gerações sucessivas.
Para uma herança bem sucedida, os herdeiros têm de estar aptos a herdar. O
destinatário tem de estar pronto a receber o que lhe querem dar e deter os
125 Para usar um exemplo a que já me referi anteriormente, é por esta razão que Ma
aceita tão bem que, apesar de ela ser a mais velha, a casa de família vá para o seu irmão seguinte – o mais velho dos rapazes – e posteriormente para os filhos deste. Desta maneira, a identidade familiar mantém-se intacta, simbolizada na casa e no nome que lhe está adscrito: passa como uma unidade ao longo do tempo familiar.
342 O pé do dono é o adubo da terra
dispositivos adequados para lhes dar resposta. O contexto familiar tem um papel
essencial na preparação dos futuros herdeiros. O exemplo de Cupertino de
Miranda, ao qual já me referi anteriormente, mostra claramente que uma grande
fortuna empresarial não se consegue transmitir se os descendentes não se
mostrarem aptos para a receber e interessados em dar-lhe continuidade.
Os membros da família que querem, hoje em dia, fazer carreira nas suas
empresas, têm de adequar estas exigências de formação profissional formal aos
valores familiares – aqueles que enformam a distinção das grandes empresas em
que estão inseridos. A importância desta articulação é claramente expressa num
momento crucial do desenvolvimento de uma empresa com que trabalhei:
A Somague sempre foi uma estrutura patriarcal e curiosamente foi isto que
permitiu a viragem quando em 1992 a empresa estava mal. Foi o facto de as
ordens virem de alguém da família, alguém com autoridade legitimada para
mandar na Somague. Neste momento há uma grande duplicidade entre a gestão
profissional e o facto de os quadros mais importantes levarem consigo o
apelido familiar. E creio que esta é a nossa grande mais-valia (D).
Assim, é através de um investimento pessoal na formação que estes jovens
poderão tornar-se bons profissionais e vir a ser escolhidos para ocupar posições
de liderança nas empresas da família. Em caso de luta pela sucessão, deve ganhar
o mais apto, aquele que melhor seja capaz de privilegiar a empresa e a sua
racionalidade.
Apesar de as empresas familiares estarem integradas num sistema
económico competitivo – onde vigoram princípios de igualdade de
oportunidades, de competência e de mérito como critérios de selecção de pessoas
para os cargos –, os filhos destas famílias conseguem, normalmente, atingir os
cargos mais elevados nas empresas dos seus pais. Desta forma, a geração
ascendente consegue adquirir e manter o mesmo alto estatuto social que a geração
controlante.126 As práticas educativas que enformam o processo de crescimento
126 O sociólogo Daniel Bertaux leva bem mais longe esta conclusão, chegando mesmo a
afirmar que “o sistema meritocrático é apenas poeira para os olhos, destinado a esconder o verdadeiro processo: a concentração de riquezas fabulosas e de um poder
O pé do dono é o adubo da terra 343
destas novas gerações desenvolvem-se num ambiente familiar, onde a partilha
quotidiana de determinados valores e práticas faz com que a geração emergente vá
incorporando os interesses, os motivos, as técnicas, as ideologias e a visão do
mundo do colectivo familiar e social a que pertencem. Consequentemente, o
conjunto da geração emergente sobreviverá ao desaparecimento das gerações
controlante e declinante, dando continuidade aos seus projectos, aos seus valores,
às suas práticas sociais e à sua rede de relações.
Ao analisar os processos de sucessão entre as famílias de elite inglesa do
Porto, Jean Lave chama a atenção para o facto de o êxito destas estratégias ser
tanto maior quanto menor for a sua visibilidade. A encenação dessa ilusão chega,
por vezes, ao ponto de “nos fazerem crer que eles têm, legitimamente, direito às
coisas que possuem, tal como têm legítimo direito a ser quem são” (Lave sd: 190).
Segundo Lave, as diferentes práticas de sucessão baseiam-se, simultaneamente, em
algo que é dado pela geração controlante – o nascimento e a herança conferem-
lhes o direito de pertencer ao grupo –, e em algo que os sucessores têm de
adquirir – o investimento pessoal que têm de fazer para merecer e preservar as
suas posições.
É crucial que as famílias de elite encontrem uma forma de naturalizar o direito
de pertencer ao grupo, para que os outros nem sequer pensem em tentar
entrar. Mas, para que este direito se torne efectivo, ele tem de assentar numa
boa dose de esforço. Ao insistir nas práticas exclusivistas, a elite da
comunidade inglesa do Porto defende que ‘se não trabalhares tão incrivelmente
como nós, nunca poderás merecer os nossos privilégios’. Os outros podem
trabalhar igualmente mas, como não estão habilitados, não podem tornar-se
parte do grupo de elite. Assim, é fácil excluir do centro da elite tanto aqueles
que lhe podiam pertencer por direito mas que não trabalham, como os bons
trabalhadores que não estão habilitados a fazer parte do grupo (Lave sd: 191).
Através deste processo constrói-se a ideia de que a posição social destas
famílias é, de alguma forma, natural. Os seus membros sempre pertenceram a
extraordinário nas mãos de poucas grandes famílias, todas ligadas umas às outras por múltiplos laços de dinheiro, ou casamento, formando um grande centro da grande burguesia que chamamos a oligarquia financeira” (Bertaux 1976: 74-5).
344 O pé do dono é o adubo da terra
uma camada superior e tal faz parte da essência distinta da sua família. Porém, a
produção deste processo de naturalização, através do qual se esconde a fabricação
do privilégio associado ao seu estatuto social, implica um intenso trabalho de
construção de uma imagem do prestígio da família como algo natural, assim como
do privilégio que os rodeia como algo que lhes é devido, algo que faz parte das
características particulares daquela família.
Eu cresci a pensar que ia ser banqueiro. Eu era o filho mais velho do meu pai,
que tinha sucedido ao seu próprio pai na presidência do banco fundado pelo
seu avô. O meu futuro estava, à partida, traçado de uma forma muito clara.
Quando se deu o 25 de Abril tudo mudou. Não era só o facto de a minha
família ter ficado sem nada e, de repente, não termos dinheiro porque as contas
da família estavam todas congeladas. Nessa altura eu tinha dezasseis anos e
tudo aquilo que eu até então tinha tido como certo já não existia, e eu não sabia
o que iria ser de mim, do meu futuro (MF).
Em 1975, com dezasseis anos, MF foi viver para Londres com os pais.
Acabou aí os estudos, licenciando-se em Gestão de Empresas. Depois de acabar o
curso, esteve um ano em Portugal, em 1983, a trabalhar como assistente da
administração numa empresa do ramo automóvel pertencente à família da sua
mãe. Em 1984, voltou para Inglaterra porque queria trabalhar na banca, não
queria desistir do sonho de ser banqueiro que o tinha acompanhado toda a vida.
Com o meu apelido, a boa reputação do desempenho da minha família na
banca internacional e os bons contactos que o meu pai, os meus tios e os meus
primos mais velhos tinham em Londres, não me foi difícil encontrar uma
colocação nas instituições bancárias mais conhecidas. Estive no Barclays e no
Midland e, em 1985, passei para um banco de investimentos, onde me mantive
até 1989 (MF).
Em seguida, MF tornou-se um importante quadro executivo da agência do
BESCL em Londres, cargo que desempenhou até 1995, ano em que regressou a
Lisboa para substituir o lugar deixado pelo falecimento do tio A no Conselho de
Administração do Grupo. Hoje, MF dirige o sector não financeiro do grupo.
O pé do dono é o adubo da terra 345
Comparar o percurso profissional de MF com os dos seus ascendentes
mostra algumas das alterações mais profundas que ocorreram em Portugal no
âmbito dos processos de entrada de membros das famílias proprietárias nas
empresas familiares. O que muda não é simplesmente o facto de, actualmente, os
novos elementos precisarem de conquistar as suas posições. De alguma forma tal
sempre aconteceu, pois, mesmo que estivessem a trabalhar nas empresas da
família, se não mostrassem ser competentes, não ocupariam os lugares de topo. O
que mudou foram as formas de mostrar a competência profissional e os critérios
da sua avaliação. Vimos como até 1974 a competência era mostrada e avaliada
através de um percurso pelos diversos níveis e sectores da empresa. Actualmente,
a performance académica é suficiente para entrar para um cargo de gestão sem
passar pela prática da vida quotidiana da empresa.
Hoje em dia, o desempenho profissional é o elemento central na promoção
da distinção entre os parentes próximos que, por nascimento, estariam igualmente
habilitados para ocupar cargos de topo e para assumir o destino das suas
empresas. A competência – o mérito profissional conquistado por cada um –
estabelece as diferenças entre todos aqueles que teriam “naturalmente” direito a
herdar. Como consequência da alteração dos critérios de escolha, resultante de
mudanças produzidas no âmbito social mais vasto das relações económicas
internacionais, os parentes que querem ser sucessores nas suas grandes empresas
familiares têm de se produzir a si próprios como tal. Têm de mostrar que, apesar
de serem à partida tão habilitados como os seus familiares, deram provas de serem
mais merecedores que estes para ocupar os lugares de topo, que não receberam a
sua posição por herança.
Os sucessores a estas grandes empresas têm de ser profissionais
competentes. Só assim conseguirão conjugar as duas vertentes centrais dos
processos de sucessão – a herança da identidade colectiva e o mérito do
desempenho profissional –, ultrapassando a tensão entre sangue e mérito,
subjacente à própria noção de empresa familiar no âmbito da economia moderna.
Quando se analisa os processos de sucessão nestas grandes empresas
familiares, verifica-se que estes não são simples acontecimentos que ocorrem
346 O pé do dono é o adubo da terra
quando um antigo líder se retira e passa o testemunho a um novo líder. A
sucessão não ocorre apenas num momento definido pela transição de poderes
entre líderes. Neste sentido, ela deve ser compreendida como um processo
complexo, que é conduzido ao longo do tempo e que ocorre em diferentes
domínios de acção, dependendo, também, da continuidade de algumas partes do
presente, das influências individuais, relacionais e externas. A permanente entrada
de elementos mais novos nas empresas familiares permite uma constante
renovação e introdução de novas articulações com a modernização. Ficamos,
assim alertados para a importância da articulação permanente entre continuidade e
mudança, operada pelos actores sociais. As experiências passadas, próprias ou de
outros, são um recurso extraordinário para as novas formas de acção e inovação.
De facto, a continuidade, associada à transmissão da gestão e do controle
accionista das empresas ao longo de gerações de sucessores da família, é
indissociável da ideia de mudança, que permitirá assegurar a inovação necessária à
continuidade. Esta articulação dialéctica entre continuidade e mudança é
formulada por Marilyn Strathern de uma forma muito interessante em After Nature
(1992). Neste texto, a autora defende que as ideias de continuidade e mudança são
conceitos inseparáveis e dependentes um do outro, na medida em que a mudança
só pode ser vista como uma sequência de acontecimentos que se desenvolvem em
algo que, de outra forma, teria mantido a sua identidade. É, portanto, a
continuidade que torna evidentes as mudanças (1992: 1-3).
Usar este argumento na análise das relações empresariais foi-me
particularmente útil porque as críticas feitas pelos especialistas às empresas
familiares enraízam-se, precisamente, nesta questão, pondo em evidência as
marcas de continuidade que a família impõe num mercado caracterizado pela
rápida mudança e pela constante inovação. Strathern mostra que o pensamento
ocidental concebe o parentesco como um sistema de organização de relações
sociais que promove e evoca a permanência (ibidem). Porém, se utilizarmos o
argumento desta autora no âmbito das grandes empresas familiares, vemos que a
permanência do parentesco não evidencia a ideia de imobilismo. Pelo contrário, a
permanência de gerações sucessivas de parentes à frente destas grandes empresas
O pé do dono é o adubo da terra 347
evidencia as grandes mudanças que caracterizam este processo de manutenção do
controlo familiar. Este resulta, fundamentalmente, de os sucessores se adaptarem
aos novos critérios de profissionalização que se vão exigindo aos descendentes,
para que possam dar continuidade às linhas sucessórias. Apesar de se destacarem
como se fossem naturais na continuidade da empresa, estas linhas assumem-se,
porém, como demonstrações de modernidade da sua organização. A relação entre
mudança e permanência é, portanto, crucial para fazer perdurar a obra dos
fundadores, viabilizada através da transmissão das qualidades empresariais entre
gerações da mesma família, que impõem as marcas da sua inovação no
desenvolvimento da empresa.
As grandes empresas familiares são, a meu ver, um exemplo particularmente
iluminador para pensar esta questão da articulação entre a modernidade e a
tradição. Como vimos nos capítulos anteriores, estas empresas ligadas a famílias
apelam à sua tradição e antiguidade como garantia de qualidade. O seu sucesso só
é explicável se os seus membros tiverem transformado e inovado as estruturas
organizacionais e tecnológicas. Desta forma, eles validam-se, ao revelar um
espírito de iniciativa, de inovação e visão estratégica idêntico ao dos seus
antepassados, que fundaram e desenvolveram a empresa. O tempo – no qual, pela
acumulação das gerações, ancora a distinção familiar – permite transformar o
mérito do árduo trabalho do fundador numa qualidade que, ao ser transmitida ao
longo de linhas de sucessão familiar, se torna progressivamente uma dádiva inata,
considerada natural para as gerações futuras.
Esta lógica meritocrática, que em geral se associa a um período histórico
relativamente recente – em que se exige a profissionalização dos representantes da
família na empresa – é, no entanto, bastante antiga neste contexto empresarial. Na
verdade, a própria fundação destas empresas foi resultado do mérito pessoal do
antepassado que, pleno de iniciativa, conseguiu fundar, consolidar e transmitir aos
seus descendentes a riqueza. Posteriormente, foi também através do mérito destes
– demonstrado pela forma como desenvolveram a empresa que herdaram e na
maneira como criaram os seus próprios descendentes como sucessores –, que
conseguiram fazer chegar a empresa, agora ainda mais importante, à terceira
348 O pé do dono é o adubo da terra
geração da família. Da mesma forma, dependerá do mérito desta geração
conseguir que a empresa continue a existir e a ser controlada por membros da
família. Longe de ser um valor que lhes é estranho, o mérito faz, portanto, parte
dos valores mais antigos pelos quais se regem os membros destas famílias – que o
usam como justificação para a passagem filial do controlo das empresas. Neste
sentido, é fácil adaptar este critério que usam desde a fundação da empresa às
exigências dos novos tempos e ao novo modelo hegemónico.
Para os gestores que são da família é essencial mostrar que não é por serem
descendentes que sucedem aos seus familiares nos cargos importantes da
empresa. Têm de mostrar que merecem ocupá-los. É certo que herdam as acções
que os tornam proprietários. Todavia, os lugares que nela ocupam e o papel que
desempenham no seu desenvolvimento teve que ser merecido, conquistado.
Agora, na era da globalização, já não há empresas familiares. Não se pode estar
à espera das pessoas da família para preencher os quadros da empresa. Se eles
forem competentes, então entrarão para lugares médios e, depois de provas
dadas, podem chegar a assumir lugares de topo, mas o critério é a competência
e não a família (MF).
No mundo actual, as empresas não podem manter o controlo familiar. No
GES está hoje representado um largo numero de interesses que transcende a
tradicional noção de grupo familiar. Isto sem prejuízo da representação da
família no órgão de comando superior do grupo (CR).
A grande transformação que ocorre nas formas de sucessão nas grandes
empresas familiares portuguesas, não se manifesta, portanto, numa alteração no
tipo de linhas sucessórias aos mais altos cargos destas empresas. Na verdade, as
novas gerações continuam a suceder às mais antigas no âmbito da empresa. A
alteração mais significativa ocorre na forma como, actualmente, a selecção dos
sucessores é feita, já não exclusivamente com base em critérios de posição
genealógica, mas sim com base numa complexa articulação entre os ideais de
transmissão filial produzidos pela família, por um lado e, por outro, o mérito do
desempenho profissional e as qualidades empresariais dos elementos que ocupam
as posições genealógicas mais favoráveis.
O pé do dono é o adubo da terra 349
Estamos, portanto, em presença de uma grelha conceptual onde as escolhas
de um sucessor dentro da rede de parentesco se baseiam em critérios de
meritocracia. Através deste processo, legitima-se ao mesmo tempo a racionalidade
económica hegemónica e o ideal dinástico. Desta maneira ajustam-se,
simultaneamente, as normas legais e morais vigentes, aos ideais e valores da
família fundados numa suposta tradição definida em termos de metáforas
arcaizantes, tais como a sucessão primogénita. Aliás, e como mostrei ao longo
deste capítulo, a eficácia com que as novas gerações articulam constantemente
estes valores da modernidade e do tradicional na sua performance empresarial é, a
meu ver, um dos principais trunfos destas grandes empresas familiares: aquele que
lhes permite superar os desafios e exigências das novas leis do mercado,
garantindo, por sua vez, o êxito e a continuidade destes projectos de longa
duração. A lógica subjacente à continuidade familiar na sucessão ajuda a fazer crer
que os herdeiros merecem suceder aos seus familiares nesses cargo. Isto é, não
foram incorporados nas empresa simplesmente por serem da família, mas por o
terem merecido.
É através destes processos de produção de sucessores que a elite financeira
de Lisboa se conseguiu tornar um grupo social bastante coeso e reproduzir-se
enquanto tal. Possuindo os meios financeiros para preparar profissionalmente os
seus filhos, estes poderão “conquistar” as posições de liderança nas empresas das
suas famílias com base na demonstração do seu mérito pessoal. Simultaneamente,
à medida que casam dentro do seu próprio grupo social, fecham mais ainda as
suas fronteiras invisíveis e contribuem para a reprodução das condições
privilegiadas em que vivem. Através do amplo conjunto de privilégios que
possuem e que passam de geração em geração, estas famílias conseguem construir
um sistema meritocrático de acesso aos lugares de topo das suas empresas,
legitimando, assim, a manutenção da sucessão dentro do seu pequeno grupo
social.
Em última instância, pode afirmar-se que os jovens destas grandes famílias
– que, à partida, se encontram numa posição privilegiada para ocupar cargos de
destaque nas suas empresas – devem mais às suas heranças que aos seus méritos,
350 O pé do dono é o adubo da terra
pois são elas que estão na base da produção destes últimos. Com base no
desenvolvimento deste hábil processo, estas famílias produzem um novo processo
de sucessão, baseado na racionalidade económica e meritocrática moderna, que
substitui o processo, supostamente, tradicional da sucessão filial, sem perderem,
no entanto, as suas ambições familiares mais importantes: reproduzir o seu
projecto económico colectivo; manter o prestígio social associado à sua família e
preservar as suas posições de liderança nas suas empresas familiares. Trata-se de
fazer uma ponte de ligação entre dois ideais simbólicos de referência: a
demonstração de um desempenho empresarial moderno e as vantagens de
continuar uma tradição que se tem revelado ser bem sucedida. Desta forma,
conseguem ganhar em ambos os campos, o que à partida, poderia parecer
impossível.
Estas famílias de elite procuram constantemente mostrar que as suas
posições dominantes não são herdadas mas sim conquistadas. A ideologia da
meritocracia, que é hoje hegemónica na sociedade ocidental, defende que o
sucesso individual abre, pelo menos teoricamente, o universo de possibilidades de
ascensão social a todos os indivíduos. Esta imagem de uma sociedade aberta,
democrática, onde a competição não só é possível como é desejável, permite que
todos tentem a sua oportunidade. No entanto, a própria existência destas grandes
famílias empresariais revela, como mostrei ao longo deste capítulo, que a
competição não se faz exclusivamente com base na competência, mas depende
também da acumulação de formas de capitais que assentam em poderes
simbólicos atribuídos a posses culturais.
O critério usado é contrário à imagem moderna e racional que os grandes
tecnocratas querem dar para o exterior: esta franja que controla, enraíza os
princípios da sua selecção no passado, na história, na antiguidades dos seus
direitos adquiridos, que são também as justificações práticas para os seus
privilégios (Bourdieu e San Martin 1978: 65).
Numa sociedade meritocrática, o que promove a diferença entre os
herdeiros das grandes famílias empresariais e os outros bons profissionais é o
facto de os primeiros serem depositários de um poderoso capital compósito. Para
O pé do dono é o adubo da terra 351
manter a ideia de que estão inseridos num sistema meritocrático, os gestores
provenientes destas grandes famílias tentam diluir o peso do seu passado familiar
por de trás de práticas profissionais modernas.
7. A lei das três gerações nas empresas
familiares: o caso Português
As grandes empresas familiares com que trabalhei existem há várias gerações.
Como exemplo, recorramos à enorme longevidade dos negócios da família Pinto
Basto. A administração destas empresas encontra-se actualmente nas mãos da
sétima geração da família, havendo já alguns membros da oitava geração a
trabalhar nas empresas do grupo. Este é, portanto, um exemplo evidente de como
as empresas familiares não têm necessariamente uma vida curta, nem estão
destinadas ao fracasso. Apesar de alguns problemas que têm ocorrido
recentemente em relação à sucessão das empresas – que teve como consequência
a venda de partes importantes de participações de determinados ramos familiares
em certos sectores de actividade – os actuais descendentes de José Ferreira Pinto
Basto continuam a dar mostras de um grande dinamismo e de união familiar
sempre que é necessário defender o seu património comum. Bem ilustrativo do
dinamismo desta sétima geração é a nova estratégia do Grupo Vista Alegre, que
conseguiu impôr-se, nos últimos anos, como símbolo da qualidade da porcelana e
da loiça portuguesa, abrindo uma vasta rede de lojas, não apenas em Portugal, mas
também, e com grande sucesso, a nível internacional.
A longa existência das empresas da família D’Orey contribui também para
contrariar as frequentes previsões sobre a curta duração das empresas familiares.
O actual presidente e o vice-presidente do Conselho de Administração destas
352 O pé do dono é o adubo da terra
empresas pertencem à terceira geração da família. Desse Conselho fazem parte
vários elementos da quarta geração da família e já há vários membros da quinta
geração a começar a trabalhar nas empresas (cf. mapa genealógico nº 3).
Manter a continuidade destas empresas nem sempre foi fácil para esta
família. Um dos períodos mais difíceis foi o que se viveu após a revolução de
1974. Para além de alguns, poucos, problemas com os trabalhadores, as maiores
dificuldades foram aquelas que decorreram da nacionalização dos estaleiros e da
Companhia de Pescas de Viana. Nunca tendo conseguido recuperar estas empresas, a
família ficou com o universo de actuação das suas actividades empresariais mais
reduzido. Contudo, depois de superados os problemas, as empresas da família
mantêm-se em funcionamento e nada faz prever que ocorram problemas de
continuidade. A família “procura preparar a sucessão interna com tranquilidade e
escolhendo o melhor de entre os vários colaboradores da família” (ZL). Nas
empresas continuam a trabalhar empenhadamente vários membros da família que,
por sua parte, continua a ser um importante elemento de constituição identitária
para os seus membros, como provam as festas, livros e encontros organizados
para celebrar a família e aos quais me referi anteriormente. Aliás, para prevenir
potenciais divisões, os descendentes do ramo accionista maioritário criaram uma
Fundação – com o nome de seus pais – que é agora a detentora das participações
nas empresas.
A longa existência das empresas da família Pinto Basto e da família D’Orey
não são, no entanto, excepções no meu universo de análise. Em todas as famílias
ligadas a empresas que estudei, encontrei situações semelhantes.
Mesmo a família Mendes Godinho, que vive presentemente uma situação
complicada, não sabendo qual será o futuro do projecto familiar que detém há um
século, encontra-se já na quarta geração de existência. Já nesta geração, as
empresas da família tiveram um período de grande notoriedade com o projecto
Tagol e, num momento em que se assistiu em Portugal à liberalização dos
processos industriais de transformação de oleaginosas e à internacionalização da
economia portuguesa, o seu porto de grande calado no estuário do Tejo foi muito
procurado, permitindo-lhes atingir uma situação económica muito confortável.
O pé do dono é o adubo da terra 353
As empresas da família Vaz Guedes e do grupo Jerónimo Martins
encontram-se ambas na terceira geração. De notar, no entanto, que estas últimas
tinham já pertencido a um outra família durante três gerações (cf. Capitulo I).
Todavia, nem umas nem outras, mostram qualquer sinal de dificuldade em
assegurar a sua continuidade. Em ambas, as gerações controlantes e declinantes
conseguiram incutir a motivação e o espírito empresarial nos membros das novas
gerações, para que estes estejam habilitados a herdar – e a ser herdados – pelas
suas empresas. Nada leva a crer, portanto, que o êxito destas não continue para as
gerações seguintes.
A longevidade demostrada por todas as empresas que analisei contraria,
claramente, uma das mais importantes teses no âmbito dos estudos sobre
empresas familiares – a “lei das três gerações” –, que defende que estas tendem a
desaparecer na terceira geração da sua existência. Esta tese assenta em dois tipos
de argumentos:
1) um de ordem estatística, que defende que as empresas familiares estão
condenadas a ter uma existência curta, apoiando-se nos dados que mostram que
apenas vinte e quatro por cento das empresas familiares atingiu a segunda geração,
destas só catorze por cento chegam à terceira geração e muito poucas atingem a
quarta (cf. Goody 1996 e Kelin Gersick et al. 1997);
2) outro de ordem ideológica, que defende a separação dos domínios
económico e familiar como condição de garantia para um bom desempenho
económico, como mostrei nos Capítulos I e III. Esta tese pressupõe que os
objectivos – afectivos e de lucro, respectivamente – que orientam cada um destes
domínios levam a que os quadros de direcção das empresa familiares sejam
sempre recrutados com base em critérios de parentesco.
Os poucos antropólogos que se dedicaram ao estudo destas formas de
organização empresarial confirmaram etnograficamente a predominância desta
“lei”, mostrando as razões sociais que lhe estão subjacentes. Tal foi, por exemplo,
o caso de Gary McDonogh que encontra em Barcelona exemplos da aplicação da
354 O pé do dono é o adubo da terra
lei das três gerações nos processos de desenvolvimento das empresas familiares
catalãs (cf. 1989):
As casas importantes têm, na terceira geração, graves crises que terminam por
desmembrá-las. O avô cria a empresa através de duros trabalhos. O pai, que
participa no trabalho do fundador, completa a obra. Depois, os filhos que não
viveram essas lutas e que se tornaram brandos e débeis por causa dos bens que
os seus progenitores lhes ofereceram, não chegam a compreender o valor
destes (cit. in McDonogh 1989: 88).
Aliás, todo o argumento de McDonogh assenta na forma como a
continuidade das “boas famílias” de Barcelona está condicionada pela lei das três
gerações. Na sua opinião, no final da terceira geração, as famílias aristocráticas do
final do século passado encontravam-se numa situação económica problemática,
porque os membros desta geração não demonstravam o dinamismo necessário
para produzir condições materiais de continuidade. O estabelecimento sistemático
de alianças matrimoniais com membros das famílias da nova burguesia ascendente
permitiu à aristocracia empobrecida superar essa situação. Desta forma, apesar de
terem sofrido o impacte negativo da referida “lei”, estas famílias conseguiram
produzir uma forma de garantir a sua continuidade (cf McDonogh 1989).
Também George Marcus, no já referido trabalho que realizou no Texas
sobre famílias dinásticas ligadas a empresas, dedica um capítulo inteiro à análise
das diferenças processuais das transmissões efectuadas entre a geração do
fundador e a segunda geração, entre esta e a terceira geração e as dificuldades
sentidas por esta última em transmitir o projecto económico da família para a
quarta geração (cf. Marcus 1992: 15-52). Este período é apontado pelo autor
como sendo especialmente crítico para a continuidade da empresa familiar, pois as
novas gerações optam mais frequentemente por viver dos rendimentos que por
investir no desenvolvimento da empresa da família. É, então, na passagem da
segunda para a terceira geração que surgem os gestores profissionais – que
Marcus designa por fiduciários, isto é: substitutos. Estes profissionais assumem uma
importância especial na vida destas organizações, centralizando o controlo da
gestão, ficando a família apenas com o controlo accionista e usufruindo dos
O pé do dono é o adubo da terra 355
lucros das suas empresas. Segundo Marcus, estes personagens impuseram-se
como figuras centrais nas empresas norte-americanas, onde os membros da
família não assumem a função de gestores, adquirindo um papel importante na
forma como estas grandes famílias se perpetuam como organizações corpóreas
(Marcus 1992: 54).
A situação retratada por George Marcus é concordante com a tendência
geral que encontramos descrita nos estudos sobre este tipo de empresas (cf.
Chandler 1977, Dunn 1980 e Gersick et al. 1998). A ideia central defendida pelos
consultores é que as empresas familiares que querem sobreviver e desenvolver-se
só têm duas opções: integrar-se numa grande empresa ou profissionalizar
totalmente a sua gestão.
Nas grandes empresas familiares portuguesas encontramos presentemente
um grande número de gestores profissionais – quadros médios e superiores –
exteriores à família, muito competentes e que ocupam importantes cargos. Esta
situação tem início antes de 1974 mas verifica-se, sobretudo, a partir de meados
dos anos sessenta. Em sintonia com o dinamismo que caracterizou a economia
portuguesa nesse período, começou a desenvolver-se uma classe de quadros
médios e superiores que se destacaram na vida das grandes empresas nacionais
(cf. Ribeiro et al 1987).127 A partir dos anos oitenta, quando as grandes empresas e
grupos económicos começaram a ganhar de novo preponderância na economia
nacional, o quadro de profissionais tinha-se, entretanto, alargado
consideravelmente, em virtude das novas políticas económicas praticadas e do
crescimento dos níveis de escolarização e profissionalização que marcou o país
nesse período, durante o qual se consolidou uma forte classe média.
O aumento da importância dos gestores profissionais nas grandes empresas
é uma consequência da complexidade tecnológica da sociedade actual, que requer
conhecimentos específicos para certos sectores de gestão, que estão a cargo dos
quadros que apoiam os líderes. Estes, por seu lado, podem, assim, consolidar uma
127 Aliás, foi este conjunto de elementos que assumiu o controlo dessas mesmas
empresas após a saída dos seus proprietários em sequência das nacionalizações que ocorreram em 1975 (cf. Ribeiro et al. 1987).
356 O pé do dono é o adubo da terra
especialização profissional a outros níveis. Todavia, não é frequente encontrar em
Portugal esses mesmos gestores profissionais a ocupar os mais importantes
lugares de liderança, como a presidência do Conselho de Administração. No
âmbito nacional, continuam a ser os membros da família a ocupar esses cargos, a
assumir pessoalmente o controlo dos destinos das suas empresas, rodeados, está
claro, de profissionais competentes e especializados nas diversas áreas.
Esta situação não é, como mostrei anteriormente, simplesmente resultado
da utilização de critérios de nepotismo ou de privilégio familiar. Ela é resultado da
articulação de um ideal – manter os membros da família à frente dos destinos das
suas empresas – e da criação das condições para o concretizar – um grande
investimento, familiar e pessoal, na formação profissional dos novos sucessores.
A explicação para o facto de os donos da empresas familiares portuguesas
continuarem à frente dos destinos destas encontra-se, a meu ver, na história
recente do nosso país. A investigação que agora apresento mostra que a história
destas organizações em Portugal não corresponde ao modelo das três gerações
nem ao seu corolário, que implica a passagem da gestão a profissionais exteriores
à família.
Neste capítulo, mostrei que as grandes famílias portuguesas ligadas a
empresas conseguiram criar um processo de produzir profissionais competentes
entre os seus membros, transformando, assim, os critérios familistas que orientam
os seus projectos de futuro em formas de selecção baseadas no desempenho
profissional. No âmbito das grandes empresas familiares que analisei, a
multiplicidade de interesses que une sócios e parentes promoveu a criação de
formas que asseguram a continuidade dos seus negócios e que, embora
predominantemente baseadas em critérios económicos e profissionais, permite
àqueles que partilham a mesma substância familiar sucederem aos seus
ascendentes no projecto familiar que partilham.
Em conclusão, a particularidade do caso português na desmistificação da lei
das três gerações nos negócios familiares permite, simultaneamente, contrariar a
ideia defendida por Chandler, entre outros, segundo a qual o crescimento e a
eficiência dos negócios familiares só acontece quando a gestão é atribuída a
O pé do dono é o adubo da terra 357
técnicos especializados que substituem o controlo familiar (cf. Chandler 1977, Jain
1991, Bork 1996 e Gersick 1997). Como demonstrei, os principais grupos
económicos de base familiar em Portugal estão actualmente na sua terceira, quarta
ou quinta geração e não há nenhuma evidência nem do seu colapso nem de
introdução sistemática de fiduciários nos lugares executivos das suas empresas.
Usarei, de novo, o exemplo da família Espírito Santo para defender o meu
argumento.
Quando os membros destas famílias saíram do país, em 1975, deixaram para
trás todos os seus bens materiais. No estrangeiro, recomeçaram as suas
actividades económicas e depressa reconstruíram os seus impérios económicos.
Tanto os processos internos de desenvolvimento destas empresas, como os seus
ciclos familiares, foram violentamente abalados com a revolução democrática.
Devido à perda do controlo das empresas, tiveram de recomeçar as suas vidas
económicas. Para atingir esse objectivo, apoiaram-se em dois elementos
fundamentais: os seus laços familiares e as suas excelentes relações sociais e
económicas num contexto internacional. Os membros desta família perderam
grande parte dos seus bens. Contudo não perderam aqueles que se revelaram ser
os mais preciosos: o prestígio social e a reputação no mundo financeiro
internacional.
Esta ideia traz-nos de volta a uma questão já abordada. O amplo poder
deste grupo social deriva do facto de o capital que legitima o seu prestígio não ser
exclusivamente económico. É, como mostrei, um capital compósito em que se
interligam e refazem mutuamente um enorme capital económico, um elevado
capital político e um considerável capital relacional. O facto de os membros destas
famílias terem conseguido readquirir uma posição destacada mostra que, mesmo
quando os seus impérios económicos pareciam destruídos e as suas posições
sociais abaladas, mantiveram as condições necessárias para a sua recomposição.
O exemplo da família Espírito Santo ilustra particularmente bem este ponto.
De acordo com o que contam os membros da família, terá sido por influência
directa de Giscar D’Estaing, então presidente da França, e de MacNamara, então
358 O pé do dono é o adubo da terra
presidente do Banco Mundial, que em Agosto de 1975, o governo português
libertou da prisão os seis elementos mais importantes para a vida empresarial da
família Espírito Santo. Já em liberdade, tendo considerado que não existiam
condições para permanecerem em Portugal, alguns elementos da família foram, a
salto, para Madrid, onde se reuniram em casa de uma família amiga de longa data.
Aí, tiveram a primeira reunião desta nova fase da sua vida, em que delinearam a
estratégia de reorganização do grupo. Decidiram reentrar no mundo dos negócios
usando todo o dinheiro que possuíam – de acordo com o que referiram,
conseguiram entre todos reunir vinte mil dólares – para abrir no Luxemburgo a
Compagnie Financiere ES. Desta forma, criaram uma nova sede para as suas novas
actividades financeiras e iniciaram a construção de um segundo império
económico. Decidiram dividir-se em três frentes – Londres, Suíça e Brasil – para
melhor desenvolver os seus investimentos, procurando áreas onde estivessem
famílias portuguesas que, como eles, tinham saído do país e procuravam
investimentos seguros para o seu capital.
O “crédito” – não só a nível financeiro mas, também, a nível de amizades, e
de respeito pelo seu profissionalismo – que os seis líderes do GES tinham nos
meios da alta finança internacional tornou-se visível pela rapidez e eficácia com
que reiniciaram a sua participação nas actividades económicas internacionais. A
título de exemplo, posso referir uma lenda mítica da família que conta que, logo em
1975, na primeira reunião do governo português com o Banco Mundial,
MacNamara convidou Manuel Ricardo Espírito Santo para se sentar à sua direita,
como seu consultor particular sobre a situação portuguesa.
Na opinião de CR, a reconstrução do Grupo Espírito Santo no pós-25 de
Abril ficou a dever-se, fundamentalmente, ao enorme prestígio internacional do
nome Espírito Santo e à série de apoios que se desencadearam de imediato, graças
à confiança que os seus colaboradores – nacionais e internacionais – tinham na
família, renovada pelo desempenho da equipa reorganizadora do grupo. Depois
de dez anos no exterior, em 1985, a família Espírito Santo deu o primeiro passo
para reiniciar a presença institucional do grupo em Portugal, mediante a compra
de uma pequena Sociedade de Investimentos – que é hoje o Banco Essi. Depois
O pé do dono é o adubo da terra 359
iniciou-se o processo de privatização da Companhia de Seguros Tranquilidade, em que
o Grupo Agnelli et Frère se associou ao GES. Estes partners, juntamente com o
Crédit Agricole – já anteriormente associado ao GES no Banco Inter-Atlântico de
Investimentos no Rio de Janeiro – foram os parceiros fundamentais para a compra
do BESCL. O grupo está, actualmente, instalado em Portugal, Brasil, Paraguai,
EUA, Suíça, Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica, Espanha, Angola,
Moçambique e pretendem implantar-se na China.
Este exemplo mostra que, no processo de recuperação do papel da família
Espírito Santo no mundo económico e financeiro internacional, os seus membros
não podiam apoiar-se exclusivamente em gestores profissionais. Tinham de ser
eles próprios a fazê-lo, pois só eles detinham o capital patrimonial compósito que
o permitiria. Sem liquidez, o único capital que poderiam apresentar para conseguir
novos sócios investidores era a demonstração dos seus êxitos anteriores, o amplo
prestígio do mérito e da competência em que estes assentavam. As competências
profissionais e a experiência de gestão dos membros destas famílias, juntamente
com o reconhecimento do prestígio que conseguiram acumular ao longo de várias
gerações, revelaram-se uma poderosa combinação para o sucesso do seu projecto
económico, numa altura em que estavam numa situação muito delicada.
Nós podíamos não ter regressado. Tínhamos uma situação muito boa lá fora.
Mas sabe como é. Portugal é o nosso país. Era cá que tínhamos as nossas coisas
e parte da nossa família. Assim, quando nos pareceu conveniente começámos a
investir em Portugal. Primeiro comprámos uma sociedade de investimentos e
depois o BIC. Quando foi a altura da privatização do BES, o BIC estava no
momento ideal para crescer. Tivemos de decidir. Investir num negócio que dava
mostras de ser seguro ou comprar ao Estado algo que era nosso, que tinha o
nosso nome. Claro que lutámos pelo que era nosso. Claro que era injusto, mas
isso agora já não interessa (ZM).
Depois de terem atingido o objectivo de reconstruir um novo império
económico tão poderoso quanto o anterior, os membros destas famílias estavam
tão orgulhosos que queriam mostrar o mérito do seu êxito, do seu poder e do seu
prestígio. Por outro lado, tendo conseguido comprar as suas antigas empresas ao
360 O pé do dono é o adubo da terra
Estado, os líderes destas famílias jamais aceitariam entregar o comando das suas
actividades económicas – que tanto lhes custara a recuperar – a profissionais
estranhos à família. Esta pode ser uma atitude meramente simbólica e emotiva,
mas a capacidade que tiveram em concretizá-la é, também, a demonstração das
sua competência profissional e do êxito da sucessão familiar na liderança das suas
empresas. Consequentemente, ao manterem os cargos executivos de liderança e
gestão para si próprios, conseguem manter um maior controlo sobre as empresas
e, simultaneamente, mostrar que a continuidade do seu sucesso depende do bom
desempenho dos membros da família e não de uma situação de privilégio e
familismo.
No caso da família Espírito Santo já há membros da quinta geração da
família a participar nas actividades do grupo, que em breve poderão ocupar
lugares de destaque (ver mapa genealógico nº 1). CR é o único representante da
terceira geração, ocupando a posição de presidente não executivo do Grupo.
Actualmente são os membros da quarta geração que detêm o poder executivo. É a
esta geração que pertence o presidente da comissão executiva do Conselho de
Administração do BES – o executivo número um do sector financeiro do GES.
Outros membros da referida comissão executiva e vários membros da família
ocupam funções em diversos escalões da hierarquia do grupo. Como dizia um
membro da família,
Enquanto subsistir o lema familiar “o grupo em primeiro lugar” estou certo de
que se continuará sempre a encontrar a melhor solução, dentro e fora da
família, para assegurar o progresso e a perenidade do GES, mantendo-se a
cultura do grupo – “unidade e espírito de colaboração grande” – bem definida
pelo lema familiar que é transmitido de geração em geração: “primeiro os
interesses do país, em segundo os interesses das instituições e dos seus clientes,
e só em último os interesses próprios” (CR).
Apesar de estarem já na quinta geração da família, as empresas que o grupo
controla, ou em que participa, continuam a ser um projecto colectivamente
apoiado por uma maioria de membros da família e a constituir um eficaz elemento
unificador dos seus vários ramos.
O pé do dono é o adubo da terra 361
Uma situação semelhante ocorre nas empresas da família Queirós Pereira,
que se encontram, actualmente na sua terceira geração, apesar de as suas empresas
terem sido bastante afectadas pelos acontecimentos que se seguiram à revolução –
perda dos investimentos em Angola e Moçambique e nacionalização do sector
dos cimentos.
Nesta família empresarial, a passagem da liderança da segunda para a
terceira geração ocorreu de forma abrupta, despoletada pelos acontecimentos de
Março de 1975, que conduziram o então presidente do grupo à prisão, tal como
outros grandes patrões da indústria e da banca portuguesa. Apesar de só ter
estado preso durante um dia, após ser libertado foi viver para Paris, onde esteve
entre 1975 e 1984. Perante esta situação, o filho mais velho assumiu o comando
dos negócios da família em Portugal. Contudo, o pai não se afastou totalmente,
continuando a intervir na condução das actividades a partir de Paris. O filho mais
novo foi para o Brasil em 1975, onde permaneceu até 1988. Nesse país foi o porta
voz do grupo em investimentos na área do café e do imobiliário, actividade para a
qual contou com o apoio do banco que a família Espírito Santo fundou no Brasil.
Não esqueçamos que as ligações entre estes dois grupos económicos são muito
antigas e que um e outro sempre se apoiaram mutuamente. A partir de 1988, de
regresso a Portugal, e já após a morte do pai, os dois irmãos começaram a
reconstruir o grupo económico familiar que tinham no passado, aproveitando as
privatizações que então se iniciaram, adquiriram posições na Secil, na Cemapa e na
Cimianto. A morte repentina do primogénito colocou o segundo filho varão à
frente desse projecto.
A vitalidade e a longevidade que estas grandes empresas familiares
portuguesas demonstram no momento presente é, a meu ver, consequência da
inflexão da ordem social e económica introduzida pela revolução democrática. De
facto, a nova ordem social e política em que vivemos desde 1974 criou condições
362 O pé do dono é o adubo da terra
muito especiais para o período de gestão da terceira, quarta e quinta gerações. Os
indivíduos destas gerações chegaram às posições de liderança das suas empresas
familiares em meados dos anos oitenta com um dinamismo e uma força pouco
comuns. Longe de poderem descansar à sombra de glórias adquiridas, tiveram de
provar as suas capacidades para poderem manter o controlo das empresas,
regressar a Portugal ou, noutros casos, reconstruir as empresas, recuperando a sua
importante posição na elite financeira portuguesa. Uma vez que querem manter
essa posição, têm de fornecer às gerações seguintes um poderoso capital relacional
e de lhes proporcionar uma boa formação profissional. Fornecer às gerações
futuras este património compósito e essa formação é, portanto, a ferramenta mais
eficaz para legitimar a sucessão dos membros das gerações mais novas nos cargos
de gestão das empresas de base familiar em Portugal.
A ruptura causada pela revolução de 1974 teve um papel muito marcante,
tanto no desenvolvimento destas empresas, como na vida dos membros destas
famílias. A marca que deixou não teve, porém, apenas as consequências negativas
e dramáticas que os relatos das vivências pessoais não conseguem esconder. A
meu ver, o 25 de Abril teve um efeito muito mais amplo e significativo no
percurso destas grandes famílias ligadas a empresas.
O peso deste episódio da história nacional é enorme na vida destas pessoas
e tal não deixa de ser permanentemente relatado. Devido a um movimento
generalizado de reivindicações laborais, o pós-25 de Abril foi um período
complicado para a vida de todas as empresas portuguesas, mas muito em
particular para a continuidade destes grandes grupos económicos de base familiar
que, estando mais conotados com o regime, foram mais visados pelos
movimentos sindicalistas. As famílias que viram as suas empresas nacionalizadas
não foram, porém, as únicas a sofrer com maior ou menor intensidade as
consequências da agitação laboral, social e económica que o país viveu durante os
primeiros anos do regime democrático.
Usemos como exemplo o caso da Jerónimo Martins.
Apesar de terem anteriores experiências com comissões de trabalhadores, os
membros do Conselho de Administração do grupo Jerónimo Martins não previam o
O pé do dono é o adubo da terra 363
rumo que as coisas tomaram durante os anos de 1974 e 1975, marcados por
grandes conturbações laborais nas empresas do grupo. Bem representativo desta
situação é o episódio em que o presidente do Conselho de Administração do
grupo decide ceder às exigências feitas pelos trabalhadores para conseguir salvar a
empresa:
Sabíamos que essa operação era muito mais do que uma reivindicação salarial.
Naquele momento, não me interessavam os lucros. Lucros, eu podia sempre
recuperar: a empresa é que não. (...) Nesse ano não ganhámos, mas também não
tivemos prejuízos (...) e sobretudo conseguimos manter a empresa nas nossas
mãos (EA).
As empresas da família Santos, detentora da Jerónimo Martins Sgps,
sobreviveram bem ao período revolucionário, pois, inclusivamente antes da
revolução, já tinham comissões de trabalhadores a funcionar e pagavam salários
acima da média, o que contribuiu para que as tensões laborais não tivessem
atingido os níveis de violência e radicalismo a que assistimos noutras empresas
nesse período. Por outro lado, o facto de esta família não ter um grande destaque
social antes de 1974, e de os seus membros não estarem muito envolvidos na teia
de relações pessoais com a classe política do Estado Novo, não os conotava tão
fortemente como aconteceu com outras famílias empresariais.
As empresas da família Pinto Basto também não foram muito afectadas pela
revolução, nem a Casa E. Pinto Basto nem a Vista Alegre. Segundo o actual
presidente da primeira destas empresas, tal facto deve-se à “cultura familiar” que
caracteriza as relações que mantêm com os trabalhadores.
De uma maneira geral, todas as famílias com que contactei construíram uma
certa mitificação “do trauma da revolução”. São frequentes os seus relatos sobre
os precalços, sustos e desgraças a que a revolução os obrigou.
De repente, de um dia para o outro, não tinha dinheiro para pagar a mercearia,
para dar de comer aos meus filhos. Nada. Como congelaram as nossas contas
no banco não tínhamos dinheiro nenhum. A única pessoa da família que tinha
dinheiro lá fora era a tia G, que tinha acabado de vender um apartamento em
Paris e ainda lá tinha o dinheiro. Foi com esse dinheiro, que ela distribuía
364 O pé do dono é o adubo da terra
mensalmente por cada um, que vivemos durante uns tempos. Depois comecei a
vender coisas e foi assim que arranjei dinheiro para comprar as passagens de
avião para o Brasil para mim e para os meus filhos (Mi).
Tudo esse período foi muito estranho. De repente estava na prisão com os
meus irmãos, os meus amigos (...) Parecia que não havia solução para aquilo, e
sabia que a minha mulher e os meus filhos estavam raladissímos, que queriam
sair do país mas que não me iam deixar ali sozinho (CR).
Porém, juntamente com este tipo de episódios relatam também as inúmeras
provas de solidariedade que tiveram:
Foi fantástica a solidariedade demonstrada pelos bancos estrangeiros para com
a família em disponibilizar empréstimos a juros especiais para recomeçarmos
os negócios e para vivermos decentemente (Ma).
Foi Sir Walter Salomon, ele próprio refugiado da Alemanha nazi, que nos cedeu
um pequeno escritório no seu banco em Londres para podermos ter uma base
para começar a trabalhar (CR).
Apesar de tudo, o 25 de Abril deu-nos experiências sociais fantásticas. Tivemos
demonstrações de uma enorme solidariedade internacional. Ofertas para sair do
país de avião, navios, antigas frauleins que ofereceram os seus préstimos. Como
sempre tivemos muito boa relação com os empregados eles também
demonstraram um grande respeito por nós nessa altura (Br).
Paralelamente, são também constantemente referidas histórias que mostram
a astúcia, a habilidade, o know-how, dos membros da família que conseguiram
superar essa situação, produzindo, assim, narrativas que procuram comprovar a
legitimidade e o prestígio desses indivíduos.
Foi a enorme habilidade e visão de futuro deste pequeno grupo de operacionais,
que – numa altura tão difícil psicologicamente – estava a liderar a reconstituição
do grupo económico em várias frentes, que permitiu que chegássemos ao nível
em que nos encontramos hoje em dia (MF).
O pé do dono é o adubo da terra 365
Foi o meu irmão que, naquela altura, salvou as nossas empresas. Se não fosse
ele, com a sua enorme experiência e bom senso, as empresas teriam ido parar
todas às mãos dos trabalhadores (L).
Apesar de toda a situação política e social conturbada, continuámos a pôr de pé
o projecto Tagol. E conseguimos. Apesar de nos terem integrado a casa bancária
no BES e, por causa disso, termos perdido o controlo sobre as actividades
industriais, conseguimos manter uma boa situação para a família (AE).
Em última instância, pode afirmar-se que foi o 25 de Abril que salvou estas
grandes empresas familiares de caírem na lei das três gerações. A reduzida
internacionalização da economia portuguesa durante o Estado Novo constituía, de
facto, um elemento de limitação à expansão dos grupos económicos nacionais.
Aliás, esta posição foi-me abertamente expressa várias vezes durante as entrevistas,
como se pode ver através da seguinte afirmação:
Antes de 1974, nós não tínhamos investimentos lá fora. Só nas colónias, em
Angola e Moçambique. Agora somos um grupo verdadeiramente internacional.
Se, por acaso, acontecesse agora alguma coisa parecida com o 25 de Abril, nada
daquilo aconteceria (ZM).
Neste sentido, a revolução de 1974 acabou por servir como um importante
elemento de reactivação das actividades e possibilidades de expansão destes grupos
e destas famílias.
Foi, portanto, a alteração radical no domínio público – a nível político,
económico e social – que imprimiu nestas famílias a necessidade primordial de
manter o projecto económico fundado pelos seus antepassados – as empresas que
tinham o seu apelido – estimulando um dinamismo empresarial, um empenho na
modernização e no desenvolvimento das suas empresas a que dificilmente
assistiríamos se não tivesse havido uma tão grande ruptura. Ironicamente, foi a
revolução que destruíu o regime político que apoiou o crescimento destes grandes
grupos económicos de base familiar, que criou a base para a renovação dessas
organizações, incutindo um inesperado espírito de dinamismo, união e
solidariedade entre os seus membros.
366 O pé do dono é o adubo da terra
A necessidade sentida pelos membros destas famílias de se reorganizaram
como parceiros económicos no pós-25 de Abril, querendo enfrentar e superar um
conjunto de situações que lhes eram particularmente adversas, forneceu-lhes a
oportunidade de se restruturarem, de se afirmarem como grupos empresariais
modernos, aproveitando o seu capital mais precioso: a sua longa tradição no
mundo empresarial, a tradição do seu bom desempenho e da acumulação de
provas dadas. Impuseram-se como empresas modernas apoiando-se nos seus
valores mais centrais – a tradição e a antiguidade – que, paradoxalmente, os
classificam como “conservadores”.
Ironicamente, o momento de ruptura instaurado pela revolução de 1974
tornou-se um elemento central para a produção das condições necessárias à
reorganização do grupo social, permitindo a sua continuidade.
CAPÍTULO VIII
CONCLUSÃO
Interesse e afecto
Analisei, ao longo desta dissertação, a forma como sete grandes famílias,
detentoras de grandes empresas há várias gerações, articulam dois critérios de
relação social, em regra concebidos como antagónicos: família e empresa.
De facto, na sociedade ocidental, a separação entre família e economia está
de tal forma enraizada que é difícil pensar estes dois conceitos de uma forma
articulada (cf. Lima 1992 e Yanagisako e Delaney 1995: 12). Aliás, como defendi,
não estamos unicamente perante um problema ético mas também perante um
problema émico. Assim, os meus entrevistados da elite empresarial de Lisboa
ficavam perturbados, quando lhes sugeria que as suas alianças económicas tinham
algo a ver com as suas relações familiares. Ser, simultaneamente, sócio e parente
acarreta uma contradição cultural e teórica que os sujeitos sociais se esforçam por
superar nas suas práticas quotidianas. Actuando num mundo onde predomina um
ideal de meritocracia, a elite financeira de Lisboa não pode transmitir a imagem de
que é perpetuada através de um critério de consanguinidade.
Contudo, neste contexto social, as relações de parentesco e as relações
económicas não constituem dimensões sociais distintas. Pelo contrário, formam
um único contexto multidimensional, onde ambas estão sempre presentes de uma
forma interligada. Esta interligação é um dos factores que contribui mais para a
distinção que estas grandes famílias empresariais adquirem a nível social e
económico.
Os interesses dos sujeitos sociais que integram família e empresa são
estruturados de forma a articular elementos de uma e outra, de tal maneira que é
difícil saber qual delas prevalece. Por um lado, os interesses económicos comuns
– em si mesmo um factor de agregação dos participantes – constituem um
elemento central para a continuidade das relações entre os membros da família e
para a compreensão das relações de parentesco neste contexto social. O seu
resultado – a empresa familiar – torna-se um símbolo da grande família e de um
elevado estatuto social. A própria existência da empresa e o seu desenvolvimento
370 Conclusão
económico são, portanto, condições centrais para a continuidade das relações de
proximidade familiar.
Mas, por outro lado, sem a motivação identitária que anima os diversos
membros do grande universo familiar, estes não investiriam tanto e tão
pessoalmente neste projecto económico.
A contradição entre sócios e parentes que atravessa toda a análise é expressa
tanto pelos especialistas em empresas familiares como pelos membros das
famílias. Para a superar, conduzi a pesquisa de modo a abarcar tanto o contexto
primordial da vida da família e das relações entre os seus membros, como o
universo empresarial onde se movem. Desta forma foi possível: 1) analisar
articuladamente as exigências e as características de cada um dos domínios de
acção, bem como a maneira como eles se interpenetram; e 2) mostrar que os
indivíduos transportam sempre consigo para as diversas esferas de acção em que
se movimentam as lógicas, interesses e valores dos projectos familiares e dos
projectos económicos em que estão envolvidos.
O desejo de manter a continuidade do controlo da empresa e o prestígio
económico e social que o êxito empresarial confere aos membros da família entra
em contradição com o ideal de separação entre família e trabalho por eles
defendido. Foi ao analisar as formas de superação desta contradição que pude
identificar os elementos centrais da identidade social destas organizações, que
promovem a sua continuidade. Paradoxalmente, os esforços ao nível das práticas
e de representações a que recorrem os membros destas organizações
família/empresa para superar esta contradição, constituem um factor central na
produção de novas representações e de práticas simbólicas neste meio social.
Foi ainda como resultado da utilização desta perspectiva que pude perceber
as consequências nefastas da tendência que herdámos, para definir interesse de uma
forma excessivamente economicista. Tal tendência obscurece a compreensão da
multiplicidade e da complexidade dos interesses que estão em jogo nestas famílias
empresariais. Na verdade, há outras dimensões do interesse que são igualmente
importantes para perceber a motivação dos membros destas famílias. Entre estas
destacam-se algumas que, por não serem directamente económicas, não deixam
Conclusão 371
de ser de enorme importância. Por exemplo, o interesse em garantir a
continuidade dos símbolos identitários da grande família, os elementos simbólicos
de unificação e identificação que, em última instância, são a base para manter uma
posição social prestigiada e o respeito dos pares.
Se não nos apoiarmos numa noção excessivamente economicista de
interesse, podemos ultrapassar a definição de organização familiar que assenta
numa contradição entre “interesse económico” e “afecto”. A análise das práticas
quotidianas dos sujeitos sociais permite compreender que interesse económico e
afecto são, afinal, motivados pelos mesmos elementos simbólicos, pelas mesmas
representações sociais. Separá-los decorre de uma tentativa de definir a actividade
económica como algo que se procura e se conquista (achieved) e de uma tentativa
de definir a unidade familiar como algo que é dado, que é natural (ascribed). Ora, o
facto da partilha de elementos de identificação social dos membros ser
apresentada como algo natural – e que fornece a base da legitimação do acesso
destes às posições mais altas do universo económico – é, em última instância, o
que naturaliza o poder dos membros, habilitando-os para ocuparem as posições
de liderança e legitimando esse processo aos olhos da sociedade.
Se, por um lado, é bem verdade que os membros destas grandes famílias
ligadas a empresas retiram dividendos económicos consideráveis das suas relações
de parentesco, por outro, é também evidente que a grande família empresarial
retira importantes dividendos sociais das relações económicas em que está
envolvida. Para definir essas sobreposições de uma forma mais clara, proponho
que se utilizem as expressões relações económicas de base familiar ou, dependendo do
contexto de acção que quisermos enfatizar, relações familiares economicamente
enformadas. Estes conceitos permitirão descrever melhor a multidimensionalidade
que caracteriza as relações sociais destas formações família/empresa.
372 Conclusão
A eficácia da complementaridade
O princípio da complementaridade é um dos principais factores que possibilita
que sócios e parentes promovam a acção conjunta que produz a grande empresa e
a grande família, unindo ideais antagónicos numa prática de sucesso.
Ao tornar-se um símbolo da família, a empresa inscreve-lhe o seu sucesso
sob a forma do prestígio social que confere aos seus membros. O êxito do
projecto económico que os parentes mantêm em comum torna-se um factor de
identificação central na reprodução da união e identidade que está na base da
constituição da grande família. Simultaneamente, a forma como a família é usada
como símbolo de confiança e a sua continuidade usada como demonstração de
provas dadas de competência, revelam-se factores centrais para o êxito da grande
empresa.
Este princípio da complementaridade de elementos definidos como opostos
encontra-se também na forma articulada como, no âmbito destas famílias,
homens e mulheres – que definem a sua identidade social através de distintos
elementos constitutivos da pessoa social – desempenham quotidianamente
agencialidades que fortalecem e garantem a continuidade ao projecto colectivo
que os une. Os princípios de identificação social hegemónicos remetem as
mulheres associadas à grande família para um “não papel” na grande empresa.
Ora, por trás dessa aparente invisibilidade escondem-se importantes contribuições
para a continuidade da grande empresa. Ao recorrer ao idioma da empresa para
caracterizar a associação das mulheres à família, estas “gestoras familiares”
destapam o véu que esconde essa complementaridade.
Capital familiar compósito
O facto de o conjunto internamente diversificado de membros da família partilhar
um projecto económico comum alarga a dimensão dos negócios bem para além
do mero poder económico. Ao conseguirem promover a continuação do êxito
Conclusão 373
económico das empresas, estas famílias conseguem, simultaneamente, reproduzir
um elevado prestígio social. Assim, consolidam as bases para o estabelecimento
ou a manutenção de importantes relações sociais, políticas e económicas. O que
permite essa situação é, em grande medida, o facto de o seu património familiar
ser um capital compósito.
Por capital compósito entendo um conjunto articulado, integrado por
diversos capitais, sendo cada um deles um elemento poderosamente diferenciador:
a) um património material muito valioso que passa de geração em geração e
ao qual cada indivíduo tenta acrescentar o seu investimento pessoal, aumentando-
o;
b) um património simbólico – constituído por lendas, casas, objectos,
nomes e tradições familiares – cuja partilha pelos vários membros das diversas
gerações da família é fundamental para a comunhão de interesses subjacentes à
preservação de uma identidade comum que permita assegurar a continuidade da
grande família;
c) um património de conhecimento: para além da formação da vocação as
novas gerações frequentam escolas prestigiadas que não apenas lhes permitem
adquirir uma boa preparação profissional, como lhe conferem um grau acrescido
de legitimidade;
d) uma tradição empresarial de sucesso que constitui um valor acrescentado
à formação profissional, através de dois factores fundamentais. Por um lado, a
integração precoce na vivência dos negócios da família permite incorporar
hábitos, relações e formas de fazer. O facto de o contexto em que se realiza o
processo de aprendizagem dos membros destas famílias ser o mesmo em que
estes se constituem como pessoas enraíza essas aprendizagens no ambiente
natural do seu crescimento, incorporando-as. Por outro, como consequência, o
nascimento e a consolidação da vocação profissional é algo que faz parte do seu
próprio processo de se tornarem pessoas familiares – envolvidas nos projectos
colectivos deste universo identitário. Esta “vocação” é apresentada como um
“traço” familiar, uma parte da “essência” da família, da natureza dos membros
enquanto pessoas;
374 Conclusão
e) um capital relacional familiar e pessoal, que constitui um bem precioso e
que é geracionalmente transmissível, como qualquer outro bem do património
familiar.
A eficácia deste capital familiar compósito foi revelada tanto na análise da
continuidade das empresas familiares nas mãos de membros da família, como em
situações particulares em que a produção da grande família é ameaçada. Como
exemplo deste último ponto, referi a forma como foram reconquistados os
lugares de topo na economia nacional após a revolução de 1974. Sem esse
complexo e sobreposto conjunto de capitais familiares, dificilmente estas famílias
teriam conseguido reconstruir tão rapidamente – em menos de uma década –
projectos económicos que, não só garantem de novo a estabilidade financeira das
famílias, como colocam as empresas no topo da hierarquia das empresas
nacionais.
A continuidade da partilha e da valorização simbólica desse património
como elemento identitário da grande família empresarial é um elemento decisivo
para a criação de condições de existência tanto da empresa como da família num
tempo longo. As transmissões patrimoniais geracionais de um capital compósito
familiar e empresarial são, portanto, decisivas para que as gerações ascendentes
consigam atingir os seus objectivos de continuidade enquanto grupo de elite social
e económica.
Descendentes e sucessão
Para que uma grande empresa familiar continue a ser gerida por membros da
família é indispensável escolher os membros que sucedem aos cargos de direcção
com base em critérios de competência. No cumprimento deste objectivo, estas
empresas enfrentam um permanente desafio: coordenar os desejos familiares de
uma sucessão directa, por um lado, com uma lógica de organização e gestão
económica compatível com as exigências do mercado, por outro. Para superar
esse desafio a natureza compósita do capital que constitui a família e a empresa é
Conclusão 375
essencial. É precisamente por ser compósito que este capital permite ultrapassar a
contradição inicial.
Mostrei que a sucessão nas posições de liderança destas empresas familiares
não é um simples processo de descendência filial. Todavia, as linhas de sucessão
mais frequentes continuam a ser constituídas através de passagens de posições
entre parentes próximos – predominantemente de pais para filhos, para irmãos ou
para os sobrinhos, quase sempre varões. Para que esta sucessão familiar seja
possível e bem sucedida, é necessário que estes herdeiros estejam habilitados a
receber o património familiar compósito que as gerações controlante e declinante
lhes transmitem. Uma parte do mérito daqueles que conseguem conquistar o
estatuto de sucessor resulta do amplo conjunto de transmissões patrimoniais
intergeracionais, quase sempre feitas de pais para filhos. Porém, para que alguns
dos herdeiros se tornem sucessores credíveis terão, simultaneamente, de
demonstrar que são profissionais mais competentes que os outros e que estão
interessados em continuar o projecto económico e familiar que a grande família
partilha há várias gerações. A geração emergente cria os seus próprios meios de
produção do futuro das suas empresas a partir de uma articulação entre a
utilização do capital que herdou da geração declinante e os valores socioculturais e
exigências económicas do presente.
A utilização de uma perspectiva geracional na análise deste processo
complexo permitiu-me verificar a coexistência de uma multiplicidade de interesses
que estão permanentemente em acção. Estes variam entre as diversas pessoas dos
diversos ramos familiares de cada uma das famílias, mas manifestam-se, de uma
forma mais sistemática e reveladora, entre grupos geracionais.
Uma sucessão bem sucedida nos mais altos cargos da empresa familiar
permite demonstrar a importância da identidade continuada destas grandes
famílias. Se esta sucessão não fosse um ideal importante, não seria necessário as
gerações ascendentes levarem a cabo complexos e demorados processos de treino
para se tornarem profissionais competentes. Não seria, também, necessário operar
uma transformação simbólica da descendência filial em meritocracia profissional.
376 Conclusão
Poder-se-ia, simplesmente, contratar profissionais externos para desempenhar
esses cargos.
Conseguir passar a liderança da firma dentro da grande família permite
prolongar os dividendos económicos e o prestígio social de geração em geração.
Podemos dizê-lo de outra forma. Através de uma hábil manipulação do jogo da
meritocracia, os membros destas grandes famílias ligadas a empresas conseguem,
em última instância, levar a cabo uma transmissão baseada no parentesco. Desta
forma, estas grandes famílias empresariais lisboetas criaram um novo processo de
sucessão que, sendo baseado numa racionalidade fortemente económica e
meritocrática moderna, articula simultaneamente os ideais de sucessão familiar em
que assenta a sua identidade. De novo, é através da forma criativa como é
superada a contradição entre os ideais destas famílias no âmbito do mundo social
e empresarial que se constróem elementos centrais da definição e da distinção deste
grupo social e se produz a sua continuidade.
Homogamia e produção de comunidade
Conseguir prolongar o êxito e destaque que têm os projectos económicos destas
famílias no âmbito da economia portuguesa garante, também, a sua posição de
elite na hierarquia social nacional. As formas através das quais estas famílias põem
em prática o seu privilégio de privacidade condicionam o seu relacionamento com
os outros. Reproduzindo-se, preferencialmente, em espaços de âmbito familiar,
esta elite empresarial torna-se uma comunidade consideravelmente fechada.
As solidariedades primárias que unem os seus membros constróem-se sobre
a partilha de elementos de identificação que enformam os seus projectos de vida
,criando uma comunidade de práticas. Esta estende-se pelos diversos espaços
sociais de acção em que se movem os indivíduos, o que contribui para a
densidade da rede de relações destes indivíduos, promovendo a sua continuidade.
Ao circunscreverem grande parte dos casamentos dos seus membros às
outras famílias que compõem o seu grupo social, fecham ainda mais as fronteiras
Conclusão 377
invisíveis da sua comunidade. Desta forma garantem a coesão e a exclusividade
deste grupo social. Por sua vez, este facto contribui para a continuação de
condições privilegiadas de vida para as futuras gerações. A pouca visibilidade
mediática destas famílias torna-se um elemento eficaz de produção da autarcia que
as caracteriza e esta é, por sua vez, a base da homogamia que praticam. O
privilégio é, portanto, passado de geração em geração.
Vida pública
Estes grupos económicos de base familiar têm uma influência significativa na vida
nacional e, consequentemente, uma voz importante nas relações económicas e
políticas internacionais portuguesas. Neste sentido, e como titulares de grandes
grupos económicos, os membros destas famílias detêm um certo nível de
influência sobre alguns sectores da vida pública portuguesa. As influentes redes
sociais em que estão envolvidos ligam alguns membros destas grandes famílias ao
poder político e económico nacional e internacional.
Esta situação permite avançar duas conclusões sobre a comunidade
constituída por estas grandes famílias empresariais.
1) A comunidade que formam concentra em si um conjunto de poderes
sociais, económicos e políticos que as coloca numa posição de destaque na
sociedade portuguesa. Contudo, elas não constituem, no âmbito desta, o grupo
social hegemónico, na medida em que os valores pelos quais os seus membros
orientam os seus projectos de vida e as suas práticas não são dominantes no
âmbito da sociedade portuguesa actual. Ao recorrerem a modelos de organização
familiar e social que foram hegemónicos numa época passada, os membros destas
famílias apresentam-se como “conservadores” e “tradicionalistas”. Apesar de
serem parte da elite social e económica portuguesa, o facto de recorrerem a
elementos não hegemónicos – como por exemplo, a existência de formas de
propriedade transgeracionais e transdomésticas – coloca estas famílias numa
margem da sociedade. Esta situação coloca-as numa posição que pode ser
378 Conclusão
designada por uma marginalidade superior, pois têm recursos simbólicos e
financeiros que lhes permitem recriar os termos do seu relacionamento com a
burguesia profissional que, nos dias que correm, constitui a principal enformadora
dos discursos hegemónicos a nível nacional.
2) O facto de alguns membros destas famílias terem, com frequência,
influência sobre alguns aspectos da vida pública demonstra que as suas relações
pessoais têm repercussões ao nível de esferas de acção social de nível nacional e
por vezes internacional. Neste contexto de elite as relações pessoais adquirem,
portanto, centralidade enquanto dimensão fundamental para compreender alguns
fenómenos globais. Neste sentido, as relações cara-a-cara tornam-se um
importante ponto de partida para a análise de alguns fenómenos de globalização.
Esta comunidade assenta a sua estruturação, em grande parte, na
organização da família. As relações familiares têm, portanto, um grande peso na
compreensão dos contextos de elite das sociedades capitalistas modernas. A
inserção familiar desempenha um papel central na forma como este grupo de
pessoas, unidas por um modo de vida, consegue perpetuar a sua influência social,
económica e política. É também neste sentido que podemos ver como a
institucionalização da família é fulcral para a reprodução da integração dos seus
membros nas elites sociais, dando assim uma aparência de “classe social estável” à
sua existência.
Uma das contribuições da antropologia para o estudo das sociedades
capitalistas e das economias modernas decorre do facto de, através de uma
etnografia enraizada em análises culturais e práticas sociais, podermos demonstrar
a ampla variação de significados das categorias económicas hegemónicas que
operam em diferentes sectores da sociedade e que dificilmente seriam
compreensíveis de outra forma. A pesquisa etnográfica em contextos sociais de
elite permite abarcar uma dimensão prática das formas de produção quotidiana de
relações de poder e da sua reprodução. Efectivamente, a antropologia, que
normalmente se debruça sobre a pequena escala, poderá fornecer importantes
pistas de análise a uma área de estudos que tem sido dominada por uma
Conclusão 379
perspectiva macro, que a “desligou” da realidade social concreta que procura
explicar.
O trauma fundacional e a lei das três gerações
Uma das contradições mais importantes para a consolidação do projecto
identitário destas famílias e, portanto, para a continuidade das suas empresas, é
aquilo que defini como “o trauma do 25 de Abril”. O período que se seguiu à
revolução de 1974 surge nestas famílias como uma espécie de drama social – no
sentido do conceito proposto por Victor Turner (cf. 1957). Isto é, um momento
de ruptura que promove formas de superação, tornando-se um factor central para
a produção das condições necessárias à reorganização do grupo social, permitindo
a sua continuidade.
Em grande medida, foi por terem perdido a fortuna familiar e terem sido
forçados a recuperá-la que, hoje em dia, as grandes famílias conseguem continuar
a ser “grandes”, tanto enquanto famílias como enquanto empresas. A necessidade
de superar a mais complexa das situações – a perda de parte importante das
empresas por motivo da revolução de 1974 – é, efectivamente, um elemento
central para explicar o vigor com que as gerações actuais destas grandes famílias
se dedicam, neste momento, ao seu projecto colectivo.
Sem a necessidade de superar essa situação de “drama social” as novas
gerações poderiam ter caído na armadilha da lei das três gerações, na passagem da
gestão das empresas profissionais ou na venda das empresas a grandes grupos,
que são as situações estatisticamente mais frequentes no âmbito das empresas
familiares, em lugar de ter lutado fortemente pela reconstrução dos seus grupos
empresariais.
A análise destas grandes empresas familiares de Lisboa mostrou que não
podemos aceitar a ideia que predomina entre os especialistas da área económica,
segundo a qual as empresas familiares são definidas como empresas de pequena
dimensão, destinadas a ter uma existência curta, que não seguem critérios de
380 Conclusão
gestão profissional, pelo facto de serem geridas pela família e que estão arredadas
do pelotão da frente das organizações económicas.
Em última instância, a situação que a revolução democrática de 1974 criou a
estas grandes famílias torna-se um exemplo irónico de como as contradições são
superáveis através de vários processos de mediação.
Continuidade e contradição
Referi a existência de contradições entre os ideais culturais, ideológicos e morais
defendidos pelos membros destas famílias e as suas práticas sociais. Logo de
início, mostrei que a própria noção de empresa familiar se constrói no âmbito
dessa contradição. No caso etnográfico com que trabalhei, esta é exponenciada
pelo facto de se tratar de grandes empresas familiares, de grande sucesso e com
uma existência longa. Mesmo a única empresa das que estudei que não se
encontra actualmente numa situação de sucesso enquadra-se em níveis de
grandeza, importância e longevidade que não se enquadrariam na definição mais
frequente de “empresas familiares”.
Como mostrei em situações e contextos diversos, as práticas sociais dos
membros destas famílias não correspondem frequentemente às descrições que os
próprios fazem delas. De entre estas destaco os casos: a) da articulação entre
trabalho e família nas empresas familiares; b) da existência de divórcios no âmbito
de famílias profundamente católicas; c) da transmissão dos apelidos por via
uterina; d) da importância do trabalho das mulheres que dizem não trabalhar; e)
da sucessão familiar no quadro das grandes empresas modernas geridas por
princípios meritocráticos; e f) da longa existência destas empresas familiares.
A frequente contradição entre as representações explícitas e as práticas
sociais concretas que encontrei no âmbito destas famílias resulta, em grande
medida, do facto de a realidade social impor constrangimentos à concretização
dos seus ideais. A agencialidade dos sujeitos no âmbito da organização familiar
tem, consequentemente, em vista a superação das contradições que a realidade
Conclusão 381
social em que estão inseridos coloca aos ideais que perseguem, obrigando-os a
criar formas de superação da contradição. Assim, são os próprios princípios
culturais que os membros destas grandes famílias defendem que colocam as
contradições que depois terão de ultrapassar.
De forma a tornar possível a continuidade do grupo é necessário encontrar
formas de mediação simbólica que permitam transformar aquilo que é uma
aparente contradição numa forma possível de concretizar um ideal fundamental.
Estas práticas que vão contra o modelo ideal que estas famílias defendem,
mostram que há elementos aparentemente estranhos aos valores da hegemonia
instituída que são, no entanto, fundamentais para compreender a forma como os
indivíduos levam a cabo a sua agencialidade quotidiana. Desta forma vão
produzindo a sua continuidade através da introdução de elementos de mudança,
modernizando-se.
Os membros das elites definem-se a si próprios como “conservadores” e
associam-se consciente e voluntariamente a formas de vida baseadas na tradição.
Neste sentido, constróem um modelo de temporalização da diferença, em que as
formas de diferenciação social são definidas com base numa inscrição temporal
dos grupos sociais. De certa forma, este processo moraliza a modernidade, pois
utiliza critérios de avaliação da legitimidade profissional e de reconhecimento do
prestígio e do estatuto social dos indivíduos, ou melhor dizendo das famílias a que
pertencem, com base na sua antiguidade no tempo longo durante o qual a
exerceram com sucesso.
Esta associação a um tempo passado e a modelos de organização social e
familiar característicos de momentos históricos anteriores, poderia produzir o
risco de mostrar os membros destas famílias e as empresas que detêm como
sobrevivências de fases anteriores da economia capitalista. Porém, a forma
competitiva, inovadora e bem sucedida como estas empresas se inserem no
mercado económico mostra que tal não é o caso. A tradição, a longa existência e o
enraizamento familiar são usados neste contexto como elementos tão
intervenientes e poderosos na afirmação destas empresas no mercado económico
como o recurso às mais modernas e avançadas tecnologias ou técnicas de gestão.
382 Conclusão
A equilibrada articulação entre tradição e modernidade feita pelos líderes destas
grandes empresas familiares torna-se uma mais-valia decisiva num contexto que se
pretende definir exclusivamente através de elementos racionais, modernos e
desligados das relações pessoais e familiares.
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ZUCKERMAN, Harriet (1972), Interviewing an ultra-elite. Public Opinion
Quarterly. 36 (2): 159-175.
ERRATA
Pg. 71 - penúltima linha do 2º parágrafo em vez de para deve ler-se partilham
Pg. 125 – 3ª linha a contar do fim: em vez de projecto unido deve ler-se projecto
unificador
Pg. 157 – linha 4: em vez de donos deve ler-se indivíduos
Pg. 199 – Quadro em Família Vaz Guedes em vez de 4 deve ler-se 24
ERRATA
Pg. 71 - penúltima linha do 2º parágrafo em vez de para deve ler-se partilham
Pg. 125 – 3ª linha a contar do fim: em vez de projecto unido deve ler-se projecto
unificador
Pg. 157 – linha 4: em vez de donos deve ler-se indivíduos
Pg. 199 – Quadro em Família Vaz Guedes em vez de 4 deve ler-se 24
ERRATA
Pg. 71 - penúltima linha do 2º parágrafo em vez de para deve ler-se partilham
Pg. 125 – 3ª linha a contar do fim: em vez de projecto unido deve ler-se projecto
unificador
Pg. 157 – linha 4: em vez de donos deve ler-se indivíduos
Pg. 199 – Quadro em Família Vaz Guedes em vez de 4 deve ler-se 24
Maria Antónia Pedroso de Lima
GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS
Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa
(Anexos)
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Lisboa
1999
ÍNDICE
Mapa genealógico nº 1 - Família Espírito Santo
Mapa genealógico nº 2 - Família Mendes Godinho
Mapa genealógico nº 3 - Família D’Orey
Mapa genealógico nº 4 - Família Vaz Guedes
Mapa genealógico nº 5 - Família Queiroz Pereira
Mapa genealógico nº 6 - Família Santos
Mapa genealógico nº 7 - Família Pinto Basto
José MariaEspírito Santo Silva
Carlos Manuel Machado MacedoRenata
MadalenaJoice
I
I II
II
I II
II I
Mª José Mª José Mª Améliade Mello
Conceição Rita
TonyCardoso José
Maria
FranciscoCostaPessoa(Vinhais)
Rita RibeiroMaria daConceição Silva
Mª José Mª JoséBorges Coutinho
Dr. Carlos daCruz Mello
José Ribeiro Frederico Perestrello
José Lencastre(Arronchela)
DeboraMichael Lencastre
VeraCohen
Mª MoraisSarmento Cohen
Ricardo
Luís Sofia Filipa José Luís Cardoso
AnaIsabel
Salvador Roque de Pinho
Domingos Roque de Pinho
JoãoSimões de Almeida
JoséMaria Jorge VeraBettencourt José
DuarteMariana Martim
Mª Candida
Maria doCarmo
Catarina RitaSalvador Maria
II
ZicaGalvão
I
II II I
III
I
Filipa de Carvalhoe Silva
João Joana Marco Diana Jade Jessica MariaCarmo
Violeta Benjamin Simão
Pedro
Mª Justina
Mª Cristina
Dr. CustódioMonizGalvão
Fernando Carolina João Carlos Cardoso Salgado
FranciscoMelo Breyner
Mª JoãoSão Lourenço
Duarte Mariana José Quintela Saldanha
Iachi Luís Aguiar
Luís Mary AnaJoão Lobo Antunes
JoãoPope
Maria
João Tó Álvaro Ricardo Catarina José Inês Miguel João José Salvador António Pedro Mª do Mar Marta FilipaFrancisca Marcella Frederico Thomaz Mª daPureza
Matilde
IIIIII
ManuelBarreiros
António Ricardo Ricardo LuísCinhaJardim
Mª JoãoCalçadaBastos
Teresa SerodioSabrosaIII
Fiuza António AntónioLobo Antunes
Vera Mariana
III
MariaJoão
António Mafalda AvilezPereira
Frederico Horta e Costa
Teresa Madalena FranciscoJoana Marta ManuelFrancisco Mantero
Marta CorreiaMendes
Vitor Mamede
Isabel
MartaIII III III
JoséMaria
MiguelSousa Tavares
Mª João Zarco daCâmara
JoãoCastelo Branco
António Van ZellerIII
João Aragão Teixeira
Miguel Félix da Costa
Mª Antónia
III
Tomaz Ana Janet
Pedro Mafalda
Nuno
Filomena Eduardo
Vera
Madalena
Mª daConceição(Mary)
António Ricciardi
Vera AntónioBustorffSilva
AnaMaria
Rodrigo Leite Faria
Rita ThomazMelloBreyner
Manuel Ricardo
Matilde
Manuel Fernando
Manuel SofiaFernando Manuel
Rita
Mª do CarmoMoniz Galvão
AntónioSofiaAbecassis
LuísaThemudod'Orey
VeraMaria
Cristina Ricardo Carolina Eduardo FilipeIsabel Ricardo Teresa Manuel NunoCarolina António Tomaz Lara Maria
AlbertoMaria Bravo
Manuel Ricciardi
RosinaEkman
IIIII
I
I II
BernardoMª LuizaLeite Faria
RosárioLino
I II
JorgeMª InáciaCastelo Branco
Mayer deCarvalho
I II
IsabelPinheirode Melo
Mª do Carmo(Duquesade Palmela)
Ricardo Stella Bernardo Mª do CarmoMascarenhas
José Manuel Salgado
Miguel
Manuel Domingos Holstein Beck (Duque de Palmela)
Carlos Beirão da Veiga (Soc. Nac. Sabões)
Bernardo (Conde de Arnoso)
Madalena Maria Carlota CatarinaMadalena Maria BernardoManuel
Matilde Sofia
Jorge Nuno Maria
Marta BorgesCoutinho
Fernando
António Sara
SaraCaetano
Duarte
Lara Araújo
CarlosManuel
PedroJosé
José Luís Figueiredo
AnaMafalda
Manuel Guedes de Sousa
Matilde Munró dos Anjos
Bernardo Pinheiro Correia de Melo
TeresaXaraBrasil
SandraWehle
Vasco Mendes de Almeida
Madalena
Catarina João
José Pinto Basto
Bárbara Cristina
Lourenço FranciscoCaetano Matilde AntónioFranciscoÍndia
Pedro Toscano Ricco
Isabel Salvador Correia de Sá
Isabel João Vilhena Bettencourt
Teresa CarlotaFrederico
Mª João Galvãode Melo
Constança
IsabelTeodora
Carlos Beirãoda Veiga
JoãoSerôdio
I II
Mafalda Frederico daCunha Mendonçae Menezes
Pedro IsabelTeodora
António Cunha Martins
Mª daAssunção
Nuno Xara Brasil
Catarina
FredericoJosé
Júlio Tassora de Bastos
Isabel
Nuno deSta. Maria
MariaMafalda
Maria
JoséManuel
Pedro
Mª LurdesSimões de Almeida
AnaFilipa
Maria(1943-44)
JoãoBrito eCunha
Madalena FernandoPereira Coutinho
AnaPatrícia
Mª Ana JoanaManuelTiago
Marta MartimCarolina Domingos PedroMª doCarmo
Ana RessanoGarcia
JoãoFilipe
João
Mapa genealógico da família Espírito Santo
João Mª daConceição
Manuel António Libério
ManuelMendes Godinho
MariaConceiçãoCarvalho
Henriqueta Egídio
Nuno
Henrique
JoaquimAlmeida
Tio RosaMariaCarmo
Rosa
Mª doCarmo
AugustoJoséAugusto
MacedoBenvinda Laura Oliveira Batista
Manuel Sousa Godinho
Georgina
Gina
Nuno
João Francisco Celeste Mª doCarmo
Mª doRosá-rio
Mª doRosário
Gonçalo Manuel JoséManuel
MariaMada-lena
MiguelSampaioe Melo
LuísMarquesLito
IsabelMaria
VascoMina
João LindaFeamens
MariaConcei-ção
Alva- renga
Luís
I II
Francisco
EgínioQueiroz e Melo
JoãoNovais
PassosMª doCéu
Mª dosAnjos
Mª do Rosário
Baeta Neves
Henriqueta
António Egínio
João
João Jorge
Manuel
Manuel Vítor Vasco
Manuel IsabelFazenda
Concei- ção
AntónioBarata
Joana
António VeraSalda-nha
Violante
Joaquim FranciscoJoão Mª doCarmo
Clara JoséFontes
Mada-lena
JoséMaria
João Mª EmíliaSoaresParente
PintoEliseu
RosárioBarracas
Manuel António Isabel Concei-çãoEiró
Teresa Concei-ção
Fernanda José CíntiaTomásMachadoLima
TristãoCarva-lhasNuno
I II
I IIIII
AnaRita
Roque Margarida Manuel David Pedro Frederico MafaldaClaraTeresa Gonçalo Leonor Maria Tomás MadalenaMª doCarmo
Inês Sancha
Mapa genealógico da família Mendes Godinho
II I
I
I III
II
II
José DiogoMascarenhas Neto
Luís Mouzinhode Albuquerque
Athayde
primos
primos
Ana de MascarenhasAthayde
Frederico João OscarGuilherme d'Orey
Augusto Eduardo GuilhermeHeitor Achiles d' Orey
Mª Luiza Henriqueta Mouzinhode Albuquerque
Mª Luiza Joana Mouzinhode Albuquerque
João José Antunesde Mascarenhas Gaivão
Mª Luiza Ulrika
Rui Albuquerqued'Orey
Elvira deAscenção Jara
FredericoGuilherme
Maria EugéniaPerestrello deVasconcellos
Rui Mª Luiza Calvet de Sousa Pinto de Magalhães Cardoso
Waldemar
Rui Guilherme
MariaLuísa
Maria Helena
Mª Isabel Braan- camp Freire
Carlos d'Atalaya Vieira Rocha
Mª Helena Calvet Cardoso Pinto de Magalhães
Mª daConceição Sotto Mayor Gonçalves
Mariana
IsabelNunes
AugustoSampayo
III José
Mª do Carmo
Jorge Mª Baltazar Pinto de Melo
Waldemar José
Mª Adelaide Guedes Vaz de Sá Carneiro
Eduardo Achilles
Mª Domingas Noronha Hussum
António Mª Assunção Castelo Branco
Miguel Mª Luiza Faria M.
Rodrigo Mª Teresa Amorim Guimarães Serodio
Francisco Manuel
Margarida Reis
Jorge de Cunha Santiago
Pedro Paulo
Margot Rueth
Fernando Luís
Patrícia Burke
Fernando Vilas Boas
Maria Fran-cisca
Vasco Isabel
primos
Adolfo Juzarte Rolo
Mª Ulrika
Francisco Melo e Costa Zarco da Câmara
Isabel Mª Glória
José
Carlos
António Mariana Ulrika AfonsoHenrique Nuno
Maria Manuela
Frederico Posser de Andrade
Madalena
VascoJara d'Orey
ManuelaSampaiod'Orey
Isabel Duarte Ramalho Ortigão
Duarte
José Barros
Maria João
Clara Nuno Sotto-mayorMegre
Miguel Ana
I II
Mª Elvira Lopes
Guilherme
Carlos Carmo Nina João
Carlos António
Margarida MafaldaAntónio Tinoco
Luís Meneres
Isabel Rui Zé Luís
Ligação à famíliaPinto Basto
Marinade MeloFerreiraPinto
primos
Mª Elvira
João Correia Botelho
Luiza Luís Vasconcelos Pimentel Possolo
Luís
José
Pedro Mª de Jesus
Ana Oakley d'Orey
Joaquim Manuela TaiAntónio José Carlos
Vasconcelos
Vera CarlosMacedo
ManuelaVasco António Saldanha
Sofia
Francisco VeraVera Vasco Zé Luís Sebastião António Pedro
Vasco Maria Salema
Sebastião Guimarães
Mª daConcei-ção
LuísLuísaPedro João Mariana Avilez Botelho das Neves
II I
Gonçalo Mª José de Portugal e Castro
Zé Luís Mª do Carmo Galvão Cunha Cabral
Bernardo SalvadorMargarida Mª Helena Campos Henriques
Maria Manuela
Guilherme Mª do Rosário
Isabel Homemde Melo
António Belmar da Costa
José Zé Diogo
Vasco Madalena Bernardo
II I
Lourenço Inês Verde
FabianSlaes
João Manuel
Teresa de Carvalho
Maria José
José Cunha
Rui Inês Den-tinho
Duarte Salvador
LuísVieira de Campos
Maria Inês
Duarte Rui
Nuno
III
Olga Leitão da Cunha
VascoCabral da Câmara
MariaJoão
Cecília
Mª da Luz Maria
Teresa
Mª de Jesus Teresa
João Melo e Costa Câmara
João Soares Franco
Manuel Cancela de Abreu
MariaMargarida
Pedro Bon de Souza Ribeiro de Melo
Mª Luísa Figueira Quintela
Ulrika
Miguel Stilwell
Mª da Con-ceição
Gonçalo Delgado
Ana Mafalda
Francisco
Graça
Maria Maria Tiago
Diogo Siqueira
Mª João
Francisco Andrade e Souza
MªCarmo
Mari- anaSalgado
Cunha Maria João
LourençoVasco Ana Pedro Gonçalo
Pedro CatarinaFrederico MadalenaMaria Miguel
Nuno *JoséManuel
Fernandade Almeidaprimos
* Maria da Luz Câmara d'Orey
LuísGuilherme
Eugénia MªSaldanha e Lencastre
Luís Mariana Eugéniade Jesus da Câmara
Joaquim PedroSampayo Quintela
Ana Luiza GuilhermeJoãoGomes da Costa
LuísaTeixeiraSampaio
JoséDiogo
LillianBurridge
AnaTeixeiraSampaio
IsabelWaldemar Augusto
Mª da PiedadeZuzarte de Sárrea
ManuelMouzinho de AlbuquerqueMascarenhas Gaivão
Maria deGusmão
Luís Mª Fran- cisca
primos
primos
GuilhermeGuilherme Celeste Canivete
MariaIsabel
José Correia de Sampayo Melo e Castro
MariaTeresa
Alexandre Ferreira Pinto Basto
Mª daAssunção
Raquel Freire Themudo
Luiz Pereira Mouzinho de Albuquerque Mascarenhas Gaivão
* Mª daLuz
primos
Nuno Jara de * Albuquerque d'Orey
Mariana
Mª do Patrocínio
Manuel Eduardo
Mª daGraça
JoséGomes da Costa
Madalena Oom de Almeida Lima
Francisco Xavier
Mª da Con-ceição
Laura FerreiraPinto Freire da Câmara
Fernando Rolin de Seabra Pereira
Zé Diogo
primos
JoséDiogo
Maria Manuela Sequeira
Mª LuizaBarrosoCâmara
JoãoBarrosoCâmara
DaisyOakley
FredericoPedro José da Cunha Mendonça e Menezes
Zé Diogo
Luís Maria
Luís Hugo Lupi
MariaLuiza
Pedro Rego de Melo e Castro
Joaquim Pedro
Mª Benedita Oom de Almeida Lima
Guilherme Augusto
Isabel
primos
Madalena Luísa Duarte Freire
LuísMaria
João José Gusmão de Moura deMascarenhasGaivão
Luísa Mª
primos
Vasco Jara d'Orey
Manuela Manuel de Lencastre de Bobone
MarchandAna Emília
José Diogo
LilianeJulietaGomesde Amorim
Francisco Xavier
Albertina Garcez Raimundo
José Diogo
PedroAlda
Luísa van der Maes de Sombrete
Luís le Coq de Albuquerque de AzevedoCoutinho
Manuel Gil
Luís Pereira Coutinho
Mª das Dores
André Calvo y Velasco
Mª doCarmo
Mª daPiedade
Manuel Frederico de Campos Andrade Oom
Mª dasDores
Manuel Carlos d'Orey Bobone
II I
Ligação à famíliaPinto Basto
Ligação à famíliaPinto Basto
Mapa genealógico da família D'Orey
Dom João VI(Rei de Portugal)
Dom Nuno de Mendóçade Moura Barreto(Duque de Loulé)
Dom Rodrigo Domingosde Souza Coutinho(3º Conde Linhares)
Dona Ana de Jesus Maria(Princesa de BragançaInfanta de Portugal)
Dona Ana CarlotaMendóça
Dona Carlota Joaquina(Rainha de Portugal)
Dom Nuno(5º Conde Linhares)
Maria ConstançaSimões Lisboa
José Teixeirade Queiroz deMorais Sarmento
Maria JúliaPimenta da Gama
José de QueirozBotelho de Almeidae Vasconcellos
Maria Rita deMorais Sarmento VazPereira Pinto Guedes
AntónioBotelho de QueirozPimentel
Maria LuísaJosefa GouvêaMeneses de Barbosa
Dr. João Teixeira deQueiroz Vaz Guedes
Maria Amália de Souza Coutinho
José deQueirozV. G.
ManuelFrancisco
Mª doCarmoCasal R.
Maria JoãoMaria
TeresaMaria
JoséRodrigo
Maria de Lourdes deVasconcellos e SáGuerreiro Nuno
MariaAugusta
ManuelCalheiros daCosta Braga
Helga Lobod'ÁvillaBeenken
LuísAntónio
JoséLourençoLuz
Mª deLourdes
Luísa MartaPessanhaBarbosa
Mª VanZeller
José VascoFrancodeSousa
António Francisco Ana R.GarciaDebonnaire
Vasco Paula MªChambel
Rodrigo MariaFilomenaBordaloSilva
JoséRodrigo
Mariana MariaConstança
MariaRita
MariaAmália
Mªdo Carmo
João Maria Vasco FranciscoMariaTeresa
MartaAna AlmaAndré Rodrigo
Maria I II
FranciscaJoséMaria
DiogoMaria
Mariana José Francisco
José Eugénia MªLeitãoAlves Diniz
Diogo João Mª Manuelde AlmeidaLobo
Teresa JoaquimGuedes deQueirozGuimarães
CarlotaCasteloBrancoRamosMagalhães
João Maria TeresaCastro deSeixas
MªClara
Jorge VascoCroft deMoura Nuno
Manuel Rita Teresa
Mapa genealógico da família Vaz Guedes
Patrícia
Mapa genealógico da família Queiroz Pereira
II IIII
I II
CarlosAugustoPereira
CecíliaTeixeirade Queiroz
SantosMendonça
Maria da LuzPachecoNobre
Mª TeresaLencastreFiuza
AntónioTelles daSilva I III
SalvadorPosser deAndrade
Nuno de Brion
Carlos MªTeresa
ManuelMatilde Mafalda LuaMónica
CarlosManuel
PedroQueiroz Pereira
AnaMenano
AlexandreMascarenhasde Lemos
Manuel AugustoQueiroz Pereira
AntónioBacelarCarrelhas
Manuel Pedro
Filipa João Páris
JoãoAntónioMartin
Tomaz Maria Salvador Sebastião
MaudeTaylor
Maude TaylorSantos Mendonça
CecíliaMariaTeresa
MaudeRitaMendesAlmeida António
PedroJosé
ManuelCecília
PedroMaria
MargaridaJoãoLagos
II
Antóniode Almeida Simões
AntónioMaria
FranciscoManueldos Santos
Alzira Soaresdos Santos
Mª daConceição
FernandoElísio Inês ÁlvaroMota
Helena
ElísioAlexandre
Ernesto
Francisco Rita José Teresa
Henrique
Inês Mª João
Fernando Cristina
primos
Elísio Paula
Paulo Pedro
Marina JoséBação
Isabel
I
Miguel Luísa
Mª Teresa
Mª deLurdes
Paula Pedro Miguel deSousa
Ana
Helga Raul Inês Alfredo JorgeEloisa
Francisco Julieta Artur MªElisa
MªElisete
Vasco
JoãoAlzira
RosárioMaria
MariaIsabel
Francisco
Isabel Manuel Domingues
JoãoCanasSimões
CarlosMateus
JoãoFiguei-redo Ana
CristinaCatarina Inês
Carolina
Paulo
Henrique Goia
Filipa João Vitor Francisco JoanaNuno Inês Diogo Duarte CarlosEduardo
AnaTeresa
AnaLuísa
AnaMargarida
Pedro João
EduardoAlzira
Ana Mª JorgeSimõesCastanheira
HelenaMaria
Ana
I II
FernandoMª Adelaide
Isabel
I II
Sérgio Catarina
Mapa genealógico da família Santos
Rita Vera Mariana Joana Guilherme Francisco SofiaTomásManuel António Alexandre VascoMariaInêsFilipa Vera CláudiaGonçalo MadalenaAlexandre