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AssociaçãoNacionaldosProgramasdePós-GraduaçãoemComunicação
XXVIIIEncontroAnualdaCompós,PontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul,PortoAlegre-RS,11a14dejunhode2019
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GODARD-CELULAR:
uma entrevista coletiva como performance artística1
GODARD-SMARTPHONE: a press conference as performance art
Bruno Guimarães Martins2
Rachel Bertol3 Resumo: O trabalho tem como ponto de partida a entrevista coletiva concedida por Jean-Luc
Godard por meio de um celular a jornalistas no Festival de Cannes de 2018, sobre seu filme ‘Le livre d’image’. Sendo ritual jornalístico, a coletiva transmuta-se, segundo nossa hipótese, em performance artística (também numa crítica ao jornalismo). Em sua encenação, Godard aponta (ou até “denuncia”, à moda performática) deslocamentos midiáticos contemporâneos. Nosso objetivo é investigar elementos da rede discursiva evocada pelo celular a partir de suas proposições. A função tátil (da digital e do digital), sobretudo em suas interfaces hápticas, ocuparia lugar central nessa conjunção, em que se sugere uma “brincadeira” de linguagem, com a exploração de seus limites. O cineasta quer decompor texto, imagem e som, sob a urgência de desafios políticos contemporâneos e de um embate com a possibilidade de representação, num tensionamento de temporalidades.
Palavras-Chave: Jean-Luc Godard. Perfomance. Celular. Abstract: The work is based on a press conference given by Jean-Luc Godard, through a
mobile phone, at the Cannes Film Festival in 2018 about his film 'The image book'. This press conference can be considered, according to our hypothesis, also an artistic performance (and a form of criticism toward journalism). Godard points out, in a critic way, displacements in contemporary medias. Our objective is to investigate elements of the discourse networks evoked by the cell phone, taking his propositions as a starting point. The tactile sense, especially in its haptic interfaces, occupy a central place in this conjunction, a kind of language game, in wich he explores its limits. The filmmaker wants to decompose text, image and sound, under the urgency of contemporary political challenges and faces a crisis with the possibility of representation, in a tension of temporalities.
Keywords: Jean-Luc Godard. Performance. Smartphone.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Cultura das Mídias do XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 11 a 14 de junho de 2019. 2 Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG, doutor, [email protected]. 3 Professora do Departamento de Comunicação Social da UFF; Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected].
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1. Dois tempos O cineasta Jean-Luc Godard se fez presente em (pelo menos) dois tempos no Festival
de Cannes de 2018. Por um lado, foi homenageado tendo uma cena de seu filme Pierrot le
fou (1965) no cartaz oficial da mostra. Por outro, participou da competição oficial com Le
livre d’image (2018; em português, Imagem e palavra). Era simultaneamente presença
histórica e atualidade.
A homenagem se deu para lembrar a participação decisiva que o cineasta teve no
festival em Maio de 1968, na efeméride dos 50 anos do movimento. Quando a França pegava
fogo com os protestos estudantis e a repressão política das forças de Charles de Gaulle,
Godard e outros cineastas de ponta no país, como François Truffaut, seu colega de Nouvelle
Vague, rumaram para Cannes com o objetivo de pôr fim ao festival. Numa concorrida
coletiva de imprensa que convocaram, Truffaut, o mais conciliador e falante, explicou a
motivação dos cineastas4. Godard participou a seu lado de maneira incisiva, até virulenta, e
lembrou que nenhum deles, inclusive ele próprio, fazia filmes sobre a classe trabalhadora e os
menos desfavorecidos5. Os estudantes tinham lhes dado uma lição. Houve muita resistência,
até de membros do júri, como Roman Polanski, que, vindo da Polônia, na época sob a
Cortina de Ferro e a repressão soviética, não via sentido em parar o festival em nome de
ideais comunistas. Outro momento de embate se deu quando os cineastas em protesto
buscaram interromper a sessão de Pepermint Frappé, de Carlos Saura, pendurando-se nas
cortinas da sala de apresentação. Segundo Pierre-Henri Delau, que presidiu o festival por
anos, o que houve em 1968 foi um happening (JAAFAR, 2016).
Meio século depois, Godard voltou a Cannes para apresentar seu mais recente filme e,
novamente, convocou uma coletiva de imprensa, em 12 de maio. Na véspera, depois de
assistirem ao filme, os jornalistas demostravam apreensão: o diretor costuma arrumar
desculpas estapafúrdias para não comparecer a entrevistas agendadas6 e, afinal, não havia
aparecido na Croisette. Só minutos antes do horário marcado foi anunciado que ele estaria
presente por meio de um celular: o cineasta conversou cerca de 45 minutos pelo aplicativo
4 Cenas da coletiva de 1968 encontram-se esparsas em vídeos no Youtube. Ver, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=b8kZM0rxkwI. Acesso em 05/02/2019.
5 Para uma narrativa memorialística sobre como Godard vivenciou o Maio de 1968, ver WIAZEMSKY (2018).
6 Ver o comentário do jornalista brasileiro Rodrigo Fonseca em vídeo gravado no Festival de Cannes, logo após ver o filme: <https://www.youtube.com/watch?v=oZvzM3GnAO8>. Acesso em 13/10/2018.
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FaceTime com jornalistas de todo o mundo (possivelmente uma centena ou mais), sob forte
emoção de muitos destes7. Quem segurou no alto o aparelho o tempo todo, com suas mãos,
foi o também cineasta Fabrice Aragno, assistente de Godard. Um cenário teatral se armou. O
jornalista Samuel Douhaire a definiu como uma “entrevista experimental”8.
Há algo paradoxal: ao longo de 2018, a coletiva pôde ser vista no mundo todo, com
livre acesso na internet, por sua vez, Le livre d’image não estava disponível na rede e foi
exibido sobretudo em festivais; no Brasil, teve estreia marcada no circuito comercial em
março de 2019. De alguma forma, a entrevista coletiva ganhou uma tal autonomia que, por
uma série de elementos a serem demonstrados, podemos apreendê-la neste artigo como uma
performance artística.
Sendo presença histórica, Godard provocava nos jornalistas expectativas sobre quem
iriam encontrar; era o cineasta tal como imaginado pelos profissionais ali presentes.
Esperava-se que cumprisse um determinado papel relacionado ao personagem cineasta, a
respeito do qual possuíam uma série de informações, com as quais pautaram suas perguntas,
sobre sua obra e personalidade. De certa forma, “Godard-celular” os desconcertou. Quando o
primeiro jornalista lhe dirigiu a palavra – bastou ele falar “bom dia” –, a plateia caiu na
gargalhada. O jornalista explicou os risos: “É muito engraçado falar com o senhor dessa
forma. Eu sou Olivier Ubertalli, da revista Le Point, bom dia. Tudo bem?”9. Era preciso se
pôr de pé diante da pequena tela para perguntar. A reação inicial de certa forma explicitou o
contraste entre os dois tempos evocados por sua presença, o de meio século atrás e o da
contemporaneidade. A própria configuração espacial do local da coletiva, tal como podemos
vê-la no vídeo, reforça esse contraste. Em muitos frames, temos no plano frontal Godard-
celular, com 87 anos, e ao fundo o cartaz oficial com uma cena de um filme seu, uma cena
alegre de paixão juvenil com os atores Jean-Paul Belmondo e Ana Karina (a primeira mulher
de Godard). Um plano sobrepõe o outro, como uma colagem de tempos.
7 A coletiva pode ser vista no seguinte endereço: <https://www.youtube.com/watch?v=KceYX_A-ERI>. Acesso em 13/10/2018. 8 Ver o programa televiso Cinérama (12.05 2018). Os dez primeiros minutos (num total de 21) são dedicados ao filme de Godard. <https://www.youtube.com/watch?v=8m_IbENry8A>. Acesso em 13/10/2018. 9 A tradução é livre do francês, a partir de transcrição feita por nós do vídeo da entrevista. O texto que Ubertalli escreveu a respeito está disponível na rede: http://www.lepoint.fr/cinema/en-tete-a-tete-video-avec-jean-luc-godard-13-05-2018-2217978_35.php. Acesso em 05.02.2019.
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FIGURAS 1, 2 e 3. Imagens extraídas da entrevista coletiva de Jean-Luc Godard no lançamento do
filme Le livre d’image no Festival de Cannes 2018.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=TWFmQbrAYqE. Consulta em 16/02/2019.
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Enquanto performer, Godard utilizou de habilidade pessoal para conduzir a plateia.
Ou seja, encontrava-se no tempo real da atuação, que Mehta (1984) opõe ao tempo de palco
(stage time). É assim que o ator se diferenciaria do performer: “Os performers são eles
mesmos, existem em tempo real, e performam ou ‘fazem’ as várias funções ou atividades
exigidas pela peça. Os atores personificam outros, existem no tempo de palco” (MEHTA,
1984)10. De certa forma, há uma ambivalência nessa relação de oposição, inerente à cena
teatral, em que o tempo de palco é aquele que advém do personagem, da ficção, enquanto o
tempo real é o que ocorre no momento da apresentação, no aqui e agora, diante da plateia. Se
na performance predomina o tempo real, Godard não pode ser considerado um simples
performer: o cineasta é também ator de si próprio, de sua figura histórica (ficcional na
medida em que é imaginada, a partir de uma série de indícios, pelos jornalistas – e por si). É nessa estreita passagem da representação para a atuação, menos deliberada, com espaço para o improviso, para a espontaneidade, que caminha a live art, com as expressões happening e performance. É nesse limite tênue também que vida e arte se aproximam. À medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para o imprevisto, e portanto para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto, de risco (COHEN, 2013, p. 97).
No início de 2018, ainda se encontrava em exibição em Nova York a exposição,
assinada pelo cineasta, intitulada Memories of Utopia: Jean-Luc Godard’s ‘Collages de
France’ Models11, remontagem de trabalho que fora exibido em Paris no Centre Georges
Pompidou em 2006. A exposição foi tomada como exemplo demonstrativo de Godard como
um “poeta multimídia” (KIM, 2018). Suas muitas práticas artísticas formariam uma “dupla
espiral”, em que uma delas ilustra a investigação da história do cinema e das especificidades
ontológicas deste e a outra mostra a expansão do cineasta para outras mídias e formas de arte,
numa tendência “pós-cinemática” (KIM, 2018). A ideia de colagem evocada no título da
mostra, executada nas maquetes como instalação, fez-se presente na coletiva de imprensa, a
começar pela sobreposição temporal com que desafiou a plateia de jornalistas. A seguir,
vamos destacar características da coletiva que nos levaram à performance (com sua ideia de
colagem); depois, iremos circunscrever questões teóricas para analisar deslocamentos
10 Do inglês: “Performers are themselves, exist in real time, and perform or ‘do’ the various tasks or activities that the piece requires. Actors impersonate others, exist in stage time” (MEHTA, 1984).
11 A exposição ficou em cartaz entre janeiro e março de 2018. Mais informações disponíveis em: http://miguelabreugallery.com/exhibitions/memories-of-utopia/. Acesso em 07/02/2019.
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midiáticos sugeridos por Godard; no fim, buscaremos concatenar a perspectiva teórica à
crítica das mídias proposta pelo cineasta.
Mehta, em seu estudo sobre a performance, afirma que seu intento não é “nem
normativo, nem prescritivo” (1984), já que seria um tipo de arte “sem uma identidade formal
fundamental: acontece no mundo da arte em vez do teatral” (KISSELGOFF apud MEHTA,
1984). Por causa dessa plasticidade, podemos encontrar a performance artística numa coletiva
de imprensa. Um tipo de prática em voga nos anos 1970, e que pode ser considerada uma
segunda fase após a explosão do happening na década anterior (COHEN, 2013), no bojo da
contracultura e dos movimentos de neovanguarda (que retomaram práticas vanguardistas do
início do século XX), a performance faz parte, portanto, do caldo cultural em que se
consolidou a arte de Godard.
Por que seria importante destacá-la para a análise dos deslocamentos midiáticos que
ele sugere? Justamente pela forma: sua materialidade. “O processo de criação [na
performance] geralmente se inicia pela forma e não pelo conteúdo, pelo significante para se
chegar ao significado” (COHEN, 2013, p. 106)12. Não são apenas as palavras que dirá
Godard que importam, mas a maneira como as apresentou; as palavras vão remeter a essa
forma, e vice-versa. Há ainda a referência (claro), da coletiva em seu conjunto, à proposta de
Le livre d’image, um filme de arquivo, organizado em cinco partes que remetem aos cinco
dedos da mão (com a qual manipulamos o celular). Tem-se um efeito de mise en abyme,
sendo que o celular estaria no cerne, acoplado, provocando reflexos nessa história toda.
2. Totem eletrônico Uma das possibilidades de diferenciação da performance em relação ao happening é
sua maior formalização, preparação prévia e estetização (COHEN, 2013). Se a intervenção
dos cineastas em Maio de 68 pode ser considerada um happening, isso se deve ao seu caráter
explosivo, inesperado e improvisado de atuação. Já na entrevista coletiva de 2018, houve
toda uma preparação do cenário: desde a ideia da concedê-la por meio de um celular até a
maneira como este seria colocado diante da plateia de jornalistas.
A presença do celular não soa arbitrária na proposta de Godard, nem o fato de o
aparelho ser segurado por seu assistente. Afinal, por que o celular não poderia ficar nas mãos
de um profissional da assessoria de comunicação ou por que a imagem não poderia ser 12 O autor cita a obra de Robert Wilson como referência para esse tipo de processo (ver GALIZIA, 2005).
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exibida numa grande tela? Seria mais fácil para a plateia. Optou-se por um formato, digamos,
mais autoral e minimalista. Além disso, o vídeo da entrevista demonstra que foi filmado com
profissionalismo, com variação de planos e ângulos originais (embora todas as coletivas no
festival sejam filmadas e estejam disponíveis na rede, ou seja, mesmo que não seja
intencional, isso não diminui a força da estetização dessa coletiva de imprensa).
Já uma característica comum do happening e da performance (entre muitas outras)
seria o potencial crítico: O discurso da performance é o discurso radical. O discurso do combate (que não se dá verbalmente, como no teatro engagé, mas visualmente, com as metáforas criadas pelo próprio sistema) da militância, do underground. Artistas como Beyus e o grupo Fluxus fazem parte da corrente que trouxe os dadaístas, os surrealistas e a contracultura entre outros movimentos que se insurgem contra uma sociedade inconsequente (e decadente) nos seus valores e também contra uma arte que de uma forma ou outra compactua com esta sociedade (COHEN, 2013, p. 88).
Embora as definições a respeito não se queiram fechadas (pela natureza até do que a
performance propõe), estudos sobre artistas reconhecidos como performáticos – Robert
Wilson, Laurie Anderson, Andy Warhol, grupo Fluxus, Ivald Granato, Paulo Bruscky, Guto
Lacaz, entre outros – apontam ainda como característica o fato de ser uma arte de fronteira,
não disciplinar (trazendo aportes do teatro, das artes plásticas, da literatura, do cinema etc).
No cruzamento de linguagens, começa a se moldar a estrutura narrativa de collage13 (ver
MEHTA, 1984), que Godard pratica em seus filmes (com o jogo da imagem em relação ao
som, a citação, o uso do arquivo, a forma como realiza a montagem etc) e de alguma forma se
viu na coletiva, primeiro pela sobreposição temporal (expressa espacialmente), mas também
pela maneira como apresentou sua figura, apenas o rosto, recortado no ar entre a plateia e o
cartaz de seu filme ao fundo. Não se tratava do contato direto com os jornalistas, como
costuma acontecer em coletivas de imprensa, mas do uso de uma outra mídia, o celular, em
tempo real, impactando a produção jornalística, num “templo” do cinema (mais uma mídia)
como o Festival de Cannes, tudo filmado para ficar disponível em rede. Se a collage evoca, por exclusão – e recusa, portanto, por definição -, o mundo codificado, ela impõe, por justaposição – e, portanto, por síntese -, releitura de tal mundo. Isso porque a síntese proposta pela collage não é um fim em si mesma, mas
13 Segundo Cohen, a ideia de collage, que nasce com Max Ernst e é adotada nos movimentos de vanguarda, praticada por artistas como Matisse, possui especificidades que impedem que a expressão seja traduzida diretamente pela palavra “colagem”: “Collage caracteriza a linguagem e a colagem em si é apenas uma das partes do processo de criação que inclui a seleção, a picagem, a montagem etc” (p. 60). Para haver collage, não necessariamente passa-se por este processo; segundo Cohen, como “num quadro surrealista, as figuras da collage podem ser imaginadas” (p. 60).
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incita a desmembramentos infinitos, que são as possibilidades de reler o mundo (FLUSSER, V., apud COHEN, 2013, p. 64).
A metáfora de “reler o mundo”, que evoca a ideia do mundo como livro (sendo este
por excelência, mas não exclusivamente, a mídia da palavra e da leitura), retorna no filme de
Godard, que não à toa a escolheu para destacar no título de seu filme (o “livro” de imagem),
indicando como ponto de partida a sobreposição das mídias – portanto, uma colagem de
mídias, o que seria um ponto central para se entender a crítica de Godard.
O uso de uma mídia eletrônica para o contato com a plateia é outra característica
observada em muitas performances: “Dificilmente o ator fala sem o auxílio de uma
aparelhagem eletrônica” (COHEN, 2013, p. 74). Seria um processo de “eltronificação” que se
refere ao questionamento mesmo do potencial das mídias e da linguagem por meio desses
aparelhos, em suas reconfigurações. O (auto)questionamento sobre a própria arte surge nesses
trabalhos, como no caso da coletiva, em que muitas perguntas buscavam definições de
cinema por parte de Godard, buscando-se desvendar um sentido, “o que queria dizer” com o
filme e com os rumos da sua obra.
Não sendo uma arte da fruição, mas uma arte que quebra a representação, a
performance – caso da coletiva de Godard – recoloca em jogo o “valor de culto”, na acepção
benjaminiana, numa sociedade em que predomina o “valor de exposição”. Não há uma
relação de passividade da plateia: os jornalistas são participantes e muitos expressam um
sentimento de reverência em relação a Godard – quebrando, portanto, preceitos de uma
neutralidade que se exigira deles numa ética estrita da profissão. A jornalista russa (que não
diz seu nome) destaca: “É uma honra falar com uma lenda viva”. Outro jornalista, cuja
nacionalidade e o nome não ficamos sabendo, conta que esperava há 21 anos por “aquela
pequena conversa” e que havia aprendido a língua francesa para compreender melhor seus
filmes. Temos assim um ritual – o da coletiva de imprensa – e um culto à figura do cineasta,
que, no celular, transforma-se numa espécie de totem diante daquela plateia.
Na análise da performance O videoteatro, de O. Donasci14, Cohen conta que a
aparição de uma “criatura” (um corpo aparentemente humano com cabeça de vídeo)
provocou espanto e medo, o que também é perceptível em alguns jornalistas. A criatura
aludia a um “totem eletrônico”, como Godard-celular. “Um totem que funciona como um
14 Apresentado na Galeria Arte São Paulo em maio de 1982.
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catalisador do rito” (COHEN, 2013, p. 85) ou um “carregador de signos”. Se a performance é
arte dessacralizada (parece vida, antiarte), por outro lado a figura de Godard reveste-se de
aura sacralizadora. Assim, estabelece-se uma relação mítica, não simplesmente estética, entre
performer e plateia. No caso da relação mítica (na definição aqui adotada), tem-se a
preponderância da “vivência do real” (como num ritual primitivo) e na relação estética ganha
relevo a “representação do real”.
A coletiva de Godard pode ser considerada um espetáculo performático ritual, mas
por outro lado também conceitual. Nesta segunda condição, não necessariamente se
estabelece uma relação mítica, mas brinca-se com convenções, como a teatral, subvertendo-
se sentidos de representação. No caso, brinca-se com a “convenção jornalística”. Godard
parece fazer uma blague com o rito, a começar pelos momentos iniciais, quando os
fotógrafos (como costuma acontecer nas coletivas de Cannes) são convocados a fazer
registros do entrevistado antes da rodada de perguntas. O coordenador da coletiva, o
jornalista e crítico de cinema Gérard Lefort, não resistiu à ironia: “Voilà, muito obrigada aos
fotógrafos por terem realizado essa performance, de tirar foto de um telefone”.
Transmutado em totem, Godard se fortalece diante da plateia. Aos 87 anos,
certamente pareceria figura bem mais frágil caso se apresentasse fisicamente diante dos
jornalistas. No vídeo, torna-se intocável, inatingível. Não sabemos, por exemplo, se possui
alguma dificuldade ou curvatura no andar. O ponto de inflexão é a voz, também utilizada em
off no novo filme e que chamou a atenção dos jornalistas, por seu tom trêmulo, com a marca
da idade – à bout de souffle.
O Godard virulento de 1968 deu lugar a uma figura cândida, sorridente, com uma fala
mansa, lenta: há um tom longínquo na maneira como elabora as frases, que contrasta com a
ansiedade e a pressa dos jornalistas em busca de respostas claras e frases prontas para seus
leads. Seu olhar parece até complacente, afável e seu tempo é inalcançável naquele momento
aos jornalistas. Apesar do tom de excitação reverente de muitos, outros mostravam-se
entediados (atônitos?) na plateia quando a câmara girava em sua direção. As respostas
seguem o ritmo do pensamento de Godard, vagueiam por vezes. Simpático, especialmente
com as mulheres, mostrou-se irônico com um jornalista norte-americano, ao dizer não se
lembrar do filme sobre o qual perguntava. Quem sabe o Google resolveria? “Em todos os
lugares, nos dizem: faça um clique. Mas o digital não funciona. Pois bem, faça um clique,
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caro amigo, do contrário serão cliques e claques. Voilà”, provocou o cineasta, fazendo rir a
plateia e deixando o profissional meio humilhado.
Várias vezes ao longo da entrevista, Godard usou o verbo “pensar” – precisamos
“pensar com as mãos”, conclamou. Pensar, entretanto (mesmo com as mãos), demanda certo
tempo e o dos jornalistas é escasso. Até que ponto tinham consciência de que a entrevista,
filmada, poderia ser vista na rede com livre acesso? Cada vez mais tem-se tornado comum
ver, pela televisão ou online (ou ouvir em rádios), esse ritual profissional, em geral reservado
aos bastidores, pouco transparente ao público. Sobre isso, há outra característica que ainda
nos remete à performance, como ao action painting dos anos 1960, em que era possível ver o
artista no seu processo de trabalho, dessacralizando-se.
Godard-celular, fortalecido com um totem eletrônico, ainda se mostra subversivo,
como há 50 anos. Mas agora a força da subversão se inverteu. Se meio século atrás sua
potência crítica encontrava respaldo na juventude, hoje essa fonte secou. Agora se faz
subversivo pela velhice, em sua presença lenta, arrastada, doce, repleta de memórias,
incômoda como toda subversão – e espantosa, paradoxal na pequena tela digital.
Na “pedagoria godardiana” (AGUIAR, 2001), tal como começou a se consolidar
sobretudo sob o impacto de Maio de 1968, autores como Brecht e Dziga Vertov encontram
lugar de destaque e ainda oferecem subsídio para a crítica: se o espetáculo não pode parar,
que haja novas formas de se relacionar com ele, com as imagens, as palavras, os sons nas
formas de poder (totalitárias muitas vezes) que engendram. Mas é preciso lembrar que Brecht
é também um autor de referência quando se fala em performance. Seu teatro didático-
conceitual guarda muita semelhança com a performance: “toda essa dialética atuar-
interpretar, tempo ficcional x tempo real está muito próxima do conceito brechtiano de
Distanciamento” (COHEN, 2013, p. 109). Brecht queria acabar com a passividade do
espectador, arrancando-lhe da ilusão. Todavia, ele não imaginou um mundo com a potência o
celular – e Godard-celular não se intimida diante das novas tarefas que se impõem.
3. Da imagem à palavra (e vice-versa) Reagindo às especulações apocalípticas sobre o livro e a leitura, o historiador Roger
Chartier (1998) constatou que a escrita é um traço distintivo nas chamadas mídia digitais.
Sobre as linhas codificadas da programação dos softwares se replicam e se multiplicam as
mais diversas formas de escrita e leitura por meio de textos, mensagens, tweets, posts, e-
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mails etc. Especulando se “há futuro para a escrita”, Flusser (2010) destacou a necessidade
poética criativa e artesanal da escrita apesar das linhas de programação e de robôs-escritores
cada vez mais sofisticados. O computador pessoal – e certamente também o celular, embora
de outra forma – em muitos aspectos lembra uma máquina de escrever, a despeito de todas
suas extraordinárias qualidades eletrônicas.
De acordo com a proposição do historiador da mídia Friedrich Kittler (1999), a
máquina de escrever pode ser localizada em uma genealogia informática, o que significa
dizer que, desde a virada do século XIX para o XX, uma “primeira mídia tecnológica” –
gramofone, filme, máquina de escrever – modificou as formas de registro, processamento e
circulação da informação. Em sua análise, cada um dos dispositivos tecnológicos funciona
como materialização de três categorias metodológicas da teoria lacaniana: enquanto o filme
representa o imaginário, o gramofone registra o real, por sua vez, a máquina de escrever
funciona justamente como articulação simbólica.
Neste artigo, lembramos a tríade imaginário-real-simbólico para a análise de um meio
técnico onipresente que facilitou o acesso à produção, ao processamento e ao arquivamento
de imagens, sons e palavras: o smartphone. A partir das proposições de Godard, podemos nos
perguntar: o que se põe em jogo com as sobreposições de diferentes linguagens neste
dispositivo específico? O que podemos esperar dessa collage? A escolha de um cineasta que
anuncia apresentar um “livro” dispõe uma questão central do artigo ao discutir, por meio do
dispositivo celular móvel, uma articulação muito particular de linguagens e redes discursivas.
Não se trata de apresentar uma análise fílmica da entrevista coletiva, mas de investigar
algumas das particularidades que a experiência de linguagem no celular proporciona no
contexto contemporâneo.
Em Mídias ópticas (2016), Friedrich Kittler sugere uma investigação da cultura a
partir da história técnica das mídias que, diferentemente de serem simples respostas a
transformações contextuais, são descritas a partir de intrincadas relações contingentes
materializadas em uma longa linhagem de dispositivos “óticos” dedicados à produção, ao
registro e à transmissão de imagens.
O amplo espectro temporal observado remonta à arqueologia da camera obscura para
descrever o desenvolvimento de um sistema midiático relativamente autônomo onde as
inovações técnicas relacionam-se entre si, permitindo à narrativa histórica alinhavar
fenômenos aparentemente distintos tais como a perspectiva linear, a impressão de livros, a
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literatura romântica, o filme. A revolução do livro, afirma ele, integrará essas relações, na
medida em que foi uma mídia capaz de englobar as demais, com função primordial para a
difusão de imagens (sem as quais as palavras pouco efeito teriam), como as imagens
geométricas, que propiciaram desenvolvimentos tecnológicos decisivos, contribuindo, por
exemplo, para a invenção da perspectiva linear no Renascimento.
A longa duração no desenho de tal panorama permite vislumbrar como algumas
transformações das mídias técnicas reconfiguram modelos para o imaginário e a
autoconsciência ao longo do que já foi chamado de “cascatas de modernidade”
(GUMBRECHT, 1998). Ao explorar matizes epistemológicas e existenciais de seus
pressupostos teóricos, sem deixar de lado o princípio industrial-militar que impulsionou as
inovações técnicas, o historiador consolida uma contraintuição relevante para o presente
artigo: “o interesse fundamental das artes e das mídias é enganar um órgão sensorial”
(KITTLER, 2016, p. 43). Como exemplo emblemático da ilusão midiática promovida pelas
mídia óticas apresenta-se o padrão técnico para registro e produção do filme, 24 imagens
(quadros) individuais por segundo, pois é justamente a velocidade capaz de enganar a
percepção do olho humano.
Inserindo-se no debate acadêmico e filosófico em torno do simulacro e da simulação,
o historiador destaca a coincidência entre midiatização e realidade (KITTLER, 2016, p. 43), a
partir da qual desdobra seu conceito de mídia e cuja potência se revela em sua qualidade de
processar e registrar o que trai e escapa à capacidade de percepção humana: “Mídias se
tornam modelos privilegiados para a formação da nossa chamada autoconsciência justamente
pelo fato de terem o objetivo declarado de enganar e trair esta autoconsciência.” (KITTLER,
2016, p. 40). As hipóteses desenvolvidas por Kittler avançam ao identificar alguns dos
impasses resultantes do embate entre relevantes transformações históricas, como a Reforma e
a Contrarreforma, o que configura uma guerra de propaganda entre os impressos protestantes
e a performance mística do teatro jesuíta.
De acordo com o autor, resultou deste conflito uma oposição entre razão iluminista e
superstição, cujo efeito contraditório, por um lado, mitigou a crença na capacidade reveladora
da mágica e da ilusão, e, por outro, despertou o desejo massivo pelo ilusionismo: “[...] o
apetite insaciado por imagens animadas gerou outra mídia, capaz de saciá-lo pelo menos no
âmbito imaginário até a invenção do filme: a literatura romântica” (KITTLER, 2016, p. 140).
Trata-se então de uma curiosa dinâmica quando a literatura pode ser compreendida como
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mídia e ser integrada à uma genealogia do filme ou, em outras palavras, de afirmar que uma
mídia apresenta invariavelmente uma qualidade anacrônica.
Explorando os limites do cinema, Godard o escrutina para ali encontrar outras mídias
e linguagens, a escrita e o desenho, a literatura e a pintura; além de outras disciplinas, como a
política, a filosofia. Neste sentido buscam-se novas potencialidades, assim como os limites
apontados em uma perspectiva de circunscrição histórica para uma “mídia-literatura”
(GUMBRECHT, 1998, p. 297). Observar a literatura por um viés midiático implica levar em
conta suas condições de existência a partir da maneira como processa, armazena e transmite
dados, ou seja, como constitui uma rede discursiva que controla e disciplina os corpos que
dela participam (KITTLER, 1990, p. 369).
Ao admitir que não se deve descartar a ideia de fim da “mídia-literatura”, Gumbrecht
e Kittler desenham uma arqueologia para o discurso literário a partir da historicidade
específica de sua materialização. Todavia, esta imaginação crítica serve a uma compreensão
da contingência histórica como algo que simultaneamente estabelece condições e permite a
este discurso emergir reagindo às novas configurações midiáticas. De forma mais ou menos
similar, ao produzir um filme que ambiciona ser “livro”, Godard resgata com sua genealogia
e léxico próprios as questões embaralhadas em seu medium artístico, o cinema. Para
estabelecer um espaço de reflexão crítica, o diretor realiza uma colagem midiática.
Além da criação baseada na montagem de um filme, ou seja, uma colagem de
imagens, textos e sons de arquivo, Le livre d’images explicita a sobreposição de diferentes
meios que o constituem. O anacronismo midiático explicitado pelo filme não parece
funcionar como um livro recém-impresso, mas ao modo de um antigo palimpsesto
manuscrito, quando o gesto do escriba depende de uma sobreposição sobre o mesmo suporte,
mas que não apaga completamente os vestígios do que ali fora inscrito anteriormente.
Ao extrair do filme a performance do ator, apresentando sua própria presença em uma
coletiva de imprensa, por meio de um smartphone, o diretor produz um espaço ampliado para
a obra que questiona limites entre a linguagem do medium artístico e redes discursivas
midiáticas nas quais se insere. Sobrepondo-se à experimentação cinematográfica, a entrevista
coletiva explicita o gesto artístico a partir do cenário teatral que se estabelece diante da
imagem do diretor na tela do telefone. Fora da obra, o gesto artístico situa-se além da
qualidade expressiva de um determinado meio, trazendo à tona uma consciência anacrônica
que depende justamente da manipulação artística. Sobrepondo sua performance à obra,
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Godard pretende inserir seu filme na longa história dos meios sem fim, para lembrar a feliz
expressão cunhada por Agamben (2015).
4. A região central
Godard não se furta ao jogo da história em suas “brincadeiras” de linguagem. Le livre
d’image traz uma colagem de muitos filmes, inclusive filmes dele próprio e da Nouvelle
Vague, e foi considerado como da mesma família de seu Histoire(s) du cinéma, que totaliza
266 minutos em oito partes (realizado entre 1988 e 1998). A mão é o elemento central de sua
narrativa – a “região central”, como disse –, por meio da qual se processaria o pensamento.
Região central é também o título do filme de Michael Snow, de 1971, ao qual prestou
homenagem reproduzindo um trecho em Le livre d’image. É ainda o título da última parte do
filme, dividido em cinco partes, como os dedos da mão.
Em suas respostas, há um fio condutor no qual desfia a questão da técnica. Um dos
momentos mais enigmáticos (ele próprio comenta que “ninguém entendeu nada”, provocando
risos) ocorreu quando citou o filme de Snow. Nessa obra de vanguarda, não há ficção, nem
não ficção: filmado ao longo de 24 horas em montanhas do Canadá, tem como peculiaridade
mostrar uma paisagem quase lunar, captada por uma câmera construída especificamente para
a tarefa, espécie de braço mecânico. A “região central”, portanto, só seria acessível por meio
da técnica (as imagens não poderiam ser captadas por uma pessoa). Assim, a mão se compraz
entre pensamento e técnica, mas não apenas, como afirmou o diretor: “[...] se era central, era
um desenho do dedo que, eu dizia, forma a mão, e essa região central é aquela do amor”.
Como disse ele reiteradamente na entrevista, nós pensamos com a mão. Tente ficar
um dia sem usar suas mãos, sugeriu a um jornalista, e nada faremos: não comemos, não
amamos etc. Godard pontuou que “sem as mãos, vocês não podem fazer nada. É por isso que
o meu filme, desde o início, mostra que tudo acontece com os cinco dedos e quando os cinco
dedos trabalham juntos eles formam a mão”. Somos pessoas do “tato”, da digital, do digital.
Mais do que qualquer outro meio, as telas sensíveis do celular oferecem interfaces hápticas
feitas para os dedos deslizarem, para serem tocadas levemente, diferentemente das “batidas”
em uma máquina de escrever.
No celular, diferentemente do que ocorre no teatro e no cinema, somos mais
dependentes da mão. Não basta olhar ou escutar, emerge fortemente a dimensão do tato. O
modo como a coletiva de Godard se performa nos faz perceber a incomensurabilidade da
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experiência de uma rede discursiva da qual já fazemos parte, mas com a qual ainda somos
pouco afeitos à reflexão. O cineasta quer decompor seus elementos. O primeiro título que
imaginou para seu filme foi Tentativa de azul15. O diretor estava preocupado com a cor, junto
com Cézanne. “É preciso se lembrar, e foi Langlois16 quem o fez, num pequeno filme, que os
[Irmãos] Lumière eram contemporâneos dos impressionistas e o que importava era a luz”.
Era a luz que importava quando filmaram a chegada do trem na estação ou a saída da fábrica.
Seu filme foi considerado profundamente político pelos jornalistas, que destacaram as
evocações a um mundo árabe “feliz, real e imaginário” (o escritor Albert Cossery é uma
referência importante), com reminiscências à Rússia e à Catalunha independentista. Suas
narrativas, comentou o jornalista Jacques Morice17, situam-se sempre no lado dos derrotados
da História.
Godard, de seu lado, debate-se em sua obra com a possibilidade de representação (e
para enfrentar com a questão, especialmente ao que se refere ao mundo árabe, recorreu neste
filme a Edward Said). Inclusive, destacou a seguinte fórmula para definir o cinema:
X+3=1, em que X=-218.
“[...] quando fazemos uma imagem, que seja do passado, do presente ou do futuro, é
preciso, para encontrar uma terceira, que começa a ser uma verdadeira imagem ou um
verdadeiro som, é preciso suprimir duas”. Assim, X+3=1 seria a chave do cinema. “Mas
quando dizemos que é a chave, não podemos esquecer a fechadura”, brincou o diretor,
fazendo rir a plateia de jornalistas. Desse modo, essa terceira imagem – a “verdadeira”
imagem – não poderia ser “imagem filmada”, mas “imagem pensada”. Por isso, não quis
trabalhar com atores: 15 Esse título que não se realizou remete à famosa série de colagem Nu Azul, de Matisse. Em Histoire(se) du Cinéma, diz-se que com Manet nasceu a pintura moderna e o cinematógrafo: “A forma começa a pensar sem submeter-se ao conteúdo narrativo que a informa. […] Desta experimentação advém a lógica de Henri Matisse de assumir a cor sempre como uma relação, em que o verde muda de intensidade próximo de um vermelho, em que as quantidades de azul mudam a qualidade experencial do azul. Isso é levado por Godard para o registro das citações, dos recortes de documentos e cenas de outros filmes” (DUARTE; OSÓRIO, 2017). Cézanne, por sua vez, o pintor mais citado por Godard na coletiva, é autor da tela Le vase bleu, em que mais do que representar a flor, ele se preocupa com as modulações das cores, como se pode ler na apresentação do Musée d’Orsay. 16 Henri Langlois (1914-1977) foi um dos criadores da Cinemateca Francesa, fundamental no movimento da Nouvelle Vague. No início de 1968, foi preso pelas forças de Charles De Gaulle, o que contribuiu para acirrar o ânimo da classe cinematográfica em relação ao governo. Citá-lo na coletiva meio século depois não deixa de ser uma homenagem ao simbolismo dele no movimento de contestação. 17 <https://www.youtube.com/watch?v=8m_IbENry8A>. Acesso em 13/10/2018. 18 Essa fórmula aparece de diferentes maneiras em sua obra. Em Je vous salue, Marie (1985), diz-se que “uma imagem + uma imagem = uma criação” (DUARTE; OSÓRIO, 2017).
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Há alguns anos, um escritor e filósofo, Bernard Lefort, dizia que as democracias modernas, ao fazerem da política um domínio de pensamento separado, contribuem ao totalitarismo. Eu acho que muitos atores hoje contribuem ao totalitarismo da imagem filmada, contra a imagem pensada (GODARD, 2018).
Perguntado muitas vezes, e de diferentes maneiras, como define o cinema, Godard
reiterou que um “filme é feito não apenas para mostrar o que se faz”, caso da maioria das
películas exibidas em Cannes, mas também para mostrar o que não se faz. “Eu espero que o
meu ajudará um pouco a mostrar ou a pensar... sobre o que não se faz e, para isso, é preciso
pensar com as mãos e não apenas com a cabeça”.
A etapa de montagem, destacou ele, é quando principalmente se exerce, no cinema, a
possibilidade de “pensar com a mão”. Em sua entrevista, assim como no filme, fez inúmeras
referências ao livro Penser avec les mains (1936), do suíço Denis de Rougemont, que o
escreveu diante da emergência dos fascismos na Europa, em defesa de um engajamento ético
(para além de uma simples dicotomia entre homens de ideia e os de ação). O livro se renova
diante do debate a respeito das tecnologias digitais19, e Godard o reinterpreta a seu modo. O
elemento tátil (ou seja, corporal) é tomado como central para o cinema, assim como para lidar
com os limites da linguagem, e para o pensamento – e para o amor.
No fim do processo de montagem de Le livre d’image, contou Godard, restaram
apenas imagem e palavra (parole)20, “as duas coisas que o texto, a língua não conseguem
falar bem. Eles podem se aproximar mas a palavra (la parole)... a voz não é a palavra (la
parole). A palavra (la parole) não é linguagem dos animais, em particular”. O trabalho de
som, realizado sobretudo por Fabrice Aragno, tinha como objetivo fazer com que fosse
distanciado da imagem (Godard aprecia o cinema mudo e gosta de ver a TV sem som). “A
cor tem algo a ver com a palavra (parole), mesmo que seja essa de Heidegger21. E no cinema,
o som deveria se afastar da imagem”. Em Le livre d’image, o som é o mote experimental:
emerge de todos os cantos da sala. Seria um filme que “se escuta em profundidade”
19 Numa citação conhecida de seu livro, Rougemont diz: “Não, não vou pedir que destruam as máquinas e eu não tenho desprezo algum pelas balanças, ainda mais quando são justas. Mas eu peço que se tomem essas ferramentas pelo que são, não como regras ou como normas de pensamento” (tradução livre: “Non je ne vais pas demander qu'on détruise les machines et je n’ai pas le moindre mépris pour les balances, surtout si elles sont justes. Mais je demande qu’on prenne ces outils pour ce qu’ils sont, non pour des règles et pour des normes de pensée”). 20 Em francês, pode-se traduzir “palavra” por mot ou parole. No caso de parole, trata-se de palavra ou voz articulada num discurso (mas não chega a ser discurso, para o qual existe o equivalente discours).
21 Autor (no título em francês) de Acheminement de la parole; em português, A caminho da linguagem (Vozes, 2003).
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(MACHERET, 2018). Por isso, Godard não faz questão de levar seu filme a salas que não
permitam tecnicamente essa experiência.
A jornalista da Agência France-Presse lhe perguntou a respeito de Maio de 1968, e
Godard lembrou (e prestou homenagem) a Pierre Overney e Gilles Tautin22, jovens militantes
mortos nas manifestações de meio século atrás.
Se boa parte da cinematografia de Godard oferece um embate com a possibilidade de
representação, na fase atual de sua obra ele parece aprofundar essa questão, a começar por
sua crítica aos atores. No fim da entrevista, fez uma espécie de autocrítica. Há até cerca de
três ou quatro anos atrás, ele contou que não se dava conta de que seus filmes tinham
“tamanha violência de representação, enquanto o interior da representação é muito calmo.
Voilà”. E isso se refere ainda ao jogo de cores, à maneira como se combinam: “No momento,
estou lendo um livro sobre Cézanne, e nele havia muita violência e muita calma interior”.
Godard se torna então o único ator de seus filmes, um ator que, com sua performance-
coletiva de imprensa, promove seu próprio filme fazendo implodir as mídias. É o diretor-ator-
performer que promove e representa a si mesmo. Ao extrair o ator do filme, restou-lhe
representar sua própria figura no palco do Festival de Cannes.
5. ‘Tateando’ considerações Godard-celular lembra em alguns momentos seu filme anterior: Adeus à linguagem.
Este sim, filmado com atores (mas também com imagens de arquivo e elementos do cinema
mudo), e que evoca as contradições temporais da nossa sociedade, como o retorno do
nazismo e do fascismo. O celular se faz presente na tela, como algo incômodo que
observamos: diante de uma bancada de livros, na rua, o personagem segura seu celular (sua
arma). O celular se torna máquina de tempo: ao congregar nele múltiplas formas de
comunicação (do cotidiano e dos meios, os filmes, os vídeos, os livros, os rádios etc), torna-
se fator de contração da história. Os personagens aparecem fazendo buscas no Google sobre
personagens históricos. São como estratos do tempo que atuam de forma intensa, e
possivelmente com mais velocidade que em outras mídias.
22 O jovem foi morto por policiais em 10 de junho de 1968 e no dia seguinte Godard participou, em Paris, da manifestação de luto em sua memória: “Jean-Luc me pareceu, naquele 11 de junho, mais impactado, mais desesperado: ele realmente não sabia o que responder” (WIAZEMSKY, 2018, p. 113).
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O tempo histórico é uma pulsação contínua de contrações, sua espessura é própria de uma matéria de múltiplas camadas na qual cada uma dessas camadas se afunda na outra. Por isso as lutas sociais nunca são feitas em nome apenas daquilo que elas imediatamente afirmam. A todo momento, elas são atravessadas por palavras e frases que parecem vir de outros tempos; elas parecem encarnar personagens e gestos que nos remetem a outras cenas (SAFATLE, 2018).
Dar “adeus” à linguagem implicaria uma brincadeira com a linguagem, romper seus
limites. O celular permite brincar com a linguagem (manejá-la) na palma da mão. Pode ser
uma brincadeira perigosa. Joga-se com o tempo. Há um movimento que não se relaciona
“com o simples recuo de uma data para outra data. Ele está ligado ao remontar do tempo para
o que não é o tempo das datas” (RANCIÈRE, 2011, p. 23; grifos no original). Assim, a
entrevista de Godard-celular faz evidenciar a articulação de tempos e se aproxima de uma
verdade semelhante à poesia. O que é apropriado se metaboliza na intensidade da manipulação desencadeada pela produção poética. Em Godard, seguindo aí a trilha aberta por Marcel Duchamp, o fazer artístico combina no mesmo gesto os atos de cortar, colar, deslocar e ressignificar. O novo nasce das relações inesperadas (DUARTE, OSÓRIO, 2017).
Quando o jornalista alemão Daniel Kothenschulte, do Frankfurter Rundschau23,
perguntou: “Eu penso que o cinema, enquanto experiência teatral, vai desaparecer em breve.
O que o senhor acha? Será que o cinema, como experiência para o público, vai perdurar, vai
continuar?”, Godard expôs que sobre isso não podia falar, “posso somente falar de mim. E
falar de mim é menos interessante que falar de um filme. E, portanto, ufff... Não sei muito o
que responder dessa pergunta”. Parece-nos interessante o questionamento do jornalista
porque ele está preocupado com a continuação de um determinado tipo de experiência
estética (a da convenção teatral, cinematográfica, a experiência de uma determinada época,
captada e organizada pelas redes discursivas). A própria performance que Godard realiza, e
da qual os jornalistas participam, poderia lhe sugerir uma resposta.
Mesmo que Godard pontue sua incapacidade para responder à pergunta, o cineasta
descreve um pouco sua vivência – organizada e constrangida por outras redes discursivas,
coexistentes no contexto contemporâneo: [...] fora alguns territórios no exterior [...] nós vamos guardar esse filme em particular para a França e outros países, e nesses países não queremos exibição em salas de cinema, porque as salas simplesmente não conseguem passar o som, e mostram as imagens sobre uma tela que deve ser reservada à pintura. Portanto, nós vamos projetar o filme, às vezes, nos próximos dez anos, em algumas pequenas
23http://www.fr.de/kultur/kino/cannes-film-festival-cannes-laesst-die-favoriten-aus-dem-sack-a-1506169,0. Acesso em 13/10/2018.
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salas que fazem cultura, teatro ou circo e que ele ficará à vontade assim. Será um pouco como a manif (manifestação) de... eu esqueci seu nome... um jovem militante francês, que fez uma manif há alguns dias... E que seja sobretudo alegre, reflexivo, instrutivo etc [...] Voilà, merci” (GODARD, 2018).
Godard fez referências constantes e críticas ao mundo digital na entrevista,
especialmente ao Facebook, e aos “cliques e claques”, como disse de forma irônica, que
somos convocados a fazer cotidianamente. Ou seja, mostrou-se consciente do jogo de
encenação e dos desafios engendrados pelo celular. Uma jornalista espanhola lhe perguntou
se a presença da Catalunha se devia aos acontecimentos recentes, em prol da independência,
e de George Orwell, que participou da Guerra Civil Espanhola. “Não, mas durante a
montagem, houve os acontecimentos na Catalunha. Mas Orwell... é preciso lembrar que o
primeiro título do livro de Orwell foi 1948 e como os editores tiveram medo, mudaram para
1984. Orwell escreveu depois Homage to Catalonia24”. A citação a 1984 ocorreu de forma
espontânea.
Autor simbólico da resistência ao totalitarismo dos meios, Orwell ajudou Godard a
dar mais uma definição de cinema, o “verdadeiro cinema” (o da terceira imagem), que seria
próximo daquele de Epstein, Straub, de clássicos como Ophuls ou Alexandre Dovjenko e
“próximo desses anarquistas, sindicalistas” que se encontram na homenagem à Catalunha.
Para o cinema, assim como para o engajamento na Guerra Civil Espanhola, não basta viver:
muita gente, disse o diretor, tem “coragem de viver suas vidas, mas não têm com frequência a
coragem de imaginá-las”. Godard contou ter dificuldade de viver, mas não de imaginar a
vida, “e isso me permite continuar e pegar esse trem, esse trem da História”, afirmou ao
crítico canadense Bryan Johnson25. “O cinema, tal como eu o concebo, é uma pequena
Catalunha, que tem dificuldade de existir”, reiterou à jornalista espanhola.
A defesa da imaginação não poderia, nesse cenário, ser dissociada das evocações a
Maio de 68. Godard ainda estaria naquele presente: é o que lhe permite “tomar o trem da
História”, ou seja, avançar em direção ao futuro. A possibilidade de transformação
revolucionária é um convite ao futuro. Mas muitos se negam a imaginar suas vidas, constata
o cineasta: negam-se ao futuro. No celular, o tempo é reversível, em seus múltiplos estratos
que se cruzam de forma veloz, e a linha que aponta o futuro estaria embaralhada entre outras.
24 Traduzido no Brasil com o título Lutando na Espanha (Ed. Globo, 2006). 25 O texto que escreveu a respeito está disponível em: https://thewalrus.ca/the-cosmic-tangents-of-jean-luc-godard/. Acesso em 13/10/2018.
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A defesa que Godard faz da decomposição dos elementos do cinema (luz/cor e
som/discurso, além do movimento) não pode ser considerada simplesmente um método
brechtiano para arrancar o público da alienação/falácia da ficção (embora guarde inspiração
nesta). Não é mais possível tirar o público de um lado para pô-lo em outro. Insistir hoje nessa
proposição, sem revê-la, poderia soar ingênuo. Há uma operação mais complexa que Godard
gostaria de pôr em prática, já que o binarismo ficção vs. realidade perde eficácia. Por isso a
força da performance: é preciso atuar nos interstícios. No tempo reversível do celular, temos
a desconstrução de parâmetros de realidade.
Orwell, num texto de 1946 (The prevention of literature), argumenta que o
totalitarismo torna a literatura impossível. Por literatura ele quer dizer todo tipo de escrita em
prosa, da ficção imaginativa ao jornalismo político. “O totalitarismo demanda, de fato, a
contínua alteração do passado e, a longo termo, provavelmente demanda a descrença na
existência mesma da verdade objetiva” (ORWELL apud GESSEN, 2018)26. Assim, tudo se
torna concebível porque “nada é verdadeiro”. Essa discussão perpassa aquela levantada pelos
limites da “mídia-literatura”, que precisaria se alimentar da ficção para existir. A
indiferenciação poderia anular a força da literatura – e das linguagens criativas – assim como
a da imaginação, que se tornaria inócua diante da própria vida.
O diretor reconhece os limites da linguagem e agora não é mais tão-somente um
cineasta: torna-se artista performático. Sua entrevista coletiva, por meio de um celular (sendo
Godard quem é), é um performativo que, inserido nas redes discursivas contemporâneas,
demonstra as reconfigurações na mídia-literatura.
A possibilidade de “cinema pensado”, obsessão de Godard, minguaria se o método
não mudasse e isso equivale, em seu caso, a questionar constantemente, de maneira cada vez
mais afiada, os limites de representação. O filme de arquivo, como Le livre d’image, atua na
lógica hipertextual de mídias digitais como o celular (nesse sentido, uma máquina de edição
de arquivos que reconfigura de forma intensa e contínua o passado). Imbuído do espírito
soixente-huitard mas buscando pensar com as mãos, à moda contemporânea, Godard parece
querer dizer que não há saída senão usar os dedos para romper as telas do totalitarismo.
Portanto, ainda nos resta o corpo, uma “verdade” corporal, que pode intervir dentro das
condições de materialidade técnica da mídia, como na pequena tela performática.
26 Do inglês: “Totalitarianism demands, in fact, the continuous alteration of the past, and in the long run probably demands a disbelief in the very existence of objective truth”.
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Referências
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim. Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
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